Você está na página 1de 169

O Banquete

Mario de Andrade

Cn3 Livraria
Cn3, Duas Cidades
E q u ip e de re a liz a ç ã o :
P r o je to g rá fic o de L ú c io G . M a c h a d o e E d u a rd o J. R o d rig u es
Assessoria e d ito r ia l de M a ra V a lle s
Revisão de H e rb e n e M a t t io li e V a lé ria C . Salles

T o d o s os d ire ito s reservad os p o r


L iv ra ria D u as C id ad es L td a .
R u a B e n to F re ita s , 1 5 8 — São P a u lo
1977

\
C IP -B ra s il. C a ta lo g a ç ã o -n a » ^ o n te
C â m a ra B rasileira d o L iv r o , SP

A n d r a d e , M á r io d e, 1 8 9 3 - 1 9 4 5 .
A568b O b a n q u e te . São P a u lo , D uas C id a d e s , 1 9 7 7 .

1. M ú sica — Brasil 2 . M ú s ic a — F ilo s o fia e e s tética


I. T ít u lo .

C D D - 7 8 0 .1
7 7 -1 2 5 5 -7 8 0 .9 8 1

ín d ic e s p ara c a tá lo g o s is te m á tic o :

1. Brasil : M ú sica 7 8 0 .9 8 1
2 . E s té tic a m u sical 7 8 0 .1
3 . M ú s ic a : E s té tic a e filo s o fia 7 8 0 .1
S U M Á R IO

S o b re O B a n q u e t e ................................................................................ 9
C a p ítu lo I — A b e r t u r a .......................................................................... 43
C a p ítu lo II — E n c o n tro n o P a r q u e .............................................. 55
C a p ítu lo I I I — J a rd im de I n v e r n o ................................................. 71
C a p ítu lo IV — O A p e r itiv o .............................................................. 95
C a p ítu lo V — V a t a p á .......................................................................... 117
C a p ítu lo V I — S a la d a .......................................................................... 157
C a p ítu lo V I I — D oce de C o c o — F r u t a s ..................................... 165
C a p ítu lo V I I I — O Passeio em Pássaros ..................................... 167
C a p ítu lo IX — Café P e q u e n o ................................................. ... 169
C a p ítu lo X — A s D esp ed ida s — N o t u r n o .................................. 171
D eve m o s a G ild a de M e llo e S o u za a
sugestão de p u b lic a r esta im p o r ta n te re fle x ã o
e s té tic a — in fe liz m e n te ina cab ad a — de
M á rio de A n d ra d e , a té h o je
p ra tic a m e n te in é d ita .

Os E d ito re s
S o b re O Banquete
" P a r tir eu p a rto . . .
Mas essa m ú sica é m e n tira .
Mas p a r tir eu p a rto .
Mas eu não sei o n d e v o u .”

M . d e A n d ra d e — L ir a P a u lis ta n a

S itu a ç ã o d '0 B a n q u e te

E m m a io d é v 1 9 4 3 3 ^ á r io d e A n d ra d e co m e ça a escrever
c ró n ic a s m u s ic a is n a T T o /h a d a M a n h ã : te x to s h e b d o m a d á rio s
q u e vão a p a re c e n d o re g u la rm e n te às q u in ta s -fe ira s sob o t í t u l o
de “ M u n d o M u s ic a l" , a té a m o r te d o a u to r, em 1 9 4 5 . M á rio
a d v e rie desde o p r im e ir o a rtig o : não se tra ta d e c r ític a
p ro fis s io n a l, liga da aos a c o n te c im e n to s e m a n ife s ta ç õ e s
c o n te m p o râ n e o s e lo c a is ; não se tra ta de c o m e n tá rio s s o b re a
v id a m u s ic a l p a u lis ta n a . E s tru tu ra m u ito m ais liv re , o “ M u n d o
M u s ic a l" p e r m itiu a a p a riç ã o d o s m ais d iv e rs o s te x to s :
a b o rd a g e m de fe n ó m e n o s o u p ro b le m a s gerais ( " D o te a tro
c a n ta d o " , "P s ic o lo g ia da c ria ç ã o " e tc .); e s tu d o s o u re fle x õ e s
s o b re a spe ctos e s p e c ífic o s (" C la u d e D e b u s s y ", "P e llé a s et
M é lis a n d e ", " S c a r la t t i" e tc .) ; s o b re o fo lc lo r e ( " C a n ta d o r " ,
"D a n ç a s d ra m á tic a s " e tc .); e m e sm o p o r vezes e x c e d e n d o ao
d o m ín io p ro p r ia m e n te m u s ic a l, c o m o em " A r t e in g le s a ",
n o tá v e l p a n o ra m a q u e releva a im p o rtâ n c ia da In g la te rra não
s o m e n te n o d o m ín io da m ú s ic a , mas das a rte s p lá stica s,
a r q u ite tu ra e c in e m a .
A n u n c ie m o s lo g o q u e , na m a io r p a rte d o s casos, ta is
te x to s não são e s tu d o s a ssép ticos, a fa sta d o s da c o n ta m in a ç ã o
c o n te m p o râ n e a . A p e s a r d e não se la n ça r n os p ro b le m a s de
c o n c re ta e p ró x im a a tu a lid a d e m u s ic a l, M á rio liga
fre q u e n te m e n te suas re fle x õ e s so bre o passado, so b re as
a tiv id a d e s e stra n g e ira s, o u so bre o fo lc lo r e , à s itu a ç ã o precisa
da c ria ç ã o m u s ic a l b ra s ile ira , aos p ro b le m a s de in fra -e s tru tu ra
(e n s in o , p e sq u isa ), à e v o lu ç ã o d os a c o n te c im e n to s d o seu
te m p o . O " M u n d o M u s ic a l" , em p r in c íp io tr a ta n d o de
a ssun tos d is ta n te s da re a lid a d e im e d ia ta d e m ú sica e a rte , é
p o r essa razão m esm a u m m e io c ó m o d o de s itu a r q u e stõ e s
a tu a is im p o rta n te s , de d is c u tir c a m in h o s , d e ca stig a r e rro s.
A lg u n s desses te x to s são lo n g o s d e m a is para serem
tra ta d o s n u m a ú n ic a p u b lic a ç ã o : p o r essa razã o M á rio
in s ta u ra séries q u e p o r vezes são in te rro m p id a s p o r o u tro s
te x to s , para serem re to m a d a s m a is a d ia n te : " C a n t a d o r " ,
" A r t e in g le s a " e tc.
O B a n q u e te está neste caso e é m e sm o a m a is longa
série. E le d ife re s e n s iv e lm e n te d os o u tr o s te x to s p o r seu
c a rá te r de fic ç ã o : u m " d iá lo g o " e n tre c in c o - p ersonagens
im a g in á ria s d u ra n te u m ja n ta r, c o n c e b id o em d ez c a p ítu lo s
q u e não ra ro serão fra g m e n ta d o s , de m o d o a se a d a p ta r à
p u b lic a ç ã o sem anal. O p la n o e s ta b e le c id o p o r M á rio d a ta de
fe v e re iro de 1 9 4 4 , e a p rim e ira p u b lic a ç ã o de 4 de m a io d o
m esm o a n o : u m p r o je to que se d e s tin a v a s e g u ra m e n te à
p u b lic a ç ã o em v o lu m e , c o m o " A r t e in g le s a " — t e x t o aliás
b em m e n o s a m b ic io s o —, q u e a parecera em liv ro d u ra n te a
v id a de M á rio , fa z e n d o p a rte d o B a ile das q u a tr o a rte s .
In fe liz m e n te , q u a n d o so b re vê m a m o r te d o a u to r em 1 9 4 5 , o
p r o je to está in a c a b a d o , in te r r o m p id o na p rim e ira p a rte d o
c a p ítu lo s e x to — " S a la d a " , p u b lic a d o em 2 2 -2 -1 9 4 5 , v ig é s im o
te rc e iro " e p is ó d io " .
É este fra g m e n to q u e d a m o s h o je ao le ito r q u e se c o n ve n ce rá
c o m o nós, estam os c e rto s , de seu interesse e im p o r tâ n c ia . Ele
p e rm ite u m a c o m p re e n s ã o m ais aguda d o p e n s a m e n to de M á rio ,
e a in d a p ro v o c a e a u x ilia a re fle x ã o so bre p ro b le m a s da m úsica,
da a rte e da c ria ç ã o na so cie da de b ra s ile ira .

P o r q u e " B a n q u e te ” ?

T o m a n d o este t í t u l o e d a n d o à o b ra a fo rm a de u m
d iá lo g o e s té tic o -filo s ó fic o , M á rio de A n d ra d e n os re m e te ao
e v id e n te m o d e lo p la tó n ic o . À q u e s tã o q u e se im p õ e
im e d ia ta m e n te ao e s p ír ito — q u a l é a d ív id a d o t e x t o que
te m o s em m ãos para c o m a sua re fe rê n c ia clássica? —,
p o d e m o s re s p o n d e r q u e as ligações são lo n g ín q u a s e gerais,
o n d e fic a m d ifíc e is as separações e n tre as (raras) c o in c id ê n c ia s
e as d eriva çõ e s.
P o de m os c o n s ta ta r a se m e lh a nça da s itu a ç ã o g lo b a l —
u m ja n ta r lu x u o s o o n d e os c o n v iv a s d is c o rre m s o b re u m
a ssu n to p re ciso , n u m caso o a m o r, n o o u tr o a m ú s ic a . Mas
M á rio não se d e ix a d e m o d o a lg u m levar p o r o u tra s
in flu ê n c ia s m ais d e te rm in a n te s o u p ró x im a s , q u e
tra n s fo rm a ria m seu te x to n u m p a s tic h o a tu a liz a d o , a in d a q u e
s o m e n te in s p ira d o pela o rg a n iz a ç ã o fo rm a l. E m lu g a r de
c o rre s p o n d ê n c ia s precisas, p o d e m o s e vo ca r u m a espécie de
se m e lh a nça de c a rá te r: o d is c o rre r flu e n te e fa m ilia r da
n a rra çã o p la tó n ic a m a rca -n o s pela sua fle x ib ilid a d e , pela sua
iro n ia e p e lo seu fra n c o h u m o r : assim o p ra z e r de im ita r os
d is cu rsa s das personagens c o n te m p o râ n e a s — c o m o M á rio
im ita rá a fa la d o p o lí t ic o o u a s o fis tic a ç ã o da g rã -fin a — o u
tra ç o s irre s is tív e is c o m o o s o lu ç o d e A ris tó fa n e s o u a e n tra d a
te m p e s tu o s a d e A lc ib ía d e s . Mas se essa e s c ritu ra d 'O
B a n q u e te evocada é u m caso u m p o u c o especial na o b ra
p la tó n ic a , ao c o n tr á r io a flu ê n c ia e h u m o r são u m a das
c a ra c te rís tic a s im p o rta n te s que se e n c o n tra m na m a io r p a rte
d os te x to s de M á rio , m e sm o q u a n d o tra ta d e p ro b le m a s
c o m p le x o s e á rd u o s. E , a lé m d isso , n u m a o u tr a d ire ç ã o , O
B a n q u e te p a u lis ta n o é m u ito m e n o s risos e à v o n ta d e que seu
m o d e lo clássico e q u e os e s c rito s h a b itu a is de M á rio . U m
c lim a c o n tí n u o de m a l-e s ta r e a n g ú s tia , p o r vezes
in te n s ís s im o , e n v o lv e os riso s e as c o m id a s — é q u e o a u to r
se a tira p ro fu n d a m e n te n a q u ilo q u e fa z suas personagens
d iz e re m , la n ç a n d o p ro b le m a s para ele essenciais e para os
q u a is não vê resposta c o n c re ta a lg u m a .
Mas não a n te c ip e m o s . S o b re P la tã o a in d a nos resta
d iz e r a sem elhança acusada e n tre a ju v e n tu d e , a "g ra ç a d o
c o rp o n o v o " no d iz e r de M á rio , o e s ta b a n a m e n to , a
im p e tu o s id a d e a d m ira tiv a e e n tu s iá s tic a (e ao m esm o te m p o
d is ta n te ) q u e e x is te e n tre A lc ib ía d e s e P a sto r F id o . E
resta -no s ta m b é m le m b ra r o p ro b le m a da m ú sica grega. U m a
das p re o cu p a çõ e s fre q u e n te s de M á rio são os e fe ito s
p s ic o fis io ló g ic o s da m ú sica e a sua in te rv e n ç ã o , seu p ap el
m u ito a tiv o na so cie d a d e c o n te m p o râ n e a : estão lig a d o s a
esses p ro b le m a s a d iscussão so b re as d isso n â n cia s e o
in a ca b a d o nas a rte s (O B a n q u e te — págs. 6 2 e 6 3 ) e a
e vocação dos " e t h o s " m u s ic a l g re go :
" o c ro m a tis m o na G ré cia era só p e r m itid o aos g ra n fin o s
da v irtu o s id a d e , in c u lc a d o de sensual e d is s o lv e n te ,
p r o ib id o aos m o ço s, aos so ld a d o s, aos fo r t e s " .
Esta ú ltim a q u e s tã o já a tra íra b a s ta n te M á rio , à q ual
d e d ica páginas im p o rta n te s na P e quena h is tó r ia da m ú sica .
Nesse c a m in h o , a le itu ra de P la tã o deve te r-lh e fo rç o s a m e n te
in te re ssa d o , mas m u ito m ais o liv ro II das L e is o u o liv ro II I
da R e p ú b lic a q u e o B a n q u e te , cu ja ú n ic a m agra re fe rê n c ia
m u s ic a l é a passagem rá p id a q u e se e n c o n tra n o d is c u rs o de
E r ix ím a c o . E essa passagem p o d e ria ser s ig n ific a tiv a c o m
re la çã o ao e sta d o de in q u ie tu d e , de espera, ao s e n tim e n to de
in a ca b a d o d in â m ic o e fe c u n d o q u e M á rio a firm a ser
c a ra c te rís tic o da d is s o n â n c ia , p o is E r ix ím a c o d iz de m o d o
o p o s to , q u e a a rte m u s ic a l é a c o n c ilia ç ã o d e sons
d is c o rd a n te s p e lo a c o rd e , o q u e p ro d u z a c o n s o n â n c ia ,
c ria n d o u m e stad o de " a m o r e c o n c ó r d ia " . 1 Mas to d a essa

1 1 8 7 a b c , p. 1 1 9 a 121 da tra d u ç ã o d o p ro f. J. C a v a lc a n te de
S o u z a , São P a u lo , D ifu s ã o E u ro p é ia d o L iv r o , 1 9 6 6 .
ginástica é in ú til: a idéia de M á rio — dissonância = in q u ie tu d e
— c o rre as teorias clássicas da m úsica. Para darm os um
e xe m p lo , cite m o s o velho e co n h e cid o m anual de Danhauser,
de 1 8 7 2 :
"L e s inte rva le s dissonants (. . .) so n t ceux q u i fo rm e n t
entre eux d e u x sons que T o re ille éprouve le besoin de
m o d ifie r, en les re m p la ça n t par d 'a u tre s sons; la
dissonance d o n n e une im pression d 'in s ta b ilité , les sons
a yan t une tendence à se dissocier p our a b o u tir à une
c o n s o n a n c e ".2
Deste m o d o , O B a nquete de Platão se revela co m o um
p a d rin h o de pouca ou nenhum a in flu ê n c ia , e o te x to de M ário se
insere antes num a linhagem de diálogos filo s ó fic o s , fo rm a que
desde o filó s o fo ateniense p o n tu a a h is tó ria das idéias.

D iálog o, fo rm a adequada

Pontuação d iscreta, p orém . E le m e n to essencial da


filo s o fia p la tó n ic a (não há, no F e d ro , o elogio da palavra
o ra l, viva, e a c rític a da fix a ç ã o e scrita ?), a fo rm a
dialogada, na sua h is tó ria , acomodar-se-á em fu nçõ es m enores:
fa c ilita ç ã o pedagógica (já S anto A g o s tin h o a u tiliz a co m o
m eio a p ro p ria d o de ensino, co m o em De m usica, onde as
personagens se reduzem sig n ific a tiv a m e n te a M estre e
D is c íp u lo ) ou exposições de argum entação, ocasionais e
secundárias, c o m o os diálogos de B e rkeley ou L e ib n iz . Nos
d ois casos, e n tre ta n to , ela depende de um c o rp o filo s ó fic o já
solid am en te estabelecido, e no fu n d o a fo rm a d o d iá lo g o não
é senão um m eio . . . fo rm a l. E que ju sta m e n te reaparecerá,
vívid a e necessária, num pensam ento que se ajeita m al com
tra ta d o s, que faz apelo c o n tin u a m e n te à experiência para se
a lim e n ta r, que não gosta de fa la r a bstratam en te e c o n s tru ir
sistemas á rid o s: será o m eio de expressão de D id e ro t, p o r
excelência, p or vezes m esm o se d is tin g u in d o pou co do te x to
de te a tro .
Na m úsica, a fo rm a dialogada possui um grande
m o m e n to : os escritos de S ch um a nn . Ele a havia inaugurado
com um célebre a rtig o sobre C h o p in , o nde in te rv in h a m q u a tro
personagens, F lo re sta n , a rro ja d o e rfnpetuoso, Eusebius,
m e la n có lico e c o n te m p la tiv o , M estre R aro, espécie de

2 T h é o rie d e ta M u s iq u e , Paris, ed. de 1 9 2 9 , p. 4 2 . E sse'p ro blem a


vem já m en cion ado em "T e ra p ê u tic a M u sical'' (in N a m o ro s c o m a
M e d ic in a , P o rto A leg re, L iv r. G lo b o , 1 9 3 9 , p. 4 8 ) .
m e d ia d o r ch e io de sabedoria, e o n arra do r, que escreve na
p rim e ira pessoa. Logo S chum ann fu n d a rá sua p ró p ria
revista, o nd e essas personagens assinarão a rtig os ou
conversarão sobre os m ais d ife re n te s p roblem as m usicais,
d irig in d o -se c o n tra as a titu d e s estreitas e dem agógicas da
c rftic a do te m p o , de inté rp re te s, da falsa arte , dos m odism os
estrangeiros (carregando consigo o sonho da criação de uma
ópera alem ã; in tro d u z in d o — co m o p ro p o rá ta m b ém M ário —
a su b s titu iç ã o dos te rm o s expressivos ita lia n o s — allegro,
ca n ta b ile etc. — p o r o u tro s nacionais) e e xa lta n d o a criação
verdadeira, honesta consigo mesma e sempre à p ro cu ra de um
a u to -u ltra p a ssa m e n to . N o e n ta n to , F lo re sta n , E u s e b iu s e Raro
não são apenas m a rio n e te s postiças que in trig a m os leitores
e que fa c ilita m os debates; ao c o n trá rio , são personificações
de aspectos o po stos d o e s p írito do a u to r, das co n tra d içõ e s de
seu te m p e ra m e n to , de suas d ife re n te s facetas d ia n te de
problem as que está longe de perceber com a frieza do
p ro fissio n a l e que antes to m a m p ro fu n d a m e n te seu ser. Por
vezes m esm o, sua p ró p ria p ro du ção m usical será assinada
p or Eusebius ou p o r F lorestan .
Se O B a nq u ete de M á rio não te m nenhum a pretensão
em c ria r um a filo s o fia através d o seu d ese n vo lvim e n to
d ia lé tic o , co m o em Platão, ou se o d iá lo g o não tem para ele
uma fu n çã o essencialm ente pedagógica ou e x p o s itiv a , ele se
m ostra , co m o em D id e ro t, um m eio p e rfe ito de expressão
para seu pensam ento p ra g m á tico , c o n c re to : se Le rêve de
d 'A /e m b e rt é quase te a tro , O B a nquete é quase um c o n to
filo s ó fic o . É uma fo rm a que possui — co m o em S ch um a nn —
de m o d o p riv ile g ia d o , u m poder a d a p ta tiv o aos c o n to rn o s do
real, uma incisiva m aneira de c o m b a te r, de d is c u tir problem as
vibran te s da a tu a lid a d e e ao m esm o te m p o de cria r
co n tra d içõ e s d e n tro do p ró p rio discurso, de não p ro vo ca r
polém icas d iretas, lu ta n d o p o r in te rm é d io das suas
personagens, lançando-se de m o d o mais p ro fu n d o na fala
desses fantasm as, e neles te n ta n d o isolar as facetas de seu
p ró p rio e s p írito . Na sua m o b ilid a d e e na m u ltip lic id a d e das
suas vozes, a e scritu ra dialogada p e rm ite as am bivalências.

Um te x to sem c o n s tra n g im e n to

U m dos papéis essenciais do "M u n d o M u s ic a l" e


d 'O B anq u ete é o seu caráter de o rie n ta çã o c rític a .
A im p o rtâ n c ia que a in te lig ê n cia , os co n h e cim e n to s e a
personalidade de M á rio de A n d ra d e tive ra m no desenvolver
das artes brasileiras fo i imensa e é desnecessário le m b ra r o
que a nossa criação a rtís tic a lhe deve. E scrito p o r um a
personalidade a lta m e n te prestigiosa, veiculado pelo jo rn a l,
logo por uma p ub lica ção não especializada, acessível e de
grande penetração, a fu nçã o pedagógica d 'O B a nq u ete devia
realm ente te r um alcance considerável. E pela sua natureza e
c o n te x to , as polém icas levantadas, a viru lê n cia do e s tilo , o
a rd o r das defesas, sempre ligadas às reflexões es.téticas mais
gerais, têm esse sabor de vida que e fe tiv a m e n te !a ta x id e rm ia
u n ive rsitá ria , mais rigorosa, segura, ou o que q u e r que se
que ira , não possui.
Já vim o s que n '0 B anquete a fo rm a dialogada é um
m eio que pela sua fle x ib ilid a d e pode e x p rim ir o tim a m e n te
um pensam ento que seguiu pelos tran cos e barrancos do
co n c re to e que não se fecha num cristal sem co ntrad içõe s.
O ra, ao caráter jo rn a lís tic o e p ra g m á tico se associam
projeções c o n flitu a is in te rio re s do a u to r, que c o n fu n d e m a
clareza dos dese nvo lvim en to s, a precisão das intenções. Pois
especialm ente neste d iá lo g o , M á rio decide não dissertar, mas
lançar-se com suas am biguidades. O que acarreta fo rço sa m e n te
uma perturb açã o da pedagogia e das idéias que p o d e ria m vir
claras. Mas elas não são claras, e no m o m e n to em que
escreve, M ário está se q u e stio n a n d o , p o r vezes inseguro.
N '0 B anquete não pretende co lo ca r apenas um program a
e x p líc ito ou uma d ireção o p e ra tó ria im e dia ta . A o c o n trá rio ,
seu te x to nasce de suas co ntrad içõe s. E as d ific u ld a d e s de
le itu ra com eçam .
M ário vai te n ta r e xprim ir-se sem os fre io s d o rig o r e,
p o r vezes, sem m esm o os fre io s da coerência. Para isso
prepara o te rre n o escudando-se p o r trás de suas personagens,
sobre as quais recaem as responsabilidades, e cu jo
c o m p o rta m e n to ou caráter e xplicam ou desculpam o
descosido. E por eles o a u to r pode descarregar seu coração.
Logo de in íc io , esse jogo de reenvios anuncia as cores
de sua am b ig u id ad e com a nota iró n ic a :
"O h meus amigos, si lhes d o u este re la to fie l de tu d o
q u a n to sucedeu e se fa lo u naquela tarde boa, boa e tris te ,
não acreditem não, que q ua lq ue r semelhança destes
personagens, tão nossos conhecidos, com q u a lq u e r pessoa
do m u n d o dos vivos e dos m o rto s , não seja mais que
pura co in cid ê n cia ocasional. E é tam bém c e rto ,
ce rtíssim o , que ao menos desta vez, eu não poderei me
responsabilizar pelas idéias expostas a q u i. N ão me
pertencem , em bora eu sustente e p roclam e a
responsabilidade dos autores, nesse m u n d o de
am biciosas reportagens estéticas, vulgarm ente cham ado
Belas A rte s ". (O B a n q u e te , p. 45).
R esponsabilidade delegada, mas o sentido é
in te n c io n a lm e n te c o n fu n d id o pela iro n ia : "p u ra co in cid ê n cia
o c a s io n a l", nestes "personagens tã o nossos c o n h e c id o s ", e o
caráter s ib ilin o da ú ltim a frase.
Em m o m e n to s mais agudos, to m a d o pela d in â m ica de
seu discurso, M ário insiste na im precisão dos enunciados:
É m u ito vago, Janjão.
— É m u ito vago. Pastor F id o é . . . " (O Banquete, p. 133).
N o 5 ? c a p ítu lo espanta-se:
"M a s é in críve l co m o os meus personagens já estão
agindo sem a m inha in te rfe rê n c ia : não consigo c o n te r
mais eles" (O B anquete, p. 122).
N u m te x to de pura fic ç ã o , novela ou rom ance,
observações assim te ria m sem p ro ble m a seu lugar. Elas seriam
a í apenas inform ações sobre as personagens, e nq ua nto que
n '0 B a n q u e te , te x to de pensador, elas são alertas sobre as
idéias que se expõe. Tais precauções, mais as fa cilid ad es que
lhe p e rm ite m o to m de conversa de salão, b rilh a n te , bem
educada e bem hum orada (h u m o r cuja flo r absoluta é a
declaração p e re m p tó ria e inesquecível d o Pastor F id o :
"M o z a rt é o V ice n te C elestino do Século D e z o ito !" ), to do s
esses elem entos p e rm ite m tiradas e refle xõe s desvairadas,
com o a argum entação em fa vo r da in flu ê n c ia francesa
(O B a n q u e te , págs. 108 e 109) ou as referências desairosas à
m usicalidade germ ânica:
"E a c u ltu ra m usical germ ânica é quadrada p o r dem ais
p ro fu n d a m e n te estúpida — os co m p o sito re s alemães são
os mais b urro s do m u n d o — só Haendel e Beethoven
escapam disso! (. . .) Os professores m usicalm ente
germ anizados (. . .) não tê m a m en or capacidade pra
entender a música dos o u tro s países, e m u ito m enos
a d if í c il rítm ic a n acion al. T oca m q u a drad o. T oca m
b u rra m e n te , com uma estupidez que chega ao
a n g é lic o " (O Banquete, p. 109).
E saltam os o tre ch o onde B ru ckn e r e M ahler
(com parados a Jadassohns!) aparecem c o m o "fo rm id á v e is
técnicos da m úsica e da estupidez h u m a n a !". Mas o auge do
d e lírio encontra-se seguramente na constatação que Bach,
" tip ic a m e n te nas peças de ó rg ã o ", d em on stra a tristeza
p ós-coito , "a q u e la psicologia do 'a n im a l tris te ', dos excessos
sexuais"! (O B anquete, p. 1 36). Mas M á rio , no seu p ró p rio
t e x t o , p isca-nos o o lh o , c ria n d o a in d ig n a ç ã o d o p o lí t ic o
F e lix de C im a : " A q u e le je ito de tra ta re m M o z a rt, B ach
g é n io s re s p e ita d o s ! . . . E n tã o c o m o é q u e esses le via n o s
h a via m de tr a ta r D eus, P á tria , F a m ília e o G o v e r n o !"
(O B a n q u e te , p. 1 0 1 ).
R e v ira v o lta s ta m b é m são fre q u e n te s : u m a p erson ag em
parece ir m u ito b e m no seu r a c io c ín io , q u a n d o u m o u tr o
in te rv é m , e as idéias d ã o g u in a d a s, m u d a m de c u rs o , v o lta m
a trá s o u se c o rrig e m . M u ita s vezes o p e n s a m e n to de u m a
p erson ag em se esclarece, to m a um a nova d im e n s ã o c o m as
a firm a ç õ e s d o s 'o u tr o s : as reações m ú tu a s e n g e n d ra m novas
d ire çõ e s.
E é essa s itu a ç ã o m esm a q u e p e rm ite ta m b é m
d iva ga çõe s b rilh a n te s , e n tre o u tra s a te o ria so bre a b a tid a ,
a n u n c ia d a p o r F e lix d e C im a , e s o b re tu d o a página s u b lim e
q u e estabelece a lig a çã o e n tre o e s p o rte e a m o rte .
E n tr e ta n to , as astúcia s q u e lib e ra m o e s c rito r c o m p lic a m
sem d ú v id a a co m p re e n s ã o d o le ito r. P o rq u e , se d e ix a rm o s as
regras d o jo g o a m b íg u o de la d o e p e rg u n ta rm o s o n d e
e n c o n tra r o p e n s a m e n to d o a u to r, a resposta não é sim p les.
Para te rm o s u m a idé ia da e s tru tu ra , p o r vezes d ia b ó lic a , o n d e
M á rio se d iv e rte c o m espelhos q u e se re fle te m , to m e m o s u m
e x e m p lo p re ciso em seu e n c a d e a m e n to . M á rio de A n d ra d e
escreve n u m ro d a p é da F o lh a d e São P a u lo , o n d e e x p õ e suas
idéias. Nesse ro d a p é c ria u m d iá lo g o , O B a n q u e te , o n d e elas
serão e x p rim id a s e d is c u tid a s p o r personagens. U m a dessas
p ersonagens, Sarah L ig h t, te m a lg um a s idéias sobre a e s té tic a ,
q u e d e s c o b rim o s serem n o ta s to m a d a s pela p erso n a g e m n u m
c u rs o d a d o p o r . . . M á rio de A n d ra d e em 1 9 2 8 ! E
c o n s id e ra n d o q u e S arah L ig h t é u m a p erson ag em q u e , à
p rim e ira v is ta , d ific ilm e n te seria u m p o rta -v o z a u to riz a d o d o
a u to r, o le ito r só p o d e c o n s ta ta r q u e se d e ix o u a m a rra r
c o m o u m salam e.
N u m a te n ta tiv a de s itu a r-n o s nesse la b ir in to ,
e x p e rim e n te m o s e n tã o p ro c e d e r e s c o la rm e n te , e x a m in a n d o
u m a a u m a , as personagens d o te x to .

S arah L ig h t

N o p rim e iro c a p ítu lo , " A s a p re s e n ta ç õ e s ", M á rio situ a


as trê s p erson ag en s " d o n o s da v id a " , re p re s e n ta n te s ou
in s tru m e n to s da classe d o m in a n te . Na base está S arah L ig h t,
a m ilio n á ria , " p lu t o c r a t a " , c o m o ele a d e fin e , q u e o fe re c e o
b a n q u e te . Sarah L ig h t é " is r a e lita ir r e d u tív e l" , nascida em
N o v a Io rq u e e c o m isso M á rio c a ra c te riz a ao m e sm o te m p o
o c a p ita lis m o in te rn a c io n a l e a a usência d e raízes — Sarah
L ig h t é u m p o u c o o ju d e u e rra n te sem p á tria , a d a p ta n d o -s e
c o m o p o d e às c u ltu ra s o n d e vive. Seu p ra to p o r e x c e lê n c ia
é a "s a la d a a m e ric a n a ", fa s c in a n te , tra iç o e ira , m as "s e m
c h e ir o " — sem u m c h e iro q u e a d e fin a c u ltu r a lm e n te . P o rém ,
estas c o rre s p o n d ê n c ia s m ais gerais, q u e s itu a m a p erson ag em
quase c o m o u m s ím b o lo , não são tã o s im p le s assim . P or
e x e m p lo , e m p re g a n d o o m e sm o a d je tiv o " ir r e d u t í v e l" , associa
os ju d e u s à c u ltu r a g e rm â n ic a :
" É p â n d e g o : os m ais p e rig o so s são ju s ta m e n te os
p ro fe sso re s sem p á tria , os israelistas. N u n c a f u i c o n tra
os ju d e u s , D eus m e liv re ! Mas não sei si é p o r v ire m
d u m a c u ltu r a m u ito ir r e d u tív e l, p o is são quase to d o s das
p a rte s c e n tra is da E u ro p a , e q u a n d o n ã o g e rm â n ic o s
de te rra de n ascença, são p ro fu n d a m e n te g e rm a n iz a d o s "
(O B a n q u e te , p. 1 0 9 ).
T a m b é m e n c o n tra m o s na p. 1 0 7 :
" a m ilio n á ria fe rid a n a q u e le m e ig o p a tr io tis m o irr e d u tív e l
q u e fa z a g e n te a m a r p ra se m p re a te rra em q u e n a s c e u ".
Pois S arah é ta m b é m u m a c a ric a tu ra d o s e stra n g e iro s
q u e ig n o ra ra m o u c o m b a te ra m o m o v im e n to m o d e rn is ta . Na
c o n fe rê n c ia q u e te m e x a ta m e n te esse t í t u l o — " M o v im e n to
m o d e r n is ta " —, de 1 9 4 2 ,3 M á rio le m b ra c o m g ra tid ã o da
a ris to c ra c ia tr a d ic io n a l, a u te n tic a m e n te b ra s ile ira , q u e deu a
" m ã o f o r t e " aos jo v e n s . D . O lív ia G uedes P e n te a d o é a
a n títe s e de S a rah L ig h t, s ím b o lo (a in d a ) d o s " a r is tô s d o
d in h e ir o " q u e
" n o s o d ia v a m n o p r in c í p io e se m p re nos o lh a ra m co m
d e s c o n fia n ç a . N e n h u m salão de ric a ç o s tiv e m o s , n e n h u m
m ilio n á r io e s tra n g e iro n os a c o lh e u . Os ita lia n o s ,
alem ães, os isra e lista s se fa z ia m d e m a is g u a rd a d o re s d o
b o m senso n a c io n a l q u e P rados, P e ntea do s e
A m a ra is . . . " .
E n fim , o p o u c o q u e sa be m o s de S a rah nos a u x ilia a
c o m p re e n d e r q u e seu interesse pela m ú s ic a passe p e lo desejo
fís ic o de J a n jã o . É p o r causa d e le q u e , c o m seu d in h e iro ,
p o d e c o n s titu ir u m a d is c o te c a " c o lo s s a l" , m a io r d o m u n d o
(a m e ric a n a m e n te , c o m o a salada, ta m b é m " m a io r d o m u n d o " ).
D o m e sm o m o d o q u e para o p o lí t ic o e a v irtu o s e , o interesse
q u e dá à m ú sica é d eso ne sta c a m u fla g e m : assim na página

• n A s p e c to s d a lit e r a t u r a b r a s ile ir a , Sao P a u lo , M a r tin s e d ., p. 2 3 0


e 231.
n o tá v e l em q u e M á rio tra ç a u m p a ra le lo e n tre as m úsicas q u e
ela o u v e e as e x p e riê n c ia s re fin a d a s de sua " t o i l e t t e " (O
B a n q u e te , p. 7 3 ). A liá s , o te m a da re la çã o e n tre os d ive rso s
géneros da m ú sica e c o m p o rta m e n to s h u m a n o s é c a ro a M á rio
desde " T e ra p ê u tic a m u s ic a l" , o n d e o p ro b le m a apa re ce lig a d o
a c o m p o rta m e n to s c o le tiv o s e não in d iv id u a is , tr a ta d o de
m a n e ira c e rta m e n te m e n o s re fin a d a , m as n o m e sm o e s p írito .
T a l t ip o de c o n ta to c o m a m ú sica , se g u n d o M á rio , escapa ao
d o m ín io da A r te , c o m m a iú s c u la . A m ú sica " f u n c io n a l" está
fo ra d o s pra zeres p u ro s e p ro fu n d o s , p ro d u z id o s p ela m úsica
p u ra e p ro fu n d a , " e s té tic a " , d eslig a d a d o q u o tid ia n o e
sa cra liza da n u m m o m e n to d e fin id o . D e p o is de te r e s ta b e le c id o
u m p ro g ra m a de rá d io q u e acom pa nh asse , da m a n h ã à n o ite
as fu n ç õ e s h u m a n a s (p. 5 5 e 5 6 ), M á rio c o n c lu i "T e ra p ê u tic a
m u s ic a l" le m b ra n d o :
" É q u e e s to u p re s s e n tin d o a o b je ç ã o d e to d o s : — mas
nesse caso não haverá m ais lu g a r para c o n c e rto s ! . . .
Haverá se m p re c o n c e rto s e h o ra s serão ta m b é m
d e te rm in a d a s para q u e to d o s e scu te m u m M o z a rt, u m
S c a r la tti, u m W a g n e r, u m H e n riq u e O s w a ld . M as isso é
d o m ín io da e s té tic a e não desta n o tíc ia em q u e tiv e a
a ud ácia im p e rd o á v e l de n a m o ra r c o m a m e d ic in a . . . "
(p. 5 6 ).
A ssim S a rah L ig h t tra n s fo rm a m ú sica " a r t í s t ic a "
(R a rn e a u , Bach e tc .) em m úsica " f u n c io n a l" , c o m o m á
o u v in te , q u e se in c o m o d a p o u c o c o m a a rte . E o interesse
s u p e rfic ia l q u e co nsa gra à m ú sica fá -la in t e r v ir p o u c o nas
discussões te ó ric a s : seu p apel resum e-se fre q u e n te m e n te em
c o lo c a r q ue stõe s sim p le s q u e o u tr o s d e s e n v o lv e rã o . A s s im ela
vai b uscar a idé ia q u e a "e s té tic a fa z p a rte da p ró p r ia
té c n ic a " o u o e x e m p lo de S e u ra t q u e ilu s tra a q u ilo q u e M á rio
c h a m a " o d in a m is m o das c o m o ç õ e s e s té tic a s " (O B a n q u e te ,
págs. 7 7 e 8 6 ), tir a d o d o c u rs o q u e o p r ó p r io M á rio fiz e ra no
C o lé g io des O is e a u x . C o m c o n h e c im e n to s de " c u lt u r a g e ra l",
fo rn e c id o s p o r u m c o lé g io g rã -fin o , a boa re p re s e n ta n te desses
"a r is tô s d o d in h e ir o " , o d ia d o s p e lo a u to r, S arah n em sabe
q u e M á rio de A n d ra d e escreveu M a c u n a ím a . Ela d e fe n d e rá a
a rte c o m o p r iv ilé g io de classe, e nisso te rá o a p o io d o
p o lí t ic o (O B a n q u e te , p. 9 2 ). E e n c o n tra -s e c o m p ro m e tid a e
c o m p ro m is s a d a c o m ele ta m b é m , na c r ític a fa ls ific a d a ao p o d e r,
na p s e u d o -o p o s iç ã o ao g o v e rn o (O B a n q u e te , págs. 1 1 4 e 1 1 5 ).
O a u to r e s m iú ç a , a lé m desses, o u tr o s m e c a n is m o s seus,
c o n s c ie n te s o u in c o n s c ie n te s : os " d u e lo s " d e beleza e
fa s c in a ç ã ç c o m a c a n to ra , as flu tu a ç õ e s d e seu a m o r, cujas
in c lin a ç õ e s passam de J a n jã o a P astor F id o , seus s e n tim e n to s
e ró tic o s m e s m o , em re la çã o aos trê s h o m e n s presentes. E
in e sp e ra d a m e n te d e s c o b rim o s que S arah é " u m a g ra n d e
m u lh e r” , m en os s ím b o lo e quase essência fe m in in a , escap an do
aos ca ra cte re s de classe, à p lu to c ra c ia q u e a d e fin e :
“ B risa d o e n ta rd e c e r! c h e iro de lír io s d o b re jo ,
in fâ n c ia s , mães, te rn u ra s , g ru ta s a b ism a is, fo rç a
te rre s tre q u e n te , g o s to , a rro u b o de s e x u a lid a d e
ilim itá v e l ( . . . ) A c o n fu s ã o e x is tia sim , mas tã o grave,
tã o h a rm o n io s a — o s e n tim e n to é c o m o o s o m , dá
se m p re sons h a rm ó n ic o s — q u e S arah L ig h t estava e x ta s ia d a ,
c o m p le ta d a , c o n v e rtid a ao seu to ta l d e s tin o , m u lh e r
( . . . ) E vos g a ra n to q u e S arah L ig h t era u m a g ra nd e
m u lh e r, q u e p e n a . . . T iv e e te n h o in te n ç ã o de a m o s tra r
desagradável, c o m o de fa to é. Mas nem se m p re c o n sig o
co nservá-la na sua classe de p lu to c ra ta , p o rq u e ,
p e sso a lm e n te , às vezes ela se esquece da classe e de m im ,
um a g ra nd e m u lh e r ! " (O B a n q u e te , p. 1 2 7 ).

F e lix de C im a
" D e o rig e m ita lia n a e n a tu ra lm e n te fa c h is ta " (O B a n q u e te ,
p. 4 5 ), é o " c a r c a m a n o " , v ítim a n a tu ra l de u m a c e rta x e n o fo b ia
re in a n te , p o is o c o n tin g e n te im ig ra tó rio ita lia n o era o m ais
im p o r ta n te em S ã o P a ulo e desse m o d o o m ais a m e a ç a d o r.4
A s te rn u ra s dos " m e u s b ra s ile iro s lin d a m e n te m is tu ra d o s " , das
" ita lia n in h a s " e “ c o s tu re irin h a s íta lo -b ra s ile ira s " d o C/a d o
J a b o ti, d o “ g a lh a rd o f ilh o de im ig ra n te s , lo ira m e n te d o m a n d o
u m a u to m ó v e l" de P a u lic é ia d e sva ira d a , c o m p e n s a m m al o
a m b íg u o “ T ie tê " , ta m b é m de P a u lic é ia q u e o p õ e as
"g ig a n te sca s v itó r ia s " d o passado b a n d e ira n te à " — N a d a d o r!
V a m o s p a r tir pela via d u m M a to G rosso? / l o ! M a i! . . . /
(. . . ) / V a d o a p ra n z a re c o n la R u t h " .
4
A lfr e d o E llis (J u n io r) na " R e v is ta N o v a " (d irig id a p o r P au lo P ra d o ,
M á rio de A n d ra d e e A n to n io de A lc â n ta ra M a c h a d o ), le m b ra v a em
1931 q u e "s e ria m u ito d if f ic il d e p re v e r o re s u lta d o d a im ig ra ç ã o
ita lia n a e m São P a u lo , p o sta e m scena d e u m m o d o p erigo sissim o
para a b ra s ilid a d e , c o m as avalan ches a n n u a e s , cu jo to t a l sobe a
75% d a p o p u la ç ã o p re e x is te n te " . T a l in q u ie tu d e é p ró x im a da d e
M á r io , e a p re c ip ita ç ã o e m q u e a fir m a — sem a p o io c ie n t ífic o
m a io r — q u e " o ita lia n o fo i e n g u lid o , sem d e ix a r grand es vestíg ios
de n a tu re z a e th n ic o -s o c io lo g ic a da sua passagem " é m ais u m m e io
de a fir m a r a fo rç a da c u ltu ra “ a u te n tic a m e n te ” b ra s ile ira ,
m in im iz a n d o a c o n trib u iç ã o d os re c é m -c h eg a d o s . A lfr e d o E llis
(J u n io r ), P o p u la ç õ e s p a u lis ta s , in " R e v is ta N o v a " , ano 1, n? 1,
15 d e m a rç o de 1 9 3 1 , p. 5 4 .
R ealm ente bem tím id a s compensações, se pensarmos no
G igante Piaim ã, o guloso " b o n v iv a n t" Venceslau P ie tro
Pietra, quase irm ão gêmeo de F e lix de C im a. C om o o vilão
de M a c u n a ím a , este conhece bem farras, m ulheres, com idas,
bebidas. Apesar do "a lé m de ign ora nte , m u ito b u r ro " , F e lix
escapa da m ão de M ário ao dissertar sobre os prazeres da
mesa, capaz de sutilezas e lirism o s sobre a caninha e o
vatapá: é que a í e nco ntra m o s a palavra do a u to r, em p rim e ira
m ão. M á rio " g o u r m e t" , a u to r dessa o b ra -p rim a de h u m o r
e d ip ia n o -g a s tro n ô m ic o -a u to b io g rá fic o que é o "P e ru de n a ta l",
já havia confessado:
"G o s to porém m u ito de a rte c u lin á ria , in ve n to pratos e
cre io m esm o que se tivesse nascido n o u tra classe, seria
algum c o z in h e iro fa m o s o " .5
A lé m de b u rro e ign o ra n te , F e lix , quase
co nsequentem ente, é p o lític o . D efende as in s titu iç õ e s que
garantem o seu ser "d e c im a ", num a a m b ig u id ad e de
parolagens dem ocráticas que escondem a d ita d u ra , as
falcatruas, o interesse em frea r q u a lq u e r d e se nvo lvim en to
c u ltu ra l. Pois F e lix é ta m b ém " p r o te to r " das artes, e é por
isso m esm o que p a rtic ip a à mesa de Sarah, que
estrategicam ente quer fazer Janjão e n tra r nas graças do
governo.
A personagem de F e lix de Cim a p e rm ite bem ao a u to r
fazer sobressair os m ecanism os da dem agogia. Ele é, sem
d ú vid a , e xem pla r, e em certos aspectos m u ito a tua l. As
páginas sobre a aparente c rític a ao governo, sobre os
disfarces d o G E L O (G ru p o Escolar da L ib erd ad e de O p in iã o ),
ind ep e n d e n te m e n te do alcance que possam te r em o u tro s
m om en to s da h is tó ria do B rasil, re fle te m o instan te agudo
da dem agogia getu lista que, te n ta n d o ganhar te m p o sob as
pressões que lhe são fe ita s, p ro m e te o resta be lecim en to da
dem ocracia representativa. Mesmo o G E L O é uma transposição
caricata do a n tig o D IP (D e p a rta m e n to de-'lm prensa e
Propaganda), órgão que s u b s titu i os silêncios provocados na
im prensa pela v io le n ta censura.6
É claro que em realidade F e lix , d o mesmo m o d o que
Sarah, não te m o m en or interesse pelas artes; protege-as, o

5 P e rg u n ta s d e M a c a u le y e C o m p a n y e resp o sta s d e M á rio d e A n d ra d e ,


in "R evista do A rq u iv o M u n ic ip a l" , C L X X X , 1 9 7 0 , p. 2 4 3 .
6 V e r sobre o p ro b lem a — L eô n cio Basbaum , H is tó r ia S in c e ra da
R e p ú b lic a , São P au lo , F u lg o r, 1 9 6 8 . 3? ed.. 2*? p arte, cap. 2 e 4;
e tam b é m José M aria B ello , H is tó r ia da R e p ú b lic a , São Paulo, Cia.
Ed. N a c io n a l, 1 9 5 9 , cap. 2 4 .
que é coisa m u ito d ife re n te : consequência de a con tecim en to s
acidentais (entre os quais, por e xem plo , uma "d is e u s e " da
V irg ín ia ), ele criara uma côm oda imagem de mecenas. O que
a arte pode traze r-lhe é apenas o prazer sensual, “ vu lg ar” ,
que se encontra no m esm o nível das com idas e bebidas;
alm a "c o n c u p is c ív e l" — para em pregarm os a expressão
p la tó n ic a —, o d irig e n te F e lix de Cima co m o q u a d ro só
possui um nu "a g u ic h a n t".
U m a tal personagem não é coisa nova na obra de
M á rio : ele existe co m o consequência da re fo rm a do gosto que
a tra n sfo rm a çã o dos c rité rio s a rtís tic o s da p rim e ira m etade
deste século im pôs, re fo rm a e transform ações das quais
M á rio é ard en te p a rtid á rio . A c rític a de valores que lhe
parecem ultrapassados e falsos é fa m ilia r, m esm o em sua
poesia. Essa c rític a atinge o auge de sua verve cáustica na
série “ A rte em São P a u lo ", aparecida em 1927 no D iá rio
N a c io n a l,1 e to m a um caráter de v io le n ta denúncia na
“ Cam panha c o n tra as tem poradas líric a s ” , de 1928, quando
o d in h e iro e os poderes p ú b lico s se c o m p ro m e te m com
m anifestações que M á rio acusa de fa lsifica çã o c u ltu ra l, num
to m não m u ito d ista n te do que e nco ntra m o s por vezes
n 'O B a n q u e te :
"In ic io u -s e o n te m , por mais uma vez, essa b o n ita festa
de ricaço decorada com o tí t u lo de Tem porada L írica
O fic ia l ( . . . ) . O povo está a b o lid o , a arte está abolida.
Uma ou o u tra m anifestação mais le g ítim a não passa de
h ip o crisia pra enganar a realidade. H ip o crisia do governo
da cidade que m antém uma com issão pra vigiar a elevação
a rtís tic a da tem p ora da . H ip o crisia dum a comissão arcaica,
abso lu ta m e nte desprovida de ideal le g itim á v e l".8
Por trás de te x to s co m o estes, já está p aira n do a sombra de
F e lix de C im a. A ssim , n '0 B anquete, sua aparição é a cristalização
num a personagem dos descam inhos da p o lític a a rtís tic a
brasileira, que M ário conhecia tão bem e de longa data.
Q u a n to às idéias do ita lia n o , sobre a arte , são
m inúsculas — o gosto por Respighi e Ravel (que M á rio pensa,
de uma certa fo rm a , académ icos), a ideiazinha do "b e lo
h o r rív e l" que M ário com batera já em 1 92 1, no “ Prefácio
In te re ssa n tíssim o " de P aulicéia desvairada.

7 In M ário de A n d rad e , T a x i e C ró n ic a s n o D iá r io N a c io n a l, São


P au lo, L iv r. Duas Cidades, 1 9 7 6 .
8 M ário de A n d ra d e , M ú s ic a d o c e m ú s ic a . São P aulo, M artin s E d .,
1 9 6 3 (em p articu lar a secção "M ú sica de p a n c a d a ria "), p. 193.
E vid en te m e nte seu program a de p ro teçã o às artes é
sum ário e desastroso: h o rro r às m anifestações contem porâneas
mais ousadas (às quais associa o e p íte to então c o rre n te de
"a rte b o lc h e v iq u e "), desprezo às m anifestações nacion ais,9
p roteção a rb itrá ria e im becil a estrangeiros: é bem cla ro que
essa noção m ora liza d o ra da A rte que deve ser servida, tão
cara à M ário, é im penetrável em tal cabeça que tra d u z um
m un do e stúp ido , o p o rtu n is ta e irre m e dia velm e n te desonesto.

S iom ara Ponga

"C a n to ra virtu o se c e le b é rrim a ", de origem espanhola,


Siom ara Ponga c o m p le ta o tr io das personagens pertencentes
à classe d o m in a n te . Mas a rtista de fo rm a ção p e rfe ita ,
consciente de seus meios e possibilidades, e xcelente in té rp re te ,
seu e s p írito é um pou co menos m e sq u in h o : a p a rticip a çã o à
esfera da arte co m o que a eleva, e M ário por vezes nos faz
assistir co ntrad içõe s, rem orsos, tentações, de se d e ix a r levar
p or uma fid e lid a d e à a rte que p ra tica . N o e n ta n to tais dores
de consciência são logo escamoteadas, pois S iom ara tra i o
que poderia ser seu d e stin o ve rd ad eiro:
"O s senhores conhecem o verbo 'p o ng ar'? é irre sistíve l,
Siom ara Ponga era uma virtu o se célebre, co ita d a ,
'pongava' todos os bondes co m o os m eninos da rua, ia
para onde os ventos sopravam, desde que os ventos
fossem p ú b lico s ( . . . ) . Mas do a lto da sua grandeza, da
sua c u ltu ra , da sua beleza, e ta m b ém da sua escravidão
de virtu o se , se ela não aderia, ela c o n c e d ia " (O
Banquete, p. 160).
Desse m o d o a questão que se põe com a personagem é
uma questão m o ra l, uma questão de a titu d e d ia n te da arte:
sua in teligê ncia , sua té cnica im pecável, suas interpretaçõ es
notáveis só se colocam ao serviço de si p ró p ria , de sua
vaidade:

9 F e lix de C im a por vezes se em baraça to d o com o


pseudo-nacionalism o q ue era uma das palavras de o rd em
governam entais da época. Assim:
" N o jornal do G o vern o , a c rític a musical é feita por um m oço
m u ito d is tin to que estudou na E u ro p a. A té é estrangeiro de
nascença e eu sou c o n tra os estrangeiros que vêm nos ensinar.
M en tira tpm tud o e não precisa de estrangeiros. Nós precisamos
nacionalizar M e n tira , com o estão fazendo no Brasil e na
Argerui.na, esses é que estão bem o rien tad o s" (O B a n q u e te ,
p. 1 0 4 ). *
"E o v íc io da sua destinação, o e x te rio r que escolhera,
eram tão fo rte s sobre ela que, p or mais que o seu
e s p írito c u ltiv a d o e o seu gosto espontâneo recalcitrassem ,
to do s os aspectos im oderados da triu n fa lid a d e a
e n ca n ta va m " (O B anquete, p. 160).
M ário considera que a vaidade é um tra ço p rin c ip a l e
co nsta nte da psicologia dos artistas: "m o n s tro s pela v a id a d e ".
E a vocação sa crificial que p ercorre sua vida e obra fá-lo
exasperar-se co n tra isso, inda mais q u a nd o o a rtista (com o é
o caso de S iom ara) tem m eios para fazer o u tra coisa com
sua a rte que contentar-se em ser "v irtu o s e c e le b é rrim a ". E
sabido: a q u ilo que cham am os "vocação s a c rific ia l" levou o
a u to r d " 'A m editação sobre o 1 ie tê " ao co m b ate e à luta
pela a rte de seu te m p o e de seu país, incessantem ente. E é
esse ideal que acusa e d en un cia as concessões da ca n to ra :
"M a s a (vaidade) de Siom ara era 'in c o n c e b ív e l',
justam en te p orqu e a c u ltu ra que alcançara a deveria
levar a esse processo de superação da vaidade, de
d ig n ific a ç ã o da vaidade, que a fecunda, e a tra n s fo rm a
n um o rg u lh o mais ú til. C om o o dos virtuoses que se
dedicam sistem aticam ente à educação do seu p ú b lic o ,
ou dos que travam batalha pela m úsica do seu te m p o
(. . . ) " (O B anquete, p. 50).
Desses, M ário tin h a o e xe m p lo p e rfe ito , o p o sto a
Siom ara: o de Helsie H u sto n , que ta n to fizera pela música
brasileira, e à q ua l, no m o m e n to de sua m o rte , M ário
dedicara um a rtig o no "M u n d o M u s ic a l", onde nos lega um
adm irável re tra to da c a n to ra .10
Não é casual o fa to que M á rio tenha ju sta m e n te dado a
Siom ara o d om do ca n to . Ele denunciara várias vezes a
" p ia n o la tria " brasileira, e co m um fim p o lé m ico a virtu o s id a d e
p ia n ística poderia p e rfe ita m e n te ca racterizar Siom ara. Mas se
escolhe o ca n to , é que isso traz mais im e dia ta m e nte
à baila o p ro ble m a da música n acion al, de um m od o
d ire ta m e n te ligado a esforços seus.
Em 1938, sob sua direçã o , o D e p a rta m e n to de C u ltu ra
da P re feitu ra de São Paulo p ro m o vera um Congresso da
Língua N acional Cantada, que estabelece norm as de
p ro n ú n cia , debruçando-se sobre problem as té cnico s de
in te rp re ta çã o , de escritura m usical etc., ligados à a rte do
canto b ra sile iro . Os anais desse Congresso, que fo ra m
publicados, fo rm a m e x tra o rd in á rio in s tru m e n to té c n ic o não

10 "H elsie H u s to n " , de 10 de ju n h o de 1 9 4 3 .


e n co n tra n d o e quivalente algum na h is tó ria de nossa m úsica.
A b a n d o n a n d o o esforço de cantar b ra s ile iro (O B a n q u e te ,
p. 5 1 ), Siom ara abdica de uma carreira que expressasse a
m úsica nacional em plena co nstruçã o é que daria u m sentido
de u tilid a d e p ro fu n d a à sua arte. "A m a n s a ra " — c o m o ela
d iz de si mesma, co n te ntan do -se de um co n ve n cio n a lism o
que M ário a b o m in a :
" O fazer bem e c e rtin h o lhe sossegava uma consciência
fá c il, o c o n fo rm is m o d o m e stica d o , a subserviência às
classes d o m in a n te s " (O B anquete, p. 53).
Suas audácias d errisó ria s não vão mais longe que um
extravagante vestido am arelo — d o q u a l, aliás, a idade
chegando, com eça a te r m edo.
Sua inte rp re ta çã o é impessoal — ela p ro cura revelar os
artistas "n a sua perm anência, na sua m ensagem " (O
B anquete, p. 1 29). E M ário recusa essa e ternid ad e da arte,
p ro põ e uma relação personalizada que revele a reação do
a rtista num m o m e n to tra n s itó rio d ia n te da o bra. Ele prefere
a fe bre de entregar-se to ta lm e n te a um a apresentação pessoal
— e desse m o d o , atual — da obra in te rp re ta d a . "M ila g re de a m o r",
co m o dissera uma vez de Magda T a g lia fe rro , n um a rtig o que já
em 1924 colocava nos mesmos te rm o s a q u e stã o .11
E n tre ta n to a personagem de S iom ara não é nem tão
sim ples, nem u nicam e nte negativa. Ela possui co n h e cim e n to s
m usicais p ro fu n d o s e uma c u ltu ra sólida e vasta: é o bem
seguro p ro fissio n a l no seu esplendor, do qual m esm o o
c o m p o s ito r Janjão tem e a "fo rç a in te le c tu a l" . C om isso, pode
d isco rre r in te lig e n te m e n te e em m uita s coisas podem os
reconhecer M á rio , que aliás p ro je ta na ca nto ra m esm o um
e pisód io a u to b io g rá fic o : o caso da natureza m o rta de D on ato
Bosi e do H o m e m A m a re lo de A n ita M a lfa tti (O B anquete,
p. 9 0 ). T am b ém podem os supor que o re tra to fe ito p o r
P o rtin a ri e re fe rid o pela ca nto ra , "d e d o is azues e m u ito
diversos de c o lo ra ç ã o ", representando um "ro s to que nte m u ito
a m orenado do h o m e m " (O B anquete, p. 87) seja o p ró p rio
re tra to de M á rio . E o a u to r mesmo se d iv e rte in trig a n d o -n o s
co m uma relação obscura que parece m a n te r com a
personagem , irro m p e n d o num a observação isolada d o te x to
p or parênteses e que com preendem os m al. É q u a nd o
S iom ara d isco rre sobre a co m o ção estética, e specffica, em
o posição à cola bo raçã o fo rte do e s p írito nas o u tra s emoções.

11 " O caso M agda T ag lia fe rro ” . in M . B atista, T . L o p ez e Y . L im a —


B ra s il: 19 te m p o m o d e rn is ta — 1 9 1 7 /2 9 D o c u m e n ta ç ã o , São Paulo,
I.E .B ., p. 321 e seg.
C o n tra estas ú ltim a s , é possível reagir — elas se a lo jam no
e s p írito . C on tra as emoções estéticas é im possível, pois elas
dependem do o b je to a rtís tic o d ia n te de nós: ela não é
c o n tín u a , se o o b je to não nos e stim u la , ela desaparece. A
virtu o se c o n c lu i:
“ A o passo que é possível reagir c o n tra o a m o r, o ó dio
e m esm o a e xcitaçã o sexual, não só co m o afetos, mas
co m o c o m o ç õ e s ".
A frase te m seu lugar no discurso de S iom ara, e
podem os m esm o crer que to d o esse d ese n vo lvim e n to não
seja desaprovado p o r M á rio , que ta n to se interessava pelas
reações dos espectadores, o u vin te s, d ia n te das emoções da
arte e da vida. Mas ele evoca ta m b ém a personagem fria ,
assexuada, sa crifica n d o paixões e alm a, que a ca nto ra fizera
de si mesma. E é bem a í que a voz d o a u to r intervém
" ( A h ! p e rfil d u ro , p e rfil d u ro . . . H oje, m esm o q u a n to
te c o n te m p lo , parece im possível reco brar o passado a
ressentir ta nta ve ntu ra irrealizada que s o fri . . . Mas . . .
m udaria o N atal ou m ud ei eu? . . . B om ) (O B anquete,
p. 8 9 ).
As dissertações de S iom ara sobre as sensações estéticas
no c a p ítu lo III estão ligadas a interesses d o p ró p rio M ário.
A ssim , o d e se n vo lvim e n to sobre a relação a rte /té c n ic a , que
parte de uma d e fin iç ã o do a u to r e de uma re fle xã o sobre
" O a rtista e o a rte sã o " (e x p lic ita m e n te m encionados no
te x to ), é um p ro lo n g a m e n to , uma a fina ção do p ro ble m a .
M ário aliás fo ra p ro va ve lm e n te levado a fa zê-lo em
consequência de um a p olém ica co m Sérgio M illie t, que o
acusara de c o m p lic a r in u tilm e n te os dados d o p ro ble m a com
d efin içõ es desnecessárias.12 E sobre as reações psicofisiológicas
d ia n te do o b je to a rtís tic o , encontrar-se-ão desenvolvim entos
da mesma natureza em " D o d e s e n h o ",13 ou na "T e ra p ê u tica
m u s ic a l" (op. c /t.). P o r vezes, o te x to é uma te n ta tiv a de
d e fin iç ã o estética, sente-se uma necessidade no a u to r de
precisar suas p ró p ria s idéias, ao m esm o te m p o que nos oferece
as chaves de seu pensam ento: assim a re fle x ã o sobre o ritm o
(O B anquete, págs. 84 a 8 6 ), a relação entre a com oção estética
de um e ru d ito e de u m ig n o ra n te (O B anquete, págs. 91 e 92).
N o fim do c a p ítu lo , S iom ara é tã o M á rio que Sarah L ig h t é
obrigada a cham ar sua atenção, le m b ra n d o (de m o d o in d ire to ,

C f. " E s q u e rz o ", in 'M u n d o M u s ic a l".


I n A s p e c to s das a rte s p lá s tic a s n o B ra s il, São P au lo, M artin s Ed.,
1965.
mas logo c la rific a d o pelo p o lític o ) que o gozo das artes é um
p riv ilé g io de classe, e p ro voca nd o um rem orso desanim ado na
grande virtuo se (O Banquete, págs. 91 a 93).
Qual é o interesse de tais reflexões? U m p rim e iro ,
essencial: elas nos p e rm ite m co m p re en de r os p o n to s de
referência dos m ecanism os do pensam ento do a u to r. Não
im p o rta que p or vezes o te x to pareça pou co o rig in a l, ou
pouco rigoroso, o interessante é, ao c o n trá rio , saber co m o
M á rio sentia, u tiliza va , resolvia suas preocupações. E no
esforço por vezes c o n fu so de se s itu a r,14 M á rio levanta
coelhos im p o rta n te s: p or e xem plo o p ro ble m a da c u ltu ra
p o p u la r d ia n te da c u ltu ra " e r u d ita " — fe n ó m e n o de distância
que ele situa a p a rtir d o século X IX e que com eça apenas
agora a aparecer nas preocupações de h isto ria d o re s da arte
co m o B e rth o ld H inz e T . J. C la rk. Mas o a u to r mesmo coloca
em questão tu d o o que d iz através da voz de S iom ara Ponga:
as discussões estéticas não resolvem problem as co ncreto s,
im e dia to s e essenciais:
" O te m p o passara e eles m u ito e n tre tid o s naquele
lero-lero estético . Não tin h a m c o m b in a d o nada a
respeito do c o m p o s ito r" (O B anquete, p. 9 3 ).
A n te s da in te rru p ç ã o d e fin itiv a do te x to , Siom ara ainda
in te rv irá , de m od o im p o rta n te , num a longa exposição sobre a
m o rte e o am or (O Banquete, p. 1 33 ), p o r vezes sendo a
personagem, p or vezes sendo m u ito M á rio : na m elan co lia da
evocação do e s p o rte ,15 nos m eandros b rilh a n te s da refle xão

14 Confusão que se acrescenta de um p ro blem a. A legendária cu ltu ra


de M ário é in d iscu tivelm en te vasta e universal. Ela é e n tre ta n to
a u to d id a ta , e u m u niversitário, por e x e m p lo , poderá assustar-se com
os saltos com parativos — e abusivos — q ue ligam artes e artistas de
períodos e regiões m u ito distantes: S io m ara associa Bach a R afael,
M ich elan g elo , Veron ese e T ic ia n o , afastando-o de T ie p o lo ; e
mesmo coloca coisas sem sentido o u , no lim ite , falsas, com o a
ausência de consciência in d ivid u alizad o ra na p in tu ra d o século X V I
italian o (R a fa e l, M ich elan g elo , T ic ia n o , Veronese e D a V in c i),
oposta à "v o n ta d e de especificação pessoal" da p in tu ra "fla m e n g a "
do século X V I I (in clu in d o Hals e R e m b ra n d t ao lado d e Rubens
e T en ie rs !). Q ue lacunas sejam assim por vezes preenchidas com
referências rápidas e pouco sérias, em b o ra ap are n te m e n te brilhan tes,
é inegável, mas elas representam tam b é m um m eio q ue p erm ite ás
idéias m otoras e fecundas avançar. E não podem os esquecer que,
ao lado desses m alabarism os, M ário p ro d u ziu estudos de rigor e
valor indiscutíveis — já q ue estamos no d o m ín io das artes plásticas,
lem brem os apenas o p erfeitíssim o trab alh o sobre o Pe. Jesuíno
do M o n te C arm elo .
15 N u m registro p ró x im o , M ário já pensara a questão em "B rasil x A rg e n tin a "
de 1 9 3 9 , in Os filh o s da C a n d in h a , São Paulo, M artin s E d ., 1 9 6 3 .
sobre a sincopa e o a m o r. Tais te x to s e n tre ta n to não apagam
a impressão de frie za , de d e sp e rd ício estéril que escapa da
ca nto ra . S iom ara é uma "a c a d é m ic a ". A ela em co n tra ste se
colocará Janjão, o sincero c ria d o r.

Janjão

A virtu o sid a d e , mais que um p roblem a p uram en te


té cn ico , p ro põ e um p ro b le m a m o ra l. Tem-se a impressão que
o in té rp re te " ú t i l " no Brasil de 1944 pode fa c ilm e n te saber
seu c a m in h o , que é essencialm ente a colaboração de um
estilo que se associa às especificidades da criação n acion al, e
a divulgação de obras dessa criação. A fu nçã o do in té rp re te
parece bastante precisa, e no fu n d o pouco p ro b le m á tic a : sua
a titu d e de base d ia n te da arte brasileira, ao m esm o te m p o de
serviço e colaboração, não faz d ú vid a para M á rio e os m odos
dessa relação não são nem c o m p le xo s nem am bíguos. Para o
artista c ria d o r, o p ro ble m a — no m o m e n to em que M ário
escreve — é m u ito m enos c la ro : ele não está " d ia n te " de
alguma coisa, co m o o in té rp re te , mas cabe a ele, num a
situação geral que é ta te a n te e co m p lica d a , c o n s tru ir a
e stru tu ra d o e d ifíc io a p a rtir de p o n to s de referência que se
e m b ru lh a m , confundem -se, enganam.
Na base está o que p od ería m o s cham ar de fid e lid a d e ao
ideal de uma criação que p ro g rid e sempre. U m e xe m p lo um
pouco sim b ó lic o e que m arcara m u ito M ário, transparecendo
n'O B anquete e em o u tro s escritos, é o caso de Carlos
G om es.16 O grande c o m p o s ito r b ra sile iro p a rtira para a Itália
e tivera um "sucesso fu lm in a n te " com O G uarani. Na sua
ópera seguinte te n ta ir mais a dian te e co m um se n tid o
d ra m á tico notável precede as soluções de C arm en, interessa-se
pelas proposições de Wagner e faz da adm irável Fosca uma
obra que a m b icio na ir " u m pou co além do p o n to em que
jazia a ita lia n id a d e sonora do te m p o " {Fosca, op. c it.,
p. 2 5 2 ). Mas Fosca fo i quase um fracasso e o m edo de
perder sua p o p u la rid a d e fê-lo escrever "e m língua de p ú b lic o "
S a lva to r R osa, v o lta n d o atrás e re e n co n tra n d o o sucesso
p e rd id o . O c o m p o s ito r vendera sua alm a ao d ia b o .
A p ó lo g o do a rtista que tra i seu ideal da verdadeira A rte
pelo sucesso, a h istó ria de C arlos Gomes é advertência. Mas a

16 M ário de A n d rad e — F osca, in "R evista Brasileira de M ú sica",


n úm ero especial consagrado ao 1? cen ten ário d o nascim ento de A.
Carlos G om es, 1 9 3 6 , p. 251 e seg.
"ve rd a d e ira A r te " não é sempre fa c ilm e n te id e n tific á v e l e a
situação do a rtista pouco segura. Janjão, no c a p ítu lo II
anuncia claram e nte : as o rien ta çõe s te ó rica s não levam à
"ve rda de ira A r te " , elas c o n s titu e m direções cóm odas, mas
p o r a í m esm o co n fo rm ista s. Nada de te orias precisas e
claram ente organizadas: o a rtista deve te r um a "e s te s ia " —
palavra mais am bígua, mas que c o n té m nela o d in a m ism o e
o e s tím u lo de um fazer c o n tín u o :
" A arte é uma doença, é uma insatisfação hum ana: e o
a rtista co m b ate a doença fa zen do mais arte, o u tra
a rte " (O B a n q u e te , p. 60).
Não se tra ta no e n ta n to de uma p ro d u çã o que se
repete; trata-se desse "fa z e r m e lh o r” tã o essencial para M ário.
Se não fo r assim o a rtista será c o n fo rm is ta ou p io r, um
" f o lc ló r ic o " . Neste p o n to colocam -se as relações e n tre o
a rtista e a p rodução p o p u la r: passagem d if íc il que M ário
resolve m al. A arte do p ovo é o que cham am os fo lc lo re , e
está ligada a condições de classe e a c o m p o rta m e n to s sociais
e specíficos: ignorância (an alfa be tism o ) e conservadorism o.
Está la te n te a noção, em bora o a u to r não a u tiliz e nem a
leve às consequências, que o " p o v o " possui uma c u ltu ra que
tende a desaparecer co m o progresso " c iv iliz a d o r " . Em to d o
caso há uma distância irreparável entre os a rtistas " e r u d ito s "
e a c u ltu ra p o p u la r. Não se pode fazer arte para o povo.
C om o ele d iz , é "te o ria c u r ta " .^Q u al é então a fu n çã o do
artista? m e lh o ra r a vida. A arte, p orqu e não é c o n fo rm is ta ,
é uma "p ro p o s iç ã o de fe lic id a d e " : solução através de um
c o n c e ito vaguíssim o, que se consola e se refugia na sua
generalidade mesma.
M e lh o ra r a vida significará fazer a rte de com bate, "a rte
p ro le tá ria ", "a rte so c ia l"? N ão; e arte social não significa
a rte de co m b a te , arte "e n g a ja d a " co m o d iría m o s hoje — e é
mesm o re fle tin d o sobre as funções sociais da arte (que no
caso de M á rio são antes psicossociais) que se pode passar a
uma etapa mais p ro fu n d a dos deveres d o a rtis ta . Pois a
re fle xã o sobre o problem a da fu n çã o social da a rte não
som ente levaria o a rtista a in te rv ir em fa to re s mais e xteriores
co m o a concepção do assunto, mas de um m o d o mais ín tim o ,
da p ró p ria técnica.
Siom ara Ponga d is c u tirá questões p ró x im a s , na ausência
do c o m p o s ito r (O B anquete, p. 7 7 ). Mas e n q u a n to a cantora
fica em considerações gerais e e xteriores, num a espécie de
d ile ta n tis m o estético, te o riz a n d o apenas, Janjão traz tais
problem as à sua p ro p o rç ã c ce ntral — a a titu d e do a rtista
d ia n te da vida. Assim , a a rte social o leva a um a concepção
que opõef "té c n ic a s d o a cab ad o" e "té cn ica s do ina ca b a d o " —
as p rim eira s, a firm a tiv a s e dogm áticas, in d is c u tív e is ; as
segundas, insa tisfe itas, "m a ltra ta m , e xcita m o espectador e o
põem de p é ", prestes para o com bate. Há artes abertas
(de sen ho ,17 te a tro ) e técnicas "a b e rta s " — assim, por e xem plo ,
0 p roblem a da dissonância. Já vim os que sua idéia de
dissonância = insatisfação vem da te o ria clássica; M á rio a
p ro je ta no passado (an tigu ida de grega, " A r s N o v a ") para
apoiar o a rg u m e n to que a dissonância é uma técnica do
inacabado, d in âm ica e vio le n ta . Desse m o d o , há meios
específicos im anentes à arte , p ró p rio s para a p ro du ção de
co m b ate :
"T o d a o bra de circu n stâ n cia , p rin c ip a lm e n te a de
co m b ate , não só p e rm ite mas exige as técnicas mais
vio le n ta s e dinâm icas do in a ca b a d o " (O Banquete, p. 62).
É in ú til d is c u tir aqui a "v e rd a d e " dessas proposições: o
que co nta é o e xe m p lo de busca de elem entos que sirvam
co m o m eios não co n fo rm ísta s da p ro d u çã o a rtís tic a ,
p enetrando in tim a m e n te na "n a tu re z a " da a rte (m esm o se
sabemos, à distân cia d o te x to , que essa "n a tu re z a " é em
realidade circ u n s ta n c ia lm e n te ligada à noções de te m p o ).
O a rtista e n tre ta n to deve se recusar a uma a rte de
co m b ate "a o alcance do p o v o ", se isso sign ifica concessão ou
h ip o crisia em face de si m esm o:
"E u sou de fo rm a ção burguesa cem p o r ce n to , você
esquece?" (O B a nq u ete , p. 6 3 ).
Mas a consciência aguda da a ristocracia in d iv id u a l do
a rtista (um pou co co m o no D e la c ro ix da m a tu rid a d e : " o
hom em que faz a 'sua' m o ra l, só aceita a 'sua' verdade,
num a lib e rta çã o in d ife re n te a quaisquer . . . representações
c o le tiv a s " (O B anquete, p. 6 3 ), o leva a um "e le va d o senso
m o ra l" e a uma "v e rd a d e c o le tiv a " : respeitando a liberdade
pessoal na sua "e v id ê n c ia ", ela " d ita uma verdade e uma
m oral que c o in cid e m necessariamente com o Bem e a
V e rd a d e " — a consciência da p ró p ria in d iv id u a lid a d e e da
p ró p ria libe rd ad e leva a uma sabedoria que im p lic a a
consciência da Lib erd ad e. Mas é cla ro , nesse m o m e n to
com eçam as co n tra d içõ e s: a consciência exige o em penho.
Que fazer? E M ário re to rn a , viole nta nd o -se , à a rte de com bate
que recusara antes — Janjão é a u to r de obras que são
populares "c o m o concepção d o assunto, e xa lta n d o as form as
p ro le tá ria s da v id a ". E ju stifica -se num entregar-se consciente

17
C f. M ário de A n d rad e , " D o d esen h o ", o p . c it.
a essa p rodução de um ce rto m o d o “ h ip ó c r ita " — deixa-se
m a n ip u la r, faz-se boneco, mas a í co nscien te : " T u d o está em
ser boneco consciente da sua b o n e q u ic e ". E supera a noção
da a ristocracia in d iv id u a l do a rtista com a constatação de que
to d o artista verdadeiro é um fo ra da le i, está fo ra dos
c o m p a rtim e n to s propostos pela sociedade que p ro d u z
riquezas, seu o lh a r te m uma posição p rivile g ia d a :
"P o rq u e sendo 'o u t la w ', e xtra -e co n ô m ico p o r natureza,
sem classe p o r natureza, sem povo por natureza, sem
nação, o a rtista não deixa p or m enos: o que ele exige
é a h u m a n id a d e " [O B anquete, p. 6 4 ).
Estam os, sem nenhum a d ú vid a , nó â m b ito das a titud es
legadas pelo século X IX — ao a risto cra tism o de D e la c ro ix se
acrescenta o " o u t la w " C ourbet. M ário herda os problem as
m orais colocados pelos grandes d o século que o precede: o
ser fo ra das contingências sociais mas d e te rm in a d o pela sua
m oral su pe rio r, concebendo uma h um anidade pela qual
anseia, que ama e que teme.
D e la cro ix, C o u rb e t, B y ro n m esm o. Mas a eles, tão
p ró x im o s , M ário acrescenta o p ro ble m a p ró p rio ao nosso
te m p o — não só d o engajam ento d o a rtis ta , mas da fu nçã o
p o lític a da arte ela mesma. Problem a ao qual se associa, em
M á rio , a noção de s a c rifíc io : a a rte deve alm ejar servir e não
ser a o bra-prim a eterna, para a p osteridade. A o c o n trá rio , um
dos m odos essenciais do em penho é o s a c rifíc io à
tra n s ito rie d a d e .18
R aram ente em o u tro s te x to s fica ra m tã o claras as
co ntrad içõe s de M ário e a sua concepção ao m esm o te m p o
sa crificial e messiânica d o a rtista . O que Janjão d iz sai das
profundezas da alma d o a u to r: o "E sq u e rzo a n tifa c h is ta ", a
"S in fo n ia do tra b a lh o " , essas músicas p o litic a m e n te engajadas
do c o m p o s ito r Janjão têm um equivalente na obra de M á rio :
a "C o nce pçã o m e lo d ra m á tic a " — Café. Lá M á rio exige de si
seu d estin o de m e lh o ra r a vida, e o poema a dm irável é
ta m b ém um adm irável esforço. Mas as co n tra d içõ e s e
tateam entos de Janjão tam bém nos são c o n fia d o s nas
co nfid ên cia s d o lo rid a s da L ira p au lista na , e a lágrim a de
Janjão é a mesma que caíra nas águas escuras do rio , no
n o tu rn o " A m editação sobre o T ie tê ".

18 C f. sobre o p ro b lem a do em penho do m úsico: M ário de A n d rad e ,


" In tr o d u ç ã o " à V . S e ro ff — S h o s ta k o v ic h , E. G . O C ru z e iro , R.
Janeiro , 1 9 4 5 . Mas este te x to unilateral é, com o o C a fé , uma
proposição sem contradições. A q u i, com o no p o em a, M á rio é um
pouco' o ."b on eco".
"J a n jã o estava bastante envergonhado com a fraqueza
que tive ra de m ostra r as suas co n tra d içõ e s de a rtista ,
consciente da servidão social das artes mas incapaz de
se lib e rta r do seu in d iv id u a lis m o ” (O B anquete, p. 65).
Este a flo ra r de c o n tra d içõ e s é um a u to q u e s tio n a m e n to ,
uma d úvida c o n tín u a que não abandona M ário no fim da sua
vida. D evem os enviar o le ito r a um te x to essencial,
co m p le ta n d o as confissões de Janjão e m ostra nd o sem
desvios essa consciência lu c id a m e n te aguda e sempre
in sa tisfe ita : trata-se d '" O m o v im e n to m od ernista de 1 94 2 ” ,
que se encontra nos A sp ectos da L ite ra tu ra B rasileira.
M o m e n to de crise para M á rio , m o m e n to de revisão de
sua vida e o bra. "M a rc h a r co m as m u ltid õ e s ", co m o d iz no
"M o v im e n to m o d e rn ista ” , fazer obra de co m b ate , de lu ta , de
em penho, é uma solução que o poeta M á rio de A n d ra d e
provara, na te n ta tiv a de superar a a titu d e m od e rn ista , que lhe
parece in s u fic ie n te :
" E si agora p e rco rro a m in ha obra já num erosa e que
representa uma vida trab alh ad a, não me vejo uma só
vez pegar a máscara d o te m p o e esbofeteá-la co m o ela
merece. Q uando m u ito lhe fiz de longe umas caretas. Mas
isto, a m im , não me satisfaz ("M o v . M o d e rn ista ” , p. 2 4 3 ).
Talvez uma arte p o lític a , um Café ou um "E s q u e rz o
a n tifa c h is ta ” possam agredir mais a "m áscara do te m p o " . Mas
Janjão parece in s a tis fe ito , não co n v e n c id o : divagando em
frases soltas, não crê na co nstruçã o de "u m a arte que
interessasse as massas e as movesse” . E p ro põ e que a obra de
arte seja malsã, c o n tin u a m e n te re vo lu cio n á ria
" n o sentido de co n te r germes d estruidores e
in to xica d o re s, que <jn a I e st ar izep? a vida a m b ie n te e
ajudem a b o ta r p or te rra as fo rm a s gastas da
so cie da de " (O B anquete, p. 65).
É bem M ário que fala a í — no " M o v im e n to m o d e rn ista ”
lem brara sua idade que avançava n um m u ito ta rd e para
recom eçar (e realm ente M á rio m o rre ria três anos depois) — e
Janjão, em bora m oço , "n ã o conseguiria m ais refazer seu
c a m in h o ", mas pode te n ta r fazer "o b ra s que entusiasm em os
m ais novos, ainda capazes de se c o le tiv iz a r" (O B anquete,
p. 65, su b lin h a d o p o r nós). L içã o para "o s mais n o v o s ":
c o n s tru ir, te o riz a r, a firm a r não; é preciso "a g ir d e s tru in d o ” . Os
m odernistas, d iz Janjão, d e s tru íra m velhos cânones burgueses,
mas c o n s tru íra m o u tro s, burgueses ta m b é m — fize ra m na
realidade uma atualização ideológica para a p ró p ria burguesia.
E J a n jã o le m b ra o “ P re fá c io In te re s s a n tís s im o " de P a u lic é ia
d e s v a ira d a , o n d e há antes e n riq u e c im e n to de fo rm a s q u e
d e s tr u iç ã o :
“ Mas não d esd e n h o b a lo iç o s d a n ç a rin o s de re d o n d ilh a s
e d eca ssílab os (. . .) N esta q u e stã o de m e tro s não sou
a lia d o ; sou c o m o a A r g e n tin a : e n riq u e ç o -m e " (Poesias
c o m p le ta s , p. 2 0 ).
" E is to é c o n s tru ç ã o , P astor F id o ! É riq u e z a 'a m a is ',
c a p ita lis m o " (O B a n q u e te , p. 6 6 ).
e x c la m a J a n jã o (e p o d e ría m o s le m b ra r a in d a , m ais fo r te , a
frase lâ m in a de O s w a ld e vo ca n d o o engano id e o ló g ic o no
te x to te rrív e l q u e precede S e ra fim P o n te G ra n d e ( 1 9 3 3 ):
" A s itu a ç ã o 'r e v o lu c io n á ria ' desta b osta m e n ta l s u l-a m e rica n a
apresentava-se assim : o c o n tr á r io d o b u rg u ê s não era o
p r o le tá rio — era o b o é m io ! " ) . 19
Q u e a a rte c o n te n h a os germ es de d e s tru iç ã o não q u e r
d iz e r q u e ela m esm a não seja c o n s tru íd a . M á rio fa la ra em
té cn ica s a be rta s, capazes de serem , no in te r io r da a rte m esm a,
“ irre c u p e rá v e is ". Na re a lid a d e , a té c n ic a p o d e ser c o n s tru tiv a ,
e m e sm o a té c n ic a a rte san a l “ o b je tiv a " — u ltra p a s s a n d o os
h o m e n s e as escolas — não é perigosa. Perigosas são as
té cn ica s in d iv id u a is 20 q u e p o d e m e v e n tu a lm e n te serem
a p ro v e ita d a s pela classe d o m in a n te . É — a in d a um a vez —
in ú t il d is c u tir s o b re os e x e m p lo s q u e M á rio to m a na h is tó ria
das a rte s para ilu s tra r sua te o ria , e x e m p lo s e visão h is tó ric a
d is c u tív e is . A s s in a le m o s a ntes a im p o rtâ n c ia dessa idé ia de
c o n s e g u ir um a a rte irre c u p e rá v e l pelas classes d o m in a n te s , no
s e n tid o em q u e ela não fo rn e ç a os e le m e n to s de um a fó rm u la
c ó m o d a d e s tin a d o s a c o n s tr u ir o b je to s a rtís tic o s c u ja
fin a lid a d e será u m jo g o h e d o n ís tic o p e rte n c e n te aos " d o n o s
da v id a " .
P e rd e m o -n o s c o m M á rio nos seus e x e m p lo s e ra c io c ín io s
h is to ric a m e n te in e x a to s . A n o çã o q u e revém tã o
fre q u e n te m e n te de " a c a d e m is m o " , p o r e x e m p lo , não é n un ca
to m a d a nas acepções d ife re n te s q u e te ve na e v o lu ç ã o dos
te m p o s . Ela te m a q u i o s e n tid o p e jo ra tiv o de re ce ita s a p a r tir
de u m a escola — n o ç ã o que lh e c o n fe riu o sé cu lo X I X , mas

19 O s w a ld d e A n d r a d e — S e r a fim P o n te G ra n d e , O b ra s c o m p le ta s 2 ,
São P a u lo , C iv . B ra s ile ira , 1 9 7 1 .
2()
M á rio dá u m s e n tid o larg o à n o ção d e té c n ic a : S io m a ra d irá —
é " o c o n ju n to d e c o n h e c im e n to s p rá tic o s c o m q u e o a rtis ta m o ve
o m a te ria l p rá c o n s tru ir a o b ra d e a r te " — nisso in c lu in d o a
e s té tic a p ró p r ia ao a rtis ta . P o d e ría m o s d iz e r q u e o e s tilo p a rtic ip a
dessa n oção larga d e té c n ic a .
se alarga a in d a , p o is p o r ela M á rio c o n d e n a o a rtis ta q u e
segue s e g u ra m e n te suas p ró p ria s re ce ita s, já e x p e rim e n ta d a s e
a p ro va d a s, sem nada a rris c a r d ia n te de seu p ú b lic o .21
A esses " a c a d é m ic o s " se o p õ e m as a ud ácias d o s
" fa u v e s " . Na re a lid a d e , M á rio não d e fin e h is to ric a m e n te ou
te o ric a m e n te esses c o n c e ito s : ele os viv e — e se serve deles
c o m o e le m e n to s d e lu ta . A re v o lta m o d e rn is ta la n ç a ra -o num a
b a ta lh a c o n tfn u a c o n tr a os "m e s tre s d o p a ssa d o "
"a c a d é m ic o s " e se a la rg a ra c o n tra tu d o q u e parecerá
c o n fo rm is m o em a rte . O h is to r ia d o r c o n te m p o râ n e o p o d e
p e rc e b e r a c o m p le x id a d e d o s fe n ó m e n o s q u e esses c o n c e ito s —
" a c a d é m ic o s " , " fa u v e s " — re c o b re m . Mas não ca b ia a M á rio
a c o m p re e n s ã o dessas c o m p le x id a d e s : te m o s q u e vê -lo
ta m b é m n o seu m o m e n to h is tó r ic o , q u a n d o as e tiq u e ta s
d e fin e m a lin h a de d e m a rc a ç ã o de u m c a m p o de b a ta lh a ,
o n d e M á rio se e m p e n h a nos c o m b a te s de seu te m p o .
A s s im é a p a r tir das fa c ilid a d e s d o " a c a d e m is m o " que
ele p ro p õ e u m a v ig ilâ n c ia c o n tín u a — "s a b e d o r q u e há
safadeza na in te lig ê n c ia (a té na m in h a ) " — das p ró p ria s
p ro p o s iç õ e s , re cu sa n d o o a c o m o d a tiv o d os va lo re s e te rn o s ,
e n s in a n d o o c o m b a tiv o e o t r a n s itó r io . L a n ça r-se n o f u tu r o
sem d u v id a r d e le , mas e x ig in d o se m p re o " f a z e r m e lh o r " de
si m e s m o . Para q u e o p r in c í p io m e sm o da a rte d e nosso
te m p o fiq u e sendo o " p r in c í p io da re v o lu ç ã o " .
" F e n ó m e n o d e a m o r " , " p r in c í p io d e r e v o lu ç ã o " ,
"s a c rific a r-s e ao t r a n s it ó r io " — te rm o s b e m gerais, q u e
p o d e m ser u tiliz a d o s c o m m á fé e lá s tic a . Mas m en os q u e
esses te rm o s , o . im p o r t a n t e é q u e n o p e n s a m e n to de M á rio a
a titu d e c o n tín u a de e x ig ê n c ia d e si im p e d e a m á fé , p o rq u e
se q u e s tio n a se m p re . M á rio d e ix o u este m u n d o sem n e n h u m a
p o s iç ã o c la ra , te ó r ic o q u e ele não era. Mas — m e lh o r — o
d e ix o u q u e s tio n a n d o a si p r ó p r io e ao m u n d o , in s a tis fe ito
c o m a m b o s .22
J a n jã o r e fle tirá m ais e s p e c ific a m e n te so b re a m ú sica
b ra s ile ira , n o c a p ítu lo V , e x ig in d o o p r in c í p io de u tilid a d e ,
im e d ia to , lig a d o à c o n s tru ç ã o de u m e s p ír ito n a c io n a l de
m ú s ic a q u e está se fo rm a n d o . A lg u m a s q u e stõ e s são
m e n c io n a d a s ra p id a m e n te , c o m o o caso da s in c o p a , q u e é

21
S o b re esse a sp ecto d o a c a d e m is m o , v e r o a rtig o d e 1 9 3 0 , " O
B o le ro d e R a v e l" , in M ú s ic a d o c e m ú s ic a , o p . c i t . , p. 2 5 9 a 2 6 1 .
22
M e s m o a lin g u a g e m d e J a n jã o é p o u c o a fir m a tiv a — ele é a
p erso n ag em q u e fre q u e n te m e n te p e rd e e m seu d is c u rs o ,
re c o n h e c e n d o -lh e s as vagu ezas, “ fa la n d o p e rd id o n o seu m u n d o
n e b u lo s o " , d iz e n d o coisas q u e lh e saem d o m ais p ro fu n d o âm ag o
de sua a n g ú s tia , d e suas in c e rte z a s , d e suas q u estõ es.
desviada p o r S io m a ra Ponga, mas q u e M á rio já a tra ta ra n o
E n sa io s o b re a m ú s ic a b ra s ile ira .
O u tra s se e sclarecem e se p re c is a m : a ssim , a n o ç ã o de
n a c io n a lis m o q u e é u m p ro je to sem d ú v id a a r t if ic ia l,
" m a c u n a í m ic o " : u m n a c io n a lis m o fe ito c o m o u m a c o lc h a de
re ta lh o s , o c o m p o s ito r d e v e n d o fa b ric a r u m a sín te se dos
e le m e n to s q u e c o n h e c e rá o u e sco lh e rá a p a r tir das
m a n ife s ta ç õ e s p o p u la re s de to d a s as regiões d o B ra sil (e M á rio
pensa m e sm o nas d ific u ld a d e s das viagens, n o p ro b le m a d o
acesso a regiões isola da s). M á rio de A n d ra d e é fie l a si
m e sm o , c o m b a te n d o o re g io n a lis m o , mas p o d e m o s nos
p e rg u n ta r se a s o lu ç ã o d e um a n a c io n a lid a d e s u p ra -re g io n a l,
c o n s tru íd a v o lu n tá ria e a r tific ia lm e n te — e in d a m a is na
e x ig ê n c ia de u m tra b a lh o s é rio , não s u p e rfic ia l — te m u m
fu n d o re a lis ta q u a lq u e r. N o s nossos dias, em q u e os
p a rtic u la ris m o s é tn ic o s , lo ca is, d o m u n d o in t e ir o , se e rg ue m
e r e iv in d ic a m e s p e c ific id a d e e id e n tid a d e , p o d e m o s nos
in te rro g a r se não f a lto u ao p e n s a m e n to m u s ic a l d e M á rio u m a
visão m ais n ua nça da e re fle tid a so b re os a sp e cto s d o
re g io n a lis m o .
Mas o p o n to m ais v io le n ta m e n te d e s e n v o lv id o , loca liza -se
nos p ro b le m a s c o n c re to s , da fo rm a ç ã o m u s ic a l, da c r ític a , das
escolas, das m a n ife s ta ç õ e s m u s ic a is de to d a s as o rd e n s , d o
is o la m e n to dos c o m p o s ito re s nos c e n tro s m e n o s fa v o re c id o s
d o B ra s il, da fo rm a ç ã o d o s a rtis ta s , d o c o m p o r ta m e n to d os
responsáveis pela c u ltu r a . P ro b le m a s p ra g m á tic o s , d ire to s ,
so b re os q u a is não há n e n h u m a h e s ita çã o , a tin g id o s p e lo
e s tilo fu lm in a n te d e M á rio . E são s o b re tu d o esses a spe ctos
q u e in d is p o rã o J a n jã o , a rtis ta v e rd a d e iro , c o m a "cla sse
d ir ig e n te " , esses e le m e n to s c o n c re to s são o passo q u e
d e te rm in a o q u e fa ta lm e n te estava p re v is to :
"E s ta v a e x a u s to d o e s fo rç o q u e fiz e ra pra ve n ce r seus
interesses jú s to s , d iz e n d o a ve rd a d e , m e sm o na ce rte za
de recusar pra se m p re a p ro te ç ã o dos d o n o s da vida
q u e c o m ia m a Ii" (O B a n q u e te , p. 1 4 5 ).
E J a n jã o , n o c a p ft u lo X , não e s c rito , mas in d ic a d o n o
p r o je to de M á rio , re c u s a n d o a c u m p lic id a d e , será jo g a d o na rua .

P a s to r F id o

J a n jã o , c o m p o s ito r b ra s ile iro , opõe-se assim aos


" d o m in a n te s " . Mas ao m e n o s n u m p rim e iro m o m e n to ele não
estará s o z in h o : e n c o n tra rá no p a rq u e u m a p e rso n a g e m u m
p o u c o ’ m is te rio s a , b ra s ile iro ta m b é m , e s tu d a n te , q u e d e fin e
a si m esm o c o m o u m s ím b o lo : ele é a m o c id a d e q u e espera e
investe no p o rv ir — é v e n d e d o r de a p ó lic e s da C o m p a n h ia de
S e gu ros a In fe lic id a d e , e é ta m b é m a "m o s c a a z u l" c a n ta d a
p o r M a c h a d o de Assis. O p o e m a , m e tá fo ra das ilusões da
ju v e n tu d e , p ro m e te as g ló ria s e os sucessos d o f u t u r o
E u sou a v id a , eu sou a f lo r
Das graças, o p a d rã o da e terna m e n in ic e ,
E m ais a g ló ria , e m ais o a m o r" .
M as os versos m esm os nos a d v e rte m — não te n te m o s
dissecar esse P astor F id o — M osca A z u l sob pena de d e s tru ir
o q u e ele é: u m s e n tim e n to p ro fu n d o e in d e fin ív e l.
P ro c u re m o s a nte s a p re e n d e r a sua p a rtic ip a ç ã o n o te x to .
Ele está n u m a p o siçã o m ais geral q u e o u n iv e rs o
e s trita m e n te m u s ic a l de J a n jã o , e p o r vezes le m b ra ao
c o m p o s ito r a o b rig a ç ã o de re la c io n a r-s e co m o re sto d o
m u n d o ; no m o m e n to p o r e x e m p lo em q u e J a n jã o ,
c o m p o s ito r " m o d e r n o " , a firm a d e te s ta r a a rq u ite tu ra
" m o d e r n a " ; o u no m o m e n to em q u e J a n jã o re cla m a um a
c r ític a q u e re p o u se n u m a análise e sse n cia lm e n te m u s ic a l e
té c n ic a , o que não é um a s o lu ç ã o , mas u m re fú g io q u e
esconde o c r ít ic o d os p ro b le m a s m ais im p o rta n te s das
fu n ç õ e s da a rte . A í , P a sto r F id o p ro te s ta :
" T é c n ic a , té c n ic a , só té c n ic a ! Si vocês e x ig e m um a
c r ític a té c n ic a em vez de um a c r ític a b o a , é p o r
ig n o râ n c ia o u e s q u e c im e n to d o q u e seja a m ú sica
in te g ra l, a A r te e n fim . C rític a não é a p o n ta r as q u in ta s ,
c o m o bem caçoava S c h u m a n n " (O B a n q u e te , p. 1 0 3 ).23
Is to é u m a ssu n to q u e lhe interessa m u ito , p o is o
d e s tin o de P astor F id o era o jo rn a lis m o . A fin id a d e já m u ito
g ra nd e c o m o a u to r, q u e dissera no p rim e iro a rtig o d o
" M u n d o M u s ic a l" :24
" . . . d a q u e la vez em q u e tiv e de e sco lh e r e n tre os m eus
sete in s tru m e n to s , o q u e m e desse um n ú m e ro
p ro fis s io n a l na b ic h a p á tria , e s c o lh i o jo r n a lis m o " .
E n tr e ta n to , d iz F id o , a im p re n sa in fe liz m e n te e n tro u
para o G E L O , e não é m ais possível " d iz e r a ve rd a d e
v e rd a d e ira ao p o v o " (O B a n q u e te , p. 5 7 ) : o re g im e de

2^
~ C r ític a q u e vai b uscar o s e n tid o das m a n ife s ta çõ e s m e s m o e m
e le m e n to s e x tr a -a r tís tic o s , p ro c u ra n d o s itu a r o s e n tid o , o papel da
m a n ife s ta ç ã o ela m esm a. C f. a série " M ú s ic a d e p a n c a d a ria " , in
M ú s ic a d o c e m ú s ic a , o p . c it.
"O m a io r m ú s ic o " , 2 0 d e m a io d e 1 9 4 3 , p . 1 4 .
repressão e censura c o n d e n a ra a m o c id a d e — “ o u a p ó ia os
d o n o s da vid a o u v ira a q u ilo q u e você s a b e " (O B a n q u e te ,
p. 5 7 ). N o e n ta n to , apesar de tu d o , essa m o c id a d e g ua rd a
se m p re u m s e n tim e n to de esperança n o p e ito .
Mas M á rio , v e lh o e d e s c o n fia d o d ia n te d os
c o n fo rm is m o s , fa z de P astor F id o u m le ito r de M a tia s A ire s ,
e na sua digressão so bre os clássicos p o rtu g u e s e s o o p õ e à
A r t e de f u r t a r q u e , c o m suas ce rte zas e seguranças
c o rro s iv a s , castiga e d e n u n c ia ao invés de c o r r ig ir o u su pe ra r,
e q u e p ro p õ e c o m o m o to r a E sp e ra n ça , “ v irtu d e e sve rd in h a d a
e c o n fo r m is ta ” . A v irtu d e de P a sto r F id o é antes a C h a rita s —
“ in c e n d ia d a d e a m o r " .
A m o r . Q u e é m o la dos s e n tim e n to s p o lític o s su rg id o s
n 'O B a n q u e te . É P astor F id o q u e vai tra z e r fre q u e n te m e n te
à b a ila a s itu a ç ã o c o n te m p o râ n e a de repressão, de ce n su ra , de
b ru ta lid a d e . É ele q u e , p o n tu a n d o u m a co nve rsa a b je ta e
o d io s a e n tre os d o m in a n te s , le m b ra rá o g o lp e de 1 9 3 7 e
u m a d ra m á tic a m a n ife s ta ç ã o a n tig o v e rn a m e n ta l, re p e tin d o
c o m o u m d o b re : " n o v e de n o v e m b ro " (O B a n q u e te , p. 1 2 5 ).
A m o r . E le ro m p e n u m c h o ro desesperado d e ju v e n tu d e ,
re v o lta e im p o tê n c ia , bem o m e sm o q u e M á rio c o n c e b e ra na
sua m o c id a d e m o d e rn is ta , v in te e d o is anos a nte s:
" — (. . . C a iu a n o ite , a liá s, e na s o lid ã o da
n o ite das m il estrelas as J u v e n ilid a d e s A u riv e rd e s ,
to m b a d a s n o s o lo , c h o ra n d o , c h o ra n d o o
a rre p e n d im e n to d o tre s v a rio fin a l.)
M in h a lo u c u ra
(. . .)
E sp a lh a i vossas alm as s o b re o ve rd e !
G u a rd a i nos m a n to s d e s o m b ra d o s m anacás
os vossos va ga lu m es in te rio re s !
In d a serão u m sol nos o ir o s d o a m a n h ã !
C h o ra i! C h o ra i! D e p o is d o r m i!
{P a u lic é ia d e sva ira d a , o p. c it ., p. 6 2 e 6 3 ).
A m o r. E sp era nça . O c h o ro de P a sto r F id o é e rra d o ,
m al a p ro p ó s ito , d e s a je ita d o — mas, c o m o jo v e m , te m o
d ir e ito de e rra r, c o m o a firm a ra n u m a co nve rsa a n te rio r
Sarah L ig h t. E Ja n jã o se irm a n a c o m ele nesse c h o ro .
M as ju v e n tu d e te rá m e sm o esse d ir e ito ? P a sto r F id o é
a m b íg u o , a h ip o te c a d o fu tu r a não é segura, e ele se d e ixa
c o n s o la r " g o s to s o " p o r Sarah L ig h t, q u e já lhe interessa ra a nte s:
" O in s tin to m ais q u e a e x p e riê n c ia o fa zia p e n d e r pra
S arah L ig h t, e m b o ra m e n o s b o n ita e m ais v e lh a " (O
B a n q u e te , p. 1 0 5 ).
E J a n jã o se d e s s o lid a riz a dessa m o c id a d e q u e se d e ixa
s e d u z ir na sua in c o n s c iê n c ia s e n tim e n ta l. P a sto r F id o não
resiste à salada a m e ric a n a e t r iu n f a lis t a :
“ M as não co nse gu ia re s is tir à a tra ç ã o d a q u e la salada
e n ce g u e ce d o ra . N ã o se e n tre g a ra a in d a , e te n h a m o s a
esperança de q u e não se e n tre g u e n u n c a a u m a salada
em q u e havia a té s o rv e te d e cre m e e suco d e
p e d re g u lh o . E sp e re m o s que ele saiba e sco lh e r dela
apenas o q u e era ú t il à sua saúde h u m a n a . (. . .)
T ín h a m o s q u e esperar a té q u e a m o c id a d e nossa
m adurasse a e x p e riê n c ia e soubesse a c e ita r ta lv e z o
s o rve te de c re m e , e re cu sa r o suco de p e d re g u lh o "
(O B a n q u e te , págs. 161 e 1 6 2 ).
E v o lu ç ã o a p a re n te m e n te e stra nh a da p e rso n a g e m : é q u e
M á rio te m e as concessões q u e são fe ita s à ju v e n tu d e e q ue a
ju v e n tu d e fa z a si m esm a. Há s e m p re , e n tre ta n to , u m a
esperança de a m a d u re c im e n to — e m e sm o , ta is c o m o são,
os im p u ls o s , p a ix õ e s da ju v e n tu d e , agem c o m seu e s p írito
" f r o n d e u r " , c o n te s ta d o r. T a lv e z n '0 B a n q u e te M á rio se d e ixe
m ais e n te rn e c e r p e lo s "v a g a lu m e s in te r io r e s " da sua
ju v e n tu d e q u e n o m o m e n to da a u to c r ític a im p ie d o s a d o
" M o v im e n to M o d e r n is ta " . Mas basta. N ão c o n tin u e m o s nesses
jo g o s s im b ó lic o s p e rig o so s: c o m o já le m b ra m o s , o p o e m a de
M a c h a d o d iz b em — não d isse q u e m o s a m osca a zu l sob pena
de p e rd ê -la para se m p re .

A le g o ria s

P o ré m fic a o p ro b le m a da a le g o ria . Já e vo ca m o s o
cansaço d e M á rio d ia n te das lu ta s d ire ta s e o re p o u s o que
rep re se n ta va o d is fa rc e das várias personagens. H avia ta m b é m
o G E L O , d ig o , o D IP e a ce n s u ra : as p ersonagens im a g in á ria s
são a in d a escudos eficazes.
M as m e tá fo ra s e s ím b o lo s nem se m p re tê m a m esm a
in te n s id a d e . P or e x e m p lo , os p ra to s são o m o m e n to m ais
e v id e n te dessas a le g o ria s. A liá s , m e tá fo ra s g a s tro n ó m ic a s não
são n o v id a d e em sua o b ra . A s s im , ao in v e rs o dessa S alada que
se dá d e s a v e rg o n h a d a m e n te para tr a ir d e p o is , está a d ia lé tic a
d o c a ju , cu ja d e g u sta çã o " é u m a v e rd a d e ira tro c a d e posses
p e s s o a is ",25 q u e M á rio p en sou em 1 9 2 8 . E a S alada, M á rio

C ita d o p o r T e lê P o rto A n c o n a L o p e z , M á r io d e A n d r a d e , ra m a is e
c a m in h o , São P a u lo , L iv r. D u as C id ad e s , 1 9 7 2 , p. 5 3 . T e x t o de 1 9 2 8 .
a d eclara m esm o e x p lic ita m e n te c o m o a le g o ria . Mas a té nesses
m o m e n to s m ais e v id e n te s os s ím b o lo s tê m v á rio s s e n tid o s .
L e m b re m o s so b re a S alada q u e ela, além de " t r iu n f a lis t a " ,
s im b o liz a n d o a g ló ria c o m to d o s os c o m p ro m is s o s q u e ela
c o m p o rta , é ta m b é m a m e ric a n a . E sua tra iç ã o d e salada nos
faz pensar na "N o v a ca n çã o de D ix ie " , so bre os E U A ,
c o n te m p o râ n e a d 'O B a n q u e te (2 5 d e fe v e re iro d e 1 9 4 4 ) q u e
T e lê P o rto A n c o n a L o p e z p u b lic o u n o liv ro d e la :
" É a te rra m a ra v ilh o s a
C ha m a d a p e lo A m ig o U rso
Lá n in g u é m não c o b ra e n tra d a
Se a pessoa é c o n v id a d a
D e p o is lhe d ã o u m d is c u rs o
A b ra ç o tã o a p e rta d o
Q u e você m o rre a s fix ia d o ,
F e liz de ser e s tim a d o .
N o . I 'l l never neve r be
In C o lo u r L in e L a n d " . 26
T ais s ím b o lo s c o m p le x o s , a lé m de não u n ív o c o s , tê m
u m a fo rç a expressiva p ró p r ia , eles são m ais q u e s ím b o lo s .
M ais o u m e n o s a m b íg u o s , g a n h a m n o m e io m is té rio em q u e
se e n c o n tra m , e seria b a n a liz a ç ã o im p e rd o á v e l (e se m p re fa lsa)
estab ele cer c o rre s p o n d ê n c ia s d o g é n ero — is to q u e r d iz e r
a q u ilo . P o r o u tr o la d o , so lu çõ e s e vid e n te s c o m o o n o m e de
M e n tira , q u e se presta a tr o c a d ilh o s tã o fe liz e s , não
necessitam e x p lic a ç ã o .
E n fim , não nos p re o c u p e m o s em saber se M á rio to m o u
da re a lid a d e ta l o u q u a l p e rso n a g e m . P o uco nos im p o r ta , p o r
e x e m p lo , a p la u s ív e l h ip ó te s e d e q u e M á rio deve te r t id o no
fu n d o da le m b ra n ç a u m a g ra n d e p ia n is ta in te rn a c io n a l
b ra s ile ira (p a rtic ip a n te a liás d o s t u m u lto s in ic ia is m o d e rn is ta s )
ao c o n s tr u ir a p e rson ag em de S io m a ra Ponga. A s personagens
u ltra p a ssa m m u ito o m o d e lo lo n g ín q u o e se d e ix a m
fre q u e n te m e n te p e n e tra r p e lo a u to r, q u e e vita esquem as
s im p le s e p re fe re n o -lo s o fe re c e r n u m a c o m p le x id a d e ric a .
E q u e o le ito r se regale q u a n to q u is e r na segurança q u e ta is
riq u e z a s são ine sgo tá veis.

J o rg e C o li e
L u iz C a rlo s da S ilv a D a n ta s

A ix -e n -P ro v e n c e , s e te m b ro de 1 9 7 7

26 O p ' c iu , p . 2 3 0 .
C o lh id o pela m o rte q u e o s u rp re e n d e u a 2 5 de fe v e re iro
de 1 9 4 5 , M á rio de A n d ra d e não teve te m p o de te rm in a r a
red açã o de O B a n q u e te , q u e v in h a p u b lic a n d o p a rc e la d a m e n te
em seu ro d a p é sem anal d o M u n d o M u s ic a l. A série se
in te rro m p e c o m o t e x t o de 2 2 -2 -4 5 e nesse d ia o e s c rito r
a n o ta va n b ú n ic o d iá rio que não d e s tru iu :
“ S aiu m eu 19 a rt. cap. S alada, d o B a n q u e te . In s is tir?
P re fe ria fa z e r o u tr a coisa mas não sei o q uê. V o u e x a m in a r os
papéis. E x a m in e i e o rg a n iz e i as partes d o c a p ."
P oucos dias a nte s — a 1 8 -2 -4 5 — havia re g is tra d o no
m esm o d iá rio :
" ( . . . ) R e d is p o n h o a ssun tos d o “ B a n q u e te ". Passo a
m a n h ã to d a re e s tu d a n d o c o m m eia a n g ú stia as n o ta s e fic h a s .
C o m o d e s e n v o lv im e n to , à m e d id a q u e escrevia os a rtig o s ,
e m b o ra tivesse u m s u m á rio g eral, tu d o fic o u c a ó tic o e
s u p e rlo ta d o . Só co n se g u i de m ais e fic ie n te esta m a n h ã f ix a r 5
assuntos gerais, pra 5 c a p ítu lo s . S in to q u e c o m a e b u liç ã o de
ta n ta le itu ra , p o d ia , neste m o m e n to , fix a r o s u m á rio d o cap.
Salada, mas m e s in to fa tig a d o . D e ix o pra a m a n h ã ."
A s duas n o ta s te s te m u n h a m q u e M á rio de A n d ra d e
tra b a lh a v a , c o m o era seu h á b ito , se rvin d o -se de fic h a s e
a n o ta çõ e s p ré via s — a cu m u la d a s às vezes através d os anos — e
de le itu ra s d o m o m e n to , d ita d a s p e lo d e s e n v o lv im e n to dos
a ssun tos; èm se g u n d o lu g a r, q u e e m b o ra seguisse u m p la n o
p re e s ta b e le c id o , ia re d ig in d o os a rtig o s u m a u m , de a c o rd o
c o m as im p o s iç õ e s d o ro d a p é sem anal. J u n to c o m os o rig in a is
e n c o n tro u -s e u m a fo lh a d a tilo g ra fa d a c o m c o rre ç õ e s fe ita s a
m ão e d a ta de "S ã o P a u lo , fe v e re iro , 1 9 4 4 " , o n d e o t e x t o é
d iv id id o em 10 c a p ítu lo s e cada c a p ítu lo tra z a in d ic a ç ã o d o
a ssu n to q u e nele d e ve ria ser tra ta d o . E n c a ra n d o essas a n o ta çõ e s
c o m o a ú ltim a fo rm a d o p ro je to d o e s c rito r, a p re se n te e d içã o
a d o to u o c r it é r io de d is t r ib u ir a m a té ria dos a rtig o s de a c o rd o
c o m o ín d ic e a í p ro p o s to , a c re s c e n ta n d o no fin a l a in d ic a ç ã o
dos c a p ítu lo s p ro g ra m a d o s , q u e não ch e g a ra m sequer a ser
esboçados e d e v e ria m a rre m a ta r a g ra n d e c o m p o s iç ã o .
V e m o s p e lo d iá rio q u e , já a m e io da ta re fa e c o m u m a
ce rta p e rs p e c tiv a d o c o n ju n to , M á rio d e A n d ra d e la m e n ta v a ,
c o m a sua aguda e xig ê n c ia fo rm a l, q u e o t e x to não fosse m ais
e n x u to .
O B a n q u e te , ta l c o m o nos fo i leg ad o, n ã o p o d e se a lin h a r
ju n to aos liv ro s fe ito s d o e s c rito r; mas pela im p o r tâ n c ia e
tr a ta m e n to a p a ix o n a d o dos seus te m a s, é, sem d ú v id a , u m dos
m o m e n to s m ais a lto s da m e d ita ç ã o e s té tic a n o B ra s il.
A b ertu ra

Apresentação dos
personagens
classe-dom inante.
O ra se deu q u e n a q ue la ta rd e boa de d o m in g o , a
m ilio n á ria S arah L ig h t o fe re c ia u m b a n q u e te em seu s o la r de
in v e rn o , q u e fic a v a n u m s u b ú rb io de M e n tira , a s im p á tic a
c id a d in h a da A lta P a u lista . Ia m se e n c o n tra r à mesa d ela o
c o m p o s ito r J a n jã o , a cé le b re c a n to ra S io m a ra Ponga e o
im p o r ta n te p o lí t ic o F e lix de C im a , s u b p re fe ito de M e n tira . O h
m eus a m igo s, si lhes d o u este re la to fie l de tu d o q u a n to
sucedeu e se fa lo u n a q u e la ta rd e b oa, boa e tr is te , não
a c re d ite m não , q u e q u a lq u e r sem elhança destes personagens, tã o
nossos c o n h e c id o s , c o m q u a lq u e r pessoa d o m u n d o dos vivos e
dos m o rto s , não seja m ais q u e p u ra c o in c id ê n c ia o c a s io n a l. E é
ta m b é m c e rto , c e rtís s im o , q u e ao m e n o s d esta vez, eu não
p o d e re i me re s p o n s a b iliz a r pelas idé ias e xp o sta s a q u i. N ão me
p e rte n c e m , e m b o ra eu s u ste n te e p ro c la m e a re s p o n s a b ilid a d e
dos a u to re s , nesse m u n d o de a m b icio sa s re p o rta g e n s estéticas,
v u lg a rm e n te c h a m a d o Belas A rte s .
O fa to é q u e a m ilio n á ria Sarah L ig h t estava fra n c a m e n te
a p a ix o n a d a p e lo c o m p o s ito r J a n jã o . Este, ao m e n o s p o r
e n q u a n to , se d e ix a v a a m a r sem grandes e xig ê n cia s, e m b o ra não
lh e fo sse m in d ife re n te s aquelas carnes a b u n d a n te s e já u m
b o c a d o c re p u s c u la re s de S arah. N os seus v in te -e -o ito anos de
m u ita e vá ria e x p e riê n c ia , J a n jã o b e m p e rce b ia q u e p o r detrás
dessas c o c h ilh a s am ansadas, esperava u m sol fu r ib u n d o . Mas p o r
e n q u a n to ele se d e ix a v a apenas a d o ra r, na s e m -c e rim ô n ia
insa ciáve l c o m q u e a to d o s os a rtis ta s le g ítim o s , a m o r, g ló ria ,
a d o ra ç ã o , êxtase, a p la u so e a té d in h e iro , é o m ín im o in g ra to
que p o d e m lhes d a r os h o m e n s desse m u n d o . E m b o ra não
tivesse a m e n o r c o n s c iê n c ia disso, c o m o to d o s os a rtis ta s
le g ítim o s , J a n jã o era u m m o n s tro c a m u fla d o e m coisa n a tu ra l.
M o n s tro m anso e d esg ra çad o, mas m o n s tro d e n tro desta nossa
v id a . E S arah L ig h t, já e ru d ita p o r d em ais em a m o re s, estava
d e s ca m b a n d o para a q u e la fra q u e z a dos anos em q u e a gen te se
b o ta a m a n d o e x o tis m o s , os ve lh o s as m e n in o ta s im p ú b e re s , e as
q u a re n to n a s os m o n s tro s . O ra J a n jã o era v io le n ta m e n te e x ó tic o ,
o ú n ic o h o m e m b ra n c o , q u e ro d iz e r, m e s tiç o de apenas
q u a tro c e n to s a nos, n a q u e le m e io p re m a tu ro de M e n tira em que
a p ró p ria Sarah L ig h t era u m a is ra e lita ir r e d u tív e l, nascida em
N ova Y o r k , S io m a ra Ponga v in h a de pais e sp a n h ó is, e F e lix de
C im a era de o rig e m ita lia n a e n a tu ra lm e n te fa c h is ta . Sarah
L ig h t se a p a ix o n o u p e lo e x o tis m o de J a n jã o , m o n s tro p o r
ser a rtis ta avis ra ra e n ve rg o n h a d a de u m a p u re z a ra c ia l que
só tin h a sangue b ra s ílic o , n è g ro e lu s ita n o se la s tim a n d o p o r
d e n tro d a q u e le c o rp o de zebu o ssu d o , pele m o re n a , ca be lo
m ais liso q u e o d u m gê e lin h a s d u ra s c a in d o n o c h ã o
c o m o a fa ta lid a d e .
Parece fá c il a rg u m e n ta r q u e n u m caso de a m o r ta m a n h o ,
o m ais in s t in tiv o era S arah L ig h t m esm a p ro te g e r o a rtis ta , lhe
fo rn e c e n d o sem d e m o ra algum as m ig alh as dos seus c in c o c o n to s
d iá rio s de re n d a , e lh e c o m p ra r o a m o r na b a ta ta . T a n to m ais
q u e e m b o ra v iv e n d o c o m o m a rid o m u ito às boas, p o r causa da
d is p e rs ã o das rendas q u e u m d iv ó r c io q u a lq u e r tr a r ia , S arah
L ig h t c o n q u is ta ra a sua lib e rd a d e p o u c o s meses d e p o is de
casada, a p rim e ira vez n u m p ile q u e . Mas a is ra e lita tin h a o senso
da re a lid a d e , e fu g ira se m p re de c o m p lic a ç õ e s c o m os a rtis ta s ,
p o rq u e estes são os m e lh o re s té c n ic o s da c h a n ta g e m . N ão que
eles p re p a re m escân da lo s, e x ija m d in h e iro , ro u b e m ca rta s,
c o n te m , a m e ace m , nada disso q u e se e n c o n tra c o m b a n a lid a d e
nos ro m a n c e s e na vid a . Mas S arah L ig h t era b a s ta n te esperta
pra p e rc e b e r que os a rtis ta s são c h a n ta g ista s p o r n a tu re z a e
c o n d iç ã o . N ão p e d e m nada, mas a só presença deles é já um a
c h a n ta g e m n o a m o r ric a ç o . R essum am p o b re z a , m is é ria m e sm o ;
ressu m a m e x ig ê n cia s in e sg o tá ve is de a d o ra ç ã o , g ló ria e p osiçõ e s
de m a n d o . E ta is presenças S arah L ig h t n ã o co n se g u ia a g u e n ta r,
era c h a to . De fo rm a s que tra ta v a c o m a lg u m a d is tâ n c ia a J a n jã o .
E q u a n d o os e m p u rrõ e s d o d ese jo e ra m d e m a is, ela o fe re c ia
u m a fa rrin h a a d o is c o m tã o p re cio so s v in h o s , q u e J a n jã o se
e m b ria g a va e ela p o d ia lhe a lisa r os ca be lo s c o m m e la n c o lia .
Mas tin h a a in d a u m a o u tr a razã o q u e p ro ib ia s o c ia lm e n te
S a rah L ig h t de p ro te g e r o c o m p o s ito r e as a rte s, c o m o de ra ro
em ra ro lhe v in h a na id é ia . Era o a m b ie n te e m q u e ela v iv ia , o
m e io dos m ilio n á rio s de M e n tira . M e io in fe c to d e e s tú p id o s , de
g ra n fin o s , de in d ife re n te s às a rte s; m e io q u e apenas p rin c ip ia v a
re c o n h e c e n d o q u e era u m a boa a p lic a ç ã o de d in h e iro c o m p ra r
liv ro s a n tig o s , g ra vuras a n tig a s a q u a re la d a s c o m sabença p elos
b o tic á rio s de “ a n tig u id a d e s " e a lg u m G u id o R e n i fa ls o . Si a
m ilio n á ria fornecesse d in h e iro a n in g u é m , q u e não fosse na
o b e d iê n c ia à tra d iç ã o p o rtu g a de a c a lm a r o cé u, p ro te g e n d o
santas-casas, m e n d ig o s o u a in d a a lg um a b em rara cre ch e
in v e n ta d a p elos jo rn a lis ta s , si em vez protegesse as a rte s, ela
sabia m u ito b e m q u e se to rn a v a lo g o u m m o tiv o de ris o . O
m e io era s u fic ie n te m e n te s n o b pra g o s ta r de u m fá c il A n a to le
F ra n c e e d em ais ro m a n c is ta s franceses q u e chegassem a té isso, e
ta m b é m a lg u m H u x le y b an al d e p a ra d o x o s n o v in h o s , que
w ild ia n a m e n te d ou ra sse a fra n ce sia . Mas o e s n o b is m o de
M e n tira ja m a is não chegara à c o n s e q u ê n c ia da sua u tilid a d e . Si
S arah L ig h t protegesse as artes, o u apenas J a n jã o , não é q u e a
in c u lca sse m de p o d re , c o m is to ela não se im p o rta v a e a té lhe
d a ria u m lu s tre p a r tic u la r, mas se to rn a v a r id íc u la . E S arah
L ig h t era s u fic ie n te m e n te d e lic a d a em seu re fin a m e n to
e d u c a d ís s im o , pra não te r o m e n o r g o s to d o r id í c u lo .
P o r causa destas c o m p lic a ç õ e s q u e lhe to m a v a m h o ra s de
p e n s a m e n to grave, a m ilio n á r ia tiv e ra u m a d e s in ê n c ia fe liz . É
q u e a sua a n sie d a d e de sa lva r J a n jã o , dera p ra c o m p ra r discos.
S arah L ig h t ja m a is se p re o c u p a ra de m ú sica , m as desde o d ia
em q u e lh e a p re s e n ta ra m J a n jã o p a rtic ip a n te d u m a fe sta de
c a rid a d e , se a p a ix o n a ra pela m ú sica . C o m p ro u lo g o u m a v itr o la
q u e era a m e lh o r d o m u n d o , se in fo r m o u c o m o c o m p o s ito r,
p e d iu c o n s e lh o s e a rre b a n h o u tu d o o q u e havia de b o m em
d isco s da m ú sica d o p re s e n te e d o passado, ô h B a c h ! " O h
B a c h !" ela é q u e e x c la m a v a , p o rq u e lo g o a m ilio n á ria se fix o u
n o g ra n d e J o ã o S e b a s tiã o . Possuía dezenas de s in fo n ia s de
M o z a rt, de H a y d n , to d a s as de B e e th o v e n e m várias versões,
sonatas e q u a rte to s , t u d o o q u e h a via dos ita lia n o s
in s tru m e n ta is , mas B ach era de m u ito o p re fe r id o . H a y d n ,
M o z a rt, c o m o d e s e n v o lv im e n to da lib e rd a d e m e ló d ic a e a
v a lo riz a ç ã o e xp re ssiva d os a co rd e s, p osta e m re le v o pela
c o n c e itu a ç ã o d e fin it iv a da h a rm o n ia , e ra m já u m a m ú sica p o r
d e m a is p a rla n te e não apenas in c o n s c ie n te m e n te a g e n te c o m o a
p o lifo n ia de B a ch. Só B a c h , d e n tre os clássicos, p u n h a S arah
L ig h t de a c o rd o c o n s ig o m esm a, e ela p ossu ía to d o s os d iscos
de B a ch. E ra u m a d is c o te c a c o lo ssa l. E c o m isso os re m o rs o s e
os desejos sossegaram .
N ã o d e t o d o p o ré m , e e n fim as ansiedades e x p lo d ira m
n a q u e la id é ia lu m in o s a : o G o v e rn o e os v irtu o s e s é q u e d e v ia m
p ro te g e r J a n jã o , c o ita d o . E c o m o estas coisas im p o rta n te s só
se re s o lv e m a g o lp e s de b a n q u e te s , S arah L ig h t o fe re c ia a qu e le
a lm o ç o a ja n ta ra d o de d o m in g o ao im p o r ta n te p o lí t ic o F e lix de
C im a e à c a n to ra fa m o s a S io m a ra Ponga. J a n jã o ta m b é m devia
c o m p a re c e r, p o rq u e nada c o n v e n c e m ais d o q u e a presença
e n c a rd id a . P or o n d e se vê q u e S arah L ig h t ta m b é m sabia ser
c h a n ta g is ta .
F e lix de C im a a lé m de m u ito b u r ro , era to ta lm e n te
ig n o ra n te . A c irc u n s tâ n c ia n ada o c a s io n a l q u e o g u in d a ra à alta
p o s iç ã o p o lític a q u e u s u fru ía e m M e n tira , era. . . p o r isso
m esm o. T in h a q u a lid a d e s isso tin h a , c o m o p o r e x e m p lo gosta r
de c o m e r e c o n h e c e r a té c o m s u tile z a a d a ta d u m v in h o r u b ro e
a g o ta de le ite escorre ga da a m ais n u m c o z im e n to de p e rd iz .
Era u m p ro d íg io de s im p a tia , de ta l m a n e ira q u e fic a v a
im p o s s ív e l a g e n te n ã o a ca b a r g o s ta n d o d e le . T in h a u m je it o tã o
n a tu ra l, tã o e s p o n tâ n e o e e s q u e c id o de ig n o ra r a sua p o siçã o
a lta , dava a m ão a u m p e d re iro c o m g e n tile z a ta m a n h a q u e
p a re cia u m líd e r o p e rá rio , ia-se ve r. . . A in d a tin h a o u tra
q u a lid a d e m u i s im p á tic a e m M e n tira q u e era g o s ta r das
m u lh e re s . D iz ia m m e sm o (sem p ro v a ) q u e ele tin h a ce rta s
p re fe rê n c ia s c ro m á tic a s b e m m a is c o rd a ta s e fá c e is na te rra que
as d ific u ld a d e s v irtu o s ís tic a s da /e n h a rm o n ia vo c a l d o s helen os.
Mas não d e ve m o s nos p e rd e r no la b ir in to m u s ic a l da HeTãcfè^"''y
clássica: F e lix d e C im a gostava m u ito das m u lh e re s , e isso basta.
Mas ta lv e z te n h a a lg u m interesse c o n ta r p o rq u e o ilu s tre
p o lí t ic o fo ra e s c o lh id o p o r S arah L ig h t, de p re fe rê n c ia aos
o u tr o s m u ito s q u e p ro life ra v a m na b o n ita M e n tira . É q u e F e lix
de C im a era o p r o te to r in d is p u ta d o das a rte s na c id a d e . Isso
não se p o d e c o n te s ta r. T o d o s os a rtis ta s re c o rria m a ele e ja m a is
u m só não saíra d o e s c ritó rio d o p o lí t ic o sem u m a p e rto de
m ão g o rd o , u m a risada a b e rta e tilin t a n d o nas o iça s o si b e m o l
d u m “ ta lv e z ” , d u m “ va m o s v e r " o u d u m " p r o v a v e lm e n te " . E é
c e rto que as m ais das vezes, as “ Despesas V á r ia s " d o s
o rç a m e n to s p agavam as ce m p o ltro n a s , o q u a d ro de paisagem
o u a " B a n h is ta " a in d a em gesso e c o n ó m ic o . E d 'a í v e io a n o ç ã o
de q u e F e lix de C im a gostava das artes.
Isso p o ré m era um a fa ls id a d e . F e lix de C im a gostava das
artes n ão ; as p ro te g ia , isso s im . N o fu n d o ele estava c o n v e n c id o
q u e os a rtis ta s e ra m uns fr o u x o s lo q u a z e s e n e m tiv e ra
in ic ia lm e n te a im a g in a ç ã o de p ro te g e r c o is ís s im a n e n h u m a . Mas
q u e m p rim e iro se s o c o rre u d e le , fo i u m m a e s tro e s tra n g e iro de
passagem, q u e lo g o lhe p ro p ô s u m a te m p o ra d a de d o ze
c o n c e rto s a c in q u e n ta c o n to s cada. F o i o d ia m ais s u b lim e da
c a rre ira p o lític a de F e lix de C im a . S e n tir a q u e le m a e s tro
e u ro p e u , tã o c é le b re e p o s s iv e lm e n te g lo rio s o , a seus pés
p e d in d o u m a co isa tã o fá c il para o G o v e rn o q u e , sabia o n d e
estava o d in h e iro . F e lix de C im a fic o u . . . fic o u to m a d o de
ve rg o n h a . Era im p o s s ív e l que u m m a e s tro e s tra n g e iro se
h u m ilh a s s e desse m o d o , te n d o ta n to s e m p re s á rio s q u e o
d is p u ta v a m e ta n ta s riq u e za s de c o n c e rto s já c o n tra ta d o s na
A m é ric a d o N o rte , em N o va Y o r k , na Á s ia , na E u ro p a , na
Á fr ic a , na O ce â n ia , e m T o k io . Isso n ã o ! F e lix de C im a g rito u
d e n tr o c o n s ig o , isso n ão ! P re cisa m o s p ro te g e r os m a e stro s
e u ro p e u s de passagem , pra m o s tra r q u e so m o s m u ito
h o s p ita le iro s , e d e p o is não ire m fa la r m a l da nossa te rr a ! Pois
n ã o ! seu G r ig o rie v itc h ik a S te in m a n , tu d o q u a n to Vossa
E x c e le n tís s im a q u is e r! P o rq u e o se n h o r não pede lo g o
c in q u e n ta c o n to s a t r in t a c o n c e rto s cada? P e rceb eu q u e tin h a se
e n g a n a d o e já estava c o n s e rta n d o a p ro m e ssa, m as o m a e s tro
e stra n g e iro era m o d e s to e g a ra n tiu q u e d e p o is p re cisa va ir pra
A rg e n tin a . F e lix de C im a e n tã o p ro m e te u tu d o , c o m u m p a vo r
in f e liz de não fa z e r má fig u ra d ia n te d o m a e s tro e s tra n g e iro .
V ir o u , m e x e u , mas to p a ra c o m a m u ra lh a ch in e sa d os o u tro s
p o lític o s . N ão h a via c o m o in c lu ir se isce ntos c o n to s , assim sem
m ais n em m en os, nas “ Despesas V á ria s " . A f in a l o m a e s tro
e s tra n g e iro re d u z iu tu d o pela m e ta d e , e fa lo u p o u c o m al de
M e n tira lá fo ra , los m a c a q u ito s . P ois sucedeu q u e p o u c o d e p o is
v e io u m a diseuse da V ir g ín ia , co m lá b io s tã o escla re ce do re s, q u e
isso F e lix de C im a fic o u m a lu c o . A diseuse c o u b e m e lh o r d e n tro
das "D espesas V á r ia s " , e até le vo u o d u p lo d o q u e p e d ira . E
desde esta c o n tra p ro v a , fic o u sa b id o e p ro c la m a d o q u e F e lix de
C im a gostava das artes p lá sticas.
Mas gostava u m a ova. N ão q u e ria saber de q u a d ro s n em
de estátuas n o a p a rta m e n to , só gravuras p o rn o g rá fic a s ; e c o m o
os a rtis ta s , d e p o is de c o m p ra d o o q u a d ro d o G o v e rn o ,
p re se n te a va m c o m u m a te la b e m g rá tis o p r o te t o r das artes,
F e lix de C im a , d e s c o b riu a g e n e ro sid a d e . M andava tu d o pra
P in a co te ca de M e n tira . Só g u a rd o u u m q u a d rin h o , p o rq u e esse
era m u ito p re c io s o , d iz ia m , u m a V ê n u s a rg e lin a , em e s tilo
persa v in d a d u m sa lo n de Paris e que era a tr ib u íd a a R a ffa e llo
S a n zio . A liá s , fo i assim que ele d e s c o b riu , p o r c iê n c ia in fu s a , os
te rm o s té c n ic o s da p in tu ra . T o d a m a n h ã , c o n te m p la n d o a quele
nu m o u ris c o q u e ele c o lo c a ra em fre n te da sua cam a de d o r m ir ,
F e lix de C im a m u rm u ra v a u m id a m e n te : q u e c o r, q u e to n s , que
v o lu m e s , q u a n to v a lo r — sem q ue , n o e n ta n to , lhe possam os
a tr ib u ir a firm e z a c o n c e itu a i d u m L u ís M a rtin s o u d u m S érgio
M illie t.
A in d a fic a p o r esclarecer c o m o era a p ro te ç ã o das artes
p e lo G o v e rn o de M e n tira , o rie n ta d o p o r F e lix de C im a . O
p o lí t ic o não gostava nada de a rte , nada c o m p re e n d ia , e até
fic a v a h o r ro riz a d o d ia n te de q u a lq u e r m a n ife s ta ç ã o u m p o u c o
m ais m o d e rn a . Si já não sabia d iz e r u m is to d ia n te de q u a lq u e r
R o d o lfo A m o e d o , im a g in e m c o m o fic a v a d ia n te d u m Lasar
S egall, era u m a a g o n ia i. . . A té u m a fe ita , o b rig a d o a fa la r
a lg u m a coisa d ia n te d u m P a blo Picasso de q u e lhe p e d ia m a
o p in iã o , a ta l de nob/esse o b tig e o sa lvo u , lhe a s s o p ra n d o três
p alavra s geniais. O p o lí t ic o a g o n ia d o s u s s u rro u : " C o m o é
ç ç p a n h o l!" . E os re p ó rte re s , q u e em M e n tira e ra m to d o s
e d u ca d o s p e lo G E L O (G ru p o E sco la r da L ib e rd a d e de O p in iã o ),
c a íra m pra trá s, e s tu p id ific a d o s c o m a fin e z a da c r ític a . Mas
" c o m ig o n ã o , v io lã o ! " , era de f a to o q u e F e lix de C im a estava
im a g in a n d o . Para o ilu s tre d e m o c ra ta fa c h is ta a q u ilo e to d a a
a rte m o d e rn a era c o m u n is m o . Na b a ta ta .
De m a n e ira q u e d o is fic a ra m se nd o os p r in c íp io s
e d u c a tiv o s que F e lix de C im a im p r im iu à p ro te ç ã o o fic ia l das
a rte s, em M e n tira . 1 9 : p ro te g e r tu d o q u a n to é a rtis ta e stra n g e iro
q u e p e d ir água, pra não ire m lá fo ra fa la r m a l d o país e pra
m o s tra r q u e som os m u ito h o s p ita le iro s , c o m o d iz ia S a in t-
H ila ire ; 2 9 : não p ro te g e r as a rte s m o d e rn a s p o rq u e não se
e n te n d e mas é c o m u n is m o . Q u a n to aos a rtis ta s n a c io n a is , a
te rra é fa rta e b o a , que m o rra m de fo m e .
A fa m o sa c a n to ra S io m a ra Ponga era fa m o sa c o m ju s tiç a e
era o p r o tó t ip o d o v irtu o s e . E era ta m b é m o x o d ó de M e n tira .
Da m esm a fo rm a c o m o no B ra sil havia g e n te q u e co n s id e ra v a a
p r o to f o n ia d o " G u a r a n i” a m úsica m a io r d o m u n d o , havia em
M e n tira g e n te e n ca n e cid a q u e m esm o c o m g rip e p n e u m ô n ic a
não p e rd ia u m só re c ita l de S io m a ra Ponga, p o rq u e , m eu D eus!
tin h a m v is to ela de p eq ue na b rin c a n d o na ru a , tã o e n g ra ç a d in h a !
P o ré m S io m a ra Ponga m e re cia a fa m a in te rn a c io n a l que
tin h a . E stu d a ra m u ito , tra b a lh a ra e tra b a lh a v a c o tid ia n a m e n te a
vo z. P o d e ría m o s sem fa v o r re c o n h e c e r q u e a lca n ça ra um a
c u ltu r a le g ítim a . N ã o só a v o n ta d e de ve n ce r a levara a e stu d o s
gerais q u e a e x c e p tu a v a m n o p o le ir o dos a rtis ta s , c o m o
re a lm e n te ela sabia m ú sica , co isa a in d a m ais ra ra e n tre os
in té rp re te s da m úsica. Mas apesar d isso, ela não passava d u m a
v irtu o s e da m esm a q u a lid a d e péssim a dos v irtu o s e s
in te rn a c io n a is . A is to a re d u z iu a sua in c o n c e b ív e l va id a d e , e os
interesses c o m e rc ia is q u e a e scra viza va m ao seu p ú b lic o .
N ã o se p o d e fa la r q ue a va id a d e de S io m a ra Ponga era
e x c lu s iv a m e n te d e la ; to d o s os a rtis ta s são m o n s tro s ta m b é m
pela va id a d e . Mas a de S io m a ra era " in c o n c e b ív e l” , ju s ta m e n te
p o rq u e a c u ltu r a q u e a lca nça ra a d e ve ria levar a esse processo
de s u p e ra çã o da v a id a d e , de d ig n ific a ç ã o da va id a d e , q u e a
fe c u n d a , e a tra n s fo rm a n u m o rg u lh o m ais ú t il. C o m o o dos
v irtu o s e s q u e se d e d ic a m s is te m a tic a m e n te à e d u ca çã o d o seu
p ú b lic o , o u d o s q u e tra v a m b a ta lh a pela m ú sica d o seu te m p o ,
q u e e m to d o s os te m p o s fo i c h a m a d a de " m o d e r n is ta ” , "a rs
n o v a ” , "m ú s ic a d o f u t u r o " o u " f u t u r is m o " ju s to p o r ser a d o
p re sen te . Mas S io m a ra Ponga se e n tre g a ra p o r c o m p le to ao
" a c a d e m is m o ” da v irtu o s id a d e .
Ela c o n h e c ia m u ito s u fic ie n te m e n te a h is tó ria e o m u n d o
das a rte s, pra re c o n h e c e r c o m o era b a ix o e in d e c e n te o
" a c a d e m is m o ” de to d a s elas. B a ix o p o r fa z e r da a rte u m a
in d ú s tria reles. Esses a rtis ta s a c a d é m ic o s na ve rd a d e não
passavam d u n s c a v a lh e iro s de in d ú s tria , e assim se d e v ia m
c h a m a r, p o rq u e v iv ia m da e x c lu s iv id a d e d o d in h e iro , dessa paga
c u tta o u g o rd a ( c o n fo rm e a " c e le b r id a d e " de cada u m ) q u e a
i< |norância p re g u iço sa dos s e m ic u lto s p o d ia lhes ce de r. E só
disso. N e m c o m a g ló ria , c o m a v a lo riz a ç ã o pessoal, eles se
in c o m o d a v a m m ais, a cha pa do s na e x c lu s iv a fo m e d o seu
d in h e irin h o . O a c a d e m is m o não era neles, n em n u n c a ja m a is f o i,
um a c o n v ic ç ã o , u m a fé . A p ro v a m ais c ru e l disso é a ve e m ê n cia
iid íc u la c o m q u e os a ca d é m ico s m ais e s p e rta lh õ e s b la s o n a m de
c o m p re e n s iv o s , assim c o m u m a r de s u p e rio rid a d e b e m p en san te
ji<:«!Ítando os m o d e rn o s d o te m p o . E ta m b é m a lim e n ta m ,
id io tiz a d o s pela v a id a d e , a ânsia to n ta de serem c o n s id e ra d o s
p e lo s m o d e rn is ta s , m o d e rn o s ta m b é m . A o passo q u e b asta ria
d e n u n c ia r u m q u a lq u e r a c a d e m is m o d im in u to n u m m o d e rn o
v e rd a d e iro p ra este re c e b e r a ressalva na cara, c o m o u m
b o fe tã o .
S io m a ra Ponga lia m u ito as revistas de a rte p ra não se
in te ira r dessa d ig n id a d e da a rte . A s revista s to d a s , de t o d o o
m u n d o , c o m ra rís s im a s e fin a n c is ta s e xceções, só tra ta v a m da
a rte h is tó ric a d o passado, fe n ó m e n o im p o s itiv o de c u lt u r a ou
das m a n ife s ta ç õ e s m o d e rn is ta s , fe n ó m e n o im p o s itiv o de c u ltu ra
ta m b é m . S io m a ra p e rc e b ia q u e essas e ra m as únicas re vista s
vivas; ao passo q u e u m a " I ll u s t r a t i o n " , u m " S t u d i o " m esm o,
e ra m re vista s m o rta s , a s u b s e rv iê n c ia escandalosa aos in s tin to s
b a ix o s da s e m ic u ltu ra b u rg u e sa e d o a c a d e m is m o . E e ra m tã o
p o u ca s! ao passo q u e as re vista s vivas a b u n d a v a m . . .
T u d o isso n o í n tim o S io m a ra chegava a re c o n h e c e r. Às
vezes lhe v in h a m a sp ira çõ e s m e la n c ó lic a s de. . . v iv e r! Q ue
b o b a g e m , p o is ela não v iv ia ! N ã o v iv ia . E si eu desse ao m enos
u m re c ita l das p rim e ira s c a n ta ta s ita lia n a s , das p rim e ira s
p a sto ra is? . . . Si eu desse e m M e n tira , a fin a l p á tria d e le , ao
m e n o s u m a p a rte de r e c ita l d e d ic a d a às ca nçõ es de J a n jã o ? A
c a n to ra se n tia o v a lo r de J a n jã o , a fo rç a c ria d o ra d e le , a
c o n tr ib u iç ã o h is to ric a m e n te im p o r ta n tís s im a q u e ele tra z ia para
a m ú sica de M e n tira , mas. E e n tã o ela se apegava a u m a
re a lid a d e té c n ic a , n o fu n d o tã o falsa c o m o as o u tra s : A s
ca nçõ es de J a n jã o p o d ia m ser lin d a s , mas v o c a lm e n te não
" r e n d ia m " , não fic a v a m b e m prá vo z. P o d ia m estra ga r a vo z
d e la , c o m o já se fa lo u de W agner.
F a ls ific a ç ã o p u ra , p o rq u e assim q u e os c a n to re s
" s o u b e r a m " c a n ta r W a g ne r, ele não e stra g o u a v o z de n in g u é m
m ais. O m esm o se dava c o m as canções de J a n jã o . E scrita s em
lín g u a n a c io n a l, elas e x ig ia m to d a u m a em issão n o v a , to d o um
tr a b a lh o de lin g u a g e m e de im p o s ta ç ã o , t o d o e n fim u m
" b e lc a n t o " n o v o e n a c io n a l, q u e va lo riza sse essa fo n é tic a
ig n o ra d a dos b e lc a n to s e u ro p e u s . E, c o n s e q u e n te m e n te ,
va lo riza sse ta m b é m essas lin h a s m e ló d ic a s e m itid a s v o c a lm e n te ,
e q u e n e ce ssa ria m e n te d e riv a v a m dessa fo n é tic a , da m esm a
fo rm a q u e a m e lo d ia ita lia n a n ã o p o d e ria te r ja m a is n a scid o da
fo n é tic a fra n ce sa , n e m a a le m ã da e s p a n h o la . U ns te m p o s a in da
S io m a ra Ponga te n to u . P o ré m as fo n é tic a s a r tific ia is e as
im p o s ta ç õ e s d o c a n to de a p ito g e rm â n ic o , as nasalações
fran cesa s, os g ru p o s c o n s o n a n ta is ita lia n o s , t u d o isso ela
a p re n d e ra m u ito b e m , mas c o m p ro fe sso re s alem ães, franceses,
ita lia n o s . Ela p e g ou nas regras de p ro n ú n c ia c a n ta d a p ro p o sta s
p e lo D e p a rta m e n to de C u ltu ra de São P a u lo , e q u e , c o m poucas
m o d ific a ç õ e s in d ic a d a s p o r m a io r e x p e rim e n ta ç ã o e c u lt iv o .
fo rn e c e ria m u m b e lc a n to em lín g u a n a c io n a l, tã o , d ig a m o s , tã o
a n tro p o g e o g rá fic o c o m o os e u ro p e u s . Mas tu d o isso e x ig ia ta n t o
tr a b a lh o n o v o , ta n ta s e x p e riê n c ia s , a d q u ir ir té c n ic a s novas. . .
E d e m a is a m ais ela ca n ta va tã o p o u c o em lín g u a n a c io n a l, só
u m a p e c in h a em cada c o n c e rto , e só m e sm o p o rq u e o g o v e rn o
o b rig a v a a isso p o r le i. . . P re fe riu c a n ta r essas p e c in h a s de
q u a lq u e r je it o , em g eral c o m o t e x t o e s c o n d id o na p a lm a da
m ã o , pra n ã o se d a r ao tra b a lh o n e m de d e c o ra r duas q u a d ra s,
ela q u e sabia to d o s os te x to s de S c h u m a n n , de S c h u b e rt, de
W o lf, de B ra h m s , de F a u ré , de C ha usso n, de D u p a rc d e c o r! Era
u m a v irtu o s e , n o m ais d e g ra d a n te s e n tid o da p a la vra . U m a
escrava desse p ú b lic o b anal de re c ita is ca ro s, q u e ta n t o a p la u d e
u m B ra ilo v s q u i c o m o u m c a v a lo de c o rrid a . S io m a ra Ponga era
u m ca va lo de c o rrid a , fin ís s im o o lé !, escrava desse p ú b lic o
d e tr ita l q u e b ó ia n o e n x u rr o das s e m ic u ltu ra s . P ú b lic o q u e si
lhe p ro p o rc io n a v a m o m e n to s de ilu s ã o de g ló ria nas o vaçõ es, ela
não p o d ia pensar se q u e r u m m in u t o m ais p en sad o n e le q u e não
lhe desse re p u g n â n c ia .
Mas c o n tin u a v a . A ú n ic a h o n e s tid a d e e m q u e ela se
d e tiv e ra , c o n s is tia em e x ig ir de si m esm a, fa z e r b e m f e it o o q u e
ela se m p re fiz e ra . . . b e m fe ito . P o rq u e , c o m o c o m to d o s os
v irtu o s e s in te rn a c io n a is , as m a ra v ilh o s a s q u a lid a d e s de S io m a ra
Ponga e ra m ina ta s. L in d a , e le g a n te , e x p re ssiva , q u e lin d a vo z,
m eu D eu s! q u e v o z lin d a ! q u e a fin a ç ã o p e r fe ita ! q u e
vo c a liz a ç õ e s irre p re e n s ív e is ! Mas tu d o isso lh e v in h a d o b e rço
já. E o tra b a lh o d e la , tr a b a lh o se vero, fa tig a n te e c o tid ia n o , fo ra
apenas se e scra viza r a isso tu d o . Ela apenas, c o m o a m a io ria
in f in ita d os v irtu o s e s in te rn a c io n a is , n ã o fiz e ra m ais q u e
d e s v irtu a r a sua s u b lim e p re d e s tin a ç ã o .
E d este d e s v irtu a m e n to se p o d ia d e d u z ir, m e sm o não a
c o n h e c e n d o n e m lhe c o n h e c e n d o a c a rre ira , to d a a v id a de
a rtis ta de S io m a ra P onga. Os seus re c ita is e ra m a q u e la
p a c h o c h a d a f ix a : u m a p rim e ira p a rte c o m a lg u n s c la s s iq u in h o s
pra b a n ca r c u ltu r a ; u m a segunda p a rte d e d ic a d a ao lie d
r o m â n tic o o u fe ita de fran cese s; e u m a te rc e ira p a rte de
va ried a de s, em q u e ela glissava p ra c h a m u s c a r p a tr io tis m o s , u m a
p eça zin h a o u duas de c o m p o s ito r da te rra e m q u e estava e pra
ch a m u s c a r se n su a lid a d e , n o fin a l, u m a peça m a la b a rís tic a ,
in d e c e n te 'c o m o v a lo r a r tís tic o , mas q u e fa z ia a casa v ir a b a ix o .
T in h a m sid o s e m p re assim os já o ito c e n to s e sessenta e
q u a tro re c ita is q u e e sp e rd iça ra p o r esse m u n d o fo ra . E c o m isso
se v a n g lo ria v a de já te r c a n ta d o em v in te e seis lín g u a s . Mas na
v e rd a d e ela c o n h e c ia apenas c in c o , o ita lia n o , o fra n c ê s , o
a le m ã o , sa b id o s de ve rd a d e , u m e s p a n h o l de o it iv a e u m inglês
de a rg e n tin o . A lín g u a n a c io n a l não se p o d e d iz e r q u e ela sabia
não. Mas c a n ta ra até em ja p o n ê s, íd ic h e e árabe. O processo é
c o n h e c id o . C h e g a n d o n o Ja pã o, c o m o c o m o v ia os o u v in te s ela
c a n ta r em fa c h is m o , S io m a ra Ponga se a con selha va so bre os
c o m p o s ito re s da te rra , e sco lh ia u m a c o is in h a b e m fá c il d o a u to r
p re fe rid o d o p ú b lic o , e to m a v a u m p ro fe s s o r q u e lhe ensinasse a
p ro n ú n c ia das p alavras e o q u e s ig n ific a v a m . O re s u lta d o era a
b o b a g e m m ais la rv a r q u e já se v iu em m ú sica de c a n to .
P ro n ú n c ia p e rfe ita , c o m p re e n s ã o p s ic o ló g ic a geral da tris te z a o u
da a le g ria d o t e x to , mas a ce n tu a çõ e s p s ic o ló g ic a s to d a s erradas,
v a lo riz a ç ã o to n ta de palavras, p o n tu a ç õ e s to d a s falsas, o
escancara m e n to s u m á rio d o c a b o tin is m o . P o ré m , m eu D eus!
c o m o ela tra b a lh a ra h o n e s ta m e n te essa d e s o n e s tid a d e ! E
S io m a ra Ponga d o rm ia sem re m o rso s. N ã o tin h a a m e n o r
in q u ie ta ç ã o . Ja m a is se p ro p u s e ra c o m le a ld a d e q u e a rte não
q u e r d iz e r fa z e r b e m fe ito , mas fa ze r m e lh o r. O fa z e r b em e
c e rtin h o lhe sossegava u m a c o n s c iê n c ia fá c il, o c o n fo rm is m o
d o m e s tic a d o , a s u b se rviê n cia às classes d o m in a n te s . Era a do ra da
dos p o lític o s e dos m ilio n á rio s , a q u e m não causava o m e n o r
in c ó m o d o , rica . Era a d o ra d a das m o c in h a s q u e e stu d a va m
c a n to , q u e se p ro je ta v a m n ela, e pelas v e lh ic e s que a tin h a m
v is to b rin c a r de e scon de -e scon d e em p e q u e n a . Praquê mais?
V irtu o s e s assim não e x ig e m m ais.
Encontro no Parque

A p res e n ta çã o dos dois


personagens não
c o n f orm istas. Ser artista
responsabilidade atual.
T écn ica e artesan ato .
C ep ticism o de J an jã o
a ta ca d o por P astor Fido.
O c o m p o s ito r J a n jã o se d irig ia para o so la r de in v e rn o da
m ilio n á ria Sarah L ig h t. la c a lç â n tib u s , passo irre g u la r e
apressado. Estava n e rvo so . M ais q ue n e rv o s o : a p e rsp e ctiva
d a q u e le b a n q u e te em q u e ia se e n c o n tra r c o m o ilu s tre p o lí t ic o
F e lix de C im a e a g ra n d e c a n to ra S io m a ra Ponga, lhe dava u m
s e n tim e n to c o n t r a d it ó r io de s o lid ã o . Jam ais o c o m p o s ito r não
se s e n tira tã o s o z in h o c o m o n a q u e le d o m in g o em q u e vá rio s
personagens das'classes d o m in a n te s o a c o lh ia m para p ro te g ê -lo .
Ele c o n s ta ta v a m u ito b e m q u e p ro te g ia m as a rte s p o r causa da
m isé ria d e le , e não ele p o r causa das a rte s, c o m o deve ser. A
sensação da e sm o la b a tia na cara d ele, e am argava.
J a n jã o atravessava o p a rq u e . N ã o h avia n in g u é m nos ja rd in s ,
nem o p e rá rio s n em cria n ça s re c e b e n d o vid a d o ar p o rq u e c o n fo rm e
os co s tu m e s da te rra , to d a a gen te se conse rva va fe c h a d o em casa
aos d o m in g o s , p ra e v ita r re s fria d o s . O p a rq u e estava d e s e rto na
sua c o m p o s tu ra a lin h a d a , sem á rvo re s, sem so m b ra s, c o m seus
g ra m a d o s in s íp id o s e a d is c ip lin a das a rv o re ta s tosadas.
D e re p e n te J a n jã o e s c u to u u m s u s p iro e em seguida a f lo r
fe liz d u m p a la v rã o , p a ro u . A lg u m a s hastes da m o ita a in d a
m e x e ra m u m b o c a d o n o ar sem v e n to , d e p o is tu d o ca iu na
im o b ilid a d e o u tra vez. Ja n jã o se a p r o x im o u , e c o m os braços
c o m p rid o s a p a rto u a m o ita p e lo m e io .
— O q u e vo cê está fa z e n d o a í!
— V o c ê está v e n d o .
N o ch ã o da m o ita vice ja va u m ra p a z de seus v in te anos,
r in d o pra ele.
— V o c ê rião te m o n d e d o r m ir , ra p a z ! O u isso é fa rra ? . . .
— É tu d o ju n to .
— Q u e m é você?
— Eu?. . . (O m o ç o e s p re g u iç o u , se m p re s o rr in d o ) . Eu sou
a m o c id a d e , eu sou o a m o r. . . E u sou a M osca A z u l, de
M a ch a d o de A ssis, vo cê já co n h e ce . . . Pra to d o s os e fe ito s
p ú b lic o s e ju r íd ic o s , sou b ra s ile iro , m a io r, q u in ta n is ta de
D ir e ito , v e n d e d o r de a p ó lic e s da C o m p a n h ia de S eguros A
In fe lic id a d e , e m e c h a m o P astor F id o .
— E s tu d a n te e v e n d e d o r de a pó lice s. . .
— Pois é, se nhores ju ra d o s : o réu p recisava v iv e r.
— Mas p o r q u e vo cê não e sco lh e u u m a p ro fis s ã o m ais
a fim c o m os seus e s tu d o s !
— O m e u d e s tin o era a im p re n s a , eu s in to ! D iz e r a ve rd ad e
v e rd a d e ira ao p o v o , d e p o is q u e o te a tro d e ix o u d e e n s in a r e o
c in e m a fa z q u e s tã o de não e n s in a r. O m e u d e s tin o é a im p re n sa ,
m as nem a im p re n s a d iz a ve rd a d e m a is, d e p o is q u e e n tro u para
o G E L O ! Q u a l a m ig o !. . . A m o c id a d e de h o je está co n d e n a d a .
O u a p ó ia os d o n o s da v id a o u v ira a q u ilo q u e vo cê sabe.
— E você, o q u e p re fe riu ?
— V ir e i a q u ilo ( M u ito b a ix in h o , já n ão r in d o ) . E u sou a
m o c id a d e , sou o a m o r. . . V e n d o a p ó lic e s da C o m p a n h ia de
S eguros A In fe lic id a d e , Mas, e você, a m ig o ? V o c ê q u e m é?
— E u sou c o m p o s ito r.
O m o ç o c a iu na risada.
— P u xa ! c o m p o s ito r c o m u m c o rp o desses!
— Q ue te m o m e u c o rp o c o m a m in h a m ú sica ?
— De fa to não te ria nada e a té c o m esse c o rp o a g e n te
p o d e ser m ú s ic o b o m , mas d u v id o . V o c ê , p ra m ú s ic o , é
a n tip á tic o à p rim e ira v is ta , c o m o é que vai re u s s ir? V o c ê não
te m o " p h y s iq u e d u r ó le " , a m ig o . C o m esse c o rp ã o e s q u ip á tic o ,
f e ito aos p edaços, d os q ua is n e n h u m p e rte n c e a u m m ú s ic o seu
fa d o é fe it o o m e u , desgraça. O lh e : eu já te n h o u m a e x p e riê n c ia
e n o rm e da v id a , m e s in to o c to g e n á rio . . . A f in a l das c o n ta s não
sou fe io , vo cê está v e n d o , e te n h o a m o c id a d e a m e u fa v o r. Mas
lh e ju r o q u e já estava n u m e m p re g o b em m e lh o r, si não tivesse
esta v e rru g u in h a no n a riz , c o m o R o n a ld de C a rv a lh o . Eu a in d a
h e i-d e fa z e r u m ensa io so bre a p re d e s tin a ç ã o fis io ló g ic a dos
in fe liz e s . Já a rra n ja ra m isso p ro c r im in o s o n a to , mas L o m b ro s o
é u m a besta. E x is te u m a in fe lic id a d e m o to ra . A in fe lic id a d e
m o to ra está nas ve rrug as, d o u m in h a p alavra de h o n ra . V o cê
é fe io , seu m ú s ic o .
— Vam os andando. . .
O c o m p o s ito r estava m e io d e s a p o n ta d o . P r in c ip io u
a ju n ta n d o as coisas d o P a sto r F id o , esparsas, u m a p a s ta z in h a de
c o u ro d e que escapavam a p ó lic e s , u m a escova de d e n te s , u m
p o n tin h o , e u m liv ro q u e eram as "R e fle x õ e s so bre a V a id a d e ".
F o ra m a n d a n d o . Pra d is fa rç a r, Ja n jã o p e rg u n to u :
— V o c ê a in d a lê M atia s A ire s ?
— N ão sei. . . M atia s A ire s é ca m a ra da . E le causa u m m al
cistar g o sto so d e n tro da lite r a tu r a p o rtu g u e s a . M a tia s A ire s
in t r o d u z a in te lig ê n c ia e m P o rtu g a l. . . N ã o ! não q u e ro d iz e r
q u o os clássicos p o rtu g u e se s n ã o possuam m u ita s q u a lid a d e s de
e n te n d im e n to , mas a in te lig ê n c ia não é apenas isso.
I*i in c ip a lm e n te a in te lig ê n c ia a rtís tic a , q u e há-de se m p re
lu n c io n a r im p u ls io n a d a p o r u m g ra nd e a m o r.
Os clássicos p o rtu g u e se s são b e m m o n ó to n o s . . . A s vezes
d u m a su avida de e s tilís tic a m a ra v ilh o s a c o m o F re i L u ís de
Sousa, às vezes d u m a v iv a c id a d e a d u n ca q ue n e m V ie ira , d u m a
a ir te z a de e xpressã o s o la r q u e n em J o ã o de B a rro s , mas, c o m a
oxct?ção m ira c u lo s a de C am ões, não são in d iv íd u o s a m o ro s o s ,
não são sensuais. A fa lta de a m a b ilid a d e d ia n te da v id a é um a
c a ra c te rís tic a d o clássico lu s ita n o , em c o n tra s te c o m a
in te lig ê n c ia p o rtu g u e s a n o g e ra l, que é tã o se nsíve l. G o s to de
p o rtu g u ê s . Já n e m fa lo d u m C a s tilh o , d u m H e rc u la n o
fic c io n is ta , d u m F e lin to , q u e são b u rrís s im o s , mas q u e d ia b o !
esses clássicos p o rtu g u e s e s n ã o c o m p re e n d e m ! N ã o lhes fa lta
s e x u a lid a d e in te le c tu a l, mas se n su a lid a d e , g o z o , a m o r, a m o r da
v id a , e desse a m o r se m o rre . Si G o nza ga nasceu e m P o rtu g a l e
G o n ça lve s D ias n o B ra s il: este é b em m ais p o rtu g a c o m o
in te lig ê n c ia q u e o p r im e ir o . G o nza ga , apesar da d is tâ n c ia da
e xpressã o lin g u ís tic a q u e n os separa d e le , a g e n te p e rce b e q u e
ele am a a in fe lic id a d e q u e s o fre , da m esm a fo rm a q u e Á lva re s
de A z e v e d o a m a a in fe lic id a d e q u e im a g in a . O a m o r é u m a
fa c u ld a d e p rin c ip a lís s im a da in te lig ê n c ia seu J a n jã o .
— Eu se i!. . .
— V eja b e m q u e n ão fa lo o se xo , mas o A m o r ! Ele é q u e
fo rm a a in te lig ê n c ia c o m p le ta d a , o e q u ilíb r io v io le n to de to da s
as fa c u ld a d e s e d e s tró i n o in d iv íd u o , q u e é p o r n a tu re z a u m
" c o n s e r v a d o r " , esse p r in c í p io re p u g n a n te de jo g a r no c e rto , o
a c a d e m is m o . M a tia s A ire s le v o u p ro cla s s ic is m o p o rtu g u ê s a
s e n su a lid a d e , a s e n s ib ilid a d e in te le c tu a l. E d isso p ro v é m a
q u a lid a d e c u rio s a d e le , q u e é te r s id o u m m o ra lis ta a m o ra l. N ão
f o i de fa to u m m o ra lis ta , e s im u m o b s e rv a d o r a p a ix o n a d o dos
s e n tim e n to s h u m a n o s . N ã o te m nada dessa c o n te m p la ç ã o
in d iv id u a lis ta q u e fa z c e rto s e s p írito s d e sa m o ro so s, e p o r isto
in se g u ro s de si, re a g ire m c o n tra tu d o e c o n tra si m esm os, p elo
h u m o u r , pela d ú v id a , p e la in d ife re n ç a falsa. M a tia s A ire s não
tin h a n ada d isso , mas ta m b é m n ã o tin h a nada dessa falsa v o n ta d e
a p o s tó lic a , s im p le s m e n te c ré d u la , s im p le s m e n te s u p e rs tic io s a , que
fa z os m o ra lis ta s a p o n ta re m os m ales so cia is o u in d iv id u a is na
in te n ç ã o d e c o n s e rta r a lg u m a coisa. M esm o d e n tr o da " A r t e de
F u r t a r " a g e n te p e rce b e o in d iv íd u o im p o r ta n tã o , que p re te n d e
e x e rc e r na te rra a tir a n ia d iv in a d u m a V e rd a d e in a m o v ív e l. N ão
c o n v id a à c o rre ç ã o : ca stiga . N ã o p ro p õ e u m a s u p e ra ç ã o : d e n u n c ia .
N ã o está d o la d o d a C a rid a d e , está d o la d o da E sp e ra n ça , q u e é
u m a v irtu d e e s v e rd in h a d a e c o n fo rm is ta . Eu c re io até q u e a
E sp era nça f o i e n x e rta d a e n tre as v irtu d e s apenas p ra c o m p le ta r
essa obsessão h u m a n a d o n ú m e ro trê s . Só e x is te u m a v irtu d e , c o m
q u e a F é se c o n fu n d e , é C h a rita s , v e rm e lh a , in c e n d ia d a de a m o r!
V ie ira c o n c lu i em fa v o r d u m a cre n ça , c o n c lu i p e lo B e m , é
c o n c lu s iv o . Mas M a tia s A ire s é a p r io r ís tic o , c o m o as ve rrug as. Ele
am a e se p ro je ta . E le n ã o ataca , n em p o r assim d iz e r d e n u n c ia a
va id a d e , p o rq u e se c o m p ra z s u tilm e n te em o b se rvá -la . A s
" R e fle x õ e s " são u m liv r o de in tro s p e c ç ã o q u e se h u m a n iz a . Fez
a rte v e rd a d e ira — q u e é o a m o r da v id a , se g u n d o T ilg h e r. . .
— V o c ê é b e m le v ia n o . . .
— S o u leve. Eu so u a m o c id a d e , eu sou o a m o r. . . Mas,
p a p a g a io ! você não ch a m a J a n jã o !
— C ham o.
— E n tã o vo cê é o g ra n d e c o m p o s ito r J a n jã o , n e m tin h a
lig a d o . T a m b é m só de ra ro e m ra ro se escuta u m a o b ra de
você. A ú ltim a vez fo i a q u e le im p a g á ve l " E s q u e rz o
A n tifa c h is ta " , não fo i? P o rq u e não e x e c u ta ra m m ais o
e squ erzo?
— P o rq u e c o m o ele não e m p re ga as co rd a s , os p rim e iro s
v io lin o s da o rq u e s tra p ro te s ta ra m p e r não a p a re ce r.
— J a n jã o , o nosso g ra n d e c o m p o s ito r n a c io n a lis ta !
— N ão sou n a c io n a lis ta , P astor F id o , sou s im p le s m e n te
n a c io n a l. N a c io n a lis m o é u m a te o ria p o lític a , m e sm o em a rte .
Perigosa para a so cie da de , p re c á ria c o m o in te lig ê n c ia .
— V o c ê co n h e c e a qu e la fra se de V la m in c k ? “ E m a rte ,
as te o ria s tê m a m esm a u tilid a d e q u e as re c e ita s d os m é d ic o s :
pra a c re d ita r nelas é p re ciso estar d o e n te " . . .
— N ão é b e m isso. O u p o r o u tr a , a a rte é q u e está
s e m p re d o e n te . Pois da m esm a fo rm a q u e a d o e n ç a é um a
fa lta de in te g rid a d e fís ic a : é u m a das fa lta s de p e rfe iç ã o da
v id a h u m a n a q u e nós b usca m o s re m e d ia r p o r m e io da a rte .
Mas não e x is te u m só a rtis ta g e n ia l q u e n ã o te n h a u m a te o ria
de a rte , que p o d e m o s d e d u z ir através das o b ra s e d o s a to s
d ele. O a rtis ta n ã o precisa n em deve te r u m a “ e s té tic a " ,
e n q u a n to esta p a la vra im p lic a u m a filo s o fia d o B e lo in te irin h a ,
u m a o rg a n iz a ç ã o m e tó d ic a e c o m p le ta . Mas si n ão deve te r
u m a e s té tic a , o a rtis ta deve se m p re te r u m a estesia. U m a
e s té tic a d e lim ita e a tr o fia , u m a estesia o rie n ta , d e fin e e
c o m b a te . A a rte é u m a d o e n ç a , é u m a in s a tis fa ç ã o h u m a n a : e
o a rtis ta c o m b a te a d o e n ça fa z e n d o m ais a rte , o u tr a a rte .
" F a z e r o u tr a a r te " é a ú n ica re c e ita para a d o e n ça e s té tica da
im p e rfe iç ã o . O a rtis ta q ue não se p re o c u p a de fa z e r a rte nova
é u m c o n fo rm is ta , te n d e a se a c a d e m iz a r. O im p o r ta n te , n u m a
te o r ia de a rte , é saber u ltra p a ssá -la . R e p a re : M a c h a d o de Assis
n un ca f o i u m m a c h a d ia n o ; mas W agner sossobra quase se m p re ,
q u a n d o se to rn a e s trita m e n te w a g n e ria n o . O a rtis ta não deve se
p ro p o r o p ro b le m a de fa ze r " d if e r e n t e " eu sei, m as n ão e x is te
u m a só o b ra -d e -a rte g e n ia l q u e não seja d ife r e n te . O p ro b le m a
n ã o é fa z e r d ife r e n te , m as fa z e r m e lh o r, q ue é o q u e p ro v o c a
a d ife re n ç a das o b ra s. O a rtis ta q u e n ã o se c o lo c a o p ro b le m a
d o fa z e r m e lh o r c o m o base da c ria ç ã o , é u m c o n fo rm is ta .
P io r! é u m fo lc ló r ic o , c o m o q u a lq u e r h o m e m d o p o v o .
— B o las! você despreza assim o p o v o !
— N ão.
— Mas d espreza o fo lc lo re ?
— N ão.
— -,Mas, c o n tr a p o n ta n d o a qu e la m o d a de v io la c o m o
“ G io v in e z z a " n o “ E sq u e rzo A n tifa c h is ta " , vocé não fe z a rte
p ro p o v o !
— N ão. In fe liz m e n te não. P elo m en os e n q u a n to o p o v o
fo r f o lc ló r ic o p o r d e fin iç ã o , is to é: a n a lfa b e to e c o n se rva d o r,
só e x is tirá u m a a rte para o p o v o , a d o fo lc lo re . E os a rtista s,
os e s c rito re s p rin c ip a lm e n te , q u e im a g in a m estar fa z e n d o a rte
p ro p o v o , não passam d u n s te ó ric o s c u rto s , incapazes de
"u ltrap assa r a -p x fíp rja te o ria 1y Ò ^c fê s tih õ ~ 'g g ra rtis ta e ru d ito não é
fazer_,arte p ro p o v o , mas p ra m e lh o ra r a v id ^J A a rte , m esm o
a a rte m ais p e ssim ista , p o r isso m esm o q u e não se c o n fo rm a ,
é sem pre um a p ro p o s iç ã o de fe lic id a d e . E a fe lic id a d e não
p e rte n c e a n in g u é m não, a n e n h u m a classe, é de to d o s . A a rte
p ro p o v o , p e lo m en os e n q u a n to o p o v o f o r fo lc ló r ic o , há-de
ser a q u e está n o fo lc lo re .
— Mas vo cê em p re ga e le m e n to s fo lc ló r ic o s nas suas
m úsicas.
— Está c la ro ! E m p re g o às vezes, e m b o ra n em sem pre. Mas
sem pre fa ç o m ú sica à fe iç ã o das te n d ê n c ia s m u sica is d o m eu
p o v o , veja b e m . O p o v o é a fo n te , e n q u a n to f o r fo lc ló r ic o . . .
As águas da fo n te são sem pre as mesm as, p o ré m os rio s
c o rre m d ife re n te m e n te . E eu sou o rio . Eu n u n ca m e m e te re i
fa z e n d o isso q u e c h a m a m p o r a í de " a r te p r o le tá r ia " , o u " d e
te n d ê n c ia s o c ia l" . Isso é c o n fu s io n is m o . T o d a a rte é social
p o rq u e to d a o b ra -d e -a rte é u m fe n ó m e n o de relaçã o e n tre
seres h u m a n o s. U m m in u e to de salão, u m s o n e to sobre a
am ada, u m a n a tu re z a -m o rta , tu d o é so cia l. V o c ê fa lo u no m eu
"E s q u e rz o A n t ifa c h is t a " , e só v e n d o os e lo g io s e os ataques
q ue re ce b i p o rq u e estava fa z e n d o “ m úsica s o c ia l" , b e ste ira ! O
q ue eu fiz , c o n s c ie n te m e n te fiz , f o i a rte de c o m b a te isso sim ,
a rte de c o m b a te p o lít ic o . “ S o c ia l" não te m d ú v id a , mas tã o
social c o m o q u a lq u e r o u tra . D is to é q u e os a rtis ta s p recisavam
fic a r b e m co n s c ie n te s , n e m ta n to p ra e v ita r esse c o n fu s io n is m o
da p alavra " s o c ia l" q u a lific a n d o certas m a n e ira s de a rte , e a
a rte de c o m b a te , c o m o p o rq u e isso lhes d e fin ir ia a co n ce p çã o
d o a ssu n to , e a p ró p ria té c n ic a .
— A p ró p ria té c n ic a !
— A p ró p ria té c n ic a . V o c ê se esquece, p o r e x e m p lo , d o
v a lo r d in â m ic o d o in a ca b a d o ? E x is te m té c n ic a s d o acabado,
c o m o e x is te m té c n ic a s d o in a ca b a d o . A s té c n ic a s d o acabado
são e m in e n te m e n te d o g m á tic a s , a firm a tiv a s sem discussão,
c re d o q u ia a b s u rd u m , e é p o r is to q u e a e s c u ltu ra , q u e é p o r
p s ic o lo g ia d o m a te ria l a m ais acabada de to d a s as artes, f o i a
m ais e n s in a d o ra das a rte s d ita to ria is e re lig io sa s de a nte s da
Id ad e M o d e rn a . B íb lia s de p ed ra . . . Pelo c o n tr á r io : o desenho,
o te a tro , q u e são as artes m ais inacabadas p o r n a tu re z a as
m ais a b e rta s e p e rm ite m a m a n ch a , o e sb o ço , a a lu são , a
d is c ussão, o co n s e lh o , o c o n v ite , è o te a t r o a in d a essa cu rio sa
v itó r ia fin a l das coisas h u m a n a s e tr a n s itó r ia s c o m o " ú lt im o
a t o " são artes d o in a c a b a d o , m ais p ró p ria s p ara o
in te n c io n is m o d o c o m b a te . E assim c o m o e x is te m a rte s m ais
p ro p íc ia s para o c o m b a te , há té c n ic a s q u e p ela p ró p ria
in s a tis fa ç ã o d o in a c a b a d o , m a ltra ta m , e x c ita m o e sp e c ta d o r e
o p õ e m de pé. C o m o em c e rto s q u a d ro s d o p in t o r p a u lis ta
A lfr e d o V o lp i, vo cê já viu ? A s té c n ic a s d o in a c a b a d o são as
m ais p ró p ria s d o c o m b a te . V o c ê re p a re a e v o lu ç ã o da
d is s o n â n c ia e da escala d is s o n a n te p o r e x c e lê n c ia q u e é a
escala c ro m á tic a . O c ro m a tis m o na G ré cia era só p e r m itid o
aos g ra n fin o s da v irtu o s id a d e , in c u lc a d o de sensual e
d is s o lv e n te , p r o ib id o aos m o ço s, aos s o ld a d o s , aos fo rte s ; e
P itá g o ra s já d e s c o b rira a sensação da d is s o n â n c ia , a " d ia f o n ia "
c o m o ele fa lo u n o grego d ele. Mas a re p u d io u . E de fa to o
d ita to r ia lis m o , o d o g m a tis m o grego não q u is saber das
d isso n â n cia s. N e m o C ris tia n is m o p r im it iv o , c ria d o r d o
d o g m a tis m o em u n ís s o n o d o c a n to c h ã o . P o rq u ê ? P o rq u e a
d is s o n â n c ia era e m in e n te m e n te re v o lu c io n á ria , era, p o r assim
d iz e r, u m a c o n s o n â n c ia in a ca b a d a , b o ta v a a g e n te n u m a
" a r s is " p s ic o ló g ic a , b o ta v a a g e n te de pé. E de fa to , a té c n ic a
q u e iria se f ix a r no a ta q u e da d is s o n â n c ia e x ig iu
p re lim in a rm e n te o m o v im e n to o b rig a d o de trê s a co rd e s,
p re p a ra ç ã o da d is s o n â n c ia , a ta q u e d ela, e re s o lu ç ã o n u m a
c o n s o n â n c ia fin a l e a firm a tiv a . E agora re p a re h is to ric a m e n te :
Q u a n d o que a d isso n â n cia se s is te m a tiz a na m úsica c a tó lic a ?
Q u a n d o q u e o so m c ro m á tic o , q u e d e ix a in a c a b a d o o
d ia to n is m o d it a to r ia l, p rin c ip ia se n o rm a liz a n d o , usad o para
m e lh o r m o v im e n to das partes? Pois é ju s to na a u ro ra d o
R e n a s c im e n to , nos séculos X I I I e X I V , c o m a Escola de Paris,
c o m a A rs N o va , c o m a "m ú s ic a f ic t a " de F e lip e de V it r y . É
a m ú sica q u e fa z ia m os padres da u n iv e rs id a d e de Paris, que
a b re as p o rta s a to d a essa té c n ic a re v o lu c io n á ria d o in a ca b a d o ,
p o rq u e n a q u e le te m p o e em quase to d o s os te m p o s , as
u n iv e rs id a d e s , se m p re fo ra m fo n te s de re v o lu c io n a rid a d e d o
e s p ír ito . S ó ago ra é q u e te r e s p írito u n iv e rs itá rio s ig n ific a ser
b e m -p e n s a n te e c o n fo rm is ta . É a re v o lu ç ã o d o p e n s a m e n to
liv re d o R e n a s c im e n to q u e e m p re g o u na m ú sica as té c n ica s d o
in a c a b a d o das d isso n â n cia s e d o c ro m a tis m o . T o d a o b ra de
c irc u n s tâ n c ia , p rin c ip a lm e n te a de c o m b a te , não só p e rm ite
mas e xig e as té c n ic a s m ais v io le n ta s e d in â m ic a s d o in a ca b a d o .
O a ca b a d o é d o g m á tic o e im p o s it i v o . i n a c a b a d o é
c o n v id a tiv o e in s in u a n te . É d in â m ic o , e n fim . A rm a o nosso
b ra ç o .
— Mas v o c ê p o d e fa z e r u m a a rte de c o m b a te q u e
a lca nce o p o v o . . .
— N ão c re io , in fe liz m e n te , q u e seja esse o m eu papel de
a rtis ta e ru d ito . P elo m e n o s e n q u a n to o p o v o f o r fo lc ló r ic o ,
c o m o fa le i. S eria m e a d a p ta r fa ls a m e n te a s e n tim e n to s e
te n d ê n c ia s q u e não p o d e rã o n u n ca ser os m eus. Eu sou de
fo rm a ç ã o burgu esa c e m p o r c e n to , vo cê esquece? E pela a rte ,
p e lo c u ltiv o d o e s p ír ito e re fin a m e n to g ra d a tiv o , eu m e
a ris to c ra tiz e i ce m p o r c e n to . M o ra l, in te le c tu a lm e n te , é
in c o n te s tá v e l q u e eu so u u m a ris to c ra ta , m e sm o no s e n tid o
re lig io s o desta p a la vra . Q u e ro d iz e r: o h o m e m q u e fa z a " s u a ''
m o ra l, só a c e ita a " s u a " v e rd a d e , n u m a lib e rta ç ã o in d ife re n te
a q u a is q u e r. . . "re p re s e n ta ç õ e s c o le tiv a s " . O q u e , tu d o , não
im p e d e , está c la ro , a e x is tê n c ia d u m e le v a d o senso m o ra l, d u m a
m o ra l e le v a d ís s im a em m im , e u m a ve rd a d e c o le tiv a . C o m o em
E p ic u ro . . . C o m o e m R ik iú . . . S im p le s m e n te p o rq u e , p o r isso
m e sm o q u e só re s p e ito a " m in h a " lib e rd a d e e não posso me liv ra r
d e la , sucede q u e em sua a ltiv e z ela d ita p ra m im u m a ve rd ad e e
u m a m o ra l q u e c o in c id e m n ece ssa ria m e n te em m u ita s partes,
c o m o B e m e a V e rd a d e . Essa c o in c id ê n c ia não p o d e siq u e r m e
d e s p e ita r, s iq u e r m e ir r ita r , p o is o q u e im p o r ta é e x c lu s iv a m e n te
a c o n s c iê n c ia , o s e n tim e n to , o u m e lh o r: a e v id ê n c ia da m in h a
lib e rd a d e . E n fim : sou m e sm o u m in d iv id u a lis ta , na m a io r
desgraça e g ra nd eza d o te rm o , n a q u ilo q u e posso , q u e d evo
c h a m a r, sem m o d é s tia fa ls a : m in h a s a b e d o ria . . .
— Mas e n tã o p o rq u e vo cê escreveu o "E s q u e rz o
A n t if a c h is t a " o u a q u e la " S in fo n ia d o T r a b a lh o " tã o p o p u la r
c o m o c o n c e p ç ã o d o a s s u n to , e x a lta n d o as fo rm a s p ro le tá ria s
da v id a !
— M eu D eu s! M eu D eus! q u e a titu d e to m a r d ia n te das
fo rm a s novas, c o le tiv a s e so c ia lis ta s da vid a q u e e n c e rra m pra
m im quase to d a s as vozes v e rd a d e ira s d o te m p o e d o fu tu ro ?
. . . Mas vozes " c o le t iv a s " q u e não in te re s s a m ao m eu
in d iv id u a lis m o n e m p o d e m m e fa z e r fe liz n e m d e s in fe liz ? . . .
Mas de q u e te n h o de p a r tic ip a r, p o rq u e a isso m e o b rig a a
m in h a p ró p ria sa tis fa ç ã o m o ra l de in d iv íd u o ? . . . É a
su p e ra çã o d o b o n e c o . P a sto r F id o , é a s u p e ra çã o d o b o n e c o !
M e f i z b o n e c o , e n tre g u e às m ãos das fo rm a s novas e fu tu ra s
da v id a , fo rm a s de q u e te n h o a c e rte z a , sem te r a c o n v ic ç ã o .
T u d o está em ser b o n e c o c o n s c ie n te da sua b o n e q u ic e , o que
ta m b é m é u m a p a ix ã o , é a m o r e desse a m o r se m o rre . . . É a
“ s e rv itu d e e g ra n d e u r m i/it a ir e s ” d o a rtis ta q u e só p o d e estar
s a tis fe ito da sua lib e rd a d e e da sua in d ife re n ç a ao B e m e ao
Ma*, n essa c o n tra d iç ã o trá g ic a de c u m p r ir o seu d e ve r. V o cê
f a lo u no a m o r, fa z p o u c o . Pois n ã o se esqueça q u e o A m o r
p a r tic ipa das m a n ife s ta ç õ e s da p ró p ria in t e lig ê n c ia . Q u a n d o
voce fa íò u nisso, eu s e n ti c o m o q u e u m a ilu m in a ç ã o em m im .
Eu não a m o o p o v o , e n q u a n to este é u m a pessoa m ais um a
pessoa, m ais u m a pessoa. Estas pessoas só p o d e m desagradar
ao m eu re fin a m e n to pessoal, ao m eu a ris to c ra c is m o e s p iritu a l.
N e m q u e ro te r co m is e ra ç ã o delas, p o rq u e is to seria m e
a n iq u ila r na b a lo fa c a rid a d e e s m o le r d os c ris tã o s , q u e
s u b s titu ír a m in te re s s a d a m e n te C h a rita s pela e sm o la . Eu apenas
e x ijo u m a ju s tiç a m ais s u p e rio r, q u e não co nse gu e negar a
fa ta lid a d e das classes e n q u a n to c la s s ific a ç ã o da v a lid a d e
in d iv id u a l dos h o m e n s e m g ru p o s c o le tiv o s — coisa q u e quase
p e rte n c e à H is tó ria N a tu ra l — mas ju s tiç a a q u e re p u g n a e
suja a p re d e te rm in a ç ã o classista, m a n tid a pelas classes
d o m in a n te s . P o rq u e isso não está de a c o rd o , n ã o p o d e ria
n u n ca e star de a c o rd o c o m a " m in h a " ve rd a d e . N e m é
q u e s tã o de ju s tiç a ! A ju s tiç a , essa ju s tiç a d o s h o m e n s , tã o
b em desenhada na a le g o ria da m u lh e r c o m vendas nos o lh o s ,
m e re p u g n a . P o rq u e _CQ.ro.P- a rtis ta , c o m o in te le c tu a l eu sou u m -
fo ra -d a -le i, tã o fa ta liz a d a m e n te in c o n fo r m a d o c o m o vo cê c o m
à ve rrug a d o seu n a riz . T a lv e z seja h o r rív e l d iz e r: m as eu a m o
o p o v o p o rq u e ele é um a p ro je ç ã o de m im , a m o ele e n q u a n to
ele fa z p a rte apenas dessa h u m a n id a d e q u e eu não so u , mas
q u e e x ijo , p o rq u e só e x is to p o rq u e f iz ela e x is tir . O a rtis ta é
re a lm e n te o ú n ic o p ro fis s io n a l q u e c ria a h u m a n id a d e , e é
c o n d ic io n a d o pela sua c ria tu ra . Os c o n q u is ta d o re s de p o vo s,
q u e r p o r m e io da g ue rra q u e r p o r m e io d o c a p ita lis m o , não
c o n c e b e m a h u m a n id a d e , n e m eles! P o rq u e são p o r n a tu re z a
in te rn a c io n a is . Só o a rtis ta in v e n ta a h u m a n id a d e . P o rq u e
sendo o u t- la w , e x tra -e c o n ô m ic o p o r n a tu re z a , sem classe p o r
n a tu re z a , sem p o v o p o r n a tu re z a , sem n açã o, o a rtis ta não
d e ix a p o r m e n o s: o q u e ele e xig e é a h u m a n id a d e . E u sou u m
desg ra çad o, P a sto r F id o . Eu sou o d e sg ra ça d o , c o m o D eus. A
m in h a c o n s c iê n c ia m o ra l e in te le c tu a l e x ig e de m im p a r tic ip a r
das lu ta s h u m a n a s. E eu p a r tic ip o . S o lic ito a v e rd a d e e pela
sín te se das o b ra s de a rte , p ro p o n h o u m a v id a m e lh o r e c o m b a to
p o r. E u , re p u d ia n d o os n a c io n a lis m o s , pela m in h a p ró p r ia
e x ig ê n c ia de h u m a n id a d e n o e n ta n to m e e s fo rç o e m ser n a c io n a l,
c o m o D eus se c o n s tra n g e n o " n a c io n a lis m o " das re lig iõ e s . O
C a to lic is m o , neste s e n tid o , é tã o in te lig e n te e a rtis ta , q u e se
c h a m o u d e " c a t ó lic o " , " c a th o lik ó s ” , c o m p re e n d e n d o a
u n iv e rs a lid a d e , a h u m a n id a d e d o D eus. . . E eu p a r tic ip o !
— C o n s tra n g id o . . .
— N ão, P astor F id o , eu não e s to u c o n s tra n g id o n ã o !
T a lv e z n em D eus esteja c o n s tra n g id o . . . E u não e s to u
c o n s tra n g id o , mas " e x ig id o " pela m in h a p ró p r ia v e rd a d e de
m im , de a rtis ta . Eu a m o essa h u m a n id a d e q u e eu in v e n te i, eu
a m o c o m ra iv a ! Eu a m o a p a v o ra d a m e n te , P a sto r F id o , eu
te n h o m e d o ! eu te n h o m e d o dessa re a lid a d e m o n s tru o s a que
é m ais f o r t e q u e eu!
O c o m p o s ito r Ja n jã o parara no m e io da e stra da ,
m o rd e n d o a m ã o pra e v ita r a fra q u e z a da lá g rim a . O m o ç o
te ve d ó . S o rriu sem e v ita r u m p o u c o da iro n ia , o lh a n d o
aqueles ossos, ossos fís ic o s , ossos in te le c tu a is , ossos m o ra is,
m o n tu r o de ossos, tã o sensual, tã o c o n tr a d itó r io e b em
m e s q u in h o . F e riu , p o r p ie d a d e :
— E os a rtis ta s a cad ém icos?
O c o m p o s ito r J a n jã o a b riu para o ra p a z, os o lh o s
ú m id o s . A o s p o u c o s u m a expressão fe ia de asco lh e
d e s m a n c h o u a cara to d a . M u r m u r o u h e s ita n te , c h e io de
e g o ís m o a m o ro s o :
— Esses não são p re lim in a rm e n te a rtis ta s . N ã o são
a rtis ta s , à m a n e ira fa ta l c o m q u e as ve rrug as são ve rrug as. . .
Se fiz e ra m a rtis ta s p o r c a p ita lis m o . N ão são a rtis ta s , são
c a p ita lis ta s . Mas e x is te m a té c a p ita lis ta s g e n ia is, R a fa e l, p o r
e x e m p lo . . . P a g a n in i, Ravel. . . V a m o s a n d a n d o !
Ja n jã o estava b a s ta n te e n v e rg o n h a d o c o m a fra q u e z a q u e
tiv e ra de m o s tra r as suas c o n tra d iç õ e s de a rtis ta , c o n s c ie n te da
se rvid ã o s o cia l das a rte s mas in c a p a z de se lib e r ta r d o seu
in d iv id u a lis m o . C o n tin u o u a n d a n d o , p e rd id o lá n o seu m u n d o
n e b u lo s o , m u rm u ra n d o in d ife re n te ao m o ç o q u e o seguia:
— . . . Já não c o n s e g u iria m ais c o n s tr u ir u m a a rte que
interessasse d ire ía m e n te as massas e as m ovesse. . . O m e lh o r je ito
d e m e u tiliz a r , de a c a lm a r a m in h a c o n s c iê n c ia liv re , im a g in o que
será fa z e r o b ra m alsã. . . M alsã, se c o m p re e n d e : n o s e n tid o de
c o n te r germ es d e s tru id o re s e in to x ic a d o re s , q u e m a le s ta riz e m a
v id a a m b ie n te e a ju d e m a b o ta r p o r te rra as fo rm a s gastas da
so cie da de . O bras q u e e n tu s ia s m e m os m a is n o v o s , a in d a capazes
de se c o le tiv iz a r. e os d e c id a m a u m a ação d ire ta . . .
. . . Na ve rd a d e o p e r ío d o d e s tr u tiv o das a rte s a in d a não
a ca b o u . N e m m esm o para os m o ço s q u e já tiv e ra m o u tra s
fa c ilita ç õ e s c o le tiv a s e b e b e ra m c o m o le ite m a te rn o , os leites
e ve ne no s das id e o lo g ia s so cia is novas. Eles ta m b é m , nestas
paragens, só p o d e m d e s tru ir, só agem d e s tru in d o . O ra si pra
eles q u e já são so cia lista s de fa to , já são " f is io lo g ic a m e n te "
c o le tiv is ta s , a ação te m sid o d e s tru iç ã o e c o m b a te , q u a n to
m ais p ra u m c o m o eu, q u e p o r m ais c o le tiv is ta de
p e n s a m e n to , não passo d u m b u rg u ê s de fa to ,
" fis io lo g ic a m e n te ” b u rg u ê s. Pra m im as fo rm a s d o f u t u r o
serão se m p re u m m e a tira r n o a b is m o . . . E u não posso me
id e n tific a r c o m esse f u t u r o q u e eu sei, q u e to d o s sabem ,
há-de v ir. Só fa z e r o b ra m alsã. . . T e o ris m o s , c o n s tr u ir , seria
um a fa ls ific a ç ã o in s u p o rtá v e l de m im . . .
O e n g ra ça d o é q u e os que c h a m a ra m aos m o d e rn is ta s de
" d e s tr u id o r e s " assim c o m o os m o d e rn is ta s q u e se im a g in a ra m
ta is, to d o s se enganaram . Na ve rd a d e , e m b o ra d e s tru in d o
cânones e escolas de a rte , e m b o ra d e s tru in d o ce rta b u rric e da
rig id e z m o ra l e in te le c tu a l, já in ú te is , da b urgu esia , o q u e se fe z
fo i sem pre c o n s tru ç ã o a se rviço dessa m esm a b urgu esia . Só o
" s in to m a " , P a sto r F id o , só o " s in t o m a " re v o lu c io n á rio te ve
fu n c io n a lid a d e d e s tru tiv a para o e s p í r it o d e re v o lta e d e s tru iç ã o
de agora. P o r o n d e a in d a se p ro va q u e as té c n ic a s d o in a c a b a d o
são c o m b a tiv a s . . . M as n in g u é m fo i m ais sensato q u e a qu ele
p o e ta q u e n o seu p rim e iro liv ro m o d e rn is ta , a firm o u q u e o
verso liv re não v in h a a cab ar co m o m e tr ific a d o , mas se
a cre scen ta va a este c o m o u m a riq u e z a a m ais. E is to é
c o n s tru ç ã o . P a sto r F id o ! É riq u e z a " a m a is ", c a p ita lis m o !
Sem d ú v id a , é p o ssíve l c o n tin u a r c o n s tr u tiv o n a q u ilo em
q u e a m in h a o b ra a in d a te rá de té c n ic a . E x is te u m a té c n ic a
p o p u la r, u m a té c n ic a de e s p ír ito fo lc ló r ic o , fa ta lm e n te
tr a d ic io n a l, a rte san a l p o r p r in c íp io . É o a rte s a n a to . Mas esta
té c n ic a , n ascida d o m a te ria l e da o b ra -d e -a rte , não é
e x c lu s iv a m e n te p o p u la r, p o is não d e riv a d o h o m e m mas d o
o b je to . P o ré m m esm o a té c n ic a expressiva e in d iv id u a lis ta , não
é n ece ssariam en te b urgu esa c o m o não é n ece ssariam en te
a ris to c rá tic a o u p ro le tá ria . É a-classista, é p ara-classista, p o r
isso m esm o q u e a sua fa ta lid a d e é o in d iv íd u o . O q u e sucede
p o ré m é q u e m u ita s vezes os d o n o s da vid a se a p o d e ra m
dessas té c n ic a s in d iv id u a is , as a u x ilia m e p ro p a g a m , ju s to
p o rq u e elas p o d e m ser d e se n vo lvid a s para o p ro v e ito da scra ^
classe deles. Os " f a u v e s " de to d a s as artes, não sãá^ f a u v e s ^
e x a ta m e n te p o rq u e tin h a m u m a visão irr e d u tív e l d o m u n d o ,
mas p o rq u e essa visão não era a p ro v e itá v e l n em ú t il aos d o n o s
da vid a . T o d o s os in ic ia d o re s de té c n ic a s e escolas de a rte ,
são " fa u v e s " a p r in c í p io . T ã o " fa u v e s " e ra m J e ró n im o B osch,
u m G re c o , u m S c a rla tti D o m ê n ic o c o m o in ic ia lm e n te o fo ra m
u m G io tt o , u m B u x te h u d e , u m C le m e n ti. Mas se vo cê o bse rva r
o e s p írito , o e s tilo , a o b ra destes ú ltim o s , q u e fo ra m c ria d o re s
de escolas, e a d o s p rim e iro s , que não c o n s e g u ira m c ria r
tra d iç õ e s , vo cê o bse rva q u e n u m B u x te h u d e c o n tin u a d o p o r
B a ch , n u m C le m e n ti c o n tin u a d o p o r B e e th o v e n , n u m G ô n g o ra
c o m o n u m M a n e t, p ro life r a m os germ es d o a c a d e m ism o . N ão
germ es arte san a is, q u e u ltra p a ssa m os h o m e n s e as escolas, mas
os germ es da fa c ilita ç ã o , d o gosto so, d o e ru d itis m o fa lso .
N ão e s to u a ta c a n d o u m G io tto , n ã o ! Ele fo i tã o
" f a u v e " c o m o D o m in g o s S c a rla tti q u e n in g u é m p ô d e seguir
n em a d o ta r. Mas o q u e te m de m ais trá g ic o n o " p o p u lis m o "
desses a rtis ta s fa ta lm e n te a ris to c rá tic o s p o rq u e in te le c tu a is e
e ru d ito s , é q u e esse m e sm o p o p u lis m o vai ser c o n v e rtid o
im e d ia ta m e n te pelas classes d o m in a n te s , e m processos de
d is ta n c ia m e n to so c ia l. D e s p re s tig ia m o q u e tin h a de
e s s e n c ia lm e n te p o p u la r na o b ra e n o e s tilo desses a rtis ta s , e só
a c e ita m o q u e tin h a neles de " p o p u lí s t ic o " , u m a te o r ia !
A m eta desses c ria d o re s in ic ia is de escolas era se m p re o
a s s u n to , na in te n ç ã o de se to rn a re m m ais e fic ie n te m e n te
c o m u n ic a n te s c o m a h u m a n id a d e q u e s o n h a va m . Mas as
e xig ê n cia s d o s d o n o s da v id a lo g o e s c a m o te ia m essa in te n ç ã o
p rim o r d ia l de a s s u n to , e x a lta n d o os pra zeres e s té tic o s da
té c n ic a de m o d o a m asca ra r o São F ra n c is c o de G io t t o num a
d e fin itiv a M a d o n n a de R a fa e l, d e fo rm a r o p ia n o de C le m e n ti
n o p ia n o fin a l de L is z t, o u a o rq u e s tra de B e e th o v e n na de
T s c h a ic o v s q u i. O u m e sm o de M e n d e ls s o h n . . .
V o c ê re p a re . P a sto r F id o : u m M e n d e ls s o h n , u m
T s c h a ic o v s q u i, u m S ant-S aens, m esm o u m R im s q u i, são a
e xpressã o m ais a b u siva , d ig o a té m ais g e n ia l da m e d io c rid a d e ,
d o a c a d e m is m o e da e spe rte za . M ais p e rfe ito s , m u it o ! q u e u m
B e e th o v e n , da m esm a fo rm a q u e R afae l é, d e n tro d o m esm o
e s p ír ito , m ais p e r fe ito q u e G io tt o . S em d ú v id a , esses
m e d ío c re s g en ia is tra z e m u m a c o n tr ib u iç ã o v irtu o s ís tic a
e n o rm e . Mas apenas. C o m p a re u m M e n d e ls s o h n c o m u m
B e rlio z . C o m o este é m ais im p e r fe ito , mas q u e c ria d o r
le g ítim o ! A h , P a sto r F id o , c o m o eu p r e fir o os a u to re s
m e n o re s aos g é n io s m e d ío c re s ! N ã o se p o d e , seria im p o s s ív e l
c o lo c a r M e n d e ls s o h n , T s c h a ic o v s q u i e n tre os m estre s m en ores.
Eles a rro m b a m a m o d é s tia fe liz destes. Mas ta m b é m seria
im p o s s ív e l c o lo c á -lo s n o p r im e ir o tim e d u m B e e th o v e n , d u m
P a le s trin a , d u m R a m e a u . . . P or is to m esm o é q u e a g e n te
p e rce b e a e s tu p id e z fu n c io n a l d e le s : n ã o p e rte n c e m ao segundo
tim e d o s m estre s m e n o re s , mas ta m b é m n ã o p e rte n c e m ao
p rim e iro tim e d u m V e r d i, d u m M o n te v e rd i, d u m M o z a rt.
— E n tã o esses T s c h a ic o v s q u is e M e n d e lsso h n s são
reservas d o p rim e iro tim e ! São n e c ró fa g o s à espera da fa lta o u
da m o rte d os gra nd es, p ra to m a re m e s fo m e a d a m e n te o lugar
deles, e os s u b s titu ír e m em ú ltim a in s tâ n c ia . Isso é q u e eles
apenas são. V o c ê estará c e rto . . . A té c n ic a e xp re ssiva d o
a rtis ta e r u d ito n ã o é classista p o rq u e é p re lim in a rm e n te
in d iv id u a l. N e m ta m b é m a té c n ic a a rte s a n a l, q u e n ã o d ep en de
d o h o m e m , mas d o o b je to . A té c n ic a p o d e n o e n ta n to se
t o r n a r classista, q u a n d o se re p e te , v ira escola e se a cad em iza.
A í , ela se to rn a u m a v irtu o s id a d e . Mas o d ia b o é q u e o
p r ó p r io a rtis ta se re p e te . . . V ira u m v irtu o s e de si m esm o. . .
— Se re p e te , não te m d ú v id a , e este é u m d o s p ro b le m a s
m ais irrita n te s da c ria ç ã o a rtís tic a . Na m a io ria d os casos, p o ré m ,
é fá c il a gente p e rce b e r q u e isso d e riv a de interesses
a n tia rtís tic o s . O c ria d o r p rin c ip ia b e m , c o m o u m C a rlo s G o m e s,
na e v o lu ç ã o G u a ra n i Fosca, m as n ã o consegue lu ta r c o n tra si
m e sm o e o m e io , se a ca d e m iza , v ira c a p ita lis ta , a b a n d o n a n d o
a q u e le p r in c íp io de " fa z e r m e lh o r " q u e já a p o n te i. V o c ê ve ja o
caso de W agner, q u e alcança a m a ra v ilh a d e T ris tã o e m e sm o
d o s M estres C a n to re s , q u a n d o o seu id e a l a r tí s tic o consegue
e n fim se d e fin itiv a r . Mas d e p o is W a g ne r d o r m iu na v irtu o s id a d e
de si m e sm o , v iro u w a g n e ria n o ! E o A n e l e o P a rs ifa l são o b ra s
fracassadas, m e ra re p e tiç ã o , apesar das passagens g en ia is q u e
W agner não p ô d e . . . e v ita r. S im p le s m e n te p o rq u e era g ê n io , era
m a io r q u e si m esm o. . .
— Se dá igu al c o m os g é n io s da c iê n c ia , q u e m u ita s vezes
se a c a d e m iz a m . . . H á h o m e n s q u e se to rn a ra m e te rn a m e n te
d ig n o s da nossa ve ne ra ção p o r te re m d e s c o b e rto a lg um a s
ve rd ad es essenciais. P o ré m m u ita s vezes eles fic a m c o m o q u e
d e s lu m b ra d o s pela ve rd ad e q u e d e s c o b rira m , a g e n e ra liz a m , a
a p lic a m a tu d o . C o m o u m F re u d , p o r e x e m p lo . . .
— F re u d e W agner se e q u ip a ra m .
— E se to rn a m p o r isso in d ig n o s , n ã o da nossa
ve ne ra ção , mas das verdades que d e s c o b rira m . Eu im a g in o
sim , a in s u fic iê n c ia d o lo ro s a em q u e v o c ê vive J a n jã o : eu
agora c o m p re e n d o m e lh o r p o rq u e , fa z p o u c o , vo cê quase
e x c la m o u , c o m o si fosse u m id e a l, essa n ecessidade d o a rtis ta
te r u m a te o ria , mas deve r se m p re u ltra p a ssá -la em seguida.
— T e r u m a te o ria . . . te r m e sm o u m a p e rs o n a lid a d e e saber
u ltra p a s s a r tu d o isso! esta ânsia e sfo m e a d a d e su p e ra çã o . . .
— Mas e n tã o p ro c u ra ao m e n o s se s u p e ra r fa z e n d o a rte
pra esse p o v o q u e vo cê ta m b é m e xig e.
— N ão p ro c u ro , não te n to . Eu p ro c u r o é e n ve n e n a r,
s o la p a r, d e s tru ir, p o rq u e eu a c h o , m ais p re s s in to q u e a cho ,
q u e o p r in c í p io m e sm o da a rte d este nosso te m p o é o
p r in c íp io de re v o lu ç ã o . Os a rtis ta s e ru d ito s q u e se b o ta m
fa z e n d o essa ta l de " a r te p r o le tá r ia " , c o n fu n d e m o p r in c í p io
de re v o lu ç ã o c o m s e n tim e n ta lis m o . C o n fu n d e m C h a rita s c o m
a c a rid a d e e sm o le r. O p o v o , p ra eles, n ã o passa d u m a
s u p e rs tiç ã o . É c e rto q u e o h u m a n o , o u tilita r ia m e n t e h u m a n o ,
é q u e eu p re te n d o . N ã o o " h u m a n o " a c o m o d a tiv o dos
a rtis ta s q u e tu d o c o n v e rte m a va lo re s gerais, os "v a lo re s
e te r n o s " , mas o c o m b a tiv o e tr a n s itó r io . M e sm o o tr a n s itó r io ,
m esm o a a rte de c irc u n s tâ n c ia , m o rta c in c o a no s d e p o is . Q ue
v a lo r m ais te rá esse "E s q u e rz o A n tif a c h is t a " , d e p o is q u e
M u s s o lin i v iro u p ó de tra q u e ? N e n h u m . N e m m e interessa q u e
te n h a m ais a lg u m . A g o ra o q u e m e interessa é isso: e nve ne na r,
a n g u s tia r, s o la p a r, n u m v o lta iris m o e s té tic o q u e a ju d e o u
apresse u m n o v o O ite n ta e N ove. M eu in d iv id u a lis m o
d e s u m a n o , sa b e d o r d o q u e há de safadeza na In te lig ê n c ia (até
na m in h a !) , me tr a z lo g o a n te a vista h is tó ric a , a fig u ra
re p u g n a n te d os n a p o le õ e s d o passado. Mas m in h a lib e rd a d e
m o ra l não te m nada c o m isso. C o n ta r c o m n a p o le õ e s no
f u t u r o é se e s te riliz a r. É e rig ir a d ú v id a c o m o p r in c í p io de
a rte , coisa q u e n ã o p o d e se c o n fu n d ir c o m o " fa z e r m e lh o r " ,
que d e riv a da c e rte za e da ve rd ad e. Já te ve g ra n fin o s e
p e d a n te s da e s té tica q u e d isse ra m ser a a rte u m a m e n tira .
A a rte será se m p re u m a p ro p o s iç ã o de verdades. P o rq u e é u m
fe n ó m e n o de a m o r. N ã o de a m o r se xua l mas dessa C h a rita s
v e rm e lh a , in c e n d ia d a , q u e você tã o b e m a d iv in h o u . C hegam os.
— Q ue casa lin d a ! Mas o n d e é q u e vo cê m e leva!
— V o c ê te m o n d e a lm o ç a r?
— N e m o n d e n em c o m q ue.
— E n tã o ve nh a c o m ig o . Esse m o n s tro q u e vo cê c h a m o u
de lin d o , é a re s id ê n c ia da m ilio n á ria S arah L ig h t, m in h a
a m iga.
— E você ch a m a de m o n s tro essa casa!
— D e te s to a a rq u ite tu ra m o d e rn a . Isso n em te m je ito de
casa!
— Pois é: n o e n ta n to a sua m úsica é a m ais m o d e rn a
p o ssíve l p o rq u e vo cê busca o " fa z e r m e lh o r " , e squ ece nd o
q ue os passadistas m usicais ta m b é m d iz e m q u e "is s o nem te m
je ito de m ú s ic a " ./ Ess^s .d es eq u i I í b r i o s é q u e são deso ne sto s em
vocês, ar tis ta s. / ^ n d a_hej;^e_fi& crever u m p a n fle to b o ta n d o
isso n o rid íc ú T ò /S e re s im p e rfe ito s , in c o m p le to s!} U ns só
e n te n d e m de p in tu ra , n u n ca vão a u m c o n c e rto ; o u t r o é
m ú s ic o m o d e rn o mas d e te sta a a rq u ite tu ra m o d e rn a . Se
esquecem , ig n o ra m q u e só e x is te u m a a rte , é a A r te , de que
as artes não passam de processos de re p re s e n ta ç ã o . O u tro s
esquecem q u e a é p o ca é u m a só, re ve la d a , e x p lic a d a ta n to
pela m úsica m o d e rn a c o m o pela a rq u ite tu ra m o d e rn a . V ocês
são uns d e s e q u ilib ra d o s ! M ais q u e isso, uns d e s c a lib ra d o s , q u e
p o r causa de n ã o se to rn a re m o A r tis ta , mas p in to re s ,
lite ra to s o u m ú sico s são incapazes d u m a a titu d e c r ític a ú n ica .
V o c ê e m m úsica m e fa la rá de d isso n â n cia s, de processos de
in s tru m e n ta ç ã o , d e p o lito n a lis m o s , n u m e x ib ic io n is m o té c n ic o
le g ítim o , mas p ra fa la r d u m a a rq u ite tu ra , fa la rá de
s e n s ib ilid a d e , ro m a n tis m o , re a lis m o , e x ib irá c o n h e c im e n to s de
h is tó ria , c r itic a n d o os m o d e rn o s p o r a n titr a d ic io n a is . V ocês
não tê m c a lib re ! m a ta m o n ç a de a viã o , mas pra m a ta r
p e rn ilo n g o a in d a ig n o ra m a e x is tê n c ia d o f l i t . V a m o s e n tra r.
w u | J l t U I U

J a rd im de In vern o

A sensação estética;
ensinada por S iom ara Ponga
à m ilionária e ao político.
J a n jã o chegava ta rd e , eram p o u c o m en os de q u a to rz e
horas. Desde m u ito q u e Sarah L ig h t estava c o m os d o is
o u tro s c o n v id a d o s , n o seu lin d o ja r d im de in v e rn o c o m o
ch ã o e m largos q u a d ra d o s de m á rm o re s fr io s v e rd e e b ra n c o ,
peles im ensas de tig re s , u m a e sp lê n d id a m o b ília de c ip ó - titic a
fe ita em M anaus, e a m ais d if í c il c o le ç ã o de o rq u íd e a s e de
avencas que n u n ca se v iu .
A li pelas d o z e e tr in t a , Sarah L ig h t d e ix a ra a mesa de
tu a le te , e d e fin itiv a m e n te p ro n ta fo ra se c o n te m p la r no
e sp e lh o g ra n d e . A c ria d a grave m u d a va o d is c o te rm in a d o , q u e
a m ilio n á ria só se ve stia ao som da m ú sica . Era R u b in s te in na
" C a th é d ra le E n g lo u tie " . Sarah L ig h t fe z u m g esto de
im p a c iê n c ia :
— T ire isso, F ra u G lu c k s te in , não m e enerve h o je ,
d escu lp e . P o nha m úsica m ais fra n c a . Os A n tig o s .
— V iv a ld i? . . . C o re lli? . . .
— N ã o ! N ã o !. . . Preciso de ó rg ã o . V io lin o , p ia n o , não
sei. . . m e su a viza m d e m a is, os seios descem , m e
h u m a n iz a m . . . P onha B ach.
E assim q u e e s to u ra ra m no ar as o rd e n s so pradas do
ó rg ã o n u m a u o c a t a m a rte la d a ) a m ilio n á ria p ô d e se
c o n te m p la r. A g o ra a q u e la m úsica lhe fa z ia b e m , e sem m u ita
co n d e s c e n d ê n c ia mas se m p re a lg u m a , S arah L ig h t co n se g u iu
se a cha r lin d a . N ã o e staria lin d a , mas estava b ela. N ã o p o d ia
m ais a s p ira r à beleza da c a n to ra S io m a ra Ponga, q u e era ao
m e sm o te m p o lin d a e b o n ita ; mas a u x ilia d a p e lo s franceses
q u e o u v ia sem e scu ta r e n q u a n to se a rra n ja v a , d era à tu a le te
um a m in u c io s id a d e de c ra v is ta . M ais de D a q u in q u e de
D a n d rie u p o ré m , m ais d o a ltiv o R am eau tã o p u ro , q u e d o
p re c io s o C o u p e rin le G ra n d . Só D a q u in lh e c o n s e g u ira e v ita r
m ais as p rim e ira s ru g u in h a s dos o lh o s . E R am ea u e scolhe ra
u m v e s tid o b ra n c o sem e n fe ite n e n h u m , apenas na c in tu r a o
b o tã o p re to q u e se re p e tia nos sapatos e u m d e c o te tã o
e s q u e c id a m e n te h u m ild e q u e apenas d e ixa va e n tre v e r um as
trê s grossas p érola s d o c o la r. Mas a seda d o v e s tid o era a in da
u m a fa z e n d a rara, e u ro p é ia , não desse b ra n c o de u m a n ú n c io
d e s p u d o ra d o das sedas a m e rica n a s, mas su ja da de re fle x o s
d u m a zu l c in z e n to . Os anéis, o r u b i fa m o s o q u e lhe dera o
m a rid o , a e sm e ra lda q u a d ra d a . . . p o ré m R am ea u n u m a gavota
quase h o n e sta lh e castigava a tr iu n fa lid a d e das jó ia s c o m
ta n ta e ne rg ia q u e Sarah L ig h t r e tir o u os anéis e n ve rg o n h a d a .
Mas R am eau a in d a estava d e s c o n te n te , ela s e n tia . A to n a lid a d e
c o m m u ito s b e m ó is lhe d e m o n s tra v a q u e na sua ida de
c re p u s c u la r as m ãos d e ix a d a s so zin h a s, fic a v a m c o m e s p írito
de p o rc o . A f in a l co n s e g u iu c o m p re e n d e r o c o n s e lh o da
m ú sica . E squeceu na m ão esquerda, q u e a m ão d ir e ita não
enxe rg a mas de q u e se o rg u lh a , u m d ia m a n te apenas, quase
sem a ro , de o ite n ta c o n to s . E e n tã o n o d a -ca p o , d e p o is d o
t r io , a g a vo ta s o o u s a tis fe ita c o m o a v e rd a d e . A g o ra estavam
a v is a n d o q u e a c a n to ra S io m a ra Ponga chegara, mas B ach já
não tin h a in d e c is ã o a lg u m a e re sp o n d e u c o m o q u e m m a n d a :
“ Q u e e s p e re ". S a rah L ig h t v iro u o p e r fil para o e s p e lh o e fic o u
fe liz m as tr is to n h a . A q u e la lin h a apenas o n d u la n te de v e n tre ,
apesar de b em m ais n o v a , ja m a is q u e a c a n to ra te ria , o b rig a d a a
se d e s m a n c h a r n u m a b a rrig a de te n is ta c in q u e n tã o p o r causa d os
e x e rc íc io s vo cais. O c o rp o de Sarah era m il vezes m ais p e r fe ito .
Mas tra b a lh a d o p o ré m . E o v e n tre a d o le s c e n te lhe era d a d o p o r
a q u e la c in ta , apenas u m a via g e m de a viã o, m ais a c ria d a , a N ova
Y o r k . F ic a ra p e lo p re ç o d o b rilh a n te . Mas B ach in ic ia ra o
o s tre to , in s is tin d o n o te m a . A m ilio n á ria e n ch e u os p u lm õ e s de
ar e d e c id iu c o n s ig o : fosse ar o u não, c in ta o u n ão, era m ais
p o d e ro sa q u e a c a n to ra . " F a z fa v o r, p are essa m ú s ic a , F ra u
G lu c k s te in " . N ã o p recisava da m úsica m ais. D esceu.
E n tra n d o no ja r d im de in v e rn o te ve u m d e s lu m b ra m e n to
e lo g o u m a iro n ia . A c a n to ra , sem pre c iu m e n ta de tu d o ,
re so lve ra d a r u m a b o fe ta d a na am iga. Era a q u e le v e s tid o
in t e ir in h o a m a re lo . S io m a ra Ponga estava de a m a re lo ! Era u m
h o r r o r s u b lim e q u e ela a gu en ta va b em , apenas in s is tin d o u m
b o c a d o m ais n o ruge e n o b a to n . S io m a ra Ponga estava de
u m a beleza lo u c a e Sarah L ig h t b em q u e s e n tiu o b o fe tã o .
— O h , m in h a a m ig a , c o m o você está c h iq u e !
A c a n to ra p e rce b e u a m a lva d e z da o u tr a , d e s v ia n d o o
q u a lific a tiv o . C u rv o u a cabeça na g ra fia d u m p u d o r c o n fu n d id o ,
q u is fin g ir m as p re fe riu a a ud ácia de m o s tra r suas in te n ç õ e s :
— Mas q u e rid a , eu não p re te n d i fic a r " c h iq u e " e sim
m a ra v ilh o s a ! A s m in h a s e x tra v a g â n c ia s de tu a le te , a c re d ite , são
b e m c o n s c ie n te s , sou a rtis ta . N ão d e v o te r o b o m g o sto
e q u ilib r a d o c o m q u e o seu a rra n jo de h o je d e m o n s tra séculos
de. . . de sangue e de c u ltu r a , Sarah L ig h t. O b o m g o s to só
pisa em te rre n o b e m fir m e e p ro v a d o . E m a rte a g e n te precisa
se jo g a r no a b is m o . É p re fe rív e l fracassar d u m a vez a
p e rm a n e c e r n o c u id a d o s o da m e d io c rid a d e .
Se a rre p e n d e u da p alavra " m e d io c r id a d e " , d e m a s ia d o
in s u lta n te . Sarah L ig h t a p ro v e ito u o s ilê n c io da o u tra e
re s o lv e u se m o s tra r s u p e rio r. Ela ta m b é m sabia co isa s! A in d a
in c e rta d o q u e iria d iz e r, d is fa rç o u :
— V a m o s se n ta r. . . S e n te m ais p e rto , pra co n v e rs a rm o s
sossegado, e n q u a n to esses h o m e n s não ch e g a m . . . Mas. . . você
te m ra zã o : E m a rte , não d ig o na vid a q u e é o m e u caso, mas
na a rte q u e é o seu: e m a rte o b o m g o sto é u m . . .
— U m a c a d e m is m o se m p re , S a rah . Desse p o n to de vista
eu p r e fir o de m u ito u m a T a rs ila a u m Lasar SegaII, u m V iIla
L o b o s a u m R ave l.
— Mas eu n ã o posso c o m p re e n d e r b e m : você só fa la nos
m o d e rn o s e n o e n ta n to os seus re c ita is são tã o . . . tã o
m a n so s. . .
— A m a n s a d o s , S a ra h L ig h t, a m a n sa d o s: q u e s tã o de s e rv ir o
m e u p ú b lic o . Mas a c re d ite , a m in h a s itu a ç ã o já está se to rn a n d o
in q u ie ta n te . C in c o anos a trá s, eu v e s tiria este a m a re lo sem pensar,
fa z ia p a rte da m in h a v id a de a rtis ta . M as ago ra , passados os t r in t a
anos, eu h e s ito . M e s in to v e lh a p o r d e m a is e te n h o u m m e d o d o
fraca sso q u e n u n c a tiv e . E s to u v e lh a , S arah.
— E n g ra ça d o . . . (S a ra h p re fe riu n ã o c o rre s p o n d e r à
a lfin e ta d a p e lo m e sm o a s s u n to , p e rig o s o pra ela. D e s v io u :)
E n g ra ç a d o , u m m ês a trá s se re a liz o u no B ra s il, não sei se vo cê
o u v iu fa la r, u m C ongresso da M o c id a d e C a tó lic a . Eu fu i
p a tro n n e s s e , m e c o n v id a ra m . Já sabe: p re cisa va m de d in h e iro ,
tiv e q u e d a r. Eu não a c re d ito em nada, p arece in c rív e l q u e
u m a pessoa c u lta a c re d ite , m as e n fim so u c a tó lic a . T iv e q ue
êstar lã T P ó r S ifta T q u e f o i u m a d e m o n s tra ç ã o im p re s s io n a n te
de fé . . . Mas e stive im a g in a n d o , m ais o u m e n o s na o rd e m d o
p e n s a m e n to de v o c ê : e n fim te r fé , te r c o ra g e m , está c e rto nos
m o ç o s , mas o q u e eu c e n su re i n a q u e la m o c id a d e c a tó lic a f o i a
ausência da b u rra d a , p a re c ia m v e lh o s ! A n d o u tu d o m u ito em
o rd e m m u ito e x a to n ã o só d e n tr o d o d o g m a c a tó lic o — o que
a in d a a g e n te p o d e c o n s id e ra r s o c ia lm e n te lin d o — mas d e n tro
d o se n s o -c o m u m c a tó lic o , u m b e a tis m o la rv a r. Isso d e p õ e
c o n tra a a tiv id a d e , a p a ix ã o re lig io s a e a in te lig ê n c ia desses
m o ç o s . U m a das m a n ife s ta ç õ e s bem c a ra c te riz a d o ra s d o
"e s ta d o da ju v e n t u d e " é a b u rra d a , sou d o id a p o r isso. O
e xa g e ro in te m p e s tiv o , á spe ro , s a lta n d o p ra fo ra d o b o m senso:
c o ic e em f lo r da s e n s ib ilid a d e o u da in te lig ê n c ia . . . Isso até
re p e rc u te n o c o rp o da g e n te . E n fim : b u rra d a !. . .
— Pois é. V o lta n d o à a rte : a m a io r c o n q u is ta d o
m o d e rn is m o b ra s ile iro f o i s is te m a tiz a r n o B ra s il, c o m o
p r in c íp io m esm o de a rte , o d ir e ito de e rra r. Q u a n d o a g e n te
e stud a a p s ic o lo g ia d e tr a b a lh o d os a rtis ta s b ra s ile iro s
a n te rio re s ao 1 9 2 0 de São P a u lo , p e rce b e n í t id o q u e a
p re o c u p a ç ã o deles f o i se m p re fa z e r não p ro p ria m e n te o já
fe ito , o já te n ta d o , mas o fix a m e n te d e fin id o . P o uco s se
e x c e tu a m a essa c a rn e iric e c a s tra d a , quase q u e só o g ê n io de
M a ch a d o de Assis. P o rq u e a m ais a tra e n te a v e n tu ra in te le c tu a l
b ra s ile ira , Á lv a re s de A z e v e d o , não c h e g o u a se f ir m a r . Se
p o d e m esm o p ro v a r q u e o q u e m a n d o u nos a rtis ta s b ra s ile iro s
a té 1 9 2 0 , n e m f o i ta n to a a sp ira çã o d e a c e rta r, m as a
p re o c u p a ç ã o de n ão e rra r. É a " C a rta pras Ic a m ia b a s " d o
M a c u n a ím a , co n h e ce ?
— N ão. N ã o g o s to de ler em p o rtu g u ê s . De m ais a m ais,
eu d e s c o n fio q u e a n o rm a liz a ç ã o na p s ic o lo g ia a rtís tic a
b ra s ile ira d o d ir e ito de e rra r, não v e io sem c o n fu s õ e s . N ã o são
as estética s q u e estão me in te re s s a n d o a q u i, mas u m v a lo r de
o rd e m so cia l, de o rd e m m o ra l. Por causa da b u rra d a ser u m a
c a ra c te rís tic a d o e sta d o de ju v e n tu d e , m u ito s desses
m o d e rn is ta s c o n fu n d ira m isso q u e você ch a m a " d ir e it o de
e r r a r " c o m a b u rra d a . V e m d a í essa espécie de slog an
de ju v e n tu d e de ser " e s p í r it o m o ç o " dos q u e não s o u b e ra m
e n ve lh e ce r. T u d o c o n fu s ã o . O m o ç o fa z b u rra d a e possui p o r
c o n s e q u ê n c ia da id a d e o d ir e it o de e rra r. Mas n e m to d o
d ir e ito de e rra r dá d ir e ito à b u rra d a . O d ir e it o de e rra r te m
c o m o co n s e q u ê n c ia a p esquisa, a in o v a ç ã o m as n u n c a , p o r si
m esm o, a d e s o rg a n iz a ç ã o m o ra l, a irre s p o n s a b ilid a d e , o
c in is m o , a in d ig n id a d e . T a m a n h o s ve lh o s a lg u n s, sem a m e n o r
in te lig ê n c ia de e n v e lh e c e r. . . N ão c o n s e g u ira m de fo rm a
a lg u m a r e a d q u ir ir o e sta d o de ju v e n tu d e , está c la ro , m as lhe
m a ca q u e a ra m a v irtu o s id a d e . S o b re tu d o na b u rra d a . . . A liá s ,
eu não g o ste i de ver vo cê a ta c a r o a c a d e m is m o . Si essa g e n te
não tivesse o p re c o n c e ito d o a n tia c a d e m is m o , não c o n fu n d ia
o d ir e ito de e rra r na c ria ç ã o a rtís tic a , c o m a m is é ria de v iv e r
no e rra d o c o m o fo i o q u e fiz e ra m . O a c a d e m is m o é m o ra l.
— V o c ê se interessa ta n t o assim p e lo q u e é m o ra l?
— Me in te re sso , sim s e n h o ra ! De re s to : m ansa o u
"a m a n s a d a " c o m o vo cê d iz , vo cê é u m a a c a d é m ic a .
— Mas eu sou v irtu o s e , S a rah , não sei c o m p o r !
— Mas vo cê ja m a is c a n ta as o b ra s de J a n jã o !
— O ra , mas isso é o u tra co isa , m in h a a m ig a , não é
q u e s tã o de a c a d e m is m o . V o c ê não é c a n to ra , não p o d e saber:
esses c o m p o s ito re s m o d e rn o s não são apenas d if ic í lim o s , são
quase se m p re irre a liz á v e is . V o c ê c o n h e c e as d u a s séries de
"C a n ç õ e s P o p u la re s " d e L u c ia n o G a lle t? São d e líc ia s
v e rd a d e ira s essas o b rin h a s , mas n ão são apenas escabrosas de
se c o n s e g u ir u m a b o a e x e cu çã o v o c a l, c o m b a s ta n te c a rá te r: o
p io r é q u e o a c o m p a n h a m e n to é tã o d if í c i l q u e não só e xig e
u m a c o m p a n h a d o r v irtu o s e v e rd a d e iro , c o m o c o m p le ta m e n te
e sco la d o no je ito m u s ic a l b ra s ile iro de r itm a r . T o c a n d o apenas
c o m o está, sem d e n g u e , sem o r u b a to f o lc ló r ic o d os
b ra s ile iro s fic a d u r o , c o m p lic a d o , m e d o n h o . N ã o re s u lta ! Eu
c a n te i a co le ç ã o to d a u m a vez, n o R io p ra a g ra d a r o p o b re
d o G a lle t. F o i u m a ’ m a ra v ilh a p o rq u e ele m e a c o m p a n h o u .
M as d e p o is ja m a is co n s e g u i, m e sm o n o B ra s il, e n c o n tra r
a c o m p a n h a d o r q u e soubesse fa z e r c o m o o G a lle t fa z ia .
N in g u é m q u e r fa z e r p ro fis s ã o de a c o m p a n h a d o r n o B ra sil.
Q u e m se pega to c a n d in h o u m b o c a d o m e lh o r, já pensa q u e é
so lista . N ão te m u m a c o m p a n h a d o r q u e p re ste lá. Só o
M ig n o n e e o G u a rn ie ri, mas estes são c o m p o s ito re s . E não
pense q u e is to se dá só c o m a vo z. A m úsica m o d e rn a
in s tru m e n ta l é in te re s s a n tís s im a na le itu ra , n ão c o n te s to , mas
vão to c a r e m u ita s vezes não “ re n d e ” , p o rq u e esses
c o m p o s ito re s a tu a is na m a io ria c ria m em a b s tra to , sem se
d o b ra r às e xig ê n cia s n a tu ra is dos in s tru m e n to s , n em lhes
a p ro v e ita r as q u a lid a d e s p ró p ria s . E m u ito m en os da voz.
— V iv a P u c c in i!
— V iva P u c c in i, p o is n ão ! Esse v a lo r im e n s o ele teve,
c o m o o tiv e ra m B a ch , M o z a rt, P a le strin a , V iv a ld i, to d o s os
a n tig o s , e u m ra ro R ave l, u m ra ro S trauss em nossos dias.
— V o c ê está m u ito e s té tic a d em ais.
— N ão e s to u , S arah L ig h t! E s té tic a só p o d e ser a
f ilo s o fia d o B e lo , ao passo q u e eu sou é té c n ic a . Da e sté tica
se d e s ta c o u u m a c iê n c ia e xa ta b e m p o b rin h a aliás, a e sté tica
e x p e rim e n ta l, q u e p ro c u ra d is c rim in a r os e le m e n to s o b je tiv o s
q u e nos causam o p ra z e r de beleza. A e s té tic a é para os
filó s o fo s e os c ie n tis ta s . A té c n ic a é para os a rtis ta s .
— N ão e s to u de a c o rd o . E m 1 9 2 6 , q u a n d o eu m orava
n o B ra s il, e a in d a não tín h a m o s f e ito a T r a m w a y e as fá b ric a s
de p e rfu m a ria de M e n tira , f u i c o n v id a d a a fr e q u e n ta r u m
c u rs o de E s té tic a C o m p a ra d a das A rte s , re a liz a d o p o r u m
p ro fe s s o r M á rio A n d ra d e pra e x-a lu n as d o C o lé g io des
O ise a u x. . .
- r O a u to r d o " M a c u n a ím a ” !. . .
— N ã o sei. . . Era em 1 9 2 6 e log o la rg u e i o c u rs o , pra
ir e s tu d a r na A le m a n h a . Mas m e le m b ro m u ito b em q u e ele
a firm a v a a u tilid a d e da e s té tic a c o m o d is c ip lin a d o e s p írito de
q u a lq u e r u m e q u e "p a ra os a rtis ta s e n tã o , a e s té tic a fa z
p a rte da p ró p ria té c n ic a , é ló g ic o " , frase te x tu a l, q u e eu c o p ie i.
— Ele re p e tiu isso c o m o u tra s palavra s no " B a ile das
Q u a tro A r te s " . O u p o r o u tr a : a aula in a u g u ra l so bre " o
A r tis ta e o A r te s ã o " im p lic a isso, p o is q u e ele está e n sin a n d o
e s té tica e a firm a n d o n o e n ta n to que o a lu n o só p o d e a p re n d e r
té c n ic a . Mas ele m e sm o d iz q u e a e s té tic a , e n q u a n to d is c ip lin a
filo s ó fic a c o m p le ta e m e tó d ic a , é para os filó s o fo s e c ie n tis ta s , e
a a rte é para os a rtis ta s . N u n c a ja m a is , S a rah , u m a rtis ta , nem
g u ia d o p o r u m a filo s o fia c o m p le ta da beleza, n e m u tiliz a n d o
to d o s os e le m e n to s d o p ra z e r e s té tic o d e te rm in a d o s p e lo s
la b o ra tó rio s , co n s e g u irá fa z e r u m a o b ra -d e -a rte g e n ia l. A n d ré
L h o te se to r n o u d e p lo rá v e l q u a n d o p re te n d e u c o n s e g u ir isso.
A liá s ele é m u ito m ais in te re s s a n te na c r ític a que na p in tu ra .
— Mas e n tã o eu não e n te n d o b e m o q u e você ch am a de
" t é c n ic a ” .
— T é c n ic a será, d ig a m o s : o c o n ju n to de c o n h e c im e n to s
p rá tic o s c o m q u e o a rtis ta m o v e o m a te ria l p ra c o n s tr u ir a
o b ra -d e -a rte .
— E a e s té tica e n tra nisso de c o n h e c im e n to s p rá tic o s e
d o m a te ria l?
— E n tra se m p re , da m esm a fo rm a q u e n ã o b e b e r
v e n e n o , q u e não te m nada de in ic ia lm e n te o b je tiv o , e ta n to é
u m a defesa té c n ic a c o m o u m id e a l. A e s té tic a fa z p a rte da
té c n ic a , não c o m o u m sistem a filo s ó fic o , mas ao m esm o
te m p o c o m o u m a pesquisa, u m a v o n ta d e p r e lim in a r e um a
e x p e riê n c ia a d q u irid a e c o n s e n tid a . Da m esm a fo rm a q u e o
v e rs o -liv re é in ic ia lm e n te u m p r in c í p io e s té tic o q u e d e p o is vai
m o v im e n ta r to d a a r ítm ic a p s ic o ló g ic a d o ve rso ; da m esm a
fo rm a q u e a n o ç ã o de c o n s o n â n c ia e d is s o n â n c ia f o i
in ic ia lm e n te u m p re c o n c e ito e s té tic o q u e d e s e n v o lv e u to d a a
c ria ç ã o m a ra v ilh o s a da p o lifo n ia : a p ró p ria id e o lo g ia e sté tica
d o n a c io n a lis m o na Rússia dett-vO r e v o lu c io n á rio M usso rg sq u i e
a p ró p ria id e o lo g ia daH r-aaédia t y ega ca n ta d a d e u a C am era ta
F lo r e n tin a e a ó ja é & x V o cê re p a re : não e ra m e x a ta m e n te
id e o lo g ia s , mas "id e o lo g ia s ” . N ã o eram u m a filo s o fia ,
c o m u m o b je t^ _ c í> m m é to d o p r ó p r io e p r in c í p io , m e io e
f im ; n ão era u m a id é ia e sté tica d e s e n v o lv id a em suas
c o n se q u ê n cia s, mas u m ideal e s té tic o , f r u t o d u m a v o n ta d e
e d u m a p re fe rê n c ia c o n s e n tid a . N o caso: a le itu ra da
tra g é d ia grega ou o a n ti-re a lis m o russo da m ú sica russa
ita lia n iz a n te que d e u , c o m o c o n s e q u ê n c ia , o e s tu d o da
fo n te p o p u la r. U m a le g ítim a té c n ic a e n fim .
— Mas e a a rte o n d e é q u e fic a nisso tu d o !
— A a rte é u m c a p ítu lo da E s té tic a . O m ais im p o r ta n te
si vo cê q u is e r, mas só si você fa z m u ita q u e s tã o . Na ve rd ad e
d evia ser apenas u m c a p ítu lo c o m o os o u tr o s ; e em geral os
estetas filó s o fo s q u e tr a ta m e xce ssiva m e n te da a rte a vançam
p e lo s c a m in h o s da s o c io lo g ia , da p s ic o lo g ia , da h is tó ria , não
só n u m a c o n fu s ã o g ra n d e de m é to d o s , c o m o p rin c ip a lm e n te
n u m a e scam ote a ção d o o b je to . A r te é o u tra co isa . A e sté tica ,
c o m o filo s o fia d o b e lo e c o m o c iê n c ia d o p ra z e r de beleza,
c o n d u z d ire ta m e rrte ao b em e à ve rd a d e . Da a rte , são apenas
a u x ilia re s e para os gén io s se m p re fo ra m a u x ilia re s
d is c re tís s im a s . Da m esm a fo rm a q u e a a c ú s tic a para a m ú sica .
E n f im . . . e sté tica é u m processo de c o n h e c im e n to , da m esm a
fo rm a q u e a a rte , mas ja m a is a e sté tica nos levará a g oza r da
a rte e a vivê-la em to d a a sua p le n itu d e e fin a lid a d e . E c o m o
filo s o fia , ela d e te rm in a m u ito m ais u m c o m p o r ta m e n to m o ra l,
u m c o n h e c im e n to a b s tra to d o b e lo , q u e u m a c o m p re e n s ã o
c r ític a da o b ra -d e -a rte e a a pree nsã o da beleza.
— V o c ê leu O k a k u ra K a ku so ?
— N o " L i v r o d o C h á "? li.
— E le d iz lá, g o s te i m u ito , q u e " n o u s c la s s ifio n s tr o p et
ne jo u is s o n s pas a ssez". . .
— Eu não sei p o r q u e você c ita O k a k u ra K a k u s o em
fra n c ê s . . .
— Eu li e m fra n c ê s , não li em inglês.
— N ã o é isso! M e ir r ita é essa m a n ia de c ita r alemães,
russos, jap on ese s, em fra n c ê s o u inglês. Si já não p o d e ser o
e s c rú p u lo d o o rig in a l, p o is se tra ta de tra d u ç ã o , o m e lh o r é
tr a d u z ir já d u m a vez p ra nossa lín g u a . N u n c a tiv e m a io r
sensação de r id í c u lo lin g u ís tic o d o q u e a b rin d o u m liv ro de
A lb e r tin a B e rta , q u e p rin c ip ia v a c o m u m a e p íg ra fe de
N ie ts z c h e e m fra n c ê s .
— A c e ito o p ito . Mas m in h a a m ig a , não sei si é o
a m a re lo q u e está d e ix a n d o vo cê tã o ir r ita d iç a !
— D e s c u lp e S arah L ig h t deve ser cansaço te n h o lid o
m u ito esses dias.
— V o c ê se cansa de ler? eu n ã o !
— S im , mas v o c ê lê p rin c ip a lm e n te ro m a n c e s , revistas.
— N ã o dig a isso, n ã o s e n h o ra ! A té q u e u ltim a m e n te
quase só le io s o c io lo g ia , e q u a n d o te n h o te m p o fr e q u e n to os
cu rso s de filo s o fia , na F a c u ld a d e de C iê n cia s e L e tra s.
A té já c o m p re i a " E n c y c lo p a e d ia o f th e S o c ia l S c ie n c e s ",
q u e parece m eia c o m u n is ta , mas e n fim é u m c o m u n is m o
m o d e ra d o . T e n h o m e d iv e r tid o m u ito . V o c ê p re cisa ler,
S io m a ra Ponga.
— Eu e s to u m e sm o c o m v o n ta d e de e s tu d a r s o c io lo g ia ,
a té já li G ilb e r t o F re y re , mas n o m o m e n to n ã o posso. A lé m
d o g rego m o d e rn o q u e esto u a p re n d e n d o a p ro n u n c ia r p o r
causã d u m a s canções p o p u la re s , u m a m o r! q u e v o u c a n ta r no
C o c k ta il da G ré cia E s c ra v iz ada, m in h a p a ix ã o a go ra é a
e s té tic a . T e n h o lid o t u d o , s o b re tu d o a re s p e ito da sensação
e sté tica . C o m o se a p re n d e , S arah L ig h t! fic a tu d o tã o c la ro !
— Mas não é o p r ó p r io G ro c e q u e d iz q u e a beleza é
a q u ilo q u e a g e n te já sabe o q u e é? . . .
— Isso é b la g u e , e m b o ra seja de fa to u m a b lague
p ro fu n d a . F is io lo g ic a m e n te to d o s te m o s as sensações estética s
e x is te n te s , esparsas n o m u n d o o u re a g ru p a d a s n o to d o das
o b ra s-d e -a rte . A b r in d o os o lh o s , re c e b e n d o u m so m se p ro d u z
na g e n te u m a c o m o ç ã o q u e a in te lig ê n c ia d e te rm in a , d iz e n d o :
is to é b e lo . A q u i te m u m jo g o de p alavras q u e precisa fix a r
b e m : A sensação e s té tic a é fis io ló g ic a , to d o s tê m a m esm a
d ia n te d o m e sm o caso, mas o a fe to o- s e n tim e n to e s té tic o é já
u m fe n ó m e n o m ais c o m p le x o q u e n ã o e x is te , sem a
c o la b o ra ç ã o d e te rm in a n te d o e s p ír ito : A liá s , eu fa le i q u e to d o s
tê m a m esm a c o m o ç ã o e s té tic a d ia n te d o m e sm o caso, o q u e
já está e rra d o , essas coisas são d e lica d a s. É fá c il d e c id ir q u e
d ia n te da c o r ve rm e lh a to d o s te m o s u m a sensação m ais f o r t e
q u e d ia n te d o rosa, e q u e cada u m a delas p ro d u z irá u m a
c o m o ç ã o m ais o u m enos agrad áve l. P o ré m m e sm o este
"m a is o u m e n o s " já é g ra n d is s im a m e n te d e te rm in a d o p e lo
e sta d o fis io ló g ic o de cada u m , e cada q u a l te m u m fís ic o
d ife re n te e m e sm o tr a n s itó r io . O v e rm e lh o é re c o n h e c id a m e n te
e x c ita n te , mas q u e m precisa de e x c ita n te s se agrad ará m ais d o
v e rm e lh o d o q u e u m o u t r o q u e não carece disso. Mas. . .
O p o lí t ic o F e lix de C im a irro m p e u p e lo ja r d im d e in v e rn o .
S arah L ig h t que estava se d e lic ia n d o c o m a e x p lic a ç ã o da c a n to ra ,
não p ô d e e v ita r o p e n s a m e n to e s p o n tâ n e o d e q u e F e lix d e C im a
ja m a is seria u m a sensação e s té tic a d e n in g u é m . S im p á tic o ele
era s im , a té b em a p ro v e itá v e l n u m a n o ite d e sm a ze la d a de a m o r,
fe ita m ais p e lo á lc o o l q u e p ela escolha d o c o rp o . Is to f o i a
m ilio n á ria q ue p en sou . P o ré m ju s ta m e n te p o r causa d o a lm o ç o ,
o b u rro d o p o lí t ic o se v e s tira m e lh o r, e estava p é ssim o .
— M eu ca ro , ca ro a m ig o , c o m o vai?
Sarah L ig h t se a c o s tu m a ra a c h a m a r to d a a g e n te de
" a m ig o ” p o r causa da le itu ra de ro m a n c e s franceses. S io m a ra ,
ju n t o dela ia na o n d a , mas a F e lix d e C im a a q u ilo se m p re
causava m a le sta r. " A m ig a ” pra ele s e m p re tin h a o u tra
resso n â n cia , e o v a lo r d o s e n tim e n to d o " a m ig o " e le ig n o ra va .
A p alavra só se a p lica va a c o rre lig io n á rio s p o lític o s , fosse u m
v o ta n te c o m p ra d o , fosse o p re fe ito . Esses e ra m os " a m ig o s "
d ele. S e n tiu lo g o u m a coisa desa grad áve l, de c u m p lic id a d e que
não desejava. N ão gostava de e p id e rm e s m u ito alvas, já
sabem os. B e ijo u a m ão da casada, b e ijo u a m ã o da s o lte ira ,
(aliás S io m a ra Ponga não era s o lte ira e x a ta m e n te , era a rtis ta )
e d is fa rç o u e s ta b a n a d o :
— Pois é, cá e stam os para tir a r da m is é ria o seu
c o m p o s ito r.
Sarah L ig h t fic o u c o m raiva d a q u e la in d e lic a d e z a , q u e
e s tú p id o !
— Mas m eu a m ig o , vo cê n ão acha m e s m o q u e o
G o v e rn o te m o b rig a ç õ e s de p ro te g e r os c o m p o s ito re s n a c io n a is !
— D e c e rto q u e te m ! o n a c io n a lis m o é u m a b ela coisa. . .
Mas e n fim , nós to d o s nos s a c rific a m o s pela p á tria . . . F ra n q u e z a :
eu n ã o sei o q u e vocês duas d e s c o b rira m nesse J a n jã o . . .
— N ão se tra ta de J a n jã o , se tra ta da m ú sica d e le !
in te rro m p e u S io m a ra Ponga irrita d a .
— Se a q u ilo é m ú sica , m in h a ilu s tre c a n to ra , só si é
m úsica d o ta l de " b e lo h o r r í v e l" .
— O b e lo h o rrív e l não e x is te ! Isso é b o b a g e m que
m u ito s estetas a c e ita ra m p o r c o n fu s ã o .
— Ué! sem pre o u v i fa la r em b e lo h o r rív e l!
— A d m it ir o b e lo h o rrív e l assim , c o m o n o e x tre m o
o p o s to , e b e lo . . . b e lo , a d m it ir e n fim u m b e lo e s te tic a m e n te
q u a lific á v e l, im p lic a a c e ita r to d a um a escala de b elos que
d o " h o r r í v e l" subisse a té o " b e lo " . E h a v ía m o s de passar p e lo
" b e lo f e io " , o q u e é a b s u rd o . T a n to na a rte c o m o na
n a tu re z a , o b e lo n u n ca está s o z in h o , F e lix de C im a . O que,
aliás, c o n fir m a a fix a ç ã o de que a beleza não é a fin a lid a d e
da a rte . . .
Na o b ra -d e -a rte q u e castiga, q ue s a tiriz a , q u e c ritic a o u
m esm o s im p le s m e n te re tra ta , o a rtis ta se vê m u ita s vezes
o b rig a d o a re p re s e n ta r u m a coisa h o r rív e l, re p u g n a n te , ou
apenas fe ia .
— Pois e n tã o ! Isso é o b e lo h o r rív e l!
— A b s o lu ta m e n te não. A coisa re p re se n ta d a p o d e ser
h o rrív e l, re p u g n a n te , fe ia c o m o a d o r de R ig o le to o u a
in fâ m ia de "Q u e s ta o u q u e lla " , mas a re p re s e n ta ç ã o a rtís tic a ,
o o b je to c ria d o não o será ja m a is, pra q u e haja o b ra -d e -a rte
de v a lo r. O a ssu n to p o d e ser h o rrív e l. A re a liza çã o e stética
d ele n ã o p o d e . Por o n d e se vê ta m b é m q u e si o b e lo não é a
fin a lid a d e da a rte , ele é im p re s c in d ív e l pra q u e se re a lize a
o b ra -d e -a rte . E da m esm a fo rm a na n a tu re z a . U m a e ru p ç ã o d o
V e s ú v io , u m a e n c h e n te d o P a raíb a e tc. não são b e lo h o rrív e l.
São fe n ó m e n o s que p o r serem da n a tu re z a , c o n tê m
n ece ssariam en te m u ita s parcelas d o b e lo n a tu ra l, cores,
v o lu m e s , ru íd o s , m o v im e n to s . . . A s parcelas n a tu ra is serão
o b je tiv a m e n te belas, mas o a ssu n to , o caso é h o r rív e l.
— P uxa c o m o vo cê sabe coisas! E u se m p re fa le i que é
u m a pena eu não p o d e r e s tu d a r ta m b é m . . .
— S io m a ra Ponga a té estava m e c o n ta n d o c o m o é que
se re a liza a c o m o ç ã o e s té tic a , é in te re s s a n tís s im o . V o c ê não
q u e r o u v ir?
— Q u e ro , o ra si! Isso a té vai m e a u x ilia r pra c o m p ra r
q u a d ro s p ro E stad o. In d a agora te m a í u m a e x p o s iç ã o de
p in to re s b a lc â n ic o s e q u e re m p o r fo rç a ve n d e r p ro G o v e rn o
u m N u de cem c o n to s , até eu não g o s to ! a quelas carnes
brancas, sem re a lis m o . . . Mas eles tê m ta n ta p ro te ç ã o . . .
A s s im você m e a ju d a a recu sar isso. P o rq u e não v ie ra m p e d ir
d ire ta m e n te pra m im ! d e s a fo ro . . .
O s u b p re fe ito estava s u fo c a d o de d e s p e ito . S io m a ra
a in d a o lh o u pra ele c o m v o n ta d e de d e sp re za r, mas e n fim
se m p re era u m s u b p re fe ito e p r o te to r das artes. P rin c ip io u
m eia sem v o n ta d e , mas c ie n te de d o m in a r o seu p ú b lic o :
— É tã o sim p les. . . O h o m e m p elos s e n tid o s está em
c o n ta c to c o m as ond as lu m in o s a s , acústica s, e tc.
F e lix de C im a z u rro u d e s p e ita d o .
— P o rq u e só o h o m e m ? a m u lh e r ta m b é m !
— Pois é. . . o h o m e m e a m u lh e r estão, p e lo s s e n tid o s
em c o n ta c to c o m as o nd as lu m in o s a s , a cú stica s e tc . Esse
c o n ta c to é le va d o ao c é re b ro p elos n e rvo s c o n d u to re s para os
d ive rso s c e n tro s , v is u a l, a u d itiv o , de ta c tilid a d e , e só e n tã o é
q u e a sensação se d e te rm in a . P o ré m o e fe ito n ão pára a í. Si
parasse não p o d ia se d ar c o m o ç ã o de b eleza. O c é re b ro
re g istra va apenas o q u e os s e n tid o s re ce b e ra m , e a idéia
nascida n ele seria apenas u m a v e rific a ç ã o , u m c o n h e c im e n to . E
se c o n fu n d ia c o m a ve rd a d e : c a c h o rro , v e rm e lh o , m a rc h a r. Mas
d e p o is da v ib ra ç ã o te r a tin g id o o c e n tro c e re b ra l q u e lhe
c o rre s p o n d e , ela se d ifu n d e p o r to d o o c é re b ro e p elos nervos
e fe re n te s , se espalha p o r to d o o o rg a n is m o h u m a n o da cabeça
aos pés. D e m a n e ira que to d o o c o rp o fic a v ib ra n d o p o r causa
d e la ; B a in d iz q u e não só os órg ão s d o m o v im e n to m as a té as
vísceras. V o c ê s estão ve n d o ? isso c ria n a tu ra lm e n te n o c o rp o
u m a a tiv id a d e , d ive rsa c o m o in te n s id a d e e q u a lid a d e , da q u e
e x is tia n ele a ntes d e e n tra r em c o n ta c to c o m a v ib ra ç ã o
e x te r io r . Essa a tiv id a d e , c o m o q u a lq u e r a tiv id a d e aliás, p ro d u z
n o o rg a n is m o u m a c ria ç ã o e e m p re g o de fo rç a s a q u e
g e ra lm e n te d ã o o n o m e de d in a m o g e n ia . E este e m p re g o n o vo
de fo rç a s fa z c o m q u e as fu n ç õ e s v ita is se a tiv e m o u a m o le ç a m .
Esta a tiv a ç ã o o u p a c ific a ç ã o q u e d e p e n d e d o e sta d o fís ic o de
cada u m , é re c o lh id a de n o v o , re c o n h e c id a e c a ta lo g a d a , pela
nossa c o n s c iê n c ia q u e a q u a lific a e n tã o c o m o u m p ra z e r o u
d e sp ra ze r. A este p ra ze r o u d e sp ra ze r é q u e c h a m a m de
c o m o ç ã o e s té tic a . E p o r ela, e n tã o , se c ria esse s e n tim e n to de
" e m p a tia " c o m o fa la m os ingleses, p e lo q u a l a gen te
re c o n h e c id a m e n te se e n tre g a ao o b je to q u e ca uso u o e stad o
de p ra z e r o u recusa o que ca uso u d e sp ra ze r. S i f o i p ra z e r a
g e n te c h a m a o o b je to de b e lo . S i f o i d esp ra ze r, de fe io .
— Mas e n tã o , p e lo q u e vo cê d iz , até e s c u ta n d o a P a ixão
se gu nd o S. M a th e u s , de B ach, q u e to d o s sabem ser um a
o b ra -p rim a , um a pessoa c o n fo rm e o seu fís ic o p o d e a ch a r
a q u ilo fe io . . .
— A b e m d iz e r não p o d e , S arah L ig h t. Se as co m o ç õ e s
e stética s fo sse m tã o fis ic a m e n te d e c is ó ria s assim , elas
p e rte n c e ria m m ais à te ra p ê u tic a da m e d ic in a q u e à lib e rd a d e
d o p ra ze r. O e sta d o fís ic o im p o r ta se m p re . Mas s o b re tu d o na
c o m p le x id a d e e n o rm e da o b ra -d e -a rte , ele ja m a is seria
d e c is ó rio e s te tic a m e n te , e m b o ra possa ser d e c is ó rio c o m o
v e rd a d e o u c o m o b e m .
— Eu n ã o e n te n d o nada d o q u e vocês estão d iz e n d o . . .
A q u i a fra s e d e F e lix d e C im a f o i u m a q u e ix a tã o
h u m ild e q u e ele r e a d q u ir iu to d a a s im p a tia q u e irra d ia v a . Esse
é u m g o lp e b e m c o n h e c id o dos q u e tê m a bossa da p o lític a .
N ã o há nada q u e to rn a a g e n te m ais s im p á tic o d o q u e fa ze r
c o m q u e os o u tr o s se le m b re m p o r si m e sm o s q u e se
e sq u e ce ra m da g e n te . Isso era m a n h a in c o n s c ie n te em F e lix
de C im a , mas de q u e ele abusava. S io m a ra o lh o u o g o sto so , e
te v e p a c iê n c ia dessa vez:
— Im a g in e , F e lix de C im a , q u e ao ch e g a r n u m c o n c e rto
vo cê te m u m d esa stre d e a u to m ó v e l q u e m a ta u m a m u lh e r
c a rre g a n d o o filh in h o . O u im a g in e q u e d e p o is d o c o n c e rto
vo cê vai te r u m e n c o n tr o de a m o r. E stá c la ro q u e a verdade
d a q u e le ó rfã o q u e fic o u o u a im p a c iê n c ia d o seu a m o r, não
só o c u p a m o seu e s p ír ito , mas p ro v o c a m n o seu c o rp o estados
d in â m ic o s tã o im p o s itiv o s , q u e v o cê não p o d e rá se e n tre g a r à
p a ssivid a d e necessária à c o n te m p la ç ã o e s té tic a . Si le va re m a
P a ixã o de B ach nesse c o n c e rto , si vo cê não a c o n h e c e , nun ca
p o d e rá a p re c iá -la . Mas si a c o n h e c e , ela p o d e rá a té p a c ific a r
vo cê. D os d o is la d o s: se nd o u m a p a c ific a ç ã o boa n o caso d o
d esa stre e. . . u m a p a c ific a ç ã o p erig o sa n o caso d o a m o r.
F e lix d e C im a d e u u m a g a rg a lh a d a . T in h a e n te n d id o u m
m e io d e m u ita s vezes re c u s a r c o n c e rto s e e x p o s iç õ e s de p in tu ra .
— . . . Na v e rd a d e a c o m o ç ã o e s té tic a é fis io lo g ic a m e n te
fa ta l, mas p o d e ser casual p rin c ip a lm e n te p ela p a rtic ip a ç ã o d o
e s p ír ito . S e n d o u m fe n ó m e n o fis io - p s íq u ic o , ela te m
c o n ju n ta m e n te ca ra cte re s fis io ló g ic o s e p s ic o ló g ic o s . Os
fis io ló g ic o s são: A c o m o ç ã o e s té tic a é im e d ia ta ; é d in â m ic a ; é
fa ta l; e te m u m a ta c tilid a d e g eral. Os ca ra cte re s p s ic o ló g ic o s
fa z e m q u e ela seja u m p ra z e r; não te n h a u m a necessidade
im e d ia ta ; seja ca su a l; e não te n h a in te lig ê n c ia , n ã o e x ija
c o m p re e n s ã o n e n h u m a . E e n fim q u e possua u m
d e s lu m b ra m e n to q u e é in e re n te a ela. C re io q u e n ã o m e
e squ eci de n e n h u m d os p rin c ip a is . . .
A s c o m o ç õ e s de p ra z e r e d e sp ra ze r q u e nós te m o s são
m u ita s , in fin ita s m e s m o , p o rq u e a fin a lid a d e d o h o m e m sendo
a lca n ça r a fe lic id a d e , t u d o pra n ós se resu m e e m a lca n ça r o
p ra ze r. n.
— P or isso q u e eu sc*u e p ic u ris ta ! J G o s to de c o m e r
bem . . .
— É. . . vo cê é e p ic u ris ta s im . . . P o ré m n e m to d a s as
c o m o ç õ e s de p ra z e r são c o m o ç õ e s e sté tica s, e o q u e d is tin g u e
estas das o u tra s é o c a rá te r fis io ló g ic o de im e d ia te z a . Si te m o s
fo m e e c o m e m o s , se dá c o m o ç ã o de p ra z e r. Si te m o s fé e
m o rre m o s no m a r tír io ta m b é m te m o s u m a c o m o ç ã o de p ra ze r.
— F re sco p ra z e r!
— Mas n e n h u m a destas c o m o ç õ e s é e s té tic a , p o rq u e
n e n h u m a delas é im e d ia ta . O p ra z e r, a q u i, d e riv a , é um a
co n s e q u ê n c ia de interesses p rá tic o s , c o m o n o caso de c o m e r,
o u de interesses m ais s u tis , c o m o o s a c r ifíc io d o c re n te . Já
não se dá o m esm o c o m a c o m o ç ã o e s té tic a , q u e , se nd o
im e d ia ta em seu se n s a c io n is m o a b e m d iz e r in d e p e n d e da
g e n te , não ve m de n e n h u m in s tin to , de n e n h u m r a c io c ín io e
de n e n h u m interesse p rá tic o . Si e s to u sa cia d o e c o m o , n ão
te n h o m ais p ra z e r. Já p o ré m , si lhe m o s tro , F e lix de C im a ,
u m p a n o v e rm e lh o , vo cê, q u e ira o u não q u e ira , te m u m a
sensação e s té tic a já d e fin itiv a m e n te p ro v a d a pelas e x p e riê n c ia s
de la b o r a tó r io . Q u e a c o m o ç ã o e s té tic a é d in â m ic a , isso vocês
já sabem , vid a é m o v im e n to . P o ré m o d in a m is m o e m b o ra
se nd o fis io ló g ic o , te m u m a im p o r tâ n c ia p s ic o ló g ic a d e cisiva
e m a rte . Pode-se d iz e r q u e ele é q u e c o n v e n c e d o a ssu n to .
D a í as o b ra s -d e -a rte de a s s u n to m u ito in te re s s a d o , as obras
de c o m b a te p o r e x e m p lo , h in o s , m archa s, c a ric a tu ra s , sátiras
te re m u m r it m o m ais v io le n to . C e rto s a u to re s , m e sm o , chegam
a im a g in a r que a a rte nasceu d o d in a m is m o . C o m o S p e n ce r,
p o r e x e m p lo , q u e d iz ia d o c a n to ser o re s u lta d o d u m a lei
fis io ló g ic a : a in te n s id a d e d o s e n tim e n to a ju s ta n d o d e m a n e ira
p a r tic u la r os órg ão s de re s p ira ç ã o e da vo z. W a lla s c h e k ch e g o u
a d iz e r m ais s im p lo ria m e n te q u e o c a n to é f ilh o d o tr a b a lh o ,
p o r causa d o tra b a lh o e x ig ir para o seu re n d im e n to , a
re p e tiç ã o dos m o v im e n to s iguais.
— M in h a a m ig a , você a ce ita o v e rs o -liv re ?
— Está c la ro q u e a c e ito ! E c o m p re e n d o , S a rah .
— Pois eu n ã o c o m p re e n d o n e m a c e ito , a fir m o u F e lix
de C im a c o n v e n c id o . D e re s to eu n ã o a c e ito ve rso n e n h u m ,
p o e sia !. . . Mas é vo cê m esm a q u e está n e g a n d o o v e rs o -liv re ,
d o n a , a firm a n d o a necessidade d o s m o v im e n to s iguais.
— Eu não a firm e i a necessidade de m o v im e n to s iguais,
de m e trific a ç ã o fix a em poesia n e m a rte n e n h u m a , e m b o ra
não a recuse ta m b é m .
— Mas c o m o é q u e p o d e have r r it m o sem a re p e tiç ã o
d o m o v im e n to ?
— S arah, você d e c o ro u a lg u m a d e fin iç ã o e rró n e a d o
r it m o , p o rq u e de fa to a m a io ria d os te o ris ta s d o r it m o ,
in flu e n c ia d o s pela liç ã o das a rte s tra d ic io n a is , não p u d e ra m se
lib e rta r da id é ia d e le ser u m a re p e tiç ã o . Mas na ve rd a d e ,
r it m o é to d a e q u a lq u e r "o rg a n iz a ç ã o ” d o m o v im e n to . V e ja
b e m q u e fa le i " o r g a n iz a ç ã o " , is to é, u m v a lo r sin ã o
c o n s c ie n te , p e lo m en os "s e n s ív e l” , pra p o d e r in c lu ir e n tre os
c ria d o re s de r it m o ta m b é m os irra c io n a is e as p ró p ria s p la n ta s.
M u ito s ch eg am a d iz e r que a re s p ira ç ã o , a sucessão d ia -n o ite ,
o u das estações, são r it m o , b o b a g e m ! Essas fo rm a s fa ta is e
sem e scolha , p o d e m c o n te r e le m e n to s d o r it m o , s o b re tu d o o
e le m e n to re p e tiç ã o dos r itm o s u tilitá r io s , m as a in d a não são
r it m o . Mas você já v iu fo lh a crescer? Às vezes é p le n a calm a
d o d ia , não te m v e n to n e n h u m , o a rb u s to está p a ra d ís s im o , e
no e n ta n to u m a fo lh a m e xe d u m la d o pra o u tr o , às vezes
c o m u m a v io lê n c ia a d m irá v e l.
— É ve rd a d e , já re p a re i! mas n un ca pensei nisso. . .
— F o i u m a pena, F e lix de C im a . Será u m a a ud ácia
m in h a d iz e r que nisso eu já v e jo u m r it m o , mas v e jo . Em
to d o caso, p ra não p ro v o c a r d iscussão, d e ix o isso de lado. Na
ve rd ad e, só o h o m e m p o d e " o r g a n iz a r ” r itm o s c o m p le to s e
c o m p le x o s , le g ítim a c o n fo rm a ç ã o c o n s c ie n te d o m o v im e n to no
te m p o . V o c ê v iu o film e " S t o r m y W e a th e r” ? Pois lá te m
u m r it m o liv re , a b s o lu ta m e n te a d m irá v e l. É q u a n d o na cena
em q u e m o s tra m ao n e g ro fin g in d o ric o , o q u e vai ser o
e s p e tá c u lo dessa n o ite . E n tre as a m o stra s d o s n ú m e ro s da
re vista , vem u m n e g rin h o e spiga do , m u ito e le g a n te de fo rm a ,
q u e d an ça u m sa pa tea d o. Pois te m u m m o m e n to em q u e pra
d a n ça r to d a um a fra se m u s ic a l, ele b a te c o m a p o n ta da m ão
e squerda n o pé d ir e ito e vem s u b in d o c o m o b ra ç o e n q u a n to
a frase m u sica l se e x p õ e , e q u a n d o ela acaba, o n eg ro a cab ou
de s u b ir o b ra ç o no ar. N ã o te m u m só e le m e n to q u e se
re p ita , e no e n ta n to o g esto c o re o g rá fic o d e le é d u m r it m o
fo rm id á v e l, chega a ser m a ra v ilh o s o . A liá s já A ris tó te le s , na
" R e t ó r ic a " , a firm a v a ser c o n v e n ie n te q u e o d is c u rs o tivesse
" r it m o , p o ré m não tivesse m e tro , pra não se to r n a r p o e s ia ". E
p o r is to m esm o q u e eu co n s ig o e x p lic a r e ju s t if ic a r o
v e rs o -liv re . Da m esm a fo rm a c o m o o d is c u rs o é u m interesse
e s p iritu a l d o m in a n te , em q u e o s e n tid o das palavras te m v a lo r
d e c is iv o , q u e o m e tro c o m o seus b a la n ç o s e n to rp e c e n te s
d isfa rça va , ta m b é m e x is te m estados de poesia q u e p o r
d e m a sia d o livre s da c o n s c iê n c ia d o s e n tid o " s u b c o n s c ie n te "
das palavras, e m b o ra eu não g oste de fa la r e m s u b c o n s c ie n te
de que tem -se a b u sa d o ta n to : essa e s p o n ta n e id a d e p ara -ló g ica
desses estados de poesia e xig e a não p re d e te rm in a ç ã o m é tric a
pra se v a lo riz a r e s te tic a m e n te . E a rtis tic a m e n te ta m b é m :
a d q u ir ir to d a a sua v a lid a d e c o m o a s s u n to . Na ve rd a d e o
v e rs o -liv re é tã o o rg a n iz a d o c o m o o m e tr ific a d o , e m b o ra seja
u m m o v im e n to liv re in t e r io r , d o p o e ta . E de fa to , o
v e rs o -liv re só p o d e ser c o n c e b id o e a p lic a d o , c o m a
e xa ce rb a çã o in d iv id u a lis ta d o sé cu lo passado. A s s im , eu
e n te n d o q u e verso é o e le m e n to da lin g u a g e m o ra l q u e im ita ,
o rg a n iz a e tra n s m ite a d in â m ic a d u m e sta d o lír ic o . F ale i
" lin g u a g e m o r a l" , p o rq u e e x is te m m il e u m a ling ua ge ns no
h o m e m . E em belas artes, a rq u ite tu ra , m ú sica , p in tu ra ,
c o re o g ra fia , tu d o são ling ua ge ns especiais. Mas já e s to u
p e n sa n d o m e lh o r: o verso se d e fin ir ia c o m o o e le m e n to da
lin g u a g e m o ra l q u e tra n s fig u ra e s te tic a m e n te o m o v im e n to d o
e sta d o lír ic o . Esta d e fin iç ã o já m e sa tisfa z. P o ré m , si em vez
d u m a d e fin iç ã o q u e e n ce rre o c o n c e ito p s ic o ló g ic o d o verso,
si p r e fe r ir u m a d e fin iç ã o d e s c ritiv a , mas q u e não im p liq u e a
d e lim ita ç ã o fo rm a l da m é tric a e da re p e tiç ã o , p od ia -se d iz e r
q u e verso é o e le m e n to de poesia q u e d e te rm in a as pausas d o
m o v im e n to r í tm ic o . Mas isso a in d a não in c lu i b em o
v e rs o -liv re , q u e seria a r r ítm ic o p e lo c o n c e ito geral dos
ritm ó lo g o s . D ig a m o s : o verso é o e le m e n to de poesia q u e
d e te rm in a as pausas de m o v im e n to da lin g u a g e m lír ic a . O u : da
e xpressã o o ra l d o e sta d o p o é tic o , q u e fic a m e lh o r. Mas a in d a
se p o d e m e lh o ra r: verso é a e n tid a d e r ítm ic a (o u , d in â m ic a )
d e te rm in a d a pelas pausas d o m in a n te s da lin g u a g e m líric a . O u ,
fx )é tic a . Esta d e fin iç ã o me sa tisfa z.
— M eu D eus! eu não e s to u e n te n d e n d o nada!
— M eu c a ro a m ig o , vo cê é u m a m o r! ( riu S arah L ig h t
se e rg u e n d o . H e s ito u :) eu te n h o . . . Se d ir ig iu a u m a pequena
e s c riv a n in h a e squ ecida n u m c a n to , re m e x e u u m a das gavetas e
d e s e n te rro u u m c a d e rn o já b a s ta n te a m a re le c id o pela idade.
V e io tra z e n d o , era ta rd e pra e sco n d e r. S io m a ra o lh a v a o
c a d e rn o c o m u m s o rris o .
— Q ue c a d e rn o é esse, S a ra h !. . .
— Este c a d e rn o f o i de m in h a a vó , S arah L ig h t, m e n tiu .
Estava e m b ra n c o e a p ro v e ite i nos m eus e stu d o s de m o c in h a .
P o r isso. Eu c o p ie i a q u i u m e s c rito de S e u ra t, q u e me d e ra m
pra c o p ia r n o ta l c u rs o d o C o lé g io des O is e a u x . O p ro fe s s o r
d e u m u ito s e x e m p lo s dos e s tu d o s fe ito s nos la b o ra tó rio s sobre
esse d in a m is m o das c o m o ç õ e s e sté tica s. De ce rta s e x p e riê n c ia s
se e s ta b e le c e ra m n o rm a s gerais q u e , p rin c ip a lm e n te nas a rte s
p lá stica s, fo ra m de b a s ta n te u tilid a d e . S e u ra t s in te tiz a assim :
" A r t e é h a rm o n ia . A h a rm o n ia p lá s tic a se re a liz a pela a na lo g ia
de c o n trá rio s (is to é: c o n tra s te s ), a n a lo g ia de s e m e lh a n te s (is to
é: as g ra da çõe s), e d e to m , de c o lo ra ç ã o e d e lin h a . De to m
q u e r d iz e r de c la ro e e s c u ro ; de c o lo ra ç ã o , q u e r d iz e r as
c o m p le m e n ta re s : v e rm e lh o e sua c o m p le m e n ta r ve rd e , o
a la ra n ja d o c o m o a z u l, o a m a re lo c o m o r o x o ; e, e n fim , de
lin h a , is to é: as d ire ç õ e s so bre a h o r iz o n ta l. Estas h a rm o n ia s
d ive rsa s são c o m b in a d a s de fo r m a a se to rn a r e m ca lm as,
alegres o u tris te s (is to é: p o d e m d a r c o m o ç õ e s e stética s de
c a lm a , d e a le g ria o u tris te z a ). A a le g ria d e to m é q u a n d o o
to m d o m in a n te d o c la ro -e s c u ro é lu m in o s o ; d e c o lo ra ç ã o é a
d o m in a n te de c o r q u e n te ; de lin h a são as d ire ç õ e s ascendentes
so b re a h o r iz o n ta l. A c a lm a se dá pela ig u a ld a d e de to n s
s o m b rio s e c la ro s , de co re s q u e n te s e fria s , e da
h o r iz o n ta lid a d e das d ire ç õ e s line ares. A tris te z a de to m é a
d o m in a n te s o m b ria ; de c o lo ra ç ã o é a d o m in a n te f r ia ; de lin h a ,
as d ire ç õ e s d e sce n d e n te s. . . "
— T u d o isso h o je é, c o m o se d iz , ca n ja , está
u n iv e rs a lm e n te p ro v a d o e a c e ito , in te rro m p e u a c a n to ra
d e s p e ita d a . E n u n ca se p o d e rá fa z e r coisa s e m e lh a n te para a
m ú s ic a : basta ver o p ro b le m a in trin c a d ís s im o da d isso n â n cia
q u e si d u ra n te uns trê s séculos f o i in c o n te s ta v e lm e n te o to m
lu m in o s o , a c o lo ra ç ã o q u e n te , o v a lo r a sce n d e n te d o
p o lifo n is m o e da h a rm o n ia , h o je não é nada disso m ais, c o m
a d e s tru iç ã o d o to n a lis m o h a rm ó n ic o . E o m ais d iv e r tid o é
q u e se p o d ia b e m fa la r q u e si a c o n s o n â n c ia a b e m d iz e r
d e ix o u de e x is tir d e n tro d o p o lito n a lis m o e d o a to n a lis m o ,
p o is q u e to d o s os a corde s, m e lh o r será d iz e r apenas: to d o s os
c o n ju n to s de sons s im u ltâ n e o s , c o n tê m so m e x te rio re s ao
a c o rd e to n a l e são d is s o n â n c ia : o d u a lis m o p e rm a n e ce ,
to r n a n d o f r io o c o n ju n to q u e te m m en os sons e x te rio re s ao
a c o rd e to n a l, e q u a n to s m ais sons d is s o n a n te s m ais q u e n te ,
m ais lu m in o s o , m ais a s c e n d e n te m e n te d in â m ic o o c o n ju n to .
O ra é o c o n tr á r io q u e parece se d a r. Os a co rd e s de u n d é c im a ,
de d é c im a -te rc e ira , usados p o r D e b u ssy e os im p re s s io n is ta s
q u e o se g u ira m , fiz e ra m ju s ta m e n te a m ú sica se to r n a r m ais
n e b u lo s a , m ais d in a m ic a m e n te suave, m ais s e n s o ria lm e n te
in d e cisa . De m a n e ira q u e os m o d e rn o s p ra to rn a r e m a sua
m úsica m ais cla ra , m ais fra n c a , e tirá -la d o " f o g "
im p re s s io n is ta , n ã o só a b u sa ra m dos r itm o s b a tid o s , c o m o ,
c o m a negação da d is s o n â n cia h a rm ó n ic a , na v e rd a d e se
to r n a r a m m u ito m ais s im p lis ta s e a té s im p ló rio s ,
h a rm o n ic a m e n te , q u e u m D e b u ssy.
— Mas na p in tu ra , im p lo r o u S arah L ig h t, d e ce p c io n a d a .
— Na p in tu r a m e sm o , S a rah , a coisa é m ais s u til que
essa e x p o s iç ã o d id á tic a de S e u ra t. P o r tin a ri a tin g e p o r vezes
c e rto s azues q u e só p o r si, e n ã o em re la ç ã o ao c o n ju n to , são
va lo re s p o s itiv a m e n te q u e n te s . E x c ita n te s m e sm o . M e le m b ro
d u m a c o m e rc ia n te n o rte a m e ric a n a c é le b re q u e p o s itiv a m e n te
ca iu . . . c a iu no c io , d ia n te d u m r e tr a to de P o r tin a ri em que,
apesar d o ro s to q u e n te , m u ito a m o re n a d o d o h o m e m , o
a rtis ta c o n s e g u iu t o d o o e fe ito a rd e n te p ela d o m in a n te em
c o n tra s te de d o is azues m u ito d iv e rs o s de c o lo ra ç ã o . "C e s
b le u s ! ces b le u s !" g rita v a a m o d is ta de ro s to s , e x c ita d fs s im a .
São azues p o s itiv a m e n te q u e n te s pela p ro fu n d e z a . E no
e n ta n to , re p a re : a p ro fu n d e z a p s ic o ló g ic a na prosa o u na
poesia, u m P ro u s t u m R ilk e , é m u ito m ais fr ia , m en os
d in â m ic a , q ue o s im p lis m o d ir e t o d os " h e r ó is " r o m â n tic o s e
clássicos. U m W e rth e r, u m h e ró i de M a n z o n i, u m C h ild
H a ro ld , sem serem m ais possantes c o m o person ag en s a rtís tic o s ,
nos d o m in a m e ilu m in a m nos " q u e im a m " m ais q u e a se n h o ra
de G u e rm a n te s . Mas si no caso d o q u a d ro de P o r tin a ri a in d a
se p o d e a rg u m e n ta r c o m a q u a n tid a d e d o m in a n te de a z u l q u e
to m a to d o o q u a d ro quase, a in d a há q u e d is c u tir o d in a m is m o
das lin h a s. V o c ê c o lo q u e u m a lin h a o b líq u a em re la ç ã o a um a
h o r iz o n ta l. Si a o b líq u a p a rte da h o r iz o n ta l na d ir e ita d o
p ap el e se afasta d e la , nós to d o s s e n tire m o s q u e essa lin h a
" s o b e " . Si a o b líq u a se une c o m a h o r iz o n ta l na e squ erda d o
p a p e l, s e n tim o s que ela " d e s c e " . Mas isso será u m a ve rd a d e
p u ra , t o ta l, p e rm a n e n te , e n fim c ie n tific a m e n te u n iv e rs a l? is to
é o q u e eu p e rg u n to e n u n ca vi n in g u é m re s p o n d e r. P o rq u e
im a g in o q u e si as lin h a s nos p a re ce m s u b ir o u d esce r, isso é
p o rq u e o nosso a to tr a d ic io n a l de visão , na le itu ra , se p ra tic a
da nossa e squerda para a d ire ita . E d e fa to , a p alavra " l e it u r a "
é b a s ta n te e m p re g a d a na te rm in o lo g ia da p lá s tic a . Mas eu
p e rg u n to : E pra esses povo s q u e tê m u m a e s crita q u e vai da
d ir e ita d o c o rp o para a e s q u e rd a : será q u e eles tê m a m esm a
sensação q u e nós, o u a o p o s ta ? V o cês fiq u e m c o m a cabeça
im ó v e l e m e x a m só c o m os o lh o s : R e p a re m c o m o descer c o m
os o lh o s d o a lto pra b a ix o é b e m m ais d if í c i l e s a c u d id o q u e
m o v e r c o m eles de b a ix o p ra c im a . Da m esm a fo rm a , é
fa c ílim o , quase in s tin tiv o em nós, o c id e n ta is , m o v e r c o m os
o lh o s da esqu erda para a d ir e ita , ao passo q u e o c o n tr á r io
quase não c o n s e g u im o s n u m m o v im e n to d e s liz a d o .
— P u xa ! é ve rd a d e !
— Eu não sei si lá fiz e ra m , p e lo q u e eu li p arece que
n ão : mas d e v ia m fa z e r pesquisas a re s p e ito da sensação
ascen de nte e d e sc e n d e n te das o b líq u a s s o b re a h o r iz o n ta l, não
só nos p ovo s q u e tê m e s crita em m o v im e n to c o n tr á r io ao da
nossa, mas c o m cria n ça s de to d o s os p o vo s, de d o is , trê s anos,
a in da não in flu e n c ia d a s não só pela le itu ra mas pela
te r m in o lo g ia e e x e m p lo dos pais.
Eu n ão e sto u n eg an do o d in a m is m o da c o m o ç ã o
e s té tic a , ve ja m b e m ! P o rq u e seja ele in s tin tiv o , o u h e rd a d o ,
o u a d q u ir id o na p rá tic a da v id a , e le não d e ix a de ser re a l. É
fa ta l. T ã o fa ta l c o m o o u tra s c o m o ç õ e s de p ra z e r e d esp ra ze r
q u e sejam e x c lu s iv a m e n te fis io ló g ic a s . Essas q u e M a rio P ilo
te ve a to lic e de c o n s id e ra r " b e la s " ta m b é m , p o rq u e e ra m
prazeres fis io ló g ic o s : o b e lo v is c e ra l, o b e lo m u s c u la r, o b e lo
o lf a tiv o , c o m o eie d iz ia . N ã o s e n h o r! N o b e lo , na c o m o ç ã o
e sté tica e n tra im p re s c in d iv e lm e n te u m a e n o rm e c o la b o ra ç ã o
d o e s p ír ito , e d e c a rá te r e s p e c ífic o , q u e é o q u e d e te rm in a
a " f a t a lid a d e " fis io ló g ic a da c o m o ç ã o e s té tic a mas ao m esm o
te m p o a sua " c a s u a lid a d e " p s ic o ló g ic a . Parece c o n tra d iç ã o
a firm a r q u e a c o m o ç ã o e s té tic a é ao m esm o te m p o fa ta l e
casual, mas não é. M u ita s vezes o e s p ír ito n ã o a re g is tra ,
apenas isso, p o r q u a lq u e r m o tiv o p s ic o ló g ic o m ais f o r t e q u e a
c o m o ç ã o e s té tic a , c o m o p o r e x e m p lo o desa stre de a u to m ó v e l
que fe z F e lix -de C im a m a ta r a m u lh e r p o b re , o u a fa lta de
e d u ca çã o o u re fin a m e n to d o e s p ír ito e tc. D a í a d ife re n ç a
e n tre a c o m o ç ã o e s té tic a e o u tra s c o m o ç õ e s em q u e a
c o la b o ra ç ã o d o e s p ír ito é ta m b é m m u ito g ra n d e c o m o o
a m o r, a saudade, a q u e fa lta p o ré m o c a rá te r fis io ló g ic o da
im e d ia te z a . F a le i em " a m o r " mas posso d im in u ir ele ao
s im p le s interesse s e xu a l. . . São c o m o ç õ e s m e sm o o interesse
s e xu a l, q u e só se re a liz a m q u a n d o m e e n tre g o a elas o u
re a jo c o n tra . O ra eu não posso re a g ir c o n tra a c o m o ç ã o
e s té tic a , p o rq u e ela é liv re e in d e p e n d e n te de m im .
Mas a q u i é q u e a ca su a lid a d e p s ic o ló g ic a da c o m o ç ã o
e sté tica te m u m a im p o rtâ n c ia m u ito c o m p le x a . É c o m u m essa
a firm a ç ã o de q u e u m q u a d ro n u m a p ared e p o r q u e passamos
to d o s os d ia s, d e ix a de p ro v o c a r e m nós a m esm a c o m o ç ã o
q u e p ro v o c o u da p rim e ira vez. N ão é v e rd a d e , e x a ta m e n te .
Nada e x is te pra nós sem a re g is tra ç ã o d o e s p ír ito . R e p a re m :
Paris. Paris a té neste m o m e n to não e x is tia para o nosso
m u n d o e s p iritu a l de nós trê s , mas p r in c ip io u e x is tin d o desque
p ro n u n c ie i a p a la vra . P o ré m d a q u i a p o u c o , q u a n d o e s tiv e rm o s
fa la n d o n o u tra co isa , Paris d e ix a rá de e x is tir de n o v o para a
im a g e m d o m u n d o q u e nós te m o s em nossa tra n s ito rie d a d e ,
até p re c is a rm o s e s p iritu a lm e n te d ela o u tr a vez. O u a te n ta rm o s
nela p o r q u a lq u e r m o tiv o . O ra a c o m o ç ã o e s té tic a é c o m o
Paris: e x is te s e m p re , fa ta lm e n te , im e d ia ta m e n te e
p e rm a n e n te m e n te , apesar de to d o s os n azis in fa m e s desse
m u n d o , da A le m a n h a c o m o d o B ra s il. P o ré m d e ix a
p s ic o lo g ic a m e n te de e x is tir e n q u a n to n ã o p u s e rm o s re p a ro
nela, e, e n tã o não nos será p o ssíve l re a g ir c o n tra . A o passo
q u e é p o ssíve l re a g ir c o n tra o a m o r, o ó d io , e m e sm o a
e x c ita ç ã o s e x u a l, não só c o m o a fe to s , mas c o m o co m o çõ e s.
(A h ! p e r fil d u r o , p e r fil d u ro . . . H o je , m e sm o q u a n to te
c o n te m p lo , parece im p o s s ív e l re c o b ra r o passado a re sse n tir
ta n ta v e n tu ra irre a liz a d a q u e s o fri. . . Mas. . . m u d a ria o N a ta l
o u m u d e i eu? . . . B o m .) A s s im a c o m o ç ã o e s té tic a não se
e m b o ta n u n ca , e m b o ra possa se tr a n s fo rm a r q u a n to à
q u a lid a d e .
— P o rq u e o a p u ra m e n to da in te lig ê n c ia , c o m a
e d u ca çã o , a id a d e , a e x p e riê n c ia , tr a n s fo rm a m não só o
e s p ír ito mas as reações fis io ló g ic a s . E m c ria n ç a , q u a n d o eu ia
a pé para o c o lé g io , era o b rig a d a a atravessar o c e n tr o da
c id a d e , eu era p o b re . . . Mas parava se m p re em tu d o q u a n to
era e x p o s iç ã o de p in tu ra . U m a fe ita , n u m a dessas, m e engracei
d o m in a d o ra m e n te p o r u m q u a d ro d o p in t o r D o n a to Bossi.
Pois não p u d e , era m e n in a a in d a : f u i p e rg u n ta r o p re ç o ao
p in to r , q u e ta m b é m se e n g ra ç o u pela m in h a a d o le scê n cia
g o s ta n d o d o q u a d ro d ele. E ra m um as n in fe á ce a s ro x a s , n u m a
água p ro fu n d a , e c o m u m te c id o de a rv o re d o v e rd e -n e g ro no
se gu nd o p la n o . H o je eu r io , mas c o m o eu achava a q u e la água
m o rta v e rd a d e ira . . . O q u a d ro custava c in q u e n ta m ilré is , mas
o p in to r a c a b o u d e ix a n d o p e lo s q u in z e q u e e ra m to d a a
m in h a m esada. . . D e p o is , c o m o a p u ra m e n to dos e s tu d o s ,
p r in c ip ie i te n d o v e rg o n h a d o q u a d ro sem p in tu ra q u e acabei
d a n d o não le m b ro a q u e m . H o je , n e m sei q u a n to pagava pra
o b te r o q u a d ro o u tr a vez, só p ra s o n h a r d ia n te d o m eu
p r im e ir o passado de vid a re a l. . . Mas já fe ita , n o e n ta n to ,
o b tiv e u m q u a d ro de A n ita M a lfa tti, o fa m o s o " H o m e m
A m a r e lo " , q u e ca uso u a qu ela b rig a d a n ad a na e x p o s iç ã o que
ela fe z em São P a u lo , em 1 9 1 6 * . T e n h o ele n o m e u e s tú d io .
Mas esse é p in tu ra v e rd a d e ira , e si não o o b s e rv o to d o s os
d ia s e às vezes o o lh o sem v e r, a sensação e s té tic a p e rm a n e ce
e re v iv e to d a vez q u e c o n te m p lo o q u a d ro o u penso nele.
O ra vocês estão v e n d o a q u i fo rm a s im p o rta n te s , algum as
le g ítim a s , o u tra s ile g ítim a s , da o s c ila ç ã o de v a lo r, a té
e x c lu s iv a m e n te e s té tic o , das o b ra s -d e -a rte . Está c la ro q u e u m
v a lo r s e n tim e n ta l s u p e rv a lo riz a agora em m im as n in fe á ce a s de
D o n a to Bossi, e m e fa ria a tu a lm e n te d a r p o r esse q u a d ro que
não va le os q u in z e m ilré is q u e m e c u s ta ra m , ta lv e z c in c o c o n to s !
S ó resta saber, d o s d o is va lo re s m eu s, o s e n tim e n ta l q u e agora
d o m in a e o a n tie s té tic o q u e a sim p le s re le m b ra n ç a d o q u a d ro
já causa em m im , q u a l d os d o is seria m ais f o r t e , na presença
d o q u a d ro e na fo rç a da p o te n c ia lid a d e e m o tiv a d e le .
Desses pesos q u e s u p e rv a lo riz a m n u m d a d o m o m e n to
u m a o b ra -d e -a rte , o m ais im p o r ta n te e pode-se d iz e r que
legitim e^, é a m o d a . C o m a fa lta de m e lo d ia s gostosas nessa
espécie d e in fe c u n d id a d e m e ló d ic a da m ú s ic a m o d e rn a , se deu
u m a v itó r ia c u rio s a da m e lo d ia , q u e f o i a m o d a V e rd i q u e
d o m in o u , não só o p ú b lic o g eral (qu e V e r d i a in d a c o n tin u a

* M á r io d e A n d r a d e fa z a q u i u m a c o n fu s ã o d e d a ta ; a e x p o s iç ã o re a lizo u -s e,
na v e rd a d e , e m 1 9 1 7 .
d o m in a n d o se m p re ) mas os m ú sico s e ru d ito s , os c r ític o s e os
m u s ic ó lo g o s . Mas eu c re io q u e isso f o i u m a m o d a necessária,
u m a le g ítim a " c o m p e n s a ç ã o " , não apenas n o s e n tid o
p s ic o ló g ic o d o te rm o , mas fis io ló g ic o . O c o rp o nosso precisava
de m e lo d ia e c o m o a m ú sica m o d e rn a não a p o d ia d a r c o m a
necessária a b u n d â n c ia , o g ê n io m e ló d ic o m a ra v ilh o s o de V e rd i
v o lt o u à to n a d e n tr o da p ró p r ia m úsica e ru d ita . E a m esm a
e x ig ê n c ia de m e lo d is m o se m a n ife s to u n o a bu so da te m á tic a
tir a d a d o fo lc lo r e , e m m ú s ic o s a b s o lu ta m e n te g ra n fin o s e sem
o m e n o r interesse p ela causa p o p u la r n e m n a c io n a l. P o rqu e si
o tr a b a lh o e r u d ito d o f o lc lo r e é p e rfe ita m e n te e x p lic á v e l e
lo u v á v e l na o b ra de u m V iIla L o b o s , d u m F ra n c is c o M ig n o n e ,
d u m Pascal de R o g a tis na A rg e n tin a , p o rq u e estes p e rte n c e m
a escolas m u sica is q u e a in d a não fir m a ra m d e fin itiv a m e n te a
sua q u a lific a ç ã o e ca ra c te re s n a c io n a is , e se tra ta a q u i de u m
fe n ó m e n o le g itim a m e n te de s o c ia liz a ç ã o d o s a rtis ta s ; o m esm o
não se dá c o m u m ju d e u c o m o D a rio M ilh a u d , e o p ró p rio
S tra v in s q u i, e o p r ó p r io R avel, q u e a b u sa ra m d o fo lc lo r e
ta m b é m . N o caso destes não h o u ve n e n h u m a so c ia liz a ç ã o
necessária d o c o m p o s ito r c u lt o , d esejoso de fu n c io n a r d e n tro
d u m a c o le tiv id a d e , mas p u ra g ra n fin a g e m de fa tig a d o s , que
tin h a m ch e g a d o ao im passe m e ló d ic o da m ú sica a to n a l o u
p lu r ito n a l. A " c o m p e n s a ç ã o " neles é p e rfe ita m e n te e x p lic á v e l,
m as não se p o d e d e fe n d e r d iz e n d o q u e é le g ítim a .
— E u n ã o sei si vo cê te rá razã o. . . E u a d o ro a m úsica
fo lc ló r ic a , m e e x c ita , m e b ru ta liz a , a ch o e s tu p e n d o . M as q u a n d o
tra b a lh a d a p o r u m c o m p o s ito r, e n te n d a -se ! U m a vez, passando
d e a u to m ó v e l em P ira p o ra , e scu te i u m b a tu q u e de n eg ro s, achei
u m a coisa h o r r ív e l, q u e m ú s ic a id io ta , q u e palavras vu lg are s!
M as o " B a t u q u e " de L o re n z o F e rn a n d e z a ch o u m a m a ra v ilh a ,
assim c o m o a d o ro re le r os liv ro s fo lc ló r ic o s d e L e o n a rd o M o ta
e C o rn é lio Pires, tê m coisas e ng ra çad íssimas.
— Pois é, S a rah L ig h t. . . Eu c o m p re e n d o q u e você goste
da m úsica d o p o v o , mas. . . tra b a lh a d a , a lim p a d a de sua fo rç a
e da sua d o r. . . Q u a n d o o p o v o ca n ta " F u i passar na p o n te —
A p o n te tre m e u — Á g u a te m ve n e n o — Q u e m b e b e u m o r re u "
a g e n te acha b o b a g e m e c o n c lu i q u e as frase s não te m ligação.
O u apenas acha graça sem se c o m o v e r c o m tu d o o q u e e xiste
d e p ro fu n d o , de q u e ix a , de fra q u e z a , de a viso s o m b rio nessa
q u a d ra . E nos d iv e rtim o s c o m e n tu s ia s m o v e n d o isso bem -
e d u c a d a m e n te tr a n s p o r ta d o p o r u m c o m p o s ito r n u m g o rd o
c o ra l a q u a tro vozes. Si R a in e r M a ria R ilk e , b e m d e n tro d o
e s tilo e da p e rs o n a lid a d e d e le , escrevesse n u m p oem a " O h
ro s e ira , m u rc h a s te a ro s a " , to d a a g e n te fic a v a a ssom brada
c o m a fo rç a sugestiva e d o lo ro s a desses versos. Mas c o m o isso
é re frã o d u m c o c o n o rd e s tin o , a té fo lc lo ris ta s já o u v i fa la r q u e é
p a ro la g e m b o ç a l! . . . P o r o n d e se vê q u e a c o m o ç ã o e s té tic a ta m b é m
d e p e n d e de casual idades. . . le g itim a m e n te ile g ítim a s , n ão há d ú v id a .
Mas essa c a s u a lid a d e p s ic o ló g ic a da c o m o ç ã o e s té tic a , é q u e
fa z a d ife re n ç a de re c o n h e c im e n to d ela e n tre , p o r e x e m p lo , u m
c a ip ira a n a lfa b e to e u m e s tu d a n te de lite r a tu r a . A liá s , está c la ro :
cada u m d o s c a ra cte re s da c o m o ç ã o e s té tic a ta m b é m é c a rá te r de
vá rias o u tra s espécies de c o m o ç õ e s . N ão a firm e i q u e e ra m e x c lu s iv o s
dela. Mas o g ru p o de c a ra cte re s fis io ló g ic o s e p s ic o ló g ic o s q u e
e n u m e re i a trá s é q u e , em seu c o n ju n to , p e rte n c e m e x c lu s iv a m e n te
à c o m o ç ã o e s té tic a , são só d ela e a s u b s ta n tiv a m . M as a in d a q u a n to
à c a s u a lid a d e c o n tr a d itó r ia da sua fa ta lid a d e , vo cês re p a re m na
d ife re n ç a e n tre u m c a ip ira a n a lfa b e to e u m e s tu d io s o d e lite ra tu ra
e s c u ta n d o u m tre c h o de S h ake sp ea re . A m b o s tê m a m esm a c o m o ç ã o
e s té tic a , c o m o v a lo r fis io ló g ic o . Q u e ro d iz e r: ela age n os d o is da
m esm a fo rm a c o m o v a lo r im p o s itiv o da o b ra -d e -a rte , é fa ta l. Mas
ao passo q u e o c a ip ira vive rá quase e x c lu s iv a m e n te , ou
e x c lu s iv a m e n te o a s s u n to , a c o m o ç ã o e s té tic a fu n c io n a n d o nele
in c o n s c ie n te m e n te c o m o u m a fo rç a q u e im p õ e o a ssu n to e vai
d e c id ir a ve rd a d e m e n ta l, m o ra l d o c a ip ira ; o e s tu d io s o re fin a d o
vai a te n ta r quase q u e e x c lu s iv a m e n te na c o m o ç ã o e s té tic a q u e te m ,
se d e sin te re ssa n d o d o a ssu n to e não tir a n d o d e le n e n h u m a
c o n c lu s ã o q u e lh e d ir ija a a titu d e , p o u c o im p o rta si p ró x im a ou
p e rm a n e n te . E a té q u e p o n to is to não é u m a d e fo rm a ç ã o e rró n e a
da fu n c io n a lid a d e da o b ra -d e -a rte . . .
— N ã o c o n c o rd o , m in h a a m ig a . A o b ra -d e -a rte deve
se m p re fu n c io n a r c o m o a rte p u ra ! Os ca ip ira s , os a n a lfa b e to s
não e x e rc e m as belas a rte s, é o q u e n os d is tin g u e deles. E, eu
a fir m o , a re co m p e n sa p e lo nosso v a lo r p r ó p r io , p e lo s a c rifíc io
q u e fiz e m o s pra c o n q u is ta r a nossa p o siçã o . A s belas a rte s,
são u m fe n ó m e n o de a p r im o ra m e n to d o e s p ír ito , de v a lo r
pessoal. A s a rte s d o p o v o n u n ca serão a rte p u ra , mas a rte s
interessadas. M eu avô saiu d o p o v o . . . e m b o ra fosse de fa m ília
tr a d ic io n a l. P o rq u e os o u tr o s h o m e n s d o p o v o não s u b ira m
c o m ele? Si eu h o je g o z o B ach, g o z o M ig u e la n jo e g ozo da
m esm a fo rm a esta casa q u e f o i p ro je ta d a p o r O sca r N ie m e y e r,
isso é u m a s u p e rio rid a d e q u e eu c o n q u is te i, u m a reco m p e n sa
d o m eu e s fo rç o !
— A p o ia d o s ! quase g rito u F e lix de C im a , q u e e n fim
c o m p re e n d ia a lg u m a co isa . Isso de fa la re m em classes, em lu ta
de classes, é b o b a g e m de g e n te d e s p e ita d a , q u e só q u e r s u b ir
m as só v iv e n o seu g a b in e te . C on he cesse m a v id a c o m o e u ! T e m
gen te q u e sobe e g e n te q u e n ã o fa z o m e n o r e s fo rç o p ra s u b ir!
Isso é 'q u e é! N ã o é classe. A g e n te tr a ta b em deles, c o ita d o s ,
n ã o te m ta n ta in s titu iç ã o de c a rid a d e p o r a í! A g o ra n ã o estam os
c o n c lu in d o a P o lic lín ic a m a io r d o m u n d o ! P o b re e ric o , grandes
e p e q u e n o s, isso n ã o é classe, é re g is tro de v a lo r.
S io m a ra Ponga estava a b a tid a c o ita d in h a , uns o lh o s
saudosos, lon ge . R e c o m e ç o u fa tig a d a :
— Eu ta m b é m . . . T a lv e z to d a a a rte " e r u d it a " seja u m e rro
in fa m a n te d os d o n o s -d a -v id a . . . T a lve z seja u m e rro . . . V o c ê d iz
q u e está le n d o s o c io lo g ia , S arah L ig h t. T a lve z a a rte e ru d ita , c o m
suas co n se q u ê n cia s de "b e la s a rte s " , de " a r te p u r a " , seja u m avan ço
in d e v id o da " c iv iliz a ç ã o " so bre a " c u lt u r a " , no s e n tid o s o c io ló g ic o
dessas palavras. N ã o se tra ta de c o n c e b e r c o m o a rte e ru d ita a
p e rfe iç ã o e m esm o o re fin a m e n to té c n ic o . Isso a in d a é a rte s a n a to .
E é, " s e n s o r ia l" , n o te , o h o m e m d o p o v o a " r e c e b e " da m esm a
fo rm a q u e eu. Já a té c n ic a in d iv id u a lis ta a bem d iz e r só
c o n s c ie n tiz a d a d o R o m a n tis m o p ra cá, o e s tilo pessoal, são sem pre
d e fo rm a d o re s da fu n c io n a lid a d e da o b ra -d e -a rte . F id ia s não teve,
nem P a le strin a . N e m o p ró p r io B ach, nem o p ró p r io M o z a rt, nem
o p ró p r io M ig u e la n jo , nem os renascentes ita lia n o s , q u e se
d is tin g u e m m u ito m ais p o r escolas, e c u ja p e rs o n a lid a d e in d is c u tív e l
era neles apenas u m a fa ta lid a d e . Da m esm a fo rm a q u e é fa ta lid a d e
o n a c io n a lis m o da a rte fo lc ló r ic a , e d e n tro d u m a m esm a reg iã o de
c a n ta d o re s p o p u la re s , u m deles a fe iç o a r m ais ta l v e rs o -fe ito , ta l
m o tiv o r ítm ic o - m e ló d ic o , e m esm o in v e n ta r coisas só d ele. Mas
obse rve a a rte fla m e n g a , s o b re tu d o na p in tu ra . U m a c o n s titu iç ã o
de so cie da de m u ito m ais burguesa ta m b é m to rn a esses p in to re s ,
m esm o d e n tro da m esm a escola m u ito m ais d is tin g u ív e is e n tre si,
m u ito m ais pessoais. A d ife re n ç a e n tre u m R e m b ra n d t e u m
T e n ie rs , e n tre u m F ra n z H als e u m R u b e n s já são u m a o b ra de
v o n ta d e de e sp e c ific a ç ã o pessoal, ao passo que a d ife re n ç a
e n tre u m R afae l e o p r ó p r io M ig u e la n jo , e n tre u m T ic ia n o
e u m V e ro n e se é m u ito m ais u m a fa ta lid a d e d o in d iv íd u o , q u e
um a c o n sciê n cia d o in d iv id u a lis m o . O p ró p r io Da V in c i, u m
te o ris ta in v e te ra d o , u m " p e r s o n a lis ta " se c o n fu n d in d o m u ito
co m os o u tro s p in to re s a n te rio re s e p o s te rio re s a ele da m esm a
escola d o n d e ele saiu. A té que p o n to a c o n s c ie n tiz a ç ã o d u m a
a rte " e r u d it a " é u m a e scam ote a ção m o n s tru o s a da ve rd a d e
da a rte , p ro d u z id a p e lo s m o v im e n to s sociais, isso é q u e eu
nem q u e ro pensar. . .
F o i neste m o m e n to q u e o c o m p o s ito r J a n jã o e o
e s tu d a n te de D ir e ito Pastor F id o assom aram à p o rta d o ja rd im
de in v e rn o . E ta n to a m ilio n á ria S arah L ig h t, c o m o a cé le b re
v irtu o s e S io m a ra Ponga e o p o lí tic o F e lix de C im a ,
s u b p re fe ito de M e n tira , a s im p á tic a c id a d in h a da A lta P a ulista ,
tiv e ra m a m esm a id é ia . O te m p o passara e eles m u ito
e n tre tid o s n a q u e le le ro -le ro e s té tic o . N ão tin h a m c o m b in a d o
nada a re s p e ito d o c o m p o s ito r!
O A p e ritiv o

Situação atual, téc n ica e


prática da m úsica e do
com p o sito r brasileiros. O
m undo oficial. O ensino.
A crítica, sua desorientação,
ignorância e com adrism o.
Sarah L ig h t q u e estava u m b o c a d o irrita d a c o m o a tra so
de J a n jã o , antes m esm o de esperar q u e este se d irig is s e a ela
e a saudasse, o s te n s iv a m e n te se ergueu e f o i d ar a lg u m sinal
na c a m p a in h a e sco n d id a na parede. Só e n tã o d e ix o u -s e saudar,
m u ito vaga. Ja n jã o se v o lto u para a p re se n ta r o c o m p a n h e iro ,
mas o ra p a z fic a ra e sp e ra n d o lá na p o rta .
— V e n h a cá. P astor F id o .
— Q u e m é esse, fa lo u c la ro S arah L ig h t, sem n e n h u m a
surpresa p o rq u e já estava a co stu m a d a a ta n ta gen te q u e vinh a
lhe fila r as c o m id a s .
— S arah, lhe a p re s e n to o m eu a m ig o . P astor F id o ,
e s tu d a n te de D ire ito .
— E passador de a p ó lic e s da C o m p a n h ia de Seguros A
In fe lic id a d e m in h a se n h o ra . Mas v e rd a d e ira m e n te , c o m o d iz
M a c h a d o de A ssis eu sou a m o c id a d e , eu sou a a m o r para. . .
d e s cu lp e , ia d iz e r "p a ra s e rv i-la ", mas c o m o a senhora não
precisa d o m eu a m o r, d e p o n h o aos vossos pés a m in h a
a d o ra ç ã o .
Era um a d e s e n v o ltu ra falsa q u e fa zia o rap az ser tã o
d e sa stra d o assim , n u m m e io e s c o la d fs s im o , em q u e to d a
a qu ela p a ro la g e m não tin h a a m e n o r fo rç a . Só d 'a í a p o u c o ,
q u a n d o a s itu a çã o d e le fosse acla ra d a e a ce ita p o r to d o s .
P astor F id o re a d q u iriria a sua d e s e n v o ltu ra n a tu ra l. Sarah
L ig h t fe z um a ca re ta pra s ig n ific a r q u e s o rria , mas estava
in d ig n a d a . In d ig n a d a c o n s ig o m esm a, ente nd a -se . A e s tu p id e z
d o m o ç o não a a p ie d a ra u m is to , mas a q u e la m o c id a d e ,
a q u e la graça de c o rp o n o v o , su jo de saúde, a d e r ro to u .
A p ro v e ita v a as saudações de to d o s pra se nta r c o m r a c io c ín io ,
to d a d e sn o rte a d a em seu a m o r p o r J a n jã o . N ão tin h a mais
v o n ta d e n e n h u m a de p ro te g e r esse id io ta q u e em vez d e se
d e fe n d e r, lhe p u n h a casa a d e n tro a irre s is tív e l prom essa d p m
ro m a n c e de m ãe. F e liz m e n te o b u r ro d o p o lí t ic o F e lix de
C im a não sabendo a g u e n ta r o s ilê n c io q u e c a íra , v e io co m
um a b e s te ira :
— C o m q u e e n tã o , te n h o m u ito p ra ze r em c o n h e c ê -lo ,
m eu ca ro c o m p o s ito r. A m in h a boa a m iga já tin h a m e fa la d o
de você e fa re i o possíve l pra p ro te g ê -lo , va m o s a ver.
J a n jã o fic o u b ra n c o c o m a b o fe ta d a . S io m a ra q u is se
m e x e r mas não se m e x e u . A m ilio n á ria a té s e n tiu v o n ta d e de
c h o ra r. F o i fa la n d o c o m um a ca lm a q u e e n g a n o u fá c il J a n jã o :
— Eu c re io , F e lix de C im a q u e vo cê fa rá b e m , você
n ã o ! mas o E stad o de M e n tira em se u tiliz a r d e u m a g rande
fig u ra de a rtis ta n a c io n a l, mas (ia h e s ita r, mas m e n tiu c o m
um a co ra g e m m a s c u lin a ) nun ca lhe fa le i q u e J a n jã o precisava
da sua p ro te ç ã o .
— E n tã o !. . . e n tã o eu não e n te n d o nada!
— E n te n d e u tu d o , m eu a m ig o (irro m p e u S arah b em
depressa), eu c o n h e ç o a boa o rie n ta ç ã o q u e vo cê im p rim e às
artes d e M e n tira , e p o r isso q u is lh e a p re s e n ta r o nosso m a io r
c o m p o s ito r.
— N e m to d o s são da m esm a o p in iã o . . .
S arah v o lto u -s e e s tu p e fa c ta . E n fim S io m a ra Ponga saíra
d o seu s ilê n c io , e o fiz e ra e s c o lh id a m e n te c o m a q u e la frase
d ú b ia , q u e n in g u é m sabia b e m si atacava a o rie n ta ç ã o d o
p o lí tic o o u o V alor d o m ú s ic o . J a n jã o s e n tiu u m f r i o na
b a rrig a , p o rq u e tin h a c o n sciê n cia da fo rç a in te le c tu a l da
v irtu o s e . E p o r causa disso m esm o a n tip a tiz a v a c o m ela,
re c o n h e c e n d o n u m ín tim o ja m a is co n fe ssa d o q u e m e sm o em
m úsica ela sabia m u ita coisa q u e ele, p o r d e s le ix o e ta m b é m
p o r m is é ria , não se d e v o ta ra em saber. S io m a ra , se m p re
im ó v e l, não co nse gu ia t ir a r os o lh o s d o s pés de J a n jã o . O
c o m p o s ito r s e g u iu -lh e os o lh o s e p e rce b e u q u e estava c o m os
pés s u jís s im o s d e p o e ira , ah m eu D eu s! ele ja m a is co n se g u irá
o rg a n iz a r d ir e ito a qu ele m o n tã o de ossos q u e era, andava
e sp a lh a d o , e a c a m in h a d a lhe d e ix a ra os sapatos naq ue la
in d e lic a d e z a . F ic o u m o r to de ve rg o n h a . Mas a v irtu o s e f o i a
p rim e ira coisa q u e v ira . Era fr ia S io m a ra Ponga. Era h ig ié n ic a
p o r d e m a is. P o rq u e era fr ia . Estava tã o b e m d is p o s ta a
re s p e ito de J a n jã o , mas a qu eles pés sujos a re p u g n a ra m e
fic a ra a n tip a tiz a n d o a lé m d o h u m a n o c o m ele. T o d o s lhe
tin h a m se g u id o os o lh o s , era n a tu ra l. F e lix de C im a não se
im p o r to u , mas S arah L ig h t s e n tiu u m g o s to d e s a c rifíc io
o lh a n d o a queles pés sujos d o h o m e m . Pôs-se a a m a r c o m
fra g o r. A frase da c a n to ra era m esm o c o n tra J a n jã o , mas
P astor F id o q u e e n fim v o lta v a à sua n a tu ra lid a d e tro p e ç o u no
G o v e rn o :
— A senhora te m ra zã o , eu ta m b é m não a c h o q u e o
E sta d o esteja b e m o rie n ta d o nessa h is tó ria de p ro te g e r, aliás,
o q u e eu q u e ro saber é n o q u ê ele está b e m o rie n ta d o nesta
T e rra !
— E m m u ita coisa, ra p a z ! b e rro u F e lix de C im a o d ia n d o
o p ir r a lh o . Q u ise ra g a ra n tir q u e o G o v e rn o estava b em
o rie n ta d o " e m t u d o " , mas sem saber p o rq u e , não g a ra n tiu ,
p re fe riu o " m u it a c o is a ".
— Mas eu não fa le i d o G o v e rn o . . .
— F a lo u !
— N ão fa le i!
— Mas será q u e vocês vão b rig a r na m in h a casa! disse
S arah L ig h t, s a tis fe ita . P astor F id o a vingava da in c o n v e n iê n c ia
da o u tr a . L h e d e u u m a v o n ta d e im ensa de a lisa r os ca be lo s
d o m o ç o . Mas este não p e rce b ia nada e ela se v o lt o u pra
J a n jã o d e s ilu d id a :
— J a n jã o vo cê está in c o m o d a d o a to a c o m a p o e ira dos
seus pés. Vá lá d e n tr o , peça ao L in o q u e lhe passe u m p an o
nos sapatos. V o c ê sabe o c a m in h o .
Era m e n tira d e la só pra d a r a p e rce b e r q u e J a n jã o lhe
c o n h e c ia a in tim id a d e d o la r. Ja n jã o p e d iu lice n ça e fo i,
a p ro v e ita n d o a c a m in h a d a , fic a ra tã o d e s a n im a d o , pra ver si
as u nh as estavam lim p a s . E stava m sim , disso ele não esquecera
n a q u e la m a n h ã c u id a d o s a . Mas S io m a ra c o m e n ta v a im p la c á v e l:
— V o c ê fe z b e m , S arah em m a n d á -lo lim p a r os sapatos,
eu já não co n se g u ia m e ve n c e r. O q u e eu lo u v o é sua
h a b ilid a d e , c o m ta n ta d e lic a d e z a p o n d o na c o n s c iê n c ia de
J a n jã o q u e a n d a r c o m pé su jo é fa lta de e d u ca çã o . V o c ê é
e x tra o rd in á ria S arah (E stava surpresa c o n s ig o m esm a em
lo u v a r S arah L ig h t mas o e lo g io viera irre s is tív e l. S e n tia agora
u m a v o n ta d e d e a g ra d a r a m ilio n á ria , não sabia p o rq u e . Mas
a ra iva p o r J a n jã o c o n tin u a v a ). Eu não posso c o m p re e n d e r
essa e stra n h a fa c u ld a d e d e e s q u e c im e n to de si m e sm o , q u e fa z
ta n ta g e n te v iv e r sem dese spe ro na fa m ilia r id a d e d o h o rro ro s o .
Na D in a m a rc a , só v e n d o ! to d a a g e n te a nda lim p a , tu d o é
a rra n ja d in h o c o m b o m g o s to , m esm o na casa d o s cam poneses
m ais b a ix o s .
— Os ca m p o n e se s não são b a ix o s !
— N ã o , P a sto r F id o ! eu q u is d iz e r. . . É c o m o to d a a
g e n te fa la !
— Eu sei, mas fa la m a l. A se nh ora q u e é b e m b o n ita
d e via te r b a s ta n te s e n s ib ilid a d e de in te lig ê n c ia p ra in v e n ta r
o u tr o m o d o d e d iz e r.
— Mas a fin a l m e n in o , o q u e vo cê v e io fa z e r a q u i?
— Isso não é da sua c o n ta , eu só d o u s a tisfa çã o à don a
da casa.
Mas fa la va s im p le s , b o ca ris o n h a , o lh o s de e sp e lh o , voz
tã o sensível d e s in c e rid a d e , e a in d a m ais a beleza irra d ia n te
da ju v e n tu d e , era im p o s s ív e l d e te s ta r o P a sto r F id o . S io m a ra
s e n tiu q u e to d a a raiva dela se d ilu ía n u m a h u m ilh a ç ã o sem
d o r. S arah s o rria m a te rn a l. F e lix de C im a estava im a g in a n d o
q u e se tra ta v a d u m ra p a z m u ito a p ro v e itá v e l. T a lv e z ele
conseguisse q u e q u a lq u e r F u n d a ç ã o n o rte -a m e ric a n a desse um a
bolsa p ro m o ç o ir se e d u c a r nos E stad os U n id o s . V o lta ria
c o m o u tra visão d o m u n d o , m en os s o c ia lis ta , q u e era o que
o estragava. A v e rd a d e p o lític a estava na d e m o c ra c ia de
W a ll-S tre e t. F ic o u in d e c is o . . . Era tã o ig n o ra n te q u e não se
le m b ra va d ir e it o si a ca m a ra d o s d e p u ta d o s d e lá se cham ava
W a ll S tre e t o u G ra n d C a n y o n .
Os d o is c ria d o s chegavam c o m o a p e ritiv o e J a n jã o .
S arah L ig h t a viso u lo g o :
— S io m a ra Ponga o e scuro é P o rto . V o c ê d eve d e te s ta r
as b e b id a s m ais fo r te s e o b ra n c o é o " c o c k t a il " V e rd e e
A m a re lo .
F e lix de C im a , fin g in d o d is tra ç ã o ia se a p o ssa n d o d u m
P o rto ta m b é m , m as a m ilio n á ria d e s a p o n ta d a e scla re ce u q u e
m an da ra fa z e r o " c o c k t a il " p o rq u e te ria m a lg u n s p ra to s fo rte s
d o B ra s il. O p o lí tic o s u s p ira n d o , c u m p riu o d ese jo da
m ilio n á ria . P ro v o u c o m p a ciê n cia mas lo g o a cara d e le se
ilu m in o u to d a .
— V o c ê fa lo u q u e era " c o c k t a il" , is to é u m a le g ítim a
b a tid a p a u lis ta ! C a n in h a . . . d e ix a eu ve r. . . (p ro v o u o u tra vez)
não é fe ita de cana, é fe ita de c a n in h a m e s m o , em a la m b iq u e
de b a rro , fa b ric a ç ã o p a rtic u la r. D isso, c o m o p ro g re sso não
fa z e m m ais lá no B ra sil. C o n fe s s o : eu d e te s to os " c o c k t a ils " ,
é um a das m a io re s p ro vas da d e ca d ê n cia d o g o s to d o p a la d a r.
Prova m a io r só m e sm o a c a rn e d o ze b u d o guze rá e o u tro s
interesses a n g lo -a rg e n tin o s de p io ra re m p o r u m s é cu lo os
re b a n h o s d o B ra s il. Mas o " c o c k t a il " ta m b é m é u m a
im o ra lid a d e , S a ra h ! Os á lc o o is p e rd e m q u a lq u e r d ig n id a d e na
m is tu ra .
— A b a tid a ta m b é m é u m a m is tu ra .
— É, não te m d ú v id a . . . Mas a b a tid a p a u lis ta , h o m e m ,
p e lo m en os é u m v íc io . A s o u tra s c o m m a ra c u já , c o m não
sei o q u e m ais, são d u m c a fa je s tis m o in d e c e n te . O lim ã o p e lo
m e n o s d is fa rç a o c h e iro fa tig a n te da c a n in h a , e não se m is tu ra
c o m ele. E c o m o não te m o a d o c ic a d o de o u tra s fru ta s , d o
a b a c a x i, da m anga, c o n s e n te u m p o u c o de a çú ca r v e rd a d e iro .
Mas u m p o u c o só, c o m o nesta b a tid a . O p e rig o da b a tid a
p a u lis ta é e x ig ir se m p re estar g e la d ís s im a , p ra q u è vo cê não
lança a m o d a , S arah? D e v ia m se rvir a b a tid a c o m o q u e m
serve " c o c k t a il " de o s tra s , d e n tro d u m m o n te d e g e lo p ic a d o .
Mas s u s te n to : a b a tid a s o fre d o m e sm o d e fe ito dos
" c o c k t a ils " , é u m a fa lc a tru a d o g o s to , u m a m is tu ra q u e tir a a
d ig n id a d e d o á lc o o l.
— Mas ta m b é m a g e n te c o m e tu d o em m is tu ra e não
tir a a d ig n id a d e da ca rn e .
— N ã o d iga to lic e , m eu f ilh o . A s carnes são irra c io n a is ,
ao passo q u e os v in h o s e os lic o re s são u m a c ria ç ã o a r t if ic ia l
d o h o m e m . E tã o s u b lim e c o m o o seu C am ões, fiq u e sa be nd o.
C arne e vegetal q u a lq u e r b ic h o c o m e , mas o h o m e m p re p a ra ,
c o n d im e n ta e c o m b in a , pra fa z e r o p ra to , o P ra to , está
e n te n d e n d o b e m ! q u e é u m a tin g im e n to tã o s u b lim e c o m o
e sse.B ach q u e vo cê g osta.
— Eu nao fa le i q u e g o s to de B ach.
— V o c ê não gosta de B a ch ! in te rv e io S arah a sso m b ra d a .
Mas P a sto r F id o deu de o m b ro s , m e io c o m re m o rs o . De
Bach ele gostava s im , não sabia b e m p o rq u e , m as gostava.
R espondeu:
— D o q u e eu não g o s to m esm o é de M o z a rt. Q u a n d o
ele e n tra c o m a qu e la c o n to ria q u e está se m p re a c a b a n d o , até
parece o V ic e n te C e le s tin o . Isso: M o z a rt é o V ic e n te C e le s tin o
d o S é cu lo D e z o ito .
J a n jã o c a iu na risa d a , g o s ta n d o m u ito da to lic e d o
a m ig o . E le sabia q u e a caçoada havia de f e r ir S io m a ra Ponga,
m o z a rtia n a ir r e d u tív e l. A c a n to ra se m e x e u n o lu g a r, mas
p re fe riu não re s p o n d e r. O lh o u J a n jã o c o m ó d io . S arah L ig h t
se s e n tiu d e sa rvo ra da n a q u e le a m b ie n te em q u e havia d o is
sabidos de m úsica. O e s n o b is m o d e la , c o n tr o la d o pela
h a b ilid a d e is ra e lita da in te lig ê n c ia não so ub e o q u e d iz e r. Mas
F e lix de C im a se e rgueu pra m e lh o r d o g m a tiz a r. Era p o lític o ,
mas co ra g e m ele tin h a , pegaria em arm as si fosse p re c is o , sem
n e n h u m m e d o d e m o rre r. A q u e le je ito de tr a ta r e m M o z a rt,
B ach g én io s re s p e ita d o s !. . . E n tã o c o m o é q u e esses levia no s
h a via m de tr a ta r D eus, P á tria , F a m ília e o G o v e rn o ! G a ra n tiu :
— M o z a rt é u m g ê n io , re s p e ite m !
Ja n jã o to m o u p a r tid o p e lo m o ç o :
— M o z a rt p o d e ser g ê n io , si q u is e r, mas nada im p e d e
q u e o p re c o n c e ito da g e n ia lid a d e q u e to rn a in to c á v e is ta n to s
m estres d o passa.dp, seja o p io r to ta lita r is m o q u e c o rro e as
artes. O u o se n h o r nega o d ir e ito d e c r ític a ?
— N ão nego coisa n e n h u m a , e é p o r isso q u e o nosso
G o v e rn o a ceita u m a câ m a ra de d e p u ta d o s .
— Mas te m o G E L O (G ru p o E sco lar da L ib e rd a d e de
O p in iã o ).
— E fa z m u ito b e m , o ra essa!
A m ilio n á ria ve io em s o c o rro d o p o lí t ic o :
— Mas vocês d o is não negam q u e u m g o v e rn o precisa
c o ib ir essa m an ia dé a ta ca r q u e to d o o m u n d o te m . Q u e m
está p o r b a ix o ataca sem pre.
— E q u e m está p o r c im a não q u e r ser a ta c a d o .
— Mas é a p ró p ria c r ític a , são os liv ro s , são os nossos
jo rn a is , q u e a firm a m q u e B ach e M o z a rt são g é n io s!
— Esse é u m d o s p rin c ip a is d e fe ito s d a c r ític a
u n iv e rs a l, e da c r ític a de M e n tira em p a r tic u la r: o
p re c o n c e ito da gra nd eza dos g én io s, o b rig a n d o a g o sta r
de tu d o o que eles fiz e ra m , e a tra d iç ã o d e ix o u . T o d a a
c r ític a d evia se im p o r , de geração em geração, u m a revisão
de va lo re s.
— A c r ftic a d e M e n tira ! c a s q u in o u S io m a ra Ponga, q ue
e n fim se achava de a c o rd o c o m J a n jã o , apesar da a n tip a tia
q u e estava s e n tin d o p o r ele.
— Mas vo cê é tã o e lo g ia d a pela nossa c r ític a , S io m a ra !
d o q u e vo cê se q u e ix a !
— Da ig n o râ n c ia , da b u rric e , S arah L ig h t. M e e lo g ia m e
eu sou g ra ta aos e lo g io s, mas não m e e n te n d e m . N ã o sabem
nada de escola d e c a n to , de em issão v o c a l. . . À s vezes
e x e c u to u m a coisa d if ic í lim a q u e levei anos pra c o n s e g u ir,
n in g u é m p e rce b e . E o p io r é q u e em M e n tira já a c r ític a
passou d a q u e le p e río d o d o c o m a d ris m o d os jo rn a is , em q u e
era se m p re o b rig a d a a e lo g ia r, fa la n d o na beleza d o r e c ita l, no
p ú b lic o n u m e ro s o e ir c o rre n d o saber da c a n to ra q u a is as
peças q u e e x e c u ta ra fo ra d o p ro g ra m a , pra b o ta r n o jo r n a l.
A g o ra n ão , é c r ític a p ro fis s io n a l, assinada, mas o d e s c a la b ro
c o n tin u a o m esm o. C o m a p re te n sã o a m ais. O c o m a d ris m o
c o n tin u a o m e sm o . E um a falsa a p a rê n c ia d e im p a rc ia lid a d e ,
fa z os c r ític o s ta n to m e e lo g ia re m a m im c o m o a essas
v irtu o s e s péssim as q u e a p a re ce m p o r a í sem saber sequer o
q u e é e m p o s ta ç ã o , não tê m e s tilo e c a n ta m S c h u b e rt e F a u ré
da m esm a m a n e ira . Mas ju s ta m e n te esse é o m a io r d is fa rc e
d o s c r ític o s : já a p re n d e ra m to d a a te rm in o lo g ia da c r ític a q u e
d e c o ra ra m nas revista s e u ro p é ia s, e é u m D eus nos a cud a.
Q u e m lê, fic a re s p e ita n d o esses c r ític o s , fa la m em e s tilo ,
fa z e m q u e s tã o de p ro c u ra r no d ic io n á rio m u s ic a l, p o u c o a nte s
d o c o n c e rto , a época d e C a ld a ra , se e n ch e m d e fra s e s -fe ita s
da c r ític a m u s ic a l, e m p o s ta ç ã o , em issão. Mas é t u d o u m jo g o
d e p alavra s, u m ca rn a v a l de p a la v re a d o té c n ic o pra ta p e a r. À s
vezes d e p o is de u m c o n c e rto de ce rta s c a n to ra s q u e a p a re ce m
p o r a í, ch eg o a fic a r a lu c in a d a , p o rq u e o q u e a c r ític a disse
não te m nada c o m as to lic e s q u e ela fe z .
— A in d a se fosse só n o c a n to . . . E nós, os desgraçados
d o s c o m p o s ito re s ! os re g e n te s! À s vezes u m a tu b a erra a
e n tra d a , mas o c r í t ic o não p e rce b e u coisa n e n h u m a e vem
c r itic a n d o a g e n te p o rq u e não estava n o e s tilo . E e n tã o as
o b ra s nova s! N ã o sabem nada de té c n ic a , fa ls ific a m tu d o
p o rq u e não p o d e m a na lisa r nada. C o m o é q u e u m in d iv íd u o
desses te m o d e sco co de d iz e r q u e u m a o b ra é d e fe itu o s a , si
ig n o ra m a te s s itu ra d e u m v io lin o , si são incapazes de a n a lisa r
u m a c o rd e !
— N ã o , nisso vo cê não te m razã o n e n h u m a , J a n jã o !

Í
a lo u o P astor F id o in d ig n a d o . É e s tra n h o , na co nve rsa q u e
ive m o s no p a rq u e vo cê estava tã o b e m o rie n ta d o , mas agora
|e jo q u e você é c o m o os o u tro s .
— C o m o os o u tr o s , d o b re a lín g u a !
— Quase ta n t o c o m o os o u tro s . V o c ê , c o m o a in f in ita
m a io ria d o s a rtis ta s d o nosso te m p o , inca pa zes de re s o lv e re m
c o m c o ra g e m os seus p ro b le m a s m o ra is d e a rtis ta s , vocês se
r e fu g ia ra m na té c n ic a . O slo g a n da " a r te pela a rté ~ jã~ passou
pra vocês to d o s , e isso m esm o p o r in flu ê n c ia b e n é fic a da
c r ític a , mas sem ser m ais p ro n u n c ia d o , na ve rd a d e ele
persevera nessa fu g a para a " té c n ic a pela té c n ic a " , q u e é um
e s te tic is m o tã o . g r a n fin o c o m o q u a lq u e r o u tr o . Pra vocês, você
e S io m a ra Ponga, c o m p o s ito re s e v irtu o s e s , e p in to re s , e
a rq u ite to s e t u t t i q u a n ti, c r ític a boa é a q u e fa la na su tile za
d u m c o rn o inglês b e m e m p re g a d o e na m ir ífic a d e lica d e za
d u m a c o rd e q u e não sei c o m o se ch a m a . T é c n ic a , té c n ic a , só
té c n ic a ! Si vocês e x ig e m u m a c r ític a té c n ic a em vez de um a
c r ític a b o a , é p o r ig n o râ n c ia o u e s q u e c im e n to d o q u e seja a
fn ú sica in te g ra l, a A r t e e n fir n ^ C rític a não é a p o n ta r as
q u in ta s , c o m o b e m caçoava S c h u m a n n . Mas m e sm o p o r vocês,
si o c r í t ic o d e s c o b re q u e na o rq u e s tra u m a tr o m p a fa ls ific o u
u m ré, e n tã o o c r í t ic o é re s p e ita d o . . . -----
Eu n ão e s to u q u e re n d o d e fe n d e r a/ c r í t ic a d e _ M e n tira \
não , q u e ta m b é m a ch o in fe c ta . Mas é in fe c ta p rin c ip a lm e n te
pelas id io tic e s q u e S io m a ra Ponga a p o n to u : o c o m a d ris m o ; a
fa lta de d is c e rn im e n to n o e lo g io q u e ta n to saúda u m reg en te
péssim o e im p ro v is a d o c o m o u m q u e a p re n d e u a reg ên cia e é
u m p ro fis s io n a l; e o a ta q u e soez q u a n d o se tra ta de
b rig u in h a s de g ru p o s c o n tr á r io s , de q u e o c r í t ic o p a rtic ip a . E
ta m b é m essa d e te s tá v e l a p a rê n c ia de c o n h e c im e n to
p ro fis s io n a l, m a n is fe ta d o p e lo a b u so da te rm in o lo g ia té c n ic a .
Mas ta m b é m im a g in a r q u e c r ític a boa é a c r ític a té c n ic a , é
u m a to lic e . Na ve rd a d e a té c n ic a d e ix a de e x is tir , assim que a
o b ra -d e -a rte é c o m p le ta e p r in c ip ia fu n c io n a n d o c o m o a rte .
E si os va lo re s, as q u a lid a d e s , os d e fe ito s té c n ic o s d u m a o b ra
p o d e m ser e s tu d a d o s p e lo c r í t ic o , é d e v id o e x c lu s iv a m e n te à
c o m p le x id a d e da c r ític a , q u e a lé m de o rie n ta r o p ú b lic o e lhe
a u x ilia r a c o m p re e n s ã o da o b ra -d e -a rte , ta m b é m é u m a espécie
d e p ed ag og ja d os a rtis ta s os to r n a n d o m ais c o n s c ie n te s d os
seus va lo re s c o n s tr u tiv o s e suas d e fic iê n c ia s . M as na verdade, a
c r ític a só e n te n d e c o m a fu n c io n a lid a d e a rtís tic a da
o b ra -d e -a rte , e nisso a té c n ic a d e ix a d e e x is tir . Mas si já u m
p o u c o na c r ític a das a rte s p lá s tic a s e re g u la rm e n te na c rític a
lite r á r ia , se p erceb e a lg u m p ro g re sso nos e s c rito re s d e M e n tira ,
e já re in a u m e s p ír ito u n iv e r s itá rio , u m e s p ír ito h u m a n ís tic o
q u e busca s itu a r a o b ra -d e -a rte n o seu te m p o e em si m esm a,
, na m úsica é u m d e s c a la b ro . A liá s essa m esm a ig n o râ n c ia d o
e s p ír ito m ais u n iv e rs a l, m ais h u m a n ís tic o , q u e e studa
filo s o fic a m e n te a o b ra e u m a rtis ta , ta m b é m e x is te em vocês
a rtis ta s . P o d e m fa la r mas o q u e vocês q u e re m m e s m o , vocês
to d o s , a in f in ita m a io ria d os m ú sico s é o c o m a d ris m o da
c r ític a . P o rq u e q u a n d o esta avança m ais, não só vocês sabem
q u e são c u lp a d o s , c o m o fic a m a tó n ito s c o m o b se rva çõe s
p s ic o ló g ic a s , v e rific a ç õ e s s o c io ló g ic a s q u e não e n te n d e m e em
q u e ja m a is p en saram . E e n tã o fic a m im a g in a n d o q u e o c r í t ic o
não g o s to u ! Só p o rq u e em vez d o e lo g io na b a ta ta , ele
e s tu d o u .
— Eu não e n te n d o disso q u e você está fa la n d o , ra p a z,
m as a c h o a nossa c r ític a m u ito b o a . N o jo r n a l d o G o v e rn o , a
c r ític a m u s ic a l é fe ita p o r u m m o ç o m u ito d is t in t o q u e
e s tu d o u na E u ro p a . A té é e s tra n g e iro d e nascença e eu sou
c o n tra os e s tra n g e iro s q u e vê m nos e n sin a r. M e n tira te m tu d o
e não precisa de e stra n g e iro s. N ós p re c is a m o s n a c io n a liz a r
M e n tira , c o m o estão fa z e n d o no B ra sil e na A r g e n tin a , esses é
q u e estão b e m o rie n ta d o s .
— Isso d e ser e s tra n g e iro o u n a c io n a l não te m
im p o rtâ n c ia , in te rro m p e u S arah L ig h t d e s p e ita d a . O q u e m e
h o rro riz a é o to m d esa bu sad o c o m q u e fa la m .
— Isso m esm o q u e eu ia fa la r, in te r ro m p e u S io m a ra
Ponga c a lo ro s a m e n te , s a tis fe ita de a p o ia r a m ilio n á r ia . O q u e
m ais m e d á n o jo na c r ític a n a c io n a l é o c a fa je s tis m o d o
tr a ta m e n to . U m je ito d esa b u sa d o , q u e fa z tr a t a r os a rtis ta s
p o r “ o A n a t o le " , “ o Jo ã o S e b a s tiã o ". N ã o e x is te A n a to le , é
A n a to le F ra n c e ! A o s c r ític o s n a c io n a is quase to d o s fa lta
a q u e le re s p e ito n a tu ra l p e lo . , . já n ã o d ig o p e lo a rtis ta , mas
p e lo h o m e m , re b a ix a n d o tu d o a expressões fa m ilia re s . N o
B ra sil é a m esm a co isa . O u e n tã o reagem , mas e m p o la n d o
tu d o e o c a fa je s tis m o fic a o m e sm o . E e n tã o vê m fa la n d o ,
no " s r . M a n u e l B a n d e ira ” , q u a n d o a g e n te está sa b e n d o m u ito
b e m q u e na c o n v iv ê n c ia , c o n h e c e m m u ito o p o e ta e o tr a ta m
p o r vo cê. Na F ra n ç a eu sei, d is tin g u e m os a rtis ta s m o r to s dos
vivo s, tr a ta n d o estes p o r " s r. F u la n o " . Mas não m e parece
possíve l s is te m a tiz a r isso na lín g u a n a c io n a l, tã o va ria d a e
sem fix id e z nos te rm o s de tr a ta m e n to das pessoas. C o m o
fa z e r n ã o sei, mas sei q u e tu d o isso d e m o n s tra m u ito b e m o
nosso jc a fa je s tis m o inqêj i t o ^ q u e n e n h u m a e du caçã o
tr a d ic io n a l a in d a d e s tru iu .
— Pois eu sei. A m in h a te n d ê n c ia é para o jo r n a lis m o , e
a lg u m d ia a in d a h e i-d e fa z e r c r ític a p ro fis s io n a l, essa a m in h a
in te n ç ã o . É m u ito f á c il: o p ro cesso fra n c ê s eu a c h o ta m b é m
in a c e itá v e l pra nós, a nossa lín g u a é m u ito n u a n ça d a e
s in ta x ic a m e n te liv re pra a c e ita r se m e lh a n te s leis fix a s . Mas p o r
causa m esm o desse n u a n ç a d o , as vozes de tr a ta m e n to p o d e m
se o rg a n iz a r n u m e le m e n to de peso, de q u a lific a ç ã o d o a rtis ta
de q u e a g e n te tr a ta . É c o m o eu hei-d e fa z e r. E m vez de
d is tin g u ir os m o rto s d os vivo s, p re firo d is tin g u ir os v iv o s e n tre
si. Q u a n d o eu fiz e r c r ític a , eu só-hei de e m p re g a r o " s e n h o r "
c o m o v a lo r de a fa s ta m e n to , o u de in fe rio rid a d e d o a rtis ta .
N ão é p o ssíve l tr a ta r u m M a n u e l B a n d e ira q u e o B ra s il to d o
co n h e ce , seja pra a d m ira r, seja pra não g o s ta r, p o r " o sr.
M a n u e l B a n d e ira " . Já p o ré m si se tra ta de u m a rtis ta n o v o ,
ao q u a l a in d a não d e m o s a nossa fa m ilia rid a d e e s p iritu a l,
e n tã o eu d ig o " o sr. F u la n o " . E n u n ca tr a t a r n in g u é m p elo
n o m e de b a tis m o , isso é de fa to m u ito c a fa je ste , re c o n h e ç o .
A in d a tr a ta r p e lo n o m e de fa m ília vá lá. M u ita s vezes o n o m e
to d o e n to rp e c e o r it m o da fra se , e m u ita s vezes re p e tid o ,
e n c o m p rid ã o' ta m a n h o d o e s c rito in u tilm e n te . Mas ta m b é m
a ch o im p o s s ív e l p r in c ip ia r u m a rtig o d iz e n d o : "B a n d e ira acaba
de p u b lic a r m ais u m v o lu m e de v e rs o s ". A p rim e ira vez q u e o
n o m e a pa re ce, te m d e ser p o r in te ir o , não ta n to pra ensinar
os q u e p o r acaso a in d a não sa ib am , m as c o m o sin a l de
re s p e ito pela in te g rid a d e d o n o m e . Pela d ig n id a d e d o n om e,
c o m o d ir ia a nossa a m iz a d e F e lix de C im a .
— Eu não sei, tr a te m c o m o q u is e re m , isso não m e
in c o m o d a , o q u e eu e x ijo é q u e re s p e ite m os clássicos.
— Eu ta m b é m , c o n fir m o u a m ilio n á ria c o n v ic ta .
— Eu ta m b é m , d e b la te ro u a v irtu o s e , n o v a m e n te vo lta d a
c o n tra J a n jã o . A c h o u m d e s a fo ro isso de tra ta re m M o z a rt
assim c o m o si fosse u m . . . u m c o m p o s ito r v iv o q u a lq u e r.
M o z a rt é u m g ê n io .
— A p e sa r das ca dê ncias. . .
— A p e s a r das ca d ê n cia s, p o is n ã o l P ois si era assim n o
te m p o d e le ! V o cê s fa la m em peso, peso. . . A in d a p e rte n c e ao
c a fa je s tis m o n a c io n a l essa fa m ilia rid a d e desabusada q u e tra ta os
va lo re s v e rd a d e iro s c o m o u m a ç o u g u e iro tr a ta os p ed aço s de carne.
A n oçã o d o re s p e ito fa z p a rte da p ró p ria d ig n id a d e d o c r ític o .
— A n o çã o d o re s p e ito fa z p a rte da p ró p ria d ig n id a d e
d o c r í tic o , não há d ú v id a . Mas a ta c a r, re c o n h e c e r d e fe ito s ,
não é d e s re s p e ito .
— É.
— A se n h o ra , c o m esse excesso d e n o çã o de re s p e ito , o
q u e não q u e r é ser a taca da , e pra isso se serve d e M o z a rt.
A c é le b re v irtu o s e q u is re s p o n d e r, o lh o u c o m u m
d e sp re zo d e s tru id o r o e s tu d a n te , mas p re fe riu a rra n ja r o
v e s tid o , u m p o u c o re p u x a d o no m e x e -m e x e da co nve rsa .
F ic o u tr iu n f a l. O m o ç o p e rce b e u to d a a q u e la tr iu n fa lid a d e
d e s lu m b ra n te da b e le za , mas não se in c o m o d o u . O in s tin to
m ais que a e x p e riê n c ia o fa z ia p e n d e r pra S arah L ig h t,
e m b o ra m e n o s b o n ita e m ais velha-. C o n tin u o u im p la c á v e l.
— Eu não sei p o rq u e ce rta s pessoas b e m assentadas na
v id a , d ã o pra e x ig ir o re s p e ito a e x ig ê n cia v ita l. O q u e vocês
não q u e re m é ser d e s c rito s pela g en te, p o rq u e não c o n v é m
q u e o p o v o se esclareça (V o lto u -s e pra S arah L ig h t, c o m
o lh o s tã o in fe liz e s , q u e e ra m u m a v e rd a d e ira d e c la ra ç ã o de
d e s e jo ): N ão acha m esm o, d o n a Sarah?
A m ilio n á ria não achava, q u e m tin h a razã o era S io m a ra ,
mas n ã o te v e o q u e re s p o n d e r.
— N ão m e tr a te p o r “ d o n a S a ra h ", é h o r rív e l. Mas você
é m u ito n o v o a in d a , P a sto r F id o .
E o m o ç o c o ro u m u ito , e n v e rg o n h a d o c o m a recusa.
O c o m p o s ito r J a n jã o , ia p e rc e b e n d o a fin a l q u e fiz e ra
um a asneira g ra n d e e m te r tr a z id o ao a lm o ç o o e s tu d a n te
P astor F id o , cu ja m o c id a d e quase in d e c e n te de c o rp o e
e s p ír ito estava a ca p a ra n d o to d o s os e n tu sia sm o s da m ilio n á ria .
N ã o p re te n d e u re a g ir p o rq u e gostava d o m o ç o . E m e sm o ,
co n fe s s e m o s : se ntia u m b o c a d o de va id a d e in s u s p e ita da sua
desgraça d e m ú s ic o p o b re e m al re c o n h e c id o em seu v a lo r.
Si S arah L ig h t lhe escapasse ele havia s e m p re de t ir a r a lg u m a
fe lic id a d e de m ais essa in fe lic id a d e . Mas re a g iu sem q u e re r,
c u ltiv a n d o o s e n tim e n to d os presentes c o m o é ta m b é m o
c o s tu m e n a c io n a l d o s b ra s ile iro s . Era in fe liz , isso n ã o há
d ú v id a , mas n a q u e le m o m e n to , sem q u e re r, " b a n c o u " o
in fe liz . R e to m o u o a s s u n to , p ra se e x p o r:
— Mas o p io r neste nosso país de M e n tira não é a
e n o rm e d e fic iê n c ia da c r ític a m u s ic a l q u e não o rie n ta nada
n e m sabe d is c e rn ir; o p io r é o e n sin o q u e ta m b é m se
d e m o n s tra in c a p a z de o rie n ta r e d is c e rn ir. . .
F e lix d e C im a se v iu o b rig a d o a p u la r em defesa de
M e n tira :
— Mas c o m o vo cê te m co ra g e m de d iz e r isso! M e n tira
está cheia d e p ro fe s s o re s p a rtic u la re s , cheia d e c o n s e rv a tó rio s ,
e te m o fa m o s o C o n s e rv a tó rio N a c io n a l, s u s te n ta d o p e lo
G o v e rn o ! ora b o la s ! E você a in d a q u e r m ais!
— N ã o q u e ro m ais, a té q u e ro m enos. Mas c e rto , mas
bem . O q u e e x is te é quase tu d o p é ssim o . O C o n s e rv a tó rio
N a c io n a l não se co nse gu e m e lh o ra r p o r causa d o s ca na strõ e s
b\ue te m lá d e n tro . N ã o há d ú v id a q u e fiz e ra m u m a R e fo rm a ,
p u b lic a d a n o " D iá r io O f ic ia l" , q u e em m u ita s p a rte s era
g x c e le n te , mas quase q u e fic o u nessa p u b lic a ç ã o o fic ia l. Os
b ro fesso res, g ru d a d o s nos seus lugares, c o n v e rtid o s a
e m pregados p ú b lic o s v ita líc io s não tê m o m e n o r in c e n tiv o . E
/ão e n v e lh e c e n d o . M u ito s deles a té p o d e m te r s id o p ro fe sso re s
io n s em m o ço s, mas os te m p o s m u d a ra m e eles não m u d a ra m
'o m os te m p o s . H o je são ru ín a s to m b a d a s , em q u e n in g u é m
p o d e m e x e r, p ro te g id o s p o r leis d e fe itu o s a s , p ro te g id o s pelos
a m ig o s da m o c id a d e h o je b e m c o lo c a d o s na so cie d a d e ,
p o lític o s , m ilita re s , m ilio n á rio s . F ic a ra m ru ín a s in ta n g ív e is .
E e n s in a m r u ín a . B a lu a rte s irre m o v ív e is c o n tra a e v o lu ç ã o da
s e n s ib ilid a d e m u s ic a l. A lg u n s a té são a n jo s d e in o c ê n c ia ,
s a tis fe ito s c o m o lu g a rz in h o q u e a rra n ja ra m pra descansar na
v e lh ic e . N e m sabem q u e a m úsica e x is te e c o n tin u a v iv e n d o e
e v o lu in d o : e n s in a m o q u e a p re n d e ra m , sem a m e n o r
in q u ie ta ç ã o . Basta o lh a r u m a sala de c o n c e rto . D o m ilh e iro de
p ro fe sso re s e x is te n te s e m M e n tira ta lv e z apenas uns dez, e na
m a io ria e s tra n g e iro s , fre q u e n ta m s is te m a tic a m e n te as
m a n ife s ta ç õ e s m u s ic a is da c id a d e . T a lv e z uns v in te vão aos
re c ita is dos in s tru m e n to s q u e e n sin a m . P o rq u e n in g u é m estuda
o u gosta de m ú sica n e ste p a ís, e s tu d a m é u m in s tru m e n to e
só g o s ta m d e le . Mas o re s ta n te d o m ilh e ir o n u n ca aparece em
c o n c e rto n e n h u m . S io m a ra Ponga q u e d iga si n ã o é verdade.
— É v e rd a d e , F e lix d e C im a . E d e m a is a m ais, vocês
fiz e ra m passar essa lei d e te s tá v e l q u e não p e rm ite p ro fesso res
e s tra n g e iro s n o C o n s e rv a tó rio N a c io n a l. C o m isso não há
p o s s ib ilid a d e de n e n h u m a m e lh o ra n o e n s in o , p o rq u e n is to é
p re c is o c o n v ir q u e nós não te m o s tra d iç õ e s pedagógicas
n e n h u m a s . E si te m o s são péssim as.
— V o c ê n ão te m ra zã o n e n h u m a , nós não ca re cem os de
e s tra n g e iro s ! E a lei p ro te to r a d o s p ro fe sso re s n a c io n a is há de
passar da m úsica ta m b é m para a F a c u ld a d e d e F ilo s o fia . Nós
ca re ce m o s de n a c io n a liz a r a nossa U n iv e rs id a d e !
— “ N a c io n a liz a r” é u m a co isa , só a c e ita r p ro fe sso re s
n a c io n a is , já d e fo rm a d o s pelas nossas tra d iç õ e s d e e n s in o , é
u m c rim e . Os nossos p ro fe s s o re s assistentes b ra s ile iro s , nas
fa c u ld a d e s , a lg u m a s vezes já são e xce le n te s. Mas são e xce le n te s
ju s to p o rq u e a p re n d e ra m c o m p ro fe sso re s e s tra n g e iro s e já
estão m u n id o s d e m e lh o re s sistem as e visão m ais larga. O
p ro b le m a da n a c io n a liz a ç ã o d o nosso e n sin o a in d a p o r a lg u m
te m p o , p o r b a s ta n te te m p o ta lv e z , te rá q u e se re s o lv e r c o m o
a u x í lio d o s p ro fe s s o re s e s tra n g e iro s . Mas não só
n o rte -a m e ric a n o s .
— E n tã o os p ro fe sso re s n o rte -a m e ric a n o s são ru in s !
m u r m u r o u a m ilio n á r ia , fe rid a n a q u e le m e ig o p a tr io tis m o
ir r e d u tív e l q u e fa z a g e n te a m a r pra se m p re a te rra em que
nasceu.
— A lg u n s são e x c e le n te s , S a rah . E ta m b é m são
p erig o so s, p o rq u e há p ro fe s s o re s e x c e le n te s e p ro fe sso re s
p e rig o so s e m - t ó d ^ as g ra n d e s c u ltu ra s d o m u n d o . N isso é
q u e está p b u s ilis . /G u a n d o eu fa le i q u e a n a c io n a liz a ç ã o do
nosso e n s W ) a in d a carece d o “ a u x í lio " d e p ro fe sso re s
e stra n g e iro s, f o i ju s ta m e n te p e n sa n d o nisso. N ã o há d ú v id a ,
seria ta p a r o sol c o m a p e n e ira , não há d ú v id a q u e a c u ltu r a
e u ro p é ia está p e rig a n d o ta n to em M e n tira c o m o n o B ra sil.
S o b re tu d o a la tin a . E s o b re tu d o a fra n ce sa . A in d a a ú ltim a
vez q u e d e i u m re c ita l em São P a u lo , e stive c o n v e rs a n d o c o m
o m eu a m ig o , o p ro fe s s o r D e C h ia ra o q u a l m e c o n to u q u e
c e n s u ra n d o u m f ilh o p o r to m a r b o m b a em fra n c ê s no g in á s io ,
o m e n in o se v o lto u p ra ele, m e io ir r ita d o e se a rre p io u : “ Mas
p a p a i, o fra n c ê s é u m a lín g u a m o r t a ! ''. O p ro fe s s o r D e C hia ra
aliás estava e s to m a g a d ís s im o , p o rq u e to d a a c u ltu r a deles
quase q u e se fiz e ra só em fra n c ê s . . .
O e s tu d a n te não se c o n te v e m ais:
— N ós som os u m te rre n o de lu ta , não só c o m e rc ia l, mas
c u ltu r a l para as nações de p rim e ira g ra n d e za . E c o m a g u e rra ,
c o m a d e rro ta da F ra n ç a , a A m é ric a d o N o r te a p ro v e ito u a
o ca siã o , pra ver si nos d o m in a v a c u ltu r a lm e n te ta m b é m .
E m p re g o u m é to d o s e x c e le n te s , e h áb eis quase to d o s , e não há
d ú v id a q u e a c u ltu r a la tin a , e s p e c ia lm e n te a fran cesa está
p e r ic lita n d o a q u i. É u m b e m ? É u m m a l. N ó s não som os
“ la t in o s " eu sei. Mas ta m b é m não so m o s n o rte -a m e ric a n o s .
Nossa c u ltu r a n a c io n a l a in da é d e m a s ia d o fr á g il pra não s o fre r
c o n se q u ê n cia s fu n e s tís s im a s si se ia n q u iz a r. É e n g ra ç a d o : há
c u ltu ra s cu ja in flu ê n c ia é p erig o sa, e o u tra s n ão . P or e x e m p lo ,
eu a c h o a c u ltu r a e spa nh ola m u ito perig o sa pra nós, p o rq u e
d e s v irtu a os ca ra cte re s m ais s u tilm e n te ín tim o s da lín g u a
n a c io n a l. T o d a in flu ê n c ia c u ltu r a l e n ch e u m a lín g u a de
e s tra n g e iris m o s , não há d ú v id a . Mas é c u rio s o c o m o u m
g a lic is m o , u m a n g lic is m o , u m g e rm a n is m o n ã o d e tu rp a m a
s e n s ib ilid a d e p s ic o ló g ic a da nossa s in ta x e . T a lv e z p o r v ire m de
lin g u a g e n s d is ta n te s d e m a is da n a c io n a l. Mas os ita lia n is m o s e
s o b re tu d o os e s p a n h o lis m o s , p o r isso m e sm o q u e m u ito m ais
s u tis , m u ito m e n o s “ v is ív e is " , tê m o d o m te r r ív e l de d e tu rp a r
as essências ín tim a s da nossa lin g u a g e m . H o je eu e sto u
c o n v e n c id o d e q u e a in flu ê n c ia fra n ce sa é a m a is b e n é fic a ,
m ais fe c u n d a pra nós. A q u i em M e n tira a in d a os e x e m p lo s
são p o u c o c o n v in c e n te s p o rq u e so m o s u m p aís in v e n ta d o p o r
M á rio de A n d ra d e , mas vocês o b s e rv e m o nosso p re za d o
v iz in h o , o B ra s il. A b e m d iz e r, d u ra n te uns o ite n ta anos o
B ra sil v iv e u sob a in flu ê n c ia fra n ce sa , q u e m a l fe z? N e n h u m .
A b e m d iz e r n e n h u m , p o rq u e os ra ro s e s c rito re s b ra s ile iro s
q u e se a fra n c e s a ra m e ra m n u lo s d e nascença, e isso é
irre m e d iá v e l. Mas a in flu ê n c ia fra n ce sa , c o m a sua lib e rd a d e
c o n s e lh e ira , te v e o d o m de e q u ilib r a r o e n tu s ia s m o excessivo
d o s b ra s ile iro s , o g o s to da b rilh a ç ã o fa lsa , a d e s im p o rtâ n c ia
a v e n tu re ira .c o m q u e os n a tiv o s d o B ra sil se d e sin te re ssa m
p e lo c u lt iv o té c n ic o . É v e rd a d e q u e isso p re ju d ic o u m u ito os
b ra s ile iro s , no d e s e n v o lv im e n to da lín g u a n a c io n a l deles,
p o rq u e a e xig ê n cia de c u ltu ra lin g u ís tic a n ã o p o d e n d o se fazer
p e lo fra n cê s, le vo u os b ra s ile iro s à m a n ia r id íc u la de
m aca qu ea r as regras da g ra m á tic a p o rtu g u e s a , d e s tru in d o
to ta lm e n te a n a tu ra lid a d e p s ic o ló g ic a da e xpressã o, q u e os
ro m â n tic o s já tin h a m re a liz a d o de m a n e ira n o tá v e l. Mas a
n a c io n a liz a ç ã o da lin g u a g e m v o lta rá fa ta lm e n te , apesar d e to d a
a c o v a rd ia e p re g u iça d os e s c rito re s , q u e p re fe re m o b e d e ce r
s e rv ilm e n te a u m a g ra m á tic a , a " p e n s a r" g ra m á tic a . M e p e rd i!
A h , eu estava fa la n d o q u e p re cisa m o s d o " a u x í li o " dos
p ro fe sso re s e s tra n g e iro s pra n a c io n a liz a r nossa c u ltu r a . Mas
a u x ílio não q u e r d iz e r d ire ç ã o . A d ire ç ã o , o c o n tr o le te m de
ser nosso. E x a ta m e n te pra saber e sco lh e r p ro fe sso re s re a lm e n te
b o n s, na F ra n ç a , na Itá lia , na A le m a n h a , na A m é ric a d o
N o rte , c o m o pra c o m p re e n d e r q u e nesta e x c e lê n c ia , deve estar
in c lu íd a a d e d ic a ç ã o pela coisa n a c io n a l. H aja v is to o papel
a d m irá v e l q u e re a liz o u o p ro fe s s o r R oger B a s tid e , em S.
P a ulo . Eis u m p ro fe s s o r q u e a lé m d e saber c o m o o u tro s ,
soube a m ais, e c o m o só a lg u n s m u ito ra ro s, sem d e s is tir de
coisa n e n h u m a , n e m d e sua c u ltu ra p a r tic u la r n em d e sua
p á tria , se d e d ic a r à coisa b ra s ile ira , c o m in te lig ê n c ia
m o ra lís s im a d o seu p a p e l.
— É isso q u e eu estava p e n sa n d o , q u a n d o o S r. F e lix
de C im a re d a rg u iu q u e te m o s ó tim o s p ro fe sso re s p a rtic u la re s
de m úsica em M e n tira . A lg u n s de p ia n o , a lg u n s regentes
te m o s , não há d ú v id a . Mas, em m úsica p a rtic u la rm e n te , eles
tê m se d e m o n s tra d o incapazes de n a c io n a liz a r coisa
n e n h u m a . . . A m a io ria desses p ro fe sso re s são ita lia n o s q u e
vê m no e n x u rro das c o m p a n h ia s líric a s , e c u jo ú n ic o
p ro p ó s ito é fa z e r A m é ric a . Esses são p éssim os em to d o s os
s e n tid o s , p ro fe sso re s im p ro v is a d o s , sem a m e n o r co m p re e n s ã o
p ed ag óg ica, tã o ru in s q u e são m e lh o re s , p o rq u e não chegam a
fa ze r m a l não e s tra n g e iriz a m coisa n e n h u m a . É p â n d e g o : os
m ais perig o sos são ju s ta m e n te os p ro fe sso re s sem p á tria , os
isra e lita s. N u n ca f u i c o n tra os ju d e u s , D eus m e liv re ! mas não
sei si é p o r v ire m d u m a c u ltu ra m u ito ir r e d u tív e l, p o is são
quase to d o s das p a rte s c e n tra is da E u ro p a , e q u a n d o não
g e rm â n ic o s de te rra de nascença, são p ro fu n d a m e n te
g e rm a n iz a d o s . E a c u ltu r a m u s ic a l g e rm â n ic a é q u a d ra d a p o r
d e m a is p ro fu n d a m e n te e s tú p id a — os c o m p o s ito re s alem ães
são os m ais b u rro s d o m u n d o só H a e n d e l e B e e th o v e n
escapam d isso ! G é n io s in c o n te s tá v e is m u ito deles, mas c o m
u m a fa lta de s e n s ib ilid a d e in te le c tu a l a ssom brosa . Irre d u tív e is .
E é p o r isso q u e a m úsica a le m ã está ch e ia de B ru c k n e rs , de
Jadassohns, d e M a h le rs, fo rm id á v e is té c n ic o s da m úsica e da
e s tu p id e z h u m a n a . Os p ro fe sso re s m u s ic a lm e n te g e rm a n iz a d o s
s o fre m dessa m esm a lei. N ão tê m a m e n o r c a p a c id a d e pra
e n te n d e r a m úsica dos o u tro s países, e m u ito m e n o s a d if í c il
r ítm ic a n a c io n a l. T o c a m q u a d ra d o . T o c a m b u rra m e n te , c o m
u m a e s tu p id e z q u e chega ao a n g é lic o . E u sei q u e essa gente
não gosta da m ú sica n a c io n a l, e pensa q u e te m ra zã o . Mas
g o s ta m não só de Bach, de M o z a rt, de S c a r la tti, g é n io s
in c o n te s tá v e is mas ta m b é m d o bagaço v il, d o re b o ta lh o
in fa m é r rim o da m úsica e u ro p é ia . É s u b lim e : d is c e rn e m a
b a n a lid a d e d u m P u c c in i, e g rita m c o n tra q u e m gosta da
a d m irá v e l " B o é m ia " . E n o e n ta n to se b a b a m de g o zo d ia n te
da b a n a lid a d e d u m K o rn g o ld , d u m K a m in s k i, d u m B ra u n fe ls
(E J a n jã o não se c o n te v e , m ais s o fre u nosso t i o Jx»das!). A
isso está re d u z id o o e n sin o m u s ic a l em nosso país. T e n h a
p a c iê n c ia , seu F e lix . O C o n s e rv a tó rio N a c io n a l é u m la z a re to de
n a c io n a is a n tid ilu v ia n o s ; os p ro fe sso re s e s tra n g e iro s são té c n ic o s
b o n s às vezes, mas incapazes de c o m p re e n d e r os p ro b le m a s
n a c io n a is . P or p re g u iç a , p o r d esinteresse , p o r d e fic iê n c ia
in te le c tu a l. E o q u e fa z o G o v e rn o d ia n te d isso tu d o ?
— O G o v e rn o m eu s e n h o r, m a n té m o rq u e s tra , um a
g ra n d e o rq u e s tra . . .
— Mas não c ria u m a escola de re g ê n cia , se desinteressa
d os reg en te s b ra s ile iro s , a c o lh e u m b o m e u m péssim o re g e n te
e s tra n g e iro da m esm a m a n e ira .
— O G o v e rn o é que c o n s tru iu o lin d o p ré d io d o
C o n s e rv a tó rio N a c io n a l.
— U m t ú m u lo de m á rm o re so bre u m ca dá ver fe d id o .
— A r r e , J a n jã o , q u e c o m p a ra ç ã o g ro sse ira !
— D e scu lp e , Sarah L ig h t, sou u m id io ta .
— N ão exagere. . . s u s p iro u S io m a ra Ponga s o rrin d o .
— D os id io ta s é o re in o p u ro dos céus, r e tr u c o u J a n jã o
agressivo.
S arah L ig h t p rin c ip ia v a se in c o m o d a n d o , a q u e le
b a n q u e te m ais p arecia u m c a m p o de b a ta lh a . L h e desgostava
q u e J a n jã o atacasse ta n to o G o v e rn o . F e lix d e C im a ju ra va
p o r d e n tro q u e ja m a is fa ria nada p e lo c o m p o s ito r. S io m a ra
Ponga, no ín t im o tr iu n fa v a . N ão sabia e x a ta m e n te p o rq u e ,
mas se se ntia t r iu n f a n te e c a lm a . F ria , fr ia . Sem a m e n o r
p ie d a d e ao m en os, p e lo to n t o d o J a n jã o . Mas n a q u e le
m o m e n to , apenas n a q u e le m o m e n to de a rd o r, o m o ç o Pastor
F id o seria capaz d e m o rre r p o r J a n jã o . D e re s to n a q ue le
m e io , era ele o ú n ic o q u e a in d a possuía a c a p a c id a d e de
m o rre r. E c o m seus o lh o s d e lu z , m ira n d o c o m a d o ra ç ã o o
c o m p o s ito r, o m o ç o a fir m o u e x ta s ia d o :
— N ada im p e d e , nada p re ju d ic a os g é n io s. . . E apesar
das péssim as c o n d iç õ e s m u sica is desta nossa e lo g ia d a cid a d e
d e M e n tira , se vê nascer e p ro d u z ir a q u i u m g ra n d e m ú s ic o ,
u m d o s m a io re s m ú s ic o s da a tu a lid a d e ! c o m o vo cê, J a n jã o !
— Eu não sou g ê n io , d e ix a de ser b e sta ! r e tr u c o u o
c o m p o s ito r ir r ita d o , sem a m e n o r co m p re e n s ã o p e lo
e n tu s ia s m o d o m o ç o . Si eu fosse g ê n io , si eu m e sentisse
n aq ue la c o n s c iê n c ia de re c o n h e c e r q u e era g ê n io , c o m o u m
D a n te , c o m o u m B e e th o v e n , eu. . . eu m e d e ix a v a c o m p o r,
g a ra n tid o na co n sa g ra çã o d o f u t u r o , sem m e a m o la r c o m os
p ro b le m a s e x te rio re s da fu n c io n a lid a d e da a rte .
— Mas B e e th o v e n se d e d ic o u p elos h o m e n s e pelos
p ro b le m a s d o te m p o d e le .
— Se d e d ic o u , S io m a ra , eu sei. Mas ja m a is te ve que
p e rtu rb a r a lib e rd a d e de c ria ç ã o c o m p ro b le m a s té c n ic o s de
n a c io n a liz a r a m ú sica d e le , para estar m ais p r ó x im o d o m e io
em q u e v iv ia e re p re s e n tá -lo . E m esm o os p ro b le m a s sociais
em q u e se m e te u não e ra m de c o m b a te , e lhe p e r m itir a m
e v ita r a tr a n s ito rie d a d e da a rte de c irc u n s tâ n c ia . E o dia em
q ue se m e te u nesta , c o m a S in fo n ia de W e llin g to n , fracassou
to ta lm e n te . Q u e m m ais to c a esse a b o r to !. . . E B e e th o v e n
tin h a to d a u m a tra d iç ã o m u s ic a l de séculos p o r d e trá s . . .
É d o lo r id o , vocês não q u e ira m saber: c o m p o r n o vago, te n ta r
no vago, se d e fe n d e r no vago, e s tu d a r no vago c o m o eu fa ç o
e f iz , e d e p o is se ver na fr e n te d u m a o b ra -d e -a rte q u e a gen te
m esm o c r io u , q u e se a d o ra , se am a p o rq u e é to d a a nossa
v id a , e q u e n c e n ta n to a g e n te não sabe o q u e é, p o rq u e os
e le m e n to s d ela são in c o n tro lá v e is , sem o e x e m p lo c o m p a ra tiv o
d e q u a is q u e r passados.
— De m a n e ira q u e o seu in s tin to d e c ria r é m esm o u m
in s tin to de p e rp e tu a ç ã o . . . O q u e você só vê na sua
o b ra -d e -a rte , é o seu n o m e g ra v a d o e te rn a m e n te nas. . .
"p á g in a s de b r o n z e " , não é assim q u e se d iz ? nas páginas de
b ro n z e da H is tó ria da M ú s ic a !
— P ode fa la r , S io m a ra P onga, p o d e fa la r. . . Mas você
sabe q u e no ín t im o não é isso n ão. A in fe lic id a d e a in d a é

S
m a io r. O q u e a g e n te a m a , eu p e lo m e n o s, é a o b ra -d e -a rte
esm o. Mas vo cê já v iu c ria d o r q u e não p ro c u re d a r à sua
ia tu ra , to d o s os e le m e n to s c o m q u e ela possa ve n ce r a vida
so zin h a ? É ta m b é m is to q u e fa z ta n to s c ria d o re s se
e squ ece re m q u e esses e le m e n to s de v itó r ia tê m d e ser sem pre
/e le m e n to s de fo rç a e d ig n id a d e , não deles, m as da p ró p ria
o b ra . E c o n fu n d id o s , desejosos d e m a is da g ló ria das suas
c ria tu ra s , ta n to a ju n ta m v ilm e n te d in h e iro pra d e ix a r de
h eran ça aos filh o s , c o m o a d o rn a m v ilm e n te as suas o b ra s c o m
fa c ilid a d e s b anais, d e a p la u s o fá c il. É c e rto q u e a a m b iç ã o
p e rs o n a lis ta , d e a p la u so g e ra l, o u d in h e ir o é u m d o s m a io re s
e m p e c ilh o s d a .c ria ç ã o a rtís tic a , mas o p ro b le m a p s ic o ló g ic o
d o c ria d o r é m ais c o m p le x o q u e isso. Si o a rtis ta é v e rd a d e iro
ele não se am a a si m esm o apenas, ele am a a sua o b ra
ta m b é m , e m u ita s vezes se s a c rific a pra s e m p re , n o p a v o r de
ver a sua c ria tu ra o fe n d id a pela in c o m p re e n s ã o e a vaia. F o i
esse c e rta m e n te o caso d e C a rlo s G o m e s d e p o is d o desastre
da Fosca. Esse era u m a rtis ta v e rd a d e iro , u m g ra n d e a rtis ta
v e rd a d e iro . O caso d e le é in d is fa rç á v e l. E le tin h a m u ito m ais
o q u e d iz e r d o q u e disse: a Fosca p ro v a isso c a b a lm e n te . Mas
lh e x in g a ra m a f ilh a a d o ra d a , e ele não te v e c o ra g e m m ais pra
ver as filh a s fu tu ra s a v ilta d a s assim . . .
V o c ê p o d e fa la r o q u e q u is e r, S io m a ra P onga, mas você
é in te lig e n te e a s tu ta p o r d e m a is pra não m e c o m p re e n d e r.
P o rq u e ta m b é m n o m eu caso, to d a a m in h a o b ra é um a
p ro va de q u e eu não m e a m o a m im m e s m o , o u p e lo m en os
q u e sei su pe ra r o m eu a m o r p o r m im , em fa v o r das m in h a s
o b ra s e p e lo q u e elas serão na sua vid a já in d e p e n d e n te de
m im , q u a n d o c o n c lu íd a s . Mas é nisso m e sm o q u e está m in h a
t o r t u r a . O q u e eu sei! O q u e eu sei a re s p e ito d o s e le m e n to s
de v itó ria q u e b o te i nelas, si esses e le m e n to s não p o d e m te r o
m e n o r c o n tr o le da tra d iç ã o , q u e os g a ra n ta ? Os e x e m p lo s
s im ila re s não servem de n e n h u m a g a ra n tia . Si eu n a c io n a liz o
a m in h a o b ra , m e a p ro v e ita n d o da liç ã o russa d o G ru p o dos
C in c o , a s im ila rid a d e d os casos não im p lic a s im ila rid a d e de
e le m e n to s . E a p ro va é q u e to d o o o rie n ta lis m o f o lc ló r ic o de
R im s q u i-C o rs a c o v o u de B o r o d in não fic o u n e m c o m o v a lo r
in trín s e c o , nem c o m o c a rá te r de n a c io n a lid a d e . E m u ito
m en os as o b ra s d e L ia d o v o u Cesar C u i. F ic o u M u s s o rg s q u i,
em tu d o , c o m o e sla vism o e c o m o v a lo r im e n s o . Mas esse era
g ê n io , não serve de c o m p a ra ç ã o .
— Mas J a n jã o , isso ta m b é m é d e m a is ! C o m o é q u e você
p o d e saber q u e não te m g ê n io ! D e re s to , a lé m da g e n ia lid a d e ,
carece não esquecer q u e m u ita s vezes, n ã o te m d ú v id a , o
g ê n io é u m a longa p a c iê n c ia , c o m o d iz não sei q u e m .
— O g ê n io n u n ca fo i p a ciê n c ia lo n g a , P a sto r F id o . Mas
é u m a o b s tin a ç ã o .
— E vo cê não é u m o b s tin a d o !
— Eu sou lú c id o p o r d e m a is, m e u irm ã o . E u te n h o a
c o n v ic ç ã o das m in h a s idé ias, mas não te n h o c e rte z a n e n h u m a
das re a liza çõ e s em q u e as tra n s c re v o . E u te n h o p a c iê n c ia , a
p a ciê n cia b urg u e sa , a p a c iê n c ia in fe c ta d e a ju n ta r to s tã o p o r
to s tã o , dessa b u rg u e sia de q u e v im e q u e m e fe z . M in h a
herança f o i e x a ta m e n te de sessenta e c in c o c o n to s , q u e m eu
pai m e d e ix o u . Eu sou fo rm a d o c o m d is tin ç ã o p e lo
C o n s e rv a tó rio N a c io n a l. Eu tin h a u m e m p re g u in h o re g u la r d o
G o v e rn o , você sabe. Mas p e rce b i q u e sem o b a n h o de E u ro p a ,
eu não p o d ia c o m p le ta r m in h a c u ltu ra m u s ic a l. D e sisti de
tu d o . N ã o tin h a p ro te ç ã o , não co nsegui q u e o G o v e rn o me
m andasse e s tu d a r. E n tã o fu i c o m m eu d in h e iro , d e ix a n d o de
p a rte to d a s as m in h a s d is tin ç õ e s e m edalhas de e s tu d o . A in d a
m e p ro m e te ra m q u e na v o lta , me d a va m de n o v o o m eu
e m p re g u in h o , mas q u a n d o v o lte i, c in c o anos, caras novas,
n e n h u m c o m p ro m is s o m o ra l, tin h a o u tr o no lu g a r, fiq u e i sem
nada. E c o m o p ro b le m a d e te stá ve l da n a c io n a liz a ç ã o da
m in h a m úsica a m e im p e d ir a lib e rd a d e da c ria ç ã o . E c o m o
p ro b le m a a n g u s tio s o da fu n c io n a lid a d e so cia l da o b ra -d e -a rte ,
e a e te rn a m e la n c o lia da tra n s ito rie d a d e da a rte de c o m b a te ,
da a rte de c irc u n s tâ n c ia . . . É h o rrív e l. . .
— Eu não e stou e n te n d e n d o nada disso tu d o , mas até
fica va in te re s s a n te ! (E o p o d e ro s o p o lít ic o F e lix de C im a até
se a d m iro u da idéia lu m in o s a q u e tiv e ra . A s s im p ro te g ia esse
c o m p o s ito r e agradava os desejos da m ilio n á ria . C o n tin u o u :)
V a m o s fa z e r u m a ju ste , J a n jã o : você escrevia u m a série de
a rtig o s p ro nosso jo rn a l o fic ia l, o " C o tid ia n o da M e n tira ” , eu
me e n ca rre g o de fa z e r c o m q u e a c e ite m a p u b lic a ç ã o . É
p re c is o m esm o a n im a r as a rte s. V o c ê sabe, é jo r n a l d o
G o v e rn o , m u ito lid o , e não paga a rtig o de c o la b o ra ç ã o , mas
isso não te m im p o rtâ n c ia p o rq u e você deve desejar e x p o r as
suas idéias, to d o a rtis ta gosta m u ito de te r idéias. São
ide a lista s. A liá s a liv re discussão a rtís tic a se m p re fo i
in c e n tiv a d a p e lo G o v e rn o , mas não vá m e fa la r em
C o m u n is m o , o u v iu ! Isso eu não d e ix o ! O C o m u n is m o é coisa
lá da R ússia, não sei si é b o m , si é ru im , a Rússia q u e se
a rra n je ! Mas nós já te m o s u m a d e m o c ra c ia m u ito b o a , até
C âm ara d os D e p u ta d o s já te m o s , p ra q u ê m ais! N ão q u e ro
n e n h u m a p a la v rin h a sobre C o m u n is m o .
— O ra , seu F e lix ! não se tra ta de C o m u n is m o nem
m ané C o m u n is m o ! Mas já e sto u cansado de escrever em tu d o
q u a n to é jo r n a l!
E o F e lix , d e s a p o n ta d o c o m a recusa:
— Mas é n o jo rn a l o fic ia l, J a n jã o ! Eu não le re i,
c o n fe sso , p o rq u e não te n h o te m p o m ais pra le r, essa
p ro te ç ã o das artes já m e to m a o te m p o to d o pra q u e eu
possa m e in s tru ir , mas o u tro s le rã o ! L e r é a q u i c o m a nossa
g ra nd e S io m a ra Ponga q u e sabe tu d o . V o c ê lê, não lê,
S io m a ra ?
— Está c la ro q u e le ria . . . pra a p re n d e r c o m o nosso
c o m p o s ito r, mas você n ão está e n te n d e n d o nada, c o m o você
m esm o d iz , m eu c a ro p o lít ic o . J a n jã o p o d e rá não fa la r desse
C o m u n is m o q u e ta n to lh e in q u ie ta , mas vo cê não p e rce b e u
q u e ele fa lo u em " a r te s o c ia l"? Q ue G o v e rn o agora gosta
dessas coisas, a não ser q u e seja a a rte so cia l d o g o v e rn o ?
Pois vocês n ão tê m o G E L O ju s ta m e n te pra e n sin a r c o m o é
q u e se fa la de a rte social? O " C o tid ia n o da M e n tir a " nun ca
a c e ita ria u m só d o s a rtig o s de J a n jã o !
— Isso n ã o ! e x c la m o u Sarah L ig h t q u e e n fim se achava
c o m tr u n fo s d e fin itiv o s pra d e s tro ç a r a c a n to ra c é le b re , isso
n ão ! O nosso G o v e rn o está d is p o s to a a c e ita r q u a n ta censura
ju s ta lh e fa ç a m !
— Q u e m ? o G o v e rn o de M e n tira !
— S im s e n h o r, seu m o ç o ! Pois a in d a o mês passado eu
não d e i u m a e n tre v is ta em q u e tiv e a co ra g e m de ce n su ra r,
d e lic a d a m e n te é ve rd ad e, mas a g en te p o d e d is s e n tir sem
g ro sse ria ! p o is ce n su re i s im ! C ensurei a d ecisão de a ca b a re m
c o m o S alão. E o n d e saiu a m in h a e n tre v is ta ! F o i n o p ró p r io
jo r n a l d o G o v e rn o ! E n tã o !
— E não f o i a p rim e ira vez, s o lu ç o u o p o lí t ic o to d o
q u e ix o s o . S a rah , eu bem q u e sube, (sic) p o rq u e m e c o n ta ra m ,
mas você já deu q u a tro e n tre v is ta s e em trê s ce n s u ro u a
g e n te . A p rim e ira vez fo i p o r causa da o rg a n iz a ç ã o da
S in fó n ic a , a segunda fo i p o r causa de fe c h a rm o s c in c o escolas
p rim á ria s p ra e q u ilib r a r os o rç a m e n to s , e a te rc e ira fo i agora.
Isso ta m b é m é d e m a is, S a ra h !
Ja n jã o não c o n te v e o g esto de im p a c iê n c ia , to d o s v ira m .
E a c a n to ra s e n tiu log o q u e a li estava u m je ito dela sc
a p r o x im a r de n o v o da m ilio n á ria , e b o ta r J a n jã o naq ue la
a n tip a tia . M u rm u ro u n ít id o , c o m um a c ris ta lin id a d e m ira c u lo s a
de d ic ç ã o :
— E n tã o vo cê acha q u e S arah não fe z b e m , J a n jã o ! Pois
eu a ch o q u e fez.
— F iz e fa ç o ! s a lto u a m ilio n á ria , o lh a n d o d e s a fia n te o
c o m p o s ito r. E u a c e ito o G o v e rn o mas é p o rq u e ele m e a ce ita
ta m b é m , c o m a ve rd a d e na m ã o !
— Mas espera u m p o u c o , d o n a S arah L ig h t, in te rv e io o
P astor *F id o , s a lva n d o sem q u e re r J a n jã o a tra p a lh a d o . V a m o s
esclarecer isso b e m d ir e ito : O q u e a senhòra fe z não fo i
ce n su ra r o G o v e rn o , se p ô r em o p o s iç ã o a ele, mas p e lo
c o n tr á r io se d e c la ra r c o n iv e n te c o m ele.
— C o m o a ssim ! b e rro u o p o lític o .
— É m u ito fá c il. O q u e S arah L ig h t fe z não f o i se o p o r
à o rie n ta ç ã o d o G o v e rn o , c o n tr a r ia r a p o ssíve l id e o lo g ia da
p o lític a re in a n te . . . M e d iga u m a c o isa : si a sra. c o m as m ais
suaves e d e lica d a s palavras, desse um a e n tre v is ta a firm a n d o
q u e o G o v e rn o d e M e n tira era fa c h is ta , o jo r n a l o fic ia l
p u b lic a v a ? N e m ele, n em o u t r o , p o rq u e o G E L O não d e ix a v a .
O q u e a sra. fe z n ã o f o i se o p o r a c o is ís s im a n e n h u m a . A sra.
é m u ito b o n ita , eu ju r o ! mas o seu a to não passou d u m a
c a m u fla g e m c o n fo rm is ta . A sra. não c e n s u ro u o G o v e rn o , mas
a to s a d m in is tr a tiv o s d e q u e n e n h u m a id e o lo g ia não se p o d e
d iz e r q u e te m im e d ia ta m e n te a c u lp a . E m to d a s as
a d m in is tra ç õ e s d e to d a s as fo rm a s de g o v e rn o , há-de te r
se m p re fu n c io n á rio s ru in s , e fu n c io n á rio s q u e e rra m , m esm o
a ltís s im o s fu n c io n á rio s c o m o o sr. p o lí t ic o p re se n te , p o rq u e
n in g u é m é in fa lív e l. D e fo rm a s q u e o q u e a sra. fe z f o i
p éssim o d o m ais p é s s im o . C e n s u ro u a d m in is tra ç õ e s , e isso
q u a lq u e r g o v e rn o , q u a n d o despede u m fu n c io n á r io , q u a n d o
m o d ific a u m a le i, e tc ., ta m b é m im p lic ita m e n te está
c e n s u ra n d o a to s seus, a té m ais graves e le g is la tiv o s . N in g u é m é
in fa lív e l.
— Mas eu tiv e a c o ra g e m de fa z e r isso no p r ó p r io jo rn a l
o f ic ia l!
— C o ra g e m d e M e n tira , d o n a S arah L ig h t, c a m u fla g e m ,
m e d e s c u lp e . O fa to da ce nsu ra sair no p r ó p r io jo r n a l o fic ia l
é q u e d e fin e a c o is a ! Isso q u e r d iz e r q u e a sra. a c e ita a
id e o lo g ia d o G o v e rn o , e re c o n h e c e nele a p o s s ib ilid a d e de
m e lh o ra r a in d a m ais os seus h o m e n s. E o q u e é p io r : a sra.
pôs em sa liê n cia fa lsa , o q u e as pessoas c o n fo rm is ta s o u
ig n o ra n te s vão lo g o im a g in a r e p re g a r: q u e os ch e fe s de
M e n tira são tã o ó tim o s q u e a té n o b re m e n te a c e ita m censuras
e as p u b lic a m n o seu jo r n a l.
— O a lm o ç o está na mesa.
E una vo ce, q u e a q u i s ig n ific a n u m pé só, to d o s se
e rg u e ra m salvos.
V-rcipilUIO V

V atap á

A música brasileira tal com o


está na com posição. C om o
com por m úsica brasileira.
S arah L ig h t s e n to u à mesa b a s ta n te d e s a n im a d a . Si a
co nve rsa já estava tã o b rig u e n ta , o q u e ia ser agora c o m a
a n im a ç ã o d o s v in h o s ? Q ue o a m b ie n te d a q u e le a lm o ç o
perm anecesse u m p o u c o te n s o , ela b e m q u e im a g in a ra ; nem
era p o ssíve l p re ve r o u tra coisa d u m a re u n iã o q u e congregava
u m p lu to c ra ta , u m p o lít ic o , u m c o m p o s ito r p o b re e um a
c a n to ra fa m o s a . E a in d a p o r c im a viera se agregar a esse
g ru p o d e m o n s tro s , u m e s tu d a n te de D ir e ito m o ç o b e m , já
c o m suas le itu ra s , m e io in g é n u o é c e rto , mas s o lid a m e n te
d e s b o c a d o , q u e estava d iz e n d o as verdades pra to d o o m u n d o .
Sarah L ig h t c u id a ra q u e a sua h a b ilid a d e de m u lh e r v iv id a e
m u ito a c o s tu m a d a a m a n d a r nos o u tro s , havia de d o m a r
a q u e la súcia. Mas não c o n se g u ira nada. L o g o os interesses e
p a ix õ e s irro m p e ra m tã o in s o lú v e is q u e ela fic o u d esa rvo ra da , e
cTba nq u ète ~e stava d e g e n e ra n d o n u m a b a ta lh a .
Já p e rd e ra a esperança d e c o n s e g u ir d o p o lí t ic o e da
c a n to ra q u a lq u e r p ro te ç ã o p ro in fe liz d o c o m p o s ito r.
E n q u a n to este não chegava, os o u tro s tin h a m fic a d o naquela
co nve rsa m o le ; e d e p o is q u e ele ch e g o u , o je it o d e le , n em
ta n t o as frases a ltiv a s , mas o p r ó p r io je ito d e le , a v e s tim e n ta
e n c a rd id a , o ar de desgraça, tin h a m d e s p e rta d o a a n tip a tia dos
s u p e rio re s , e m esm o a aversão, para to d a a e te rn id a d e . A liá s
sejam os sin c e ro s : S arah L ig h t já n em pensava m ais nisso. Si
d e s c o b rira a id é ia de o fe re c e r a q u e le a lm o ç o , levada p o r
q u a lq u e r dese jo de d ar u m e m p u rro na vid a de J a n jã o , b a sto u
o d ese jo pra q u e a c o n s c iê n c ia da m ilio n á ria sossegasse. Não
estava m ais inie re ssad a em c o is ís s im a n e n h u m a , to d a e n tre g u e
à p ro fis s ã o de p re s id ir a lm o ç o s . O im p u ls o de s o lid a rie d a d e ,
c o m o se m p re , se a c o m o d a ra n u m r it o de classe. E assim , a li
pelas q u in z e h oras d a q u e le d o m in g o p o s s iv e lm e n te de sol, o
p o lí t ic o F e lix de C im a , a c a n to ra S io m a ra Ponga, o
c o m p o s ito r J a n jã o e o e s tu d a n te de D ire ito , P astor F id o , se
a c o m o d a ra m em to r n o d a q u e la tá v o la re d o n d a , na residê n cia
de in v e rn o da m ilio n á ria S arah L ig h t, q u e fic a v a n u m
s u b ú rb io de M e n tira , a s im p á tic a c id a d in h a da A lta Paulista.
S arah L ig h t disse:
— C o m o h o je e sta m o s e n tre n a c io n a is . . . (S io m a ra Ponga
to s s iu . A m ilio n á ria tu r t u v e o u , te v e ó d io , m as c o n s e rto u
c o m m ais m o d é s tia :). . . e c o m o se tra ta de h o m e n a g e a r
u m g ra n d e c o m p o s ito r m e n tire n s e , p rim e iro te m o s va ta p á .
Ja n jã o fic o u m o r to d e v e rg o n h a , mas g o s to s o . N unca
so ub era q u e o b a n q u e te era o fe re c id o a ele, e de re s to , si
e ntendesse de e tiq u e ta s , d e c e rto achava graça de estar apenas
à esquerda da d o n a da casa. O p o lí t ic o m erece ra a d ire ita ,
g a n h a n d o d o o u t r o la d o o p ré m io da c a n to ra lin d a . S e ntiu -se
b em E fu n g o u se n su a liza d o , e n q u a n to ju n t o d e le S io m a ra
Ponga se servia ( m u ito p o u c o ), e espalhava na sala o c h e iro
s ó lid o d o p ra to . U m “ o h " pen sad o a m a c io u to d o s .
— O h ! g ru n h iu F e lix de C im a , de c im a d o seu p a la d a r
sa b id o , n a rin a s a rre b a ta d a s, m a s tig a n d o c h u p a d o e d e boca
a b e rta , c o m o os q u e sabem c o m e r. E c o m e fe ito d o n a
F r u tid o r , a c o z in h e ira b a rb a d ia n a q u e só saia na ru a de
c h a p é u e fa la va c in c o lín g u a s , te m p e ra ra u m v a ta p á m a io r
q u e a C apela S ix tin a .
U m s ilê n c io p a té tic o b a ix a ra so bre as alm as, d is t r ib u in d o
p o r to d o s u m a a m iz a d e s in c e rís s im a , d is tr a in d o classes e
interesses pessoais. A p e n a s S io m a ra Ponga fiz e ra u m a careta
p ro v a n d o a q u e le h o rro r ja m a is p ro v a d o , q u e d e c e rto havia de
fa z e r m al prás vozes dela. M e x ia no p ra to , n u m d e s p re s tíg io
ir r ita d o . S e n tiu -se só, e n q u a n to os o u tr o s c o m ia m se
e n tre a m a n d o sem q u e re r. B em q u e ela desejava c o n fr a te r n iz a r
c o m a m ilio n á ria , se ntia u m a necessidade im e d ia ta d isso ,
se n tia . N ã o tin h a te m p o pra se c o m p re e n d e r agora (n e m
p o d e ria a liá s !), mas a sim p le s presença ind e se já ve l d o
c o m p o s ito r d e sp e rta ra nela a q u e le desespero e n c iu m a d o . A
c a n to ra se p erceb era de re p e n te , h u m ild e e c o m p rim id a p o r
u m desejo re p u g n a n te de a grad ar a m ilio n á ria . Ela m esm a se
achava re p u g n a n te e m seu d e se jo , m as não co n se g u ia ser si
m esm a e d e c id ira , c o n s c ie n te m e n te d e c id ira , mas sem se
m o tiv a r, p a c tu a r c o m Sarah L ig h t, to rn a r-s e a m iga da o u tra
a grad ar, ta lv e z in f lu ir ? . . . P o ré m o vatapá estragoso lhe
in c u tira na lín g u a u m a n o çã o tã o g a ra n tid a de q u e viera
e stra ga r c o m as vozes d e la , o m au g o s to d o p ra to a d e ix a ra
tã o s o z in h a , q ue não se d o m in o u , p io u f in o :
— Está m u ito a grad áve l. Mas esses p ra to s de n egros são
c o m o tra n s fig u ra ç õ e s a lim e n ta re s de e s tu p ro s , há q u e m se
c o n s o le assim . . . É seu p ra to p re fe rid o , S arah L ig h t?
— N ã o ! quase im p lo r o u a m ilio n á ria , pegada de su rp re sa,
in g e n u iz a d a q u e estava na v o lú p ia de g o s ta r. Mas F e lix de
C im a e n te n d ia da coisa e a s a lv o u :
— D e ix e de to lic e , ilu s tre c a n to ra . O p ra to é v io le n to ,
mas o q u ê q u e vo cê p o d e e n te n d e r de v io lê n c ia s e e s tu p ro s ,
s e n h o rita ? A v io lê n c ia das c o m id a s é m e n o s q u e s tã o de
b ru ta lid a d e d o p ra to q u e de saúde e s p iritu a l.
— E s p iritu a l! re c a lc itro u o e s tu d a n te .
— E s p iritu a l, s im ! Eu sei q u e fic a v a m ais fá c il d iz e r
saúde fís ic a , p o is q u e te m pessoas a q u e m o p r ó p r io le ite
fa z m al, mas não se tra ta d isso n ã o ! Se tr a ta é de saúde
e s p iritu a l, não d e ix o p o r m e n o s. Há u m r e fin a m e n to d o
b o m g o s to , d ig o m a is : há um a e tiq u e ta d o b o m g o s to q u e
dessora as alm as e in c u te na m an eira de ju lg a r as coisas, de
ce rta s gentes q u e se su põ e d e lica d a mas q u e é e n fe rm a de
e s p ír ito , o susto d os co n va le sce n te s. A e tiq u e ta d o b o m g osto
dá p ro e s p ír ito a p s ic o lo g ia d o c o n va le sce n te , tu d o fe re , tu d o
b ate . São e s p írito s lív id o s . E e n tã o a p ró p ria fo rç a vira
g rosseria, a p ró p ria saúde vira e s tu p id e z , a p ró p ria a legria vira
in fe rio rid a d e . É q u e s tã o de saúde e s p iritu a l, d ig o e re p ito . O
vatapá é u m p ra to d o s fo rte s de e s p írito .
— Mas fo i in v e n ta d o p o r escravos. . .
— D e ix a de to lic e , m e n in o , não se sabe q u e m in v e n to u .
Mas d e m o s q u e fo sse ! F o i in v e n ta d o p o r escravos, mas fo i
s e rv id o aos p a trõ e s ! Mas isso n o te m p o e m q u e o B ra sil ia
b 0m , tin h a ch efe s fo rte s e c o m a n d a d o s fra c o s . O g o ve rn o
c o lo n ia l era u m g o v e rn o na b a ta ta , tin h a p u ls o ! Mas hoje
't o d a a g e n te q u e r m a n d a r, d e m o c ra c ia !. . . E o vatapá saiu da
m o d a , n in g u é m m ais a g u e n ta va ta p á , só q u e r c o m e r
p e rfu m a ria ! N ós ca re ce m o s d u m g o v e rn o fo r t e , u m
g o v e rn o -v a ta p á !
— O se n h o r é fa c h is ta !
— Eu n ã o ! g r ito u F e lix de C im a assustado. S o u
d e m o c rá tic o ! Mas M e n tira só p o d e rá p ro g re d ir de verdade,
q u a n d o p o ssu ir u m g o v e rn o , sim , le g itim a m e n te d e m o c rá tic o
mas c o m p le ta m e n te p a re c id o c o m o F a c h is m o .
O e s tu d a n te s o lto u u m a risa da m ãe. J a n jã o p arara de
c o m e r s a ra p a n ta d o . A p ró p ria S arah L ig h t q u e já ia c o n c o rd a r,
se c o n te v e , fin g in d o m a n d a r q u a lq u e r coisa ao c ria d o , F e lix
de C im a s u s p e ito u q u e tin h a a van çad o d e m a is, c o n s e rto u :
— Isso é o q u e d iz e m os a m e ric a n o s . A lib e rd a d e é u m
ideal m u ito fo rm o s o , to d o s os h o m e n s d e ve m ser livre s,
mas. . . b o m : é c o m o o v a ta p á ! Q u e r d iz e r. . . (O p o lític o
não sabia o q u e p re te n d ia d iz e r:) q u e r d iz e r. . . a nossa
c a n to ra é m u ito re fin a d a em seu b o m g o s to p ra . . .
— Q u e r d iz e r q u e eu não te n h o saúde e s p iritu a l.
— E u !. . .
— T e m sim , m in h a q u e rid a a m ig a : u m a saúde e s p iritu a l
a té u m p o u c o a ssu sta d o ra . T a n to te m q u e fa z p o u c o , você
nem h e s ito u em e m p re g a r a p alavra “ e s tu p ro ” , q u e eu nunca
im a g in a ria p o ssíve l nos seus lá b io s c a n o ro s . (A c a n to ra
sentiu-se c h o ra r c o m o p it o da o u tra . Mas S arah L ig h t
in fle x ív e l, b a te u m a is ): Eu se m p re a c re d ite i q u e essa palavra
era m ais p ró p ria d os b e iço s q u e d o s lá b io s , mas v e jo q u e a
saúde e s p iritu a l se a je ita c o m tu d o , se m p re h o u ve
a c o m o d a ç õ e s c o m a Ig re ja . . . B em m eus a m ig o s, eu c re io
q u e c o m o d iz o nosso a d o rá v e l F e lix de C im a , c o m a exceção
"c o n v a le s c e n te ” dos v irtu o s e s , to d o s va m o s r e p e tir o vatapá.
P re v in o q u e , só te m m ais u m p ra to , u m a salada fr ia , c o m
p e ito d e s fia d o de p e rd ize s vin d a s vivas d o C h a co . Mas
p r im e ir o va m o s d e c id ir q u e v in h o vocês to m a m c o m o va tap á.
O p ra to é fo r t e e- eu p re fir o q u e vocês re s o lv a m c o m o
q u is e re m : v in h o v e rm e lh o , u m B o u rg o g n e , o u b ra n c o ?
— B ra n c o ! B ra n c o ! e g e la d o !
— O h , m eu a m ig o : está c la ro q u e o b ra n c o ve m g ela d o .
— N ã o é isso, S arah L ig h t ! eu sei q u e vo cê e n te n d e de
v in h o . O q u e eu d ig o é que te m de v ir g e la d is s im a m e n te fra p p é .
Desta vez f o i S io m a ra Ponga q u e não c o n te v e a risada.
N e m eu. A expressão não estaria de to d o fa lsa ,
e tim o lo g ic a m e n te , mas q u e m q u e sabia disso a li! Esse
a n tip á tic o d e p o lí t ic o vai m e sa in d o u m a besta re ve re n d a . Mas
é in c rív e l c o m o os m eus personagens já estão a g in d o sem a
m in h a in te rfe rê n c ia : não c o n s ig o c o n te r m ais eles. O c u rio s o é
q u e F e lix de C im a q u a n d o fa la de c o m id a s , v ira in te lig e n te z in h o .
E tin h a u m a coisa de bem p o lí t ic o : sabia se a c o m o d a r. C o m o fo i
S io m a ra q u e riu , ela era tã o c u lta , ele ju r o u q u e tin h a d it o um a
b e s te ira . Mas não fa z ia m a l, se riu ta m b é m :
— Pois é: g e la d is s im a m e n te fra p p é . V in h o não é q u e stã o
de fo rç a n em de d e lica d e za d o p ra to , carece é c o m b in a ç ã o ,
in flu ê n c ia m ú tu a . O q u e te m d e m ais a d m irá v e l nos p ra to s d o
g é n e ro d o va ta p á , é o fe n ó m e n o da te m p e s ta d e . T e m u m p o e ta
b ra s ile iro , não sei m ais c o m o se ch a m a , r e c ite i isso no g ru p o ,
fa la n d o q u e d u ra n te a te m p e s ta d e o lo b o e o c o rd e iro vão tré m u lo s
se u n ir , é isso m e sm o . O p e ix e , o ca m a rã o fre s c o são sabores
d e lic a d o s , q u e v ira m d e lic a d ís s im o s , p o r c o n tra s te c o m a
te m p e s ta d e d o s te m p e ro s , c a m a rã o seco, o d e n d ê . Mas vão tré m u lo s
se u n ir. É u m a d e líc ia da lín g u a , até d o p a la d a r d o s d e n te s, q u a n d o
e n c o n tra na c o n v u ls ã o , a m aciez d o p e ix e a p o lp a d is c re ta m e n te
re s is te n te d o ca m a rã o fre s c o . Eu não sei c o m o e x p lic a r. . . mas
vocês, h o m e n s, já p e rc e b e ra m d e c e rto c o m o é g o s to s o n o m e io
da m u ltid ã o a g e n te se e n c o s ta r n u m a m u lh e r. . .
— O h F e lix . . .
— N ã o ! não e sto u fa z e n d o safadeza n ão ! é só e n c o s ta r sem
q u e re r. A m u ltid ã o é q u e enco sta a g e n te , basta a té e n c o s ta r os
o lh o s . P ois é o p e ix e , é o ca m a rã o d o v a ta p á ! Mas e n tã o chega o
v in h o , e c o m o está b o m este, S a rah , g e la d is s im a m e n te fra p p é .
V o cê s re p a re m : chega o v in h o e to m a p a r tid o p e lo s e le m e n to s
fu n d a m e n ta is d o p ra to , o p e ix e , o ca m a rã o , q u e a m eaçavam ser
v e n d id o s p e lo s te m p e ro s te m p e s tu o s o s . Já f o i d e c id id o pela
c iv iliz a ç ã o fra n c e s a : p e ix e só c o m b in a c o m v in h o b ra n c o . E e n tã o
assim b em g e la d o , a b ra n d a a te m p e s ta d e d o va ta p á . F o rm a c o m o
vocês d iz e m na m ú sica , fo rm a u m a c o rd e !
*- C o n s o n a n te o u d is so n a n te ?
— N ão sei, seu c o m p o s ito r, isso é lá c o m vocês. F o rm a u m
a c o rd e q u e n em c o n c o rd a nem d is c o rd a , a ju d a . Eu não sei p o rq u e a
g e n te p re cisa c o n c o rd a r, pra se a ju d a r, não é m esm o S arah L ig h t?
— É m e s m o ! e x c la m o u S io m a ra Ponga d e s lu m b ra d a , se
e n c o n tra n d o a fin a l n os in s tin to s que a levavam a a d e rir à
m ilio n á ria .
— O q u e eu a c h o e n g ra ça d o (c o m e n to u o c o m p o s ito r) é
q u e o s e n h o r, sem q u e re r, disse u m a ve rd ad e m u sica l
p ro fu n d a . A m ú sica m o d e rn a ta m b é m a ca b o u c o m as noções
falsas de a c o rd e c o n s o n a n te o u d is s o n a n te . O a c o rd e , seja q u a l
fo r , o q u e o m ú s ic o te m de in v e n ta r é a c o in c id ê n c ia de sons
e tim b r e s se a u x ilia r e m m u tu a m e n te , pra q u e tu d o se v a lo riz e .
— Por isso é q u e a m úsica de vo cê é tã o d is s o n a n te
su ssu rro u a c a n to ra , in te n c io n a lm e n te “ a ju d a n d o " F e lix de
C im a , c o n s c ie n te agora d o a c o rd e q u e fo rm a v a c o m a
m ilio n á ria e o p o lí t ic o . Mas F e lix d e C im a ja m a is o u v ira
n e n h u m a o b ra d e J a n jã o , d e b la te ro u :
— E a m ú sica b ra s ile ira e n tã o ! Esse F ra n c is c o M ig n o n e
q u e só fa z m ú sica d e p re to , esse C am arg o G u a rn ie ri q u e só
fa z m úsica de c a ip ira !
— Si fosse apenas isso, a m ú sica b ra s ile ira ia m u ito bem . . .
— A r r e J a n jã o e n tã o a m úsica b ra s ile ira não vai bem ?
J a n jã o a m o la d o se p re p a ro u pra re s p o n d e r.1

D e re p e n te o c o m p o s ito r J a n jã o fa lo u a rre b a ta d o :
— Pois vocês q u e re m m esm o saber o q u e eu a ch o da
m ú s ic a b ra s ile ira ? Eu a ch o q u e vai p e s s im a m e n te , a p rin c ip ia r
p elos c o m p o s ito re s . N ã o e s to u lo n g e de pensar q u e c o m
to d o o e s tra n g e iris m o da o b ra deles, os p rim e iro s c ria d o re s
ilu s tre s d o B ra s il, José M a u ríc io , F ra n c is c o M a n u e l, C arlos
G o m e s, fo ra m m u ito m ais n a c io n a is q u e os d e h o je , c o m to d a
a sua b ra s ile iric e m u s ic a l. F ra n c is c o M a n u e l c o la b o ro u na
fix a ç ã o d o e n s in o e d e p o is na Ó p e ra Im p e ria l, q u e p ro p ic ia v a
aos fo rm a d o s na e scola, o e x e rc íc io da p ro fis s ã o . E p o r isso

1 A p a rtir deste p o n to , que marca o fim do rodapé semanal de 3 0 .1 1 .4 4 ,


M. de A . não fez mais em seu exem p lar de trabalho as alterações que
vinha fazend o no final de cada artigo da série e visavam a substituir o
aspecto fraccion ad o do te x to original pela flu id e z de u m discurso
c o n tín u o . Por este m o tiv o o te x to passa a ser transcrito, de agora em
d ia n te , tal com o fo i p ub licado no jornal tendo-se co rrig ido apenas os
erros tipográficos e m arcando-se com um espaço o fin a l de cada rodapé.
não sei q u e Iara generosa lhe d e u o p ré m io de se to rn a r o
a u to r d o H in o N a c io n a l. O re s to das o b ra s d e le fo r a m
m o d in h a s para o r it o sexual da b u rg u e sia em fo rm a ç ã o , o u ,
c o m o José M a u ríc io , m úsica re lig io s a para o se rv iç o d iv in o .
C arlos G om es, b e m c o n s c ie n te m e n te , c o m o p ro v a a
d e d ic a tó ria d o " S c h ia v o " , f o i e m m úsica o c o m p a n h e iro de
C a stro A lv e s na ca m p a n h a a b o lic io n is ta . T u d o m ú sica a
se rviço de a lg u m a coisa a m ais q u e u m s im p le s d ile ta n tis m o
e s té tic o . E h o je ! C o m e xceçã o d o V illa L o b o s c o ra l, q u e m
m ais fa z m úsica de se rviço so cia l, neste ano da graça de 1 9 4 4 ,
neste d ia sem graça de 9 de n o v e m b ro !
— H o je é 9 de n o v e m b ro ? e x c la m o u o e s tu d a n te de
D ire ito .
E a v irtu o s e S io m a ra Ponga e s q u e c id a : — É sim P astor
F id o ; d o q u e vo cê se a rre p ia ta n to ?
— N ove de n o v e m b ro !. . .
U m s ilê n c io e x p lo d iu . A m ilio n á ria S a ra h L ig h t b a ix o u os
o lh o s , c o n s tra n g id a . J a n jã o a b riu os d e le a m a rg a d o . O e s tu d a n te
está m u d o , c h e io de le m b ra n ç a , o lh o s p a ra d o s, secos, o lh o s de
g r ito m e tá lic o . O p o lí t ic o F e lix d e C im a fu n g a m a s tig a n d o , sem
c o n s e g u ir ve nce r o d e s a p o n to . Só a c a n to ra o lh a v a to d o s , m eia
r in d o , m e ia assustada. E n fim se le m b ra de si m e sm a :
— N ão sei d o q u e vocês estão fa la n d o m as eu ta m b é m
n un ca h e i-d e esquecer este d ia . la d a r u m re c ita l em São
P a ulo , o a n o passado, mas h o u ve u m a c o rre ria de e s tu d a n te s,
tiv e q u e a d ia r, f o i u m a caceteação.
— A sua ca cete açã o (n a v a lh o u o c o m p o s ito r in d ig n a d o )
f o i u m g esto m u ito s in c e ro , m u ito d ig n o , e u m ra p a z m o rre u .
— Eu não fa le i p o r in d ife re n ç a n ão, a té la s tim e i
m u ito . . . Mas não há nada m ais d esa grad áve l d o q u e a d ia r u m
re c ita l.
F e lix de C im a se d e s c u lp o u :
— Eu estava v ia ja n d o , passei trê s meses fo ra . Nesse
n o v e m b ro c o m ia o s tra s n u m a p ra ia d o P araná, c u r tin d o u m a
ro le ta q u e desde s e te m b ro a n tip a tiz a ra c o m ig o , no R io . Mas
q u e d e s lu m b ra m e n to o R io !
— M u ita s m u la ta s ? fle x o u a c a n to ra .
— N o v e d e n o v e m b ro , re p e tia o e s tu d a n te
d e s c o n tro la d o .
— A s m u la ta s estão ra c io n a d a s a g o ra ; são presa de
g u e rra d o s m a ru jo s a lv ís s im o s .
— E o ra c io n a m e n to está m u ito d u r o no R io ?
— É o nosso s a c rifíc io pela g u e rra , te m o s q u e a g u e n ta r
a té é,, s im p á tic o . Mas e s c o lh e n d o u m g ra n d e h o te l n e m se
perceb e.
— E a u to m ó v e l?
— É o p io r. Na véspera de 7 de s e te m b ro , quase p e rd i o
b a n q u e te de gala q ue o g rande b a ila rin o a rg e n tin o V ie n to y
V ie n to s o fe re c e u aos ca rio ca s, antes de v o a r a B e lé m , o n d e ia
d a n ça r p ros so ld a d o s. A fa rra fo i n o C o p aca ba n a. Q u a n d o desci
na p o rta , não tin h a u m a u to m ó v e l pra re m é d io n o fa lm e n g o .
A f in a l a che i u m , mas fic a m o s e n g a rra fa d o s na passagem dos
ta n q u e s que iam se c o lo c a r pra parada d o d ia se gu in te .
— Q u e ria ver u m ta n q u e . . .
—< É s in is tro ,)m o ç a . A g en te de casaca, se a le g ra n d o pra
ir n u m a ^e s te r-e ^-c íq u e le e s tro n d o s o tu rn o , a quelas massas
fo rm id á v e is a v a n ç a n d o , ro n c a n d o am e aça do ra s. T o d a a gente
estava h o rro riz a d a , o ch ã o tre m ia ; n a q u e le e s p e rd fc io de luzes,
parecia q u e a p ró p ria lu z u iva va, m eu c o ra ç ã o fic o u
p e q u e n in in h o ! Im a g in e i a q u ilo em ação, as m e tra lh a d o ra s
v a rre n d o sem p e rg u n ta r, assassinando, assassinando. . .
— N o ve de n o v e m b ro . . .
— M ud a esse d is c o , rap az. F e liz m e n te q u a n d o e n tre i na
sala d o b a n q u e te , n em le m b re i de g ue rra m ais, o fu s c a d o . U m
lu x o c o m o n u n ca v i, n u n ca vi ta n ta jó ia ! E g o ste i da m is tu ra ,
d iz e m q u e eu não sou m o d e rn is ta ! Havia m u lh e re s d o s o u tro s ,
tin h a senhoras casadas, d iv o rc ia d a s , casadas no U ru g u a i,
a m a n te s de só u m , de tu d o ! Só fa lta v a a nossa c a n to ra pra
e n f e it a r a o rg ia c o m a sua p u r e z a im o r ta l, a h, a h . . .
S io m a ra s o rriu c o m p la c e n te . L h e passaram na idé ia as
grandes virg en s d o a g io ló g io c a tó lic o , s e n tiu -se um a delas.
Disse c o m d e s p re z o :
— Q u er d iz e r q u e você a p ro v e ito u .
— A p r o v e ite i fo i a c o m id a ! q u e m a n te ig a ! E q u e carnes!
V ie n to y V ie n to s é tã o re fin a d o q u e os p erus e o b o i vie ra m
de B u en o s A ire s de a viã o . C o m m u ita graça, o ú lt im o p ra to
cham ava "B a lé d o R a c io n a m e n to ” , só q u e estava e s c rito em
fra n cê s. Era u m c h a te a u b ria n d , no fu n d o , q u e d e líc ia ! mas em
vez de b a ta tin h a s : p e q u e n o s pedaços de q u e ijo assados na
brasa; em vez de c o g u m e lo s : le ite c o a lh a d o em cápsulas
salgadinhas. V in h a u m p ra to de salada ju n t o , to d o s se
eng an aram . A lfa c e , aspa rg o, p a lm ito , tu d o f e it o c o m massa de
a çúca r p in ta d a , f o i m u ito d iv e r tid o . Está c la ro q u e n in g u é m
co m e u isso, mas a c a rn e estava m ira c u lo s a .
— N o ve de n o v e m b ro . . .
— A liá s , in te rro m p e u S io m a ra Ponga in c o m o d a d a , nos
re s ta u ra n te s de São P a ulo a in d a se c o m e b e m . C arne ,
m a n te ig a , fru ta s à v o n ta d e .
— N os c h iq u e s n u n ca fa lta . A té s o b ra ; d iz -q u e eles
re v e n d e m a p a rtic u la re s .
— N ão ca re ç o , passei a c o m e r fo ra desde q u e isso
p r in c ip io u .
— Pois fiq u e em sua casa, c o m id a de re s ta u ra n te cansa
b e m . Faça as c o m p ra s neles, q u e p o r q u a lq u e r 6 0 m ilré is você
a rra n ja u m q u ilo de filé .
S arah L ig h t se m e xia na ca d e ira in c o m o d a d a . O p o lí t ic o
p e rce b e u e d e s v io u :
— E que v in h o s V ie n to y V ie n to s n os o fe re c e u ! Só o
B o u rg o g n e era de uns tre z e n to s paus a g a rra fa , b e b i u m a s o z in h o .
D e p o is da c h a m p a n h a , fo m o s b eb er w h is k y no s h o w , o n d e teve
u m a a le g o ria ao E x p e d ic io n á rio fe ita p o r g irls n o rte -a m e ric a n a s ,
g oste i m u ito . Só às três tu d o se d is s o lv e u , p o rq u e V ie n to y
V ie n to s voava às c in c o . A í é q ue f o i a h is tó ria . . .
— T a x i a ce m m ilré is , q u a n d o se a cha . . .
— N o ve de n o v e m b ro . . .
— N ã o ; tin h a de so bra lá. O c h a to , d e p o is d e ta n ta a le gria,
f o i e s b a rra r nas fila s ju n to dos a çougues, das le ite ria s que só
a b ria m às sete. V e ja q u e n o ite de D o s to ie v s q u i: p r im e ir o g u e rra ,
d e p o is fa rra , d e p o is fo m e ! M e e stra ga ram to d a a n o ite , a gente
ta m b é m te m c o ra çã o . Q u a n d o estava p e rto d o h o te l, q u is a n d a r
u m p o u c o p ra e spa ire cer. Mas to p e i c o m u m a b ic h a de le ite ,
m ães, m u lh e re s g rá vid a s, a té cria n ça s de d o ze anos.
— N o ve de n o v e m b ro . . .
----------—.A c a b a c o m isso, e s tu d a n te ! q u e b o b a g e m
h o m e m !)
E a lé m b ra n ç a de q u e ele era u m h o m e m , a fin a l
h u m a n iz o u o P a sto r F id o , duas lá g rim a s c h o fra ra m . E ele
d e s a to u n u m c h o ro b ru ta l. Era v is ív e l q u e não sabia m ais
c h o ra r. C h o ra va c o m d o r de lá g rim a a rra n c a d a , n u m p ra n to
in á b il, e m c o n v u ls õ e s de s o lu ç o s g ro te sco s, f e it o re sm u n g o s de
fe re . E sfregava as m ãos na cara, c o m o q u e re n d o a rra n c a r dos
o lh o s o c h o ro d if í c i l, e as lá g rim a s b rin c a v a m p e lo s d ed os
d e le . C o n tu d o a q u e la d o r fís ic a o d is tra ía d o s e n tim e n to d o
seu c o ra ç ã o . Mas o p ró p r io in s tin to de secar o p ra n to , lhe
p o n d o d e m a is na c o n s c iê n c ia o seu desespero c h o ra n d o , o
fa z ia c h o ra r m ais, era tris te . O p o lít ic o in d ig n a d o b a tia p ro s
p e ito s u m c o p o d e v in h o . A v irtu o s e e sm iga lha va b o lin h a s de
p ão . Mas S arah L ig h t c o m p re e n d ia . Os o lh o s d ela fic a ra m
ú m id o s . Era s in c e ro o seu d ese jo de c o n s o la r, mas v e io u m
m e d o . A q u e le era u m caso em q u e n e n h u m r it o d e a lm o ç o ,
q ue rm esse o u b a ile a m e n tia . A li-, ela só tin h a o g esto , as
m ãos, o c o lo , o b e ijo . Teve m e d o . Q u a lq u e r to q u e n a q u e le
c o rp o de beleza a c o n v u ls io n a ria n u m jo r r o d e d e líc ia s
c o n fu sa s. F ic o u h irta , c o m u m b o c a d o de ra iva d o rap az. N ão
p o r causa d o b a n q u e te in te r r o m p id o , mas. . . M as p o rq u e ele
era tr iu n fa lm e n te m o ç o , a té n a q u e le c h o ro e rra d o . T in h a
raiva d a q u e le e rra d o q u e e x e rc ia na cara d ela o d ir e ito , o
d e s p u d o r de p o d e r ser u m e rra d o . J a n jã o ? Estava
h ir t o ta m b é m . N e n h u m a p ie d a d e nele, mas a espécie de
g ló ria de se re v iv e r n u m ig u a l. N e m s o lid a riz a v a p ro p ria m e n te
na s u p e rio rid a d e d e su m a n a d o a rtis ta . U ltra pa ssa va h o m e n s
e a m o re s, na sua h o r r ív e l, in f le x ív e l fa ta lid a d e de ser u m a rtis ta .
Pela A r t e sim , p ela sua a rte ta m b é m e em p rin c ip a l pela
a b s tra ç ã o in c o n te n tá v e l de H u m a n id a d e , dava tu d o sem hesita ção .
P or u m in d iv íd u o , n u n c a . C o m o a rtis ta , os in d iv íd u o s lhe eram
in s u fic ie n te s . Mas n o e sta d o de c o n s c iê n c ia c ru a em q u e o
pusera a q u e le c h o ro h u m a n o , se n tia n o m o ç o u m ig u a l,
capaz de c h o ra r e m o rre r p o r ideais. Era o e s tu d a n te q u e
estava p e rto d e le , e m b o ra ele se soubesse lo n g e d o e s tu d a n te . . .
" E u sou a m o c id a d e , sou o a m o r " , le m b ro u n u m la m p e jo .
Quase s o rriu . A f in a l s o rriu . Mas a idéia de q u e s o rrir era fo ra de
p r o p ó s ito a li, lh e le m b ro u fa z e r u m g esto a p ro p ó s ito .
C a n h e s tro , in c a p a z , to d o ossos, pôs a m ão , p u ro te a tro , no
b ra ç o c o n v u ls o d o m o ç o , a p e rto u .
A í S a rah L ig h t se e rg u e u , v io le n ta d a p e lo c iú m e .
A q u e le gesto era d e la , só ela tin h a o d ir e ito de to c a r no
P astor F id o a li. " D e ix e ele, J a n jã o !" p ro te g e u rís p id a . Se
in c lin o u so bre o m o ç o c a íd o na mesa e o e n v o lv e u nos braços
d e lic io s o s . B risa d o e n ta rd e c e r! c h e iro de lír io s d o b re jo ,
in fâ n c ia s , mães, te rn u ra s , g ru ta s a b ism a is, fo rç a te rre s tre
q u e n te , g o s to , a rr o u b o de s e x u a lid a d e ilim itá v e l: o m o ç o se
a tir o u nos seios d e la , p o s s u in d o , c h o ra n d o m ais, n u m c h o ro
q u e s o rria e n c a b u la d o , c h o ro b o m , quase fin g id o , sacaneta,
b o m , mas b o m ! S a rah L ig h t o erg uia e x ta s ia d a . N ada m ais da
c o n fu s ã o dos s e n tim e n to s q u e a a m e n d ro n ta ra d e p rim e iro . A
c o n fu s ã o e x is tia sim , mas tã o grave, tã o h a rm o n io s a — o
s e n tim e n to é c o m o o so m , dá se m p re sons h a rm ó n ic o s — que
S arah L ig h t estava extasiada., c o m p le ta d a , c o n v e rtid a ao seu
to ta l d e s tin o , m u lh e r. F o i le v a n d o n o c o rp o o rapaz.
H avia n o te rra ç o u m b a n c o (L ic e u ) m e io e s c o n d id o , b o m pra
ela se to rn a r to ta lita r ia m e n te a m u lh e r. Ú n ic o to ta lita r is m o que
ela ja m a is d e via te r tro c a d o p o r o u tro s . E vos g a ra n to que
Sarah L ig h t era u m a g ra n d e m u lh e r, q u e pena. . . T iv e e te n h o
in te n ç ã o de a m o s tra r desa grad áve l, c o m o de fa to é. Mas nem
se m p re c o n s ig o co n se rvá -la na sua classe de p lu to c ra ta , p o rq u e ,
p e sso a lm e n te , às vezes ela se esquece da classe e de m im ,
um a g ra nd e m u lh e r!
Pois em p o u c o te m p o o P a sto r F id o , p o r m ais que sem
q u e re r quisesse p ro lo n g a r a q u e le c o n s o lo c o m p le x o , estava n o vo ,
p e rd o a d o da le m b ra n ç a in e s q u e c ív e l. P re c is a m e n te o it o m in u to s
d e p o is , eles v o lta v a m para a tá v o la re d o n d a . S io m a ra Ponga
e s c ru to u , p o r m era c u rio s id a d e , o ro s to d o s d o is . E la era tã o
fr ia , S io m a ra Ponga. Mas não p e rce b e u s o m b ra de v e rg o n h a em
n in g u é m . J a n jã o o d ia v a , ju r o : o d ia va o P a sto r F id o . F e lix de
C im a s o n h a d o ra m e n te ch u p a va to p á z io s n o c o p o , im a g in a n d o
carnes de m estiça s possantes. Mas pela p rim e ira vez n a q u e le d ia ,
na u rg ê n cia de fraca sso em q u e o seu b a n q u e te estava, a
m ilio n á ria se a firm a , em seu p o s to de m a n d o , e m a n d a :
— P r o n to : já passou e não se fa la m ais nisso. J a n jã o ,
c o n tin u e e x p o n d o a m úsica b ra s ile ira q u e vo cê in te r ro m p e u .
E e n fim p ô d e fa ze r o sinal pra q u e o c ria d o passasse a
re p e tiç ã o d o va ta p á . J a n jã o só de ra iv a , a in d a d e s o b e d e c e u :
— Pois e m b o ra a m úsica b ra s ile ira seja u m a m a rch a
fú n e b re , não te ve n in g u é m q u e entoasse pra h o je o la m e n to
d u m a M archa F ú n e b re . . . A m úsica b ra s ile ira anda e n tre g u e
às suas gavotas. Mas c o m o eu ia d iz e n d o . . .

E a fin a l J a n jã o fa lo u :
— B o m , S a rah L ig h t, eu v o u lhes d iz e r o q u e penso da
m úsica b ra s ile ira , m as ao m en os m e d e ix e m a p re s e n ta r c e rto s
p r in c íp io s gerais, q u e p o d e m ser d is c u tid o s mas p e lo m en os
são fra n c o s , leais, o b je tiv o s .
Eu não sei p o rq u e são ju s ta m e n te os m ais id e a lista s e
d e s n o rte a d o s q u e v iv e m fa la n d o em o b je tiv id a d e , m e dá um a
a n g ú s tia !. . . O q u e você te m de o b je tiv o , J a n jã o !
— S io m a ra Ponga, d e ix e J a n jã o fa la r, fa z fa v o r.
— Eu a fir m o p re lim in a rm e n te q u e na s itu a ç ã o em q u e o
B ra sil se acha, c o m o e n tid a d e b ra s ile ira , is to é: c o m o
o rg a n iz a ç ã o da coisa é tn ic a e a s s im ila ç ã o d o e s p ír ito d o
te m p o u n iv e rs a l, os b ra s ile iro s só p o d e m fa z e r a rte le g ítim a ,
e fic a z , fu n c io n a l e re p re s e n ta tiv a si d e ix a re m in ic ia lm e n te de
p a rte a in te n ç ã o d e fa z e r ar,^e g ra tu ita . . .
'^ _ A r t e h e d o n ís tic a . . .
— . . . a rte no s e n tid o h e d o n ís tic o d o te r m o , s im : si
a b a n d o n a re m , c o m o id e a l, a p re o c u p a ç ã o e x c lu s iv a de beleza,
de p ra ze r desnecessário. E p rin c ip a lm e n te essa in te n ç ã o
e s tú p id a , p u e ril m e sm o , e d e s m o ra liz a d o ra , de c ria r a
o b ra -d e -a rte p e rfe itís s im a e e te rn a .
— Este aliás é u m dos m a io re s d e fe ito s , ta lv e z o m a io r
d e fe ito da c r ític a b ra s ile ira , não só de m ú s ic a , mas de
q u a lq u e r das o u tra s a rte s, a té m esm o da lite rá ria . O p ró p r io
Á lv a ro L in s já a fia n ç o u q ue o q u e ele busca d is c e rn ir, nas
o b ra s -d e -a rte , são os seus va lo re s de p e rm a n ê n c ia n o f u t u r o .
Mas c o m Á lv a ro L in s , p e lo m e n o s, nós te m o s u m c re d o , um a
a titu d e c r ític a d e fin id a . Pode ser d is c u tid a , mas é d efensável
c o m o q u a lq u e r o u tra . O q u e é e s tú p id o é, d ia n te d u m a o b ra
q u a lq u e r q u e te n ta p ô r u m p ro b le m a em m a rch a , c o m o é o
caso da lin g u a g e m d o M á rio N em e p o r e x e m p lo , o u o caso da
c o r b ra s ile ira , em A lm e id a J ú n io r, um a pessoa ju lg a r em
fu n ç ã o d o a n o d o is m il o u trê s m il.
— D iga m e lh o r. P astor F id o : c o lo c a r a c r ític a n u m a a titu d e
e te rn a de ju lg a m e n to de v a lo r, em vez de n u m a a titu d e sem pre de
ju lg a m e n to de v a lo r, mas v a lo r tr a n s itó r io , d o m o m e n to q u e passa.
O m ais d iv e r t id o é q u e m u ito s , a to rd o a d o s , sem p e rce b e r essa
c o n tra d iç ã o ín tim a , de estarem ju lg a n d o em fu n ç ã o da beleza liv re
e e te rn a , u m a o b ra de beleza c o n d ic io n a d a e tr a n s itó r ia , se salvam
afirm a n do não d ita r ju lg a m e n to s de v a lo r. C o m o se tu d o não fosse
ju lg a m e n to de v a lo r!. . . O sim p le s fa to de se to m a r as " B a q u ia n a s "
de V illa L o b o s e estudá-las, m esm o só estud á-las em re la çã o a
B a ch , m esm o sem d iz e r si são boas o u ru in s , o s im p le s fa to de se
e s tu d a r a p a le ta de T a rs ila e analisá-la e n q u a n to c o r da n a tu re za
b ra s ile ira , são ju lg a m e n to s de v a lo r. P o rq u e em to d a re la çã o haverá
sem pre u m m ais o u u m m en os; o u , na m e lh o r das h ip ó te se s, o
sinal " ig u a l a " . E tu d o isso im p lic a ju lg a m e n to de v a lo r.
O P astor F id o : — Mas o m ais r id íc u lo é q u e to d a essa c r ític a
q u e v iv e b e rra n d o os m é to d o s q u e a d o ta , o q u e m e n o s te m é
m é to d o ; não a gu en ta o tra n c o , e a to d o in s ta n te viv e a m e x e r o
ra b in h o d e b a ix o da pele d o leã o, em ju lg a m e n to s d ir e to s e
s e n tim e n ta is de v a lo r.
— Pois é. Mas d ire to s e s e n tim e n ta is e m fu n ç ã o da
e te rn id a d e e d o f u t u r o . É in c rív e l o p a v o r q u e to d a essa c r ític a te m ,
de e rra r no fu t u r o . . . N ã o chega a ser ris ív e l, p o rq u e dá d ó . O
m e lh o r é p o is, já q u e q u a lq u e r espécie de c r ític a é m esm o e x p líc ita
ou im p lic ita m e n te u m ju lg a m e n to de v a lo r, a g e n te se e x p a n d ir em
ju lg a m e n to s de v a lo r, ig u a lm e n te d ire to s e s e n tim e n ta is , c o m o vo cê
d iz , mas le a lm e n te tr a n s itó rio s , em fu n ç ã o da o b ra -d e -a rte a ju lg a r,
e para o te m p o em q u e ela f o i fe ita . A s " B a q u ia n a s " de V illa
L o b o s tê m de ser to m a d a s não em re la çã o a B a ch , mas em
re la çã o a elas m esm as. T ra n s ito ria m e n te , e n q u a n to v a lo r de h oje
e d o m o m e n to .
— N ã o c o n c o rd o ! Q u a n d o eu in te r p r e to u m a canção de
F au ré o u de S c h u b e rt, eu p re te n d o h o n e s ta m e n te reve la r
S c h u m a n n 1 e F a u ré na sua p e rm a n ê n c ia , na sua m ensagem .
Ja n jã o , fo i im p o s s ív e l g u a rd a r o b e iç o de d e sp re zo que
ele fe z , o lh a n d o a c a n to ra , la re s p o n d e r, mas d e s is tiu ,
m u rm u ra n d o apenas (c o m q u e d o ç u ra !) :

1 (sic) Trata-se sem dúvida de um erro tipo g ráfico : deve ser Schubert.
— Isso é p o rq u e você é v irtu o s e . . . Mas c o n tin u a n d o : O
tíra s il está em fre n te d o seu fu t u r o . O e stado das a rte s
m u sica is, p lá stica s, a rq u ite tô n ic a s m esm o (e m e sm o c o m o
lin g u a g e m , as lite rá ria s ) o B ra s il, não é p r im itiv is ta , p o r
P r im itiv is m o escola de a rte , o u p r im itiv is m o d ile ta n te de blasés
e u ro p e u s . . .
— V o c ê v iu . . .
— D e ix a eu fa la r. Pastor F id o , você me in te rro m p e
sem pre. Os a rtis ta s b ra s ile iro s são p rim itiv o s s im : mas são
“ n e c e s s a ria m e n te " p r im itiv o s c o m o filh o s d u m a n a c io n a lid a d e
q u e se a firm a e d u m te m p o q u e está apenas p rin c ip ia n d o .
N este s e n tid o é q u e to d a a a rte a m e rica n a é p r im it iv a , m esm o
a d os E stad os U n id o s . E se q u is e rm o s ser fu n c io n a lm e n te
v e rd a d e iro s , e não nos to rn a rm o s m u m b a v a s in e rm e s e b o b o s
da c o rte : c o m o os p rim itiv o s d e to d a s as n a c io n a lid a d e s e
p e río d o s h is tó ric o s u n ive rsa is, nós te m o s q u e a d o ta r os
p r in c íp io s da a rte -a çã o . S a c rific a r as nossas lib e rd a d e s , as
nossas ve le ida de s e p re te n sõ e sin h a s pessoais; e c o lo c a r c o m o
c â n o n e a b s o lu to da nossa e s té tic a , o p r in c í p io de u tilid a d e .
O P R IN C IP IO D E U T IL I D A D E . T o d a a rte b ra s ile ira de agora
q u e não se o rg a n iz a r d ire ta m e n te d o p r in c í p io de u tilid a d e ,
m e sm o a ta l d os va lo re s e te rn o s : será vã, será d ile ta n te , será
p e d a n te e id e a lis ta . Q u e b e m m e im p o rta agora si eu não fic o
q u e n e m u m R a cin e , q u e n em u m S c a rla tti? . . . Q u e b e m m e
im p o r ta si não v o u ser b u s tific a d o n u m c a n to de ja r d im
p ú b lic o , d e n tro de ce m anos? . . . Q ue b e m m e im p o rta não
fic a r e te rn a m e n te re d iv iv o , se v iv i? . . .
— Mas m eu a m ig o , nesse caso se m p re vo cê ta m b é m está
fix a n d o o B ra sil c o m o e le m e n to de re la çã o , para os seus
ju lg a m e n to s , de v a lo r. . .
— Eu não e sto u e n te n d e n d o n ada! s u s p iro u o p o lí t ic o
F e lix de C im a .
— E s to u , S arah L ig h t, e s to u ! Mas eu n ã o neguei os
e le m e n to s d e re la çã o , c o m o pro cesso de a tin g ir u m
ju lg a m e n to . O q u e eu a firm e i é q u e esses e le m e n to s d eve m
ser os q u e a p ró p ria vid a tr a n s itó r ia pede, e não e le m e n to s de
e te rn id a d e , q u e n em a v id a , n em a o b ra -d e -a rte p ra tic a m e n te
p e d e m . N ã o se esqueça q u e m esm o a o b ra -d e -a rte , m ais liv re ,
m ais “ h e d o n ís tic a " , c o m o fa z q u e s tã o de d iz e r S io m a ra Ponga,
é se m p re u m fa to r s o c ia l, u m e le m e n to fu n c io n a l.
— Mas si a o b ra -d e -a rte é liv re , o q u e ela pede para
re la çã o d o seu ju lg a m e n to de v a lo r, é o e te rn o , o u n iv e rs a l.
— N ão si essa o b ra f o r b ra s ile ira . N ão, aliás, em
q u a lq u e r caso, m esm o se tr a ta n d o d u m a " P u lc in e lla " de
S tra v in s q u i — e a p ro v a é q u e a Rússia c o m u n is ta re p u d io u
S tra v in s q u i. E fe z m u ito b e m . Sem m e d o d o f u t u r o . Mas não
m e p e rc o neste p o b le m a ago ra . . .
— P ro b le m a ! P ro n u n c ie d ir e ito , J a n jã o .
— N ão c h a te ia , S io m a ra Ponga! J a n jã o te m ra zã o . É a
p ró p ria vid a tr a n s itó r ia q u e estabelece os e le m e n to s re la c io n a is
para os ju lg a m e n to s d e v a lo r. E n o caso, essa vida é o B ra sil.
Mas o B ra s il, e n te n d a -se : não só o q u e ele f o i,
tr a d ic io n a lm e n te , o q u e ele é ra c ia lm e n te , mas ta m b é m no
te m p o de ago ra , c o m o a s s im ila ç ã o d o e s p ír ito d o te m p o . É
d is to q u e eu ia fa la r. J a n jã o não d e ix o u ! P o rq u e não há nada
m ais ir r ita n te d o q u e a c r ític a e u ro p é ia a re s p e ito das nossas
a rte s e a rtis ta s . Eu a in d a h e i-d e escrever u m a m o n o g ra fia ,
d e n u n c ia n d o essa e s tu p id e z . F ra n q u e z a : e s tu p id e z . A té já
a n d e i a ju n ta n d o u m as fic h a s , mas c o m esta v id a , agora a q u i,
agora n o u tra pensão, p e rd i tu d o . O B ra sil não é n e n h u m a
e s q u im o lâ n d ia , n e m a nossa m úsica é o g am elã java nê s! Nossa
tra d iç ã o é e u ro p é ia , nossa vid a de a rte e ru d ita é a da
c iv iliz a ç ã o c o n te m p o râ n e a , q u e já n em se p o d e d iz e r m ais
e u ro p é ia , nem m esm o c ris tã , p o is avassala u n iv e rs a lm e n te o
m u n d o . Mas é de ver a c r ític a de a rte e u ro p é ia c o m o tra ta os
c ria d o re s b ra s ile iro s ! M e sm o u m B o ris de S c h lo e z e r, no
e n ta n to tã o filo s ó f ic o e in te lig e n te . Há u m a c r ític a d e le sobre
o V illa q u e é d u m a p o b re z a la rv a r. Ela acaba e sta b e le ce n d o
se m p re u m ju lg a m e n to d e v a lo r (está c la ro : v a lo r m en os)
p o rq u e o V illa re fle te e le m e n to s de S tra v in s q u i! E o que é
p io r : a firm a q u e o V illa não p o d e rá n u n ca fa z e r m úsica
b ra s ile ira , e n q u a n to usar a o rq u e s tra s in fó n ic a , p o rq u e esta é
m a n ife s ta ç ã o de c u ltu r a e u ro p é ia , q u e b u rra d a ! A o rq u e s tra
ta m b é m não é russa n e m n o rue gu esa , si a to m a rm o s em
re la çã o ao te m p o em q u e se fo r m o u .
— E nesse caso n em fran cesa seria, p o is q u e a fin a l fo i
u m ita lia n o , L u lli, q u e m f ix o u em Paris, e p o r im p o rta ç ã o ,
p o r c ó p ia , os p rim e iro s " V i n t e e Q u a tro V io lin o s d o R e i" . . .
— Pois é! A g o ra im a g in e m u m c r í t ic o d o te m p o de
R am ea u q u e a firm a s s e este não p o d e r n un ca a tin g ir m úsica
fran cesa , e n q u a n to se u tiliz a s s e da o rq u e s tra a u s tr o - ita lia n a !
N ós so m o s ta m b é m c iv iliz a ç ã o e u ro p é ia , e a o rq u e s tra nos
p e rte n c e c o m ta n ta le g itim id a d e c o m o a M u sso rg sq u i o u F a lia .
Mas essa é a visão g e ra l, re a lm e n te to n ta , da c r ític a e urop éia
a nosso re s p e ito e d o B ra s il: so m o s uns e x ó tic o s , so m o s um a
e s q u im o lâ n d ia , e no fu n d o o q u e eles p e d e m não é a rte
b ra s ile ira , n em a rte liv re , n em nada. Q u e re m é va ta p á , q u e re m
g a m e lã o . Há u m a c r ític a im p a g á v e l d a q u e le b e m in te n c io n a d o
H e n ri P ru n n ie re s , ta m b é m s o b re V illa L o b o s , em q u e de
re p e n te , n o m e io da c r ític a , ele p rin c ip ia v e n d o ín d io , ve n d o
flo re s ta v irg e m , na m úsica a ca p a d o ça d a de u m ó t im o V illa d o
largo da Lapa.
— Isso ta m b é m me ir r it o u , o u tr o d ia , le n d o n o jo r n a l a
c r ític a d e u m d iz -q u e g ra nd e c r ít ic o inglês d e a rte s p lá stica s,
a re s p e ito da e x p o s iç ã o de p in tu ra b ra s ile ira em b e n e fíc io da
R A F . A c h a va q u e os q u a d ro s não e ra m b ra s ile iro s e r e fle tia m
in flu ê n c ia da Escola d e Paris. Mas q u e m h o je não re fle te na
p in tu ra , in flu ê n c ia m ín im a q u e seja, da E scola de Paris, q u e é
u n iv e rs a l, fe ita de Picassos e Pascins de to d a s as p a rte s d o
m undo?
— E de fran cese s, S arah L ig h t, graças a D eus. Mas a
se nh ora não v iu o p r ó p r io B e n to n in fe r n iz a d o c o m isso, na
ca rta a b e rta q u e escreveu aos p in to re s b ra s ile iro s ? A E scola
de Paris, só c h a m a d a assim p o r causa da im p o rtâ n c ia
in te rn a c io n a l d e P aris, é u m fe n ó m e n o u n iv e rs a l de re v a lid a ç ã o
d o s p r in c íp io s té c n ic o s da p in tu ra . E não é p o r esse la d o
té c n ic o -e s té tic o da Escola de Paris q u e os p in to re s b ra s ile iro s
d e ix a m d e ser b ra s ile iro s e fu n c io n a is .
— E s to u e n te n d e n d o ! a rru fo u -s e to d o o p o lí t ic o F e lix
d e C im a : O q u e vo cê q u e r, m e n in o , é q u e os p in to re s d a q u i
só p in te m n e g ro !
— É ta m b é m o q u e os m ú s ic o s b ra s ile iro s fa z e m de nós
lá fo r a : uns negros, b a tu q u e . . . s o rriu d is p lic e n te m e n te a
c a n to ra S io m a ra Ponga.
— D e te s to n e g ro , e x p lo d iu a m ilio n á ria S arah L ig h t.
— É isso! (J a n jã o não se c o n te v e :) O q u ê q u e esses
c r ític o s m u sica is e s tra n g e iro s p e d e m de nós? N e g ro , só n e g ro !
E o q u ê q u e os b ra s ile iro s p e d e m ? B ra n c o , só b ra n c o ! E
d u rm a -s e c o m u m b a ru lh o desses! São to d o s uns id io ta s !
— Só você não é.
— V o c ê te m ra zã o , S io m a ra Ponga. N e m to d o s são
id io ta s : há os e sp e rto s.
Mas a v io lê n c ia da in d ire ta , e s frio u to d o s . O p r ó p r io
J a n jã o fic o u e n c a b u la d o c o m a g ro sseria. P rin c ip io u - fa la n d o
rá p id o , pra d is fa rç a r, sem saber e x a ta m e n te o q u e ia d iz e r.

J a n jã o c o n tin u o u c o m os p e n s a m e n to s e m t u m u lt o ,
fa la n d o so b re a m úsica b ra s ile ira :
— Pois é d e n tro dessa a rte -a ç ã o , desse p r im it iv is m o ,
n a tu ra l d o B ra s il em fa c e d o seu f u t u r o , q u e a m ú sica
b ra s ile ira te m d e ser n a c io n a l. U m n a c io n a l de v o n ta d e e de
p ro c u ra . N a c io n a l q u e d ig e re o fo lc lo r e , m as q u e o
tra n s u b s ta n c ia , p o rq u e se tra ta de m ú sica e ru d ita . E u m
n a c io n a l q u e d ig e re as te n d ê n c ia s e pesquisas u n iv e rs a is , p o r
essa m esm a razão d o B ra sil ser a tu a l, e não u m a e n tid a d e
fix a d a no te m p o .
E p o r se tr a ta r , sem pre, de a rte e ru d ita , q u e p o r
d e fin iç ã o a c o lh e a in te rn a c io n a l. U m a m e ló d ic a b ra s ile ira . . .
U m a p o lifo n ia b ra s ile ira . . . Já nem ta n to . . . U m a
h a rm o n iz a ç ã o in te rn a c io n a l, p o is q u e não há h a rm o n iz a ç ã o
n a c io n a l: os a corde s debussistas fo ra m p a ra r n o ja z z , sem
d e s c a ra c te riz a r coisa n e n h u m a ; e as p ró p ria s te rça s inglesas
ja m a is se rv ira m pra n a c io n a liz a r a m úsica da In g la te rra . U m a
r ítm ic a b ra s ile ira . . . Este o p ro b le m a m ais a n g u s tio s o ta lv e z . . .
Por causa da s in c o p a . U m a r ítm ic a b ra s ile ira em q u e as
s in c o p a s fo sse m u m a c o n s tâ n c ia de m o v im e n to , m as em que
os te m p o s e a c e n to s n o rm a is fo ssem a base essencial e
p e rm a n e n te da c o n s tru ç ã o r ítm ic a . E n fim : u m a m úsica
b ra s ile ira q u e sendo p s ic o ló g ic a c o m o c a ra c te riz a ç ã o ra c ia l,
fosse o m en os p o ssíve l e x ó tic a . Q u e ro d iz e r: não se to rn asse ,
fe ito a e sp a n h o la , m ais re c o n h e c ív e l p e lo tr a je q u e pela
a lm a . . .
— É m u ito vago, J a n jã o .
— É m u ito vago, P astor F id o é. . .
A c a n to ra , só de p iq u e , d e s c o b riu u m je it o d e d e fe n d e r
a s in c o p a :
— D e re s to , a s in c o p a . . . V o c ê d iz q u e a m úsica
b ra s ile ira não deve recu sar o in te rn a c io n a l c o n te m p o râ n e o :
p o is a s in c o p a não p e rte n c e rá a essa e x ig ê n c ia p s ic o ló g ic a
a tu a l d o m u n d o ? Pelo M en os c o m o c o in c id ê n c ia d o B rasil
c o m o te m p o ? . . . A f ir m a m , e há b a sta n te s p ro va s d isso , q u e
o e stad o de re lig io s id a d e está re flo re s c e n d o neste sé cu lo . . . Eu
c re io q u e isso é n a tu ra l, p o rq u e ta lv e z em n e n h u m a o u tra
época h is tó ric a o h o m e m te n h a v iv id o tã o p r ó x im o da m o rte .
N ós estam os v iv e n d o ta n g id o s p e lo in s tin to de m o rre r. . .
M o rre c o n o s c o u m a c iv iliz a ç ã o h is tó ric a , a C ris tã . E stam os na
b a n c a rro ta d o c ie n tific is m o n a tu ra lis ta d o séc. X I X , m o rte d o
h o m e m c o m o s im p le s a n im a lid a d e .
— N e m ta n to . . .
— N em ta n to , seja, m eu ca ro p o lí tic o . M as: e s te tic is m o
e x a c e rb a d o , A r te P ura, a rte s sem s ig n ific a ç ã o d o b e m e d o
m a l, da ve rd a d e e d o e rro : m o rte da a rte interessa da ,
fu n c io n a n d o litu rg ic a m e n te d e n tro da vid a h u m a n a . É poca d o
C o m u n is m o : m o rte d o h o m e m in d iv íd u o , d is s o lu ç ã o da
fa m ília , d is s o lu ç ã o d o n a c io n a l, d o t’a c ia l. . .
— Mas o n d e é q u e você v iu isso, S io m a ra P onga!
— D e ixa «a m oça e sb a n ja r, J a n jã o .
— Mas eu não posso, P astor F id o ! N ão sou c o m u n is ta ,
mas o c o m u n is m o tra z em si ta m a n h o s in d íc io s de v id a , q u e
S io m a ra não p o d e c o n ta r ele c o m o p a r tic ip a n te d o c o n v ív io
d o s c o n te m p o râ n e o s c o m a m o rte .
— E os to ta lita ris m o s ? . . .
— Esses vo cê não só p o d e , mas deve.
— O c a p ita lis m o ia n q u e está re sce n d e n te de m o rte . . .
É p oca da C o r p o r a tio n . É p oca da S o cie d a d e “ A n ó n im a " . E
vocês to d o s v iv e m n u m e stado d e g o zo fís ic o e x a c e rb a d o .
(E la era fr ia . . .) A dan ça re in a ! Se a b riu u m a fase h u m a n a
de p re d o m in â n c ia d o r it m o . E d o r it m o im o ra liz a n te , o q u e é
p io r. É a s in c o p a re m e le ix a d a d o ra g tim e , d o ta n g o , da
ru m b a , d o sam ba, da m a rc h in h a .
— Mas eu não e n te n d o ! p o rq u e q u e a s in c o p a é
im o r a liz a n te !
— P o rq u e , F e lix d e C im a , ela c o n tra ria os ritm o s
fis io ló g ic o s n o rm a is d o h o m e m . Ela se c o n s c ie n tiz o u na
m úsica e u ro p é ia ju s ta m e n te p o r isso; u m a a n o rm a lid a d e ,
e m b o ra o in g é n u o J o ã o S e ba stiã o B ach n u n ca im aginasse q u e
estava p e c a n d o c o n tra a ca rn e, em sua s is te m a tiz a ç ã o abusiva
de s in c o p a . A s in c o p a é a n ti-m o ra l, a p a ix o n a n te , u m d e svio .
U m g o zo sensual. E o g o zo fís ic o excessivo, ta n t o pela sua
v io lê n c ia a n o rm a l c o m o pela sua c o n se q u ê n cia ló g ica de
e x a u s tã o e e s g o ta m e n to , nos seciona da vid a q u e é m o v im e n to
e re g u la rid a d e a p ro x im a n d o a gen te da m o rte . V iv e m o s
re a lm e n te u m a a m b iê n c ia de m o rte , e m b o ra as a p a rê n cia s d o
te m p o sejam d u m r e flo re s c im e n to de v ita lid a d e .
— E o e spo rte ?
— O e s p o rte leva a g en te pra u m a v ita lid a d e n o rm a l e
le g ítim a . O e s p o rte ja m a is é s in c o p a d o , re p a re m . Mas o
c o n c e ito v e rd a d e iro d o e s p o rte p o ré m , q u e re fo rç a ria essa ta l
de tese d o h o m e m c h o fe r, está c o m p le ta m e n te a d u lte ra d o .
T o d o s os ideais, processos e fa ça n h a s d o e s p o rte , nos te m p o s
de a go ra , só nos a p ro x im a m da m o rte . P o rq u e , c o m o
re fo rç a m e n to da v id a , o e s p o rte não é p ra tic a d o m ais: o
e s p o rte não é m ais a q u is iç ã o de v id a , mas a q u is iç ã o de v itó ria
d o m ais fo r t e ; e tu d o é c o m p e tiç ã o . A té nos g ru p o s escolares!
A té na g in á s tic a d e e x p o s iç ã o em praça p ú b lic a ! R eina a
v o n ta d e d o h o m e m co lo sso . R ein a o ú n ic o desejo de ser m ais
f o r t e q u e . R ein a a jo g a tin a m ais d e sa rvo ra d a . A riv a lid a d e
p a tr io te ira . O p ro fis s io n a lis m o . O p ro fis s io n a lis m o é a lei
v ig e n te a té d o a m a d o ris m o . Os a m a d o re s não q u e re m q u e o
o u tr o a u to m ó v e l passe na fr e n te deles na e stra da . Si o o u tr o
passa, se n te m u m a a m a rg u ra d e m o rte . É s o b re tu d o , d o m in a
no e s p o rte in te rn a c io n a l, a lei de a rris c a r a v id a . O q u e
e n tu s ia s m a , o q u e id e a liz a nas v e lo cid a d e s e s tu p e fa c ie n te s dos
a u to m ó v e is , d os re c o rd is ta s , d os aviõ es, é a b ra v a ta c o n tra a
m o r te , q u e nos a p ro x im a d e la . P o rta n to , nada m ais n a tu ra l
q u e o h o m e m m o d e rn o , v iv e n d o de m o rte , v o lte a u m estado
de re lig io s id a d e s a n g re n to . P o u co im p o rta si essa re lig iã o é o
F a c h is m o . A s re lig iõ e s re v a lo riz a m a m o rte . Pro h o m e m , c o m o
e le m e n to da n a tu re z a , as re lig iõ e s não d ã o s e n tid o . P o ré m elas
ju s t ific a m a vid a to rn a n d o esta u m a co n s e q u ê n c ia ló g ica da
m o rte . Esta in ve rsã o da o rd e m n a tu ra l das coisas, esta
ju s tific a ç ã o da vid a pela m o rte , " v iv e r m o r r e n d o " . . . ta lv e z
seja m e sm o o c o n v ite m ais s u tilm e n te e n c a n ta tó rio da
d iv in id a d e das re lig iõ e s . . .
— B ra vos, nossa g ra n d e v irtu o s e !
— G o s to u , nosso g ra n d e p o lític o ?
— O q u e eu não e sto u v e n d o é o q u e tê m as re lig iõ e s
c o m a s in c o p a d eu de o m b ro s o c o m p o s ito r b a s ta n te
d e s p e ita d o .
— Os e x tre m o s se to c a m , J a n jã o . V e jo q u e vo cê não
p o d e seguir b e m o m eu p e n s a m e n to , mas eu re s u m o pra
vo cê. . . Eu d ig o q u e to d a s as re lig iõ e s são te c id a s de
e le m e n to s m o r tífe r o s . D os q u a is o m ais im p o r ta n te é a
c o la b o ra ç ã o d o p e ca d o . V o c ê re p a re q u e to d a s as p ro ib iç õ e s
e ta b u s são, a b e m d iz e r, g ra tu ito s ; mas si nos p a re ce m
g ra tu ito s , é p o rq u e não nascem das necessidades lóg icas da
v id a , mas das in sin u a çõ e s fu tu ra s da m o rte .
— É a a le g o ria d o s d o is c a m in h o s , J a n jã o , o c a m in h o
largo f lo r id o , o c a m in h o e s tre ito e e s p in h e n to : q u e m to m a o
c a m in h o g o sto so vai p ro in fe rn o .
— M e le m b ro , S arah L ig h t. Mas é q u e ju s ta m e n te a
s in c o p a é s is te m a tic a m e n te re je ita d a na litu r g ia m u s ic a l das
gra nd es re lig iõ e s o rg a n iza d a s.
— P ois eu fa le i q u e os e x tre m o s se to c a m : a s in c o p a é
da p ro fa n id a d e , é a c o la b o ra ç ã o d o p e ca d o . A s in c o p a é d o
a m o r, c o m o se d iz .
— Mas o p ró p r io B a ch , S io m a ra , q u e é tã o s in c o p a d o '
nas peças p ro fa n a s , basta le m b ra r o "C ra v o b e m T e m p e ra d o " ,
d e ix a d e ser s in c o p a d o nas peças re lig io s a s , p rin c ip a lm e n te nos
co ra is .
— B ach, m eu c a ro , c o n tra o q u a l vo cê m a n ife s ta uma
a n tip a tia q u e eu não posso c o m p re e n d e r, a não ser q u e você
te n h a in ve ja d e le , o nosso p re z a d o J o ã o S e b a stiã o B a ch, era
m u ito m e n o s re lig io s o d o q u e a firm a m . O q u e ele f o i, e m b ora
h o n e s ta m e n te c o m o p rá tic a s e x u a l, o q u e ele f o i, mas f o i u m
v iv e d o r, isso sim . C o m p a re a re lig io s id a d e da m úsica d ele
quase to d a , m esm o as p a ix õ e s , a m issa, e s o b re tu d o as peças
de ó rg ã o , c o m a re lig iã o ce m vezes m ais p ro fu n d a d u m
P a le strin a . Mas não se esqueça q u e na v id a , e n q u a n to
P a le strin a c u ltiv a v a rosas, B ach fa z ia filh o s , v in te e u m filh o s
e duas m u lh e re s. É p ossível d iz e r q u e d e n tro da p rá tic a
te rre s tre das re lig iõ e s cristã s, B ach não fo i u m lib id in o s o .
Mas ele d e m o n s tra fre q u e n tis s im a m e n te a qu e la p s ic o lo g ia d o
" a n im a l t r is t e " , d os excessos sexuais. T ip ic a m e n te nas peças
de ó rg ã o , de c a rá te r im p r o v is a tó r io , em q u e ele se lib e rta v a
d o s e n tid o litú r g ic o d o s te x to s tra d ic io n a is , v ib ra a tris te z a .
U m a tris te z a fre n é tic a , p o rq u e ele era u m s a n g u ín e o ,
fis ic a m e n te u m fo r te . E não ra ro , nos seus p re lú d io s e to c a ta s
de ó rg ã o , sé não e x is te n e n h u m a se nsu a lid a d e , e x is te o g r ito
d o desesperado. C o m p a re c o m F re s c o b a ld i. E c o m V it ó r ia e
c o m o p ró p r io H a y d n ris ív e l das missas, e p o r m ais fa c ilm e n te
c o n tro lá v e l p o r estar p ró x im o de nós: c o m Cesar F ra n c k . Este
sim , era u m re lig io s o , a té m esm o nas peças p ro fa n a s . E no
e n ta n to e stou c ita n d o ita lia n o s , e sp a n h ó is, g e n te v iv e d o ra ,
m u ito m ais sensual, e s to u c ita n d o la tin o s . A evasiva
re lig io s id a d e d e B ach te m u m s im ile la tin o s im : mas este são
os p in to re s ita lia n o s d o A lt o R e n a s c im e n to : R a p h a e l, M ig u e l
A n jo , m e n o s Da V in c i, mas s o b re tu d o os v e rie ^ia n o s,
V e ro n e se , o T ic ia n o . Mas n un ca T ie p o lo ! B a ch é já p le n o
sé culo X V I I I , e os h is to ria d o re s alem ães in s is te m no in v e n ta r
nele e le m e n to s b a rro c o s . H ae n d e l sim , é a re lig io s id a d e d o
B a rro c o , m u ito m ais le g ítim a aliás, q u e a d o A lt o
R e n a s c im e n to . N este, s o b re tu d o na Itá lia , nós va m o s e n c o n tra r
um a a rte re lig io s a fe ita p o r ateu s, in te ira m e n te p osta ao
se rviço de interesses classistas, u m a re lig iã o c in ic a m e n te
a g n ó stica . B ach a té nisso é u m a n a c ró n ic o , e está ao la d o de
R a p h a e l. N ão " c o m p a r á v e l" a R a p h a e l, mas e q u ip a rá v e l a este.
A c o m p a ra ç ã o é u m d o s e le m e n to s m ais p re c á rio s d e c r ític a ,
p o rq u e s is te m a tiz a n d o as s im ilitu d e s e as o p o s iç õ e s , cria
e lu cid a çõ e s fe s tiv a s e d e s lu m b ra n te s . O q u e não q u e r d iz e r
q u e estas e lu c id a ç õ e s sejam certas.
— P elo c o n tr á r io levam aos e rros e às in c o m p re e n s õ e s
m ais o b tu sa s. N is to , ao m en os, eu e sto u c o m p le ta m e n te de
a c o rd o c o m você.
— E q u a n to à s in c o p a ? . . .
— N ão sei, não sei! E s to u de a c o rd o em q u e a s in c o p a
é de fa to u m a te n d ê n c ia , p o r assim d iz e r, u m a necessidade da
m úsica u n iv e rs a l c o n te m p o râ n e a . O q u e não im p e d e q u e ela
seja o m a io r p e rig o da m úsica b ra s ile ira e ru d ita . Mas não é
nisso, não é p ro p ria m e n te na c o m p o s iç ã o q u e a m ú sica
b ra s ile ira vai p e ssim a m e n te . N ão há d ú v id a q u e ela a prese nta
a lg un s c ria d o re s de g ra n d e v a lo r, e um a p e rs o n a lid a d e g en ia l
co m o * V illa L o b o s . . .
— Mas n e n h u m co n se g u iu a gra nd eza d u n s " P in i d i
R o m a " ! (E c o m o ele p ro n u n c ia v a b e m o ita lia n o ! " R o m a "
lhe saiu c o m u m e rre fra c o , fra c o . . . F e lix de C im a p o lí t ic o ,
d e sce n d e n te de ita lia n o s , de ita lia n o s n ão , da á guia ro m a n a ,
estava e n tu s ia s m a d o . A s n a rin a s g orda s d e le p a re c ia m asas de
p e ru b a te b a te n d o , re c e b e n d o m a s o q u is ta m e n te as o rd e n s
fa c h ís tic a s das m archa s grossolanas d o m u s s o lin iz a d o r m u sica l
de R o m a :) O fin a l d os " P in i d i R o m a " é a m úsica m ais
d iv in a !
— E o " B o le r o " de R avel? ' ch a sq u e o u o e s tu d a n te .
— T a m b é m ! ca iu o p o lí tic o , m ais se n su a liza d o a in d a ;
e n q u a n to Ja n jã o se se n tia fr a te r n o d o e s tu d a n te ! Mas Sarah
L ig h t, s o n h a d o ra m e n te :
— V o cê s fa la ra m da s in c o p a , d os b ra s ile iro s , de
R e sp ig h i, d o " B o le r o " , mas sejam os p rá tic o s e o b je tiv o s . O
q u e p ro va m esm o é a e s ta tís tic a . A s " C ira n d a s " de V illa
L o b o s p o d e m ser u m a o b ra p rim a , c o m o J a n jã o m e
a co n se lh a . . .
— A ú n ica o b ra q u e fe z o p ia n o a van çar a lé m d o s
" P r e lú d io s " d e D eb ussy.
— Seja. Mas n em o " B o le r o " , n e m R e s p ig h i, e m u ito
m en os V illa L o b o s , c o n s e g u ira m m e ta d e das e xecu çõe s, a
p e rfe iç ã o e a p o p u la rid a d e d o g ra n d e c o m p o s ito r S m ith van
K lu g g ! S o b re tu d o da ó p e ra c ó m ic a d e le , "O s A m a n te s
S in c o p a d o s ".
T a b le a u !
A s s im q u e a m ilio n á ria S arah L ig h t le m b ro u o n o m e de
S m ith van K lu g g , o c o m p o s ito r m ais c é le b re e c e le b ra d o , m ais
p o p u la r e m ais e x e c u ta d o d os nossos d ia s, h o u v e u m ta b le a u
no b a n q u e te . T o d o s se im o b iliz a ra m . Q u e se tra ta v a d u m a
g ra n d e p e rs o n a lid a d e m u s ic a l de a rtis ta c ria d o r, n ã o havia
d ú v id a , mas a im o b ilid a d e d aq ue le s c in c o c o m e d o re s , em cada
u m tin h a u m s e n tid o . A m ilio n á ria , p o r m ais p rá tic a q u e os
o u tro s , se im o b iliz a ra s o n h a d o ra m e n te (o te rm o é e x a to :
s o n h a d o ra m e n te ) n u m a adesão to t a l. O p o lí t ic o F e lix de C im a
(fa c h is ta ) não era e x a ta m e n te u m a adesão, mas era u m
a de sivo . O e s tu d a n te d e D ir e it o P astor F id o , p egado de
surpresa, g o s ta n d o sem q u e re r d o m ú s ic o ilu s tre , fic o u a tó n ito ,
quase to m a d o de p a v o r. A s p ira v a a não g o s ta r, mas não se
d is tin g u ia , c o n fu s o . A c a n to ra S io m a ra Ponga, essa cantava
sem pre as m e lo d ia s fa m o sas de S m ith van K lu g g , sucessos
g a ra n tid o s . T eve u m g esto de im p a c iê n c ia re p u g n a d a (co n h e cia
tã o b e m o m ú s ic o . . .), mas q u e ela e s ta n c o u n o m e io , pra se
to rn a r c o n c o rd a n te c o m a sua v id a de v irtu o s e . Mas o
c o m p o s ito r J a n jã o , a rtis ta v e rd a d e iro , ig n o ra d o e p o b re , assim
q u e e s c u to u o n o m e de S m ith van K lu g g , fo i c o m o u m a
b o fe ta d a q u e ele re ce b e u . Ja m a is em seu p u d o r, o u sa ra a na lisa r
c o n s c ie n te m e n te , e ju lg a ra a o b ra d o c o m p o s ito r fa m o s ís s im o .
E o to m o u um a v e rg o n h a e n o rm e , fic o u ru b ro . O g o lp e fo i
m e sm o tã o irre s p irá v e l, q u e ele p re c is o u fa la r, fa la r a lg u m a
co isa , m u d a r de a s s u n to , esquecer, v a rre n d o u m m a l-e sta r de
a nã o q u e viera b rin c a r so bre a to a lh a da mesa.
— Mas é u m e rro t o n t o ju lg a r o e sta d o d u m a m úsica
n a c io n a l, e x c lu s iv a m e n te p elos seus c o m p o s ito re s . . . O B ra sil
c o n ta c o m a lg u n s c o m p o s ito re s de m u ito v a lo r, mas a m úsica
b ra s ile ira vai p e s s im a m e n te p o rq u e não são os p ic o s iso la d o s
q u e fa z e m a g ra nd eza d u m a c o rd ilh e ira . A A rg e n tin a , ta lv e z
o C h ile , não c o n h e ç o b em o C h ile , mas g a ra n tid a m e n te o
M é x ic o , e o p r ó p r io U ru g u a i, não a p re s e n ta m u m m ú s ic o da
riq u e z a d o V illa o u d o e q u ilíb r io de C a m a rg o G u a rn ie ri; mas
não te m d ú v id a q u e há u m a m úsica a rg e n tin a , há u m a m úsica
m e x ic a n a , m u ito m ais p e rm a n e n te s , m u ito m ais s o c ia lm e n te
fix a d a s q u e a b ra s ile ira . E n tã o os E stados U n id o s n e m se
fa la !. . .
O q u e fa z a m úsica d u m a nação é u m c o m p le x o de
e le m e n to s : escolas, e n s in o , lite ra tu ra , c r ític a , e le m e n to s de
e xe c u ç ã o , o rie n ta ç ã o c o n s c ie n te e p re d e te rm in a d a de tu d o ; e
ta m b é m e x ig e n te m e n te u m p ú b lic o . E ta m b é m a im p ressã o de
m úsicas, e as casas de e xe cu çã o m u s ic a l. . . E o q u e o B ra sil
p o d e a p re s e n ta r de ú t il e de p e rm a n e n te em tu d o isso? O
B ra sil te m , te rá , uns c in c o o u seis c o m p o s ito re s
c o m p ro v a d a m e n te de v a lo r. T erá uns c in c o o u seis v irtu o s e s
de p ia n o c o m p a rá v e is a té aos v irtu o s e s in te rn a c io n a is , mas. . .
e o re s to ? Já q u a n d o estávam os to m a n d o o a p e ritiv o , e
apesar da e x c lu s iv a o p in iã o em c o n tr á r io d o sr. F e lix d e C im a ,
q u e é d o g o v e rn o , fic o u m ais q u e d e n u n c ia d a a d e fic iê n c ia d o
nosso e n s in o m u s ic a l, não só p a u p é rrim o , mas p rin c ip a lm e n te
e rra d o , a n tiq u a d o , ig n o ra n te , q u e só não é n u lo p o rq u e é
p re ju d ic ia l, p o r in c o m p le to , in c o m p e te n te e d e s n a c io n a liz a d o r.
Já fic o u d e n u n c ia d o q u e a c r ític a , a im p re n sa m u s ic a l de
jo r n a is e revista s, é to ta lm e n te vesga: p e d a n te , ensim e sm ad a,
p a rtid á ria , in ca p a z de a ssu m ir q u a lq u e r o rie n ta ç ã o n o rm a tiv a ;
g ra tu ita , in ca p a z de q u a lq u e r co m p re e n s ã o p ra g m á tic a d o seu
pa p e l e d u c a tiv o e da sua fu n ç ã o n a c io n a l. . .
E os v irtu o s e s ! B o m , fic a assentado q u e eu não m e
r e fir o a S io m a ra Ponga, q u e p e rte n c e ao d o m ín io de M e n tira ,
esta nossa s im p á tic a c id a d in h a da A lta P a u lista , e não ao
B ra s il, o n d e ela só e n tra a p re s e n ta n d o p a ssa p o rte d e
v irtu o s e . . . in te rn a c io n a l. Mas, e os v irtu o s e s b ra s ile iro s ? N o
R io , ta lv e z p e lo fu n d a m e n to m ais n a c io n a l das suas tra d iç õ e s
m u sica is, a in d a a m ú sica b ra s ile ira é e xe c u ta d a n o rm a lm e n te ,
mas em São P a u lo ! É se gu ir os p ro g ra m a s d o s c o n c e rto s
p a u lis ta s , é tê -lo s c o le c io n a d o s em casa c o m o eu fa ç o , pra
v e rific a r q u e a m ú sica b ra s ile ira só é e x e c u ta d a e m São P aulo
p o r o b e d iê n c ia a u m a lei im p o s itiv a d o G o v e rn o . Lei ú t il, mas
cega. P a trio te ira , m as sem n e n h u m s e n tid o n a c io n a liz a d o r,
d e ix a n d o p o rta a b e rta a m il e u m a ta p e a çõ e s, e fe c h a n d o a
p o rta às re a liza çõ e s e d u c a c io n a is . O q u e a c o n te ce ? V a i ao
B ra sil u m H e ife tz , q u e ja m a is c o g ito u d o B ra s il, senão a plauso
e d in h e iro , e o e m p re s á rio lh e d iz q u e , p o r le i, te m que
e x e c u ta r nos trê s o u q u a tro re c ita is d o R io , e no ú n ic o de
São P a ulo (e ta n ta s vezes e x c lu s iv o d u m a e n tid a d e p a rtic u la r),
u m a m úsica b ra s ile ira . Q u e v a lo r p o d e rá n u n ca te r um a
im p o s iç ã o s e m e lh a n te ! E o g ra n d e v irtu o s e ta p e ia tu d o . Se vê
o b rig a d o a ta p e a r a té a sua d ig n id a d e m o ra l de v irtu o s e , não
é m e sm o , S io m a ra Ponga? . . . Pede u m a p e c in h a , mas u m a
p e c in h a b e m c u rta q u e ele d e c o re lo g o e se esqueça lo g o ,
b e m fá c il pra q u e não lh e dê tr a b a lh o . E e x e c u ta . E x e c u ta
pra e x e c u ta r u m a lei. D e q u a lq u e r je ito . C h a te a d o , sem o
m e n o r interesse , sem o m e n o r a m o r. N o q u ê um a coisa dessas
p o d e a d ia n ta r ao B ra s il! Mas p o r o u tr o la d o vá u m v irtu o s e ,
vá um a e n tid a d e m u s ic a l, vá u m c o n ju n to d e câm ara p re te n d e r
c o n c e rto s e d u c a c io n a is . P o de r p o d e , mas é u m a d ific u ld a d e .
P or causa da ta l le i.
A liá s , n em p recisa ser de p re o c u p a ç ã o e d u c a tiv a u m
c o n c e rto . N ão há nada de m ais p e jo ra tiv o ao B ra s il, de m ais
h u m ilh a n te m e sm o , d o q u e u m c o n c e rto q u a lq u e r, seja de
so lis ta , de q u a rte to o u de o rq u e s tra , d e n tro d o p ró p r io B rasil.
D e p o is de o b ra s cé le b re s e d e longa m in u ta g e m , q u e to m a m
as duas p rim e ira s p a rte s d o c o n c e rto , ve m u m a te rc e ira p a rte ,
c o m p o s ta de o b ra s m e n o re s mas d e b r ilh o g ra n d e e sucesso
g a ra n tid o . E é n o m e io dessa b rilh a ç ã o da te rc e ira p a rte que
se im is c u i, m e te d iç a e d e sa ve rg o n h a d a , u m a berceu se, u m a
m o d in h a , u m a c ira n d a , u m p o n te io de c o m p o s ito r b ra s ile iro ,
p e c in h a b e m p e q u e n in in h a , o rd in á ria ; m e io m in u t o apenas de
m isé ria t ím id a , só e e x c lu s iv a m e n te s u ja n d o a p o m p a
e s p e rta lh o n a d o p ro g ra m a . P ois é em o b e d iê n c ia a um a lei
b ra s ile ira q u e se co n se g u e s e m e lh a n te d e s p re s tíg io d o B ra s il!
N ão é q u e essas coisas não a d ia n te m nada à m úsica b ra s ile ira :
o p io r é q u e a p re ju d ic a m , a d e s tro ç a m . Se in c u te no p ró p rio
p ú b lic o , c o m a m o s tra s c la m o ro s a s , a p o b re z a , a in fe rio rid a d e ,
a fe iú ra das m úsicas e d o s c o m p o s ito re s d o seu p ró p r io país!
Nasce u m c o m p le x o d e in fe r io r id a d e ju s to , ju s tific a d o ,
p ro v a d o , q u e vai p re ju d ic a r q u a lq u e r isenção fu tu r a de
ju lg a m e n to , m e sm o de o b ra s im p o rta n te s e de g ra n d e v a lo r. E
p o r causa d isso , esse m esm o p ú b lic o , q u a n d o vê n o a n ú n c io
d u m c o n c e rto u m a o b ra g ra n d e b ra s ile ira , q u e to m a to d a u m a
p a rte d o p ro g ra m a , se le m b ra n d o d a q u e la o b r in h a suja, b esta,
in fe c ta , q u e a té lhe d e u v e rg o n h a , n o c o n c e rto passado, fo g e
d o c o n c e rto n o v o , c o n v e n c id o da p o rc a ria q u e vai o u v ir. Mas
o p io r d o p io r d o p io r é q u e o p ró p r io c o m p o s ito r b ra s ile iro
c ó m tu d o isso, nasce já b a tid o , e sc o rra ç a d o p o r essa c o n s c iê n c ia
de in fe rio rid a d e . R e a lm e n te é p re c is o ser u m m u ito f o r t e
m ú s ic o c ria d o r (p o r d e n tro , e nte nd a -se ) pra n o b o m b a rd e io de
ta n ta s e ta m a n h a s fo rç a s c o n trá ria s , o c o m p o s ito r b ra s ile iro
a in d a te r fo rç a , o u m e lh o r: te r a s e m v e rg o n h ic e ilu m in a d a de
c r ia r o "M a ra c a tu de C h ic o -R e i" de F ra n c is c o M ig n o n e , o
“ Q u in t e t o " de H e n riq u e O s v a ld i, o u os " P o n t e io s " de C am arg o
G u a rn ie ri, e te rn a m e n te não e x e c u ta d o s . M as fic o u a c e rta d o q u e ,
p o r e x e m p lo , o “ P o n te io n 9 1 " , d e lic io s o , c o n c o rd o , mas
p e q u e n in in h o , re c é m -n a s c id o , in s ig n ific a tiv o d ia n te da
c o m p le x id a d e e da g randeza da série to d a , f ic o u a c e rta d o q u e ,
na sua tra n s c riç ã o pra o rq u e s tra , p o d e m u ito b e m salvar a ta l
lei q u e o b rig a a b o ta r um a o b ra n a c io n a l n u m c o n c e rto
s in fó n ic o . Mas si esse P o n te io n 9 1, s o z in h o , já é
c o m p le ta m e n te in s ig n if ic a tiv o d ia n te da m a g n ífic a série
c o m p le ta d os " P o n te io s " , ao q u e não se re d u z irá ele
fa ta lm e n te , c o m o d e p a u p e ra m e n to c ria d o r c o lo c a d o ju n t o da
a b e rtu ra d o s M estres C a n to re s? N ã o há p ú b lic o no m u n d o
q u e seja s u fic ie n te m e n te c u lt o , pra re s is tir a s e m e lh a n te p ro va
d e in fe r io r id a d e e d e m is é ria !
E m São P a ulo e n tã o , apesar de e n tid a d e s p ú b lic a s c o m o
o C o n s e rv a tó rio e o D e p a rta m e n to de C u ltu ra , q u e e x e c u ta m
n o rm a lm e n te m ais m úsica n a c io n a l, m e sm o c o m estes
e x e m p lo s e a im p o rtâ n c ia a tu a l d o D e p a rta m e n to , não há
m eios da m úsica b ra s ile ira se n o rm a liz a r nos c o n c e rto s . Ela se
to r n o u u m a in ju n ç ã o de lei, e apenas. E eu sei: só ve n d o a
re sistê n cia q u e c e rto s a g ru p a m e n to s m u s ic a is , s o b re tu d o os de
câ m a ra , fa z e m pra e x e c u ta r q u a rte to s , c o ra is , tr io s de
c o m p o s ito re s b ra s ile iro s . A s s u m e m to d o s eles a titu d e s
id io ta m e n te e sté tica s, na v e rd a d e pra m asca ra r seus interesses
fin a n c e iro s de sucesso p ú b lic o . E g a ra n te m , c o m ve rd a d e
in d is c u tív e l, q u e os q u a rte to s de B e e th o v e n o u de M o z a rt são
m e lh o re s , p u d e ra ! Mas no fu n d o , m esm o esta a titu d e
“ e s té tic a " liv re , d e tu rp a d o ra da ve rd a d e da m ú s ic a , p re ju d ic ia l
sob q u a lq u e r p o n to de vista s o c ia l, m e sm o d e u n iv e rs a lid a d e ,
não passa d u m a m áscara. N ão estão se in c o m o d a n d o lá m u ito
c o m va lo re s e s té tic o s , q u e n em sabem e x a ta m e n te q u a is são.
E stão é se in c o m o d a n d o c o n s ig o m esm os, c o m a sua
ju s tific a tiv a d e sucesso p ú b lic o , p o is q u e B e e th o v e n , M o z a rt, o
p ú b lic o já co n h e c e , já c o m p re e n d e e a p la u d e . E stão se
in c o m o d a n d o é c o m o seu b e m -b o m , c o m a sua p re g u iç a de
e stu d a r e de in te rp re ta r. P o rq u e na ve rd a d e , in te rp re ta r u m
R avel, e m esm o u m Cesar F ra n c k , exige m u ito m ais
c o n h e c im e n to té c n ic o de m úsica, e m u ito m ais e s fo rç o até
fís ic o , d o q u e d o r m ir no le ro -le ro d u m B e e th o v e n z in h o . . .
q u a lq u e r. N ão é q u e u m M o z a rt seja m ais fá c il de in te rp re ta r
q u e u m S ch o e n b e rg . Mas é q u e para u m p ú b lic o , já n e m d ig o
o p ú b lic o b ra s ile iro , mas u m p ú b lic o a té de nação
m u s ic a lm e n te c iv iliz a d a : u m D eb ussy m al in te rp re ta d o se
d e s tró i, ao passo q u e não se d e s tró i u m B e e th o v e n n em um
H a y d n e x e c u ta d o s q u a lq u e rm e n te . P o rq u e o p ú b lic o já escuta
d e -c o r.
Eis a ve rd a d e nua e crua a re s p e ito dessa p a rte
v ita lm e n te d ecisiva d e um a m úsica n a c io n a l, q u e é a e x e o
das o b ra s. O B ra sil a prese nta sim a lg un s gra nd es v irtu o s e s uc
p ia n o . Mas não a p re se n ta a tu a lm e n te n e n h u m g ra n d e v irtu o s e
de v io lin o ; e o m e lh o r de to d o s , Oscar B o rg e rth , quase
desapareceu a fu n d a d o n u m a n o n im a to de e n s in o . N o c a n to é
a m esm a co isa : a lg u n s v irtu o s e s de v a lo r, não há d ú v id a , mas
n e n h u m v a lo r s ig n ific a tiv o , q u e dê ao m en os a esperança de
u m a a b e rtu ra de escola. E é só o q u e o B ra sil te m . Q u a rte to s
de vid a p e rm a n e n te , u m só em São P a ulo . T rio s , no
m e s m íssim o caso. C o ra is no m e s m ís s im o caso, só o C oral
P a u lis ta n o . A g ru p a m e n to s m a d rig a lís tic o s , n éris. O re s to é
fa n ta s m a , ilu sã o pura.- E m esm o c o m o C o ra l P a u lis ta n o , o
in c o n te s tá v e l é q u e o B ra sil está in c a p a c ita d o de q u a lq u e r
e xe cu çã o c o ra l m ais im p o r ta n te , q u e e x ija v irtu o s id a d e e
e le m e n to n u m é ric o , os o ra tó rio s , as p a ixõ e s, as missas, e as
grandes peças c o ra is c o n te m p o râ n e a s . E q u a n d o a lg u m
s o n h a d o r m a lu c o im a g in a re a liz a r a q u i u m a N o n a S in fo n ia , é
u m ta l de ca m p e a r a m a d o re s de c a m b u lh a d a c o m c a n ta rin o s
de igreja , c o ris ta s c h ic h ilia n o s de te a tro , e so lista s
ensim esm ados, c o n ú b io de q u e re s u lta m apenas a b o rto s e
a le ijõ e s h o rre n d o s . Pra q u a re n ta e ta n to s m ilh õ e s de
h a b ita n te s , u m c o ra l (p o rq u e os c o ra is escolares d o V illa tê m
o u tra fu n c io n a lid a d e , não c o n ta m ) ! Pra q u a re n ta m ilh õ e s de
h a b ita n te s , u m c o ra l, u m q u a rte to , u m t r io p e rm a n e n te s , e
to d o s apenas d u m a c id a d e , a lg u n s v irtu o s e s so lista s de p ia n o ,
de c a n to , de v io lin o . E é só.
— Mas as o rq u e s tra s , J a n jã o , as o rq u e s tra s !
— Eu nem q u e ria fa la r, se n h o r p o lí t ic o ; mas o senhor
me p ro v o c a , p o is eu fa lo :
E Ja n jã o p r in c ip io u fa la n d o :
— O p ro b le m a das o rq u e s tra s no B ra s il, assim c o m o va i,
n ão se s o lu c io n a . A n te s de m ais nada, te m o s q u e re c o n h e c e r
h o n e s ta m e n te u m a ve rd ad e a ssu sta d o ra : apesar d o s seus m ais
de q u a re n ta m ilh õ e s d e h a b ita n te s , apesar de p o s s u ir duas
cid a d e s m e tro p o lita n a s q u e já passaram o m ilh ã o , o B ra sil
não possui u m a só g ra n d e o rq u e s tra . Já nem e x ijo , está c la ro ,
q u e ele te n h a u m a o rq u e s tra c o m p a rá v e l c o m a de B o s to n ,
e n fim , u m a o rq u e s tra q u e fosse das m a io re s d o m u n d o . N ão
se tra ta d is s o : o B ra s il, n em n o R io , n e m em São P a u lo ,
m a n té m u m a o rq u e s tra q u e seja " g r a n d e " , n o s e n tid o de
p o s s u ir c a p a c id a d e té c n ic a para e x e c u ta r q u a lq u e r o b ra
s in fó n ic a . Isso não é apenas la s tim á v e l: é u m a v e rg o n h a , um a
fa lh a a b su rd a , q u e c o lo c a a m ú sica b ra s ile ira em s itu a ç ã o
m u ito in fe r io r à d o U ru g u a i. Já n e m m e r e f ir o à A rg e n tin a e
ao M é x ic o , cu ja o rq u e s tra , ve ja m b e m , já f o i a p ro v e ita d a p o r
g ra n d e s casas g ra va d o ra s, a té pra re g is tra r m ú sica e u ro p é ia ! A
s itu a ç ã o o rq u e s tra l d o B ra s il, o u m ais s im p le s m e n te , das suas
d u a s g ra n d e s cid a d e s m e tro p o lita n a s , p o rq u e , o re s to não
c o n ta , é s im p le s m e n te ve rg o n h o sa . E em São P a u lo , e n tã o ,
n ão só a c a p a c id a d e s in fó n ic a da sua o rq u e s tra é m u ito b a ix a ,
c o m o está em p le n a d e c a d ê n cia . Mas d e ix e m o s a p o b re São
P a u lo d e la d o . C o m p a re m o s o R io c o m a nossa m e lh o r
M e n tira .
N ão é e x a ta m e n te que as o rq u e s tra s d o R io sejam
te c n ic a m e n te m u ito m e lh o re s q u e a de M e n tira , se m p re o são
b a s ta n te , mas n o R io e x is te m u ito m a io r a tiv id a d e ; e a lu ta
h e ró ic a da O rq u e s tra S in fó n ic a B ra s ile ira , está d e s p e rta n d o lá
u m interesse, e p ro d u z in d o u m a e m u la ç ã o , q u e p o d e m d ar
ó tim o s re s u lta d o s . U m deles, re a lm e n te e s p lê n d id o , é a
c o n s tru ç ã o d o P a lácio da M ú sica , c o m d uas g ra nd es salas
d e d ica d a s e x c lu s iv a m e n te à e x e c u ç ã o m u s ic a l, a lé m d u m
p e q u e n o te a tro para o d ra m a . N ão há d ú v id a q u e a vida
o rq u e s tra l d o R io d e J a n e iro é a tu a lm e n te m u ito g ra n d e , e
p o d e ser co m p a ra d a ao q u e f o i a a tiv id a d e s in fó n ic a p a u lis ta
a li p o r 1 9 2 9 , q u a n d o São P a u lo c h e g o u a te r trê s o rq u e s tra s .
Será fe c u n d a ? D eus q u e ira , mas a in d a não se p o d e g a ra n tir
coisa n e n h u m a . N o B ra s il não m ed ra e s fo rç o em c o n tin u id a d e ,
a in d a não e x is te u m a v e rd a d e ira c o n s c iê n c ia p e rm a n e n te de
c u ltu r a , e as in ic ia tiv a s e progressos, p o r q u a lq u e r m o tiv o , e
às vezes sem m o tiv o n e n h u m , de re p e n te v ira m água e
m o rre m . O caso d e São P a ulo é t í p ic o . Os p a u lis ta s já tiv e ra m
trê s o rq u e s tra s , e h o je , c a to rz e anos de p ro g re sso a m ais, e a
b e m d iz e r não p ossui n e n h u m a . Q u ais as razõ es d o q u e
sucede em São P a u lo , c o m o sucede a q u i em M e n tira ?
A n te s d e m ais n a d a , a c u lp a cabe aos p o d e re s p ú b lic o s ,
q u e não tê m a m e n o r espécie de c o n v ic ç ã o c u lt u r a l. . .
— E n tã o eu não te n h o c o n v ic ç ã o c u lt u r a l! b e rro u o
p o lí t ic o in d ig n a d o .
J a n jã o fic o u e n c a b u la d ís s im o , a té se esquecera da
presença d e F e lix d e C im a ! Mas o e s tu d a n te sa lvo u o
c o m p o s ito r, jo g a n d o c in ic a m e n te :
— J a n jã o está fa la n d o nos "P o d e re s P ú b lic o s " , seu F e lix .
N ã o se tr a ta d o s e n h o r, q u e é u m p o lí tic o p r o te t o r das artes.
E le se re fe re às fo rç a s p ú b lic a s , os o u v in te s , os c a p ita lis ta s . . .
— A h n , re s m u n g o u o p o lí t ic o , não m u ito c o n v e n c id o .
— Seja o q u e f o r . . . mas eu a fir m o q u e os p o d e re s
p ú b lic o s d e M e n tira n ã o tê m a m e n o r espécie d e c o n v ic ç ã o
c u lt u r a l. E si a lg u m a p a re ce n u m c o n c e rto , ig n o ra n te s e
b u r ro s c o m o são, escuta u m a P r o to fo n ia à bessa d o G u a ra n i,
e sai c o n v e n c id o de q u e a o rq u e s tra é a m e lh o r d o m u n d o ,
n em T o s c a n in i! Está m a is q u e p ro v a d o q u e n e n h u m a g ra nd e
o rq u e s tra se s u ste n ta sem a p ro te ç ã o d o s g o v e rn o s o u dos
c a p ita lis ta s . N ó s te m o s q u e p ô r os c a p ita lis ta s de p a rte ,
p o rq u e eles já se d e d ic a ra m c o m p le ta m e n te à c a rid a d e ,
p ro te g e n d o as fo rç a s n e g a tiva s da v id a , m e n d ig o s , v e lh ic e
d e sa m p a ra d a , d o e n te s in c u rá v e is . Só p o d e m o s c o n ta r c o m o
G o . . . q u e r d iz e r, c o m os p o d e re s p ú b lic o s , c o m o disse o
P a sto r F id o . O ra os p o d e re s p ú b lic o s são to ta lm e n te ignaros,
não sabem o q u e é u m a o rq u e s tra ; e c o n ta n to q u e haja
q u a lq u e r s im u la c ro de o rq u e s tra pra ta p a r a b o ca d o s jo rn a is ,
b a s ta ./E a o rq u e s tra d e M e n tira é apenas u m s im u la c ro .
M ã ^ s i a c u lp a p rin c ip a l é d o s p o d e re s p ú b lic o s , f r u t o
d e ig n o râ n c ia e in c o m p e tê n c ia , p o is q u e s e m p re e x is te u m
s im u la c r o de o rq u e s tra : a q u e m ca b ia c o n v e rte r essa palhaçada
em ftYúsica v e rd a d e ira ? A q u e m ca b ia o rie n ta r a p ro te ç ã o dos
p o d e re s p ú b lic o s ? C ab ia aos m ú sico s. C abia aos p ro fe sso re s d e
o rq u e s tra e aos re g e n te s. C abia ta m b é m aos s in d ic a to s , aos
q u a is não c o m p e te apenas c u id a r da s itu a ç ã o e c o n ó m ic a dos
seus s in d ic a liz a d o s , m as ta m b é m da d ig n id a d e da classe. Mas
essa g e n te n ã o fa z nada d e n ada, p o rq u e as m in ú s c u la s
re c la m a ç õ e s q u e g e m e m , n o s e n tid o de m e lh o ra r te c n ic a m e n te
a o rq u e s tra de M e n tira , eles m esm os d e s tro ç a m lo g o , c o m to d o s
os e s fo rç o s q u e fa z e m ju s ta m e n te p ra q u e a s itu a ç ã o n ã o m e lh o re .
P o r e x e m p lo : Q u e e s fo rç o fa z e m s in d ic a to s , reg en te s e
p rin c ip a lm e n te os e x e c u ta n te s , n o s e n tid o d e a lc a n ç a r q u a lq u e r
espécie d e d is c ip lin a ? . . . O s reg en te s b e rra m , se d esca be la m ,
m as. . . tê m q u e re g e r! E a ca b a m a c e ita n d o tu d o assim m esm o.
— Mas si m u ito s reg e n te s e s tra n g e iro s tê m e lo g ia d o a
o rq u e s tra de M e n tira !
— C o m o ? o n d e ! se n h o r F e lix de C im a ! Isso é o u tr o
tr a b a lh in h o , q u e o p r ó p r io S in d ic a to d e via p r o ib ir às
e n tid a d e s s in d ic a liz a d a s , si se d e cid isse a d e fe n d e r a d ig n id a d e
da classe. Q u e m ja m a is v iu u m re g e n te e s tra n g e iro ir na
A rg e n tin a , no U ru g u a i, n o C h ile , s e n tir saudades da o rq u e s tra
de M e n tira ? Q u e m ja m a is verá u m re g e n te , a té a í d o B ra sil
p r ó x im o , p re te r ir, p o r sua p ró p ria v o n ta d e , a o rq u e s tra de
M e n tira pra q u a lq u e r e xe cu çã o ? Mas sucede q u e q u a n d o u m
re g e n te de fo ra passa p o r a q u i, e, e n g a n a d o , d e p o is de
p e rg u n ta r de lo n g e vá rias coisas, si a o rq u e s tra é c o m p le ta ,
si te m h a rp a , si está em c o n d iç õ e s de e x e c u ta r m o d e rn o s , e
re ce b e r respostas to ta lm e n te m e n tiro s a s , q u e s im , q u e sim ,
q u e a q u i te m tu d o e d o m e lh o r: sucede q u e esse re g e n te , já
assinado o c o n tr a to , já e m a ra n h a d o na re d e , chega a q u i, e dá
de e n c o n tro à b a rre ira d e u m a to t a l in d is c ip lin a , dá de
e n c o n tro à a n im o s id a d e , à in d ife re n ç a , à ig n o râ n c ia , à
in c o m p e tê n c ia té c n ic a a té d o s naipes m ais fá c e is , c o m o os
v io lin o s . . . O q u e fa z e r? V a i u m jo r n a lis ta z in h o e n tre v is ta r o
" ilu s t r e re g e n te ", e p e rg u n ta o q u e ele pensa da nossa
o rq u e s tra ; o q u ê q u e ele vai re s p o n d e r! V e ja m b e m a
s itu a ç ã o ! Si já está e n c o n tra n d o as m a io re s d ific u ld a d e s , si
te m u m c o n tr a to pela fre n te , si te m to d o o p a tr io tis m o
n a c io n a l pela fre n te , si já te m to d a a d is p lic ê n c ia d o s regentes
e s tra n g e iro s q u e passaram p o r a q u i a nte s d e le , e e lo g ia ra m :
e n tã o esse d e s in fe liz a in d a vai p ro c u ra r m ais sarna pra se
co ça r? D eus te liv re ! acha tu d o m u ito b o m , o rq u e s tra
d is c ip lin a d ís s im a , to d o s os m ú sico s ch eg am na h o ra p ro s
ensaios, n in g u é m sai a nte s de a cab ar e nsa io , n in g u é m fa lh a , são
uns h e ró is , uns sa n to s, uns té c n ic o s e s tu p e n d o s , u ns h e ró is
s a c rific a d o s e o ra b o la s ! Na ve rd a d e esses re g e n te s não q u e re m
se in c o m o d a r, mas vá e s cu ta r o q u e eles fa la m c o m os
ín tim o s ? D iz e m o d ia b o . O q u e q u e r d iz e r q u e d iz e m a
ve rd a d e . E si a lg u é m q u is e r q u e , n o d ia da p a rtid a , ele d e ix e
as im pressões no á lb u m de v isita s de a lg u m a c a m a rilh a c o m
b a s ta n te a ud ácia pra p e d ir e lo g io : p o is n ã o ! e scre vo e assino
q u e a o rq u e s tra d e M e n tira é ó tim a , t a n t o m ais q u e e stou
ju ra n d o pela m ãe q u e n u n ca v o lta re i neste d o m í n io .
C o m p e tia aos p ró p rio s m ú s ic o s c o m p re e n d e r e m o d ific a r
a s itu a ç ã o , te c n ic a m e n te . Mas é im p o s s ív e l. A p ró p ria
s in d ic a liz a ç ã o , q u e p o d ia ser u m g ra n d e b e m , se to r n o u u m
e m p e c ilh o . A m úsica v iro u u m e x lc u s iv o in te re sse fin a n c e ir o ,
m ais nada. São m is e ra v e lm e n te p ro te g id o s p e lo s p o d e re s
p ú b lic o s , re c o n h e ç o , mas isso p o r acaso im p e d e o e x e rc íc io da
d is c ip lin a ? E haverá u m lo u c o no m u n d o q u e te n h a o d esco co
de d iz e r q u e a o rq u e s tra d e M e n tira é d is c ip lin a d a ? S io m a ra
Ponga, vo cê já soube nunca d u m a o rq u e s tra c u jo v io lin o -e s p a la
d e rru b a sse o a rc o da m ã o ; cu ja p rim e ira v io la se gabasse de
te r to c a d o o u tra m úsica d u ra n te um a e xe cu çã o p ú b lic a ; q u e
in fo rm a s s e p ro e s tra n g e iro te r um a harpa e não te r; c u jo
re g e n te , na h ora m arcada d o e nsa io , achasse apenas uns
q u a tro o u c in c o p ro fesso res no te a tro ? Parece m e n tira . . . Pois
as duas p rim e ira s coisas se d e ra m em M e n tira , e as duas
ú ltim a s se d ã o !
De re s to , não se fa z o rq u e s tra c o m p ro te c io n is m o . Si
u m b o m b e iro é r u im b o m b e iro , p od e ser m u ito s im p á tic o e tc.
e ta l, mas não é c o n s e rv a n d o ele na o rq u e s tra q u e se conserva
a d ig n id a d e d o b o m b o , d os o u tro s m ú sico s, da m úsica e d u m
s in d ic a to . Si o to c a d o r de caracaxá está d o e n te , não p o d e
m ais to c a r b e m , é p re ciso s u b s titu ir o to c a d o r de ca ra ca xá , e
não c o n se rvá -lo na o rq u e s tra p o r. . . p o r c a rid a d e !
P ro te ja m o -lo , está c la ro , mas c o n se rvá -lo na o rq u e s tra é u m
c rim e d u p lo : a u m e n ta a tu b e rc u lo s e d o m ú s ic o e a u m e n ta a
tu b e rc u lo s e da o rq u e s tra . É p re ciso q u e nos c o n v e n ç a m o s de
q u e não se fa z a rte c o m c a rid a d e , nem se s a c rific a um a a rte
c o le tiv a p o r causa de trê s o u q u a tro in d iv íd u o s . Si e x is te em
M e n tira u m ú n ic o h a rp is ta q u e está na m isé ria e to c a m a l, e a
o rq u e s tra precisa de h a rp is ta , é p re ciso m a n d a r b usca r fo ra
o u t r o in s tru m e n tis ta . A o rq u e s tra de M e n tira é a tu a lm e n te u m
a le ijã o da c id a d e . O nosso m a io r a le ijã o m u s ic a l, dada a
im p o rtâ n c ia , té c n ic a e c o le tiv a d o s in fo n is m o . N ós estam os
c o m e te n d o u m c rim e , tra ta n d o c o m a d is p lic ê n c ia q u e
tra ta m o s , o m a io r e m ais p re m e n te p ro b le m a da nossa
e xe cu çã o m u s ic a l. E estão c o n v o c a d o s nesse c rim e ta n t o os
p od eres p ú b lic o s , ta n to a c r ític a q u e não esclarece, ta n to as
sociedades de c u ltu ra , c o m o os p ró p rio s m ú sico s da o rq u e s tra .
Estes, si não são c u lp a d o s e x a ta m e n te da in d ig ê n c ia o rg â n ica
da o rq u e s tra de M e n tira , são os m a io re s c u lp a d o s da sua
in d ig ê n c ia té c n ic a . V o c ê m e d e s cu lp e , S arah L ig h t, o se nh or
m e d e s c u lp e si p u d e r, se n h o r p o lít ic o F e lix de C im a , mas a
re s p e ito d o e stado s in fó n ic o de M e n tira é isso o q u e eu
penso. E c o m d o ç u ra : Si estivesse n o u tro lu g a r, eu d iria
c e rta m e n te coisas a in d a m ais ásperas. . .
J a n jã o estava e x a u s to . A fin a l das c o n ta s , p ra q u ê q u e ele
estava n a q u e le b a n q u e te ? Era pra c a p ta r a s im p a tia d o
p o lít ic o , a p ro te ç ã o de to d o s , mas ele b e m p e rce b ia q u e cada
vez se a fu n d a v a m ais. Estava e x a u s to d o e s fo rç o q u e fiz e ra '
pra ve nce r seus interesses ju s to s , d iz e n d o a ve rd a d e , m esm o na
ce rte za de recusar pra se m p re a p ro te ç ã o d os d o n o s da vida
q u e c o m ia m a li. Mas de re p e n te os o lh o s d e le b rilh a ra m
m u ito , Ja n jã o s o rriu . É q u e b e m d o fu n d o d a q u e le m o n tã o de
ossos fa tig a d o s , eis q u e ve io nasce nd o, cresceu n u m á tim o ,
e s tro n d o u a tu r d in d o os o u v id o s d o a rtis ta lh e re lu m e a n d o nos
o lh o s fa z e n d o ele s o rrir, u m o rg u lh o p ro d ig io s o q u e c u ro u
tu d o . J a n jã o f ic o u p e rfe ita m e n te b e m d is p o s to . Mas a v irtu o s e
S io m a ra Ponga s o fria . C o m o v irtu o s e q u e era, ela se m p re
tiv e ra c iú m e s de to d o s , de to d o s os v irtu o s e s , de to d o s os
ric a ç o s , de to d a s as m u lh e re s b o n ita s . Por isso m esm o q u e
c é le b re e de g ra n d e v a lo r, ela tin h a , em g ra n d e , a fa ta lid a d e
d o s v irtu o s e s : era to d a c iú m e e d e s p e ito . Mas pela p rim e ira
vez a go ra , d ia n te d a q u e le a rtis ta v e rd a d e iro , q u e tin h a a
m a lu q u ic e de se d e s tro ç a r em fa v o r da a rte , ela s o fre u o
s e n tim e n to ig n o ra d o da in v e ja , s o fre u . O u g o z o u . . . U m ru b o r
q u e n te lhe d e s m a n c h o u as faces b e m p in ta d a s . E a q u e la
m u lh e r tã o fr ia , fr ia , s e n tiu u m a rd o r p o r d e n tro . N a q u e le
in s ta n te ela era capaz de g o sta r m ais da vid a q u e d e si
m esm a, se a p a ix o n a r, se e n tre g a r. Mas isso, le m b ro u lo g o ,
havia de lh e d e s m a n c h a r os ca be lo s b em p e n te a d o s. D eu u m
je it in h o n o v e s tid o e e s frio u rá p id o . F ic o u m u d a , m is te rio s a ,
im p a ssíve l c o m o a D e m o c ra c ia . O p o lític o e a m ilio n á ria
e stava m irrita d ís s im o s . Mas o e s tu d a n te a d o ra va .
E x p o s ta a s itu a ç ã o té c n ic a d e fe itu o s ís s im a da m úsica
b ra s ile ira , é p o ssíve l v o lta r agora ao e s tu d o da c o m p o s iç ã o
m u s ic a l. N ão m ais im p o r ta n te q u e o re s to , p o ré m m ais
p e rm a n e n te c o m o re a liz a ç ã o de u m p o v o . N o te m o s a ntes de
m ais nada q u e o a p a re c im e n to de c o m p o s ito re s b ra s ile iro s não
é n em c o n s ta n te n em n u tr id o . A m úsica se a lim e n ta de levas
de c o m p o s ito re s , c o m fa lh a s assustadoras de gerações in te ira s .
Parece o ca fe z a l, q u e d e p o is d u m a safra e n o rm e , se esgolfa e
leva d o is , trê s a no s quase sem p ro d u z ir. Mas si is to é ju s to e
e x p lic á v e l no pé d e ca fé não seria ju s tific á v e l na c ria ç ã o
h u m a n a , si não fo sse m as d e fic iê n c ia s té c n ic a s da m úsica d o
B ra sil e as d e fic iê n c ia s p rá tic a s gerais d o país. V o cê s re p a re m :
o B ra s il a b e m d iz e r não te m " n o v o s " a tu a lm e n te ! Há u m a
geração im p o r ta n te , q u e a in d a v iv e e p ro d u z . P e rte n c e m a essa
safra de m ú sico s, V illa L o b o s , L o u re n ç o F e rn a n d e z , F ra n c is c o
M ig n o n e , A r t h u r P e re ira , A ssis R e p u b lic a n o , J a im e O v a lle ,
C a m a rg o G u a rn ie ri, pra c ita r os m ais c o n h e c id o s . Mas quase
to d o s estes a rtis ta s tê m m ais de q u a re n ta anos o u estão m u ito
p ró x im o s d isso . E d e p o is ? Q u a is os novos? Q u a l a safra
ro d a n d o h o je p e lo s t r in t a anos, q u e possa se c o m p a ra r c o m o
v a lo r a esse g ru p o ? E a in d a p io r q u a is os n o v ís s im o s ,
v o ltija n d o p e lo s v in te anos, q u e p ro m e ta m g ra n d e esperança?
N ão há. E x is te m o u tr o s m ú sico s, eu sei, mas não é possíve l
p e lo q u e já p ro d u z ira m o u p e lo q u e p ro m e te m , g a ra n tir
q u a lq u e r f u t u r o q u e se e q u ip a re ao p re se n te de u m M ig n o n e
o u de u m V illa L o b o s . P ode ser q u e dê u m e sta lo de V ie ira
e m q u a lq u e r desses n o v o s o u n o v ís s im o s , mas eu não posso
d e p o s ita r u m a g a ra n tia na esperança d os estalos. E o q u e é
m ais d o lo r o s o : to d o s esses c o m p o s ito re s c ita d o s v iv e m no R io
e em São P a u lo , e quase to d o s nasceram na área de irra d ia ç ã o
dessas cid a d e s. E o re s to desse país im e n s o ! Será p o ssíve l q u e
só p a u lis ta s e c a rio c a s te n h a m o d o m da m úsica? U m
N e p o m u c e n o no N o rte , u m V ia n a no S u l, o u t r o V ia n a em
M in a s, p ro v a m o c o n tr á r io , graças a D eus. A s causas são
o u tra s , e v id e n te m e n te .
A q u i e n tra m c e rta m e n te as razões p rá tic a s . C o m o , e n tre
m u ita s , a a usência d e c o m u n ic a ç õ e s e via g e m rá p id a s no
B ra s il. S i R io c o m São P a u lo são x ifó p a g a s c o m h o ra e m eia
de a viã o e u m a n o ite de n o tu r n o h o rre n d o , to d a s as o u tra s
C a p ita is , a b e m d iz e r são n ú c le o s isola do s. E n ú c le o s de um a
in fe rio d a d e v io le n ta , c o m o m ú sica . D e to rm a q u e , pela sua
p ró p ria d e fic iê n c ia , e is o la m e n to , esses n ú c le o s não " in d u z e m "
à c o m p o s iç ã o e ru d ita . Si é péssim a a s itu a ç ã o té c n ic a da
m úsica p a u lis ta , si a in d a é m u ito r u im e m b o ra m e n o s, a
s itu a ç ã o té c n ic a da m ú sica d o R io , se m p re as duas cidades
m e tro p o lita n a s a in d a d ã o a lg u m a razão-de-ser à c ria ç ã o m usical
c u lta . M as nas o u tra s C a p ita is , a s itu a ç ã o té c n ic a é tã o
p re c á ria q u e m ata o in s tin to c ria d o r. A s o rq u e s trin h a s m ais
q u e im p e rfe ita s , o c o m p a d ris m o d os rá d io s lo ca is id io ta s
m a m ífe ro s de d is c o s , a im p o s s ib ilid a d e de q u a rte to s , a
in e x is tê n c ia de c o ra is , o le ro -le ro m o d e s to z in h o d o s v irtu o s e s
d e a rra b a ld e , o "p a s s a d is m o " d o p ú b lic o (basta se gu ir os
p ro g ra m a s dos c o n c e rto s das o u tra s C a p ita is ) q u e n ão te m o
c h o q u e p re se n te , d e c o rp o p re se n te , das te n d ê n c ia s vivas, tu d o
m a ta a c ria ç ã o . E a p ró p ria d if ic u ld a d e de se in s tr u ir para o
m ú s ic o , q u e não e scu ta , e o q u e é p io r, está in c a p a c ita d o de
e s tu d a r e a n a lisa r u m a p a r titu r a d e S c h o e n b e rg , de L o u re n ç o
F e rn a n d e z o u d e C o p la n d , m u ita s das q u a is não im pressas, as
o u tra s d ifíc e is de o b te r. E assim , o c o m p o s ito r da C a p ita l d o
E sta d o de S o m b ra G rossa, c o m seus tre z e n to s e c in q u e n ta m il
h a b ita n te s , q u e já p o r si sabe m en os p o rq u e não p o d e se
in s tr u ir d ir e ito e q u e não consegue n e n h u m a esperança de ser
e x e c u ta d o , esse m ú s ic o p o s s ív e l, n ão se nte o " a n c h 'io sono
p it t o r e " , e nem pensa em c o m p o r. A não ser u m a A v e -M a ria
pra ser c a n ta d a pela s e n h o rin h a d o n a C a rlo tin h a Pêssegos, na
igreja de S a nta C a ta rin a , q u e é a m ais p ró x im a .
— Mas J a n jã o , esse m e sm o e sta d o de coisas se re fle te
nos d o is c e n tro s m e tr o p o lita n o s , São P a u lo e R io , in te rv e io a
c a n to ra S io m a ra P onga. Basta vo cê o b s e rv a r a c ria ç ã o m usical
de d o is c o m p o s ito re s tã o b e m d o ta d o s c o m o J a im e O va lle no
R io , c A r t h u r P ereira em São P a u lo . V o c ê re p a re , J a n jã o : há
u m a ta l o u q u a l in c o n g ru ê n c ia e n tre a te n u id a d e e c u rte z a de
p e n s a m e n to m u s ic a l de u m J a im e O v a lle , e o re v e s tim e n to
h a rm ó n ic o ind a p o r c im a re s o lu ta m e n te a c o rd a i, q u e ele lhe
dá. C u rte z a de p e n s a m e n to m u s ic a l não é d e fe ito , é c a rá te r:
basta le m b ra r S c h u m a n n , M a lip ie ro e o p r ó p r io H a y d n . M e
le m b ro d u m desses e n sin a d o re s d e fa z e r versos d iz e r q u e não
se p o d e c o m p o r em a le x a n d rin o s u m a poesia s o b re as
d e lica d a s v io le ta s . Está c la ro q u e não é b e m isso, m as, em
p r in c ip io esse tra ta d is ta e s c u to u c a n ta r o g a lo . É p o ssíve l
fa z e r u m a le x a n d rin o , a la d o e tê n u e c o m o u m a v io le ta , o u é
p o ssíve l t ir a r to d o u m d ra m a p ro fu n d o d o s o lh o s d u m a
v io le ta , assim c o m o n ão é p o r te r seis o u sete sons q u e u m
a c o rd e é pesado. Basta le m b ra r q u e a ju n ta n d o c in c o te rça s,
D e b u ssy fa z a co rd e s d u m a a e rid a d e m a ra v ilh o s a . O ra n u m
C a ta la n i c o m o em o u tr o s a in d a m ais m o n ó to n o s h a rm o n is ta s ,
ta n ta s vezes as duas te rça s d u m a c o rd e de tó n ic a pesam várias
to n e la d a s . . . T u d o d e p e n d e da se qu ên cia h a rm ó n ic a e da
d is p o s iç ã o so n o ra d o a c o rd e . Is to é q u e m e p arece fa lta a
J a im e O v a lle , no seu p e q u e n o c o n h e c im e n to té c n ic o de
h a rm o n ia e p rá tic a d o p ia n o , e q u e a sua in tu iç ã o m u s ic a l
não co nse gu e re m e d ia r. C o m o re m e d e ia ta n ta s vezes em V illa
L o b o s . C erta s canções m e lo d ic a m e n te d e lic io s a s de J a im e
O v a lle , se to rn a m quase in s u p o rtá v e is de c a n ta r p o rq u e
e n q u ilo s a d a s n u m a c o m p a n h a m e n to o p a c o , c o m p a c to , g o rd o e
desa m á vel, ta n to h a rm ó n ic a c o m o p ia n is tic a m e n te , em t o ta l
d e s a c o rd o c o m as suas lin h a s m e ló d ic a s , no g eral c u rta s e
p o u c o o u nada d ra m á tic a s . E n o e n ta n to d e lic io s a s ! Já o
caso de A r t h u r P e re ira n ã o é esse m e sm o de d e fic iê n c ia de
té c n ic a h a rm ó n ic a o u p ia n ís tic a , mas t í p ic o d o a u to r q u e
não é e x e c u ta d o . A r t h u r P e reira é u m te m p e ra m e n to
p o é tic o , in fin ita m e n te d e lic a d o , aéreo , d iá fa n o , d u m a
lu m in o s id a d e m ansa d e sol atra vés da n e b lin a . M as o a m b ie n te
lo ca l de São P a u lo lh e c o rta as asas! N ã o é té c n ic a que
fa lta , se p e rce b e . A r t h u r P e reira possui a té c n ic a m ais q u e
b a s ta n te para re a liz a r o c a rá te r da sua p e rs o n a lid a d e , que
não e xig e c o ra is n e m grandes o rq u e s tra s . Mas ele pede u m
a m b ie n te re fin a d o e s u fic ie n te m e n te e ru d ito , p ra d is t in g u ir
q u e u m a d ia fa n e id a d e p o d e va le r ta n to c o m o o e s tro n d o
d u m W agner. Mas esse p ú b lic o de e lite n ã o e x is te em
São P a u lo . E s to u c o n v e n c id a q u e n o u tro s a m b ie n te s
e u ro p e u s m ais v a ria d o s , estes d o is c o m p o s ito re s se
re a liz a ria m c o m p le ta m e n te , em o b ra s a d m irá v e is mas sem
b a ru lh o . N in g u é m te m o b rig a ç õ e s de p o s s u ir o g ê n io de u m
J o ã o S e b a stiã o B ach.
— N isso m esm o q u e eu q u e ria chegar, S io m a ra P onga. A
d e fic iê n c ia té c n ic a das cid a d e s d o B ra sil, a d is tâ n c ia não c o rrig id a
peia fa c ilid a d e e b a ra te a m e n to d o s tra n s p o rte s , não é o g ê n io ,
o g ê n io fa ta liz a d o , q u e isso im p e d e de nascer e p ro d u z ir. O g ê n io
acaba se m p re a b rin d o o seu c a m in h o . O q u e está não só
p re ju d ic a d o , mas v e rd a d e ira m e n te im p e d id o no B ra s il, é a p ro d u ç ã o
d o c o m p o s ito r " n o r m a l" , d o apenas " e x c e le n te c o m p o s ito r " , dos
n u m e ro s o s " b o n s " c o m p o s ito re s n o rm a is , q u e são os q u e n u tre m e
fa z e m o c o rp o de u m a m úsica n a c io n a l. N ão é D e b u ssy q u e fa z a
ve rd a d e g ra n d io sa da m ú sica fran cesa . E le apenas a c o ro a
lu m in a ria m e n te , c o m o B e rlio z , c o m o R am ea u , c o m o C o u p e rin
le G ra n d . A m úsica fra n ce sa são os m il e u m c o m p o s ito re s
franceses de v a lo r, té c n ic o s c e rto s , p e rs o n a lid a d e s firm e s , mas
apenas c o m p o s ito re s n o rm a lm e n te b on s. Sem estes a F ra n ç a
m u sica l seria apenas u m a E spanha.
— O u o B ra s il, in te rro m p e u m ais u m a vez o P astor
F id o , já não se a g u e n ta n d o de ta n ta v o n ta d e de fa la r q u a lq u e r
coisa. E m c ria ç ã o m u s ic a l, c o m o a té em p in tu ra , apesar dos
m esm os n ú cle o s vig o ro s o s de p lá stica das duas cida de s
m e tro p o lita n a s , o B ra sil a in da está n a q ue la m esm a fase em
q u e estava a lite ra tu ra d o te m p o da In d e p e n d ê n c ia . Havia
e n tã o b a sta n te s p o e ta s " u r b a n o s " , reles, p re e n c h e n d o as
necessidades u rb a n a s das cid a d e s ta m b é m reles em q u e v iv ia m
— necessidades q u e n em são e ru d ita s , mas apenas s e m i-e ru d ita s
e jo rn a lís tic a s , poesias para re c ita r no N a ta l, em a n iv e rs á rio s ,
o u p u b lic a r nas d a ta s c o m e m o ra tiv a s . Mas ju n t o desse cisco
u t ilit á r io , havia apenas u m o u o u tr o p o e ta v e rd a d e iro
le g itim a m e n te e ru d ito , s e rv in d o ao p a ís in te ir o , fo rm a n d o a
cria ç ã o p o é tic a expressiva d u m a p á tria . A s duas gerações
ro m â n tic a s a in d a são b e m e x e m p lific a tiv a s d isso . Só m esm o
em nosso sé culo a p ro d u ç ã o lite rá ria a s s u m iu um a c ira ç ã o
" n o r m a l" , no s e n tid o em q u e você d iz , c o m a lg u n s p ico s
se m p re ra ro s, mas c o m u m a larga e n u trid a p ro d u ç ã o e ru d ita
" n o r m a l" , fa z e n d o u m v e rd a d e iro c o rp o de lite r a tu r a . Pode
ser m a g rin h o , mas se m p re é u m c o rp o . A lite r a tu r a b ra s ile ira
já to m o u c o rp o . A m úsica b ra s ile ira a in d a n ão . A d e fic iê n c ia
a m b ie n te das c a p ita is p ro v in c ia n a s , a sua p o b re z a d ia n te das
e xig ê n cia s ricaças da m ú sica , só p e rm ite a m a m e n ta r m ú sico s
u rb a n o s , c o m p o s ito re s de a ve-m a ria s pra igreja m ais p ró x im a .
E m to d o caso os g ra nd es c o m p o s ito re s vão m u ito b e m . . .
— Isso é vo cê q u e d iz . . . S o b o p o n to de vista da
c ria ç ã o té c n ic o -e s té tic a , a in d a a m úsica b ra s ile ira vai m u ito
m a l, p o rq u e c a iu n o im passe d o c a ra c te rís tic o . A f in a l das
c o n ta s , S io m a ra Ponga se m p re te m a lg u m a razão q u a n d o se
re v o lta c o n tra o e xcessivo " n e g r is m o " da m úsica b ra s ile ira .
— Mas Janjão, se você mesmo ainda há pouco,
estabelecia que a música brasileira estava num p rim itiv is m o
n atu ral, e tin h a de se basear no fo lc lo re pra ser fu n c io n al!
— Eu falei isso, Sarah L ig h t, e re p ito . A música
brasileira ainda não pode perder de vista o fo lc lo re . Se p erder,
se estrangeirizará co m p le ta m e n te . C om o sucede com os
sistem atizadores do a to n alis m o integral, e os que baseiam a
sua criação na cham ada "in v en çã o liv re ". E m p rin c íp io , se
analisarm os u m bocado mais o p roblem a psicológico da
criação, seja musical, seja de q ualq uer o u tra arte, ou seja
mesm o sim plesm ente a criação do pensam ento filo s ó fic o ,
veremos que isso de "criação liv re " é uma q u im e ra . A té esse
slogan d eslu m b ra n te de que "a cu ltu ra é u niversal" não passa
de to lic e de parlapatões ou interessados.
— Eu não estou en tend en do nada. . .
— Tenha paciência, senhor F e lix de C im a , o senhor
en tend e até dem ais de p o lític a , pra poder en ten d er de
q u a lq u er o u tra coisa, seja até de ra cio n a m en to ou de carestia.
— Pastor F id o !. . .
— Desculpe, Sarah L ig h t. Está com a palavra o
c o m p o sitor Janjão.
— Eu a firm o que a "criaçã o liv re " é u m a q u im e ra ,
porqu e ninguém não é fe ito de nada, nem de si mesm o
apenas; e a criação não é nem um a invenção d o nada, mas
um tecid o de elem entos m em o rizad os, que o criad or agencia
de m aneira d ife re n te , e q uando m u ito leva mais ad iante.
Estou insistindo num a lapaliçada. A criação, com toda a sua
lib erdade de invenção que eu não nego, não passa de um a
re fo rm u la çã o de pedaços de m e m ó ria. Basta lem brar que os
atonalistas, co m o todos nós, criam com os d oze sons da
escala cro m á tic a , que não passam de sons já mais que
escolhidos e repetidos e que eles ap re n d e ram e d ecoraram . E
dessa mesma fo rm a , são todos os o utros elem entos mais
co m plexos, lineares ou de sim ultan eidad e sonora, acordes,
p olifo n ia s, o que quer que seja. E lem en tos já existentes que a
m em ória fo rn ece, e a criação re fo rm u la . De m odo q u e o
c o m p o sito r brasileiro que se repim pa na vaidadezinha da sua
pessoa, e im agina estar criando " liv re m e n te " , só p orque
desistiu de criar à feição dos elem entos musicais que o Brasil
lhe fo rn ece, criará fa ta lm e n te agenciando os elem entos
musicais que já conhece, q u e estudou, que digeriu ou não,
mas que se digeridos lhe saltam sem ele querer do eu
p ro fu n d o , e se não digeridos, lhe saltam da m em ó ria
consciente. E se esses elem entos não nascem do Brasil, donde
que nascem? Nascem da A le m a n h a . O u nascem da França. O u
nascem d u m a França m isturada com A le m a n h a , fo rm a n d o
um a Alsácia bagunçada e indigestada. O ra os com positores
brasileiros. . .

E foi deste je ito q ue o co m p o sito r Janjão co n cluiu a


sua análise da música brasileira:
— Eu garanto que ainda no m o m e n to presente a música
brasileira não está em condições de p e rm itir aos seus
co m positores a pretensão de criar “ liv re m e n te ". O co m po sitor
b rasileiro q ue perder o fo lc lo re nacional de vista e de estudo,
será o que vocês quiserem , mas fa ta lm e n te se desnacionalizará
e d eixará d e fu n c io n a r. Desse ponto-d e-vista, todos os artistas
que im p o rta m no Brasil de hoje, são de fa to os q u e ainda
tê m co m o p rin c íp io p rag m ático de sua criação, faze r música
de pesquisa brasileira. A invenção livre só virá mais tarde,
q u a n d o a criação m usical erud ita estiver tão rica, co m p lex a e
e x p líc ita em suas tendências p articu lares psicológicas, que o
co m p o sito r possa desde a infância viver c o tid ia n a m e n te d en tro
d ela, se im pregnar d ela, e a sentir co m o um in s tin to . Nisso os
p rincipais com p o sitores brasileiros estão certos, mas o nd e eles
não estão p ro p ria m e n te errados mas faltosos e
d e fe itu o s a m e n te em po brecidos, é na sua ignorância do fo lc lo re
b rasileiro. O quê que eles co n hecem realm ente? C onhecem
m u ito o samba carioca, não há d úvid a; conhecem m u ito a
cantiga in fa n til, que, fra n q u e za , já deviam d eixa r de lado,
p orque V illa Lobos a saqueou por c o m p le to , e é c e rto que
ad m ira v e lm e n te . C on hecem ainda u m bocado o fo lc lo re
musical n ordestino , q ue ju s ta m e n te com o o samba carioca é
m u ito perigoso, p orq u e é c a ra cterís tico por dem ais e com
um a base m u ito verm elha de negrism o. E é quase que só. E
conhecem u m bocado a música urb an a, p rin c ip a lm e n te a
m o d in h a e a valsa.
O ra o fo lc lo re brasileiro não é isso. É cem vezes mais
c o m p le x o e variado que isso. Mas in fe liz m e n te os com positores
brasileiros o ignoram ; e q u a n d o m u ito um ou o u tro se resolve a
e x p lo ra r os elem entos musicais da sua região. C om o fez m u ito
bem Cam argo G u a rn ie ri com a to ad a e a m oda caipira de São
Paulo. É certo que nas peças pra canto e pra piano, a com posição
brasileira já apresenta algum a variedade, por causa da colaboração
da m o d in h a , da valsa e da to a d a , mas já está se to rn a n d o
insup o rtável, fatig a n tís s im o , v ic ia d o , recend en te de deco ra tivo , o
ar de dança, de b atu q u e m esm o, da música brasileira mais
c o m p le x a , corais, co n ju n tos de câm ara e sobretu d o a ob ra
o rq u e stra l, poemas sinfónicos, concertos, suites.
Mas vocês vejam co m o aqui in te rfe re o u tra vez a
situação prática e técnica da música brasileira. Si o fo lc lo re
não é só negro, nem apenas samba carioca e b a tu q u e ru ra l, os
com positores brasileiros precisavam estudá-lo mais p ro fu n d a e
p ro fusam ente. Mas onde? U m co m p o sito r q ue m ora no R io
não acha je ito de ir saber o que é a música p op u lar da região
m issioneira ou de M ato Grosso, da mesma fo rm a que um
com p ositor paulista não te m com o ir ao A m azonas ou no
sertão da Bahia. A lerdeza e o custo dos transportes lhes
p ro íb e m a viagem; e a situação m usical, fo ra de São Paulo e
R io, não lhes p e rm ite a esperança de custear viagem e estudos
com o q ue ganharem por a í. Mas en tão o n d e que está a
musicologia brasileira, as entidades culturais apro p riad as, que
recolham o fo lc lo re em discos, estudem e p u b liq u e m esses
discos? . Não há verba, não há verba, é a resposta dos poderes
públicos e dos capitalistas. E não há editores pra obras que
ficam caríssimas, por causa da impressão musical. É possível
que algum a e n tid a d e c u ltu ra l possua m u ita coisa. Mas não
estuda nem p ublica! D e fo rm a que to da essa riq ueza
perm anece tão m o rta e in a tin g ív e l, em São Paulo ou no R io ,
com o si estivesse no fu n d o da mais inacessível ilha do
Bananal!
Porém eu não perd ôo não os com positores brasileiros:
eles são m u ito culpados. Culpadíssim os. Q ual deles até hoje se
preocupou de estudar os elem entos m elódicos e rítm ic o s do
choro, que está a mão? Essa é aliás a m a io r falha da
com posição musical brasileira, e que a faz tão en jo a tiv a m e n te
cair num negrism o deco rativista: é que ainda não se inventou
o "a le g ro " brasileiro. Mas m e re firo ao "a le g ro " m esm o, o
alegro m eló dico de caráter an tico re o g rá fic o , in c a p a z .d e cair na
dança. Só Cam argo G u arn ieri já fez algum esforço nesse sentido.
Há V illa Lobos, é verdade. . . O V illa é um m u n d o ; e
nerecia ser mais estudado, ser im ita d o , ser co piado até. Mas
iqui entra um novo ele m en to escarninho que está
itrap alhan do rid ic u la m e n te a n orm alização de tendências e de
>sicologia da música brasileira. Me re firo à in te rfe rê n c ia do
ndividualism o vaidoso, do c o m p le x o de su perioridade, e à
xacerbação d o e n tia da noção do plágio.
— D eixa eu falar? . . . É ainda um a com paração com a
teratu ra , que eu conheço mais que você. Essa noção
ão-m e-toques do plágio, já vai sendo abandonada na lite ra tu ra
rasileira. Só nela, e não em nenhum a o u tra arte, p o r quê?
justam ente p orqu e a lite ra tu ra já to m o u co rp o , já te m um a
rodução m u ito grande d e com positores "n o rm a is " , co m o
jnjão d iz, isto é, excelentes com positores que não são águias
nem picos, mas apenas bons. De m aneira que esse enxam e de
artistas norm ais, pela u nião que fa z a fo rç a , já não se am olam
de seguir a lição dos seus m aiores. As influências de u m Zé Lins
do Rêgo, de u m A ugusto Fred erico S ch m id t no presente; da
mesma fo rm a q ue a tra d içã o m achadiana, p rin c ip iam se
a firm a n d o no sentido nacional do que se cham a um a "e sco la".
E assim o corp o se c o m p le ta : te m tro n c o co m u m , que é o
Brasil, e te m cabeça, algumas cabeças, e m u itos m em bros.
— Pois é; mas com o a música ainda não to m o u corpo,
os raros com positores brasileiros que existem , sofrem a
m iragem de serem todos só cabeças! A esplêndida soma de
invenções pessoais e nacionais, das soluções, dos
acom odam en to s e ilações rítm ic a s , m elódicas, harm ónicas,
instru m en tais de V illa Lobos, estouram mas m o rrem fe ito
foguetes, desaproveitadas. N in gu ém quer re to m a r esses
fogachos, pra abertura de cam inhos na n o ite nevoenta. Cada
qual (pois são tão poucos. . .) açulado pelo engano de ser uma
avis rara no país, só quer ser si m esm o, ilu d id o por um
en gran decim ento ind ivid u alista , que não é o valor pessoal que
dá mas a ausência de m uitos o utros que tra n s fo rm e m o
deserto n um corpo povoado. E todo s, gigantizados pela
m iragem desse deserto em q ue vivem , não fic a m apenas os
com positores norm ais, bons, mesmo ó tim o s que alguns deles
são. V ira m "grandes co m p o sito res ", viram génios! O u gênio
ou nada! M e co n tara m que Stravinsqui uma vez, convidado
a escutar a música d u m co m p o sito r sul-am ericano, re fle tiu
com m elan co lia: " H o je não há um só país do m u n do que
não sonhe te r seu S tra vin sq u i". . . A isso que co n du z a falta
d u m a produção num erosa, que co lo q u e os músicos nos seus
lugares exatos., Corjno não te m outros para c o m p e tir cada
qual se julga logo um S travin sq ui, a b rid o r de cam inhos. Eu,
apro veitar as soluções de V illa Lobos, Deus te livre! É o
p ró p rio V illa , aliás, q uand o se vê a p ro ve itad o , em vez de
co m p reen d er o valor social que isso te m , é o p rim e iro a
berrar que houve plágio e o estão ro u b a n d o ! É im possível,
im agino, q ue a lição m u ltifá ria de V illa Lobos se perca. Mas
por en q u a n to ela não é u tilizáve l pra ninguém . A deficiên cia
do m eio e a consequente exacerbação da vaidade in dividualista
não d e ix a m . Será estudada mais tard e , e retom ad a um dia no
que te m de rico e generalizável.
E m to d o caso, nem o p ró p rio V illa Lobos escapa do
característico co reográfico , nos seus alegros. Só mesmo
Cam argo G u a rn ie ri já conseguiu algum a coisa de satisfatório
nisso, sobretudo em finais, co m o no C o n certo pra V io lin o e
na Prim eira S in fo n ia . É urgente criar o alegro brasileiro sem
caráter co re o g rá fico . O alegro é a coisa mais d if í c il da criação
e ru d ita , porqu e em bora co le tivista e v io le n ta m e n te
c o le tiv iz a d o r por causa d o seu d in a m ism o , ele é no e n ta n to
a n tifo lc ló ric o . O 'p o v o não te m alegros. O "alegro é elem ento
urb an o, e ru d ito e c iv iliz a d o r, mas é sempre e x tra c u ltu ra l. O
povo na in fin ita nrtàioria dos casos, q uando faz música rápida
é pra dançar; e caím os no ca ra cte rístico co re o g rá fico , com o
no Brasil, co m o na Espanha. E o p ró p rio rom ance, a música
pra cantar h istória s e lendas, que pelo ta m a n h o dos te x to s
leva à criação de músicas fo lc ló ric a s rápidas, quase nunca o
rom ance, a balada, ou que nom e tenha, atinge a m elodia
p ro p ria m e n te d ita , co m sentido c o m p le to , co m o n um alegro
de Beethoven, de B e rlio z ou n um estreto de R ossini. Em geral
o rom ance pela sua p ró p ria natureza, em vez da m elodia
p ro p ria m e n te d ita , de sentido c o m p le to e fe cha do , permanece
no re c ita tiv o , ou si quiserem , na m elodia in fin ita . C om o é o
caso do c o rrid o m e xican o , d o relato a rg en tino . E às mais das
vezes cai ta m b ém no e s p írito co re o g rá fico , co m o a em bolada
cios cocos n ordestinos. E a em bolada é sempre um re c ita tiv o .
Nos m o vim e n to s m oderados, no alegreto, no andante, o
c o m p o s ito r e ncontra na canção fo lc ló ric a riqueza fa rta por
ond e se desenvolver c u ltu ra lm e n te . No alegro, não. Os
andam entos m oderados são c u ltu ra is : tê m a sua base e a sua
fo n te no p ovo . Mas o alegro, e x tra c o re o g rá fic o , é e lem ento
e ru d ito e c iv iliz a d o r. Ele c u ltu ra liz a , sim, uma escola nacional,
mas de fo ra pra d e n tro . Ou m e lh o r: de cim a pra b a ix o . Ele
nasce na cabeça do c o m p o s ito r e ru d ito , se caracteriza na
generalidade dos co m p osito re s norm ais (ôh, a esplêndida
d iferen ça nacional entre um alegro de c o m p o s ito r ita lia n o e
o u tro de alem ão. . .) e baixa às massas, d in a m iza n d o e
aquecendo, fo rta le c e n d o a consciência co le tiva. Porém sempre
urbana. O alegro te m isso de in so lúve l: ele pode c u ltu ra liz a r
um a música nacional, co m o os alegros de V e rd i e os de
Brahm s, mas será sempre universalm ente c o le tiv iz a d o r. Porque
o seu d in a m ism o é p ro p fc io às massas das cidades de Londres
co m o de M aceió.
E é por semelhantes circunstâncias que eu te n h o a
co nvicção de que a p ró p ria criação e ru dita é d efe ituo sa , falha
e desnorteada no Brasil. E si a realidade m usical p rática do
país é péssima: mesmo na com posição o Brasil vai m al, por
culpa dos seus co m p osito re s. Lhes fa lta so bretu d o e s p írito
c o le tiv o , e disso deriva quase tu d o . Se conservam , viru len ta s,
todas as mazelas do século passado: o d ile ta n tis m o , o
in d iv id u a lis m o e x ib ic io n is ta , o d o g m a tism o . S o b re tu d o , no
fu n d o , co m o instância da criação a rtís tic a : d ile ta n tis m o .
d ile ta n tis m o , d ile ta n tis m o . N e n h u m a c o n sc iê n c ia da fu n ç ã o
h is tó ric a d o b ra s ile iro a tu a l. E p o r isso, to d o s esses a rtis tas
d e s e n v o lv e m p o r d e n tr o , ao m ais e le v a d o g ra u , a v e le id a d e de
fic a r. E m vez d e v iv e re m , p e rd e m o te m p o da vida c ria n d o
a e s tá tu a d o f u t u r o . M as, a p e g a d o s à p e n ú ria d o a m b ie n te ,
m ais m a c a q u e ia m o g ê n io , d o q u e tê m a q u e la p a c iê n c ia , q u e
m u ita s vezes a lc a n ç a a g e n ia lid a d e . Chega ao a b s u rd o a
d e p re c ia ç ã o da v o n ta d e té c n ic a , e n tre esses b ra s ile iro s . E era
fa ta l: c o m isso, si q u a lq u e r d eles p o d e te r seus caco ete s, não
surgem senão ra ro as so luções a rtís tic a s in d iv id u a is , isto é,
ju s to a p a rte e m q u e o in d iv íd u o é u m a fa ta lid a d e h o n ro sa .
E, c o m o o n e g ris m o p ro v a , e m b o ra in c o rre n d o o risco d e não
ser c o m p r e e n d id o p o r n in g u é m , a fir m o q u e fa lta u n iv e rs a lid a d e
a esses c o m p o s ito re s , q u e v iv e m d e p a rtic u la ris m o s
re g io n a lis ta s , e d e s e n tim e n ta lis m o s e v o c a tiv o s . D a d o m e sm o
q u e o m e lh o r je it o da g e n te se to r n a r u n iv e rs a l, seja se
to r n a n d o n a c io n a l: a fa lta d e c u ltu r a e c o m p re e n s ã o d o
p ro b le m a , fe z c o m q u e os c o m p o s ito r e s b ra s ile iro s não
perceb essem o fe n ó m e n o u n iv e rs a l e h is tó ric o d o
a p r o v e ita m e n to fo lc ló r ic o . O p ro b le m a da n a c io n a liz a ç ã o
d u m a a rte n ão resid e na re p is a ç ã o d o fo lc lo r e . O p ro b le m a
v e rd a d e iro era " e x p re s s a r" o B ra s il. M as c o m o os in ic ia d o re s
desta ex p res sã o, n o u tro s p aíses, se a p r o v e ita ra m " t a m b é m "
dos te m a s tra d ic io n a is , o q u e os c o m p o s ito re s b ra s ile iro s
p escaram q uase to d o s , apesar das a d v e rtê n c ia s ins is ten tes d e
u m A n d ra d e M u r ic i, f o i só isso: te m á tic a fo lc ló r ic a . E m vez
d e e x p re s s a re m o B ras il, " c a n t a r a m " o B ras il. T a l c o m o isso
vai, p a u p é rrim o e lim it a d o , c a n tig a -d e -ro d a , b a tu q u e , n eg rism o
d e c o ra tiv is m o , é p os síve l q u e e s te ja m c o n s tru in d o u m
d ic io n á r io d e b ra s ile iris m o s . P o ré m ja m a is q u e isso será a
M ú sica B ra s ile ira , isto é, a expres sã o m u sic al d o B ras il.
Salada

A m úsica no m undo atua/.


F o i e n tã o q u e os c ria d o s tr o u x e r a m aos o lh o s
im e d ia ta m e n te s u b ju g a d o s dos c o n v iv a s , o p ra to n o v o . Era
u m a salada n o rte -a m e ric a n a . Era u m a salada fr ia , mas um a
salada co lo s s a l, m a io r d o m u n d o . Só d e pensar nela já te n h o
água na b o c a . E q u e d ife re n ç a d o va ta p á a n te rio r, tã o fe io s o
e m o n ó to n o no a s p e c to . S im , o vatapá não fa z ia vista
n e n h u m a , c o m a q u e le s seus to n s de u m te rra b a ço e os
b ra n c o s d o a n g u z in h o v irg e m . Mas, se os le ito re s estão
le m b ra d o s , ch e ira v a . A s s im q u e tr a z id o e spa lh ara na sala u m
c h e iro v ig o ro s o , c a p ito s o , c o m o se d iz , q u e e n v o lv e ra os
presentes n o fa v o r das m ais tr o p ic a is m ira g e n s. B ra v io , b ra vo
s im , a q u e le c h e iro . Á s p e ro . Mas tã o c h e io , tã o n u t r id o e
c o n v ic to , q u e se p e rc e b ia nele a p a c iê n c ia das e n o rm e s
tra d iç õ e s s e d im e n ta d a s , a m a líc ia das e x p e riê n c ia s sensuais, os
c a m in h o s p e rc o rrid o s p e lo s a c rifíc io de ce n te n a s de gerações.
O c h e iro d o va ta p á vos tra z ia a q u e le sossego das coisas
im u tá v e is .
A salada não tin h a c h e iro n e n h u m , mas c o m o era b o n ita
e c h a m a riz ! C o n v e n c ia p e lo su sto d a v is ta , e m b o ra tivesse
ta m b é m m u ita s o u tra s espécies de c o n v ic ç õ e s . Mas a p rim e ira
era m e sm o essa b o n ite z a de visão . T in h a m il co re s, c o m
m e n tira e tu d o . U ns b ra n c o s m ate s, in te rio re s , q u e se
to rn a v a m a b s u rd a m e n te v ig o ro s o s e p ro fu n d o s , ju n t o daq ue le s
escarlates to ta is , tã o v ig o ro s o s q u e nos d a v a m a sua ve rd ad e
in g é n u a de serem s u p e rio re s a tu d o . E os verdes. N ossa!
verdes to r tu r a d o s , e n v e lh e c id o s , apenas d e n ú n c ia s de verdes,
q u e iria m se d isp e rsa r n os te rra s g ra d u a d o s , se não fo ssem as
n o ta s c la rin a n te s d o s a m a re lo s , p o u c o s mas in v io lá v e is , q u e
sa lp ica va m o c o n ju n to f e it o g rito s , g rito s m e tá lic o s
c o o rd e n a n d o n u m a a vançada a q u e la m a rch a s o b re R o m a . Era
o p ra to m ais lin d o d o m u n d o .
Está c la ro q u e para u m e s p ír ito m ais r e fle x iv o e
r e c a lc itra n te , c o m o o d o c o m p o s ito r J a n jã o , lo g o a qu ela
b o n ite z a s e m o s tra d e ira n ã o d e ix o u sem d e s c o n fia n ç a m u ita .
J a n jã o o lh o u pra S a rah L ig h t à espera d u m p o ssíve l co n se lh o .
Mas S arah L ig h t estava d e s lu m b ra n te , to d a e n tre g u e a si
m esm a, to d a e n tre g u e à c o n te m p la ç ã o da salada q u e ela
o fe re c ia aos seus c o n v iv a s . O v a ta p á , ela gostava s im , Sarah
L ig h t c o m ia tu d o , era o m n ív o r a . Mas a q u e la salada, q u e era
u m a re c e ita e x c lu s iv a m e n te d e la , q u e era u m a salada de tip o
n o rte -a m e ric a n o q u e ela m o d ific a ra d o seu je it o , e
a p e rfe iç o a ra , a q u e la salada era o seu p ra to p re fe rid o , u m
c o ro a m e n to da sua e x is tê n c ia d e c o m e s tív e l e s p iritu a l
(d e s c u lp e m ). Era u m a im a g e m , u m s ím b o lo , u m a a le g o ria . Era,
e n fim , a p re c io s id a d e d e rro ta d o ra , d o m in a d o ra , p e rip a té tic a e
c irc u n s c is flá u tic a , q u e o fe re c ia a m ilio n á r ia S arah L ig h t, nova-
io r q u in a de n a s c im e n to , in te rn a c io n a l p o r p ro fis s ã o , e
b ra s ile ira p o r in c ru s ta ç ã o . Era a salada m ais sem p e rfu m e
p o ré m m ais visto sa d o m u n d o .
De m a n e ira q u e o o lh o d e s a rv o ra d o d o c o m p o s ito r
J a n jã o não p ô d e e n c o n tra r n e n h u m a p o io , n e n h u m c o n s e lh o
n em n e n h u m a c o n iv ê n c ia nos o lh o s da m ilio n á ria ,
e x c lu s iv a m e n te b e s tific a d a n a q u e le in s ta n te pela a p a riç ã o d o
seu p ra to . J a n jã o p ro c u ro u os o lh o s d o s o u tr o s c o n v iv a s , não
a c h o u nada. O p o lít ic o n é o -fa c h is ta F e lix d e C im a já se
e n tre g a ra c e m -p o r-c e n to . Os o lh o s d e le , c o m p e rd ã o da
p a la vra , re sfo le g a va m . E ra m o lh o s c o m n a rin a s : o p o lí t ic o
gostava ta n to de c o m id a s , q u e a p re n d e ra a c h e ira r c o m os
o lh o s . Ja m a is q u e tivesse u m a visão e x tra -re tin ia n a , mas tin h a ,
c o m o to d o s os hábeis p o lític o s , u m o lf a t o , d ig a m o s , u rn fa ro
e x tra n a s a l, m ais p o d e ro s o q u e as le n te s d o s trê s o b s e rv a tó rio s
p rin c ip a is desse m u n d o , q u e estão na A m é ric a d o N o rte . F e lix
de C im a era to d o salada n a q u e le in s ta n te q u e se c o n v o la ra pra
ele n u m a espécie de c o ro a m e n to de c a rre ira : s e rv itu d e e
s e rvid ã o p o lític a s . F e lix de C im a sabia c o m e r, eu ju r o . Mas no
caso d a q u e la salada m ir ífic a , o fe n ó m e n o n ã o era e x a ta m e n te
m ais u m p ro b le m a d e saber c o m e r, era u m p ro b le m a de saber
e n g u lir. U m p ro b le m a p o lí t ic o c o m o se vê. N ã o era u m
p ro b le m a de c o m e r, mas d e c a rc o m e r. F e lix de C im a m esm o
a nte s de p rin c ip ia r a m a n d u c a ç ã o , já e n g u lira tu d o . Era a
salada m ais c a rc o m e d o ra d o m u n d o .
J a n jã o p o u s o u c h e io d e c o m p la c ê n c ia os o lh o s fa tig a d o s
na g ra n d e c a n to ra v irtu o s e c e le b é rrim a , S io m a ra Ponga. Os
senhores c o n h e c e m o v e rb o " p o n g a r " ? é irre s is tív e l, S io m a ra
Ponga era um a v irtu o s e c é le b re , c o ita d a , " p o n g a v a " to d o s os
b o n d e s c o m o os m e n in o s da ru a , ia para o n d e os v e n to s
so p ra va m , desde q u e os v e n to s fo sse m p ú b lic o s . N ã o q u e ela
aderisse, a c a n to ra era s u fic ie n te m e n te c u lta pra não a d e rir
aos tu m u lto s , n e m m esm o aos t u m u lto s dos seus tr iu n f o s
d ia n te de u m p ú b lic o d e s fe ite a d o p o r a gu d o s e tr ilo s . E ela
b em p e rc e b ia q u e a qu ela salada era p rin c ip a lm e n te u m
tu m u lto . Mas d o a lto da sua g ra n d e za , da sua c u ltu r a , da sua
beleza, e ta m b é m da sua e scra vid ã o de v irtu o s e , se ela n ão
a d e ria , ela c o n c e d ia . Ela n ã o c o m e ria m e s m o , ela só d e b ica va
p ra to s , n a q u e la trá g ic a defesa d o seu c o rp o in v io la d o , em q u e
v iv ia . Gostasse o u n ão . S io m a ra Ponga p o r causa da sua
c a rre ira , o ú m e lh o r, p o r causa d a sua c e le b rid a d e p ú b lic a , já
n ão tin h a d ir e it o m ais d e g o s ta r de coisa n e n h u m a nessa vida .
E o v íc io da sua d e s tin a ç ã o , o e x te r io r q u e e s c o lh e ra , eram
tã o fo rte s so b re ela q u e , p o r m ais q u e o seu e s p ír ito c u ltiv a d o
e o seu g o sto e s p o n tâ n e o re c a lc itra s s e m , to d o s os aspectos
im o d e ra d o s da tr iu n fa lid a d e a e n c a n ta v a m . Sem q u e re r, a
fa m o sa c a n to ra estava e n ca n ta d a c o m o f u r o r quasi m ís tic o
d a q u e le p ra to . Era a salada m ais e n c a n ta tó ria d o m u n d o .
E n tã o o c o m p o s ito r tr o u x e o lh o s esperançados para o
P astor F id o . O m o ç o e s tu d a n te , q u e e stra n h a , q u e d o lo ro s a ,
q u e desolada im pressão o c o m p o s ito r te v e d e le ! O e stu d a n te
d e D ir e it o fic a ra tã o a tra íd o , o to m a ra u m a c u rio s id a d e
ta m a n h a d a q u e le p ra to d o d ia , d a q u e la a p a rê n cia nova de
fe lic id a d e g ra n d io s a , que não esperara p o r n in g u é m . Se servira
sô fre g o à bessa, se servira de to d a s aqu elas cores, e se pusera
c o m e n d o , p ro v a n d o de tu d o , la s tim o s a m e n te d e s is tid o de si
m esm o. É c e rto q u e desde o p rim e iro sa bo r q u e lhe b ro ta ra
na b o ca , tiv e ra u m su sto . O u m e lh o r, u m a a pree nsã o. Isso:
fic a ra a p re e n s iv o , tra n ç a d o de noções, m u ito vagas
in fe liz m e n te , de re m o rs o s , de tra iç õ e s a si m esm o, de re vo lta s
q u e não chegavam a se d e fin ir . Mas não co nse gu ia re s is tir à
a tra ç ã o d a q u e la salada e n ce gu ece do ra. N ão se e n tre g a ra a in d a ,
e te n h a m o s a esperança de q u e não se e n tre g u e n u n ca a um a
salada em q u e havia a té so rve te de c re m e e suco de
p e d re g u lh o . E sperem os q u e ele saiba e sco lh e r dela apenas o
q u e era ú til à sua saúde h u m a n a . Mas p o r e n q u a n to estava
em p le n o p e río d o de e x p e riê n c ia e e n c a n ta ç ã o . Era engraçada
a cara tã o expressiva d ele. . . C o m ia in te re ssa d o , in s is tia ,
p ro va va , se d iv e rtia , se e n tu sia sm a va , d e sa n im a va , re p e lia ,
in s is tia , to rn a v a a p ro v a r. E fe it o g a lin h a b e b e n d o água, fica va
a b re fe c h a n d o a boca u m te m p o , o lh o p a ra d o no ar em busca
d u m a esperança sem fo rm a . . . E d e n o v o in s is tia , ade ria a este
g o s to , se e ntu sia sm a va , s o rria assustado, c o m ce rta re p u g n â n cia
esta vez. O ra fic a v a lin d o , q u a n d o u m g o s to um a prom essa de
saúde o u de ce rte za lh e c o n fo rta v a a m o c id a d e e a in te g rid a d e
n a tiv a essencial. O ra fic a v a fe io , to r v o , escuso, c o m o as
m o c id a d e s ve n d id a s, c o m o os sujos. N ão e n v e lh e c id o , q u e as
ve lh ices ta m b é m tê m suas belezas, mas e n v ile c id o , atrá s de si
m esm o, o lh a n d o de esguelha, c o m o os to c a ia d o re s de tra içõ e s.
O e s tu d a n te de D ir e ito s o lto u um a b ru ta g arga lha da , estava
b ê b a d o . Era o p ra to m ais a lc o o liz a d o r q u e havia agora no
m undo.
O c o m p o s ito r Ja n jã o d e svio u os o lh o s . Estava m u ito
tr is te . C o m o b o m b ra s ile iro já d e s is tira o u tra vez de lu ta r. N o
seu p ra to , agora aqueles sabores da salada b a ila v a m seus
m ú ltip lo s b rilh o s , a tra in d o , a tra in d o . S e n tiu , re co n h e ce u
le a lm e n te q u e se ntia um a v o n ta d e e n o rm e de p ro v a r tu d o
a q u ilo , mas q u e b a ile ! S o rriu c o m tris te z a , b a ile . . . Era a quele
b a ila d o " E x c e ls io r " , q u e , segundo c o n ta v a m , d e s lu m b ra ra o
B ra s il, n o sé culo passado. Q ue d e s tin o esse, q u e d e s tin o p í f io ,
v iv e r de d e s lu m b ra m e n to s . . . A q u e la salada era o " E x c e ls io r ”
a p o te ó tic o . . ; d os o u tro s . A té o m o ç o e s tu d a n te o tr a ír a . E ra
n a tu ra l q u e o P astor F id o tivesse interesse p o r a q u ilo ,
provasse, insistisse, s e n tin d o os h o rro re s q u e ta m b é m havia
na q u e la salada, mas prestes a ser e n v o lv id o e d o m in a d o pela
ilusã o d o n o v o e da v itó ria q u e a quela salada lh e dava.
T ín h a m o s q u e esperar a té que a m o c id a d e nossa m adurasse a
e x p e riê n c ia e soubesse a c e ita r ta lv e z o s o rve te d e c re m e , e
recu sar o suco de p e d re g u lh o . Mas J a n jã o , c o m o b o m
b ra s ile iro já d e s is tira . O m o ç o o tr a íra . Perdera o ú n ic o a rr im o
q u e tin h a a li.
Era a salada m ais tra iç o e ira d o m u n d o , J a n jã o im a g in o u .
M e x ia n o p ra to , m e x ia . H a via , c o m o já a n u n c ie i, p e rd iz
d e s fia d a , fo rte m e n te passada, c o m o a m ilio n á ria só p o d ia
a p re c ia r p e rd iz . T in h a a lfa c e m u ito cla ra , tin h a to m a te e casca
ralad a de maçãs. Is to é: tin h a d e to d a s as v ita m in a s sa lu ta re s,
em g ra d u a çã o in e x o ra v e lm e n te c ie n tífic a , d e te rm in a d a p elos
la b o ra tó rio s n o rte -a m e ric a n o s , isso tin h a . A saúde estava
s u p e rv is o ra m e n te c o n te m p la d a a li. Mas tin h a ta m b é m pecados,
v íc io s , d e rra pa ge n s de b o m g o s to , e m ís tic a s de to d a s as
re lig iõ e s . T in h a le ite de ca b ra , p o r causa de G a n d h i; tin h a
p o rc o p o rq u e era o b ic h o n a c io n a l d o s ce lta s, c a n ta d o nos
poem as b á rd ic o s ; mas b ib lic a m e n te separado d e tu d o , em
cápsulas fin ís s im a s de tr ig o p o r causa das có le ra s possíve is de
Israel. T in h a gem as de o v o , lib e rta s da a lb u m in a p erigosa das
claras, le v e m e n te tin g id a s de suco de p e d re g u lh o . E tin h a
s o rve te de c re m e , e avelãs re c o b e rta s de cacau sem a çú ca r.
E n fim tin h a de tu d o , e o M u n d o M u sica l não sabe e n u m e ra r
e s ta tís tic a s de sabores ú te is e p re ju d ic ia is , tin h a de tu d o . Era
o p ra to das m ais inesperadas e a m b ic io s a s m is tu ra s , das m ais
c o n v u ls iv a s c o n tra d iç õ e s . Era u m desses m is tifó r io s em q u e a
g e n te , r e fle tin d o b e m , sem p a rc ia lid a d e , tin h a v o n ta d e era de
lhe b o ta r u m a " E r r a t a ” , o u a q u e le " N ã o a tire d in h e ir o pelas
ja n e la s ” , d os tre n s holandeses. Era o p ra to m ais o d io s o e ao
m esm o te m p o m ais s im p á tic o d o m u n d o .
E d o m in a v a a gen te. Era d u m to ta lita r is m o s im p ló r io ,
sem d e lica d e za n e n h u m a . In c a p a z d o tra d ic io n is m o sacral d u m
vatapá de negros, o u d e cuscus p a u lis ta v in d o a tra vé s de v in te
séculos árabes. Era u m p ra to in te ira m e n te n o v o , inca pa z de
c a rá te r, tir a n d o o seu c a rá te r a b u s iv o , b e rra n te m e n te
s u p e rfic ia l, e sca n d a lo sa m e n te d o m in a d o r, ju s to da sua
sa b e d o ria d e não te r c a rá te r n e n h u m . E n fim : tira v a o seu
m a io r c a rá te r de te r o e s p írito d o a n ú n c io . Ja n jã o s e n tiu b em
isso e a m a n so u . A salada tin h a o e s p írito d o a n ú n c io , mas
c o m o as c ria n ç a s q u e ta m b é m são só a n ú n c io . U m a espécie
ing én ua de s e m v e rg o n h ic e . Era sim , era u m p ra to
in f a n tilm e n te d e s a v e rg o n h a d o q u e , c o m o u m a c ria n ç a , fazia
c h ic h i in o c e n te n o ta p e te persa m u ltim ile n a r . Mas n em p o r
sua in o c ê n c ia o c h ic h i d e ix a v a de ser c h ic h i.
Esse era o p ra to q u e a m ilio n á ria S arah L ig h t o fe re c ia
no B a n q u e te q u e dava à q u e la ta rd e d e d o m in g o , na sua
vive n d a em M e n tira , a s im p á tic a c id a d in h a -d a A lta P aulista.
D o ce de Coco

O folclore musical. Sua


história. S ituação
dos estudos científicos.

Frutas

A virtuosidade nacional.
Os virtuosos estrangeiros
no Brasil.
O Passeio em Pássaros

Zoofonia. O c an to -e n fe ite
no cio. A m u lher vestida
de h o m em e a Lei do
Peso. M ú sica da natureza
m úsica descritiva.
C afé Pequeno

O que se fará por Janjão.


O que se devia fazer.
A s D espedidas

A luta m oral do com positor.

N o tu rn o

Janjão jogado na rua.


Conclusões. A a rte está
d eso rien tad a e não sabe o que
fazer. M u ita discussão
e pouca arte. R eto rn o
às fo n te s e aos princípios
essenciais. O c o n tra s te do
c o n fo rm is m o das classes
d o m in an tes e do
n ão -co n form ism o im plicado
na arte, por d efin ição .

Você também pode gostar