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DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ORIENTADOR
ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA
NITERÓI, 2011
1
VALTER DO CARMO CRUZ
ORIENTADOR
Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA
NITERÓI - RJ
2011.
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VALTER DO CARMO CRUZ
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA – UFF - Orientador
_________________________________________________
Prof. Dr. HENRI ACSELRAD - IPPUR/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Dr. CÁSSIO EDUARDO VIANNA HISSA - UFMG
_________________________________________________
Prof. Dr. RUY MOREIRA – UFF
_________________________________________________
Prof.Dr. PAULO ROBERTO RAPOSO ALENTEJANO – FFP /UERJ
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DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos meus dois avôs: Dário Apolônio e Cecílio do
Carmo, trabalhadores rurais e ribeirinhos que ousaram ler, pensar e
falar e que deixaram como herança exemplos de honestidade, luta e
lucidez. In-memorian.
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AGRADECIMENTOS.
Para o filósofo Espinosa não existe o bem e o mal, mas sim “bons”
e “maus” encontros. Nos “maus encontros” nossa potência é diminuída, isso
gera uma certa forma de tristeza, ou seja, a impotência. A tristeza é toda
paixão, toda forma de afeto, não importa qual, que envolva uma diminuição
de nossa potência de agir e pensar. Por outro lado, a alegria, por sua vez,
será toda paixão ou afeto que envolve um aumento de nossa potência de agir
e de pensar, fruto dos “bons encontros”.
Os “maus encontros” nos fazem adoecer, secar, sofrer e nos
diminuem como gente. Já os “bons encontros” produzem a criatividade, a
beleza e a felicidade, possibilitando a realização de toda potência humana do
corpo e do espírito, do pensar e do agir. Os “maus encontros” em nossa
trajetória de vida e, em especial, nesse período do curso de doutorado foram
muitos, contudo, nesse momento, não importam os afetos tristes, pois o que
queremos é lembrar e agradecer “os bons encontros” que possibilitaram
nossa caminhada na vida e na realização dessa tese. É desses “bons
encontros” e alegrias que resultam, de algum modo, o presente trabalho,
pois, como nos lembra Gilles Deleuze, mesmo quando escrevemos só, somos
muitos!
O primeiro “bom encontro” que gostaríamos de agradecer e
celebrar é aquele entre os meus pais (Samuel e Maria Rita), pois, foi a partir
deles que teve origem a minha família. Os meus pais, mesmo não tendo
oportunidades de estudar, tiveram a compreensão de que a educação deveria
ser um valor fundamental para o futuro de nossa família. Foi a partir dessa
crença e dessa aposta que eles fizeram todos os tipos de sacrifícios para
oferecer alguma oportunidade/possibilidade para os filhos estudarem.
Obrigado pai e mãe por apostarem e me apoiarem, sem medir esforços, na
realização dos meus sonhos que, apesar de serem individuais, são frutos dos
desejos e esforços coletivos.
Do mesmo modo, agradeço aos meus irmãos Osias, Augusto,
Dileuza e Nilma, além de meus sobrinhos Sávio, Arthur, samille, Clarice,
Sofia, Diogo e Nicolas. Obrigado pelos incentivos, pelo afeto e solidariedade e
mesmo nos momentos difíceis continuarem acreditando em mim,
transmitindo-me ímpeto para lutar a cada dia.
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Ao encontro com o professor Cincinato Marques que me deu apoio e
incentivo num momento muito difícil da minha vida e que, em todos os
sentidos, permitiu-me viajar ao encontro do meu sonho de cursar o
mestrado, episódio decisivo que mudou o rumo de minha vida e que, de
algum modo, inaugurou as possibilidade de realização desse curso de
doutorado.
Ao longo de nossa trajetória, muitas pessoas passam por nossas
vidas e nos trazem os bons afetos da alegria, que não cessam, mesmo com a
distância e a ausência. Por isso celebro e agradeço à alguns amigos
paraenses, que, embora distantes, fazem parte do que sou agora: Torquato
Maia, Veridiana Pompeu, Macks Fonseca, Edgar chagas, Vanda Pantoja,
Bruno Malheiros, Raimundo Dionísio, Itamar Vanzeler e Ivone Veloso. Com
cada um desses amigos venho compartilhando uma relação de amizade
marcada por trocas afetivas e intelectuais que aumentaram minha
capacidade de agir, pensar e sentir. Valeu!
Se na minha trajetória de migrante fui privado da convivência
cotidiana de antigas amizades, em compensação, fui presenteado, nesses
últimos sete anos em terras fluminenses, com novos afetos e novos “bons
encontros” que nos chegaram sob o signo da amizade, como é o caso dos
amigos: Mônica e Bira (carioca e cearense hoje pernambucanos), Warley
(mineiro, hoje carioca),Thiago Romeu e Raquel (cariocas, hoje paraibanos),
Maria de Jesus (nova-iorquina, hoje Acreana), Flavio e Vanusa (cearenses,
hoje cariocas), Tatiana Rosa e Fernando Braga (por enquanto cariocas)
pessoas essas, por quem cultivo uma forte amizade e um enorme carinho.
Agradeço ao bom encontro com os vizinhos e amigos Charlles e
Elizete, Denílson e Gabriela, pelas conversas, cafés e sorrisos que ajudaram a
transformar Niterói em território de vida e pertencimento.
Ao bom encontro com o acreano Isac Guimarães, grande parceiro
de intelectualidade, boêmia e de ethos amazonida em terras fluminenses.
Agradeço por me lembrar que amigos “não precisam se explicar muito”!
Edir Augusto e Aldo Souza, amigos paraenses e conterrâneos de
Mocajuba, com os quais tive o prazer de compartilhar o mesmo teto nesse
período do doutorado. Edir companheiro de longa data, Aldo amigo mais
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recente. Dois grandes geógrafos, parceiros de conversas, cervejas e de
futuros planos e projetos para “dominar o mundo”.
Ao “maravilhoso” encontro com o meu amor, Amélia Cristina, minha
companheira, com quem compartilhei/lho alegrias, angústias e
aprendizados, a sua companhia deu muito mais sentido a minha vida. Minha
miúda! Obrigado pelo carinho, dedicação, pelos olhares de ternura que
provocam pequenas epifanias em minha vida cotidiana.
Agradeço o encontro com os professores do Programa de Pós-
Graduação em Geografia – PPG -UFF que sempre se mostraram disponíveis,
solidários e compreensíveis para com as minhas inquietações intelectuais.
Agradeço também ao encontro com minhas queridas colegas de
Turma do curso de doutorado: Mônica, Beatriz e Neide, que sempre foram
muito afetuosas e compartilharam inúmeras conversas agradáveis, às vezes
angustiadas, no “caneco gelado do Mario”. E ao jovem Barão, grande figura,
companheiro de Neide e autor de uma frase que ecoou durante todo esse
período do doutorado, tornando-se uma de minhas citações favoritas:
“inventem metas de mediocridade e não só metas de sucesso”. Essa frase
me parece uma orientação importante para lidarmos com expectativas e
frustrações na medida certa.
Nos últimos sete anos convivi na Universidade Fluminense com várias
pessoas, tive muitos “bons encontros”, mas tenho um especial carinho pelos
participantes do NUREG (Núcleo de Estudos sobre Globalização e
Regionalização- coordenado pelo professor Rogério Haesbaert). Nossos
encontros das quintas-feiras tornaram-se um importante “território” de
reflexão, formulação e confraternização. Essas reuniões foram um importante
momento na minha formação intelectual, foram muitos colegas e amigos
que passaram por lá nesses últimos sete anos, dos quais gostaria de lembrar
alguns: Thiago, Vânia, Denílson, Penha Caetano, Marcelus, Fernando Duarte,
Daniela, Emerson, Matheus, Maria Lucia, Angelita.
Agradeço ao “bom encontro” com o professor Rogério Haesbaert,
meu orientador, que me ensinou a cultivar a humildade diante do
conhecimento, a necessidade da disciplina e do rigor, bases de uma ética do
trabalho intelectual, mas sempre preservando minha liberdade e criatividade
para pensar e trabalhar. Essas virtudes infelizmente estão cada vez mais
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raras numa academia marcada pela ostentação celebratória do ego, na qual
muitos pesquisadores estão mais interessados na busca pelo reconhecimento
do que na busca pelo conhecimento. Talvez só o tempo me dará a real
dimensão das marcas que a convivência com o Rogério, nos últimos sete
anos, deixaram na minha formação intelectual e pessoal. Além desse
aprendizado, agradeço muito pela confiança, paciência e pela amizade!
Agradeço também ao bom encontro com o professor Carlos Walter,
que nos sensibilizou para a importância do ativismo e do engajamento do
intelectual, além de nos ensinar a pensar no/em movimento e, por ter nos
chamado atenção para a riqueza do “admirável mundo novo” do pensamento
latino-americano.
Agradeço ao departamento de Geografia da Faculdade de
Formação de professores – FFP/UERJ pela acolhida e pela atenção quando
de minha chegada como professor nessa instituição. Agradeço a todos meus
colegas de departamento e, especialmente, aos professores Jorge Braga,
Andrelino Campos, Marcos Couto, Manuel Santana, Marcos Cesar, Renato
Emerson, Cátia Antônia, Daniela, Astrogildo e Felipe Moura com quem tenho
um agradável convívio cotidiano.
Agradeço aos professores Ivaldo Lima e Paulo Roberto Raposo
Alentejano pelas contribuições no exame de qualificação. Para esse último, o
grande “Paulinho Chinelo”, além de participar dessa banca examinadora,
agradeço ainda pela troca e diálogo cotidiano e pelas cervejas no “bar da
frente”. Agradeço também por abrir novas possibilidades de construção de
agenciamentos coletivos que possibilitam inaugurar linhas de fugas dentro do
deserto burocrático que, infelizmente, a universidade vem transformando-se.
Sua ação cotidiana nos lembra que é através do trabalho coletivo que
podemos construir outras possibilidades de uma universidade com
autonomia, criatividade, mas, sobretudo, comprometida com a sociedade.
Algumas pessoas foram de maneira direta fundamentais para que
pudéssemos finalizar essa tese. Agradeço todos aqueles que me ajudaram
concedendo entrevistas e fornecendo documentos ou, simplesmente,
conversando e me dando um pouco do seu tempo e de sua atenção.
Agradeço ainda a Amélia Cristina e Edir Augusto pelas leituras e comentários
desse trabalho. Ao Edir, um agradecimento especial, por ter me ajudado com
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as fotos presentes nessa tese. A Julia e Mirian pela revisão do Português.
Agradeço ainda o Geógrafo Mario Arnaud pela generosidade de me ajudar
com dados dessa pesquisa e com a realização do trabalho de campo. Por fim,
agradeço a Gabriela Toledo, minha aluna e bolsista que contribui muito na
construção desse trabalho nos últimos dois anos e que, agora vai ser mãe da
Maria, sinal de um novo começo. Obrigado a todos (as)!
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EPÍGRAFE
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já
está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos
ao estar juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é
fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte
dele até deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada, exige
atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem
e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, abrir
espaço para ele.
(ÍTALO CALVINO).
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RESUMO
11
RÉSUMÉ
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SUMÁRIO
PRÓLOGO ...............................................................................16
I. PARTE: O ARTESANATO........................................................32
13
3. Capítulo: Identidades territoriais, reconfigurações
identitárias e lutas sociais na Amazônia..............................147
3.1 . Introdução.....................................................................147
3.2 . Itinerários teóricos para se pensar o conceito de identidade
territorial................................................................................153
3.3 . Identidade territorial: uma perspectiva geográfica de pensar a
“questão identitária”................................................................162
3.4 . As condições de emergência e reconfiguração da questão
identitária na Amazônia...........................................................168
3.5 . R-existências, lutas sociais e a construção das identidades
territoriais na Amazônia...........................................................174
14
5.3. A emergência dos Acordos Comunitários de Pesca nas
comunidades ribeirinhas do município de Cametá.........................280
5.4. Acordos Comunitários de Pesca como estratégia de reapropriação
do territó-rio: conflitos socioambientais e a criação de direitos
territoriais comunitários...........................................................297
6. Considerações Finais........................................................323
15
PRÓLOGO
I
O sociólogo Pierre Bourdieu (2004), insistentemente, afirmava o
papel do habitus como chave de entendimento para compreendermos
nossas escolhas e o sentido da ação social, pois, para ele, nossa percepção
do mundo, nossas representações e ações em suas dimensões - cognitiva,
ética e politica - são condicionadas por um longo aprendizado social a partir
do qual somos formados. Tal afirmação parece ter particular validade
quando se refere a escolhas de objetos/sujeitos de pesquisa. Nossos
itinerários de vida refletem-se nos caminhos que tomamos no campo da
ciência, e, mesmo que muitas vezes não tenhamos consciência, é na
relação e tensão entre biografia e bibliografia que construímos nossos
objetos/sujeitos de pesquisa. Assim, a construção de um objeto de estudo
envolve escolhas teóricas, perpassa o posicionamento político-ideológico,
bem como o envolvimento afetivo-emocional do pesquisador com o tema
pesquisado.
O discurso epistemológico hegemônico da ciência e da filosofia
modernas aponta para a ideia de que o conhecimento científico é des-
localizado, des-contextualizado e des-incorporado e, portanto, trata-se de
um conhecimento abstrato e universal, um conhecimento transcendental
que independe de tempo e espaço, um conhecimento que paira sobre as
contingências históricas, como se estivesse flutuando e não tivesse
nenhuma ligação com os sujeitos-autores que o produzem. Assim, na
produção filosófica e científica moderna ocidental, o sujeito que fala, o
sujeito que teoriza, em suma, o sujeito que produz o conhecimento, as
teorias e os conceitos está sempre oculto, disfarçado, escondido. Trata-se
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de um sujeito abstrato, um sujeito não localizado, não situado, um sujeito
sem corpo, sem cultura, sem classe, sem sexo e que, portanto, o seu lócus
de enunciação é abstrato e não está contaminado de marcas terrenas. Logo,
o lócus de enunciação tem a pretensão de ser universal.
II
Quando pensávamos a melhor maneira de apresentar esse
prólogo, que tem como objetivo fundamental, mostrar como nós, enquanto
sujeito-autor, nos inscrevemos no que escrevemos, nos veio à lembrança
uma particularidade sobre a biografia do estudioso da cultura Raymond
Williams1. A história de vida desse importante pensador nos chamou muita
atenção, pois, de algum modo, remete a nossa própria trajetória, não no
sentido do prestígio intelectual, mas da relação emocional que esse
pensador tinha com a sua origem social e sua trajetória intelectual.
1 CEVASCO Elisa. Como ler Raymond Willians. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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Raymond Williams, era de origem social muito humilde, neto de
um trabalhador rural e filho de um trabalhador ferroviário, oriundo de uma
região pobre da Inglaterra. Apesar dessas adversidades, a ajuda de uma
bolsa de estudos possibilitou que ele se tornasse estudante e depois
professor da renomada e elitista universidade de Cambrigde. Mas, apesar
de êxito na sua trajetória intelectual, Raymond Williams sempre se sentia
deslocado, pois, apesar de toda sua produção intelectual, não podia falar
para sua classe, visto que lecionava para elite brithânica. Por isso, dentro
da linha de atuação institucional da New Left, ele, junto com E.P Thopsom,
idealizou e trabalhou durante a vida toda em um programa de educação
universitária para jovens e adultos trabalhadores; Para ele, essa atividade
social e cultural lhe possibilitava reunir o que, na sua vida pessoal, tinha
sido apartado: o valor de um conhecimento mais avançado e a privação
contínua desse benefício para sua classe de origem ou afiliação, ou seja,
essa experiência foi a forma que ele encontrou de reconectar a sua
trajetória de intelectual com a sua classe, de poder compartilhar de algum
modo aquilo que era fruto de uma trajetória individual, mas plasmado por
um caldo de cultura e uma inteligencia forjada coletivamente.
Ao termos contato com essa peculiaridade presente na trajetória
de Raymond Williams, compreendemos melhor os motivos pelos quais
escolhemos fazer esta pesquisa e o que nos leva a continuar insistitindo em
estudar problemas relativos à identidade, ao território, retornando sempre a
Amazônia e as comunidades ribeirinhas, visto que, desde o trabalho de
monografia da conclusão do curso de graduação em Geografia, retornamos
a esse tema de pesquisa. Nesse sentido, esta tese talvez seja uma forma de
reencontrar certas experiências que nos conectam com essa região, com
uma cultura, um modo de vida e uma classe que nossa trajetória acabou
por afastar do convívio cotiadiano. Mesmo longe há um vínculo tecido
emocionalmente, etica e politicamente que sempre nos empurra para
retornar a Amazônia.
Talvez isso explique por que a questão identitária sempre exerceu
a condição de centro gravitacional de nossas pesquisas a partir de
diferentes movimentos e de distintas perspectivas teóricas, sempre
retomamos ao debate sobre a questão da identidade e do território. Nesse
18
sentido, as palavras do Sociólogo polonês, Zigmunt Baumam (2005), nos
ajudam a compreender por que o tema e o problema da identidade [e
talvez pudéssemos estender isso ao território] se tornaram consciente ou
inconscientemente, o grande leimotiv em nossa trajetória como
pesquisador. Este autor afirma que a identidade só se torna uma questão
quando ela está em perigo, ou quando suas ancoragens são abaladas em
sua estabilidade. Nessa perspectiva, a questão do pertencimento não se
coloca como algo natural ou como destino, mas como busca, como
promessa, ou como projeto.
Neste sentido, é só quando vivemos o desconforto diante do
pertencimento que ele se torna uma questão digna de refelexão e de ação.
Talvez por ter uma experiência individual, em que vimos continuamente nos
deslocando dos contextos de ancoragem de nossa comunidade de vida
originária, é que a questão identitária e do território tenha se tornado algo
tão importante existencialmente, mas também um problema politico e
teórico sobre o qual vimos circulamente nos aproximando nos últimos anos,
sempre voltando nela como plataforma de partida para pensar a Amazônia,
as lutas sociais e as comunidades ribeirinhas.
III
Para Deleuze, o pensamento não é “natural”, mas é forçado. Só
pensamos porque somos forçados a pensar. E o que nos força a pensar? O
problema. O problema desempenha um papel central no ato de fazer
pesquisa; na construção de uma tese, o problema é aquilo que mobiliza o
pensamento e nos move no ato de fazer pesquisa. Mas o que é um
problema e como se apresenta diante de nós? Silvio Gallo (2008), inspirado
em Deleuze, nos afirma que:
19
construir algo que nos possibilite enfrentar o problema que nos fez
pensar. (GALLO, 2008 p. 118).
IV
Sou filho de trabalhadores rurais e até a adolescência vivi num
povoado chamado Porto Grande, pertencente ao município de Cametá,
localizado no baixo curso do rio Tocantins, na porção Nordeste do Pará.
Nessa época o povoado contava com menos de mil habitantes, não tinha
telefone ou energia elétrica e ficava praticamente isolado por falta de
estradas, o que dificultava a ligação com outros lugares, efetuada quase
que exclusivamente através do rio.
Minha família, tal como a maioria que ali residia, vivia da
agricultura, mas, devido às dificuldades de acesso aos serviços de educação
e saúde, resolveu mudar para a zona urbana para procurar melhores
condições de vida. Foi assim que mudamos para a cidade de Cametá (sede
do município).
Assim, no início dos anos 90, comecei a experimentar o modo de
vida urbano. É nesse momento que tive uma experiência marcante:
descobri na escola o que era a “Amazônia”. Até então, tinha apenas uma
vaga ideia... Achava que essa palavra significava o mesmo que o estado do
Amazonas. Fiquei surpreso quando soube que morava na Amazônia.
Comecei a estudar as transformações que ocorreram na região, os
chamados “grandes projetos”, mas tudo parecia muito distante; afinal eu
nunca tinha saído de Cametá, e não eram “visíveis”, na paisagem do
21
município, as “marcas” do processo de modernização, pois apesar dos
grandes impactos da Usina Hidrelétrica de Tucuruí na vida de uma grande
parcela da população do município, em especial as populações ribeirinhas, a
percepção desses efeitos negativos não era explícita para a grande maioria
da população.
A mudança nessa forma de olhar a minha realidade ocorreu quando,
em 1994, realizamos uma pesquisa, na 8° serie do ensino fundamental,
sobre os impactos sociais e ecológicos da hidrelétrica de Turucuí sobre as
populações ribeirinhas que moravam nas ilhas do município. Ao ouvir as
pessoas relatarem os profundos impactos negativos da Barragem em suas
vidas cotidianas, comecei a relacionar as questões do meu cotidiano
imediato com questões e processos em escalas mais amplas. Porque,
naquele exato momento, estávamos vivenciando uma grave crise de
energia elétrica no município de Cametá e no Baixo Tocantins como um
todo, visto que o sistema de usinas termoelétricas que alimentava os
municípios estava falido. Era constante a falta de energia, embora,
contraditoriamente, tivéssemos ao lado uma das maiores hidrelétricas do
país funcionando há mais de uma década, sem que a população do seu
entorno imediato tivesse acesso à energia.
O acesso à energia produzida pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí
(UHT) só ocorreu quase quinze anos depois do início de seu funcionamento
e só se realizou graças às intensas lutas dos movimentos sociais da região.
Neste momento comecei a ter consciência da lógica excludente dos
processos modernizadores na região e, por ocasião da militância no
movimento estudantil, tive a oportunidade de participar das lutas pelo
acesso à energia elétrica da UHT.
Em 1998, meu horizonte geográfico se ampliou: com dezoito anos
conheci Belém e, pela primeira vez na vida, meu olhar foi des-locado
significativamente, experimentei uma nova temporalidade; a vida e o ritmo
metropolitano tiveram um impacto profundo sobre minha vida e minha
identidade. No mesmo ano conheci e fui morar em Tucuruí, onde passei dois
anos. Mudei para Tucuruí para cursar a graduação em Geografia numa
turma ”intervalar” (curso para formações de professores oferecido no
período de férias escolares pela UFPA) e lá também trabalhei como
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professor do ensino fundamental, experimentando uma outra face do Pará e
da Amazônia.
A experiência espaço-temporal em Tucuruí foi paradoxal, pois era ao
mesmo tempo muito perto e muito longe. Perto geograficamente de
Cametá, mas distante social e culturalmente, com uma outra
temporalidade, um ritmo diferente da Amazônia ribeirinha a que eu estava
acostumado. Senti-me “estrangeiro” na Amazônia, pois em Tucuruí a
maioria da população não é Paraense; as roupas, as músicas, a culinária,
tudo era muito diferente do que eu estava acostumado. Ao mesmo tempo,
essa experiência de ter morado em Tucuruí me deu a oportunidade de
conhecer de perto o impacto que a construção da hidrelétrica teve na
dinâmica local, além disso, tive contato direto com a luta dos atingidos pela
hidrelétrica.
Mais tarde, fui morar em Belém, e o contato com a dinâmica e a
vida metropolitana apontava e reforçava uma questão: como entender
tamanha diversidade territorial na Amazônia? A Amazônia existia como
unidade ou como região ou era uma invenção? Como pensar as identidades
e as diferenças nesse contexto? Essas questões tornaram-se mais urgentes
quando saí da região e conheci o Nordeste e o Sudeste brasileiro, pois essas
novas experiências espaço-temporais revelavam com mais contundência o
quanto era forte a idéia de uma Amazônia imaginária, muitas vezes no
próprio mundo acadêmico.
V
Essas inquietações ganharam um eco teórico quando conheci o livro
O poder simbólico de Pierre Bourdieu. O capítulo sobre: identidade e
representação, elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região
me desnorteou, abalou as poucas certezas acumuladas nos meus dois anos
de curso de geografia. Na tentativa de compreender tais questões, iniciei
um percurso de leituras que me levou às herméticas reflexões sobre o
discurso em Foucault; embora essas leituras não tenham se apresentado
com muita clareza para mim, elas me deslocaram de uma geografia de
cunho marxista muito popularizada e, não raras vezes, vulgarizada nos
cursos de Geografia, Brasil afora.
23
Nessa busca, acabei conhecendo a chamada Geografia cultural. Sem
condições de distinguir as várias vertentes que comportam esse rótulo,
comecei a ler autores de diversas perspectivas teóricas e filosóficas, desde a
linha culturalista do marxismo, como Denis Coscrove, até uma perspectiva
fundamentada na semiótica estruturalista, como a de Paul Claval. Na
tentativa de aprofundamento sobre a relação cultura e espaço, cheguei à
antropologia interpretativa de Geertz, que se mostrou profundamente rica e
sedutora. Mas foi quando descobri um texto chamado território, poesia e
identidade, do professor Rogério Haesbaert, que o tema da cultura e da
identidade começou a ganhar os contornos de uma problemática. Mais
tarde, ao ler outro artigo do mesmo autor, denominado Identidades
territoriais, surgiu de fato uma problemática e comecei a formular questões
como: Como se construiu a identidade “caboclo-ribeirinha” em Cametá? A
identidade “caboclo-ribeirinha” é uma identidade territorial? Qual o papel do
rio na construção da identidade “caboclo-ribeirinha”?
Essas questões deram origem à minha monografia de final de curso
de graduação em Geografia na UFPA (Universidade Federal do Pará), na
qual tentei entender o processo de construção da identidade cametaense
através de músicas e poemas de artistas locais. Este trabalho foi assentado
em uma visão excessivamente culturalista, influenciada, sobretudo, pela
chamada Geografia cultural francesa. Minha análise primava pelos
significados simbólicos da identidade, e, embora os conflitos de poder
estivessem presentes nas nossas reflexões, apareceram apenas como lutas
incorpóreas de significados e representações, limitados à textualidade e,
desse modo, não conseguimos chegar à materialidade dos sujeitos e dos
conflitos concretos. Com base nas reflexões produzidas nesse trabalho de
monografia é que construímos nossa proposta de pesquisa para o curso de
mestrado.
Ao longo do curso de mestrado, redefinir gradativamente o nosso
objeto de estudo, pois as leituras, tanto as relacionadas às disciplinas, como
as do grupo de estudo NUREG (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Globalização e Regionalização), levaram-me a ler autores da filosofia
contemporânea como Foucault, Deleuze, Agamben, além de uma
aproximação de autores dos chamados estudos culturais, tais como Stuart
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Hall e Homi Babha, bem como de autores latino-americanos a exemplo de
Walter Mignolo, Henrique Dussel, Aníbal Quijano, Aturo Escobar2, e, ainda,
da instigante obra de Boaventura de Souza Santos. As reflexões desses
autores, que enfocam a discussão do chamado pós-colonialismo,
redefiniram minhas perspectivas epistemológicas e teóricas de
entendimento da identidade, pelo fato de apontarem para um entendimento
da cultura para além de uma dimensão simbólica e discursiva, enfatizando a
inerente relação entre cultura e poder, levando, portanto, a um
entendimento da cultura como algo indissociável da política.
Essa nova sensibilidade epistemológica e o distanciamento da
realidade amazônica des-locaram o foco do nosso olhar e redefiniram nossa
pesquisa, apontando para dois pressupostos teóricos gerais que orientaram
este trabalho:
a) A identidade como uma construção histórica relacional e
contrastiva que envolve ao mesmo tempo uma dimensão material e
simbólica;
b) A identidade não como essência, mas com algo estratégico e
posicional, estando em estreitas conexões com relações mais amplas de
poder da sociedade, sendo produto e produtora de lutas sociais.
Partindo dessa compreensão, construímos nossa dissertação de
mestrado, na qual buscamos compreender como, através das lutas sociais,
determinados grupos buscavam afirmar a ideia de uma identidade ribeirinha
em um processo de ressignificação da própria ideia de uma “identidade
cabocla” que agora emergia nos discursos como algo positivo que se
contrapõe à identidade dos “homens notáveis”, os quais sempre
representaram a história e a memória da elite oligárquica no município de
Cametá, composta por algumas famílias tradicionais que dominaram
historicamente o poder local.
No processo de pesquisa, compreendemos que era preciso
relacionar as estratégias identitárias com as estratégias territoriais, para
compreendermos as lutas sociais das chamadas comunidades tradicionais
2
Vale ressaltar a importância da disciplina Geografia e movimentos sociais
ministrada pelo professor Carlos Walter Porto Gonçalves, pois nesse curso tive a
oportunidade de conhecer a riqueza do pensamento social Latino-americano,
normalmente ignorado pelas ciências sociais brasileiras e, em especial, pela
Geografia.
25
na Amazônia; essas estratégias são duas faces de um mesmo movimento
na luta por direitos. A identidade é a plataforma de mobilização política para
afirmação de sujeitos de direitos, o território é o meio e a condição pela
qual se efetiva o exercício dos direitos. Essa trajetória de pesquisa nos
conduziu progressivamente em um movimento que vai da identidade ao
território. Neste sentido, quando construímos o projeto de doutorado, o
objetivo era entender a relação entre territórios, identidades e direitos nas
lutas sociais das chamadas “comunidades tradicionais” na Amazônia,
especialmente, entender o significado das chamadas “lutas por
reconhecimento” e as “lutas por reapropriação social da natureza”.
Para compreender esse processo, projetamos uma pesquisa de
natureza comparativa entre três tipos de situações e de lutas que envolviam
uma agenda e uma demanda pelo direito ao território: 1. As lutas das
chamadas “comunidades quilombolas” e as suas reivindicações pela
afirmação de seus direitos territoriais; 2. As lutas das comunidades
extrativistas pela criação de reservas extrativistas e, consequentemente,
pela afirmação do direito ao território; 3. As lutas das comunidades
ribeirinhas pela criação e pelo reconhecimento dos chamados Acordos de
Pesca, que também é uma estratégia pela afirmação dos direitos territoriais.
Pelas dificuldades de realização da pesquisa, que envolve
elementos como tempo, condições materiais, acessibilidade, acabamos por
não realizar a pesquisa como tinha sido desenhada originalmente e optamos
por nos concentrarmos em apenas uma dessas situações, cuja relação
identidade, território, direito se materializava que foi a luta pela criação e
reconhecimento dos Acordos de Pesca por comunidades ribeirinhas,
assumindo a condição de um estudo de caso, mas não no sentido
tradicional que este termo comporta. O que pretendemos realizar nessa
pesquisa foi um estudo de caso paradigmático, como explicaremos mais à
frente, no capítulo de natureza metodológica que abre esta tese.
VI
26
Nos últimos cinco anos, no período da realização desta tese de
doutorado, muitas coisas nos aconteceram. Tornei-me professor
universitário, inicialmente como substituto, na Universidade Federal
Fluminense – UFF, e na Faculdade de Formação de Professores - FFP/UERJ,
e posteriormente, como professor efetivo do Departamento de Geografia da
FFP/UERJ. Essa experiência afetou de diferentes maneiras, a realização
desta pesquisa. Uma primeira influência foi o fato de eu conhecer um pouco
mais e me envolver com a realidade do Rio de Janeiro, especialmente de
São Gonçalo e Niterói; aos poucos fui entendendo melhor e até
incorporando um certo habitus, uma cultura, um modo de vida, uma
linguagem que me pareciam bastante diferentes, mas não foi somente isso.
A sala de aula, ao longo dessas experiências enquanto professor,
tornou-se um espaço de experimentação, de criação e de pesquisa; muitas
questões e reflexões contidas neste trabalho de tese foram debatidas,
discutidas em sala de aula com alunos de graduação e pós-graduação,
especialmente porque tive oportunidade de trabalhar com disciplinas que
me obrigaram a ter uma leitura mais crítica a respeito das heranças teórico-
conceituais e metodológicas da Geografia.
Nos últimos dois anos, discuti quase exclusivamente Teoria e
Método e Metodologia da Pesquisa em Geografia, em disciplinas ministradas
na FFP, o que ampliou minha consciência enquanto pesquisador, me
conduzindo a uma maior clareza de que tipo de geografia eu gostaria de
produzir, das minhas identificações com as matrizes metodológicas
dominantes na geografia, bem como os meus distanciamentos. Além disso,
essa consciência metodológica também produziu muita angústia, porque a
consciência traz a clareza dos limites, das impossibilidades de uma pesquisa
e do próprio campo de pensamento no qual se está envolvido e do qual se é
herdeiro.
Neste sentido, ficou evidente que, para além dos nossos limites
individuais, a geografia, como campo científico, enfrenta várias limitações e
deficiências de ordem metodológica, chegando a certas situações em que
nos deparamos, como, por exemplo, com uma quase ausência de reflexão
sobre procedimentos de investigação, técnicas de pesquisa, produção de
dados, métodos de exposição, tipos de escrita e outras questões as quais
27
são amplamente debatidas em outros campos e que na geografia parecem
ser negligenciadas.
Esse período também foi marcado pela minha tentativa de
constituição de um habitus de pesquisador. Esse processo de desenvolver
certas habilidades e competências necessárias à construção do artesanato
intelectual tem sido um árduo caminho; aprender que a pesquisa não é só
uma escolha profissional, mas um modo de vida, aprender a organizar-se, a
usar o tempo, a dificuldade de lidar com a escrita apenas ilustram os
desafios enfrentados na trajetória de formar-se como pesquisador.
Mas os limites que se impuseram em nossa caminhada na
realização da nossa pesquisa não foram somente de ordem metodológica;
as condições materiais de trabalho também interferiram no processo de
construção desta tese; buscar um equilíbrio entre trabalhar e pesquisar é
uma difícil arte que ainda estamos por aprender; a impossibilidade de uma
dedicação exclusiva à construção da pesquisa interferiu, muitas vezes, em
nossa capacidade de elaboração, especialmente no que se refere à
realização da pesquisa empírica, que tinha como referência a Amazônia e
que o acesso não foi algo fácil e nem simples por questões de tempo e
recurso.
Viver e trabalhar nesses últimos cinco anos no Rio de Janeiro
(Niterói e São Gonçalo) produziu um sentimento paradoxal: de um lado,
essa experiência me afastou e distanciou da realidade amazônica, inclusive
pelas impossibilidades de tempo, visto que, as minhas idas a campo ficaram
reduzidas, diminuindo minha convivência direta com o cotidiano da região,
mas por outro lado, o distanciamento espaço-temporal, talvez, tenha
aumentado a sensibilidade emocional e analítica, pois nunca estive tão
ligado e apegado emocionalmente à Amazônia e, talvez, nunca tenha
percebido com tanta clareza e nitidez certos aspectos dessa região. É dessa
condição de proximidade e distanciamento que resultou o tipo de análise
que realizamos nessa tese, nosso lugar de fala, nosso olhar se constituiu a
partir dessa estrutura de sentimento fronteiriço, o lugar de enunciação
liminar e fraturado.
Nesse sentido, apesar desse trabalho ter como foco as lutas de
comunidades e movimentos sociais, esta pesquisa não se constitui em um
28
relato ou um testemunho de um militante e não é fruto de um engajamento
cotidiano nas lutas dessas comunidades. Mas, nem por isso, este trabalho é
menos comprometido politicamente e menos solidário com a labuta
cotidiana que esses grupos sociais enfrentam na sua difícil trajetória de luta
por condições dignas de vida.
Essa condição está expressa na forma como foi conduzida a
investigação empírica dessa tese, bem como na sua configuração textual
que não foi construída mergulhada na atmosfera amazônica. Nela, não
estão tão presentes, quanto gostaríamos, a umidade e o calor, talvez nem
as cores e nem o cheiro das frutas, dos peixes, o movimento das marés dos
rios, os olhares das crianças ribeirinhas que teimam em lutar contra o
gigantismo das águas dos rios. Mas isso não quer dizer que a vida, a fala, a
voz, dessas comunidades não ecoem nessas páginas. As suas
reivindicações, os seus clamores, as suas bandeiras de luta, os seus gritos
de revolta, o seu choro emocionado que engasga suas palavras nos
depoimentos que nos concederam, criam ressonâncias dentro deste texto.
VII
Esse trabalho apresenta um plano de composição estruturado em
quatro grandes partes que constituem quatro unidades analíticas: a
primeira parte é intitulada “o artesanato”, a segunda “a caixa de
ferramentas“, a terceira “o arquivo e o mapa” e, por fim, a parte final
que denominamos de “o terreno”.
A primeira parte dessa tese é denominada “o artesanato”.
Usamos essa metáfora para lembrar a natureza do trabalho intelectual e do
fazer pesquisa. Essa metáfora da pesquisa como artesanato intelectual já
consagrada por C. Wright Mills (2009) é importante, pois, resgata a
singularidade impressa em cada pesquisa e em cada pesquisador e a
inerente dimensão qualitativa do trabalho intelectual. Além disso, remetem
as escolhas, as opções e também aos limites que envolvem toda pesquisa.
O que fazemos nessa parte da tese é traçar uma espécie de mapa de nosso
itinerário, tentando orientar e localizar o nosso leitor nos caminhos e
desvios que tomamos durante o percurso da pesquisa.
29
A segunda parte, “A caixa de ferramentas”, é composta por
dois capítulos de natureza teórico-metodológica, nos quais tentamos discutir
os referenciais analíticos e os conceitos-chave que usamos como
ferramentas nessa pesquisa. No primeiro capítulo, damos destaque para o
conceito de território e buscamos a construção de um quadro teórico-
metodológico capaz de tornar esse conceito uma ferramenta para
analisarmos as estratégias de luta por reapropriação social da natureza por
parte das chamadas comunidades tradicionais na Amazônia. No segundo
capítulo, construímos um itinerário teórico-metodológico sobre o conceito
de identidade e identidade territorial e, ainda, analisamos as condições de
emergência e de reconfiguração das identidades das comunidades
tradicionais no contexto das lutas sociais por direitos na Amazônia.
“O arquivo e o mapa” é como denominamos a terceira parte
da tese. Escolhemos usar essas palavras não no sentido literal, mas como
metáforas do tempo e do espaço ou, melhor dizendo, para resgatar a
dimensão da historicidade e da espacialidade dos processos sociais aqui
analisados. Nessa parte, nosso objetivo é fazer uma análise
histórico/geográfica da formação territorial do Baixo Tocantins, mostrando
sua organização espaço-temporal e as diversas transformações que essa
região vem sofrendo nas últimas três décadas, principalmente com a
implantação dos chamados “grandes projetos de modernização”. Daremos
destaque especial ao impacto que a construção da hidrelétrica de Tucuruí
provocou na região, especialmente para a vida das comunidades ribeirinhas.
Além disso, discutiremos como essas comunidades, “vítimas” desse projeto
de modernização, vêm organizando-se, resistindo e buscando alternativas
para superar o agravamento das já precárias condições de vida a partir da
implantação desses projetos e, como nesse processo, vem ocorrendo a
constituição de novos sujeitos coletivos. Nessa parte, também traçaremos a
trajetória específica dos movimentos ligados à pesca, bem como a condição
ou a perda da condição de ribeirinho e as diversas estratégias de lutas
derivadas desse processo.
Na quarta parte, intitulada “O terreno”, usamos essa metáfora
para sinalizar um mergulho no referencial empírico da pesquisa, ou seja, as
comunidades ribeirinhas no município de Cametá. Nessa parte centramo-
30
nos na análise dos modos de vida das comunidades ribeirinhas e nas suas
lutas pela criação e implementação dos os “Acordos Comunitários de
Pesca”. Analisaremos ainda como esses “Acordos” são estratégias
territoriais de reapropriação social dos recursos e dos rios ou, como
preferimos denominar, reapropriação social dos territó-rios. Além disso,
analisaremos o significado jurídico, sociopolítico e econômico-ecológico
desses “Acordos” para essas comunidades.
Por fim, faremos algumas considerações finais resgatando
elementos discutidos ao longo do trabalho e afirmando certas conclusões,
mesmo que provisórias, a respeito dos processos analisados.
Além das partes e dos capítulos, construímos um conjunto de
pequenos textos de natureza metodológica que estamos chamando de
Intermezzo, palavra de origem italiana que possui vários sentidos:
entreato; intervalo entre atos de uma peça; intervalo; entrecena; pequena
cena dramática ou musical que se apresenta nesse intervalo entre os atos
principais de uma ópera3. Nesta tese, os Intermezzi são textos que não têm
necessariamente uma coerência ou coesão com o texto principal, mas se
ligam a ele como eco e como ressonância, iluminando-o. São pequenos
desvios na lógica do caminho linear da tese, mas que acrescentam novos
sentidos e uma maior riqueza ao texto principal.
3
Intermezzo era o nome que se dava, na primeira metade do século XVIII, às cenas
cômicas apresentadas no intervalo entre os atos de uma ópera séria. Uma forma de
oferecer alternância à tensão dramática, elas foram retiradas do corpo da ópera e
apresentadas dessa maneira, como uma mini-peça complementar entre um ato e outro.
Essas pequenas comédias tinham tudo para cativar o público, pois, ao contrário da ópera
séria, extremamente estilizada, com figuras e temas da Antiguidade pesadamente
estereotipados, elas traziam personagens contemporâneas e histórias prosaicas,
recortadas da realidade, nas quais todos os espectadores poderiam reconhecer-se. Sua
música era também, necessariamente, mais simples, de corte desenvolto, não raro com
um sabor popular que a tornava atraente, fácil de memorizar, dotada de alto poder de
comunicação com todos os tipos de platéia. (Coelho, 2007).
31
“ O ARTESANATO”
32
CAPÍTULO 1 - CARTOGRAFIA DA INVESTIGAÇÃO OU UM
PEQUENO GUIA DO USUÁRIO: QUESTÕES, POSIÇÕES,
CAMINHOS E LIMITES DA PESQUISA.
33
serem personagens anacrônicos, tornam-se protagonistas da invenção e da
construção de outros possíveis futuros.
Ganham força os movimentos indígenas em países como a
Bolívia, Equador, México, Chile, Brasil; as comunidades afrodescendentes,
também historicamente invisibilizados, ganham força e expressão no Brasil,
na Colômbia, no Equador; o movimento camponês reinventa-se através das
lutas da Via Campesina e, no Brasil, ganha grande destaque a ação do MST.
Esses novos-velhos protagonistas emergem no espaço público e
inauguram novas agendas e bandeiras de lutas. A “marcha pela Dignidade e
pelo Território” organizada pelo movimento indígena boliviano em 1990
representa um dos marcos desse processo. No mesmo ano, no Equador, o
movimento indígena equatoriano também organiza uma marcha com o
mesmo título ”Marcha pela Dignidade e pelo Território”. Quatro anos depois,
em janeiro 1994, o mundo assiste atônito o levante Zapatista em Chiapas,
no México, um movimento que trazia, também, como prioridade na sua
agenda de luta o direito à dignidade, à autonomia e ao território.
No caso brasileiro e, especificamente, da Amazônia, que é o foco
da nossa pesquisa, percebemos, a partir do final da década de 1980, a
emergência de um conjunto de mobilizações das chamadas “comunidades
tradicionais”, como relata-nos com muita riqueza o antropólogo Alfredo
Wagner B. Almeida em texto-testemunho dessas emergências:
34
programa de lutas por uma imediata reforma agrária, com a
implantação de reservas extrativistas, pela demarcação das terras
indígenas e contra a criação de “colônias indígenas” tal como vêm
sendo efetivadas, notadamente no âmbito dos projetos especiais
da Calha Norte, pelo “fim do pagamento da renda e das relações
de trabalho, que escravizam os seringueiros nos seringais
tradicionais”, bem como reivindicações para a preservação
ambiental, para uma nova política de preços e comercialização,
de saúde e de educação das “populações extrativistas”. Este
programa foi aprovado por 135 seringueiros e 52 índios,
representando trabalhadores extrativistas de 26 municípios do
Amapá, Acre, Rondônia, Pará, Amazonas e de uma área de
seringais da Bolívia. Como observadores convidados, sem direito
a voto, por não serem delegados eleitos em seus povoados e
aldeias, participaram 17 seringueiros e 9 índios. Credenciaram-se
também junto à secretaria do encontro 267 representantes de
entidades governamentais e não governamentais.
O I Encontro Nacional dos Trabalhadores Atingidos por
Barragens foi realizado em Goiânia (GO), entre 19 e 21 de abril,
reivindicando não apenas uma “nova política para o setor elétrico
com a participação da classe trabalhadora”, mas também
“reforma agrária já” e “demarcação das terras indígenas e das
comunidades negras remanescentes de quilombos”. O documento
final denominado Carta de Goiânia foi subscrito por 25 entidades,
sendo uma central sindical, um pólo sindical e um “movimento” e
ainda 6 comissões estaduais de “atingidos por barragens”, 4
“comunidades indígenas” (Kaingang de Irai, Kaingang de
Chapecozinho, Ava-Guarani e Pakararu) e 12 entidades de apoio
e institutos de pesquisa e documentação. Foi criada no referido
encontro a Comissão Nacional de Atingidos. (ALMEIDA, 1994: p.
525)
O I Encontro de Atingidos pela Barragem de Tucuruí
realizou-se em Belém (PA), discutindo as relações dos chamados
“atingidos”, intermediados pelos STRs, junto às prefeituras e à
Eletronorte a propósito do cumprimento dos convênios para
reparar danos e atender às reivindicações (escolas, postos de
saúde). Delegados representantes de 8 STRs (Itupiranga,
Tucuruí, Jacundá, Baião, Mocajuba, Cametá, Igarapé-Mirim,
Oeiras do Pará), duas colônias de pescadores (Jacundá e Igarapé-
Mirim), dois núcleos de pescadores não formalizados (Cametá e
Tucuruí), juntamente com membros do STR de Altamira, da
FETAGRI-PA, da CUT tocantina, definiram que a atuação dos STRs
deve ser a de fiscalizar a execução das obras e de sua
administração. Participaram também do evento 04 entidades de
apoio. (ALMEIDA, 1994: p. 525)
Na primeira semana de maio foi fundada a Associação das Áreas
de Assentamento do Maranhão (ASSEMA), no Vale do Mearim,
com a participação de representantes de áreas já desapropriadas
por interesse social para fins de reforma agrária. Duas semanas
depois, 78 STRs do Maranhão, num “encontro” para definir
programas de reivindicações, realizado em São Luís, aprovaram
35
posições de que as ocupações de latifúndios seriam apoiadas pelo
movimento sindical. Sublinhe-se que levantamento feito pela
FETAEMA indica existirem mais de 300 áreas ocupadas por cerca
de 500 mil posseiros no Estado, abrangendo mais de 2 milhões de
hectares de terras em conflito. (ALMEIDA, 1994: p. 525-526)
Acrescente-se ainda que o III Encontro das Comunidades
Negras Rurais do Maranhão realizou-se entre os dias 28 e 30
de julho em Bacabal (MA), com representantes de mais de uma
centena das chamadas terras de preto e das áreas de
remanescentes de quilombos. Na sua convocatória já se
delineiam reivindicações pelo imediato reconhecimento das terras
ocupadas pelos remanescentes de quilombolas e por uma reforma
agrária imediata. Entidades de apoio como o grupo Negro
Palmares Renascendo e Centro de Cultura Negra promoveram o
evento. Trata-se do primeiro encontro que trata, a nível local, da
aplicação do Art. 68 das Disposições Constitucionais transitórias,
referindo-se à titulação definida dos “remanescentes das
comunidades de quilombo”.
O II Encontro Raízes Negras do Médio Amazonas Paraense
realizou-se no período de 30 de junho a 02 de julho de 1989 na
comunidade de Jauary, Rio Erepecuru (Oriximiná-PA), coordenado
pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) e
organizado junto com os Quilombos de Pacoval, Curuá, Mata,
Acupu, Cuminá, Erepecuru, Trombetas e Jauari. A entidade criada
para conduzir localmente a luta pelo reconhecimento destas
terras de quilombos é a Associação dos Remanescentes de
Quilombos de Oriximiná (ARQMO).
Ainda em julho de 1989 realizaram-se inúmeras assembléias de
mulheres trabalhadoras rurais no Vale do Mearim (MA) e
no Bico do Papagaio (TO), objetivando a criação das
Associações das Quebradeiras de Coco Babaçu, voltadas
fundamentalmente para assegurar o livre acesso aos babaçuais
ilegalmente cercados. O I Encontro Interestadual de
Quebradeiras do Coco Babuçu somente será realizado,
entretanto, em setembro de 1991, em São Luís (MA). (ALMEIDA,
1994: p. 526).
36
Nacional das Comunidades Remanescentes de Quilombo e a rede de
entidades a ela vinculada no Maranhão; a Associação das Comunidades
Negras Quilombolas do Maranhão – ACONERUQ e, no Pará, a Associação
das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná
– ARQMO; a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia, entre outras.
Nesse novo contexto, emerge, segundo Gonçalves (2001), a
construção de “novas” identidades coletivas surgidas de velhas condições
sociais e étnicas, como é o caso das populações indígenas e negras, ou
remetendo-se a uma determinada relação com a natureza (seringueiro,
castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda, expressando
uma condição derivada da própria ação dos chamados “grande projetos” de
modernização implantados na região, como estradas, hidrelétricas, projetos
de mineração, entre outros (“atingido”, ”assentado”, “deslocado”).
Esses novos movimentos sociais diferenciam-se dos movimentos
antecedentes por suas estratégias discursivas e identitárias, pois, na sua
constituição como sujeitos coletivos, não mobilizam a auto-identificação de
camponês, até então usada como a identidade sociopolítica estruturante
dentro das arenas de lutas em décadas passadas. Esses novos
protagonistas apresentam-se através de múltiplas denominações e apontam
para a construção de novas e múltiplas identidades e diferentes formas de
associação que ultrapassam o sentido estreito das organizações
camponesas clássicas. Isso não significa uma destituição do atributo político
da categoria de mobilização camponês (a constatação mais incontestável
disso é a Via Campesina!), mas é inegável que emergências das “novas”
denominações/ identidades dos movimentos sociais espelham um conjunto
de novas práticas organizativas que traduzem transformações políticas mais
profundas na capacidade de organização/mobilização desses grupos em
face do poder do capital e do poder do Estado e em defesa de seus
territórios (Almeida, 2005).
Esses movimentos apontam para um processo de politização da
própria cultura e de modos de vida “tradicionais”, ou seja, para um
processo de politização dos “costumes em comum”, valorizando a memória,
a ancestralidade e os saberes tradicionais na construção das identidades
socioculturais e sociopolíticas, afirmando um duplo processo que, ao mesmo
37
tempo, direciona-as para o passado, buscando nas tradições e na memória
sua força e apontando para o futuro, sinalizando para projetos alternativos
de produção e organização comunitária, bem como de afirmação e
participação política.
Mas essas (re)configurações identitárias não são gratuitas, são
novas estratégias na luta por direitos, formas de garantias de direitos
sociais e culturais, notadamente, o chamado “direito étnico à terra”, que
assegure a posse coletiva ou familiar das terras e dos recursos naturais. A
constituição de novos sujeitos políticos, novos sujeitos de direito vêm
redefinindo as táticas e estratégias de luta pela terra na Amazônia,
sobretudo, pelo impacto da emergência da questão ambiental e da questão
étnica que vem redefinindo o padrão de conflitividade4 e o campo relacional
dos antagonismos na região, implicando uma espécie de “ambientalização”
e “etnização” das lutas sociais, complexificando a questão fundiária e
agrária, foco irradiador dos principais conflitos na região.
Essas novas formas de agenciamentos políticos implicam uma
ampliação das pautas de reivindicações e a criação de novas agendas
políticas. Esses novos movimentos lutam não só contra a desigualdade -
pela redistribuição de recursos materiais - mas também lutam pelo
reconhecimento das diferenças culturais, luta pelo “respeito” e pela
“dignidade” dos diferentes modos de vidas configurados nas suas diferentes
territorialidades.
Desse modo, a constituição desses novos sujeitos dá-se nas e
pelas lutas de afirmação de suas identidades culturais e políticas pautadas
4
Carlos Walter Porto-Gonçalves faz uma importante distinção entre conflito e
conflitividade que nos parece relevante para compreendermos a dinâmica da
Amazônia contemporânea, neste sentido, o autor afirma que: de um ponto de vista
metodológico é importante considerar a distinção entre o conflito e a conflitividade,
questão que nos colocamos a partir da leitura de E. P. Thompson (Thompson,
1981) com sua crítica ao historicismo e estruturalismo. Enquanto o conflito é a
manifestação concreta, empírica, das contradições em ato, a conflitividade nos
remeteria às suas condições de possibilidade, isto é, as condições que tornam mais
prováveis determinados conflitos do que outros. Isso tem a ver com as conjunturas
e, aqui, as questões relativas às escalas de tempo, assim como as escalas
geográficas, se impõem. Até que ponto um conflito é local ou supralocal (regional,
nacional, mundial) é uma das questões mais sensíveis desse tipo de investigação
que estamos desenvolvendo até porque exige um arcabouço teórico complexo que
envolva uma concepção simultânea da dinâmica espaço-temporal. (PORTO-
GONÇALVES, 2010, p. 7)
38
na territorialidade, logo, são lutas pela afirmação de suas identidades
territoriais. Almeida (2004) afirma que o sentido coletivo das autodefinições
emergentes na Amazônia impôs uma noção de identidade à qual
correspondem territorialidades específicas.
39
Nessa busca de afirmação de suas identidades coletivas e de suas
territorialidades, é que esses movimentos vêm reivindicando ou mesmo
inventando novos direitos5 tais como: o reconhecimento de terras
indígenas, o reconhecimento de terras das comunidades remanescentes de
quilombolas, a criação de reservas extrativistas (seringueiros, castanheiros
e outras populações extrativistas), acordos de pesca, entre outros. Trata-se
de uma estratégia de luta que vem implicando uma espécie de “outra”
reforma agrária na Amazônia6
Os movimentos sociais lutam pelo reconhecimento por parte do
Estado de uma outra ordem jurídica, uma matriz de normatividade
alternativa que possa garantir as diversas modalidades de territorialização
que não se enquadram inteiramente dentro do modelo da propriedade
capitalista e do direito liberal individual. Neste sentido, busca-se o
reconhecimento de um quadro normativo capaz de reconhecer direitos
pautados no uso, na tradição, nos chamados direitos consuetudinário ou
“direitos costumeiros”, direitos esses ignorados ou invisibilizados no
estatuto jurídico estabelecido.
Diante desse quadro, cabe interrogarmos: Por que a questão
identitária ganha tanta importância e visibilidade hoje na Amazônia? Qual o
papel que “ambientalização” e “etnização” têm na reconfiguração das
identidades? Qual a relação entre identidades, territorialidades e direitos
nas lutas sociais na Amazônia? Por que a maioria dos movimentos sociais
5
Ainda que os chamados direitos “novos” nem sempre sejam inteiramente “novos”,
na verdade, por vezes, o “novo” é o modo de obtenção de direitos que não passam
mais pelas vias tradicionais - legislativa e judicial -, mas provêm de um processo de
lutas e conquistas das identidades coletivas para o reconhecimento pelo Estado.
Assim, a designação de novos direitos refere-se à afirmação e materialização de
necessidades individuais (pessoais) ou coletivas (sociais) que emergem,
informalmente, em toda e qualquer organização social, não estando
necessariamente previstas ou contidas na legislação estatal positiva (Wolkmer,
2003: 1).
6
Segundo Little (2003) a questão fundiária no Brasil vai além do tema de
redistribuição de terras e torna-se uma problemática centrada nos processos de
ocupação e afirmação territorial, os quais remetem, dentro do marco legal do
Estado, às políticas de ordenamento e reconhecimento territorial. Essa mudança de
enfoque não surge de um mero interesse acadêmico, mas radica também em
mudanças, no cenário político do país, ocorridas nos últimos vinte anos. Nesse
tempo, essa outra reforma agrária ganhou muita força e consolidou-se no Brasil,
especialmente, no que se refere à demarcação e homologação das terras indígenas,
ao reconhecimento e titulação dos remanescentes de comunidades de quilombos e
ao estabelecimento das reservas extrativistas. (Little, 2003:2-3).
40
adota como estratégia política, jurídica e epistêmica a luta por territórios e
não, simplesmente, por terra? Como esse processo expressa-se na luta
cotidiana das comunidades?
Esse campo problemático remete a três eixos de investigação que
orientam nossa pesquisa:
1. A (Re)configuração das “velhas” e a emergência de “novas”
identidades coletivas, a constituição de novos sujeitos protagonistas
nas lutas sociais na Amazônia;
2. A centralidade do direito nas lutas sociais na Amazônia,
especialmente, a luta pelo exercício ou mesmo a invenção de novos
direitos territoriais;
3. A vinculação entre as lutas por direitos étnicos e ambientais e as
lutas por reconhecimento de territórios na Amazônia;
41
MAPA 1-LOCALIZAÇÃO DO MUNCÍPIO DE CAMETÁ - PARÁ
42
Esta é uma das regiões de colonização mais antigas da Amazônia. O
processo de povoamento do rio Tocantins inicia-se nos séculos XVII e XVIII,
efetuado pelos portugueses sob uma lógica geopolítica de defesa do
território, bem como por interesses mercantilistas pelas drogas do sertão. É
nesse contexto que a ocupação do território inicia-se, particularmente, em
1616, com a fundação de Belém. Posteriormente, outros fortes foram
construídos, sempre ao longo dos rios, em posições estratégicas, no sentido
geopolítico do controle do vale. O rio Tocantins constituía-se num
verdadeiro portal de acesso à região, ligando-a ao território nacional. É na
margem esquerda desse rio que, após a fundação de Belém, os
colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem, posteriormente,
ao que é hoje o município de Cametá.
Além de Cametá, foram instalados, progressivamente, outros
núcleos de povoamento (Baião Mocajuba, Oeiras do Pará, Limoeiro do Ajuru
Tucuruí), configurando um padrão que está intimamente ligado ao rio, que
se materializou com a formação dos aldeamentos e vilas, desde o período
colonial, e que se amplia e se consolida em função da expansão do
povoamento regional com a economia da borracha em fins do século XIX e
primeiras décadas do século XX. Assim, ao longo das várzeas do rio
Tocantins, emerge um sistema que combina o extrativismo da floresta, a
pesca e a agricultura, articulado por meio dos regatões com as vilas e
cidades e que, na verdade, foi típico de toda a Amazônia (Gonçalves, 2001).
Esse modo de vida, esse padrão de organização espaço-tempo
fundamentado numa temporalidade e espacialidade ribeirinha foi dominante
na geografia do vale do Tocantins até o final dos anos 1970. A partir desse
período, com o avanço da fronteira, começa a emergir um novo padrão
espaço-temporal que se conforma com as cidades e os embriões urbanos
que surgiram recentemente ou foram reestruturados a partir e ao longo dos
grandes eixos rodoviários que rasgaram o espaço regional. Com esse
processo, esboça-se uma nova temporalidade ligada a um tempo mais
“rápido” da nova dinâmica dos atores hegemônicos que, a partir daí,
protagonizam uma nova divisão nacional e internacional do trabalho
resultante da nova fase de acumulação do capital na Amazônia,
43
caracterizada pelo deslocamento do capital comercial para o capital
industrial e financeiro.
No vale do rio Tocantins, esse processo de reestruturação regional
tem como fator decisivo o processo de construção da usina hidrelétrica de
Tucuruí (UHT). Essa usina alterou profundamente a estrutura espacial e
demográfica local, modificando sobremaneira as relações e cadeias que se
estabeleciam entre homens e natureza, redefinindo completamente os
gêneros de vida e os ambientes espaciais locais (Rocha e Gomes, 2002):
44
A construção da barragem desencadeou processos de
transformação econômica que incidem, de um modo geral, na estrutura
produtiva local. A economia, predominantemente agrária e extrativa, foi
sendo alterada com a interferência direta e indireta do empreendimento em
áreas de uso coletivo, tradicionalmente destinadas ao extrativismo, à pesca,
ao cultivo nas várzeas e na terra firme. Assim, esse processo afeta, de
maneira dramática, os usos e os sistemas de apropriação tradicionais do
território praticados por diferentes grupos sociais: indígenas, colonos,
ribeirinhos etc.
Portanto, a construção da hidrelétrica de Tucuruí acarretou
intensos processos de mobilizações forçadas e compulsórias, o que implicou
dramáticas des-territorializações ou precarização dos laços territoriais. Além
desses problemas sociais, provocou, ainda, grandes impactos sobre os
ecossistemas locais, resultando em graves consequências ambientais. Ao
perceberem a ameaça representada pela expropriação de seus bens –
terras, benfeitorias - , as populações rurais, ribeirinhas e também urbanas
empreenderam uma ação de r-existência como forma de afirmação de sua
sobrevivência física, social e política.
Inicialmente, a Igreja católica, em especial, a prelazia de Cametá,
através das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s) organizou as populações
rurais e ribeirinhas no processo de r-existência e luta contra os impactos da
construção da hidrelétrica. Esse processo de organização política vai
desdobrar-se na criação e no fortalecimento, especialmente durante a
década de 1980, dos sindicatos de trabalhadores rurais e, mais tarde, das
colônias de pescadores. Houve também um fortalecimento do Movimento de
atingidos por barragem (MAB) através de sua articulação em escala
nacional.
A partir da década de 1990, com a emergência da “questão
ambiental” e da “questão étnica”, os movimentos sociais da região mudam
de estratégia incorporando novas estratégias e táticas de luta que se
expressam em novas práticas políticas e na construção de novos discursos
identitários a fim de garantir acesso a direitos, em especial, o direito à
territorialidade, como forma de acesso (e controle sobre) à terra, à água e
aos recursos naturais.
45
Diante dessa nova situação e desse novo contexto é que
percebemos que há uma clara reconfiguração das formas de organização
política das classes subalternas na região. Novas identidades vêm
emergindo no espaço público e, com isso, um novo imaginário e uma nova
cultura política vêm forjando-se, mas cabe elucidar as linhas de forças que
atravessam esse processo.
Na região do Baixo Tocantins, nos últimos 10 anos, foram criadas
duas reservas extrativistas, reconhecidas e tituladas as terras de pelo
menos dez comunidades quilombolas. Têm surgido, em dezenas de
comunidades ribeirinhas e de pescadores, iniciativas da criação dos
chamados “Acordos comunitários de pesca”. Apesar da diversidade de
situações e de experiências, esse conjunto de processos de territorialização
das lutas sociais remete a uma nova configuração na forma de organização
das estratégias de luta das chamadas comunidades tradicionais na qual se
vinculam, claramente, território, identidade e direito, criando novos
agenciamentos e novas agendas político-territoriais na região.
Essas mudanças nas formas de organização política, nas
chamadas comunidades rurais e ribeirinhas, especialmente, no município de
Cametá, têm sido intensas. Até a primeira metade da década de 1990, o
conjunto das forças sociais de origem rural e ribeirinha estava diretamente
ligado ao sindicato de trabalhadores rurais, sendo o principal protagonista
na organização política das classes trabalhadoras no município. Diga-se, de
passagem, esse sindicato chegou a ser considerado o maior sindicato rural
do estado do Pará. Lembramos muito bem que, durante um período em que
participamos da militância do movimento estudantil no município, durante a
segunda metade da década de 1990, a referência maior de organização e
luta estava sempre centrada no papel desempenhado pelo Sindicato dos
Trabalhadores Rurais - STR, o Partido dos Trabalhadores - PT e, também,
nos primeiros vereadores eleitos pelo partido e oriundos do corpo dirigente
do sindicato.
Na segunda metade da década de 1990, emerge um conjunto de
novos sujeitos sociais coletivos que altera o quadro da sociedade civil local e
a dinâmica política como um todo. Entre esses novos sujeitos, ganha
destaque o surgimento de uma grande quantidade de associações de
46
mulheres ligadas às comunidades rurais e ribeirinhas, organizações não-
governamentais ligadas à questão de gênero e meio ambiente. Outro
elemento que chama atenção, nesse cenário, é a criação de inúmeras
associações ligadas às chamadas comunidades quilombolas existentes no
município.
Nesse cenário, sem dúvida chama atenção a ação dos pescadores
e ribeirinhos objetivada na colônia de pescadores, pois, até a primeira
metade da década de 1990, a Colônia de Pescadores que, teoricamente,
seria o órgão de representação das comunidades ribeirinhas tinha uma
direção e uma atuação totalmente desvinculada dos interesses dos
pescadores. A expressividade desse órgão de representação dos pescadores
era praticamente inexistente, com pouca ou nenhuma participação na vida
política do município, sendo que muitos pescadores estavam associados ao
sindicato de trabalhadores rurais.
Hoje, depois de dezesseis anos, na retomada da direção da
colônia por parte dos pescadores - que ocorreu em 1994, período em se
inicia um novo ciclo - o que vemos é um cenário completamente diferente.
Atualmente, a Colônia de Pescadores é o principal ator político da sociedade
civil e o mais atuante e decisivo protagonista nas disputas das arenas
políticas locais, enquanto, progressivamente, o STR vem perdendo
significativamente força e expressão enquanto organização decisiva na vida
política do município. Os pescadores artesanais e ribeirinhos, de um modo
geral, saem de uma condição de completa marginalidade e invisibilidade
para um papel de protagonista; de outro lado, os trabalhadores rurais
perderam em grande parte sua capacidade de mobilização política e de
afirmação de seus direitos na esfera pública. Porém quais seriam as razões
dessa mudança? Quais os processos em escala local e, ainda, em escalas
mais amplas que teriam contribuído com essa mudança?
Durante o período em que desenvolvemos nossa pesquisa - nos
últimos seis anos na região do Baixo Tocantins -, temos constatado, pelos
diversos depoimentos e pela observação direta, a seguinte situação: a
condição de vida das chamadas comunidades ribeirinhas e dos pescadores
tem sofrido sensíveis mudanças no sentido da melhoria da qualidade de
vida, sendo comum, nos comentários cotidianos, sobretudo dos
47
trabalhadores rurais, a seguinte afirmação: “o povo das ilhas está muito
bem”, “eles têm tudo”. Essas afirmações referem-se a um conjunto de
direitos que se materializam em recursos materiais e políticas públicas que
começa pela primeira vez, na história, a chegar até as comunidades
ribeirinhas nas regiões de várzea no município de Cametá. Tais conquistas
contrastam com o aumento das dificuldades dos trabalhadores rurais que
vivem nas áreas de terra firme do município. É como se, de um lado as
regiões da várzea, das ilhas habitadas pelas comunidades ribeirinhas e
pescadores viessem, progressivamente, melhorando as suas condições de
vida e, simultaneamente, as comunidades rurais da terra-firme viessem
deteriorando suas condições de vida. Assim, cabe novamente perguntar:
quais as razões dessa mudança?
Em nossa pesquisa, inicialmente, pretendíamos investigar essas
mudanças ocorridas na reconfiguração das lutas sociais, sobretudo, no que
se refere à reconfiguração das identidades sócio-políticas dos atores
envolvidos e como a emergência “de novas identidades” estaria ligada à
afirmação de direitos territoriais. Pretendíamos, então, investigar como as
lutas na Amazônia tornaram-se lutas pelo direito ao território. Neste
sentido, havíamos definido como caminho investigativo o estudo da criação
de uma reserva extrativista no município de Baião chamada Anilzinho, bem
como o reconhecimento de comunidades quilombolas no município de
Cametá. Além disso, também pretendíamos investigar a criação dos
chamados Acordos de Pesca no município de Cametá, pois entendíamos
que, apesar da diversidade dessas experiências, havia um pano de fundo
comum sobre o qual se pautavam essas experiências e que as mesmas
apresentavam uma gramática comum que se traduzia na reconfiguração
das identidades e na luta por direitos territoriais. Nesse caminho, queríamos
entender como as linhas de força e os processos sociais mais amplos, que
atravessam a Amazônia, articulavam-se com lógicas e processos locais e,
desse modo, buscaríamos entender as especificidades desses estudos de
caso e, ao mesmo tempo, compreender as principais linhas de força que
constituem a Amazônia num momento atual.
Contudo, ao longo do período do doutorado, as nossas condições
materiais (tempo, recursos etc.) tornaram inviável desenvolver o plano de
48
estudo inicial, obrigando-nos a fazer um recorte mais preciso e mais
modesto. Dessa forma, abandonamos, nesse momento, a investigação
sobre a criação das reservas extrativistas e, também, das lutas por
reconhecimento das terras quilombolas, restringindo nosso foco sobre as
experiências dos Acordos de Pesca das comunidades ribeirinhas do
município de Cametá.
Apesar de centrarmo-nos apenas numa única experiência, este
trabalho não tem a pretensão de fazer um estudo de caso nos seus moldes
clássicos, não estamos trabalhando com uma perspectiva etnográfica sobre
as comunidades, pois entendemos que, apesar da riqueza desse tipo de
estudo, seu escopo é muito restritivo para a compreensão da dinâmica mais
ampla que serve de moldura a esses processos. Neste sentido, entendemos
o estudo de caso como uma espécie de caso paradigmático, no sentido que
o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) sugere. Para este autor, é
possível, metodologicamente, trabalhar com a ideia de que determinados
casos empíricos podem exercer um verdadeiro papel de paradigma para a
compreensão de um contexto mais amplo. Isso significa fugir
metodologicamente de uma lógica dedutiva (do geral para o particular) e,
ao mesmo tempo, escapar de raciocínios indutivos (do singular para o
geral), ou seja, não queremos fazer do estudo de caso sobre os Acordos de
Pesca nas comunidades ribeirinhas no município de Cametá apenas um
efeito da lógica mais ampla do que ocorre na Amazônia, do mesmo modo
que não queremos também generalizar para a Amazônia elementos que
pertencem a uma lógica particular do estudo de caso. O que queremos é
que este sirva de uma espécie de caso paradigmático capaz de oferecer
elementos de inteligibilidade de um contexto mais amplo através de
analogias, iluminações e ressonâncias que nos permitam compreender, de
algum modo, as forças que constituem a realidade amazônica hoje.
Para entendermos melhor essa a idéia de caso paradigmático a
partir da qual essa pesquisa se desenvolve, vale aprofundarmos um pouco
mais essa reflexão, neste sentido vale inicialmente destacar que trabalhar
com essa idéia significa se distanciar tanto de uma “visão de sobrevôo”
quanto de um mergulho vertical num estudo de caso específico. Explicamos
melhor essa escolha.
49
Normalmente dividimos as pesquisas a partir de dois modelos
completamente diferentes, de um lado temos aquelas consideradas
pesquisas panorâmicas construindo suas análises a partir de modelos de
generalização centrados em raciocínios lógicos-dedutivos, ou seja, que
partem do geral para o particular. Essa perspectiva analítica bastante
comum na geografia e nas analises sobre a Amazônia permite um alto grau
de generalização, mas peca por negligenciar as especificidades das
realidades particulares.
De outro lado, nós temos tipos de pesquisas que estão
concentrados em estudos de casos específicos, marcadas por um mergulho
em uma realidade local em busca de suas especificidades, a análise está
centrada em raciocínios de natureza lógico-indutivo. Esse tipo de trabalho é
muito comum no campo da antropologia com seus estudos etnográficos e
também em algumas especialidades da sociologia (estudos sobre
comunidades, grupos, tribos) esse tipo de pesquisa tem a vantagem de
mergulhar em profundidade em uma realidade, contudo, não raramente,
negligenciam aspectos fundamentais para a compreensão dessa mesma
realidade que estão em processos que se dão em escalas mais amplas.
O primeiro tipo de pesquisa de natureza panorâmica e lógico-
dedutiva produz um tipo de visão que poderíamos chamar, a partir de um
dialogo com outros geógrafos, de uma “leitura de sobrevôo” ou de uma
“visão de sobrevôo”7, ou seja, uma leitura feita de longe e do alto, que cria
7
As expressões “visão de sobrevôo” e “olhar de sobrevôo” são aqui usadas em
analogia à expressão “pensamento de sobrevôo” (pensée de survol), com a qual
Maurice Merleau-Ponty criticava, de um ponto de vista fenomenológico, a
pretensão de um “saber onisciente” e desenraizado, típico da ciência moderna:
“[a] ciência manipula as coisas e renuncia habita-las. Estabelece modelos
internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis, as transformações
permitidas por sua definição, só de longe em longe se confronta com um mundo
real” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 13). Essa crítica merleau-pontiana apresenta
evidentes pontos de convergência com as considerações de Hannah Arendt a
propósito da “alienação da Terra”, as quais serão recuperadas mais à frente
neste texto (e apresenta, ainda, uma fundamental afinidade com o espírito da
crítica de Horkheimer e Adorno contida na Dialética do Esclarecimento, publicada
muitos anos antes, da qual foram retiradas as duas epígrafes com as quais se
abriu o presente texto). A solução para o problema o foi sintetizada pelo filósofo
francês em uma bela passagem, bastante marcada por metáforas espaciais: “[é]
preciso que o pensamento da ciência – pensamento de sobrevôo, pensamento do
objeto em geral – torne a se colocar num “há” prévio, na paisagem, no solo do
mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso
corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de
50
o perigo das abstrações e generalizações frágeis, além disso, esse tipo de
visão consegue ver apenas as grandes estruturas hegemônicas que
constituem a região. Essa perspectiva não é uma exclusividade de uma
leitura sobre a Amazônia, mas uma herança epistêmica, política e
metodológica da própria geografia como ciência como bem nos afirma
Souza (2007):
informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta
silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos” (MERLEAU-PONTY, 2004,
p. 14) ( SOUZA,2007:104).
51
Os “loci de construção discursiva” da Geografia (...), ou seja, os
ambientes a partir dos quais seus discursos foram elaborados,
sempre foram, predominantemente, o Estado e,
secundariamente, o mercado capitalista; quanto aos seus “loci de
referência discursiva”, isto é, as instituições ou sujeitos coletivos
(e seus espaços) que se convertem em objeto de conhecimento,
eles sempre foram, predominantemente, também o Estado e o
mercado – mesmo que, desde a década de 70, a referência ao
Estado e ao capital seja, muitas vezes, para denunciar e objetar.
Raramente o “locus de referência discursiva” da Geografia (...)
foram ou tem sido os movimentos sociais. Ainda mais raramente
foram ou tem sido os movimentos sociais o “lócus de construção
discursiva” dos geógrafos (...). Isso tem sido, justamente, ao
mesmo tempo uma causa e uma conseqüência da “visão de
sobrevôo”. (SOUZA, 2007: 105-106)
8
Note-se que ênfase sobre a “produção do espaço” (em contraposição aos estudos
que primavam pela descrição da organização espacial e negligenciavam a
consideração dos agentes modeladores do espaço e seus papéis) não é, por si só,
garantia suficiente de que as relações sociais serão adequadamente consideradas.
Guardando a distinção ressaltada por Hannah Arendt (1983) entre o trabalho (que
é a atividade de fabricar coisas, em que os homens estabelecem relações entre si
mediadas pelas coisas ou, antes, pela fabricação das coisas) e a ação (que é a
atividade política que os homens estabelecem entre si diretamente), pode-se
indagar que mesmo a literatura assinada por geógrafos de formação nas últimas
três décadas não seria, majoritariamente, supervalorizado o trabalho e
negligenciado a ação, tendo por “filtro” ou “coador” um modo um tanto estreito de
apreender o espaço e a sua “produção” ( SOUZA, 2007, p. 111).
53
ampla da dimensão conflitiva do espaço e ao mesmo tempo permite uma
análise mais complexa da ação social, como conseqüência uma nova leitura
do sujeito e do agente. A partir desse registro, o sujeito não é somente
aquele que trabalha e que produz, mas também aquele que governa,
domina e resiste.
Mas esse deslocamento não significa cairmos num outro extremo
de uma visão que compreendemos ser problemática, que é da realização de
estudos pontuais e localizados de caráter etnográfico que vem sendo
realizados com muita freqüência hoje na Amazônia. Esses estudos sobre
comunidades tradicionais e movimentos sociais normalmente tem um
caráter antropológico muito forte e tem se constituído uma rica produção
dos estudos de caso sobre comunidades quilombolas, comunidades
ribeirinhas, acordos de pesca, reservas extrativistas, etc. Para precisar
melhor o que estamos chamando pesquisas com o desenho assentados nos
chamados “estudos de caso” vale a pena fazer uso das palavras de
Goldenberg (2009):
9
Mientras la inducción procede, entonces, de lo particular a lo universal y la
deducción de lo universal a lo particular, lo que define al paradigma es uma tercera
y paradójica espécie de movimiento, que va de lo particular a lo particular. El
ejemplo constituye una forma peculiar de conocimiento que no procede articulando
universal y particular, sino que permanece em el plano de este último. El estatuto
epistemológico Del paradigma se vuelve evidente solo si, radicalizando la tesis de
Aristoteles, se comprende que pone em cuestión la oposición dicotômica entre lo
particular y lo universal que estamos habituados a considerar como inseparable de
los procedimientos cognoscitivos y nos presenta uma singularidad que no se deja
reducir a ninguno de los dos términos de la dicotomia. El régimen de su discurso no
es la lógica, sino la analogia, cuya teoria há reconstruído Enzo Melandri en un libro
ya clásico. Y el análogon, que este produce, no es ni particular ni general. De aqui
su valor especial, que intentaremos comprender (Agamben, 2009, p.14).
10
En mis investigaciones He debido analizar figuras – el homo sacer y el
musulmán, el estado de excepción y el campo de concentración – que son, por
56
ilumina de uma maneira mais ampla um conjunto dos processos políticos do
mundo contemporâneo. Este autor sintetiza algumas características da ideia
de paradigma:
cierto, aunque em diversa medida, fenômenos históricos positivos, pero que eran
tratados em dichas investigaciones como paradigmas, cuya función era la de
constutuir y hacer inteligible la totalidad de um contexto histórico-problemático más
vasto (Agamben,2009:13).
57
estudo de um caso paradigmático ilumina o entendimento do conjunto da
realidade amazônica e permite um diagnóstico mais amplo do que a
realidade das comunidades ribeirinhas de Cametá que, apesar de uma
realidade singular, define a inteligibilidade do conjunto do qual faz parte e
que, ao mesmo tempo, a constitui.
59
A experiência nos ensinou que as subversões epistemológicas são
sempre difíceis de fazer e de assegurar não só por causa das
barreiras com que as circunda o pensamento conservador, mas
porque antes de serem presas nos conceitos, fogem provocando
novas subversões. De qualquer maneira, a construção de novos
conceitos e novos modos de olhar a vida é iniludível como para
permitir-lhes saírem de velhas prisões. Não haverá subversão
possível se não abranger o pensamento, se não inventar novos
nomes e novas metodologias, se não transformar o sentido
cósmico e o senso comum que, como é evidente, são construídos
na interação coletiva, fazendo e refazendo a sociabilidade.
(CECEÑA, 2008: 11).
11
Vainer (2005) utiliza essa reflexão para tratar da questão migratória, em
especial, sobre a relação entre violência e migração.
60
A primeira seria a emergência concreta e efetiva, diríamos
“ontológica” de processos, práticas, sujeitos, instituições, escalas, formas,
funções e significados que afetam e reconfiguram as estruturas, as ações,
as morfologias e as representações de uma certa ordem sócio-espacial.
A segunda forma de emergência do novo ocorre através de uma
reconfiguração de nossa capacidade perceptiva: “é como se determinados
processos ou práticas presentes, desde há muito tempo, na realidade social,
viessem à tona. É como se aquilo que esteve por um longo tempo situado
numa zona de sombra - algum ponto cego da teoria - ganhasse
visibilidade”. (VAINER; 2005: 254).
Para Vainer, essa última forma de manifestação do novo tem um
caráter especial, pois sinaliza para algo que estava fora do horizonte
teórico-conceitual. A questão é: Por que determinadas dimensões do mundo
real, antes invisíveis, tornam-se visíveis? Vainer (2005) fala de duas
possibilidades para responder a questão acima. A primeira tem a ver com o
objeto, com a natureza qualitativa e quantitativa do objeto analisado; e a
segunda, com a natureza qualitativa do olhar, uma reconfiguração do olhar
que inaugura nos horizontes sobre o objeto analisado.
Assim, qualificando de forma mais matizada, teríamos não duas,
mas três formas de manifestação do novo, a primeira ligada a mudanças na
“realidade concreta” e outras duas ligadas à mudança no campo de nossa
percepção teórica sobre a realidade:
A primeira forma de pensarmos o novo tem uma relação com a
emergência na “realidade concreta” de determinados fenômenos sócio-
espaciais e sócio-políticos que são inéditos, próprios de um certo
período/momento da história, ou, pelo menos, nas suas expressões
fenomênicas. É o caso da incorporação do conceito de território pelo Estado
nas políticas públicas ou da irrupção dos novos movimentos sociais latino-
americanos como movimentos indígenas, movimentos quilombolas e das
chamadas comunidades tradicionais. Movimentos nos quais as questões
étnico-raciais, de gênero, que envolvem as questões ecológicas, ganham
fundamental importância e materializam-se como lutas pelo direito ao
território. Esses são fenômenos efetivamente novos em relação a outros
momentos da história.
61
A segunda forma em que se expressa o novo tem a ver com a
densidade/expressividade histórica de determinados fenômenos sócio-
espaciais, ou seja, como determinados processos, práticas, escalas e
sujeitos mudam sua importância quantitativa e qualitativa em determinadas
conjunturas/períodos e em determinados espaços/regiões. Certos
fenômenos como, por exemplo, as lutas de resistências contra as formas de
dominação étnico-raciais têm uma longa duração de existência na história
da modernidade/colonial, contudo, durante um longo tempo, não tinham
tanta importância/expressividade como têm hoje no âmbito mais geral das
lutas sociais na América Latina e, por isso, muitas vezes permaneciam
numa zona de sombra, num ponto cego da teoria social. Hoje, todavia,
esses fenômenos intensificaram-se e generalizaram-se, ganhando maior
visibilidade no momento atual. Isso obriga-nos a rever determinados
quadros teóricos e analíticos para incluí-los como fatores relevantes para a
compreensão da realidade sócio-espacial e sócio-política da América Latina.
Já a terceira forma em que se apresenta o novo, não tem a ver
com mudanças no campo da “realidade concreta” dos fenômenos sócio-
políticos, mas sim com a nossa capacidade de percepção dos mesmos.
Trata-se de mudanças no campo do pensamento, de novas sensibilidades
epistemológicas e de novos olhares que dão visibilidade e valorização
analítica a determinadas dimensões, processos e práticas sócio-espaciais
que resultam não somente da maior densidade histórica numa determinada
conjuntura, mas da constituição de novos olhares. Nós diríamos de novas
epistemes que deslocam, re-significam e inauguram novas capacidades
perceptivas que iluminam certas problemáticas obliteradas, obscurecidas
em determinados quadros teórico-conceituais. Questões que permaneciam,
até o momento, num ponto cego de certas visões são agora iluminadas a
partir das criações de novos instrumentos conceituais ou mesmo práticas
sociais, dando visibilidade e permitindo reconhecer/identificar certos
problemas antes ignorados. Como parece ser o caso dos movimentos
sociais, políticos e culturais que sinalizam, anunciam e denunciam sobre
determinadas formas de dominação, a exemplo dos movimentos feministas,
mas também dos movimentos anti-racismos, que, com suas práticas,
inauguram novas perspectivas epistêmicas e políticas.
62
O novo apresenta-se com toda essa complexidade na realidade
latino-americana e, especialmente, na realidade da Amazônia. Isso está
expresso nas características dos novos movimentos sociais. Mas quais são
as características de novos atores protagonistas? Num diálogo com Raul
Zibechi (2005) e Boaventura de Souza Santos (2008), buscaremos
caracterizar os movimentos sociais que emergiram nas últimas duas
décadas na América Latina buscando os elementos que distinguem esses
movimentos daqueles de épocas passadas. Apesar da diversidade desses
movimentos, eles compartilham algumas características e alguns traços em
comum, dos quais vale destacar:
63
práticas emancipatórias que desafiam as antigas formas de conceber
a emancipação social;
c) Esses movimentos colocam como desafio a construção de uma ideia
de cidadania e de justiça que seja capaz, simultaneamente, de
pautar-se na igualdade e na valorização das diferenças. As
experiências emancipatórias contemporâneas, na América Latina,
mostram-nos que a agenda e as pautas de lutas dos movimentos
sociais estão referenciadas, simultaneamente, nas lutas por uma
maior redistribuição material dos recursos, ou seja, luta por maior
igualdade (luta contra exploração, privação e marginalização
socioeconômica), mas também por demandas pelo reconhecimento
das diferenças étnico-raciais, sexuais, religiosas, lutas contra as
formas de discriminação, desrespeito e preconceito contra
determinados grupos sociais;
d) Outra característica importante é a busca pela construção de uma
autonomia política e econômico-produtiva desses movimentos. Estes
buscam, através das mais diversas formas alternativas de produção,
de economias solidárias, a construção de sua autonomia material e
simbólica em relação às forças do mercado, mas também em relação
ao Estado e a outros setores da sociedade civil, como os partidos
políticos;
e) Esses novos movimentos sociais têm como característica marcante o
surgimento de novas formas e culturas de organização, que
ultrapassam os marcos tradicionais do sindicalismo, do partido.
Assim, surgem diferentes formas de associativismos,
comunitarismos, redes, “unidades de mobilização”, que combinam
diferentes formas de organização e graus de institucionalização das
ações coletivas, desafiando nossa capacidade de diagnóstico das
novas experiências emancipatórias em curso;
65
Devem ser, também, lutas por uma justiça cognitiva, ou seja, uma
luta da democratização dos saberes e conhecimentos, bem com a da
valorização de outras matrizes epistêmicas que não as do
conhecimento científico ocidental;
i) Uma última característica desses movimentos, que vale a pena
mencionar, é que esses movimentos buscam novas formas
instrumentais de ação e manifestação, inaugurando um repertório de
estratégias e táticas que passa pelas chamadas ocupações de terras,
de instituições públicas, bloqueios de estradas, de “empates” que
buscam afirmar as suas demandas e, ao mesmo, tempo deixar claros
os signos de suas identidades enquanto sujeitos sociais. Desse modo,
esses movimentos distinguem-se da classe dos antigos movimentos
operários que tinham como principal instrumento de pressão as
greves, trata-se de novas e criativas formas de usar o espaço público
como plataforma de afirmação de direitos.
66
culturais e o colonialismo e a colonialidade do poder, do saber e do
ser. Esse debate mostra como central a questão identitária e um
novo sentido de justiça capaz de abarcar simultaneamente
redistribuição e reconhecimento;
2. A segunda linha de força a ser desenvolvida teoricamente é o papel
que a natureza, o meio ambiente e os recursos naturais, de um
modo geral, vêm assumindo nas lutas e nos conflitos sociais na
América Latina. Em grande parte, os conflitos sociais também são
conflitos ambientais, e as lutas por justiça social estão diretamente
ligadas a demandas por justiça ambiental, por formas familiares,
comunitárias e coletivas de reapropriação social da natureza;
3. O terceiro elemento fundamental nesse esboço interpretativo dos
novos movimentos sociais é o papel do território como uma espécie
de “condensador” de direitos, pois a luta por maior igualdade pelo
reconhecimento da diferença, pela descolonização da sociedade e do
Estado, pelo direito aos recursos e à natureza e, consequentemente,
pela justiça ambiental, todos materializam-se no direito ao
território. Nesse sentido, a luta por direitos territoriais é a
plataforma primordial nessas novas experiências emancipatórias,
porque é a partir do território que esses diferentes povos e
comunidades buscam afirmar suas identidades, sua autonomia,
seu modo de vida, sua forma de produzir, enfim, seus diferentes
modos de existir.
Esses conceitos destacados serão desenvolvidos ao longo do
trabalho, especialmente, na primeira parte desse texto.
67
é desvio, descaminhos como gostava de afirma Walter Benjamim. Ou seja,
o método nos aponta o conjunto de regras, princípios e procedimentos que
seguiremos durante nosso itinerário de pesquisa, e supostamente nos daria
a certeza de um caminho seguro, mas também pode ser cheios de desvio,
atalhos, quase labiríntico. Na presente tese, esta preocupação – quiçá uma
pequena obsessão – ocupa lugar importante. Há o esforço por encontrar
caminhos, mas também desvios, novos itinerários de investigação e
interpretação que viabilizem novas possibilidades de expressão e exposição
das idéias. Evidentemente, não foram raras as vezes, em diversos
momentos dessa busca, que enveredamos por caminhos erráticos,
sinuosos, conduzindo-nos a labirintos quase intransponíveis. Mas, enfim, foi
no caminhar que se foi conhecendo e desenhando o próprio caminho!
Nesse trabalho, a nossa preocupação metodológica está
assentada em pelo menos três dimensões, para as quais o método se
apresenta como uma questão fundamental em qualquer pesquisa: a) o
método de interpretação b) o método de investigação c) o método de
exposição/apresentação.
a) O método de interpretação.
Discutir o método de interpretação significa tratarmos dos
pressupostos filosóficos que alicerçam a nossa compreensão geral sobre o
que é o conhecimento, a pesquisa e a realidade. O método funciona como
uma espécie de lente que fundamenta uma certa leitura da realidade. Na
geografia temos uma considerável diversidade de matrizes metodológicas
disponíveis. Neste trabalho, mobilizamos algumas dessas matrizes
construindo uma perspectiva que consideramos híbrida, mestiça, ou seja,
não construímos nossa pesquisa assentada exclusivamente em um único
referencial metodológico, mas a partir de uma diversidade de referencias.
Contudo, essa opção não é apenas um desejo de ecletismo ou a falta do
exercício da escolha. Reflete, antes, uma consciência de que a realidade é
mais complexa do que os instrumentos que as matrizes metodológicas são
capazes de nos oferecer.
Nesse sentido, o hibridismo e a mestiçagem metodológica é uma
necessidade diante da complexidade da realidade. Todavia, nem todos os
68
paradigmas interpretativos usados têm o mesmo peso e a mesma
importância, e nem são utilizadas da mesma forma. Com alguns autores e
matrizes metodológicas nosso diálogo é explicito e sistemático, já com
outros é pontual, às vezes implícito. Há casos em que os autores são uma
espécie de inspiração, como um rio subterrâneo que percorre
silenciosamente e infiltra nossa forma de ver o mundo e, mesmo que não
tenhamos dialogado abertamente com suas formulações, sua forma de
pensar afeta decisivamente a análise.
Em termos gerais, permanecem em nossa pesquisa, certos
rastros e ecos do chamado materialismo histórico e dialético,
especialmente, através de autores que se filiam a essa tradição de maneira
heterodoxa e, mesmo tendo suas formulações arraigadas na tradição
marxista, têm um pensamento mais arejado e aberto ao diálogo com outras
perspectivas teórico-metodológicas. É neste sentido que algumas intuições
e formulações de autores como E. P. Thompson, Antônio Gramsci, Henri
Lefebvre, Walter Benjamin, além do geógrafo Milton Santos influenciaram
direta ou indiretamente esse trabalho.
Além dessa vertente mais aberta do materialismo histórico-
dialético, o nosso trabalho também sofre forte influencia do pensamento
francês denominado de “pós-estruturalista”. Neste sentido, utilizamos em
vários momentos de nossa pesquisa as contribuições de pensadores como
Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, além de
uma série de outros autores influenciados pelo pensamento desses filósofos,
como é o caso da obra do filósofo italiano Giorgio Agambem, incluídos aí
alguns comentadores das produções desses autores.
Outra linha de força que atravessa nossas reflexões são as
chamadas teorias “pós-coloniais”, “descoloniais”, especialmente as
contribuições de pensadores como Stuart Hall, Homi Bhabha, além dos
trabalhos de pensadores latino-americanos como Anibal Quijano, Walter
Mignolo, Edgardo Lander, Henrique Dussel, Arthur Escobar, Santiago
Castro-Gomez, Ramon Grosfroguel, Maldonado Torres, Raul Zibechi e
Eduardo Restrepo, sem esquecer as contribuições do sociólogo português
Boaventura de Souza Santos, profundamente alinhado com essas
perspectivas teóricas pós-coloniais. Ainda identificamos outros referenciais
69
importantes na construção deste trabalho nas obras do sociólogo Pierre
Bourdieu e sua teoria da ação, assim como pelas contribuições do
historiador e antropólogo Michel de Certeau e suas elaborações sobre
táticas e estratégias no cotidiano.
Se, em termos genéricos, o nosso trabalho é atravessado por
essas linhas de forças ou influências que estão como pano de fundo
emoldurando nossas reflexões; trabalhamos de maneira mais direta com
alguns conceitos e autores para montarmos o quadro analítico-
interpretativo usado em nossa pesquisa.
Neste sentido, trabalhamos com os conceitos de território,
territorialidade e territorialização, para tal empreitada estabelecemos
um diálogo direto e explícito com as contribuições de alguns geógrafos que
trabalham com esses conceitos, especialmente, com Robert Sack ( 1986;
2011); Marcelo Lopes de Sousa ( 1996; 2006; 2010); Rogério Haesbaert (
1999; 2002; 2004; 2008; 2010), além de filósofos e sociólogos de
trabalham com algumas categorias que nos ajudaram a compreender
melhor o conceito de território como chave analítica, como é caso dos
conceitos de ação, poder, conflito e política trabalhados por pensadores
como Michel Foucault (1979; 1988; 1995; 1999; 2006); Antonio Gramsci
(1999; 2000); Hanna Arendt (2005; 2006; 2009) e Pierre Bourdieu (1990;
1996; 2006; 2009 2001).
Também fizemos uso de obras e autores que trabalharam
teoricamente com o debate sobre o conceito de identidade e identidade
territorial (filósofos, sociólogos, antropólogos e geógrafos ) dos quais vale
destacar Stuart Hall (1997; 2003; 2004 ); Manuel Castells (1996); Zigmunt
Baumam (2000; 2005); Rogério Haesbaert (1999); Pierre Bourdieu (1999);
Tomás Tadeu da Silva (2004) entre outros. Seguindo esse percurso ainda
estabelecemos uma interlocução como Alfredo B.Almeida (2006; 2008) e
Paul Little (2006), antropólogos que vêm fazendo uma reflexão sistemática
sobre os povos ou comunidades tradicionais e sua relação com as
terras de uso comum ou tradicionalmente ocupadas.
Ainda dentro da composição desse quadro analítico interpretativo,
trabalhamos com geógrafos, sociólogos e antropólogos que vem discutindo
a temática dos movimentos sociais como é caso de Boaventura Sousa
70
Santos (2005; 2006; 2008); Raúl Zibechi (2005; 2007); Albert Mellucci
(2002); Alain Touraine (1994; 2004); Arturo Escobar (1999; 2004; 2005 );
Carlos Walter Porto-Gonçalves (1999; 2002; 2005; 2008); Ana clara T.
Ribeiro (2002; 2008; 2009) entre outros.
Fechando esse quadro incorporamos as contribuições de
sociólogos e geógrafos que trabalham com debate sobre conflitos
socioambientais, justiça ambiental e lutas sociais por reapropriação
social da natureza como é o caso de Henri Acesrald (2004; 2009; 2010 );
Carlos Walter Porto-Gonçalves (1999; 2002; 2004; 2006; 2008 ) e
Henrique Leff (2000; 2004; 2006).
b) O método de investigação
Para operacionalizarmos uma pesquisa no sentido da investigação
empírica, precisamos encontrar as melhores estratégias, técnicas e
procedimentos para realizar a investigação do objeto pesquisado. A
dimensão investigativa do método remete à questão de como se produzem
os dados de uma pesquisa e sobre qual é a natureza desses dados. Nossa
pesquisa é de natureza essencialmente qualitativa e o nosso corpus de
análise é constituído basicamente de textos formais e informais, imagens,
sons e relatos.
Mesmo essa pesquisa não se enquadrando naquilo que
poderíamos considerar um estudo de caso no sentido clássico, desenho de
pesquisa típico de certas abordagens sociológicas e antropológicas sobre
comunidades, escolhemos duas comunidades como referencias para a
investigação de caráter mais empírico: as comunidades de Paruru de Joana
Coelis e a comunidade de Jorocazinho, ambas localizadas no distrito de
Joana Coelis no município de Cametá (ver Mapa 2 na página 75 ).
A escolha dessas comunidades se deve ao fato de serem as duas
experiências pioneiras no que se refere a táticas e estratégias comunitárias
de preservação da natureza e da criação de acordos de pesca no município
de Cametá. Além do caráter de pioneirismo, as experiências de Acordos de
Pesca nessas comunidades são reconhecidas como experiências de sucesso.
Buscamos, contudo, para além dessas experiências específicas, realizar uma
71
análise do conjunto das experiências de Acordos de Pesca operados no
município de Cametá como um todo.
Para realizar a presente pesquisa, trabalhamos essencialmente
com três tipos de dados. Realizamos uma análise documental a partir da
coleta de um conjunto de documentos ligados aos movimentos sociais,
às comunidades tradicionais e aos Acordos de Pesca. Coletamos ainda atas
de reunião, projetos, legislação, documentos de divulgação como panfletos,
jornais e, sobretudo trabalhamos com as setenta atas da fundação dos
Acordos de Pesca referentes a setenta comunidades distribuídas em
diferentes áreas do município de Cametá e disponibilizadas no arquivo da
sede do IBAMA localizada nesse município. A análise dessas atas foi de
fundamental importância para entendermos a estrutura normativa e o
funcionamento geral de como se constitui e funcionam essas iniciativas
comunitárias de reapropriação social da natureza e do território.
Um segundo tipo de dados ou informação que constitui o corpus
de análise dessa pesquisa é formado basicamente de coleta de um
conjunto de documentos realizadas com os atores protagonistas
diretamente envolvidos nos processos analisados. Através dessas
entrevistas buscamos compreender a percepção e a representação dos
grupos diretamente envolvidos na iniciativa de constituição dos Acordos de
Pesca. O critério de definição do universo de pessoas a serem entrevistadas
foi de ordem qualitativa. Entrevistamos aquelas pessoas apontadas pelos
próprios atores como sendo lideranças representativas, reconhecidas por
todos, como as que estavam diretamente envolvidas e que, portanto,
dominavam a totalidade dos processos e representavam a memória viva
dessas iniciativas.
Além da análise documental e das entrevistas, ainda utilizamos a
técnica da observação sistemática. Para isso realizamos dois trabalhos de
campo nos quais visitamos entidades, instituições e comunidades, no
propósito de observar de maneira mais cotidiana o modo de vida e a forma
de funcionamento dos chamados Acordos de Pesca. Nesse processo,
participamos de seminários, de reuniões, de conversas informais que
também forneceram elementos que ajudaram na sistematização das
informações e na elaboração da análise.
72
Através dessas técnicas e desses procedimentos conseguimos
uma razoável quantidade de informações. Contudo, o fato de não estarmos
diretamente envolvidos na “atmosfera” de pesquisa e de não vivenciarmos
cotidianamente a dinâmica local implicou limites no que se refere a um
mergulho mais profundo no “mundo vivido” dessas comunidades,
impossibiliando uma descrição mais “densa” do cotidiano e do universo
ribeirinho. Isso porque realizamos essa pesquisa vivendo e morando em
outra região do Brasil e essa relação de distanciamento e “estrangeirismo”
implicou perdas no que diz respeito a “sentir” de mais perto as cores, os
cheiros, os gostos, as vozes da Amazônia. Essa distancia, contudo, também
nos permitiu ver e entender determinados aspectos da realidade que
dificilmente teríamos acessado se estivéssemos imersos cotidianamente na
realidade amazônica.
Foi nessa posição liminar, de um lugar de fala fraturado, de quem
não é nem “nativo” nem “estrangeiro” que realizamos essa pesquisa. De um
lado, a condição de ser um amazônida constituído cultural e
emocionalmente no universo rural e ribeirinho afetou o modo como
conduzimos nossas escolhas e caminhos, mas ao mesmo tempo a situação
que hoje experimento também foi decisiva, pois o fato estar vivendo e
sendo afetado pela realidade de outra região do país e por outras
referencias culturais e intelectuais deslocam e ressignificam a nossa
subjetividade, a nossa sensibilidade e, conseqüentemente, nosso lugar de
fala. É nessa espécie de lócus de enunciação fronteiriço que, ao mesmo
tempo, somos íntimos e estranhos à realidade em que realizamos a
investigação.
c) O método de exposição/apresentação.
O método de exposição ou de apresentação de uma pesquisa
trata-se da forma que se dá ao conteúdo e aos resultados; é a maneira de
tornar público o resultado de uma determinada investigação através de um
texto. Apesar de a chamada “escrita científica”, além de obedecer a um
padrão ortográfico, ser orientada por um conjunto de técnicas e normas
obrigatórias na apresentação de trabalhos, não podemos reduzir o método
de exposição a uma dimensão meramente técnico-normativa. Como uma
73
dimensão do método, a exposição/apresentação das idéias é um momento
fundamental e envolve a necessidade da criação de estratégias
argumentativas e estratégias textuais de estilo e estética, não no sentido
pobre da forma pela forma, mas numa imbricação produtiva em que forma
e conteúdo se impliquem mutuamente.
Todos os grandes autores foram revolucionários pelo conteúdo
das suas idéias, mas também por novas formas de expressão, por novos
estilos de escrita que inauguraram novos modos de apresentação de idéias.
Assim, como diria o filósofo Gilles Deleuze para dizermos idéias novas
precisamos de novas formas de dizer.
Essa foi uma preocupação constante na construção desta
pesquisa, encontrar uma forma de composição do texto que expressasse a
realidade dessa pesquisa. Havia claramente, desde o início do trabalho, um
descontentamento com a forma usual e tradicional de se escrever uma tese.
A forma do tratado sistemático nos parecia um formato exaurido e a escrita
acadêmica nos parece excessivamente aborrecida e empobrecedora. Nesse
sentido, foram muitos os esforços na busca por uma nova forma de
escrever, por uma nova forma de expressão que fugisse do modelo que
consideramos pobre.
Contudo, a sensação que temos é a de fracasso, pois a busca por
novas maneiras de escrever e novas maneiras de compor se deparam com
limites quase intransponíveis, diante daquilo que é considerado canônico. A
força da tradição e o limite da nossa capacidade de expressão impediram
que conseguíssemos um êxito maior na tarefa de construção de uma tese
“inovadora” do ponto de vista da forma, o que não nos impediu, entretanto,
de arejar o discurso com a busca desses novos modos de dizer e de compor
o trabalho. Por isso, em alguns momentos, este trabalho assumirá a forma
de ensaio, expressando a busca de um maior sentido de liberdade da
linguagem, mas com a consciência de não termos conseguido superar a
estética do tratado que tanto nos incomoda.
74
MAPA 2- FONTE: ( ARNAUD, 2010).
75
“A CAIXA DE FERRAMENTAS”
76
PRIMEIRO INTERMEZZO: A TEORIA COMO CAIXA DE FERRAMENTAS:
POR UMA FORMA PROFANA DE LIDAR COM NOSSAS HERANÇAS
INTELECTUAIS
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o
significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si
mesma. Se não há pessoas para utilizá−la, a começar pelo próprio
teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o
momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem−se outras;
há outras a serem feitas. E curioso que seja um autor que é considerado
um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem
meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem,
consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é
forçosamente um instrumento de combate. (DELEUZE, 1979: 71).
12Roubar aqui nada tem a ver com o plágio, a cópia, desonestidade intelectual, segundo Gallo
(2008, p 75-6). Para Deleuze, o ato de criar em filosofia é uma espécie de roubo, na medida em
que cada filósofo entra em contato com o pensamento dos outros, mergulha em seus campos
77
outros autores, assim como podem ser criadas, inventadas de acordo com os
problemas e questões enfrentadas por cada um na sua labuta de pesquisar.
O nosso itinerário de pesquisa tem sido marcado pela procura de ideias,
autores e conceitos que nos auxiliem a enfrentar os problemas que nos colocamos
nessa investigação. Nesse percurso, o que procuramos são intercessores13. Deleuze
(2007, p.156) já afirmava que o essencial são os intercessores e, sem eles, não há
obra. O filósofo francês afirmava: “Eu preciso de meus intercessores para me
exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários,
mesmo quando isso não se vê”. Os intercessores funcionam como uma espécie de
alavancas que potencializam e injetam vitalidade ao nosso pensamento, tirando-
nos da imobilidade, da inércia diante do mundo, incitando-nos a pensar e a criar e,
desse modo, ajudando-nos a enfrentar os problemas teóricos e práticos que nossa
pesquisa impõe-nos.
Neste sentido, pesquisar significa, em parte, procurar “bons encontros”
procurar, fabricar nossos intercessores. Nessa perspectiva, nossa busca tem sido por
tudo aquilo que nos tire da imobilidade e do estupor diante do campo
problemático que envolve nossa pesquisa. Assim, no caminho, vamos apropriando-
nos de qualquer instrumento, ferramenta que nos mobilize,incite e potencialize o
pensar e o criar. Nessa trajetória, rejeitamos qualquer forma de interdição ou
proibição disciplinar, ideológica ou epistêmica a priori.
problemáticos e apropria-se de seus conceitos. Mas, uma tal apropriação, que é o próprio
aprendizado, significa uma re-criação, uma vez que os conceitos são deslocados de seu campo
problemático para um outro campo, o daquele que faz a experiência do pensamento próprio.
Neste sentido, o roubo é o contrário do plágio; plagiar é repetir, é fazer como, é imitar, é copiar.
Roubar é repetir fazendo a diferença, é fazer como inventando um novo jeito de se fazer, é
inventar de novo.
13 Essa idéia de intercessores é formulada por Gilles Deleuze, Os intercessores são quaisquer
encontros que fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem
os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento: “O essencial são os intercessores. A
criação são os intercessores. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um
cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda.
Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores.
(Deleuze, 2007: 156)
78
Sendo assim, o mais importante para nós não é qual a disciplina
(filosofia, antropologia, literatura) ou a marca ideológica de um autor ou a filiação
epistemológica de um conceito isoladamente, mas como esses instrumentos podem
servir-nos para conseguirmos pensar os problemas e questões que nossa pesquisa
exige. Essa postura não é um simples ecletismo teórico-metodológico nem um
desejo totalitário de produção de uma síntese pasteurizadora das diferenças,
porém uma atitude crítica e radical diante das tradições, classificações e filiações
que, em nome de uma certa pureza ou coerência com as heranças, acabam por
privar-nos de diálogos com muitos intercessores fundamentais para potencializar
nossa capacidade de pensar e, assim, produzem a imobilidade e esterilidade do
pensamento diante do mundo.
Essa postura remete a uma reflexão de como lidamos com nossas
heranças intelectuais. A nosso ver, há pelo menos três formas de ler/usar autores e
teorias, ou seja, três diferentes maneiras de apropriarmo-nos dos legados teórico-
conceituais de que somos, de algum modo, herdeiros14 (uma leitura
sagrada/sacralizada, uma leitura secular e uma leitura profana). Diante dessas
diferentes maneiras de lidar com a herança, gostaríamos de sinalizar o modo como
vamos lidar com as heranças intelectuais com quem vamos dialogar.
Para explicitar essas diferentes formas de usar nossas heranças
intelectuais (autores, teorias, conceitos), iremos partir da lúcida distinção entre o
sagrado e o profano e entre o secular e o profano realizada por Giorgio Agamben
(2007):
14 Essas diferentes maneiras de uso de autores e idéias são inspiradas nas formulações do filósofo
italiano Giorgio Agamben (2005). Nessa obra, o autor discutiu sobre as possibilidades e
impossibilidades do uso das coisas diante do consumo nesse momento atual do capitalismo que,
segundo o autor, tornou-se uma espécie de religião em que o consumo, a propriedade e a
mercadoria sacralizam as coisas, retirando do mundo dos homens, colocando a impossibilidade
do uso de fato. O autor formula o conceito de profanações numa perspectiva metafísica e política
de ação, que busca restituir o uso das coisas, questionando esse caráter sagrado que retira a
possibilidade subversiva do uso. Nós, inspirados nessa perspectiva, mas centrados numa
perspectiva mais epistemológica, queremos discutir as possibilidades do uso profano dos legados
teóricos conceituais dos quais somos herdeiros.
79
[...]os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa “profanar”.
Sagradas ou religiosas eram aquelas coisas que de algum modo
pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao
comércio dos homens, não podiam ser vendidas e nem dadas como
fiança, nem servidas de usufruto e nem gravadas de servidão. Sacrilégio
era todo ato que violasse ou transgredisse essa sua especial
indisponibilidade que as reserva exclusivamente aos deuses celestes
(nesse caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais
(nesse caso eram chamadas “religiosas”). E se Consagrar (sacrare) era o
termo que designava a saída das coisas do direito humano, profanar, por
sua vez significava restituí-las ao livre uso dos homens.(AGAMBEN
2007: 65) .
Em outra passagem, o autor ainda faz uma sutil, mas importante, distinção
entre a secularização e a profanação como contraponto à esfera do sagrado, que
será muito útil para nossa distinção:
81
chega, aquilo que recebemos e, ao mesmo tempo, ter que refazê-lo, ter
que reinterpretá-lo.(SKLIAR, 2008: 19)
Assim, segundo Skliar (2008), uma herança não deve ser, simplesmente, aceita,
afirmada, mas também e, sobretudo, ela deve ser reativada em outra forma, em
outra condição, a partir de certas escolhas totalmente diferentes, isso implica
aquilo que Derrida (2004) denomina de uma “fidelidade infiel”, que envolve a
condição do herdeiro.
Assim, fazer uma leitura profana, uma leitura “fielmente infiel” da herança
não significa dizer não, negar, ignorar, mas implica fazer uma leitura ativa dos
82
clássicos ou dos autores importantes. Isso significa fazer uma leitura assinada15 dos
autores, das ideias e dos conceitos, pois concordamos com Fischer (2005) quando
afirma que
15 Num diálogo com Derrida, Fischer (2005) afirma que a escrita acadêmica é a arte de assinar o
que se lê.
83
CAPÍTULO 2 - TERRITÓRIO COMO CONCEITO/DISPOSITIVO
ANALÍTICO E DE MEDI-AÇÃO PARA PENSAR AS LUTAS SOCIAIS NA
AMAZÔNIA
84
O mundo social é um lugar de lutas a propósito de palavras que devem
a sua gravidade – e a sua violência – ao fato de que as palavras fazem
as coisas, em grande parte, é ao fato de que mudar as palavras e, em
termos gerais, as representações, já é mudar as coisas. A política é no
essencial uma questão de palavras. É por isso que a luta para conhecer
cientificamente a realidade quase sempre deve começar por uma luta
contra as palavras. Ora com muita freqüência, para transmitir o saber,
devemos recorrer às próprias palavras que precisam ser destruídas para
que se conquistasse e construísse esse saber: percebe-se que as aspas
não são muita coisa quando se trata de assinalar tamanha mudança de
estatuto epistemológico (BOURDIEU, 2004: 71).
Lutar com e contra a palavra território será esta uma luta vã?
Como se apropriar, roubar, dominar ou apenas espreitar essa palavra tão
bárbara de usos tão nobres e sórdidos? Deleuze dizia que Michel Foucault
era um filósofo que “rachava as palavras”. Esse é objetivo de nossa vã luta,
“rachar a palavra”. Não para buscar um significado oculto, profundo e
misterioso que possa revelar alguma verdade secreta, mas buscar os ecos,
as ressonâncias, as vibrações que sintonizam o conceito com a vida.
Nos últimos anos, o uso da palavra território tornou-se quase
uma obsessão. No discurso e na imaginação acadêmica e política,
assistimos a uma hiperinflação do uso e abuso da palavra território. Usada
como conceito, como metáfora ou, simplesmente, como um vício de
linguagem, a palavra invadiu os mais diferentes domínios discursivos
correndo sérios riscos de uma pop-degradação16 e a consequente
banalização do seu potencial analítico e político. Compreender esse
16
Segundo Edgar Morin (2005: 336), toda teoria, método e, acrescentaríamos,
conceito correm o risco da degradação, isto é, o risco de simplificação e, desse
modo, perder sua complexidade e vitalidade como um instrumento analítico. Edgar
Morin fala de três diferentes vias pelas quais ocorre a degradação: a degradação
tecnicista; a degradação doutrinária e a pop-degradação. Na degradação
tecnicista conserva-se da teoria aquilo que é operacional, manipulador, aquilo que
pode ser aplicado; a teoria deixa de ser logos e torna-se techné. Na degradação
doutrinária, a teoria torna-se doutrina, ou seja, torna-se cada vez menos capaz de
abrir-se à contestação da experiência, à prova do mundo exterior, e resta-lhe,
então, abafar e fazer calar no mundo aquilo que a contradiz. Por fim, a chamada
pop-degradação, na qual se eliminam todas as obscuridades, as dificuldades, reduz
a teoria a uma ou duas fórmulas de choque; assim, a teoria vulgariza-se e difunde-
se à custa dessa simplificação de consumo. Esse parece ser o caso do que vem
ocorrendo, nos últimos anos, com o conceito de território.
85
movimento e tentar recuperar o potencial analítico e político do conceito de
território para pensarmos as lutas sociais na Amazônia é o objetivo desse
capítulo.
Começaremos nossa discussão a partir de uma constatação. Nos
últimos anos, o conceito de território tem assumido uma dupla
centralidade/visibilidade: uma centralidade analítica (epistemológica e
teórica) e uma centralidade empírica (histórica e política).
Do ponto de vista analítico, o território assumiu a condição de
categoria central nos trabalhos dos geógrafos, especialmente, no contexto
latino americano, com destaque para a produção da geografia brasileira. Ao
olharmos os periódicos, os anais dos encontros, os títulos de dissertações e
teses, verificamos que esse conceito hoje goza de um extremo prestígio na
comunidade geográfica. Mas essa centralidade não fica restrita ao perímetro
do campo acadêmico da geografia. Ela irradia-se com muita força para o
campo de todas as chamadas ciências sociais e humanas.
Inicialmente, na década de 1990, com a intensificação do
fenômeno da globalização, essa centralidade do espaço e do território
ocorreu no intuito de negar a dimensão espacial. Nesse período,
generalizaram-se fortes discursos nas ciências sociais que apontavam para
a desterritorialização total da sociedade. Trata-se do mito da
desterritorialização, como bem demonstrou-nos Haesbaert (2004). Após
esse movimento inicial de descoberta pela negação, as ciências sociais, em
especial algumas áreas como a Antropologia, a Sociologia, a Ciência
Política, a História, é cada vez maior o número de pesquisadores que
valorizam a dimensão espacial como um elemento importante para
compreensão da sociedade, e isso tem levado cada vez mais esses
pesquisadores a lançarem mão do conceito de território como ferramenta
analítica em suas pesquisas.
Do ponto de vista empírico, o conceito de território também
ganha uma grande visibilidade, pois tornou-se um conceito incorporado pelo
Estado nas diferentes esferas de ação/intervenção do poder estatal através
das chamadas políticas públicas. No caso brasileiro, esse movimento é
emblemático. Vários ministérios utilizam o conceito de território como um
elemento estruturante de suas formas de planejamento e intervenção. Além
86
disso, programas como “desenvolvimento territorial”, “território de
cidadania” apenas ilustram uma diversidade de usos desse conceito pelo
aparato técnico-burocrata no atual momento.
Numa outra perspectiva, mais ligada à sociedade civil, em
especial aos movimentos sociais, o conceito tem funcionado como um
dispositivo de agenciamento político, em especial, no contexto latino
americano, em que essa categoria é uma espécie de catalisador das
energias emancipatórias. Muitas vezes, ouvindo entrevistas, depoimentos e
declarações de lideranças dos movimentos camponeses, indígenas e
movimentos quilombolas e dos chamados povos ou comunidade
tradicionais, deparamo-nos com o uso da noção de território, ou melhor
dizendo, do direito ao território como algo central em suas agendas de
lutas. O uso constante da palavra território é um marcador discursivo
central na retórica desses chamados “novos” movimentos sociais.
Assim, temos sinais e indícios de que estamos diante de um novo
momento, no qual um conceito, que não gozava de muito prestígio e
permanecia nas margens da teorização em Geografia e da teorização social
em geral, passa a ocupar um papel de destaque como ferramenta
explicativa das problemáticas sociais do nosso tempo. Além disso, torna-se
um importante dispositivo de intervenção social e política, tanto para atores
hegemônicos quanto para atores subalternos.
Portanto, o conceito de território assume uma centralidade que,
para compreendermos, temos que ter claro que ela é fruto,
simultaneamente, das mudanças na dinâmica social, mudanças de caráter
ontológico, especialmente, nos aspectos sociopolíticos, mas também
precisamos estar atentos a mudanças epistemológicas que vêm ocorrendo
no campo do pensamento social como um todo.
No que se refere às mudanças no campo do pensamento social,
podemos verificar que, nas últimas décadas, surgiram novas teorias da
ação, da política e do poder nas ciências sociais e na filosofia. Nesse
sentido, podemos listar várias contribuições, desde aquelas situadas no
campo do materialismo histórico, como, por exemplo, a teoria política de
Gramsci17 e a teoria do Estado de Poulantzas até aquelas que estão para
17
Apesar de Gramisc não ser um autor contemporâneo, no sentido de que sua
87
além do materialismo histórico, como é o caso da analítica do poder de
Michel Foucault, da teoria da razão prática de Pierre Bourdieu, da teoria dos
agenciamentos e da micropolítica de Felix Guattari e Deleuze. Podendo-se
incluir nessa lista relevantes contribuições oriundas dos estudos culturais,
dos estudos pós-coloniais, das teorias antirracistas, das teorias feministas,
das teorias queer, além do vigoroso pensamento descolonial latino-
americano.
Portanto, quando falamos da centralidade do território, estamos
referindo-nos a uma nova forma de pensar a ação, o poder e a política
influenciados por uma nova realidade e um novo movimento no campo do
pensamento social. Normalmente, quando nos referimos a esse conceito,
sentenciamos que se trata de trabalhar a dimensão política do espaço. De
fato, é isso, mas não é somente isso. As novas concepções de território
buscam tratar não simplesmente da política, todavia de uma forma
especifica de pensar e agir politicamente. Uma forma de pensar o poder e a
política que se liberte da economia política e de uma visão Estadocêntrica,
em que toda luta é, ou deveria ser, uma luta de classe e pelo Estado. Essas
novas concepções teóricas e as novas práticas realizadas pelos movimentos
sociais inauguram novos horizontes para pensarmos os fenômenos que
envolvem a dominação, a resistência e os conflitos.
O conceito de território é o meio pelo qual a Geografia esforça-se
para dialogar com as novas configurações que a realidade vem assumindo e
com as novas formas de pensar que vêm ganhando força no pensamento
social. O conceito de território é a ferramenta de leitura que a Geografia
pode oferecer no sentido de compreendermos os novos fenômenos políticos
que emergem na realidade social.
Porém, se o conceito de território vem ganhando essa dupla
centralidade (analítica e política), o seu uso como uma ferramenta
intelectual ainda carece de esclarecimentos e aprofundamentos teóricos e
metodológicos. Nos últimos anos, o conceito tem ganhado uma profusão de
usos e significados no campo das Ciências Sociais. Essa diversidade é sinal
obra foi produzida na primeira metade no século XX, a apropriação do seu legado, a
partir de uma leitura mais arejada do marxismo, vem sendo feita efetivamente
somente nas últimas décadas, especialmente, no contexto latino-americano, por
isso incluímos esse movimento como algo novo no campo do pensamento social.
88
de riqueza, mas também de confusão e imprecisão teórico-metodológica,
com importantes consequências éticas e políticas.
Na tentativa de tornar mais preciso e operacional o uso do
conceito de território, faremos uma breve discussão de caráter
metodológico no uso de tal conceito.
89
metodológicos mais amplos, como se fosse possível o uso do conceito
isolado de uma teoria e de um método.
O ponto de partida para uma reflexão sobre o conceito é nos
interrogarmos sobre qual sua natureza, ontológica ou epistemológica? Por
exemplo, qual a natureza das diferenças entre conceitos como espaço,
território e lugar? Quando falamos em conceitos como espaço, território e
lugar, não há muito clareza sobre a natureza das semelhanças, diferenças e
especificidades entre esses conceitos. Normalmente o tratamento dessa
relação (proximidade, vizinhança, semelhança, mas também
distanciamento, distinção e contraste) entre esses conceitos é marcado por
muita confusão, pois corriqueiramente não há muita clareza se essas
distinções são de natureza ontológica (no nível concreto da realidade) ou
epistemológica (no plano analítico, diferentes planos de análise e a partir de
bases teórico-metodológicas distintas).
A diferença é ontológica ou epistemológica? O caminho mais
comum tem sido uma distinção ontológica, os conceitos são vistos como se
esses existissem como entidades “reais”, completamente distintas e
externas umas das outras. Mas há, também, posições que afirmam que os
conceitos são construções intelectuais, instrumentos analíticos que se
distinguem uns dos outros no plano epistemológico e nada têm a ver
diferenças “reais” no nível ontológico. Essa ambiguidade requer uma maior
clareza de qual é a natureza do conceito, pois grande parte dessa
ambiguidade é fruto da falta de clareza e passa pela própria forma como a
natureza do conceito foi pensando historicamente pelas diferentes correntes
do pensamento filosófico.
Segundo Haesbaert (2009), ao longo do percurso histórico,
encontramos posições que se estendem no interior de um amplo continuum
que vai desde a posição estritamente realista até aquela completamente
idealista.
90
que não tem outro compromisso senão o de servir ao pesquisador
enquanto instrumento de análise (HAESBAERT, 2009: 96).
18
Ver Bourdieu; Chamboredon e Passeron (2004).
91
de “meio”, já que o conceito também, sempre, acaba por acionar, “fundar”
realidades. (HAESBAERT, 2009:97).
Assim, o conceito não deve ser procurado, pois não está aí para
ser encontrado. O conceito não é uma “entidade metafísica”, ou
um “operador lógico”, ou uma “representação mental”. O conceito
é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado,
produzido, a partir de condições dadas e opera no âmbito mesmo
destas condições. O conceito é dispositivo que faz pensar, que
permite, de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito
não indica, não aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o
pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que
nos põe a pensar. Se o conceito é produto, ele é também
produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos
conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida
em que é o conceito que recorta o acontecimento, que o torna
possível. (GALLO, 2008: 43)
19
Essa caracterização é feita por Deleuze (1990) sobre a filosofia de Michel
Foucault, por ele considerada uma filosofia dos dispositivos.
92
contorno, maior nitidez e resolução a certos aspectos, dimensões e
fenômenos da realidade, do mesmo modo que produzem uma contraluz,
penumbras e sombras que obscurecem, secundarizam outros elementos da
realidade. Do mesmo modo que cada conceito cria uma nova linha, um
novo regime de enunciação, que torna possível, que justifica, legitima,
também interdita e exclui determinados modos de falar, narrar
determinados aspectos e determinadas problemáticas da realidade. Assim,
cada conceito inaugura novas capacidades perceptivas, novas sensibilidades
frutos das novas linhas de visibilidade e enunciação que cada conceito
inaugura quando é criado, inventado ou usado .
Dessa forma, por exemplo, quando falamos que o conceito de
território tem como foco fundamental a questão do poder e da política e que
o conceito de lugar permite-nos fazer uma leitura que tem como foco a
dimensão da experiência vivida, do cotidiano, a dimensão mais poética,
sensível e subjetiva da dimensão espacial, o que estamos indicando são os
diferentes regimes de luz e de enunciação que cada conceito inaugura sobre
a realidade sócio-espacial. Estamos falando das linhas de luz e de
enunciação de cada conceito, aquilo que permite vermos e falarmos de
certos aspectos da realidade num primeiro plano e secundarizarmos outro.
No conceito de território, o poder e a política estão no foco das linhas de luz
e de enunciação, em contrapartida, a experiência sensível e poética está
nas sombras e penumbras do conceito; já, no conceito de lugar, aquilo que
apreendido com alto grau de resolução é muito mais uma poética do espaço
do que a política do espaço, as questões que envolvem o poder e conflito
estão nas sombras e penumbras das linhas de luz do conceito de lugar.
As linhas de visibilidade e de enunciação é que criam e instauram
a especificidade contrastante entre os conceitos, pois, nas zonas de
penumbra, os conceitos e seus problemas aproximam-se e ordenam-se com
semelhanças. Assim, por exemplo, quando olhamos a linhas de luz e
enunciação entre as principais conceituações de território e lugar, há uma
clara diferença entre o foco desses conceitos. Mas, quando olhamos para o
aspecto periférico de cada conceito, nas suas zonas de sombra, vemos
elementos que se assemelham, por exemplo, à questão do pertencimento e
da identidade que tanto um quanto outro conceito recobre parcialmente.
93
b) Linhas de força
Os conceitos são se resumem às linhas de visibilidade/enunciação,
não se restringem a esse jogo de presenças e ausências, de falas e silêncios
que as linhas de luz e enunciação produzem, não são uma simples operação
óptica, são também relações de força e poder. Os conceitos criam linhas de
força que rasgam o caos do real, instituindo realidades, classificando,
hierarquizando visões e di-visões do mundo social. Os conceitos não são
somente descritivos ou reveladores do mundo e da realidade, mas eles são
também constitutivos e produtores do mundo e da realidade. Isso implica
ver os conceitos como ferramentas analíticas e também como dispositivos
ético-políticos de intervenção no mundo. Nesse sentido, ao produzirmos ou
usarmos um determinado conceito, não estaremos realizando uma mera
operação cognitiva, mas, ao mesmo tempo, uma ação epistêmica, ética e
política.
Assim, o fato de o conceito de território ter seu foco, sua linha de
luz e enunciação sobre o fenômeno do poder,
dominação/resistência/conflito e colocar na sombra e penumbra outros
elementos como dimensão da experiência mais subjetiva e sensível das
práticas sócio-espaciais tem implicações éticas e políticas concretas. Do
mesmo modo que o regime de luz, que o conceito de lugar lança sobre o
real, permite chegarmos à densidade e espessura existencial do viver,
também tem claras implicações éticas e políticas. Seguindo esse raciocínio,
parece pertinente a formulação de Gallo (2008) quando afirma que:
94
c) Linhas de objetivação
As linhas de luz e de força criam as linhas de objetivação, que são
uma espécie de lente de objetivação, lente para ver o mundo, instaurando
uma forma específica de compreensão e intervenção no mundo ou, melhor
dizendo, uma forma de compreensão-intervenção no mundo. Essas linhas
de visibilidade/enunciação/força/objetivação remetem, diretamente, à
questão dos problemas ou campo de problematizações do qual um conceito
emerge e, também, ao solo epistemológico/teórico/metodológico que o
sustenta.
20
Essa reflexão está inspirada e, parcialmente, ancorada na discussão que GONDAR
(2005) faz sobre o conceito de memória social.
95
sobre as diversas concepções de território pode parecer aberta à diferença,
mas, de fato, encobre uma pretensão totalizante em que as diferenças
esvaem-se, pois o fato de o conceito de território apresentar diferentes
significações, isso não implica que sejam idênticas ou equivalentes.
Qualquer perspectiva que tomemos será parcial e terá implicações éticas e
políticas. Assim, lidar com a multiplicidade não significa não fazer distinções
do ponto de vista ético e político, bem como também tornar um conceito
mais flexível, não significa que este não possa ter rigor teórico e
consequência metodológica.
A combinação entre abertura e rigor e entre precisão e
criatividade são qualidades fundamentais para a formulação de um conceito
de território capaz de responder às questões do nosso tempo. Esse parece
ser o grande desafio epistêmico, ético e político na nossa pesquisa.
Queremos advertir que não temos o interesse de fazer uma
exaustiva revisão do conceito de território. A nossa opção metodológica
desloca-se da forma mais tradicional de se fazer história social do conceito,
em que o objetivo é fazer uma gênese do termo/palavra/tema, recuperando
seu percurso contínuo através do tempo no campo disciplinar da geografia e
fora dela, porque essa tarefa escapa aos objetivos dessa pesquisa e,
mesmo, tal empresa já foi realizada com qualidade e brilhantismo por
outros autores. Também não queremos, simplesmente, definir
arbitrariamente o que é território ou tomar emprestada uma definição já
formulada e encerrar qualquer discussão a respeito do conceito.
Preferimos usar outra estratégia metodológica, que busca traçar a
genealogia do problema (a ideia), recuperando não as continuidades, mas
as descontinuidades, as rupturas, os momentos de emergências de novas
formas de ver e enunciar o problema. O nosso objetivo é dialogar com a
tradição acumulada, com as formulações e autores mais importantes desse
campo teórico, porém a partir de uma estratégia metodológica precisa, que
busca fazer uma genealogia do problema, ou melhor, do campo de
problematizações do qual o conceito de território emergiu, ganhou uma
configuração lógica e histórica e proliferou-se teoricamente.
Trata-se de uma estratégia que busca explicitar as problemáticas
ou o campo de problematizações da relação entre sujeitos sociais, espaço e
96
poder para, dessa forma, traçar um quadro mais preciso e delinear com
mais clareza os contornos e as propriedades que envolvem tal conceito.
Trata-se de buscar um aprofundamento metodológico no uso de tal
conceito, tanto no sentido de torná-lo mais vivo e, potencialmente, mais útil
em termos de sua eficácia analítica e legitimidade política na interpretação
de determinadas problemáticas sociais. Assim como construir um modus
operandi, que torne tal conceito uma ferramenta operacional nas
estratégias de investigação empírica, tornando o conceito menos abstrato e
mais sensível à dimensão empírica dos fenômenos histórico e
geograficamente situados, como o caso, aqui abordado, as lutas e os
conflitos sociais envolvendo comunidades tradicionais na Amazônia
brasileira, foco fundamental desse trabalho.
Para trabalharmos metodologicamente com um conceito, é
necessário aprofundarmos pelo menos cinco questões: i) A primeira tem a
ver com o caráter assinado de cada conceito, com o locus de enunciação de
cada conceito; ii) A segunda refere-se à dimensão histórica de um conceito,
à relação entre a historicidade, validade e legitimidade de uma criação
conceitual; iii) A terceira questão envolve a natureza complexa e
heterogênea do conceito; iv) A quarta envolve a relação entre os conceitos
e problemas ou entre a criação de conceitos e o campo de problematizações
que dão sentido à existência de um conceito; v) Por fim, discutiremos a
relação entre o conceito e plano de imanência ou o solo
epistemológico/campo teórico-metodológico a partir do qual ele opera21.
21
Nossas reflexões estão diretamente inspiradas nas formulações de Deleuze e
Guattari(1991) e nos comentários de Gallo (2007) sobre a obra desses filósofos.
Contudo, trata-se de um diálogo livre, de uma apropriação “bárbara” das ideias,
uma leitura assinada, pois os autores localizam suas reflexões sobre o conceito,
exclusivamente, no campo da filosofia, único domínio, segundo os autores, em que,
de fato, criam-se e inventam-se conceitos.
97
conceitos é uma espécie de “assinatura do mundo”: cada autor assina
o mundo à sua maneira, por meio dos conceitos que cria. Mas
entendemos que a “marca” e a “assinatura” dos autores no conceito
está além do estilo filosófico e de sua singularidade como escritor,
essas marcas têm a ver, também, com a condição social, a situação e
localização geo-histórica e bio-política dos “sujeitos-autores” ou, seja,
do lócus de enunciação de onde fala o autor que cria um conceito.
2. Todo conceito tem uma história. Entender a historicidade de um
conceito significa entender que ele é construído num momento
histórico específico a partir de problemas também específicos. Além
disso, todos os conceitos são marcados por acúmulos, heranças e
continuidades dentro de um campo disciplinar e de uma tradição
teórica, mas também por rupturas, descontinuidades e sobressaltos.
Ainda, devemos lembrar a radical historicidade dos conceitos pela sua
capacidade de duração e longevidade ou pela sua defasagem e
superação, pois os conceitos têm sua validade, capacidade de
operacionalização analítica e legitimidade política e ideológica
expostas ao movimento da história que aprofunda, redefine, re-
significa ou supera-os.
3. Segundo Deleuze e Guattari (1991), não há conceito simples, todo
conceito é complexo, pois “todo conceito tem componentes, e se
define por eles. Tem, portanto uma cifra. Todo conceito tem um
contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes”. Assim,
não há conceito construído a partir de um único elemento, todo
conceito é uma multiplicidade “formado por componentes e define-se
por eles; claro que totaliza seus componentes ao constituir-se, mas é
sempre um todo fragmentado, como um caleidoscópio, em que a
multiplicidade gera novas totalidades provisórias a cada golpe de
mão” (GALLO, 2008, p.40). Nesse sentido, podemos entender que o
conceito é uma questão de articulação, corte e superposição, o
conceito é um momento, um ponto de coincidência, de articulação e
condensação de vários elementos lógicos e históricos, criando uma
configuração singular. Entende-se, portanto, que um conceito nunca
é criado do nada, mas, sim, de uma multiplicidade de situações; é
98
resultante de uma heterogênese de cruzamentos de problemas,
outros conceitos e acontecimentos.
4. Todo conceito só pode ser compreendido a partir do problema ou do
campo de problematizações no qual foi criado e formulado, pois todo
conceito é criado e formulado à luz de problemas específicos,
problemas estes que podem ser reformulados e recolocados de
maneiras diferentes ao longo da história.
5. Cada conceito é uma tentativa de dar conta de questões específicas,
construídas num determinado momento histórico a partir de um solo
epistemológico e de campo teórico-metodológico próprio, uma vez
que todo conceito está localizado num plano de imanência. Ele brota
de um solo epistemológico especifico a partir do qual é formulado o
problema que ele supõe responder. Isso implica que todo conceito
opera a partir de um campo teórico-metodológico específico e é a
partir dessas referências que os conceitos permitem-nos fazer uma
leitura-intervenção singular no mundo.
101
problemáticas que envolvem questões eminentemente políticas, já outros,
ligados a questões de pertencimento, cultura e identidade.
Do mesmo modo que algumas formulações dão-se a partir de
posturas mais “academicistas”, a partir de “intelectuais puros”, outras estão
mais ligadas ao universo da militância de lutas políticas concretas, em que
os papéis dos conceitos adquirem outra qualidade, sendo formulados por
“intelectuais orgânicos” que vivem entre a academia e a política.
Essas diferentes “marcas”, “localizações” que revelam o lócus de
enunciação do conceito, um lugar de fala do sujeito epistêmico, aparecem
na forma como cada autor assina seus conceitos e deixa sua assinatura no
mundo.
103
Apesar de existirem importantes formulações e autores nessas
três direções teóricas, elas não têm o mesmo peso e importância na
produção dos geógrafos. A concepção que tem o foco na dimensão mais
política do espaço é, de longe, a mais desenvolvida e a mais usada pelos
geógrafos. Embora, cada vez mais, a abordagem de caráter mais cultural
ganhe força na paisagem intelectual contemporânea devido a um
movimento mais amplo de centralidade epistemológica que a cultura vem
assumindo nas ciências sociais nas últimas duas décadas (a chamada virada
cultural). Já no que se refere à concepção mais ligada a uma abordagem
marxista, na qual a dimensão econômica ganha centralidade, o conceito de
território é pouco desenvolvido, pois, nessa abordagem, o conceito de
espaço assume o status de categoria de análise fundamental.
A concepção jurídico-política do território é a mais utilizada e a
que tem a mais longa história na tradição da Geografia, mas a forma como
foi formulada não foi sempre a mesma. A problemática ou campo de
problematização que envolve essa forma de conceber o conceito de
território esteve, histórica e intimamente, ligada à questão do poder ou,
melhor dizendo, do exercício do poder no e através do espaço, porém a
forma como foi tratado esse problema do ponto de vista teórico e prático
mudou bastante ao longo da história.
Inicialmente, esse problema era equacionado a partir da relação
poder/espaço/Estado. Assim, desde as origens na Geografia e,
especialmente, na Geografia Política, o uso do termo território esteve ligado
à análise da relação do território como fundamento material do Estado. Os
estudos de Ratzel personificam essa visão. Em sua análise, o território é
entendido como fundamento da existência material do Estado; a relação
solo, cultura e Estado é analisada a partir da ideia de “espaço vital”, ou
seja, o território como um recurso fundamental, algo imprescindível para o
desenvolvimento dos povos, pois “sem território não se poderia
compreender o incremento da potência e da solidez do Estado22”.
Essa ótica de leitura do território e do poder tornou-se
paradigmática. Mas, muitas vezes, mostrou-se reducionista e claramente
104
ideológica, pois, devido à sua tradição geopolítica, tornou-se muito
estadocêntrica, limitando o conceito de território aos problemas
circunscritos à escala nacional e privilegiando o Estado como o único ator
protagonista23. Desse modo, acabava-se confundindo o conceito de
território com território nacional, admitindo-se sua existência somente de
maneira monoescalar, e fazendo-se uma leitura do fenômeno do poder
como este sendo de natureza exclusivamente estatal.
Recentemente, os avanços na leitura do fenômeno do poder, este
entendido como relação e não como posse, e a constatação da existência de
uma microfísica do poder, por Michel Foucault (1979), permitiram uma
reflexão mais completa sobre a territorialidade humana, apontando para um
entendimento de que o poder é imanente às relações sociais. Além da
compreensão de que as formas de manifestação do exercício do poder
podem dar-se em múltiplas escalas, envolvendo uma multiplicidade de
atores sociais. Inspirado nesse raciocínio, Raffestin (1993), em Por uma
Geografia do Poder, afirma que a “territorialidade se manifesta em todas as
escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria
possível dizer que, de certa forma, é a „face vivida‟ da face agida do poder”
(RAFFESTIN, 1993: 162).
Partindo dessa perspectiva do território como espaço por
excelência do exercício do poder de maneira multidimensional e
multiescalar, surgem outras importantes formulações como a de Robert
Sack (1986), na qual ele enfatiza que a ideia de territorialidade está
diretamente vinculada ao controle de uma área geográfica, aos limites
delimitados pelo poder, buscando disciplinar, moldar, influenciar ou
controlar o comportamento pelo controle do acesso. A territorialidade é
definida por este autor como “a tentativa de um indivíduo ou grupo de
afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relações, através da
delimitação e da afirmação do controle sobre uma área geográfica” (SACK,
1986, P. 1).
23
Ver crítica de Raffestin (1993) e Souza (1995) sobre essa visão reducionista de
pensar o conceito de território.
105
podem ser as suas formas mais familiares, mas a territorialidade
ocorre em vários graus e em inúmeros contextos sociais. Ela é
usada nas relações do dia a dia e nas organizações complexas. A
territorialidade é uma expressão geográfica primária do poder
social. Ela é um meio pelo qual o espaço e o tempo estão inter-
relacionados (SACK, 1986: 6, tradução livre).
24
Souza (1995) faz um esforço para construir uma formulação que dei ênfase nas
relações sociais, fugindo de uma visão “coisificada” do território que ele crítica “sem
sombra de dúvida. O exercício do poder pode depender muito diretamente da
organização espacial, das formas espaciais, mas falamos dos trunfos espaciais da
defesa do território e não do conceito de território em si”.
107
visto, sobretudo, como produto da apropriação/valorização simbólica do
espaço através do imaginário e/ou da identidade social. Sob esse ponto de
vista, o território é, sobretudo, “um construtor de identidade, talvez o mais
eficaz de todos”. (BONNEMAISON & CAMBREZY, 1996:13)
Essa visão consolidou-se, principalmente, na chamada “nova
geografia cultural”, na qual a visão do território é fundamentalmente um
referencial na construção das identidades. Nesse sentido, a relação dos
homens para com os seus territórios expressa e transcende a "posse"
material de uma porção da superfície terrestre. “O poder do laço territorial
revela que o espaço é investido de valores não somente materiais, mas
também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos”. (BONNEMAISON;
CAMBREZY, 1996:10).
108
impressos o sentido da vida alimentado de geosímbolos e rico de memória,
o território é um dado incontornável da experiência humana, convivial (?)
mais do que conflituosa inscrita no tempo e no espaço e no qual ninguém
pode se libertar” (p.17)
Nessa paisagem, ainda podemos encontrar perspectivas que
trabalham na interface entre duas perspectivas analíticas: a jurídico-
política, que aponta para uma análise no aspecto político-disciplinar do
território; e culturalista, que dá ênfase à dimensão cultural-simbólica. Uma
perspectiva mais integradora de território, que opera na interface dessas
concepções, foi formulada por Haesbaert, que define:
110
presentes de maneira central nas principais formulações do conceito
de lugar na geografia humanista. Diante dessa situação, qual a
especificidade do conceito de território?
2) Essa primeira limitação é fruto de outra mais estrutural que é a falta
de clareza da base teórica e metodológica em que cada formulação
está ancorada, a ideia de ênfase de dimensões da realidade: a
política, a econômica e a cultural/simbólica passam a ser os
indicadores definidores das formulações. Não há uma relação e uma
vinculação explícitas de cada formulação com seu solo epistemológico
e campo teórico-metodológico mais amplo, a não ser no caso da
ligação da concepção mais economicista com o marxismo
(materialismo histórico e dialético).
Essas duas questões colocam-nos como necessidade uma
discussão mais aprofundada sobre a complexidade do conceito e sobre a
relação entre o conceito e o problema/campo problemático e, também,
sobre a relação entre o conceito e plano de imanência/solo
epistemológico/campo teórico-metodológico. E o faremos em seguida.
111
situações; é resultante de uma heterogênese de cruzamentos de
problemas, outros conceitos e acontecimentos.
Sendo assim, todo conceito só ganha sentido a partir do conjunto
de outros conceitos, a partir um de conjunto de relações e inter-relações
entre elementos e conceitos, construindo redes, teias, constelações e planos
conceituais. Sobre essa ordenação, conexão e inter-relação entre os
conceitos no mesmo plano, Deleuze e Guattari (1992) afirmam:
112
Assim, para buscamos sua especificidade, sua condição absoluta
como uma possibilidade singular de resposta a um problema específico,
precisamos entender seu caráter relativo, no que se refere a seus
componentes e a outros conceitos; relativo aos problemas aos quais se
dirige, relativo em relação ao seu contexto disciplinar. Nesse sentido, é
fundamental traçarmos as coordenadas relacionais do conceito de território
em relação com os outros conceitos estruturantes do campo disciplinar da
Geografia como é o caso dos conceitos de espaço, lugar, paisagem, região,
rede etc., mostrando suas relações, suas interseções, suas sobreposições e
suas diferenciações contrastantes, enfim, suas especificidades.
Já no que se refere ao plano interno, precisamos analisar os
elementos conceituais, os conceitos que compõem o conceito território,
pois, segundo Gallo (2007), todo conceito é o ponto de coincidência, de
condensação, de convergência de seus componentes, que permitem uma
significação singular, um mundo possível, em meio à multiplicidade de
possibilidades. Nesse mesmo sentido, Deleuze e Guattari (1992:30)
afirmam que:
113
os conceitos derivados, aqueles que surgem a partir de um conceito central
e nuclear construindo uma família, uma rede conceitual que normalmente é
mobilizada no seu conjunto. Seguindo o nosso exemplo do conceito de
território, podemos identificar uma família de conceitos derivados desse
conceito nuclear: territorialidade, territorialização, des-territorialização, re-
territorialização, identidade territorial, direito territorial, justiça territorial
etc.
114
Assim, cabe perguntar quais problemas ou campo de
problematizações estão ligados aos conceitos criados no campo da
geografia? Conceitos como espaço, território, lugar a que problemas
querem responder? É o problema subjacente a cada conceito que vai
definir o foco analítico do conceito, as linhas de visibilidade/enunciação, as
linhas de força e as linhas de objetivação. Assim, mesmo que os conceitos
de espaço, lugar e território aproximem-se, tenham semelhanças, pois
todos têm um objetivo comum, que é nos ajudar a fazer uma leitura das
espacialidade/ou geograficidade do social, os problemas, as questões que
cada um desses conceitos permite-nos visualizar e tratar são distintas por
conta dos problemas diferentes que cada conceito busca responder.
Portanto, suas diferenças contrastantes dão-se no campo
analítico, de acordo com cada problema ou campo problemático que o
conceito permite-nos tratar, e não no campo ontológico como, muitas
vezes, determinadas formulações relacionam conceitos como território e
lugar a determinados fenômenos específicos, como se fossem quase
dimensões da realidade espacial. O primeiro mais ligado à política e o
segundo, à cultura e à experiência subjetiva e simbólica. Assim, certo
espaço passa a ser qualificado como território a partir da ocorrência de
determinados processos e relações sociais, qualificadas como políticas e de
poder, ou o espaço passaria a ser um lugar a partir da valorização e
apropriação afetiva e emocional dos sujeitos. Os exemplos dessa forma de
pensar os conceitos são muitos. Vamos às duas mais famosas e, talvez,
influentes distinções: Raffestin (1993), no que diz respeito à relação espaço
e território; e Yfu Tuan (1983), no que se refere ao conceito do espaço e do
lugar.
Esse tipo de raciocínio obscurece a operacionalização de um
conceito como território, por exemplo, quando distingue do conceito de
espaço como faz Raffestin (1993). Esse autor começa sua famosa e
supracitada formulação alertando que há muita confusão entre geógrafos no
uso dos termos espaço e território. O autor, a partir do pressuposto de que
esses termos não são equivalentes, mas sim distintos (apesar de não
discutir profundamente essa distinção), e partindo desse pressuposto,
sinaliza uma consideração epistemológica na qual coloca o espaço na
115
condição de uma noção e território na condição de um conceito. O conceito
para o autor tem um formalização/e ou quantificação mais precisa (o
conceito seria mais rigoroso e preciso do que a noção).
A partir dessas considerações de caráter epistemológico, o autor
formula sua distinção afirmando que “é essencial compreender que o
espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço”.
116
“primeira natureza”) sobre o qual reproduzimos nosso trabalho e
exercemos poder. O território, tal como fica implícito em certas
passagens do autor, privilegiaria a dimensão política (sobretudo a
estatal) desse espaço socialmente produzido.
119
formulação do conceito de território? Nós entendemos que sim, o modo
sobre o qual se formula o conceito de poder interfere diretamente na
maneira de pensarmos o conceito de território.
Quando olhamos rapidamente a forma com que os geógrafos
trabalharam o conceito de poder e a relação com o território, verificamos
que diferentes fontes filosóficas foram mobilizadas. Assim, nós temos
aqueles que trabalham com uma leitura inspirada diretamente na teoria da
ação social e das formas de dominação de Max Weber como, por exemplo,
Paul Claval, em seu livro “Espaço e poder”. De outro modo, vamos ter
geógrafos como Marcelo Lopes de Souza que, na sua formulação de
conceito de território, lança mão do arsenal de conceitos produzido pela
filósofa política Hannah Arendt, dentre os quais vale destacar a distinção
que essa faz entre poder, violência, força, autoridade, entre outros. Além
disso, uma importante contribuição dessa pensadora é um claro
deslocamento da categoria trabalho para a categoria da ação, distanciando-
se de uma leitura marxista da política. Ainda continuando sua formulação
entre território e autonomia, Souza mobiliza os debates sobre poder e
autonomia do filósofo Cornelius Castoriadis.
Já, quando verificamos a forma de conceber território do geógrafo
Claude Raffestin, verificamos que o autor dialoga diretamente com as
formulações sobre o poder do filósofo francês Michel Foucault. Todavia,
Raffestin usa, na sua elaboração sobre a relação espaço e poder, as
contribuições de outro filósofo francês, Henri Lefebvre, criando em suas
próprias formulações uma tensão entre essas diferentes concepções.
Henri Lefebvre e Michel Foucault também são as referências
essenciais nas formulações do conceito de território realizadas por Rogério
Haesbaert. Nessas formulações, também se apresenta uma tensão entre
esses dois referenciais teóricos, mas, progressivamente, este autor vem
dando mais ênfase ao uso do legado foucaultiano nas suas formulações
para pensar o conceito de território, além da incorporação das contribuições
de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre as ideias de territorialização e
desterritorialização e de micro-política.
Michel Foucault também aparece como referencial fundamental nas
formulações dos conceitos de território e territorialidade na obra de Robert
120
Sack, na qual o geógrafo americano utiliza-se, explicitamente, de algumas
contribuições do filósofo francês.
Assim, quando verificamos as diferentes concepções de
territórios, vemos que, em todas elas, há explicita ou implicitamente um
modo de compreensão de que é o poder, a ação política, o conflito e, de
maneira mais ampla, certa forma de conceber política. Apesar dessa
diversidade de interpretação, há um ponto comum nessas formulações.
Todas elas, em maior ou menor grau, distanciam-se de uma perspectiva
marxista de compreensão do poder e da política, mesmo nas formulações
nas quais aparece a influência de um marxista heterodoxo como Lefebvre.
Essa influência é tensionada por uma leitura foucaultiana do poder. Nesse
sentido, compreendemos que a formulação do conceito de território foi
produzida por geógrafos na tentativa de pensar a questão do poder e da
política para além dos parâmetros metodológicos do marxismo.
Compreendemos, também, que esse conceito oferece uma leitura da
realidade sócio-espacial distinta daquelas leituras pautadas numa economia
política do espaço e centradas na ideia de produção social do espaço.
Mas, apesar de haver um claro deslocamento metodológico da
leitura da realidade sócio-espacial, nem sempre isso parece claro. Sendo
assim, há ainda muita confusão sobre a especificidade do conceito de
território e sua função analítica. Não raramente, esse conceito é mobilizado
como sinônimo de espaço ou quando não é usado com a justificativa de
privilegiar uma dimensão política da realidade sócio-espacial. Afirmar que o
conceito de território trata da questão do poder e da política não é
suficiente para explicitar a sua especificidade analítica. O que o conceito de
território oferece-nos de mais rico é uma leitura do fenômeno do poder e da
política para além da matriz metodológica do marxismo. Isso de modo
algum significa que não exista uma leitura marxista da política, como bem
demonstra importantes obras de geógrafos e de filósofos como, por
exemplo, Milton Santos, David Harvey, Henri Lefebvre, Gramisci, entre
outros, mas essas contribuições já estão presentes na ideia de produção
social do espaço. Desse modo, o que o conceito de território acrescenta é
uma outra perspectiva de leitura da espacialidade, em suas expressões
políticas e conflitivas, o que permite, também, um outro modo de leitura da
121
ideia de sujeito e do conflito que extrapola as ideias de classe, lutas de
classe, ou mesmo outras expressões do conflito de classes, como a
clivagem público-privado, valor de troca e valor de uso.
Nas últimas décadas, surgiram novas teorias da ação, da política
e do poder nas ciências sociais e na filosofia que apontam para uma leitura
mais complexa dos conflitos inerentes à realidade sócio-espacial. Nesse
sentido, além daquelas anteriormente citadas, podemos listar várias
contribuições, desde aquelas situadas no campo do materialismo histórico,
mas com um foco mais acentuado na política do que na economia política
como, por exemplo, a teoria política de Gramisci25 e a teoria do Estado de
Poulantzas até aquelas que estão para além do materialismo histórico,
como é o caso da teoria da Ação e da política de Hanna Arent, da analítica
do poder de Michel Foucault, da teoria da razão prática de Pierre Bourdieu,
da teoria dos agenciamentos e da micropolítica de Felix Guattarri e Deleuze
e da teoria das práticas cotidianas de Michel De Certeau. Podemos ainda
incluir nessa lista relevantes contribuições oriundas dos estudos culturais e
dos estudos pós-coloniais (Stuart Hall, Canclini, Homi Babha, Eduard Said),
das teorias anti-racistas, das teorias feministas, além do vigoroso
pensamento descolonial latino-americano (Aníbal Quijano, Ramon
Grosfoguel, Castro-Gomes, Arturo Escobar, Enrique Dussel, Walter Mignolo,
Edgardo Lander etc).
25
Apesar de Gramisci não ser um autor contemporâneo, no sentido de que sua obra
foi produzida na primeira metade no século XX, a apropriação do seu legado a
partir de uma leitura mais arejada do marxismo vem sendo feita, efetivamente,
somente nas ultimas décadas, sobretudo, no contexto latino-americano, por isso
incluímos esse movimento como algo novo no campo do pensamento social.
122
2.9. Deslocamentos metodológicos (interpretativos e investigativos)
para pensar o conceito de território
26
A palavra/conceito de “governo” em Foucault está para além do sentido restrito
com que comumente a/o usamos, pois usamos normalmente tal palavra/conceito
para referirmo-nos a uma instituição. É neste sentido que falamos de Governo da
República, o governo municipal, o governo do Estado – é essa instituição do Estado
que centraliza ou toma, para si, a caução da ação de governar (Veiga-Neto, 2005).
Mas “governo”, nas formulações de Michel Foucault, extrapola esse significado
restrito indicando um sentido de ação, ato de governar, práticas de governo e não
somente instituições.
124
Para se compreender a espacialidade a partir de uma abordagem
territorial, é necessário analisarmos as relações e as práticas sócio-espaciais
como relações/práticas de força. Isso significa fugir de uma leitura que
interpreta a ação somente como produção, ou a ação como
significação/comunicação, ou, ainda, como experiência sensível e poética
para realizarmos uma leitura que compreende a ação como estratégia e
tática entre diferentes grupos antagonistas em conflito. Desse modo, fazer
uma leitura da ação territorializada significa analisar os conflitos, as
disputas, os afrontamentos nas suas mais diversas expressões.
127
SEGUNDO INTERMERZZO: DESLOCALIZANDO OLHARES E NARRATIVAS
SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA AMAZÔNIA: UM PEQUENO
EXERCÍCIO DE DESCOLONIZAÇÃO DE NOSSA IMAGINAÇÃO GEOGRÁFICA.
129
1. Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas – entre seus
descobrimentos culturais – aqueles que resultavam mais aptos para o
desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu.
2. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis
medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento dos
colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus
padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. A repressão neste campo
foi reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura entre os índios da
América ibérica, a que condenaram a ser uma subcultura camponesa, iletrada,
despojando-os de sua herança intelectual objetivada. Algo equivalente ocorreu
na África. Sem dúvida muito menor foi a repressão no caso da Ásia, onde portanto
uma parte importante da história e da herança intelectual, escrita, pôde ser
preservada. E foi isso, precisamente, o que deu origem à categoria de Oriente.
3. Terceiro lugar, forçaram – também em medidas variáveis em cada caso– os
colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que
fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material,
tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da
religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou no longo
prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou
outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do
imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da
cultura. (QUIJANO, 2005, p.237)
28 O conceito de violência epistêmica é usado por Santiago Castro-Gomes (2005) em um diálogo com
formulação da pensadora indiana Gayatri Spivak,.
130
aniquilação da diversidade e riqueza epistêmica do mundo, resultado do caráter
totalitário da racionalidade moderna expressa no exclusivismo epistemológico,
pautados na ciência moderna que desqualificou e exterminou uma infinidade de outras
epistemes e “outras formas de conhecer”. Isso mostra de maneira muito clara o vínculo
entre a ciência moderna e o exercício do poder colonial. Desse processo permaneceu
uma profunda colonização epistêmica que resultou em uma cosmovisão claramente
arraigada no eurocentrismo, expressos nas formulações teóricas, na forma como
construímos nossos conceitos, na maneira como estabelecemos nossas interpretações,
comparações de fenômenos históricos e sociais e, enfim, na maneira de produzimos
conhecimentos, modos de significação e de produção de sentido ao mundo.
Essa herança colonial permanece ativa e atuante na produção de
conhecimento sobre Amazônia, especialmente sobre determinados grupos, como é o caso
das representações e narrativas produzidas sobre as chamadas “comunidades e povos
tradicionais”. A colonialidade atua de várias maneiras invisibilizando, folclorizando,
esteriotipando esses grupos. O que faremos a partir de agora é discutir essas estratégias
de subalternização política, epistêmica e ética, buscando fazer um exercício de
descolonização do pensamento, deslocando o lócus de enunciação para uma perspectiva
subalterna/descolonial.
Historicamente sedimentou-se no imaginário social um conjunto de
representações/narrativas, imagens e ideologias sobre a Amazônia e, em particular,
sobre as comunidades e povos que tradicionalmente se territorializaram na região
(índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros,
populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.). Esse conjunto de
representações/narrativas, com uma forte imaginação geográfica colonial, ainda hoje
está presente no discurso do Capital, do Estado, da mídia, das ONGs e em parte da
produção da academia. Esses diferentes “olhares” vão de um extremo ao outro, da
construção do estereótipo que conduz a um processo de estigmatização cultural – ou
mesmo à invisibilidade de tais populações – à idealização romântica e idílica do
chamado “caboclo Amazônida”. Mas todas essas formas de narrativas têm em comum
131
como efeito a subalternização das populações amazônidas, em especial, das chamadas
“comunidades ou povos tradicionais ”.
Desse modo, podemos enumerar, pelo menos hegemonicamente, três “modos
de ver” as “comunidades e povos tradicionais” presentes nesse conjunto de
representações/narrativas: (1) um “olhar naturalista”, (2) um “olhar romântico
tradicionalista” e (3) um “olhar moderno/colonial”. Em contraponto a essas formas
hegemônicas, percebemos a emergência de “outra forma de olhar”, um olhar
subalterno/descolonial construído pelos próprios sujeitos que, através dos movimentos
sociais nas lutas sociais de r-existência, vêm construindo novas
representações/narrativas e novas geo-grafias descoloniais.
132
humana e histórica, produzindo a não existência e a invisibilidade das comunidades
ditas “tradicionais”. Esse olhar produz a supressão, o silenciamento dessas populações e,
desse modo, produz uma geografia das ausências e uma história de silêncios. Esse “modo
de ver” sempre esteve presente na história da região, seja nos relatos dos antigos
viajantes, seja na mídia atual, ou ainda nos planos e planejamentos do Estado, na
produção científica sobre a região e com especial força nos currículos escolares,
materializados, sobretudo, através dos livros didáticos.
Esses dispositivos discursivos do poder-saber sempre deram uma extrema
“significância à natureza e uma in-significância ao homem” (DUTRA, 2003). Essa visão
pode ser verificada claramente nas imagens construídas sobre a região, pois é comum
nos livros didáticos, nos jornais, na televisão a presença de fotografias com floresta, rios e
animais sendo apresentadas como paisagens-símbolos da região, mesmo que quase
80% da população da Amazônia sejam considerados pelo IBGE como urbana29. Tal
exemplo mostra como essa forma de narrar/representar a região é simplificadora,
realiza uma operação de subalternização que produz um efeito de metonímia, uma parte
(a natureza) representa o todo (natureza e sociedade) e, nesse processo, os sujeitos
históricos, seus saberes, suas culturas são apagados. Trata-se de uma verdadeira
violência epistêmica contra essas comunidades, ou seja, uma forma de exercício do
poder que produz a invisibilidade do outro, expropriando-o de sua possibilidade de
representação e de sua autorepresentação.
29Apesar da problematização que podemos fazer sobre o conceito de urbano usado nessa pesquisa e
também as metodologias empregadas, o fato é que é um dado contundente que afeta as representações
da Amazônia como um espaço rural somente de floresta, um “espaço selvagem”.
133
é o “autêntico”, o “original”, o “verdadeiro”, a “tradição”, “o exótico”. Essa idealização vê
o “caboclo” como o “bom selvagem” que ainda não cometeu “o pecado original da
modernidade” – é como se a cultura e a história pudessem ser congeladas e não houvesse
interações multidimensionais e multiescalares entre as culturas, os sujeitos e os lugares.
As diferenças e as identidades são vistas como algo “natural”, como “essências” a-
históricas, e não como fenômenos históricos e socialmente produzidos. Trata-se de olhar a
diferença pela diferença.
Essa perspectiva consagra uma visão antropológica ingênua e relativista,
ignorando que as identidades e as diferenças são construídas historicamente sempre de
maneira relacional e contrastiva (HALL, 2004), dentro dos contextos históricos e
geográficos marcados por lutas de poder, conflitos e contradições, e que, não raramente,
as diferenças e identidades são demarcadas não só por formas de marcações e
classificações simbólicas, mas também por profundas desigualdades e exclusão social
(WOODWARD, 2004).
Esse tipo de olhar e de narrativa estão assentados sob uma estrutura mítica
de conceber o tempo-espaço, o mito fundador do bom selvagem que se atualiza de
diversos modos, através de diversas formas de expressão. Como nos sugere Marilena
Chauí (2004) os mitos fundadores como narrativas e como uma modalidade específica
de discurso tem uma estrutura espaço temporal muito particular30
A partir deste complexo entrecruzamento de sentidos, o mito fundador,
segundo Chauí (2004, p.9), “impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto
é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por
isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente
como tal; “um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para
30
Marilena Chauí (2004) constrói uma conceituação, entrelaçando os sentidos etimológico,
antropológico e psicanalítico do mito. Para a autora, no sentido o etimológico, o mito seria a narração
pública de feitos lendários da comunidade; já o antropológico remeteria à capacidade desta narrativa
em ser a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para
serem resolvidos em nível da realidade; e, na acepção psicanalítica, o mito implicaria num impulso à
repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede de lidar com
ela (CHAUÍ 2004, p.9).
134
exprimir-se, novas linguagens, novos valores e novas idéias de tal modo que, quanto mais
parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. (CHAUÍ, 2004, p.9).
Para explicitar melhor a natureza e a estrutura do mito fundador, Chauí
(2004) propõe a fecunda e elucidativa distinção entre formação e fundação. Para a
autora, quando os historiadores falam em formação, referem-se não só às determinações
econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento histórico, mas à
transformação e, portanto, à continuidade ou à descontinuidade dos acontecimentos,
percebidos como processos temporais. Nesse sentido, complementa: “Numa palavra, o
registro da formação é a história propriamente dita, aí incluída suas representações,
sejam aquelas que concebem o processo histórico, sejam as que ocultam (isto é,
ideologias)” (CHAUÍ, 2004, p.9).
Diferentemente da formação, a fundação refere-se a um momento passado
imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do
tempo; isto é, a fundação visa algo tido como perene (quase eterno) que traveja e
sustenta o curso temporal que lhe dá sentido (CHAUÍ, 2004).
136
Olhar moderno/colonialista: o estereótipo.
138
3. A distorcida relocalização temporal de todas essas diferenças, de modo que tudo
aquilo que é não-europeu é percebido como passado. (QUIJANO, 2005, p.238).
139
Essa cosmovição cria uma forma muito particular de pensar a relação
espaço-tempo. Segundo Doreen Massey (2004), todas essas narrativas compartilham de
uma imaginação geográfica que rearranja as diferenças espaciais em termos de
sequência temporal, suprimindo, desse modo, a espacialidade e a possibilidade da
multiplicidade e da diferença. “A implicação disso é que lugares não são considerados
genuinamente diferentes; na realidade, eles estão simplesmente à frente ou atrás numa
mesma história: suas “diferenças” consistem apenas no lugar que eles ocupam na fila da
história” (p.15).
Isso significa que os lugares e as populações são tratados como se estivessem
numa fila histórica que vai do estágio dos mais “selvagens” até os mais “civilizados”, dos
mais “atrasados” aos mais “avançados”, dos mais “subdesenvolvidos” aos mais
“desenvolvidos”. Nessa forma de conceber e classificar as experiências sociais e os
lugares e, consequentemente, as identidades, as populações denominadas “tradicionais”
são classificadas como “atrasadas” e “improdutivas” em detrimento dos tempos e espaços
que são “modernos”, “avançados” e “produtivos”. Assim, essa visão colonialista
caracteriza as expressões culturais de tais populações como “tradicionais” ou “não
modernas”, como estando em processo de transição em direção à modernidade, e lhes
nega toda possibilidade de lógicas culturais ou de cosmovisões próprias. Ao colocá-las
como expressão do passado, nega-se sua contemporaneidade (Lander, 2005).
Trata-se de uma representação/narrativa que celebra cosmovisão da
modernidade/colonialidade, instituindo um imaginário em que se atribui, a priori, uma
positividade ao novo, ao moderno, e uma negatividade ao velho, ao passado, ao
tradicional. Essa perspectiva de compreensão da história e da realidade está pautada
em uma ideologia do progresso e em uma espécie de “fundamentalismo do novo”. O
geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2005) usa essa expressão para chamar a
atenção para a obsessão do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade,
pela mudança, pelo progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas
de violência cometidas em nome do “desenvolvimento” e da “modernização”.
140
Esse “fundamentalismo do novo” está presente em um conjunto de práticas e
representações marcadas pela violência e pelo colonialismo que serviam e ainda servem
para justificar a subalternização das populações que historicamente viveram na
Amazônia (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros,
castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.).
Tais populações e seus modos de vida “tradicionais” são vistos como
obstáculos ao “desenvolvimento”, pois nessa visão se assinala um único futuro possível
para todas as culturas e todos os povos (a modernização ocidental capitalista e a
sociedade de consumo urbano-industrial). Nessa perspectiva, aqueles que não
conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão destinados a
desaparecer. As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as
outras formas de conhecimento são transformadas não só em diferentes, mas em carentes,
arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas e, como afirma Lander (2005), são
situadas, num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no
imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade
Esse processo de negação da contemporaneidade é expresso na forma da
“invenção da residualização” (Sousa Santos, 2006) das chamadas “comunidades
tradicionais”: estas populações e seus modos de vida, suas temporalidades, suas
racionalidades econômicas são vistos como o resíduo, o anacrônico, um desvio da
racionalidade capitalista e do modo de vida moderno urbano-industrial. Esta visão se
personifica nas ideias de que essas populações representam o primitivo, o tradicional, o
pré-moderno, o simples, o obsoleto, o subdesenvolvido. Isso fica bem claro através da
atribuição às populações “tradicionais” do estereótipo do “caboclo”, indivíduo
“ignorante”, “atrasado”, “lento”, “indolente” e “improdutivo”.
141
tradicionais. Uma primeira estratégia narrativa opera através de um processo de
invisibilização fruto de uma produção sistemática da não existência dessas
comunidades, uma verdadeira “violência epistêmica” que realiza um apagamento
desses grupos da geografia e história da Amazônia. Já uma segunda estratégia,
romantiza, focloriza e mistifica esses povos e comunidades atualizando o mito do “bom
selvagem”, retirando esses grupos da real dinâmica social em que vivem e, do devir
histórico. Uma terceira variante dessas narrativas coloniais, a mais propagada, produz o
estereótipo desses povos e comunidades como esses fossem primitivos, atrasados,
ignorantes e improdutivos, por estes pertencerem ao passado e não ao presente, uma
negação da contemporaneidade dessas culturas e modos de vida.
Para superarmos essas narrativas precisamos fazer um deslocamento do lócus
de enunciação, construir outras narrativas a partir de outro lugar de fala, olhar essas
comunidades não do lado triunfal da modernidade, mas sim do lado escuro: a
colonialidade e a diferença colonial, ou seja, narrar a modernidade colonial a partir de
suas “vítimas” e com isso desconstruir o mito da modernidade/colonial.
Assim, “olhar” a partir das “vitimas” significa revelar o seu lado oculto, uma
outra face (a colonialidade) da modernidade, seu lado mítico que esconde a violência e
a irracionalidade da modernidade/colonial onde o ego cogito oculta o ego conquiro (eu
conquisto). Esse lado mítico da modernidade/colonial está presente nas teorias e
ideologias que sustem as narrativas coloniais. Na verdade, esse lado mítico sintetiza o
próprio projeto “civilizatório” da modernidade colonial Esse mito pode ser descrito
segundo Dussel (2005, p. 64-65) da seguinte forma:
142
4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve
exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos
dessa modernização (a guerra justa colonial).
5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que
é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de
sacrifício; o herói civilizador reveste as suas próprias vítimas da condição de
serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo
africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera).
6. Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo
civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como
inocente, mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas.
7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se
como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos
outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo
por ser frágil.
143
é supressão da multiplicidade contemporânea do espaço e o segundo é a redução da
temporalidade a um único tempo. (MASSEY, 2005)
Segundo Massey (2005), essa cosmovisão tem algumas consequências na
forma como pensamos o espaço, o tempo e a política, pois se trata de uma imaginação
(uma conceituação implícita) a qual esconde a possibilidade de analisarmos a produção
da desigualdade do mundo que se realiza na atualidade. Além disso, essa imaginação
geográfica reduz a diferença entre países, regiões ou lugares a uma posição “na fila
histórica”; isso, por sua vez, produz um efeito decisivo: nega a igualdade de voz, sendo
uma maneira de depreciar, negar que somos verdadeiramente coetâneos - a existência
de coetâneos de uma multiplicidade é uma propriedade essencial do espaço afirma
Doreen Massey
Essa forma de conceber o tempo, espaço e as diferenças estão claramente
ancorada na grande “narrativa” universal da modernidade/colonial; é uma forma de
imaginação geográfica, uma leitura do mundo que opera através de uma
transformação, uma reorganização da geografia (uma simultaneidade espacial de
diferenças) em uma única fila histórica (uma sucessão de etapas e períodos). Assim, cada
vez que caracterizamos um país, uma região, uma cultura como “atrasada”, como
“primitiva” negamos sua diferença atual. Além disso, esse tipo de raciocínio naturaliza
essas desigualdades em forma de diferença, impedindo uma reflexão política sobre os
processos e as relações que produzem as desigualdades, as diferenças e as hierarquias.
Esta cosmologia de “uma única narrativa” oblitera as multiplicidades, as
heterogeneidades contemporâneas do espaço. Reduz as coexistências simultâneas a um
lugar na “fila da história”. (MASSEY, 2005).
A crítica a essa forma de compreendermos espaço-tempo implica em novos
compromissos epistemológicos, políticos e éticos. Doren Massey (2005) sugere uma nova
forma de imaginação geográfica, a construção de uma nova “cosmovisão” que
reconstrua a relação entre tempo e espaço, construindo uma nova narrativa que não seja
uma narrativa colonial do mundo, mas uma narrativa descolonial. Desse modo,
questiona se não devemos imaginar os diferentes lugares, territórios e culturas como
144
tendo suas próprias trajetórias, suas próprias histórias específicas e o potencial para seus
próprios, talvez diferentes, futuros.
Para construirmos uma narrativa descolonial é preciso pensar o espaço como
esfera da possibilidade da existência da multiplicidade; isso implica segundo Massey
(2004), em colocar a questão da diferença no centro do debate político, permitindo
pensarmos na existência de múltiplas vozes, múltiplas temporalidades, múltiplas
histórias na contemporaneidade, descentrando uma perspectiva etnocêntrica, que
afirmam histórias locais como universais, mas que são particulares; entretanto, pelo
exercício do poder e do saber, subalternizam outras histórias, temporalidades, sujeitos e
saberes.
Portanto, para Massey (2004), a verdadeira possibilidade de qualquer
reconhecimento sério da multiplicidade e da diferença depende, ele próprio, de um
reconhecimento da espacialidade.
Desse modo, autora conclui que para que haja histórias múltiplas,
coexistentes, deve existir espaço. Em outras palavras: “o pleno entendimento da
espacialidade envolve o reconhecimento de que há mais de uma estória se passando no
mundo e que essas estórias têm pelo menos, uma relativa autonomia”. (MASSEY, 2004,
p.15). Nesse sentido, o espaço deve ser entendido como: “uma simultaneidade de histórias
inacabadas, o espaço como um momento dentro de uma multiplicidade de trajetórias. Se
o tempo é a dimensão da mudança, o espaço é a dimensão da multiplicidade
contemporânea”. (MASSEY, 2005).
145
Com essa nova concepção do tempo e do espaço podemos superar as
narrativas coloniais sobre os povos e comunidades tradicionais, pois compreender o
espaço como uma multiplicidade de trajetórias nos coloca, segundo Massey (2005), uma
questão política fundamental: Como vamos viver juntos? Como vamos conviver ou
coexistir? O espaço nos oferece o desafio (o prazer e a responsabilidade) da existência
dos “outros”.
146
CAPÍTULO-3 IDENTIDADES TERRITORIAIS, RECONFIGURAÇÕES
IDENTITÁRIAS E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA
3.1. Introdução
Ao observarmos as notícias veiculadas na mídia escrita ou
televisiva sobre a Amazônia, seja na escala regional, nacional ou
internacional, poderemos verificar que, quase cotidianamente, aparecem
manchetes sobre conflitos sociais na região. Tais conflitos envolvem
diferentes atores, dentre os quais poderíamos, genericamente, destacar as
“comunidades tradicionais” (índios, pescadores, populações quilombolas,
seringueiros, trabalhadores rurais etc.), que lutam para permanecer nos
territórios por elas historicamente ocupados. Territórios estes marcados por
formas de apropriação coletiva e familiar da terra e dos recursos naturais
que garantem a reprodução física, social e cultural dessas comunidades.
Como um dos principais antagonistas dessas “comunidades
tradicionais”, temos o Estado como agente ordenador do território que,
através da construção de infraestruturas como barragens, campos de
147
treinamento militar, base de lançamento de foguetes, áreas reservadas à
mineração, áreas de conservação, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos,
vêm afetando, de várias maneiras, os territórios dessas populações.
Para completar esse cenário de antagonismos e conflitos, temos a
territorialização do Capital na região, expresso através das diferentes
frações do capital - velhos e novos capitais - , com suas estratégias
territoriais de produção e reprodução que vêm produzindo,
sistematicamente, subalternização e desterritorialização das “comunidades
tradicionais”. Dentre as estratégias, podemos destacar: a construção de
usinas de ferro-gusa, carvoarias, siderúrgicas, indústrias de papel e
celulose, refinadoras de soja, frigoríficos e curtumes, mineradoras,
madeireiras, empresas de energia elétrica, laboratórios farmacêuticos e de
biotecnologia etc.
Essa realidade, com alto grau de conflitividade, foi produzida e
intensificada pelo modelo que orientou o processo de ocupação da
Amazônia nas últimas décadas. Este modelo, chamado de economia de
fronteira, esteve pautado na ideia de progresso e de desenvolvimento como
crescimento econômico e prosperidade infinita, com base na exploração de
recursos naturais, também eles percebidos como infinitos (BECKER, 1996).
A premissa organizadora desse modelo de ocupação e
apropriação do território era a crença no papel da modernização como a
única força capaz de destruir as superstições e relações arcaicas, não
importando o seu custo social, cultural e político. A industrialização e a
urbanização eram vistas como inevitáveis e, necessariamente, progressivos
caminhos em direção à modernização (ESCOBAR, 1998).
Esse projeto de modernização conservadora materializado nos
planos e planejamentos do Estado autoritário e na implantação de “grandes
projetos”, a partir da década de 1960, produziu um novo ordenamento
territorial em que não havia espaço para as “comunidades tradicionais”
(índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros,
castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.).
Suas formas, coletiva e familiar, de apropriação da terra e dos recursos
148
naturais baseados na pequena agricultura e no extrativismo31, além de seus
modos de vida, eram vistos como um obstáculo ao desenvolvimento e ao
progresso, pois, nessa visão, assinala-se um único futuro possível para
todas as culturas e todos os povos: a modernização ocidental capitalista e a
sociedade de consumo urbano-industrial.
Assim, junto com o projeto de modernização implantado na
Amazônia, chegou a cosmovisão da modernidade pautada em um conjunto
de “magmas de significação”, que criaram um imaginário em que se atribui
a priori uma positividade ao novo, ao moderno e uma negatividade ao
velho, ao passado, ao tradicional. Essa perspectiva de compreensão da
história e da realidade está baseada numa ideologia do progresso e numa
espécie de “fundamentalismo do novo”32, presentes num conjunto de
práticas e representações marcadas pela violência e pelo colonialismo que
serviam e ainda servem para justificar a subalternização das populações
que historicamente viveram na região.
Nessa perspectiva, aqueles que não conseguissem incorporar-se a
esta marcha inexorável da história estavam destinados a desaparecer. As
outras formas de organização social, cultural e territorial de sociedade, as
outras formas de conhecimentos, sociabilidades e direitos são
transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas,
tradicionais, pré-modernas, situadas num momento anterior ao
31
Formas de uso comum designam situações nas quais o controle dos recursos
básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo
doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal
controle dá-se através de normas específicas, combinando uso comum de recursos
e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos
meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que
compõem uma unidade social. (...) As práticas de ajuda mútua, incidindo sobre
recursos naturais renováveis, revelam um conhecimento aprofundado dos
ecossistemas de referência. A atualização dessas normas ocorre, assim, em
territórios próprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas, inclusive
pelos circundantes. A territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e
força, mesmo em se tratando de apropriações temporárias dos recursos naturais,
por grupos sociais classificados muitas vezes como “nômades” e “itinerantes”.
Laços solidários e de ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobre
uma base física considerada comum, essencial e inalienável, não obstante
disposições sucessórias porventura existentes. (ALMEIDA, 2006:2).
32
Gonçalves (2005) usa essa expressão para chamar a atenção para a obsessão
do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo
progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas de violência
cometidas em nome do desenvolvimento e da modernização.
149
desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no imaginário do
progresso, enfatiza sua inferioridade (LANDER, 2005).
Assim, o avanço da fronteira econômica e demográfica na
Amazônia significou uma radical mudança nos padrões fundiários e na
forma de apropriação da terra e dos recursos naturais na região, visto que a
terra deixa de ter somente um valor de uso e passa a ter um valor de troca,
transforma-se em mercadoria, institui-se o mercado de terras. Assim como
a legitimidade da posse que, até então, estava fundada nos direitos
consuetudinários ou “direitos costumeiros” é substituída pela legitimidade
assentada no ordenamento jurídico estatal, fundado no direito liberal-
individual, expresso nos títulos de propriedade da terra. Nesse sentido, a
“fronteira é, pois, a transição, no tempo e no espaço, da terra valor de uso
para a terra valor de troca, mediado pelo capital. Em outras palavras, é o
processo de transformação social do significado, material e simbólico da
terra” (LEVINAS e RIBEIRO, 1991:73).
Essas mudanças implicaram profundos processos de des-
territorialização e subalternização das “comunidades tradicionais” na
Amazônia. Mas essa violência e subalternização que a
modernização/colonial trouxe para a região, sobretudo pelo avanço da
fronteira demográfica e econômica, passa a ser questionada por
organizações sociais camponesas que ganhavam expressão e configuração
através, sobretudo, dos chamados sindicatos de trabalhadores rurais e,
mais tarde, em algumas regiões, através do movimento dos trabalhadores
sem terra – MST. Esses dois protagonistas, juntamente com algumas
entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR) e alguns partidos políticos de
esquerda, completavam o quadro dos atores que lutavam pelo acesso à
terra e por melhores condições de vida para as populações rurais da região.
No final da década de 1980, ocorrem sensíveis mudanças na
dinâmica política dos conflitos sociais do mundo rural na Amazônia,
especialmente, pela emergência de uma espécie de “polifonia política”, ou
seja, da emergência de uma diversidade de novas vozes, novos sujeitos
políticos, novos protagonistas que emergem na cena pública e nas arenas
políticas. A partir desse momento, começam a ganhar força e objetivação,
em forma de movimentos sociais, as reivindicações de uma diversidade de
150
grupos sociais denominados ou autodenominados de populações/povos
tradicionais ou, como mais recentemente estes autodenominam-se,
comunidades tradicionais.
A partir de então, começa a esboçar-se uma nova geo-grafia33 na
Amazônia que aponta para um processo de emergência de diversos
movimentos sociais, que lutam pela afirmação das territorialidades e
identidades territoriais como elemento de r-existência das “comunidades
tradicionais”. Trata-se de movimentos sociais de r-existência, pois não só
lutam para resistir contra os que exploram, dominam e estigmatizam essas
populações, mas também por uma determinada forma de existência34, um
determinado modo de vida e de produção, por diferenciados modos de
sentir, agir e pensar.
Nesse sentido, os movimentos sociais lutam contra as diferentes
formas de subalternização material e simbólica, contra preconceitos e
estigmas e pela afirmação de suas identidades a partir dos seus próprios
modos de vida. As “comunidades tradicionais” organizam-se, ganhando
visibilidade e protagonismo, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos
políticos na luta pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos
relacionados a suas territorialidades e identidades territoriais.
Nesse contexto, vem ocorrendo a constituição de novos sujeitos
políticos e a emergência de “novas” identidades territoriais construídas
pelas “comunidades tradicionais” nas lutas sociais pela afirmação material e
simbólica dos seus modos de vida. Essas identidades emergentes na
Amazônia, construídas pelos diferentes movimentos sociais (índios,
ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros,
populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.), estão
orientadas no sentido da superação de velhas identidades coletivas ligadas
a um discurso moderno/colonial que se fundamentava na invisibilização, na
romantização e, em especial, na estigmatização e no estereótipo do
33
Gonçalves (2004) propõe pensar a Geografia não como substantivo, mas como
verbo ato/ação de marcar a terra. É desse modo que podemos falar de nova geo-
grafia, em que os diferentes movimentos sociais re-significam o espaço e, assim,
com novos signos grafam a terra, geografam, reinventando a sociedade.
34
Expressão cunhada por Gonçalves (2001) para mostrar que as lutas desses
movimentos sociais têm um significado social e cultural mais profundo do que uma
simples reação.
151
“caboclo” para (des)qualificar as populações como “atrasadas”,
“ignorantes”, “indolentes”, “improdutivas”, considerando tais populações
como um obstáculo a um projeto moderno urbano-industrial para a
Amazônia.
Assim, esses movimentos apontam para o caráter emancipatório
das lutas pautadas numa politização da própria cultura e de modos de vida
“tradicionais”, numa politização dos “costumes em comum” produzindo uma
espécie de “consciência costumeira”35 que vem re-significando a construção
das identidades dessas populações que, ancoradas nas diferentes formas de
territorialidade, afirmam-se num processo que, ao mesmo tempo,
direciona-as para o passado, buscando nas tradições e na memória sua
força, e aponta para o futuro, sinalizando para projetos alternativos de
produção e organização comunitária, bem como de afirmação e
participação política.
Essas populações mobilizam estratégica e perfomaticamente
estes novos discursos identitários na busca de reconhecimento de sua
cultura, memória e territorialidade que, historicamente, foram
marginalizadas, suprimidas, silenciadas e invisibilizadas e que, agora,
começam a tornar visível o que era invisível, em voz o que foi silenciado,
em presenças as ausências e, desse modo, iluminam a r-existência e o
protagonismo dessas populações na construção da história e da geografia
da região.
Para discutirmos tais questões, organizamos esse capítulo em
três partes. Na primeira, realizaremos uma discussão teórica e
metodológica sobre o conceito de identidade e identidade territorial. Já no
segundo momento, analisaremos as condições de emergência da questão e
(re)configuração identitária nas lutas sociais na Amazônia, discussão que
35
Expressão usada por Thompsom (1998) para referir-se à emergência de uma
consciência política e de uma cultura plebéia rebelde que buscava, nos costumes e
na tradição, a legitimidade das suas lutas para afirmação de determinadas formas
de direitos consuetudinários e da economia moral em oposição à economia
capitalista e do direito liberal. Os camponeses resistem, em nome do costume, às
racionalizações econômicas e inovações (como o cercamento de terras comuns, a
disciplina no trabalho e os mercados „livres‟ não regulados de grãos) que
governantes comerciantes ou patrões buscavam impor. Trata-se de atribuir um
conteúdo emancipatório para as culturas tradicionais normalmente vistas como
sinônimas de conservadorismo.
152
será tratada na terceira parte. Por último, buscaremos construir uma
síntese de caráter teórico-metodológico apontando pressupostos
fundamentais para pensarmos a questão identitária hoje na Amazônia.
153
diferença passaria a ser o ponto original para se pensar a identidade, como
Silva (2004) afirma: “(...) é preciso considerar a diferença não
simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo
mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença (compreendida,
aqui, como resultado) são produzidas. Na origem estaria a diferença -
compreendida, agora, como ato ou processo de diferenciação” (SILVA,
2004:75-6). Desse modo, analisar a identidade significa refletir também
sobre a diferença, pois elas são indissociáveis. Sendo assim, o nosso ponto
de partida é o de que a identidade é sempre uma construção histórica e
relacional dos significados sociais e culturais que norteiam o processo de
distinção e identificação de um indivíduo ou de um grupo. “Um processo de
construção de significados com base em um atributo cultural ou, ainda, um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados o(s) qual (ais)
prevalece(m) sobre outras fontes de significação” (CASTELLS 1999:22).
Partindo desse ponto, queremos distanciar nossa visão de toda
forma de “substancialismo” e “essencialismo”, pois concordamos com Hall
(2004) quando este afirma que a identidade é, e sempre está em processo,
ou seja, sempre está em construção. Nesse sentido, a identidade é
dinâmica, múltipla, aberta e contingente. Essas características remetem-nos
a algo em curso, em movimento, sempre se realizando. Para Hall (1997;
2004), a identidade não se restringe à questão: “quem nós somos”, mas
também “quem nós podemos nos tornar”; desse modo, a construção da
identidade tem a ver com “raízes” (ser), mas também com “rotas” e
“rumos” (tornar-se, vi a ser).
Assim, o conceito de identidade não se confunde com as ideias de
originalidade ou de autenticidade, uma vez que os processos de
identificação e os vínculos de pertencimento constituem-se tanto pelas
tradições (“raízes”, heranças, passado, memórias etc.) como pelas
traduções (estratégias para o futuro, “rotas”, “rumos” projetos etc.). As
identidades nunca são, portanto, completamente determinadas, unificadas,
fixadas. Elas são “multiplamente construídas ao longo dos discursos,
práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades
estão sujeitas a uma historizacão radical, estando constantemente em
processo de transformação e mudança” (Hall, 2004:108).
154
Na verdade, a identidade como processo é identificação, definida
pelo referido autor como:
155
seu significado definido no jogo da différance36. Ou, como nos lembra Hall
(2003), cada identidade é radicalmente insuficiente em relação a seus
“outros”. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é
apenas por meio da relação com o outro, da relação com aquilo que não é,
precisamente, com aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de
seu exterior constitutivo (HALL, 2004:110), que a identidade ganha sentido
e eficácia.
36
Jacques Derrida usa esse conceito para romper com o binarismo e absolutização
dos conceitos, dos significados, das diferenças e, diríamos, das identidades fixas,
pois é só numa cadeia e num jogo deslizante em relação aos outros que o
significado, o conceito, a diferença ou a identidade existem. “A différance é o jogo
sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual os
elementos se remetem uns aos outros. Esse espaçamento é a produção, ao mesmo
tempo ativa e passiva (...) dos intervalos sem os quais os termos “plenos” não
significariam, funcionariam (...) o jogo das diferenças supõe, de fato, sínteses e
remessas que impedem que, em algum momento, em algum sentido, um elemento
simples esteja presente em si mesmo e remeta a si mesmo” (Derrida, 2001:32-3).
156
A construção da identidade pode envolver elementos materiais e
simbólicos
Outro cuidado teórico e metodológico importante sobre a questão
da identidade é a superação de posições dualistas como:
material/simbólico, objetivo/subjetivo. A identidade é construída
subjetivamente, baseada nas representações, nos discursos, nos sistemas
de classificações simbólicas, embora não seja algo puramente subjetivo e
não se restrinja à “textualidade” e ao “simbólico”. Ela não é uma construção
puramente imaginária que despreza a realidade material e objetiva das
experiências e das práticas sociais como muitos afirmam, tampouco é algo
materialmente dado, objetivo, uma essência imutável, fixa e definitiva. Se
a identidade é uma construção social e não um dado, se ela é do âmbito da
representação, isso não significa que ela seja uma ilusão que dependeria da
subjetividade dos agentes sociais. “A construção das identidades se faz no
interior dos contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por
isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas” (CUCHE,
1999:82).
Portanto, na construção da identidade não é possível pensar de
forma dissociada sua natureza simbólica e subjetiva (representações) e
seus referentes mais “objetivos” e “materiais” (a experiência social em sua
materialidade) Desse modo, não cabe posições deterministas e excludentes
que privilegiem a priori o material ou simbólico/textual, pois “se há sempre
„algo mais‟ além da cultura, algo que não é bem captado pelo
textual/discursivo, há também algo mais além do assim chamado material,
algo que sempre é cultural e textual” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR,
2003: 21). Essa tensão e primazia não podem ser resolvidas no campo da
teoria, só é provisoriamente solucionada na prática concreta.
157
quais os indivíduos podem posicionar-se e dos quais podem falar
(WOODWARD, 2004). É reconhecendo a importância das representações
que a autora afirma: ”A representação inclui as práticas de significação e os
sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos e
pelas representações que damos sentido à nossa experiência e aquilo que
somos”. (WOODWARD, 2004: 17)
A luta pela afirmação da identidade enquanto forma de
reconhecimento social da diferença significa lutar para manter visível a
especificidade do grupo, ou, melhor dizendo, aquela que o grupo toma para
si, para marcar projetos e interesses distintos, e “isso significa que sua
definição - discursiva e lingüística - está sujeita a vetores de força, a
relações de poder” (SILVA, 2004:80). Essa perspectiva de entendimento da
identidade aponta para uma relação entre o “cultural” e o “político”, estando
essas duas dimensões imbricadas num laço constitutivo na construção das
mesmas.
158
Sob essa ótica, a construção das identidades está em estreita
conexão com as relações de poder. Os significados das identidades não são
transcendentais, eles são construídos, contestados, negociados a partir das
relações assimétricas de poder na sociedade. Nesse sentido, a luta pela
afirmação de uma determinada forma de representação e o estabelecimento
de um determinado significado de uma identidade é uma luta pela
afirmação ou contestação da hegemonia, um campo de batalha, pois, como
afirma Bauman:
159
(BOURDIEU, 1999) que cada grupo possui na estrutura assimétrica da
sociedade. É pela “autoridade legítima” do poder simbólico, “esse poder
invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (p.8), é
pela força do discurso performático, traduzido no poder quase mágico das
palavras, num jogo de corte e recorte, colagem e repetição de enunciados,
imagens e símbolos, que a identidade produz o consenso, a ação e a
mobilização.
162
e apropriação do espaço, ou seja, nossas mediações espaciais do poder,
poder em sentido amplo, que se estende do mais concreto ao mais
simbólico”37.
Assim, parte-se do princípio de que o território, como mediação
espacial das relações do poder, em suas múltiplas escalas e dimensões,
define-se por um jogo ambivalente e contraditório entre desigualdades
sociais e diferenças culturais, realizando-se de maneira concreta e
simbólica, sendo, ao mesmo tempo, vivido, concebido e representado de
maneira funcional e/ou expressiva pelos indivíduos ou grupos.
O território enquanto processo realiza-se por um sistema de
classificação que é, ao mesmo tempo, funcional e simbólico, incluindo e
excluindo por suas fronteiras, (re)forçando as des-igualdades sociais
(diferenças de grau) e as diferenças culturais (diferenças de natureza) entre
indivíduos ou grupos. Assim, o processo de territorialização, seja pela
funcionalização (domínio) ou pela simbolização (apropriação), ou pela
combinação simultânea desses dois movimentos, constrói diferenças e
identidades. Pois, como afirma Silva:
37
Haesbaert, 2004:339.
163
territorializa-se, ou seja, constrói territórios. Todas estão “localizadas” no
espaço e no tempo, mas somente algumas têm como seu referencial
principal, sua “matéria prima”, o território como definido por Haesbaert:
38
Espaço de referência identitária é uma expressão cunhada por Poche (1983)
para o estudo da região numa perspectiva culturalista.
164
constituem o modo de vida ribeirinho com seus saberes, fazeres e
sociabilidades cotidianas. Já como espaço simbólico ele é matriz do
imaginário, produto e produtor dos sistemas de crenças, lendas,
cosmologias e mitos ligados à floresta e ao misterioso universo das águas
que são elementos fundamentais na construção da cultura do ribeirinho na
Amazônia. Portanto, o rio é um espaço de referência identitária para uma
parte significativa da população na Amazônia.
165
estratégias-funcionais (concebido) e a apropriação simbólico-expressiva do
espaço (vivido). Nessa tensão, existem pólos predominantes e hegemônicos
e outros subalternizados em forma de resíduos e resistências. Assim, ora se
impõe o domínio e o espaço concebido, ora a apropriação e o espaço vivido
na construção das identidades. Partindo dessas possíveis configurações
identitárias, podemos ter dois “tipos ideais” de configurações das
identidades territoriais que só são possíveis separar analiticamente,
considerando que, empiricamente, estão imbricadas numa espécie de
continuum que vai da identidade que se ancora exclusivamente no “vivido”
até aquela que se pauta exclusivamente no “concebido”.
Consciência socioespacial de
pertencimento
167
internacional e pelos planejamentos do Estado e, ainda, nas pesquisas
acadêmicas, muitas vezes, pautadas nas “representações do espaço” ou no
“espaço concebido” (LEFEBVRE, 1986). É a partir dessa relação dialética
entre “o espaço vivido” e o “espaço concebido” que se constroem a
consciência sócio-espacial de pertencimento e as identidades territoriais.
168
modo, o discurso da biodiversidade coloca as áreas de floresta tropical
unidas numa “posição biopolítica global fundamental” (ESCOBAR, 2005).
No que se refere especificamente à Amazônia, a revolução
científico-tecnológica, a crise ambiental e a atuação dos chamados novos
movimentos sociais redefiniram, a partir de interesses diferenciados, o valor
da natureza enquanto recurso (BECKER, 1996). A ação conjunta desses
elementos resulta na mudança do paradigma de desenvolvimento na
Amazônia baseado na economia de fronteira para um padrão de
desenvolvimento sustentável baseado na eficiência máxima e no desperdício
mínimo no uso de recursos naturais, na valorização da diversidade e na
descentralização (BECKER, 1996, p.226).
Nessa nova realidade, configura-se uma nova divisão territorial
do trabalho e uma nova geopolítica, o que implica um novo modo de
produzir que valoriza a natureza como capital de realização atual e/ou
futura (BECKER, 1996, p.226). Diante desse novo quadro, a Amazônia deixa
de ser a fronteira de recursos para o uso imediato para tornar-se uma
fronteira tecno-ecológica ou fronteira socioambiental, cujo desenvolvimento
futuro tornou-se uma questão complexa e híbrida que envolve um conflito
de valores quanto à natureza (BECKER, 2005).
Nesse contexto, segundo Becker (2005), a natureza vem sendo
reavaliada e revalorizada a partir de duas lógicas muito diferentes, mas que
convergem para o mesmo projeto de preservação da Amazônia:
1- A primeira lógica é a civilizatória ou cultural, que se caracteriza por uma
preocupação legítima com a natureza pela questão da vida, dando origem
aos movimentos ambientalistas.
2- A outra lógica é a da acumulação, que vê a natureza como recurso
escasso e como reserva de valor para a realização de capital futuro,
fundamentalmente no que tange ao uso da biodiversidade condicionada ao
avanço da tecnologia.
Essas duas grandes lógicas tornam-se mais complexas e
matizadas quando verificamos a questão dos discursos sobre a
biodiversidade envolvendo os mais diversos atores e interesses, como
mostra-nos Arturo Escobar:
169
1. Utilização dos recursos: perspectiva “globocêntrica”. A
perspectiva “globocêntria” é visão da biodiversidade produzida
pelas instituições dominantes, nomeadamente o Banco Mundial e
as principais ONGs ambientalistas do norte apoiados pelos países
do G-8. Oferece prescrições para conservação e usos sustentáveis
dos recursos nos níveis internacional, nacional e local, e sugere
mecanismos apropriados para utilização, incluindo investigação
científica, conservação in situ e ex situ, planejamento nacional da
biodiversidade e estabelecimento de mecanismos apropriados
para compensação e utilização econômica dos recursos da
biodiversidade, principalmente, mediante direitos de propriedade
intelectual.
2. Soberania: perspectivas nacionais do Terceiro Mundo.
Apesar de existirem grandes variações nos posicionamentos
adotados pelos governos do Terceiro Mundo, pode-se afirmar a
existência de uma perspectiva nacional do terceiro mundo que,
sem pôr em questão de maneira fundamental o discurso
“globalocêntrico”, procura negociar os termos dos tratados e as
estratégias da biodiversidade. Aspectos ainda não resolvidos,
nomeadamente o da conservação in situ e o acesso a coleções ex
situ, o acesso soberano aos recursos genéticos, a dívida ecológica
e a transferência de recursos tecnológicos e financeiros para o
Terceiro Mundo são tópicos importantes na agenda dessas
negociações.
3. Biodemocracia: perspectivas das ONGs progressistas.
Para um número crescente de ONGs do sul, a perspectiva
dominante e “globalocêntrica” equivale a uma forma de
bioimperalismo. Os simpatizantes da biodemocracia enfatizam o
controle local dos recursos naturais e a suspensão de
megaprojetos de desenvolvimento. Os subsídios para as
atividades do capital destroem a biodiversidade, o apoio às
práticas baseadas na lógica da diversidade, a redefinição de
produtividade e eficiência e o reconhecimento da base cultural da
diversidade biológica.
4. Autonomia cultural: perspectiva dos movimentos sociais.
Os movimentos sociais, que constroem uma estratégia política
para defesa do território, da cultura e da identidade ligada a
determinados lugares e territórios, geram uma política cultural
mediada por considerações ecológicas. Consciente de que a
biodiversidade é uma construção hegemônica, reconhecem,
porém, que esse discurso abre um espaço para configuração de
desenvolvimentos culturalmente apropriados que se podem opor
às tendências mais etnocêntricas. O interesse desses movimentos
é a defesa de todo um projeto de vida, e não apenas a defesa dos
recursos ou da biodiversidade (ESCOBAR, 2005:348-9).
39
As teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido pelo Estado
não é o único, ganharam força com a Constituição de 1988. Juntamente com elas e
com as críticas ao positivismo que, historicamente, confundiu as chamadas
“minorias” dentro da noção de “povo”, também foi contemplado o direito à
diferença, enunciando o reconhecimento de direitos étnicos. Os preceitos
evolucionistas de assimilação dos “povos indígenas e tribais” na sociedade
dominante foram deslocados pelo estabelecimento de uma nova relação jurídica
entre o Estado e estes povos com base no reconhecimento da diversidade cultural e
étnica (ALMEIDA, 2006:3).
171
complexificando a questão agrária, foco irradiador dos principais conflitos na
região. Esses dois processos trazem um conjunto de elementos importantes
na construção de novas “políticas culturais”, ou seja, da politização das
culturas “tradicionais” que têm influenciado na construção de novas
identidades políticas na Amazônia.
Assim, podemos verificar que esse novo paradigma do
“desenvolvimento sustentável” traz consigo um novo conjunto de práticas
materiais expressas em novas formas de produzir, uma nova forma de
atuação de uma fração capital, bem como uma mudança nas formas de
intervenção estatal através das políticas públicas de ordenamento territorial
expresso nas ideias de preservação e conservação ambiental. Além disso,
vem ocorrendo a emergência de redes internacionais e globais dos
movimentos ambientais e sociais, que travam inúmeras lutas pautadas na
ideia de uma “consciência ambiental global”.
Mas, além disso, esse novo modelo de desenvolvimento trouxe
consigo um novo imaginário e um novo regime discursivo que dá uma
grande visibilidade ao chamado “desenvolvimento sustentável” e à
biodiversidade. Essas ideias são a base, como vimos, dos discursos
produzidos pelos mais diversos atores com diferentes interesses e projetos.
Esse discurso abrange um amplo leque de atores e interesses e manifesta-
se tanto no discurso do grande capital e dos organismos internacionais que
normatizam o sistema de acumulação global – como Banco Mundial, OMC
entre outras instituições –, como nos discursos do Estado, da mídia, dos
cientistas e das organizações não governamentais, alcançando os
movimentos sociais. Diante da amplitude e da força desse novo regime
discursivo, cria-se um novo imaginário pautado num conjunto de
“representações do espaço” que apresentam uma “nova” visão da Amazônia
e das chamadas “populações tradicionais”, pois, com a valorização da
biodiversidade, ocorre também uma “valorização” das chamadas “culturas
tradicionais”, já que o acesso aos recursos genéticos não raras vezes passa
pelos saberes “tradicionais” acumulados por essas populações na longa
convivência com os ecossistemas amazônicos.
Desse modo, a cultura dessas populações, que sempre foi
historicamente invisibilizada, negada, suprimida ou estigmatizada por um
172
conjunto de discursos, representações e ideologias marcadas por
preconceitos e por uma visão racista e colonialista, experimenta, hoje, certa
(re)valorização e uma (re)significação a partir de dois movimentos que,
embora procedendo de interesses e projetos distintos e caminhando em
direções diferentes, relacionam-se dialeticamente na construção de uma
consciência sócio-espacial de pertencimento e na construção da identidade
dessas populações.
O primeiro movimento aponta para uma espécie de idealização
romântica, que tem ganhado força nos dias atuais por via de um ecologismo
romântico que fortalece a ideia de que essas populações são a redenção
para a sociedade urbano-industrial, marcada pelo consumo e pela
insustentabilidade. Nessa visão, os modos de vida dessas populações
apontam para formas alternativas de racionalidade econômica e ambiental
sustentáveis. Essa visão, contudo, ignora a pobreza e as difíceis condições
de vida que tais populações vivenciam.
Tal visão é ainda reforçada pela indústria do turismo, que vive da
venda do exótico. Nesse sentido, vem ocorrendo uma espécie de
mercantilização da alteridade e da diferença (HALL, 1997) com uma
consequente (re)valorização das singularidades das culturas não-urbanas,
ou “culturas tradicionais”, criando-se, assim, verdadeiros “mercados
étnicos”, a venda de “estilos de vida” e o estímulo ao “consumo de
identidades”( YUDICE,2005). Dessa forma, as culturas e os modos de vida
“tradicionais” são estilizados, tornando-se valiosos produtos para o mercado
turístico.
Num segundo movimento e em outra direção, a valorização das
“culturas tradicionais” vem sendo realizada pelas próprias populações
“tradicionais” que se organizam, ganhando visibilidade e caráter
protagonista, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos políticos na luta
pelo exercício ou, mesmo, pela invenção de direitos a partir de suas
territorialidades. Essas lutas são lutas por redistribuição e por maior
igualdade de acesso aos recursos materiais, bem como pelo reconhecimento
da legitimidade das diferenças e das identidades culturais expressas nos
diferentes modos de produzir e nos diferentes modos de viver de tais
populações.
173
Assim, nas lutas pela afirmação dos direitos à sua territorialidade
e ao seu modo de vida próprio, que são negados pelo projeto de
“modernização”, as “comunidades tradicionais” iniciaram um processo de
questionamento dos discursos e representações hegemônicas sobre as suas
identidades. Representações estas que desconsideram a cultura e o modo
de vida, o “espaço vivido” dessas populações, sendo construídas e pautadas
em estereótipos reducionistas de uma clara fundamentação colonialista. É
nesse contexto que emergem novas identidades a partir de um processo de
politização das culturas “tradicionais” na Amazônia.
Essas lutas contam com fortes alianças internacionais e globais
através da cooperação internacional e, em especial, pela atuação em rede
de ONGs ligadas à questão ambiental que financiam e ajudam no processo
de organização, mobilização e, sobretudo, no processo de divulgação e
midiatização das causas e lutas dos “povos da floresta”.
Esse conjunto de processos atua de maneira ativa na construção
das identidades territoriais na Amazônia: o sentido de lugar, os vínculos de
pertencimento, as relações afetivas construídas e arraigadas no cotidiano,
nas práticas do “espaço vivido” e amalgamadas na memória e na tradição,
são “suturadas” a esses novos discursos, a essas novas “representações do
espaço” pautadas no “espaço concebido”, produzindo uma consciência
socioespacial de pertencimento e a constituição de novas posições-de-
sujeito, tornando mais complexa a dinâmica política da região.
174
Esses novos movimentos sociais, conforme Almeida (2005), vêm
se consolidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico e da
política que tinha sua personificação nos sindicatos de trabalhadores(as)
rurais. O autor aponta o ano de 1989 como um marco, um ponto crítico e
de precipitação de inúmeros “encontros” e iniciativas que deram origem a
diversas formas de movimentos socais e associações que lutam por
interesses das populações “tradicionais”.
No momento atual, esse processo de emergência de novos
sujeitos políticos vem assumindo novas configurações e ganhando
densidade e conteúdo histórico pela afirmação de múltiplas formas de
associação que ultrapassam “o sentido estreito de uma organização sindical,
incorporando fatores étnicos e critérios ecológicos, de gênero e de
autodefinição coletiva” (ALMEIDA, 2005:163). Esses novos-velhos sujeitos
protagonistas apontam para uma existência coletiva objetivada numa
diversidade de movimentos organizados com suas respectivas redes sociais,
redesenhando a sociedade civil da Amazônia e impondo seu reconhecimento
aos centros de poder.
Prosseguindo suas considerações, o referido autor destaca como
materialização desse processo as associações voluntárias e entidades da
sociedade civil que estão se tornando força social, tais como: União das
Nações Indígenas – UNI; Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira –
Coiab e toda a rede de entidades indígenas vinculadas, que alcança cerca
de 60; o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu –
MIQCB; o Conselho Nacional dos Seringueiros; o Movimento Nacional dos
Pescadores – Monape; o Movimento dos Atingidos de Barragens – MAB; a
Associação Nacional das Comunidades Remanescentes de Quilombo e a
rede de entidades a ela vinculada no Maranhão – a Associação das
Comunidades Negras Quilombolas do Maranhão – Aconeruq e no Pará – a
Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de
Oriximiná – ARQMO; a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia, entre
outras.
Essas novas formas de organização política implicam novas
táticas e estratégias levando a uma ampliação das pautas reivindicatórias
na luta por direitos que vão dos direitos socais básicos, como saúde,
175
educação, terra, crédito, bem como pelo reconhecimento de direitos
culturais, como o direito às formas diferenciais de apropriação e uso da
terra e dos recursos naturais, formas diferentes de cultos e valorização e
reconhecimento dos conhecimentos acumulados por tais populações etc.
Segundo Almeida (2004), a ampliação das pautas de demandas tem sido
acompanhada da multiplicação de instâncias de interlocução dos
movimentos sociais com os aparatos político-administrativos, sobretudo
com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais.
Esse conjunto de movimentos sociais articula-se, coletivamente,
naquilo que Almeida (1994) denominou de “unidades de mobilização”, um
conjunto de movimentos diferentes e locais que, estrategicamente, reúnem-
se para pressionar o Estado na busca de soluções para suas demandas.
Além disso, essas “unidades de mobilizações”, as quais se articulam em
redes em várias escalas transcendendo a escala local e até a nacional,
logram generalizar o localismo das suas reivindicações através de parcerias
e alianças a nível internacional, criando novas formas de mediação e
interlocução e, com essas práticas, alteram padrões tradicionais de relação
política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação,
inaugurando novas formas de lutas políticas e resistência.
Essa nova estratégia discursiva e identitária dos movimentos
sociais na Amazônia, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada
à conotação política que, conforme Almeida (2005), em décadas passadas,
estava associada principalmente ao termo camponês. No momento histórico
atual, esses atores políticos apresentam-se através de múltiplas
denominações e apontam para a construção de novas e múltiplas
identidades. Essa multiplicidade de identidades cinde, portanto, com o
monopólio político do significado das expressões camponês e trabalhador
rural, que, até então, eram usadas com prevalência por partidos políticos,
pelo movimento sindical centralizado na Contag (Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT, CIMI,
ACR) (Almeida, 2005).
Para Gonçalves (2001), esse novo contexto aponta para a
construção de “novas” identidades coletivas surgidas de velhas condições
sociais e étnicas, como é o caso das populações indígenas e negras, ou
176
remetendo-se a uma determinada relação com a natureza (seringueiro,
castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda, expressando
condição derivada da própria ação dos chamados “grande projetos”
implantados na região, como estradas, hidrelétricas, projetos de mineração,
entre outros. (“atingidos”, ”assentado”, “deslocado”). Trata-se de um
processo de re-significação política e cultural que esses grupos sociais vêm
fazendo da sua experiência cultural e da sua forma de organização política.
Dentro dessas novas estratégias discursivas e das novas táticas
de práticas políticas, os “velhos” agentes vêm se constituindo em “novos”
sujeitos políticos ou novas posições-de-sujeito (HALL, 2004). Esse processo
dá-se pela politização daqueles termos e denominações de uso local. Trata-
se da ”politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se
erigem em sujeitos da ação ao adotar como designação coletiva as
denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida
cotidiana” (ALMEIDA, 2004a:166).
Essas novas afirmações identitárias não significam uma
destituição do atributo político das categorias de mobilização como
camponês e trabalhador rural. Contudo, para Alfredo Wagner Almeida, é a
emergência das “novas” denominações que designa os movimentos e que
espelha um conjunto de práticas organizativas que traduzem
transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização
desses grupos, em face do poder do Estado e em defesa de seus territórios.
177
Assim, na busca pela afirmação dos direitos à sua territorialidade,
com seu modo de vida próprio negado pela “modernização”, essas
populações iniciaram um processo de questionamento dos discursos e
representações hegemônicas sobre as suas identidades (representações
pautadas no espaço concebido que é um misto de conhecimento e
ideologias), representações homogêneas e abstratas materializadas no
conjunto de planos, projetos, estatísticas e teorias usadas pelo Estado e
pelo grande capital que ignoram o “espaço vivido” e a dimensão cotidiana
do modo de vida de tais populações com seus múltiplos ritmos, diferentes
formas de sociabilidade, saberes e fazeres.
O questionamento das práticas discursivas e representações do
espaço “espaço concebido” é feito pela politização do “espaço vivido” da
dimensão cotidiana dos diferentes modos de vida e territorialidades. Desse
modo, esses movimentos sociais buscam redefinir e re-significar suas
identidades, buscando construir um novo “magna de significações” que
valorizem a própria experiência cultural dessas populações, apontando para
uma nova “política cultural” aqui entendida:
178
Falamos de formações de política cultural nesse sentido: elas são
resultadas de articulações discursivas que se originam em
práticas culturais existentes - nunca puras, sempre híbridas, mas
apesar disso, mostrando contrastes significativos em relação às
culturas dominantes - e no contexto de determinadas condições
históricas (ÁLVARES; DAGNINO e ESCOBAR, 2000:25).
179
Trata-se da constituição de novos atores no espaço público e na
política, atores protagonistas afirmando suas identidades, pois, como nos
fala Touraine (1994: 220-1), o “ator não é aquele que age em conformidade
com o lugar que ocupa na organização social, mas aquele que modifica o
meio ambiente material e, sobretudo social no qual está colocado,
modificando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações de
dominação ou as orientações culturais”. Nesse mesmo sentido, Gonçalves
(2004) destaca que o movimento (social) é, rigorosamente, mudança de
lugar (social), sempre indicando que aqueles que se movimentam estão
recusando o lugar que lhes estava reservado numa determinada ordem de
significações. Nessa perspectiva, um movimento social é:
181
Assim, trata-se de lutas pelo direito à territorialidade que é
fundamental na reprodução dos modos de vida tradicionais, pois o território
é, para essas populações, ao mesmo tempo: a) os meios de subsistência;
b) os meios de trabalho e produção; c) os meios de produzir os aspectos
materiais das relações sociais, aquelas que compõem a estrutura social40.
Assim, o território constitui-se como “abrigo” e como “recurso” abrigo físico,
fonte de recursos materiais ou meio de produção e, ao mesmo tempo,
elemento fundamental de identificação ou simbolização de grupos através
de referentes espaciais41.
Little (2002) afirma que territórios dos povos tradicionais
fundamentam-se em décadas, em alguns casos, séculos de ocupação
efetiva. A longa duração dessas ocupações (domínio estratégico-funcional e
apropriação simbólico-expressiva) fornece um peso histórico às suas
reivindicações territoriais e afirmações identitárias.
40
Ver Diegues (1996): o papel do território na construção dos modos de vida
“tradicionais”.
41
Ver uma proposta de sistematização feita por Haesbaert (2005) sobre “fins” ou
objetivos do processo de territorialização.
182
racionalidades pautas nas diferentes formas uso-significado do espaço e da
natureza.
É na luta pelo reconhecimento da territorialidade das populações
“tradicionais” que vem se (con)formando as identidades coletivas na
Amazônia, identidades estas associadas a essas diferentes formas de luta,
que são o resultado emergente das próprias lutas, mesmo quando
assentam em condições ou em coletivos que pré-existem a elas. Elas
podem assentar, seja em comunidades locais, baseadas em relações face a
face, seja em comunidades imaginadas (SOUSA SANTOS, 2003b). Dessa
forma, o conflito constitui-se como um momento privilegiado dessa
conformação de identidades, de configuração de “comunidades de destino”
(GONÇALVES, 2004).
183
interesses comuns, a ter alguma coisa a defender juntos
(MARTIN, APUD CLAVAL, 1999 :23).
184
afirmação das novas posições-de-sujeito, que implicam na construção de
identidades alternativas, que deslocam e fraturam as identidades
hegemônicas. As identidades construídas pelos movimentos sociais são
forjadas na e pela luta para a afirmação da diferença subalternizada e como
r-existência a formas dominantes de poder econômico, político e cultural
instaladas historicamente na Amazônia.
Mas sabemos que o processo de construção das identidades é
marcado por ambivalências e ambiguidades e que, muitas vezes,
apresentam-se de maneira contraditória tendo, ao mesmo tempo,
perspectivas progressistas e conservadoras. Além disso, não há dicotomias
e dualismos radicais entre os discursos dos dominantes e dos dominados,
porém diálogos, tensões, conflitos e retroalimentações. Ainda assim, é
inegável que esses novos movimentos sociais, hoje, na Amazônia, sinalizam
importantes horizontes de emancipação social para as populações
“tradicionais”.
185
b) As construções das identidades são estratégicas e posicionais,
pois estão estreitamente ligadas às relações de poder. O jogo de poder para
a definição de uma determinada identidade está em conexão com as
modalidades mais amplas do exercício do poder na sociedade. Isso implica
compreender as identidades como produtos e produtoras das lutas e
conflitos sociais, políticos e culturais. Desse modo, as identidades territoriais
das populações “tradicionais” na Amazônia são produtos e produtoras das
relações de poder e são construídas e instituídas na e pelas lutas e conflitos
dos diferentes sujeitos pela sua afirmação material (luta por distribuição de
bens materiais) e simbólica (luta por reconhecimento das diferenças
culturais).
c) A construção das identidades, seu poder de eficácia e
performance vão depender da posição de cada sujeito na estrutura
assimétrica de poder da sociedade (econômico, político e simbólico). As
identidades podem tanto legitimar e reproduzir as relações de poder e as
instituições hegemônicas da sociedade quanto podem contestá-las e propor
novos projetos alternativos. Assim, determinadas identidades territoriais na
Amazônia reproduzem e legitimam a ordem hegemônica do poder
econômico, político e simbólico estabelecido. Outras, como as identidades
das populações “tradicionais”, r-existem a tal hegemonia, afirmando a
diferença subalternizada e apresentando-se como “identidade de projeto”,
apontando para alternativas de sociedade a partir de diferentes modos de
produzir e de modos de vida, como é o caso dos movimentos dos
seringueiros e das mulheres quebradeiras de coco de babaçu.
d) Todo processo de territorialização funciona como sistema de
classificação funcional e simbólico, o que implica a definição de fronteiras e
na construção de identidades. Contudo, se em todo processo de
territorialização produzem-se identidades, nem toda identidade é uma
identidade territorial. Isso significa que nem todas as identidades
construídas na Amazônia são territoriais, mas que, na construção das
diversas territorialidades das populações “tradicionais”, produzem-se
identidades territoriais.
e) As identidades territoriais são construídas a partir do jogo das
múltiplas escalas de pertencimento. A consciência socioespacial de
186
pertencimento depende da experiência espaço-temporal (espaço de
referência identitária) e do contexto específico nos quais as identidades são
construídas. Na Amazônia, as identidades são construídas a partir da
multiplicidade de temporalidades históricas desiguais e diferentes que se
(des)encontram na contemporaneidade. Portanto, as identidades são
resultantes do conflito entre as diferenças do significado social e cultural da
experiência espaço-temporal expressa nos diferentes “modos de viver” dos
diferentes sujeitos sociais.
f) As identidades territoriais mobilizadas pelos movimentos sociais
das chamadas populações “tradicionais”, nas suas lutas sociais na
Amazônia, são construídas a partir de um duplo movimento:
primeiramente, estão pautadas numa politização da cultura ou de “política
cultural”, dando visibilidade e significância às territorialidades e aos modos
de vida “tradicionais” com suas histórias, memórias e saberes de longa
duração (raízes), sedimentados num conjunto de práticas e de
representações que têm densidade e espessura no cotidiano de um espaço
vivido. Em um segundo e simultâneo movimento, tais identidades voltam-se
não para o passado (tradição), mas para o futuro, para rotas, rumos e
projetos pautados em estratégias políticas e organizacionais articulados em
escalas mais amplas e ligados a outras formas de saber (saber científico) e
ao conjunto de discursos, ideologias e representações pautadas num espaço
concebido.
187
TERCEIRO INTERMEZZO: COMUNIDADES TRADICIONAIS /POVOS
TRADICIONAIS COMO CATEGORIA DE ANÁLISE E COMO CATEGORIA
DA PRÁTICA POLÍTICA .
189
povos indígenas e dos quilombolas em torno de reivindicações étnicas frente ao
Estado. Como resultado dessas lutas importantes reivindicações territoriais e
culturais desses grupos foram incorporadas na Constituição Federal de 1988,
fortalecendo juridicamente sua situação fundiária de grupos.
Esses termos que surgem no campo discursivo das lutas e das políticas ambientais e
das lutas por direitos étnicos, aos poucos se disseminam e enraízam-se nos mais
diversos domínios discursivos. No campo acadêmico esses termos são trabalhados
como uma “categoria de análise”, nessa dimensão mais teórico-conceitual, os
termos “povos e comunidades tradicionais” buscam uma caracterização sócio-
antropológica de diversos grupos. Estão incluídos nessa categoria os Povos
Indígenas; Quilombolas; Populações agroextrativistas (Seringueiros, Castanheiros,
Quebradeiras de Côco de Babaçu); Grupos vinculados aos rios ou ao mar
(Ribeirinhos; Pescadores artesanais; Caiçaras; Varjeiros; Jangadeiros;
Marisqueiros); Grupos associados a ecossistemas específicos (Pantaneiros;
Caatingueiro; Vazanteiros; Geraizeiros; Chapadeiros) Grupos associados à
agricultura ou à pecuária (Faxinais; Sertanejos; Caipiras; Sitiantes- Campeiros;
Fundo de Pasto; Vaqueiros.)
Apesar da enorme diversidade desses grupos alguns pesquisadores buscaram
identificar traços e características em comuns entre eles. Neste sentido,
pesquisadores como DIEGUES (2000); LITTLE (2006); BARRETO FILHO (2006)
mesmo reconhecendo a imprecisão e a dificuldade de uma definição mais rigorosa
eles elencam um conjunto de características que seriam atributos desses grupos
denominados de “povos e comunidades tradicionais”. Dentre essas varias
características podemos destacar:
A relação com a natureza (A racionalidade ambiental) – Essas comunidades têm
uma relação profunda com a natureza, os seus modos de vida estão diretamente
ligados a dinâmica dos ciclos naturais, suas práticas produtivas e o uso dos recursos
naturais são de base familiar, comunitária ou coletiva. Esses grupos possuem uma
extraordinária gama de saberes e conhecimentos sobre os ecossistemas, a
190
biodiversidade e os recursos naturais como um todo, esse acervo de conhecimento
está materializado no conjunto de saberes, técnicas, sistemas de uso e manejo dos
recursos naturais adaptados às condições do ambiente em que vivem.
A relação com território e a territorialidade - Outra característica marcante
desses grupos é uma forte relação com o território e com o sentido de
territorialidade; essas comunidades normalmente têm uma longa história de
ocupação territorial sobre os espaços em que vivem, sendo comum varias gerações
ocuparem a mesma área. Essa história expressa-se numa relação de
ancestralidade, memória e sentido de pertencimento em relação a certas áreas e
lugares específicos. O território tem para esses grupos uma importância material
(base de reprodução e fonte de recursos) e um forte valor simbólico e afetivo
(referência para construção dos modos de vida e das identidades dessas
comunidades). A constituição dos territórios dessas comunidades é caracterizada
por uma grande diversidade de modalidades de apropriação da terra e dos
recursos naturais (apropriações familiares, comunitárias, coletivas). Essas “terras
tradicionalmente ocupadas” vão para além do modelo da propriedade individual
como, por exemplo: “terras de preto”, “terras de santo”, “terras de índio”, “faxinais”,
“fundos de pasto”, etc.
193
perspectiva o tradicional não significa o atraso, não restringe a ideia de tradição e
ao passado mas tem um sentido político-organizativo e se apresenta como
alternativa ao modo de produção e ao modo de vida capitalista
Mas essas (re)configurações identitárias não são gratuitas, são novas estratégias na
luta por direitos, formas de garantias de direitos sociais e culturais, notadamente, o
chamado “direito étnico à terra”, e o chamado direito a “posse agro-ecológica da
terra”, assegurando, desse modo, a posse coletiva ou familiar das terras e dos
recursos naturais. A constituição desses novos sujeitos políticos, novos sujeitos de
direito vêm redefinindo as táticas e estratégias de luta pela terra no Brasil,
sobretudo, pelo impacto da emergência da questão ambiental e da questão étnica
que vem redefinindo o padrão de conflitividade e o campo relacional dos
antagonismos, implicando numa espécie de “ambientalização” e “etnização” das
lutas sociais, complexificando a questão fundiária e agrária, foco irradiador dos
principais conflitos no campo brasileiro.
Essas novas formas de agenciamentos políticos implicam em uma ampliação das
pautas de reivindicações e na criação de novas agendas políticas. Esses novos
movimentos lutam não só contra a desigualdade - pela redistribuição de recursos
materiais - a terra - mas também lutam pelo reconhecimento das diferenças
culturais, dos diferentes modos de vidas que se expressam em suas diferentes
territorialidades. Não se trata simplesmente de lutas fundiárias por redistribuição
de terra, envolvem também o reconhecimento de elementos étnicos, culturais e de
afirmação identitária das comunidades tradicionais, apontando para a
necessidade do reconhecimento jurídico e de seus territórios e territorialidades. É
nesse processo que ocorre um deslocamento semântico, político e jurídico da luta
pela terra à luta pelo território.
Nesse processo de afirmação de novas identidades políticas e da construção de
novas agendas nas lutas dos povos e comunidades tradicionais há um
deslocamento do eixo das lutas sociais ancoradas na noção de justiça e
emancipação fundada na idéia de igualdade e redistribuição (Lutas contra a
194
exploração, a privação, a marginalização e exclusão social fruto das desigualdades
socioeconômicas estruturais de nossas sociedades capitalistas periféricas) para um
novo eixo que se estrutura em torno da idéia de valorização do direito à diferença e
de uma noção de justiça alicerçada na idéia de reconhecimento do outro (lutas
contra o não-reconhecimento e o desrespeito das minorias frutos das formas
dominação cultural, étnico/racial resultantes de sociedades com um passado
colonial/racista nas quais ainda permanece como padrão de poder atual e
atuante: a colonialidade do poder).
A percepção do significado político desses deslocamentos que as lutas dos “povos e
comunidades tradicionais” vêm realizando no imaginário e na cultura política
brasileira é muito controverso. Para muitos, esse deslocamento do paradigma da
redistribuição da terra para o reconhecimento de territórios representa um
alargamento da contestação política e um novo entendimento de justiça social,
ultrapassando uma visão restrita de justiça e de emancipação fixada em torno eixo
da classe, incluindo outros elementos como a “raça”, a etnicidade, a sexualidade
etc. Elementos estes que não estiveram contemplados na agenda clássica de lutas
no Campo. Contudo, se por um outro lado, essa nova cultura política amplia e
enriquece noções de justiça social e emancipação a partir da incorporação da
idéia de reconhecimento da diferença, não é absolutamente evidente que as atuais
lutas pelo reconhecimento estejam contribuindo para complementar e aprofundar
as lutas mais amplas por reforma agrária e pela redistribuição igualitária da terra.
Para muitos críticos dessas novas idéias e práticas, as lutas por reconhecimento
podem estar contribuindo para fragmentar, enfraquecer e deslocar a luta por
reforma agrária e justiça social.
O desafio teórico e político que esses grupos têm de enfrentar é a construção de
uma concepção de justiça e emancipação social bifocal, assim, vista por uma das
lentes, a justiça é uma questão de redistribuição igualitária da terra; nesse sentido
a luta por reforma agrária é claramente uma luta anti-capitalista, vista pela outra,
é uma questão de reconhecimento de territórios, nessa perspectiva a luta por
195
reforma agrária é claramente uma luta descolonial, luta pela decolonização do
Estado e da sociedade. Cada uma das lentes foca um aspecto importante da justiça
social, mas nenhuma por si só basta. A compreensão plena só se torna possível
quando se sobrepõem as duas lentes. Mas isso não é tarefa fácil, pois envolve todas
as tensões e contradições da construção um projeto de emancipação social onde
igualdade e diferença sejam pilares equivalentes no horizonte de justiça social.
196
“ O ARQUIVO E O MAPA “
197
4. CAPÍTULO. A AMAZÔNIA E O BAIXO TOCANTINS COMO
FORMAÇÃO SOCIO-ESPACIAL: MÚLTIPLOS TEMPOS, ESPAÇOS,
CONTRADIÇÕES E LUTAS SOCIAIS.
4.1. Introdução
198
Foto 1: Localidade de Guajará, Município de Cametá. (Autor: Edir A. D.
Pereira jun./2010)
199
Em contraste com essa paisagem e dinâmica ribeirinha,
encontraremos, ao longo do rio, “grandes objetos geográficos”, como diria
Milton Santos. Ao lado de pequenas comunidades ribeirinhas, encontramos
fumaça, luzes, máquinas, pressa, é o complexo da ALBRÁS/ALUNORTE de
produção de alumínio. À noite, as luzes diante da opacidade da paisagem,
fazem com que a metáfora utilizada por Milton Santos para expressar a
densidade técnica dos lugares ganhe força, concretude e contundência, pois
estamos diante de uma “zona luminosa”: imensos navios, instalações
gigantes, a força da técnica expressa-se num sistema de objetos e “ações
alienígenas”, não identificados, ou, pelos menos, sem identificação para as
populações que tradicionalmente ali vivem (Fotos 3, 4, 5 e 6).
200
Foto 4 – Porto da Vila do Conde em Barcarena (Fonte: Google/imagens)
201
engenharia monumental, plantada no meio do rio barrando as águas e a
dinâmica da região – seu tamanho extraordinário é proporcional ao seu
impacto ecológico e social.
202
pessoas. As mesmas pessoas têm os diferentes momentos de sua vida
atravessados, às vezes num único dia, por diferentes temporalidades da
história” (MARTINS, 1996: 32). Esse (des)encontro de historicidades torna
visível e contundente a questão da alteridade e do jogo pela afirmação das
diferentes identidades territoriais, pois:
204
das diferenças sociais e étnicas (MARTINS, 1996: 182, grifo
nosso).
205
olhar a fronteira a partir de outros tempos e espaços, talvez tempos mais
“lentos”, o tempo do modo de vida dos sujeitos subalternizados, em suas
histórias locais com saberes locais, que, mesmo estando territorializados em
espaços mais latentes da fronteira, como é o caso de Cametá, que não está
inserida diretamente no front da modernização, não está isenta de sua
dinâmica, do seu avanço, tanto no que se refere à vida material, quanto a
elementos culturais mais subjetivos que redefiniram e redefinem a própria
identidade do lugar e diferentes grupos sociais envolvidos nesse processo
histórico.
Nesse sentido, analisar a diversidade territorial da Amazônia
implica reconhecer que as diferenciações dos lugares, hoje, na região, dão-
se tanto a partir de sua inserção desigual em movimentos mais
globalizados, ligados a uma nova lógica de divisão territorial do trabalho
mais extrovertida, frutos da chamada “modernização” dos grandes projetos
implantados a partir da década de 60 (diferenças de grau), quanto a partir
da re-criação de singularidades culturais próprias de cada lugar (diferenças
de natureza). A diversidade territorial é, pois, resultado da imbricação entre
duas grandes tendências ou lógicas sócio-espaciais, uma decorrente mais
dos processos de diferenciação/singularização, outra dos processos de des-
igualização, padronizadores (HAESBAERT, 1999b).
Assim, precisamos compreender a diversidade territorial do Baixo
Tocantins como sendo ao mesmo tempo uma construção “sistêmica” das
desigualdades, principalmente, aquela promovida pela (des)ordem
econômica, bem como a produção diferenciadora das singularidades, da
vivência do espaço e da nossa identificação com ele (HAESBAERT,1999b).
Desse modo, escaparemos do binarismo que se afirma a partir de
dualidades entre o particular/geral, singular/universal,
desigualdade/diferença, pois como afirma Haesbaert (1999: 23) em nossas
análises geográficas existe a
206
são produzidos concomitantemente como singulares/universais e
como particulares/gerais.
42
“A noção de FES é indissociável do concreto representado por uma sociedade
historicamente determinada. Defini-la é produzir uma definição sintética da
natureza exata da diversidade e da natureza específica das relações econômicas e
sociais que caracterizam uma sociedade numa época determinada” (Godelier, apud
Santos, 2005:27).
207
contemporaneidade43. Na região, podemos identificar, de maneira genérica,
dois grandes padrões de organização do espaço-tempo. O primeiro, que
predomina até a década de 1960, denominado rio-várzea-floresta; o
segundo, padrão estrada-terra-firme-subsolo, que vai se constituir a partir
do processo de “integração e modernização” da região depois da década de
70 (GONÇALVES, 2001).
O primeiro padrão rio-várzea-floresta foi constituindo-se desde a
gênese do processo de formação territorial da Amazônia, que se deu no
contexto de expansão da colonização portuguesa. A constituição dos
territórios coloniais e a colonização foram, sobretudo, uma afirmação
militar, uma imposição bélica; nesse sentido, o processo de colonização na
Amazônia implicou a consolidação do domínio territorial, a apropriação de
terras, a submissão das populações defrontadas e, também, a exploração
dos recursos presentes no território colonial44.
O fato de ter sido um território colonial deixou muitas marcas na
formação e na organização do espaço da Amazônia. Esse modelo de
organização territorial realizou-se, segundo Becker (2005), pautado num
padrão econômico voltado para a exportação que, desde o início da
colonização até hoje, é a motivação dominante na ocupação regional. Esse
modelo de ocupação forjou-se dentro do paradigma sociedade-natureza
denominado economia de fronteira, em que o progresso é entendido como
crescimento econômico e prosperidade infinitos, baseados na exploração de
recursos naturais percebidos como igualmente infinitos (BECKER, 1996).
Devido a essa dependência de uma lógica econômica externa, a
ocupação da Amazônia fez-se em surtos devassadores ligados à valorização
momentânea de produtos no mercado internacional, seguidos de longos
períodos de estagnação. A esse padrão associam-se duas características
básicas da ocupação regional.
43
Essa noção já carrega consigo, na descoberta de Lefebvre, o intuito de datação
das relações sociais, a indicação de que as relações sociais não são uniformes nem
têm a mesma idade. Na realidade, coexistem relações sociais que têm datas
diferentes e que estão, portanto, numa relação de descompasso e desencontro.
Nem todas as relações sociais têm a mesma origem. Todas sobrevivem de
diferentes momentos e circunstâncias históricas, mas se encontram na
contemporaneidade (Martins, 1996: 15).
44
Moraes (2002) sintetiza a lógica territorial do processo de colonização como a
conquista de terras.
208
Primeira, a ocupação se fez invariavelmente e ainda hoje se faz a
partir de iniciativas externas. Segunda, a importância da
Geopolítica, que explica o controle de tão extenso território com
tão poucos recursos. A Geopolítica esteve sempre associada a
interesses econômicos, mas estes foram via de regra mal
sucedidos na sua implementação, não conseguindo estabelecer
uma base econômica e populacional estável, capaz de assegurar a
soberania sobre a área. O controle do território foi mantido por
estratégias de intervenção em locais estratégicos, de posse
gradativa da terra (uti possidetis) e da criação de unidades
administrativas diretamente vinculadas ao governo central
(BECKER, 2004: 151).
209
metrópole)45. O desenho espacial básico observado confunde-se com a
configuração da bacia hidrográfica: a disposição geográfica do povoamento
na região, que formou a rede de núcleos populacionais, e, mais tarde, a
própria rede urbana estão intimamente ligadas aos traçados dos rios.
Nessa perspectiva, o rio torna-se o principal elemento da
circulação do espaço regional e, ainda, um fator essencial na geopolítica de
defesa do território dos colonizadores portugueses. A respeito dessa
peculiaridade da geografia colonial na Amazônia, Machado comenta:
45
Moraes, 2002.
210
vilas e cidades e que, na verdade, foi típico de toda a Amazônia, como nos
afirma Gonçalves (2001).
Foi com base na economia extrativa e no capital comercial que se
forjou a divisão territorial do trabalho moldando o padrão de organização do
espaço regional, definindo a formação e configuração das cidades
ribeirinhas. “As interações entre vilarejos, vilas e cidades eram inteiramente
dependentes da cadeia de exportação/importação, que mobilizava os
excedentes de valor produzidos pela economia da borracha” (MACHADO,
1999, p. 111).
211
andiroba, açaí etc.) e à agricultura de subsistência, sobretudo a produção
de mandioca.
Desse modo, o Baixo Tocantins viveu um longo período de
estagnação econômica, que resultou num baixo dinamismo histórico e
geográfico.
212
durante muito tempo, foi e continua sendo, em muitas áreas da Amazônia,
o referencial e o diferencial na organização espaço-temporal e cultural das
populações. O rio é referência de múltiplas vivências, experiências e
relações cotidianas que se manifestam e se reproduzem nas práticas
espaciais e no imaginário social. Esse imaginário torna o rio, além de
principal “acidente hidrográfico”, o principal “referente geográfico” do modo
vida ribeirinho (PEREIRA, 2008).
Nessas áreas onde predomina um certo “tempo lento”, o rio
continua tendo uma importância primordial para a vida das populações que
lá vivem, sendo o referencial central da “geograficidade” (organização
espacial, modo de vida), além de matriz da temporalidade (ritmo social) e
do imaginário (lendas, mitos, crenças, cosmogonias) (CRUZ,2004).
No Baixo Tocantins e, em especial, em Cametá, a temporalidade
e a espacialidade continuam marcadamente simbolizadas pelo rio, com uma
vida dinamizada pelas interações materiais, simbólicas e imaginárias
diferenciadas com ele. Desse modo, o rio apresenta-se tanto como meio de
subsistência, comunicação e transporte, quanto “como mediação entre o
fantástico e o real, dos significados e representações do imaginário social
geográfico” (PEREIRA, 2008). O rio é o espaço de referência identitária para
essas populaçõe
4.3. O momento de fronteira: modernização/colonial e
reestruturação espaço-temporal da Amazônia/Baixo Tocantins
213
caracterizada pelo deslocamento do capital comercial para o capital
industrial e financeiro.
Esse processo ocorre a partir dos anos 1960 e, de maneira mais
sistemática e contundente, com a chegada dos militares ao poder. O Estado
autoritário brasileiro, segundo Becker (1990), tomou para si a iniciativa de
um novo e ordenado ciclo de devassamento amazônico, pautado num
projeto geopolítico para modernizar, de maneira acelerada, a sociedade e o
território nacional. Para Becker (1990a), a ocupação da Amazônia assumiu
prioridade nesse projeto por várias razões. Primeiramente, foi percebida
como solução para as tensões sociais internas decorrentes da expulsão de
pequenos produtores do Nordeste e do Sudeste em decorrência da
modernização da agricultura. Sua ocupação também foi percebida como
prioritária em face da possibilidade de nela desenvolverem-se focos
revolucionários. No nível continental, duas preocupações apresentavam-se:
a) a migração nos países vizinhos para suas respectivas Amazônias que,
pela dimensão desses países, localizam-se muito mais próximas dos seus
centros vitais; e, b) a construção da Carretera Bolivariana Marginal de la
Selva, artéria longitudinal que se estende pela face do Pacífico na América
do Sul, significando a possibilidade de vir a capturar a Amazônia continental
para a órbita do Caribe e do Pacífico, reduzindo a influência do Brasil no
coração do continente. Finalmente, no nível internacional, vale lembrar a
proposta do Instituto Hudson de transformar a Amazônia num grande lago
para facilitar a circulação e a exploração de recursos, o que, certamente,
não interessava ao projeto nacional (BECKER, 1982, 1990a).
A Amazônia torna-se, portanto, uma prioridade no projeto
econômico e geopolítico de modernização do Estado autoritário brasileiro.
Para a realização de tal projeto, a modernização do território foi essencial.
Nesse sentido, construiu-se uma malha tecno-política de controle sobre
esse território, e foi através dela que o Estado adotou um conjunto de
planos, projetos e estratégias para a realização do projeto de modernização
de controle geopolítico. Becker (1990a) sistematiza as principais
estratégias:
215
passou a ser as estradas pioneiras, tanto para os fluxos imigratórios
dirigidos como para as correntes imigratórias espontâneas. À medida que os
grandes eixos de estradas pioneiras eram construídos na terra firme, ou
seja, nas áreas não inundadas, as frentes de povoamento invadiam a selva
e novas aglomerações apareciam, muitas delas já sob a forma de cidade.
Nesse sentido, a região do chamado médio Tocantins,
compreendida entre Tucuruí e Marabá, sofrerá profundas mudanças,
reestruturando radicalmente a dinâmica do vale do Tocantins como um
todo. Assim, com o processo de integração regional, a partir da década de
1970, as vias rodoviárias passaram a desempenhar um papel predominante
na ocupação e configuração do espaço. Desse modo, a maior parte das
antigas aglomerações situadas nas margens das vias fluviais passa a ser
marginalizada pelas ondas imigratórias, com exceção das cortadas pelos
novos eixos de circulação terrestre (MACHADO, 1999). Contudo, os rios
continuaram em muitas áreas e, de várias maneiras, constituindo um elo de
articulação e uma referência central na definição dos lugares que se
localizam em suas margens.
No vale do rio Tocantins, esse processo de reestruturação
regional tem como fator decisivo a construção da usina hidrelétrica de
Tucuruí. Essa usina alterou profundamente a estrutura espacial e
demográfica local, modificando profundamente as relações e cadeias que se
estabeleciam entre homens e natureza, redefinindo completamente os
gêneros de vida e os ambientes espaciais locais (ROCHA e GOMES, 2002):
216
tempo-espaço do Baixo e Médio Tocantins. À montante, municípios como
Breu Branco, Goianésia, Jacundá, Novo Repartimento, Itupiranga e Nova
Ipixuna tiveram suas áreas alagadas. O impacto ecológico, demográfico e
sociocultural foi intenso. Novas atividades produtivas e os circuitos de
produção e acumulação reestruturam o espaço microrregional a partir do
empreendimento; também, o intenso processo de migração e urbanização
do território e da sociedade redefiniu, em grande parte, os modos de vida
“tradicionais”. Por outro lado, a jusante os municípios de Baião, Mocajuba,
Cametá, Limoeiro do Ajuru e Igarapé Miri, entre outros, permaneceram com
uma dinâmica socioespacial e sociocultural marcada por fortes
características rurais e ribeirinhas, uma área de mais de dez mil quilômetros
quadrados de florestas de terra firme, várzea e ilhas que mantiveram suas
características tradicionais (como caracterizamos anteriormente). Contudo,
sofreram os graves efeitos negativos (ecológicos e sociais) da construção da
hidrelétrica.
Assim, esse processo de reestruturação regional produziu, de
maneira nítida, no vale do rio Tocantins, as duas matrizes espaço-temporais
denominados por Gonçalves (2001) rio-várzea-floresta e estrada-terra-
firme-subsolo. Esses ritmos conjugam-se na constituição das diferentes
configurações dos lugares. Temos, então, duas grandes matrizes espaço-
temporais que representam duas lógicas de divisão do trabalho distintas,
como modos de vida distintos que se cortam, recortam, sucessiva e
simultaneamente, fragmentando-se e rearticulando-se. Desse modo, criam
as particularidades e singularidades dos lugares, pois “em cada lugar, em
cada subespaço, novas divisões do trabalho chegam e se implantam, mas
sem a exclusão da presença dos restos das divisões do trabalho anteriores.
Isso, aliás, distingue cada lugar dos demais, essa combinação específica de
temporalidades diversas” (SANTOS, 2002: 136).
No vale do rio Tocantins, esse processo materializa-se em uma
multiplicidade de combinações, porém de uma forma simplificada, tendo
como exemplo dois extremos: os lugares do “tempo rápido”, ligados aos
novos capitais, e uma nova divisão territorial do trabalho, com nexos e
eixos econômicos, políticos e culturais que se estabelecem em lógicas mais
extrovertidas e exógenas no espaço regional. Por outro lado, temos os
217
lugares ligados a um “tempo lento”, com modos de produzir e modos de
vida tradicionais que pouco se alteraram. Essas duas matrizes espaço-
temporais, em grande parte, materializam-se na divisão das áreas: a
montante e a jusante da hidrelétrica respectivamente (Mapa 3).
218
Mapa 3- O Vale do Rio Tocantins após a construção da UHT.
W E \&
ABAETETUBA
S \&
LIMOEIRO DO AJURU
- -22
- -22
\&
IGARAPE-MIRI
\&
CAMETA
\& MOCAJUBA
BAIAO \&
--33
3
- -3
GOIANESIA DO PARA
- -44
- -44
\& JACUNDA
\&
NOVA IPIXUNA
--55
5
- -5
ITUPIRANGA \&
\&
MARABA
- -66
- -66
- -51
51 - -50
50 - -49
49
219
4.4. O processo desigual de reorganização espaço-temporal pós
1970 no Baixo Tocantins.
220
inundada (igapó) fornece frutos, sementes, insetos e outros invertebrados
consumidos pelos peixes. Com a sua diminuição ou desaparecimento, a
oferta de alimento para os peixes declinou sensivelmente.
No município de Cametá, especificamente, ocorreu uma drástica
diminuição das capturas pela pesca comercial na região: a evolução das
capturas da pesca comercial demonstrou que houve uma diminuição
constante da produção pesqueira, que caiu de 900 t/ano em 1981 para 492
t/ano, em 1998, com uma queda de 83% É possível que essa queda nas
capturas seja resultado das alterações no regime hidrológico do rio após a
construção da barragem, dado que o ritmo de enchente e vazante passou a
ser regulado pelas atividades de operação da UHE. Isso pode ter
desorientado e modificado o comportamento migratório dos cardumes de
algumas das principais espécies de peixes comerciais da região,
contribuindo para a diminuição nas capturas (CMB, 2000, p.79).
O relatório da Comissão Mundial de Barragens46 (CMB, 2000)
indica ainda que houve uma redução no tamanho das populações das
espécies migratórias que possuíam valor comercial. Isso ocorreu logo após
o segundo ano de fechamento do rio, provocado pela construção da
barragem, conforme constatado na pesca experimental. Esse fato está, em
parte, sendo creditado à interrupção das rotas migratórias de espécies que
subiam o rio, passando pelas corredeiras e indo desovar no Alto Tocantins
e/ou rio Araguaia, como a ubarana (Anodus elongatus) e a curimatã
(Prochilodus nigricans).
Os dados da época de pré-barragem, na região de Cametá,
indicavam uma participação relativa do mapará (Hypophthalmus
marginatus) equivalente a 37% dos desembarques do pescado que
chegavam a Cametá (Carvalho & Merona, 1986). Contudo, entre 1988 e
1998, esse percentual caiu de 38% para 16,7%. A curimatã, que, na fase
de preenchimento, era responsável por cerca de 35% dos desembarques,
nesse período, apresentou uma queda acentuada, chegando a um mínimo
de 4,4% em 1989. A ubarana (A. elongatus) foi a espécie que sofreu o
maior impacto, praticamente desaparecendo desta região. Isso pode ser
explicado porque essa espécie migra para os cursos superiores dos rios
46
O conjunto de dados e informações aqui usado está referenciado no relatório da
comissão mundial de barragens sobre a hidrelétrica de Tucuruí (CMB, 2000).
221
Tocantins e Araguaia para reprodução, de modo que a construção da
barragem impede que a região a jusante receba novo recrutamento a cada
ano.
Isso pode ser constatado pela presença significativa dessa
espécie nas pescarias experimentais, na região a montante, e pela sua
presença nas capturas comerciais naquele trecho. É importante salientar
que a participação relativa das espécies na produção pesqueira mudou: em
1988, o mapará era a espécie dominante com mais de 35% da produção,
seguida, de longe, pela curimatã com cerca de 13%, e bagres, jatuarana,
pescada e tucunaré com menos de 10% cada. Em 1998, a participação do
mapará caiu para cerca de 17%, a curimatã subiu para cerca de 14%, a
jatuarana subiu para cerca de 13%, o mesmo ocorrendo com a pescada.
Esses dados evidenciam a ausência de uma espécie dominante destacada,
com participações relativas que ficam entre 16% e 13% entre as quatro
principais espécies (CMB, 2000:56).
Essa consequência negativa, longe de ser simplesmente
ecológica, tem um profundo impacto social e cultural na região do baixo
Tocantins, em especial, na região de Cametá, pois o rio tem um papel
fundamental na construção do modo de vida dessas populações.
No que se refere à economia da região, é possível afirmar que a
construção da UHT- Tucuruí provocou uma transformação radical na
estrutura produtiva que antes tinha uma base agro-extrativa e passa,
abruptamente, para monoprodução de energia. Essa transformação
representa forte limitação para gerar condições de desenvolvimento no nível
local. O exame da estrutura fundiária, espacial e demográfica revela a
incidência dessa mudança. Os processos desencadeados pela instalação do
empreendimento energético funcionam de maneira cíclica, provocando
fluxos de trabalhadores nas fases de construção da hidrelétrica e da
infraestrutura de base, como estradas e novas cidades (CMB, 2000).
A construção da barragem desencadeou processos de
transformação econômica que incidem, de um modo geral, na estrutura
produtiva local. A economia predominantemente agrária e extrativa foi
sendo alterada com a interferência direta e indireta do empreendimento em
áreas de uso coletivo, tradicionalmente destinadas ao extrativismo, à pesca,
222
ao cultivo nas várzeas e na terra firme. Assim, esse processo afeta, de
maneira dramática, os usos e os sistemas de apropriação tradicionais do
território praticados por diferentes grupos sociais: indígenas, colonos,
ribeirinhos, madeireiros, pecuaristas e empresas agropecuárias. Nesse
sentido:
223
apesar de uma leitura insistente classificando essa agricultura como de
subsistência, com diminuta participação no mercado:
47
Os dados estatísticos usados neste trabalho estão baseados no PPDS-Jus (Plano
Popular de Desenvolvimento Sustentável da região a jusante da UHT-Tucuruí.
(ELETRONORTE, 2003).
225
Tabela 1
Municípi ANO
o 1970 1980 1991 2000 2010
59.7 79.3 85.1 97.6 120.
Cametá
54 20 87 24 896
Igarapé 31.2 39.2 41.8 52.6 58.0
Miri 28 70 43 04 77
Mocajub 9.08 17.7 25.7 30.3 26.7
a 7 09 09 55 31
12.1 16.2 20.0 21.1 36.8
Baião
34 58 72 19 82
Limoeiro 10.0 8.84 9.26 9.75 25.0
do Ajuru 74 8 2 1 21
124. 161. 182. 211. 267.
Total
247 405 073 453 607
Taxa de
Crescim 2,65 1,10
- 1,7% 1,9%
ento % %
Anual
(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010)
Tabela 2
ANO
1980 1991 2000 2010
1970
MUNICÍPIO
Cametá 49.51
18.38 26.82 35.54 41.40
Igarapé Miri 45.12
23.24 36.17 47.31 47.49
Mocajuba 68.38
26.79 31.18 45.73 47.97
Baião 50.31
23.00 25.13 39.24 51.45
Limoeiro do
24.77
Ajuru 8.84 17.72 27.23 38.66
Total 47.61
19.60 28.90 39.67 44.74
(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010)
227
Tabela 3
DÉCADA
MUNICÍPIO U R
U
U R U R R U
R R
R U R U B R
B U
B R B R .
. R.
. . . .
1 1
1 - 1 2 2 0
9
0 9. 3 0 . . .
.
Cametá . 27 . . 2 4 8
0
2 5 1 1 9
0 2 5
9 3 4 6
2 9 1
1 5 1
1 4
- 5 5 . .
6 5
1. 3 . . 2 1
. .
Igarapé Miri 09 . 1 5 2 9
9 5
5 0 8 7
4 9 6 3
1 6 5
7 2
9
1 2 1
3 2
3 6 . .
5. . . .
. . 7 4
Mocajuba 53 7 8 8
0 2 3 6
5 6 0 4
8 3
5 5 1 6 7
7 5
7 8
2 - . .
1 3
2. . 1 6 0
. .
Baião 82 2 9 . 9 9
2 7
9 3 8 9
9 9 0 8
9 4
5 1
2
1 2 3
- - -
6 9 .
1. 5 7 . .
Limoeiro do Ajuru 7 5 2
90 4 5 4 0
7 4 4
3 0 9 2 3
8
8 6
228
2 2 - 2 2 2
7 7 8
2 5 4 2
14 .
. . . . . .
Total .8 0
2 5 9 3 5 6
64 0
9 8 1 7 0 4
4
4 2 4 6 9 5
(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010).
229
diferencialmente afetados pelas novas temporalidades hegemônicas e,
como já ressaltamos, é dessa combinação que resulta o tempo espacial
próprio de cada lugar (SANTOS 2004, p.257).
Assim, o Baixo Tocantins tem o seu próprio tempo, seu tempo
interno em relação aos tempos externos (a Amazônia, o Brasil, o mundo).
Seu tempo é o tempo da fronteira, percebida aqui como a coexistência e o
(des)encontro de temporalidades na contemporaneidade (Martins, 1996).
No Baixo Tocantins, o tempo é múltiplo, plural – ele tem seus próprios
ritmos –, sofrendo acelerações ou transformações mais intensas e extensas
pela introdução de outras temporalidades, através do ritmo da
produtividade, do tempo da modernização, que vem reestruturando o
espaço regional, bem como os tempos dos atores não hegemônicos
(subalternizados) nos seus ritmos cotidianos. Tal processo dá-se em
intensidades e densidades distintas que, historicamente, produzem uma
imbricação e uma combinação sempre diversas nos diferentes lugares.
Assim, num mesmo espaço, podemos encontrar o ritmo social, a
temporalidade hegemônica do capital, marcada pela maior velocidade, em
contraste com uma Amazônia que tem, no rio, sua referência quase
exclusiva de ritmo social. Os lugares de incidência direta dos vetores de
modernização, tanto do sistema de objetos (materialidade: paisagem cada
vez mais artificial, tecnificada, cientificizada) quanto do sistema de ações
(novas temporalidades e dinâmicas sociais mais velozes), aos quais
acrescentaríamos os sistemas de valores (o modo de vida urbano e um
novo imaginário), caracterizam-se por um grau cada vez maior de
racionalidade, pela intencionalidade, pela artificialidade e pela fluidez
capitalista. Esses lugares e suas sociedades experimentam, de uma forma
hegemônica, aquilo que Santos (1993) denomina “tempos rápidos”. Essa
rapidez, velocidade, vertigem, personifica o processo de “aceleração
contemporânea que impôs novos ritmos aos deslocamentos dos corpos e o
transporte das idéias” (SANTOS, 1993:30).
A partir das reflexões de Santos (1993), poderíamos afirmar que,
no vale do Rio Tocantins, existem diferentes tempos, ou melhor,
temporalidades (ritmos) desiguais: os tempos ”rápidos” (hegemônicos) nos
espaços “luminosos” e os tempos “lentos” (hegemonizados ou subalternos)
230
nos espaços “opacos”. Esses diferentes tempos tornam-se empiricizados
através dos diferentes sistemas técnicos imprimidos no espaço a partir das
diferentes lógicas da divisão territorial do trabalho, bem como através dos
diferentes modos de vida.
Mas é importante destacar que a desigualdade de tempos (ritmos
sociais) que se traduz em tempos “lentos” e “rápidos” precisa ser vista
como uma relação dialética e não como dualidade, pois esses tempos não
têm um valor absoluto, seus significados só podem ser revelados na relação
de um com o outro e pelo uso concreto dos diferentes atores sociais. É
assim que, a partir de cada agente, de cada classe ou grupo social,
estabelecem-se as temporalidades que são a matriz das especialidades
vividas no lugar (SANTOS, 2002:133).
231
“geograficidade” (organização espacial, modo de vida), além de matriz da
temporalidade (ritmo social) e do imaginário (lendas, mitos, crenças,
cosmogonias).
Essas diferentes experiências espaço-temporais produzidas pela
dinâmica de “modernização da região” resultaram em transformações e
permanências que afetam o significado social e cultural das práticas e
representações de tempo e espaço, o que implica mudanças do significado
das identidades socioculturais que, nesse processo, alteraram-se,
mesclaram-se e diversificaram-se a partir de uma combinação específica de
temporalidades, concepções e vivências nos diferentes lugares.
Sendo assim, entendemos que as diferenciações dos lugares do
Baixo Tocantins é, ao mesmo tempo, um produto de uma construção
“sistêmica” das desigualdades – principalmente, aquela promovida pela
(des)ordem econômica resultante da inserção desigual dos lugares numa
nova lógica de divisão territorial do trabalho, com elos e nexos mais
extrovertidos e globalizados, resultante da “modernização” dos grandes
projetos, o que implica novas espacialidades e temporalidades – e da re-
criação de singularidades culturais próprias de cada lugar através de
diferentes experiências, vivências e identificações com o espaço.
232
construção da barragem foi diferente, em muitos momentos os chamados
atingidos à montante e a jusante se juntaram na luta, contudo os
movimentos assumiram distintas trajetórias, formas organizativas
diferentes e, em muitos aspectos, objetivos e agendas próprias.
A montante a construção da hidrelétrica provocou um intenso
processo de mobilização compulsória levando um radical processo de des-
territorialização visto que as comunidades camponesas (posseiros,
parceiros, meeiros, arrendatários), ribeirinhas, indígenas e também
comunidades urbanas foram obrigadas a deixar suas casas, suas terras,
seus modos de vida, suas memórias e de alguma forma tiveram que
refazer suas identidades e se adaptarem novos ambientes diga-se de
passagem ambientais hostis a seus modos de vida na maior parte do
assentamentos sejam rurais ou urbanos . No caso da montante, o
movimento convergiu para a criação do Movimento dos atingidos por
barragens – MAB, que encampou as inúmeras demandas das mais diversas
comunidades afetadas pela construção da barragem, sejam estas
comunidades ribeirinhas ou urbanas.
Já do lado da jusante não houve um processo de des-
territorialização no sentido literal, mas houve uma precarização dos vínculos
territoriais das comunidades com seus ambientes e seus territórios, houve
uma degradação das condições ambientais e sociais de reprodução dessas
comunidades o que levou a uma deteriorização das condições de vida das
comunidades localizadas na várzea e que foram afetadas de barragem do
rio, desse processo resultou um movimento de migração para áreas
urbanas dos municípios ou ainda uma migração para áreas do lago a
montante da hidrelétrica onde as comunidades buscavam encontrar
melhores condições de sua reprodução
Ao perceberem a ameaça representada pela expropriação de seus
bens – terras, benfeitorias –, as populações rurais, ribeirinhas e também
urbanas empreenderam uma ação de r-existência como forma de afirmação
de sua sobrevivência física, social e política. E, desse modo, construíram a
identidade de “atingidos pela barragem” e a condição de sujeitos em luta
por direitos e na defesa de seus modos de vida.
233
Sob a orientação da Prelazia de Cametá e pela ação da Pastoral
da Terra e dos sindicatos dos trabalhadores rurais, além de outras
instituições que atuavam nas assessorias, essas populações travaram
inúmeras lutas contra a ação autoritária da ELETRONORTE, que ignorou as
suas territorialidades e os seus modos de vida.
Assim, esse processo de luta derivou das profundas negligências
da empresa em relação aos impactos ecológicos e sociais causados pela
hidrelétrica. Isso fica claro no que se refere à postura da empresa em
relação à área a jusante da Barragem. Segundo as informações da CMB
(2000), a ELETRONORTE considerou os impactos previstos para o trecho a
jusante de natureza “temporal e circunstancial”. Diante dessa perspectiva,
as medidas tomadas pela estatal foram no sentido de garantir a
sobrevivência das populações ribeirinhas durante os dois meses de
interrupção do curso do rio através da implantação de “medidas transitórias
minimizadoras de impactos localizados”.
O relatório da CMB (2000) mostra, ainda, que a análise da
documentação da época revelava que dois objetivos orientaram as
intervenções a jusante. O primeiro foi concebido para evitar os efeitos
diretos da redução do nível de água e garantir a sobrevivência das
populações ribeirinhas através do planejamento de medidas que
assegurariam o suprimento de água, a assistência médica e o
abastecimento alimentar. O segundo objetivo visava atenuar o clima de
tensão resultante dos boatos que circulavam entre a população sobre as
consequências do represamento do rio. No sentido de restabelecer a
tranquilidade, estabelecer a confiança da população e acalmar os ânimos, a
ELETRONORTE recrutou lideranças simpáticas ao projeto que pudessem ser
aliadas na disseminação de informações “tranquilizadoras”.
Essa estratégia adotada pela empresa funcionou num primeiro
momento no sentido de produzir uma desmobilização das populações
ribeirinhas. Além dessa ação intencional da empresa, existia inicialmente
entre as populações localizadas a jusante da hidrelétrica uma grande
receptividade à ideia da construção da hidrelétrica de Tucuruí, pois não se
tinha clareza das conseqüências ecológicas e sociais negativas que tal
empreendimento implicaria, visto que não se tinha feito qualquer discussão
234
com a população no sentido de esclarecer essas possíveis consequências
negativas.
Concorriam ainda para este entusiasmo as notícias veiculadas
pela mídia local e nacional que anunciavam a construção da UHT como a
chegada do progresso e do desenvolvimento para a região, afirmando que a
energia elétrica viabilizaria a implantação de fábricas, de indústrias, criando
novos postos de trabalho, melhorando, assim, as possibilidades de geração
de renda. Esse imaginário, baseado no “fundamentalismo do progresso”,
impediu de início a capacidade de mobilização das populações a jusante.
Se diante das fortes pressões exercidas pela população atingida a
montante identificou-se uma mudança no comportamento da ELETRONORTE
no que concerne à implementação de política compensatória, o mesmo não
ocorreu em relação à população a jusante, com a qual nada foi negociado. A
área a jusante foi praticamente ignorada por estas políticas, mesmo quando
foram comprovados os impactos de forma direta ou indireta que
provocaram importantes alterações nas formas de vida e nos meios de
sobrevivência das populações locais.
Diferentemente da previsão feita pela ELETRONORTE, segundo a
qual os impactos da UHT que incidiriam na área a jusante seriam de baixa
intensidade e de natureza circunstancial, o relato dos moradores demonstra
que, após o fechamento da barragem e a formação do lago, ocorreu uma
alteração na dinâmica das várzeas, o que se refletiu na produção existente,
a exemplo do cacau nativo da região do Baixo Tocantins. Essa atividade
empregava muita gente no período da entressafra da pesca, mas, a partir
das alterações na dinâmica das várzeas, baixou o nível de produção e
algumas áreas praticamente desapareceram.
Esse mesmo processo pode ser verificado também em outras
culturas, como a do açaí e da andiroba, entre outras, além da pesca, como
já foi ressaltado anteriormente. Além disso, diversos estudos sobre a
qualidade da água desenvolvidos na área, especificamente entre 1986 e
1988, revelaram problemas graves para o abastecimento da população, em
consequência das alterações na característica físico-química da água e da
contaminação biológica em todo o trecho a jusante de Tucuruí, à exceção
da vila residencial dos funcionários da ELETRONORTE. A poluição provocou
235
ainda doenças como meningite, no Município de Baião, gastrite, diarréia,
infecção intestinal e problemas uterinos (muitos casos de aborto) em outros
municípios (CMB, 2000).
Ainda podemos verificar que, para além de uma dimensão mais
ecológica que afetou os ecossistemas e a saúde das populações ribeirinhas,
a construção da hidrelétrica de Tucuruí atingiu, em várias dimensões, o
trabalho e o modo de vida de tais populações, pois:
237
Apesar de certa demora e lentidão na organização e mobilização,
o movimento a jusante revela, aos poucos, significativos avanços, já que,
no processo de luta, os pescadores e as populações locais tomaram
consciência e começaram a perceber que o desaparecimento do peixe e as
alterações no regime do rio e no ciclo de produção de frutas nativas não
eram decorrentes do castigo de Deus, de uma ordem natural, mas
resultante dos efeitos da construção da barragem do rio Tocantins. A partir
daí, têm início a politização da sua condição de ribeirinho e a afirmação de
uma identidade de “atingidos”.
Assim, sob a liderança dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais
(STRs) e das CEBs, em meados da década de 1980, as populações
ribeirinhas a jusante começam a manifestar suas inquietações sobre os
“impactos” da barragem. Isso levou a um intenso processo de
problematização de suas condições sociais e à constituição de um campo de
politização sobre a condição de ribeirinhos e de “atingidos”. Esse processo
ocorre:
238
Esse processo de mobilização a jusante teve como marco a
realização do I Congresso de Pescadores do Baixo Tocantins, ocorrido em
Cametá, em agosto de 1992, que teve como objetivo principal despertar a
consciência da população local, especialmente a dos pescadores, para os
problemas que estava enfrentando. Além desse encontro, outros ciclos de
protestos ocorreram, seja em Belém, em Tucuruí ou em outros municípios,
em especial os chamados “grito da terra”, organizados por um conjunto de
entidades ligadas ao sindicalismo rural e os “encontros de anilzinho”,
promovidos pela prelazia de Cametá durante toda a década de 1980 e o
início da década de 1990. Esse conjunto de mobilização buscou sensibilizar
a opinião pública e o fortalecimento da identidade do próprio movimento, a
identidade de “atingidos”.
Nesse contexto, segundo Castro (1989), foi fundamental o
trabalho da CPT que, tomando como base organizativa a comunidade,
reforçou as atividades de conscientização política sobre os problemas
concretos enfrentados pelas comunidades no seu cotidiano. Nesse
processo, dava-se um complexo processo de organização política e de
afirmação identitária envolvendo “um misto de simbolismo religioso e
reflexão sobre o real” que se tornaram traços fortes na constituição do
movimento camponês nessa região da Amazônia. Na construção da
consciência e da identidade política, “mesclam-se aos rituais religiosos
(procissões, missas...), os cânticos de luta pela terra e pela conquista da
cidadania afirmando com veemência o desejo de „libertação dos povos‟”
(p.67).
240
Nesse processo de lutas, uma das maiores conquistas foi a
construção da linha de transmissão que permitiu o fornecimento da energia
elétrica produzida pela barragem do rio para os municípios do Baixo
Tocantins a jusante como Baião, Mocajuba, Cametá, e Oeiras do Pará, entre
outros, pois, apesar dos danosos impactos produzidos pela construção da
hidrelétrica, esses municípios ficaram mais de uma década, após o
funcionamento da hidrelétrica, sem ter acesso à energia, enfrentando
graves problemas de fornecimento de energia devido ao colapso do sistema
termoelétrico que os abastecia. A conquista do acesso à energia envolveu
uma intensa luta dos movimentos sociais que atuaram através de protestos,
mobilizações e ocupações, bem como pela pressão ao governo através de
parlamentares e lideranças religiosas etc.
Mais recentemente, os movimentos sociais adquirem uma outra
conquista significativa, pois a ELETRONORTE, depois de quase duas
décadas, admitiu os impactos causados pela barragem do rio, abrindo, a
partir de 2002, um amplo processo de negociação e construção de um plano
de recompensas para os municípios a jusante, o chamado PPDS-Jus (Plano
Popular de Desenvolvimento Sustentável da Região A Jusante da UHT).
Nele, a ELETRONORTE assume sua responsabilidade social pensando,
construindo e conduzindo o desenvolvimento regional juntamente com as
populações da região a jusante da UHE Tucuruí (PPDS-Jus, 2003). Na
redação final do documento é definido que:
241
pesquisas, religiosas, órgãos públicos e privados, ONG´s, comunidades
indígenas e quilombolas etc.” (PPDS-Jus, 2003:7). Contudo, apesar do
avanço na participação democrática, na construção participativa das
demandas, efetivamente, ainda não se pode ver resultados significativos
desse plano.
Mas, para além dessas conquistas mais visíveis, um aspecto
positivo fundamental nesse processo foi, indubitavelmente, o grande
acúmulo de experiências e um grande aprendizado político proporcionado
aos movimentos sociais. Isso implicou a construção de uma densidade
histórica e de legitimidade política desses movimentos, proporcionando a
emergência de uma nova cultura política, fruto da construção de “políticas
culturais” que afetaram as tradicionais formas de fazer política, bem como o
deslocamento e a fratura das velhas representações e dos discursos sobre a
identidade dessas populações, pautados numa visão racista e colonialista
que se personifica no estereótipo do “caboclo”. Nesse processo, emergem
novas representações e discursos que apontam para horizontes
emancipatórios a partir da produção de novas identidades políticas.
242
Assim, a estruturação e a configuração da rede de núcleos
populacionais e, mais tarde, da rede urbana na região, está intimamente
ligada aos rios, e é o padrão de drenagem da rede hidrográfica o principal
elemento norteador das relações entre os lugares. Nessa perspectiva, o rio
torna-se o principal elemento da circulação do espaço regional e um fator
essencial na geopolítica de defesa do território dos colonizadores
portugueses.
Um desses rios, que se constituía como verdadeiro portal de
aceso à região, ligando-a ao território nacional, era o rio Tocantins. É na
margem esquerda deste rio que, após a fundação de Belém, os
colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem à cidade e ao
Município de Cametá.
Segundo Moura (1986), esse processo de colonização que se dá
pela “força da espada, da pólvora e da cruz”, e os interesses mercantilistas
e cristãos chegam juntos ao solo da Amazônia. Em 1617, Frei Cristóvão de
São José se estabelece às margens do Tocantins e ergue o maior símbolo de
uma ordem sóciocultural e territorial: uma ermida (igreja), grafando na
paisagem as marcas da força do colonizador, e por meio da catequese
imprimindo o “processo civilizatório” nos índios da tribo Camutá. Isso se
materializa no domínio dos gentios e na estruturação do núcleo
populacional.
Segundo Pompeu (2002) a donataria de Cametá foi concedida em
14 de dezembro de 1633 a Feliciano Coelho de Carvalho por ato de doação
de seu pai Francisco Coelho de Carvalho, então Governador do Maranhão e
do Grão-Pará. A sua extensão territorial foi marcada por Carta Régia de 26
de outubro de 1637. Desta maneira o povoado é elevado à categoria de
vila, com o nome de Vila Viçosa de Santa Cruz de Cametá, cuja instalação
aconteceu em 24 de dezembro de 1635.
Moura (1986) afirma que a vila permaneceu sem grandes
mudanças, como era típico da região na época. As atividades do comércio,
do extrativismo, da pequena agricultura, da administração e da catequese
constituíam-se como principais funções do núcleo populacional. Já no século
XIX, a 24 de outubro de 1848, a vila é elevada à categoria de cidade e
experimenta um relativo “desenvolvimento urbano”, marcado pela
243
transformação do espaço por obras de infra-estrutura que demonstravam
uma certa modernização, o que implica em um grande destaque da cidade
na região Amazônica.
As mudanças da condição de Colônia para Império e deste para
Republica pouco alteraram as relações sociais e a vida cotidiana da maioria
da população na Amazônia, e mais especificamente de Cametá. Ocorre que,
de uma forma mais geral, a Amazônia ficou fora do circuito de influência do
centro do poder nacional, estruturando-se a partir de uma lógica própria ou
sendo influenciada mais decisivamente por suas relações internacionais, em
especial com a Metrópole portuguesa.
Esta situação, de um cotidiano de “inércia”, é assim descrita por
Moura apud Pompeu (2002, p.27):
244
nativos da região tocantina egressos do extrativismo. Segundo Souza
(2002):
246
e na dominação da maioria da população e, em especial, das populações
rurais e ribeirinhas, manteve-se e nutriu-se durante muito tempo nas
práticas econômicas, sedimentadas no sistema de aviamento e no campo
cultural pelo domínio das relações religiosas, ligadas às chamadas
irmandades de Santo e pela afirmação da memória e identidade dos
homens “notáveis”.
Esse sistema de exploração econômica e dominação política
resultava no fortalecimento de uma elite mercantil e, ao mesmo tempo, de
uma cena política sob o domínio das oligarquias familiares. Essa
configuração do poder local vai permanecer absolutamente hegemônica e
estável até o final dos anos 1960, quando surge um movimento que começa
a esboçar os primeiros contornos de resistências ao exercício do poder
econômico, político e religioso em Cametá.
O marco desse processo é a reorientação da forma de atuação da
prelazia de Cametá na região do baixo Tocantins. Até por volta de 1952 a
ação pastoral em Cametá era orientada a partir da arquidiocese de Belém,
não havendo envolvimento direto da ação pastoral nas práticas de
organização comunitária de caráter mais político. Mas a partir do início da
década de 50 a Prelazia ganha autonomia e passa a controlar um vasto
território que envolvia diversos municípios. Contudo, até 1969, essa
atuação da Prelazia de Cametá era alinhada com as elites comerciais e
políticos locais, não apresentando nenhuma resistência institucional ao
poder das oligarquias, nem no que se refere à prática de um catolicismo
popular centrado na devoção de santos padroeiros – e não questionando o
modelo de irmandades organizadas por leigos.
Contudo, no final da década de 1960, uma nova direção assumiu
a prelazia de Cametá e procedeu a uma avaliação da ação pastoral,
juntamente com um estudo da realidade econômica e social da Prelazia. A
partir desse estudo e avaliação considerou-se como problemas a serem
enfrentados pela ação da Igreja em Cametá duas questões:
248
Houve também outros importantes agentes nesse processo. É o
caso da Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional - FASE -,
que no final dos anos 1970 teve um papel muito importante no processo de
politização dos trabalhadores rurais em Cametá. Mas a influência da Igreja
foi tão forte e decisiva na redefinição da dinâmica política do município que
podemos verificar que hoje todas as entidades e organizações, e quase a
totalidade das lideranças no município de Cametá, são tributárias do intenso
processo de formação política na Igreja e pela Igreja, em especial, a partir
dos anos setenta e até o inicio dos anos 1990; quando esta assumiu uma
linha de atuação progressista baseada no princípio da “fé e política”, sendo
decisiva na formação de uma nova cultura política, que primava pela
participação política e o protagonismo das populações trabalhadoras em
Cametá. Como legado desse processo de atuação da Igreja Católica, é
possível destacar: a) As Comunidades Cristãs; b) O Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Cametá - STR; c) A Colônia de Pescadores - Z 16;
d) A Organizações Não-Governamentais (como o Centro Miriti e o IDEAS);
e) Os partidos políticos (em especial o Partido dos Trabalhadores - PT) e f)
E ainda um conjunto de associações de trabalhadores rurais, associações de
bairros, associações de mulheres, associações de preservação ambiental
etc.
Assim, o trabalho de formação comunitária da Igreja construiu
um legado que se materializou num fortalecimento da sociedade civil com
maior capacidade de organização e mobilização popular. A atuação da
Igreja e o conseqüente fortalecimento da capacidade de organização
comunitária e política foram construídas na base, sobretudo, com as
comunidades rurais e ribeirinhas do município. Essa força da sociedade
organizada está expressa numa pesquisa feita pelo Conselho Mundial de
Igrejas, com sede em Genebra, onde foram levantadas as cidades mais
politizadas do Brasil:
249
as capitais, Belém ficou na vigésima colocação (Jornal O Liberal,
2003).
250
política tem se sustentado através de práticas políticas autoritárias,
assistencialistas e populistas, pautadas, sobretudo nas relações de
compadrio e mandonismo político que se sustentam pela extrema miséria
da grande maioria da população, em especial das populações rurais e
ribeirinhas que se tornam extremamente vulneráveis a essas práticas
políticas, pois, num quadro social onde a grande maioria fica à margem de
políticas públicas que garantam os direitos básicos como educação e saúde,
florescem as políticas assistencialistas com fins eleitorais.
Neste sentido, os movimentos sociais vêm nas últimas duas
décadas tentando romper com essa cultura política autoritária,
assistencialista e populista, buscando novos valores que garantam o
protagonismo dessas populações como atores importantes no espaço
público e como sujeitos de direitos. Desse modo, procuram construir uma
nova cultura política pautada em valores como a organização popular, a
participação democrática e a autonomia política. No plano mais institucional
o resultado mais significativo tem sido a eleição de vereadores ligados aos
movimentos, sobretudo a Colônia de Pescadores e o Sindicato de
Trabalhadores Rurais, bem como a eleição em 2000 de um prefeito do
partido dos trabalhadores ligado a esse movimento, rompendo um ciclo
histórico de domínio das oligarquias familiares.
Mas, para além desse quadro institucional que é algo significativo,
é importante enfatizarmos que essa nova cultura política permitiu um
processo de politização da cultura ou construção de “políticas culturais” que
implicaram na produção de uma consciência da condição ribeirinha, o que
parece ser um dos mais significativos produtos desse processo. Pois essas
lutas são por demandas políticas e econômicas de caráter mais
redistribuitivo, embora, esses movimentos também lutem pelo
reconhecimento de suas condições socais e culturais a partir da afirmação
de suas identidades. Esse processo vem se dando através da “politização de
sua cultura” e do seu modo de vida, lutando contra um conjunto de
estigmas e preconceitos personificados no estereótipo do trabalhador rural e
do ribeirinho como “caboclo”. (Mais adiante voltaremos a enfatizar esse
processo de politização da cultura na construção de uma identidade
ribeirinha).
251
Nesse quadro se destaca o papel da Colônia de Pescadores de
Cametá Z-16, por sua intensa atuação na organização dos pescadores e na
luta pela qualidade de vida das populações ribeirinhas. Contudo, apesar de
existir desde 1923, só recentemente esta entidade assume uma postura
política voltada para a defesa dos interesses dos pecadores, visto que na
sua origem as colônias foram criadas como órgãos diretamente ligados aos
interesses do Estado, como nos falava o presidente da colônia em 2005,
hoje atual vereador pelo partido dos trabalhadores:
252
nada a ver como as populações ribeirinhas e não tinham afinidade alguma
com os interesses dos pescadores.
Esse quadro em Cametá era generalizado por toda a Amazônia e
só começa a se modificar, segundo Mello (1995), com a abertura política,
com o fim do regime militar e a rearticulação do movimento sindical em
todo o país, pela influência das principais lideranças do sindicalismo rural no
Pará e o apoio de entidades ligadas, sobretudo à Igreja (em especial a
Comissão Pastoral da Terra, FASE, e ainda a recém criada Comissão
Pastoral Pesqueira, que tem sua origem no final dos anos 1980). Algumas
tentativas de reversão desse quadro foram tentadas na região, a começar
pelas eleições de 1982, em Santarém (PA), que conduziram pela primeira
vez pecadores à direção de uma Colônia na historia do país.
Ainda de acordo com Mello (1995) foi a partir daí, e
particularmente em função destes movimentos de base da sociedade civil,
que surgiram no Brasil em meados dos anos1980, o Movimento pela
constituinte da Pesca, influenciado pelo apoio da Comissão Pastoral
Pesqueira Nacional/CNBB (e suas ramificações regionais), Sindicatos de
Trabalhadores Rurais, Partido dos Trabalhadores e outras lideranças
político-partidárias. Esse movimento tinha como objetivo convocar todos os
pescadores do país para discussão e elaboração dos novos princípios
regulamentadores para as Colônias de Pesca, a serem defendidos junto aos
parlamentares constituintes.
Desse movimento resultou, conforme Leitão (1996), a mudança
na constituição, apontando para o direito à liberdade organizativa, a
autonomia e não-interferência do poder público na organização sindical,
assim como a equiparação das colônias de pescadores aos sindicatos. Esse
novo quadro jurídico e político possibilitaram a ascensão dos pescadores às
diretorias das colônias. Contudo, esse processo tem se dado de maneira
lenta e desigual e muitas vezes conturbado.
Em Cametá já havia uma forte organização sindical ligada ao
Sindicato dos Trabalhadores Rurais existente desde o final dos anos 1970 e
com uma diretoria progressista a partir do início dos anos 1980, muitos dos
sócios e líderes do movimento sindical na verdade eram pessoas da região
das ilhas e tinham como atividade fundamental a pesca, mas devido à
253
Colônia dos Pescadores ser uma entidade que não primava pelos seus
interesses, os pescadores vivenciavam sua militância junto ao Sindicato dos
Trabalhadores Rurais.
Mas a partir de 1982 a prelazia de Cametá passou a fazer um
intenso trabalho de conscientização dos pecadores através de visitas às
comunidades ribeirinhas, encontros, cursos etc. Este trabalho proporcionou
a constituição de uma base de organização que começa a se projetar na
direção de assumir o controle da colônia de pescadores. Contudo, isto só
ocorre a partir da reformulação da constituição e dos novos marcos jurídicos
que permitiram a liberdade e autonomia de organização. É somente nesse
novo contexto que os pescadores conseguiram alterar o Estatuto e criar
condições de eleições que permitissem a ascensão dessa categoria ao
controle efetivo da sua entidade de representação. Depois de um
conturbado processo, onde representantes da oligarquia local que
dominavam historicamente a colônia impediram de forma autoritária o
controle de fato e de direito dos pescadores, esse processo teve como
desfecho a tomada plena do controle da entidade pelos pescadores. A fala
do ex-presidente da colônia relata bem esse processo:
254
Até esse momento histórico, apesar de uma experiência nas lutas
contra os impactos da hidrelétrica sob a liderança do sindicato e da prelazia,
os ribeirinhos, os pescadores, ainda apresentavam um baixo nível de
organização pela ausência de uma entidade capaz de representar de fato
seus interesses, isso estava expresso numa baixa auto-estima, numa
invisibilidade política revelada pelo vereador José Fernandes, ex-presidente
das colônias dos pescadores:
255
politização da cultura e do modo de vida ribeirinho, que afirma o rio como
espaço de referência identitária. Isso só vai a acontecer quando a afirmação
do que é “semelhante” torna-se “interessante”, quando “ser pescador”
implica na afirmação de direitos e acesso a recursos da sociedade. Isso
mostra que a identidade não é construída em torno de um núcleo de
autenticidade, de uma experiência cultural primordial (SILVA, 2003), mas é
uma construção histórica de caráter estratégico e posicional (HALL, 2004)
mobilizada na afirmação de um determinado grupo social na disputa por
outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. Pois, como nos afirma
Silva (2004:81):
257
populações ribeirinhas, pois em todas as falas e documentos dessas
entidades a identificação de “pescador artesanal” aparece como forma de
identificar essas populações.
Contudo, a afirmação de uma identidade ribeirinha ultrapassa e
extrapola o espaço de organização e luta da colônia dos pescadores e se
situa em uma dimensão mais ampla, pois nos últimos anos em Cametá
ocorreram algumas modificações em diversos setores da sociedade que vem
contribuindo para uma maior visibilidade da identidade ribeirinha.
Um marco decisivo nessa construção foi a chegada ao poder
municipal do Partido dos Trabalhadores que tem sua base de sustentação
nas organizações ligada as populações rurais (Sindicato dos Trabalhadores
Rurais - STR) e as populações ribeirinhas (a Colônia dos Pescadores Z -16).
Após sucessivas candidaturas do PT, seja para o mandato de
48
vereador , seja para a Prefeitura Municipal, ampliou de maneira consistente
o acúmulo de força eleitoral nas eleições de 2000, contribuindo para que a
chapa Frente Popular Democrática Cametaense conseguisse vencer as
eleições municipais. Nesse momento têm-se então no governo um
representante forjado na intensa mobilização dos movimentos sociais, na
luta pela melhoria das condições de vida das populações rurais e
ribeirinhas. A chegada de um trabalhador (José Rodrigues Quaresma) à
frente da administração do município, significou, pelo menos em tese, uma
conquista dos trabalhadores.
Assim, de 2001 a 2004 instala-se no município o “governo
popular”. Essa administração que tem à frente o Partido dos Trabalhadores
foi marcada por controvérsias, avanços e recuos, cuja análise foge ao
objetivo desse trabalho, pois o que nos interessa em particular é verificar o
que significaram as ações desse governo no processo de politização da
cultura rural e, em especial, ribeirinha, e ainda qual o significado da
ascensão dessas novas forças políticas na construção do discurso identitário
em Cametá.
48
Registra-se que a Câmara Municipal de Cametá já vem integrando representantes do
Partido dos Trabalhadores desde o mandato 1989 a 1992, tendo sido eleitos vereadores
nesse mandato os nomes de Manuel Maria Rodrigues Louzada e José Maria de Jesus
Cordeiro.
258
Nos últimos sete anos, forças políticas conservadoras ligadas as
oligarquias locais retomaram o poder municipal muito dos avanços
empreendidos na gestão de governo de origem mais popular retrocederam,
contudo, uma cultura política de participação e fortalecimento de uma
identidade cultural e política das comunidades rurais e ribeirinhas do
município de Cametá vem progressivamente aumentando e se
consolidando.
Hoje, o principal ator político da sociedade civil no município é a
Colônia dos Pescadores, uma entidade que demonstra grande capacidade
de mobilização e de organização das comunidades ribeirinhas, esse
fortalecimento também tem a ver com uma nova conjuntura a nível
estadual e federal na qual o setor da pesca foi fortalecido pela criação de
secretarias e ministérios, além de algumas políticas públicas que pela
primeira vez foram direcionadas para os chamados “pescadores artesanais”,
esse contexto favorável fortaleceu ainda mais o papel que essa entidade
tem no contexto político local.
Foi dentro dessa cultura política que se forjaram as lideranças e
os movimentos que deram origem aos chamados “acordos comunitários de
pesca” em diversas localidades do município, são essas experiências
entendidas como uma estratégia territorial de reapropriação social do rio
que iremos analisar no próximo capítulo.
259
“O terreno”
260
5. CAPÍTULO. ACORDOS COMUNITÁRIOS DE PESCA COMO
ESTRATÉGIA DE REAPROPRIAÇÃO SOCIAL DO TERRITÓ-RIO.
5.1. Introdução
261
assumindo um papel de protagonistas no que se refere às lutas pela
reapropriação social da natureza (uma lógica não mercantil de apropriação).
Esse processo significa não só a luta pelo controle dos recursos naturais e
dos meios de produção necessários a sua sobrevivência, mas a luta para
afirmação de modos de vida, de outras matrizes de racionalidade de uso-
significado da natureza e a autogestão dos seus próprios territórios.
Na Amazônia brasileira, desde final dos anos 1980, alguns
movimentos sociais adotaram como principal bandeira de luta a
reivindicação de direitos territoriais. Esses grupos e comunidades
começaram a reivindicar que o Estado brasileiro reconhecesse as históricas
formas de ocupação e apropriação da terra e dos recursos naturais,
fundadas no uso coletivo ou familiar. É nesse embate que vão surgir
diversas estratégias de reapropriação social da natureza, dentre as quais
podemos destacar a luta pela criação das chamadas reservas extrativistas,
iniciada pelo movimento dos seringueiros no Acre e que, depois, foi se
ampliando como demanda de diversos grupos extrativistas por toda
Amazônia. É nesse contexto de lutas por direitos territoriais e pela
reapropriação social da natureza que diversos grupos de ribeirinhos e
pescadores artesanais, em um embate contra as formas de apropriação
privada e mercantil das áreas de várzeas, vêm inventando diversas táticas e
estratégias territoriais de controle e reapropriação social de lagos, igarapés
e rios na Amazônia.
As áreas de várzeas, os rios, lagos e igarapés da Amazônia
tornaram-se objetos de diversas formas de apropriação econômica, a partir
da década de 1960, com o processo de modernização conservadora a que a
região foi submetida. Essas apropriações vão desde a intensificação da
pesca de caráter comercial, e muitas vezes de natureza predatória, até a
construção de hidrelétricas, sem falar na apropriação para pecuária e
agricultura comercial. Essas novas formas atingiram profundamente a vida
daquelas comunidades que historicamente ocuparam essas áreas e, em
muitos casos, os modos de vida dessas comunidades foram drasticamente
afetados a ponto de ficar comprometida a própria sobrevivência desses
grupos. Como forma de resistência e na busca por alternativas a essa nova
situação, as comunidades ribeirinhas criam diversas formas de operações,
262
mecanismos, táticas e estratégias de controle e reapropriação dos seus
territórios, dentre os quais vale destacar os chamados Acordos
Comunitários de Pesca.
Esses “Acordos” podem ser entendidos como uma dessas
estratégias territoriais de apropriação social da natureza. São instrumentos
de gestão coletiva e comunitária dos recursos pesqueiros (podendo se
estender a outros recursos naturais) que, através do diálogo entre os
pescadores e os órgãos responsáveis pela legalização e fiscalização da
atividade pesqueira, estabelecem normas de apropriação desses recursos.
Em alguns casos esses acordos são regulamentados por meio de Portarias
que possuem força de lei através de Instruções Normativas, mas, em outros
casos, esses acordos não são reconhecidos legalmente, havendo, inclusive,
em algumas situações, tensionamentos com o ordenamento jurídico
vigente.
Tais “Acordos” têm sido feitos com objetivo de reduzir as práticas
de pesca predatória e aumentar a produtividade da pesca, garantindo o
controle das comunidades sobre o seus recursos e territórios. A partir dos
Acordos de Pesca, os pescadores adquirem a responsabilidade e a
autonomia de gerir os recursos pesqueiros que estão disponíveis nos seus
territórios, juntamente com os órgãos responsáveis pela fiscalização e
legalização da atividade na localidade, através de um processo de cogestão
dos recursos pesqueiros (gestão compartilhada).
A participação dos pescadores na construção dos Acordos de
Pesca produz identificações com as regras criadas, gerando um laço de
identidade com esses acordos, fortalecendo o sentido de comunidade e
facilitando o processo de monitoramento e cumprimento dos mesmos, mas
não sem tensões e conflitos, como veremos mais à frente. Dessa forma, os
acordos de pesca são um mecanismo de democratização da gestão dos
recursos pesqueiros .
Segundo CASTRO E MCCRATH (2001), o principal objetivo dos
Acordos de Pesca é estabilizar ou reduzir a pressão sobre os recursos
pesqueiros locais. Os “Acordos” normalmente tentam atingir esse objetivo
indiretamente, através de restrições aos apetrechos de pesca e à
capacidade de armazenamento, em vez de delimitar diretamente o tamanho
263
da captura. Além de regular a atividade pesqueira, os acordos
frequentemente incluem medidas que pretendem conservar hábitats
considerados importantes para a população de peixes dos lagos, rios e
igarapés.
Apesar assumirem diversas formas de configurações e arranjos,
os acordos tipicamente incluem algumas das seguintes medidas (CASTRO E
MCCRATH, 2001: 114-115):
264
vegetação considerada importante para a pesca local. Alguns acordos de
pesca, por exemplo, especificam regras para preservar a cobertura de
macrófitas flutuantes e proteger árvores frutíferas durante a época da
cheia. Em toda região de várzea, os pescadores reclamam dos efeitos
prejudiciais do búfalo nos ambientes aquáticos, e em alguns casos,
comunidades têm proibido a criação de búfalos na área da comunidade.
265
garantir o controle sobre os recursos pesqueiros, sobre os rios, lagos e
igarapés na Amazônia, especialmente nas regiões de várzea. Estamos
chamando de estratégias no sentido que Foucault atribui a este termo. Para
Foucault (1995), a palavra estratégia é corriqueiramente empregada em
três sentidos:
266
5. 2- Aproximações do terreno.
267
sendo comum várias gerações da mesma família permanecerem na mesma
área.
A família é também a estrutura básica das relações de produção e
trabalho, havendo uma divisão entre homens e mulheres, crianças e velhos.
Os homens ficam responsáveis pelo trabalho da pesca, das pequenas
lavouras e do extrativismo das frutas e sementes da floresta. Já as
mulheres são responsáveis pelos afazeres domésticos, pelo cuidado dos
filhos e também por atividades extrativas, como a coleta de sementes e
frutas (ocuúba, andiroba, buruti, etc.) e a criação de xirimbabos (animais
domésticos como galinha, pato, peru, porcos etc.); não raramente, as
crianças participam dessa atividade. Os meninos, desde muito cedo,
acompanham os pais nos trabalhos considerados “trabalhos de homem” e
as meninas também vão aprendendo os hábitos do que é “ser mulher”.
268
Foto 8: Pescador usando rede de nailon (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)
269
Cametá. Os peixes mais comuns nessa região são: o mapará, o curimatã, o
aracu, o pacu, o pescado, o tucunaré, o jotorana, etc.
270
Fotos 10: Frutas e plantas da região (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010).
271
Fotos 11: Paneiros e Tipitis (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)
A relação dessas comunidades com o mercado é de uma inserção
parcial, pois estas vendem parte do excedente da produção nas cidades e
vilas e compram no comércio local outros alimentos e produtos
manufaturados, como é o caso de roupas, eletrodomésticos, etc. Mas uma
grande parte da produção é dedicada ao consumo próprio, a doações para
outras famílias, ou ainda ofertas e oferendas para festas e festivais
normalmente dedicados aos santos e santas padroeiros de cada
comunidade, que a cada ano celebra missas e novenas para o seu
padroeiro. Assim, podemos afirmar que a produção está, em primeiro lugar,
voltada para a subsistência e não para o mercado.
272
Fotos 12: Festa religiosa com dança junina – comunidade cuxipiari
furo grande (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)
Além do extrativismo, muitas dessas comunidades possuem
algumas atividades ligadas à agricultura, especialmente, através de hortas
com plantas medicinais, algumas frutas e, em alguns casos, o plantio de
arroz e mandioca, dependendo do tipo de terreno disponível. Esse complexo
sistema de pesca, extrativismo e agricultura envolve um conjunto de
técnicas e saberes profundos sobre a dinâmica dos ecossistemas, da
especificidade da várzea e este saber é transmitido de maneira oral, de
geração para geração; os pais e o avós, desde muito cedo, vão inserindo as
crianças nas mais diversas atividades e lidas do cotidiano.
Em resumo, a renda dessas famílias é oriunda basicamente da
pesca, do extrativismo, da criação de pequenos animais domésticos, além
de uma série de benefícios sociais pagos pelo Estado, como bolsa família,
auxílio-doença, auxílio-maternidade, seguro-desemprego da pesca e ainda
273
aposentadorias rurais, e também de alguns financiamentos ligados a
projetos de agricultura e manejo extrativista.
Culturalmente, essas comunidades acabaram desenvolvendo um
conjunto de práticas de sociabilidade que as diferenciam de outros grupos
sociais que vivem em outras áreas do município. Essa cultura está
diretamente vinculada ao tipo de ambiente em que vivem; assim, os
ecossistemas ligados à várzea têm uma influência decisiva no modo de vida
e na cultura ribeirinha.
Há uma forte presença da religião nessas comunidades,
especialmente, pela força das comunidades eclesiais de base, desde os anos
de 1960, e, sobretudo, a partir dos anos 1970, período em que foram
fundadas as mais diversas comunidades da região de várzea. Essas
comunidades acabam exercendo um papel decisivo não só do ponto de vista
da organização social, mas também política para essas populações. A Igreja
e os barracões comunitários são espaços privilegiados de encontro, trocas e
sociabilidades; todas as comunidades possuem igrejas e salões
comunitários onde ocorrem cultos, festas, reuniões políticas e, em muitos
casos, servem, também, como espaço para o funcionamento das escolas. É
comum nessas comunidades a celebração de um santo ou uma santa como
padroeiro/a da comunidade. Uma vez por ano, celebram seu padroeiro,
sendo um momento singular na rotina dessas comunidades; durante um
período de 10 dias realizam rezas e novenas, bingos e festas onde a
comunidade se reúne e também recebe visitantes de outras comunidades
para celebrar o santo padroeiro.
Mais recentemente vem crescendo o número de moradores
adeptos de religiões evangélicas, podendo-se perceber na paisagem, cada
vez mais, a presença de templos e Igrejas evangélicas, sobretudo, o avanço
da Assembléia de Deus, apesar de ainda permanecer claramente uma
hegemonia da Igreja Católica, embora já exista uma diversidade de práticas
e cultos religiosos que criam uma heterogeneidade de vínculos e
participações na vida religiosa dessas comunidades.
274
Fotos 13: Escola e igreja evangélica na localidade de Cacoal (Foto:
Edir A. D. Pereira, 2010)
Uma outra característica marcante é um conjunto de lendas,
mitos e de um certo imaginário mítico, envolvendo o universo da floresta e
das águas. Assim, personagens como a cobra grande e o boto povoam a
imaginação, as conversas e as crenças dessas comunidades. Esse conjunto
de narrativas míticas não tem apenas um papel imaginário, pois, de alguma
forma, regula ações e comportamentos cotidianos, sobretudo para os
membros mais velhos das comunidades que têm uma relação muito mais
forte e intensa com essas crenças; por exemplo, o fato das mulheres não
tomarem banho no rio no período em que estão menstruadas, por conta da
malícia do boto, ainda permanece como uma prática comum, assim como
não pescar em determinadas partes do rio, porque é assombrado ou tem
“visagem”, também é bastante comum.
Mas, apesar de toda essa cultura mais tradicional, o modo de
vida, a sociabilidade, a cultura e a identidade dessas comunidades vêm
sofrendo consideráveis transformações nos últimos anos, em virtude da
incorporação de uma modernidade técnica e de um imaginário moderno que
têm acompanhado esse processo.
Hoje, o espaço-tempo dessas populações é forjado pelo híbrido de
ritmos que envolve a dinâmica da natureza, um tempo cultural próprio e a
temporalidade do mundo moderno, que, aos poucos, se impõem através
dos objetos técnicos, como a televisão, que através dos horários de sua
programação, especialmente das novelas, acaba por demarcar os
275
momentos de encontros das famílias. Esse tempo moderno e urbano, já
apontado anteriormente, também começa a invadir o cotidiano dessas
comunidades, mudando suas experiências do tempo e do espaço, como
ocorre, por exemplo, através da introdução de meios de transporte a motor,
as chamadas “rabetas” ou “rabudos” que, através de pequenos motores,
aumentaram a velocidade e a capacidade de vencer as distâncias,
inaugurando uma nova métrica que redefine as interações e os contatos
que as comunidades ribeirinhas têm com o mundo exterior.
276
As viagens tornam-se mais frequentes e mais rápidas; isso
redefine a relação que esses grupos têm com o mundo urbano. Percebemos
também que essa dimensão técnica está presente através de uma espécie
de fetiche o qual uma parte da população, sobretudo os mais jovens, tem
em relação a certos equipamentos eletrônicos, como computadores,
aparelhos de som, celulares etc .
Assim, é comum encontrarmos, em praticamente a totalidade das
casas, equipamentos técnicos, como televisão, antenas parabólicas,
celulares, aparelhos de som, barcos motorizados os quais alteram a
experiência do tempo e do espaço e a forma de viver a cultura. Assim,
sobretudo os mais jovens, estão ligados ao imaginário de uma cultura
urbana, escutam músicas da moda, músicas americanas, funk carioca, axé
da Bahia, usam roupas, joias, bonés tipicamente da juventude urbana,
passam tinturas nos cabelos, falam gírias que aprendem nos programas de
televisão. Nas conversas cotidianas, as novelas e os programas de reallity
show são temas comuns. As culturas dessas comunidades ribeirinhas se
apresentam como um híbrido entre traços mais tradicionais e certas
práticas ligadas a um mundo moderno e urbano.
Neste sentido, essas comunidades vivem de um lado ainda
fortemente marcado por uma temporalidade e uma cultura ligadas à
natureza, às tradições, a um ritmo cíclico, marcado por uma certa “lentidão”
e, de um outro lado, é cada vez mais forte a presença de um novo sentido
de tempo e da introdução, através das mudanças técnicas, de uma nova
temporalidade e de um novo ritmo social, mais próximo do mundo urbano.
A própria paisagem traz as marcas dessa mudança, as pequenas casas,
ainda quase na totalidade de madeira, ostentam novos objetos, como
antenas de celulares, parabólicas, televisores, computadores, geladeiras,
máquinas de lavar roupa, caixas-d‟água, motores a diesel, geradores,
fornecedores de energia elétrica. Também percebemos que os próprios
padrões das habitações têm mudado, as casas têm aumentado de tamanho
e qualidade, o que reflete uma mudança no poder aquisitivo e na qualidade
de vida dessas comunidade
277
Fotos 15 – Melhoria do padrão das moradias (Foto: Edir A. D. Pereira,
2010)
278
Do ponto de vista político e organizativo, essas comunidades se
diferenciam. As que pertencem ao chamado “setor de baixo”, ou seja, que
estão ligadas ao distrito de Paruru de Joana Coelis, têm uma forte
mobilização e organização política. O núcleo essencial dessa organização
surge com as denominadas comunidades cristãs, fundadas pela Igreja
Católica nos anos de 1960. Nesse processo de evangelização se forja uma
cultura de participação construída pela ação da prelazia de Cametá que
oferecia constantemente cursos de formação para as lideranças
comunitárias indicadas por cada comunidade. Esses cursos tratavam de
temas diversos, desde questões estritamente religiosas até a formação de
agentes comunitários de saúde, mas também estavam ligados à formação
de uma cultura cooperativista, além da busca de alternativas de trabalho e
renda. Nesse processo foi se constituindo várias lideranças importantes,
que, progressivamente, foram participando de outros espaços de
intervenção política, como é o caso do sindicato de trabalhadores rurais,
colônias de pescadores, as associações de produtores rurais, associações
ambientais, organizações não governamentais e partidos políticos.
Hoje é comum que os moradores das comunidades ribeirinhas
participem simultaneamente de várias entidades organizativas e políticas;
assim, ocorrem casos em que uma mesma pessoa participa do sindicato
rural e, ao mesmo tempo, é membro da colônia de pescadores, fazendo
parte ainda de outro tipo de associação, bem como participando como
militante em um partido político. A densidade de organização política e de
politização do cotidiano dessas comunidades tem significativos avanços na
luta por direitos e na melhoria na qualidade de vida. Hoje, a colônia de
pescadores é a principal entidade de representação das comunidades
ribeirinhas e o principal ator político da sociedade civil do município de
Cametá; além disso, tem conseguido eleger representantes na Câmara
Municipal e tem forte influência na política local.
É nesse cenário das comunidades ribeirinhas que emerge as
iniciativas as quais vão dar origem aos acordos comunitários de pesca, que
entendemos ser uma estratégia de reapropriação social do rio e dos
recursos naturais, através da afirmação do direito ao território, sendo este
279
processo de emergência que iremos analisar com maior profundidade no
tópico a seguir.
49
Defini-se então por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades
desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos
ambientais do desenvolvimento das populações de baixa renda, aos grupos raciais
discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações
marginalizadas e vulneráveis. (...) É possível constatar que sobre os mais pobres e
os grupos étnicos desprovidos de poder recai, desproporcionalmente, a maior parte
dos riscos ambientais socialmente induzidos, seja no processo de extração dos
produtos naturais, seja na disposição de resíduos no ambiente. (ACSELRAD;
MELLO; BEZERRA, 2009, p. 40-41)
281
controlando as propriedades, o rio e os recursos pesqueiros disponíveis,
mesmo que essa apropriação fosse ilegal.
Dessa forma, os Acordos de Pesca, entendidos como uma
estratégia territorial de reapropriação social do rio, podem ser considerados
simultaneamente como uma resposta à dinâmica de subalternização local e
como um questionamento de um projeto mais amplo de modernização
conservadora de desenvolvimento excludente que foi implementado na
região como um todo. Esse duplo significado dessas experiências de
reapropriação social do rio está expresso nas falas das lideranças
comunitárias, que, ao avaliar as motivações que originaram essas
iniciativas, relatam esse processo:
282
vereador do município pelo PT - entrevista em outubro de
2009).
No ano de 1984, foi um ano crítico pra nós, porque foi o período
da construção da barragem de Tucurui. Então com essa questão
da montagem da barragem nós, ribeirinhos aqui em baixo,
tivemos muito problema na área da saúde, da alimentação... Era
muita desnutrição, era de criança, de 0 a 6 anos, e de mulheres
grávidas. Então eu já estava fazendo um treinamento para
trabalhar na área da saúde como voluntária, e a gente começou a
enfrentar dificuldade. Mulheres abortando facilmente, porque não
tinha alimento. A escassez do peixe era forte, nossos peixes
sumiram, e o que tinha nas bacias... lá na nossa região são sete
bacias maiores, e três bacias menores, isso era lá no Paruru de
Joana Coelis, no Manuel Raimundo e no que a gente considera
Curupitomba, mas as maiores bacias estão no Paruru. Então,
essas bacias eram invadidas diariamente, porque tudo aquilo que
aparecia de peixe no rio, o pescador ia e pescava com o puçá,
não era rede aberta, era só o puçá. Então, tinha dias que eles iam
e jogavam aquela rede e não pegavam nada, mas eles tinham o
habito de fazer aquilo. E meu pai, era um dos que tomava conta
de uma propriedade onde é localizado três bacias, quer dizer, o
meu pai compactuava com tudo aquilo. Eu, ainda pequena,
achava aquilo errado. Eu digo pequena, sim, no amadurecimento
de ver as coisas, e meu pai que era um adulto devia ver mais que
eu e pensar que aquilo é errado. Aí a gente começou a imaginar
se era só a barragem mesmo que estava causando aquela
situação, ou se era também aqueles predadores dali mesmo que
estava influenciando aquela situação. Aí meu pai se virou contra o
trabalho de preservação. A gente ia participar dos encontros, aí
vinha dizendo aquilo que a gente aprendia lá nos encontros, que
tinha que preservar, que se a gente não preservasse que ia
acabar tudo... e tinha as crianças, e tinha nós mesmos.
(Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista em
janeiro de 2011).
283
da localidade Paruru de Joana Coelis – entrevista em
janeiro de 2009).
284
muito em função dos impactos ecológicos da barragem do rio e das diversas
práticas predatórias e excludentes de apropriação de recursos pesqueiros
realizados na escala local por parte da população, além do aumento
demográfico da própria população que habitava as várzeas, bem como das
áreas urbanas, aumentando a pressão sobre os recursos pesqueiros já
escassos na região.
As lideranças comunitárias, em seus relatos, apontam que a
situação era dramática, visto que a qualidade da água era muito ruim,
causando inúmeras doenças e o sumiço repentino de algumas espécies de
peixes fundamentais à dieta local, acentuando o quadro de penúria e
incerteza. Esse quadro, resultado da alteração da dinâmica do rio pela
construção da barragem, agravava-se por algumas práticas locais, como o
uso de certas modalidades de pesca e de certos instrumentos que são
profundamente nocivos, como é o caso do uso do puçá, que acaba por
pegar os peixes ainda num estágio extremante pequeno, impedindo o
processo de reprodução das espécies. Além disso, havia um domínio privado
do rio e dos recursos pesqueiros por parte de uma pequena elite local,
composta por comerciantes que se consideravam “os donos rio”, os “donos
da beirada”, os quais controlavam o acesso aos recursos, excluindo uma
imensa maioria da população.
É diante desse contexto que o processo de construção dos
Acordos de Pesca teve início na região do chamado “setor de baixo”, no
distrito de Joana Coelis, no município de Cametá. Essa é uma área marcada
por grande capacidade de organização e mobilização política e, desde o final
dos anos 1970, congregava as comunidades cristãs mais atuantes no
município. Foi em uma delas, a comunidade Paruru de Joana Coelis,
incorporando depois às comunidades de Manoel Raimundo e Curupitomba,
que, na metade da década de 1980, se realizaram as primeiras iniciativas
na tentativa de criação dos chamados acordos de pesca. Essa tentativa foi
organizada pelas comunidades Cristãs com o apoio do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais e algumas outras entidades. Contudo, essas primeiras
tentativas não obtiveram grande sucesso, por uma série de dificuldades,
como nos relata a líder comunitária Benedita Lamparina, uma das
protagonistas desse movimento:
285
Então, naquela época, nós éramos uma população em torno de
600 famílias, lá naquela localidade que se considerava
prejudicada. Então, meu pai sempre falava contra aquele
trabalho, ele dizia que nunca ia deixar de fazer o que ele achava
que tinha que fazer para preservar. Aí o pessoal do sindicato, da
delegacia sindical, tentou nos ajudar, pra começar a fazer um
trabalho, só que não teve sucesso. Meu pai era mais forte que
eles, era comerciante, tomava conta de uma grande propriedade,
então ele manobrava, as pessoas, mais do que o pessoal do
sindicato. E aí, o que ele falava o pessoal fazia, e com isso
dificultou o trabalho; ai nesse momento, não deu certo, essa
tentativa de preservação. (Benedita Lamparina, líder
comunitária – entrevista em janeiro de 2011).
287
lideranças, acabou, junto com o trabalho de evangelização, construindo
uma forte cultura de participação política; e, nesse processo, a luta contra a
construção da hidrelétrica e seus impactos acabou por colocar na agenda
de luta dos movimentos da região a questão ambiental, pois a dimensão
ecológica surgia como uma dimensão fundamental de vida que estava
sendo dramaticamente alterada.
Um segundo elemento foi a emergência de um novo sindicalismo
rural que ganhava força no Brasil inteiro e que, no município de Cametá,
tinha no sindicato dos trabalhadores rurais a principal instituição e o
principal instrumento de luta dos trabalhadores. Contudo, tencionando com
essa tradição sindical, surgia, nesse momento, uma preocupação com as
questões de gênero, com a afirmação da identidade e do papel de
protagonismo das mulheres como atores políticos. É desse caldo complexo e
tenso que vão emergir as iniciativas dos Acordos de Pesca. As tensões
internas desse processo estão expressas na fala de uma das lideranças
desse movimento:
289
Nós recebemos apoio da Caritás Brasileira e também de uma
entidade da Holanda, era uma entidade ligada à luta das
mulheres. Eles nos deram muito apoio. Essa entidade era
holandesa. Nós tivemos ainda apoio de uma entidade alemã, até
conseguimos com ele um recurso para comprar um barco, um
transporte para a associação das mulheres. Manitese era o nome
da entidade, hoje já nem existe mais. E tinha a entidade da
Holanda, que era dirigida pelas mulheres, entidade que apoiava
grupos, elas chegaram a nos doar máquinas de fazer arroz, nos
ajudaram a fazer uma cantina comunitária, máquina para triturar
grãos... Que nós fazíamos esses trabalhos ligados à pesca, mas
também tínhamos esses trabalhos ligados à agricultura familiar. A
gente produzia mas não tinha aonde guardar o produto, arroz,
milho, mandioca... Aí nós tivemos muita ajuda dessas entidades,
elas também nos ajudaram a legalizar a associação, essas
mulheres da Holanda. (Benedita Lamparina, líder
comunitária – entrevista janeiro de 2011).
290
outros países, passou por lá nessa época para ver, pra tirar
retrato, porque era bonito. Tinha época que dava para ver peixe
boiar no rio. Você ficava ali no casco, em cima de uma ponte, e
você via lá embaixo peixe boiar, em toda bacia boiava, e aquilo
fazia com que as pessoas iam ver porque elas não acreditavam.
Aí depois vinham ver e diziam: “agora eu acredito que aqui existe
o peixe, porque está boiando”. Mais ou menos em três anos que
nós fizemos esse trabalho de preservação, aí começou a aparecer
peixes de tudo quanto é tipo, é nessa área do Paruru, do Manuel
Raimundo e do Curupitomba, era esse espaço todo que nós
fazíamos esse trabalho de conscientização, mas era nesses locais
da bacia que se concentravam os peixes. (Benedita Lamparina,
líder comunitária – entrevista janeiro de 2011)
292
basicamente na limitação de uso de certos tipos de instrumentos, técnicas e
tipos de peixes a serem capturados, além da restrição de pesca em alguns
locais chamados de poços ou bacias, que constituem uma espécie de
berçário de reprodução de várias espécies e que são os locais onde
normalmente se concentram a maior parte dos peixes. Esse conjunto de
regras e normas tem o objetivo fundamental de permitir a reprodução e a
manutenção de determinados tipos de peixes, garantindo a sustentabilidade
e a durabilidade do estoque dos recursos pesqueiros. Isso está expresso na
fala de Dona Rita, líder comunitária da comunidade de Jorocazinho, e de
Milson Lamparina, líder comunitário de Paruru de Joana Coelis.
293
pesca. Assim, todas as famílias que participam do Acordo, mesmo que não
estejam diretamente ligadas à pescaria ou à área onde é realizada a pesca,
recebem parte da produção e todos são contemplados de maneira
igualitária. Esse sentido coletivo e comunitário é ressaltado com muito
orgulho pelas lideranças como sendo uma grande conquista dessa
experiência da gestão comunitária dos recursos pesqueiros e da
reapropriação social do rio. Em seguida, reproduziremos relatos que
desenham bem como se dá esse processo dentro dos Acordos de Pesca.
295
parte dos órgãos responsáveis pelo cumprimento da legislação ambiental.
Esse difícil processo foi relatado em entrevista pelas lideranças comunitárias
e reproduzimos a seguir:
Isso tem dado muito certo, mas é claro que tem problemas, tem
exceções, não dá para você sair vigiando todo mundo. Eu, por
exemplo, como presidente da associação, já sou marcado pelo
pessoal, porque qualquer problema que surge, qualquer denuncia
eles vão lá levar para mim levar para o IBAMA. Mas eu não posso
ficar o tempo todo vigiando todo mundo. O que tinha que
acontecer é que cada vizinho tinha que prestar atenção um no
outro, mas isso não acontece, que o cara pensa: “Fulano de tal é
meu amigo, não vou denunciar ele”. E nós não temos autoridade
pra prender ninguém, o que nós fazemos é a conscientização do
povo, mas se alguém não quer e resolve pegar tudo quanto é
peixe, mesmo miudinho, ele tá prejudicando os outros e ele
mesmo. (Milson Gomes de Andrade - pescador da localidade
Paruru de Joana Coelis - entrevista 2009.)
296
As pessoas que desrespeitam essas leis e as regras do Acordo de
Pesca estão sujeitas a diferentes formas de sanções e punições como relata
acima uma liderança comunitária. Contudo, essas formas de sanções e
punições não são aceitas de forma tranquila, gerando grandes focos de
tensões internas dentro das comunidades, e, não raramente, os Acordos de
Pesca sofrem contestações por membros das comunidades descontentes,
mas, de um modo geral, o resultado desses Acordos contribuem para a
melhoria da qualidade de vida, garantindo, assim, sua legitimidade.
298
A gente viu o resultado da organização, e agora tem um
problema, quando não tem nada também não tem conflito, mas
quando você vê aparecer o resultado, a produção, aí começou a
surgir muito conflito; nós tivemos paz durante muito tempo, mas
quando viram que tinha muito mapará, muito peixe, começou a
aparecer o “dono de beirada” eles afirmavam, se o poço está
aqui, esse terreno é minha propriedade, então esse poço é meu.
Naquela época, aqui, e em todo o município de Cametá, e
acredito que uma parte do Brasil e todo é assim, o povo tava
morando aqui, aí ele tinha o terreno e dizia que toda a frente do
rio era dele, eles se achavam “dono do rio”, eles achavam que os
poços e as bacias era posse, era propriedade deles, aí dividia
metade do peixe pro pescador e metade para ele, e o povo todo
começava a ver navios, ver a banda passar. (Dona Rita – líder
comunitária - comunidade Jorocazinho)
299
Aí depois com as organizações a gente começou a discutir, aí
descobrimos que o rio é público, que nem eu nem ninguém é
dono do que tá lá; mas aí começou o conflito, nós tivemos
conflitos terríveis, chegaram a me ameaçar de morte, com
pistoleiro, gente aqui do rio, porque da federação da pesca teve
gente que veio apadrinhar o cara que se dizia “ dono do rio”,
porque era um comerciante, dependia um pouquinho, aí veio o
pessoal aqui da federação aqui da pesca mediu o rio, e quando
nós nem pensamos, nós fomos intimados, aí nós tivemos que
enfrentar, ir para a justiça; nós tivemos 26 audiências, no fórum,
no IBAMA, chegamos lá, nos deparamos com situações onde o
Seu Orlando lobato foi muito duro, que ele disse que todo o rio
que era varado não podia ser preservado, que nós estávamos
impedindo o povo de pescar, e não era isso não, nós tínhamos
umas normas, várias regras que era para a gente poder ter
respaldo; aí a gente respondeu que todo o rio deságua no outro
rio, mas pode ser perante a lei do meio ambiente, pode ser rios
lagos ou igarapés, desde que seja por uma entidade devidamente
legalizada ou organizada mesmo que não seja legalizada, ela
pode ser preservada. (Dona Rita – líder comunitária -
comunidade Jorocazinho).
300
deveria acontecer apenas de caniço, anzol, nem malhadeira, nem
rede, nem puçá, não poderia usar; nós definimos um conjunto de
regras, malhadeira só era 20 metros para cada família, matapi
era só 10 para cada família; aí a gente fez assim naquele
momento, a gente tirou uma linha de ação pra trabalhar com
todas as famílias do rio, para que futuramente tivesse “o acordo”
prescrito. (Benedita Lamparina líder comunitário –
entrevista janeiro de 2011).
301
Quando o grupo daqueles que eram contra a preservação iam
levar queixa até a delegacia, dizendo: olha, o pessoal do Paruru,
a comunidade, está fazendo coisa errada, tem uma associação de
mulher lá que tá fechando o rio; aí nós fomos chamados a depor
na delegacia, aí nós dissemos para o delegado: isso que nós
fazemos, é correto ou não é? Nós estamos contra a lei ou não? Aí
o delegado disse que nós estávamos certos. E em todo o lugar e
setores que eles nos denunciavam nós ganhávamos na questão,
porque nós tínhamos o apoio, nós trabalhávamos com as
portarias em mão, discutimos noites e noites artigos da lei, o que
diz e o que não diz, e esse aprendizado nos ajudou muito; assim
não era chegar, por exemplo, e fazer o que der na minha cabeça,
nós tínhamos que ver, a lei diz isso, então nós vamos ver se
podemos cumprir a lei. Quando nós proibimos o puçá de entrar no
Paruru, nós estávamos baseados numa portaria, assim nunca
mais entrou o puçá, aí os pescadores inclusive na colônia, diziam
assim: lá vem aquela mulher! Essa mulher não presta! Ela acabou
com nós! E eu estava errada? O que esse pessoal fazia? Eles
estavam retirando os menores peixes que existiam na bacia, e
com isso eles comprometiam todo o peixe do rio. Assim, a partir
de então, só permitimos entrar rede aberta, isso quando era
acertado pela comunidade, porque a coisa era muito séria; uma
vez cheguei a contar num só dia, chegaram a pegar 18 paneiros
de peixinho, no outro dia, boiava muito peixinho morto no rio, aí
nós pegamos, botamos no álcool, e levamos para a juíza ver, aí
ela baixou a portaria proibindo pescar lá. (Benedita Lamparina
líder comunitário – entrevista janeiro de 2011).
302
acesso aos recursos pesqueiros e criando um zoneamento nos rios e
igarapés, do mesmo modo que se cria um complexo calendário de acordo
com o ciclo reprodutivo dos peixes já normatizado pela legislação ambiental
vigente. Assim, certas épocas do ano, no período de reprodução dos peixes,
chamado de piracema, é proibida a pesca em determinadas áreas e com
determinados tipos de instrumentos; os pescadores hoje têm o direito a um
seguro desemprego pago pelo governo federal nesse período em que a
atividade da pesca não pode ser realizada livremente.
303
campo, há inúmeras placas de sinalização no rio, orientando que naquelas
áreas são proibidos certos usos e práticas de pesca. As placas apresentam,
ainda, informações sobre o tipo de entidade e/ou associação que controla
aqueles trechos do rio que estão sob a normatização dos Acordos de Pesca.
Essas formas de classificação por área e a comunicação dos limites das
fronteiras acabam por reforçar o terceiro elemento constitutivo da
territorialidade, que, segundo Sack (1986), tem a ver com o exercício
espacial do poder, expresso através do controle diferenciado de acesso
sobre uma determinada área.
Agentes/sujeitos/protagonistas.
304
territorial é a análise de quais sujeitos são protagonistas desse processo e
de que modo suas ações afetam e influenciam a ação de outros sujeitos.
Não há como pensar em território, em territorialidade, em processos de
territorialização sem ter como ponto de partida o agente/sujeito
protagonista, entendendo protagonista no sentido usado por Porto-
Gonçalves (2008):
Os Conflitos/antagonismos:
Como todo processo de territorialização, os acordos de pesca se
definem pela capacidade de um determinado grupo afetar e influenciar o
acesso, o uso e o controle dos recursos através do controle de uma
determinada área (Sack, 1986). Nesse exercício de poder, ocorre
construção de determinadas linhas de fronteira que demarcam a quem
pertence e quem está fora do território; quem está incluído e quem está
excluído; quem tem o direito e quem não tem o direito de acesso aos
recursos. Esse processo implica em conflitos de natureza socioambiental,
pois trata-se de uma disputa conflitiva e antagônica na qual diferentes
306
grupos, a partir de diferentes lógicas e racionalidades, buscam se apropriar
dos recursos com fins e finalidades distintas. São conflitos socioambientais
entendidos como:
307
Além disso, a lógica do território não pode ser resumida ao seu aspecto
zonal; os territórios dos pescadores são constituídos de muitos pontos
chamados “pontos de pesca”, além de uma série de caminhos ou itinerários
por furos e igarapés, construindo uma sinuosa e labiríntica rede de lugares
definida pelo uso concreto e pelo significado simbólico desses espaços.
Outro aspecto a ser considerado na definição desses territórios é que, na
várzea, não há um regime de propriedade tipicamente capitalista e limites
claros da propriedade; a posse e a legitimidade se dão pelo uso e pela
tradição. Nesse sentido, as propriedades dos pescadores e ribeirinhos, de
uma forma geral, são demarcadas de uma maneira mais fluida e ambígua
do que propriedades nas áreas de terras firmes.
308
na própria comunidade. Nesse sentido, os acordos de pesca geram muitos
focos de tensão e de conflitividade, pois sua legitimidade é constantemente
questionada por aqueles que se sentem excluídos. Não raramente ouvimos
de moradores, os quais não pertencem aos acordos de pesca, que estes
produzem privilégios, que o rio é público e de todos, e que, portanto,
ninguém tem o direito de impedir o acesso de quem quer que seja. Mas
essas tensões também envolvem a construção de uma cultura política de
participação e da construção coletivas de decisões, o que é sempre um
difícil aprendizado.
309
definem diferentes usos para a terra e para a água e para os diferentes
recursos naturais; isso não se restringe à atividade da pesca, mas também
de determinadas formas de extrativismo vegetal, da agricultura, da criação
de animais e, em algumas circunstancias, da caça. Esse complexo conjunto
de atividades define a configuração e os limites do território.
50
O IBAMA, órgão responsável pelo gerenciamento pesqueiro no Brasil, elaborou
um documento, em 1997, considerando os acordos de pesca legalizáveis.
Posteriormente, em 31 de dezembro de 2002, o mesmo órgão publicou a Instrução
Normativa nº 29, reconhecendo os acordos de pesca como instrumento de
ordenamento pesqueiro e estabelecendo critérios para a sua regulamentação,
Contudo foi definido uma série de procedimentos e condições para realização desse
processo de legalização que torna muito difícil às comunidades efetivarem essa
legalização. Hoje, dos mais de 20 acordos em vigência no município de Cametá,
nenhum é legalizado. Em conversa com as lideranças dos pescadores, sinalizaram
que estão elaborando um projeto para criação de legislação municipal para
regularizar a situação dos acordos de pesca no município.
310
Em muitos momentos, os adversários das comunidades utilizaram estes
argumentos para deslegitimar as práticas dos Acordos de Pesca, alegando
que se tratava de uma prática ilegal e feria princípios básicos do direito. O
que está em jogo nesta experiência é a emergência de novos padrões de
normatividade, a emergência de outra juridicidade que institui regras,
normas e formas de direito gestadas a partir do cotidiano e das
necessidades concreta das comunidades. Trata-se da emergência de direitos
territoriais insurgentes, que, baseados em princípios coletivos e
comunitários, contrariam a lógica liberal e privada do direito à propriedade.
311
O direito nasce e é produzido e exercido a partir de múltiplas
fontes e nos mais diversos campos sociais. O Direito Estatal, simbolizado
pela lei escrita e por códigos formais, representa, segundo WOLKMER
(2001), “somente uma espécie dentro do gênero do Direito”; no entanto, o
Estado detém o monopólio da positivação que transforma o direito em lei e
institui o sentido de legalidade. Evidentemente que, em uma sociedade
como a nossa (burguês-capitalista), o direito projetado e corporificado pelo
modelo de centralização estatal hegemônico impõe um rígido sistema de
fontes formais, caracterizado pela supremacia do direito legiferado e escrito
sobre o direito consuetudinário e o direito dos juristas e, ainda, pelo
sufocamento e exclusão de práticas informais vinculadas ao direito
comunitário insurgente.
No entanto, não raramente, esse ordenamento jurídico formal
instituído pelo Estado é incapaz de dar conta das demandas sociais por
justiça, por isso emergem outras práticas do exercício do direito não formal,
constituindo o que WOLKMER (2001) denomina de um “pluralismo
comunitário-participativo”. Esse pluralismo expressa nas palavras de
WOLKMER (2001 p.151) a “insuficiência das fontes clássicas do monismo
estatal e determina o alargamento dos centros geradores de produção
jurídica mediante outros meios normativos não-convencionais, sendo
privilegiadas, neste processo, as práticas coletivas engendradas por sujeitos
sociais”, como é o caso da criação dos Acordos Comunitários de Pesca.
313
direitos, direitos ainda não contemplados e nem sempre
reconhecidos pela legislação oficial do Estado.
Nesse sentido, fica claro que a produção jurídica não reside tão
somente no Estado, mas pode surgir de outras instâncias sociais
diferenciadas e independentes, mais exatamente do bojo complexo e do
contingente de diversos espaços ocupados por sujeitos coletivos
autônomos. Para WOLKMER (2001, p. 156), é significativo número de
doutrinadores contemporâneos que são unânimes em admitir que amplas
parcelas dos “corpos intermediários”, com baixo grau de institucionalização,
podem elaborar e aplicar suas próprias disposições normativas, dentre as
quais as corporações de classe, associações profissionais, conselhos de
fábrica, sindicatos, cooperativas, agremiações esportivas e religiosas,
fundações culturais e educacionais etc.
314
centro de gravitação e de produção jurídica desses “novos direitos” aparece
através de “pactos setoriais”, “negociações coletivas”, “arranjos
sociopolíticos” e “convenções normativas” firmados por identidades
coletivas e por associações voluntárias, que passam a ser encaradas como
fonte do Direito em certo sentido prevalecente e não subordinado ao
formalismo das fontes chamadas formais, constituindo uma espécie de
“legalidade paralela” ao ordenamento jurídico formal e abstrato de
monopólio estatal.
Essa prática acaba por instituir um tipo de pluralismo jurídico
que, segundo Wolkmer, (2003) é uma espécie de resposta à injustiça,
ineficácia e esgotamento da legalidade liberal-individualista, face às
demandas por direitos básicos, deduzidas pelas classes subalternizadas
através da ação de movimentos sociais em luta pela concretização de tais
direitos.
As lutas por novos direitos são travadas principalmente por
aqueles sujeitos históricos que, na prática cotidiana de uma cultura político-
institucional e um modelo socioeconômico particular, são atingidos na sua
dignidade pelo efeito perverso e injusto das condições de vida impostas pelo
alijamento do processo de participação social e pela repressão da satisfação
das mínimas necessidades (Wolkmer, 2003). Essa especificidade explica a
razão de a maioria das ações coletivas que se organiza e se mobiliza para a
implementação de “novos” direitos, está em busca de necessidades não
atendidas, com seus direitos desrespeitados, excluídos de fato da cidadania
ou do “direito de ter direito” para usar a expressão de Hanna Arendt
315
Do ponto de vista sociopolítico, os Acordos de Pesca significam
um avanço rumo à construção de uma relativa autonomia das comunidades
em relação à força do poder local, representados pelos comerciantes e pelas
famílias oligárquicas que dominam a política local. Os Acordos de Pesca, de
uma maneira bem simples, podem ser entendidos como as comunidades
“criando e instituindo suas próprias leis”. Esse processo aponta para
construção de uma autonomia, que no sentido etimológico expressa
exatamente essa ideia, quando uma comunidade ou uma sociedade se
autoinstitui, definindo suas próprias normas e leis, como bem nos afirma
Souza (2006):
319
representam um avanço no campo da estratégia de manejos e também
como forma de educação ambiental; contudo, essas iniciativas ainda são
incipientes e insuficientes diante de tamanhos problemas que essas
comunidades enfrentam do ponto de vista ambiental.
A experiência com os acordos de pesca enquanto uma experiência
de reapropriação social do rio, de afirmação da autonomia das comunidades
e da busca por uma alternativa de sustentabilidade econômica, ecológica e
social tem sido bem-sucedida em várias comunidades na região das
várzeas, no município de Cametá; contudo, há alguns limites nessas
experiências.
O primeiro limite importante que podemos apontar é a dimensão
escalar dessas experiências. Normalmente os Acordos de Pesca se resumem
às comunidades em reduzida escala, abrangendo uma pequena área, ou um
trecho de um rio, de um furo, de um igarapé. Essa pequena escala de
abrangência impõe limites a essas experiências tanto do ponto de vista
ecológico, quanto social e político, visto que é muito limitadora.
Do ponto de vista ecológico, a escala do território demarcado
pelos Acordos nem sempre coincide com o comportamento migratório dos
peixes e com o espaço de reprodução das espécies. Assim, mesmo quando
uma comunidade adota estratégias de preservação controlando uma parte
do rio, ou um furo ou um igarapé, outras comunidades e outros pescadores
vizinhos podem não adotar os mesmos procedimentos e, desse modo,
explorarem livremente os recursos, comprometendo os esforços de
construção dos Acordos. Por isso, é fundamental ampliar a escala, criando
acordos intercomunitários, territórios de reservas, corredores de
preservação capazes de adequar, tanto do ponto de vista ecológico como
social, essas experiências.
Outro fator fundamental no sucesso ou não da construção dos
acordos de pesca é o grau de politização e a capacidade de organização de
cada comunidade. As experiências bem-sucedidas ocorreram em
comunidades onde há um grande capital social, uma estrutura organizativa
bem consolidada, lideranças ativas que conseguem construir pactos e
consensos, mesmo que provisórios e precários, para a implementação das
regras que compõem os Acordos. É preciso um alto grau de consciência de
320
trabalho coletivo e também uma sensibilidade para superar a necessidade e
os interesses imediatos, pois, em muitos sentidos, a construção dos Acordos
implica em restrições imediatas para, em um futuro próximo, ter uma
espécie de recompensa. Mas essa lógica não é facilmente assimilada e só
consegue ser implementada onde há uma cultura política de participação e
de um sentido comunitário e coletivo, o dado mais contunde a respeito
disso é que segundo informação da colônia de pescadores e IBANA ja foram
criadas mais de 100 inciativas de acordos no município de Cametá e hoje
efetivamente funcionam 22 acordos. O fortalecimento do Acordo de Pesca
passa pelo fortalecimento das organizações comunitárias, das associações,
da capacidade de mobilização em torno de causas comuns.
Esse trabalho de fortalecimento e organização vem sendo feito
nos últimos anos pela Colônia de Pescadores; por exemplo, no ano de 2011,
ofereceram um curso sobre Gestão Compartilhada dos Recursos Pesqueiros
para diversas lideranças das comunidades, com o objetivo de fomentar
novas iniciativas na construção dos Acordos, mas, para isso, é preciso um
processo de difusão e informação e de capacitação das lideranças, pois
percebemos que o número de iniciativas de Acordos de Pesca que fracassa
ou que não consegue se sustentar é muitos alto, e um dos principais
motivos está na fragilidade da organização política dessas comunidades.
Outra fragilidade dos Acordos de Pesca é, em muitos casos, a
falta de critérios claros sobre as sanções para aqueles que infringem as
regras dos acordos, pois não existe uma legislação oficial (seja em nível
estadual ou municipal) que regulamente essas práticas, bem como não há
apoio dos órgãos ambientais responsáveis e fiscalizadores, a exemplo das
secretarias de meio ambiente e do IBAMA. O sistema de sanções e punições
é pouco claro e rigoroso, sendo que a própria comunidade exerce o papel de
fiscalizadora, todavia, as relações de poder, afetividade, parentesco e
outras formas de mediação tornam difícil um exercício mais rigoroso de
fiscalização e punição. A ausência de uma definição clara sobre o sistema de
sanções e punições produz um clima propício para a quebra das regras por
parte de alguns membros que, por motivos legítimos ou ilegítimos, acabam
por burlar o pacto comunitário e colocar o seu interesse individual sobre o
coletivo. Desse modo, o fortalecimento dos Acordos de Pesca precisa da
321
construção de uma legislação própria, a nível estadual e municipal, bem
como o apoio do poder público no que concerne a fiscalização e punição das
inflações e dos crimes ambientais.
Os Acordos de Pesca representam um avanço significativo na
melhoria da qualidade de vida das comunidades ribeirinhas, especialmente
no que se refere à alimentação, mas para a sua consolidação são
necessárias outras fontes de renda complementares, pois somente a pesca
não é suficiente para manter essas comunidades. O Acordo de Pesca tem
que ser uma estratégia dentro de um conjunto maior de alternativas que
permita a essas comunidades melhorarem as suas condições de vida, pois
quando não há outras alternativas há uma pressão muito grande sobre o
pacto comunitário de gestão dos recursos pesqueiros. Assim, a todo o
momento há uma espécie de ameaça, pois as comunidades apresentam
muitas necessidades materiais básicas; desse modo, qualquer desequilíbrio,
como um caso de doença, torna-se um motivo para alguém quebrar as
regras do Acordo, tornando esses arranjos normativos muito instáveis.
Nos últimos anos, uma série de projetos e políticas públicas implementadas
pelo poder federal ampliou o repertório de alternativas de renda através da
psicultura, da apicultura do manejo florestal, da pequena agricultura,
melhorando e diversificando as fontes de renda, mas ainda há muito que
fazer em termos de ampliação das bases de sustentação econômica das
comunidades.
322
6-CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O apanhador de desperdícios
324
temporalidade e o tipo de projeto também, dentre outras. Normalmente a
avaliação desses elementos é feita a partir de uma postura do intelectual
como um ser soberano legislador que sabe exatamente o que é e como
deveriam ser as lutas sociais, ignorando a difícil labuta cotidiana daqueles
que lutam contra os mais diversos processos de subalternização.
Como resultante dessa forma de leitura do mundo, temos o
diagnóstico de que vivemos uma espécie de “morte da política”, de
regressão dos espaços de participação política e o fim de um certo
imaginário político, no qual ideias como “utopia”, “alternativa”,
“transformação social”, que eram “magmas de significação” e que
sustentavam as ideias e as práticas de emancipação social, hoje, são
consideradas como pertencendo ao passado. Resumindo, esse diagnóstico
declara que vivemos um período de pobreza das experiências políticas
instituintes e significativas, e como consequência, não há alternativas!
Mas será que estamos realmente diante de uma pobreza das
experiências, ou não conseguimos reconhecê-las e, com isso, o que temos
não é uma pobreza das experiências, mas sim um desperdício dessas
experiências51, pois quando as tornamos invisíveis ou as catalogamos a
partir de rótulos, classificações e conceituações que as desqualificam,
atentamos contra o potencial ético, político e epistêmico de inúmeras lutas
que se travam em lugares distantes e, que, mesmo de maneira incipiente,
inauguram “espaços de esperança” e “territórios alternativos”.
Nesse sentido, será que estamos em busca da política (Bauman,
2000) com as lentes erradas? As lutas políticas, hoje, se realizam da
51
Boaventura de Souza Santos atribui o desperdício das experiências a um modelo
de racionalidade totalitário e eurocêntrico. O autor define essa situação do seguinte
modo: em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais
ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e
considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser
desperdiçada. É deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não
há alternativa, que a história chegou ao fim, e outras semelhantes. Em terceiro
lugar, para combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas
e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer
à ciência social tal como a conhecemos. No fim de contas, essa ciência é
responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o
desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social.
Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade.
325
mesma maneira que no passado ou pode estar ocorrendo uma
transfiguração do político (Maffesoli, 2005)? Essa nova situação pode ser
analisada e compreendida a partir de nossos tradicionais referenciais
teórico-conceituais ou exige novas lentes e outras formas de narrativas
capazes de abrir nossos horizontes cognitivos e políticos?
Esta pesquisa moveu-se por um desafio e por uma convicção:
encontrar, relatar e dar visibilidade e credibilidade às experiências políticas
instituintes de uma outra ordem social que apontam, mesmo que de
maneira frágil e incipiente, para alternativas e caminhos de uma sociedade
mais justa, democrática e autônoma. Por isso insistimos em falar de lugares
e grupos subalternizados, localizados nos labirintos de floresta e água que
constituem o interior da Amazônia. Mesmo que, à primeira vista, esses
grupos pareçam tão distantes dos grandes centros urbanos e fora das luzes
e do foco das grandes narrativas políticas do nosso tempo, acreditamos que
experiências vivenciadas por esses grupos podem nos ensinar e apontar
para alternativas.
Contudo, isso não significa assumir uma postura que cria uma
espécie de “fetiche pela resistência”, em uma visão que Boaventura de
Souza Santos denomina de “pós-modernismo celebratório”. Não
compartilhamos da visão que abdica de toda crítica e construção de
projetos coletivos e que negligencia, ou mesmo desqualifica, a ideia de
transformação e emancipação social coletiva. Nessa forma de conceber o
mundo, a questão da igualdade e as lutas de classes não passam de uma
utopia dogmática e ultrapassada. Desse modo, não há espaço para o debate
de projetos e alternativas; quando muito, temos que valorizar as
resistências.
Nessa perspectiva, queremos nos distanciar da postura de alguns
intelectuais que, no intuito de valorizar e dar potência às ações de lutas e
resistências, acabam por romantizar excessivamente tais lutas, ignorando
suas contradições e não problematizando o sentido, as possibilidades e os
limites que elas apresentam. Acabam por hipervalorizar a resistência e, por
isso, não discutem possibilidades de projetos emancipatórios mais amplos.
Dessa maneira, o que importa é a “ação possível”, mesmo que
fragmentária, localizada e até individualizada. Pequenas sabotagens, linhas
326
de fugas são tornadas uma espécie de “totem” em um mundo marcado pelo
conformismo. Contudo, não podemos esquecer que, se é importante
valorizar, do ponto de vista tático, essas mais diversas formas de
resistência, a luta envolve uma dimensão estratégica, que pressupõe
escalas de lutas e projetos mais amplos, mesmo que sejam múltiplos os
projetos.
Assumir uma postura metodológica e política que tente escapar
das armadilhas de uma visão excessivamente dogmática e normativa que
desperdiça as experiências sociais e, de uma outra, que é demasiadamente
otimista e celebratória das experiências de resistências em curso, não é
algo fácil, nem tranquilo, pois exige, ao mesmo tempo, uma abertura e um
acolhimento dessas experiências, da mesma maneira que um espírito
reflexivo capaz de não abdicar o papel de um rigor crítico diante da
realidade. Esse foi o desafio, analisar as experiências de lutas por
reapropriação social da natureza, especialmente, o caso dos chamados
“acordos comunitários de pesca” sem cair nessas posturas extremas que
apontamos acima.
II.
No capitulo inicial desse trabalho fizemos uma escolha
metodológica em trabalhar com o referencial empírico da pesquisa, não
como um estudo de caso no sentido clássico, mas sim, dando um estatuto
de caso paradigmático às experiências analisadas. Num diálogo com o
filosofo italiano Giorgio Agamben (2009) nos convencemos que é possível
estudar certos casos exemplares de fenômenos sociais que, devido a sua
importância e representatividade, possam servir de paradigmas que
iluminam a compreensão de realidades mais amplas, não pelo simples
raciocínio dedutivo, mas por analogias e iluminações. Esse é o caso das
experiências analisadas nessa tese.
A luta pela implementação dos “acordos comunitários de pesca”
como uma forma de reapropriação social dos rios e de afirmação dos
direitos territoriais das comunidades ribeirinhas no município da Cametá, no
Baixo Tocantins, apesar de serem experiências circunscritas a uma
realidade singular e a um contexto especifico, contêm a densidade e a
327
complexidade de elementos que hoje constitui a trama político/territorial da
Amazônia. Nas experiências dos “acordos de pesca” aparecem, de maneira
exemplar, as principais linhas de força que atravessam e constituem a
Amazônia contemporânea. Assim, a compreensão dessa realidade especifica
ilumina a nossa compreensão do conjunto das lutas que envolvem as
comunidades ou povos tradicionais na Amazônia.
A primeira linha de força que está presente nas experiências dos
acordos comunitários de pesca, mas que atravessa o conjunto das lutas
sociais na Amazônia é o papel que a natureza, o meio ambiente e os
recursos naturais, de um modo geral, vêm assumindo nas lutas e nos
conflitos sociais na região. Em grande parte, os conflitos sociais também
são conflitos ambientais e as lutas por justiça social estão diretamente
ligadas as demandas por justiça ambiental e reapropriação social da
natureza. Uma segunda linha de força que apresenta-se como uma
tendência, diz respeito a uma tensão teórica e política entre as lutas por
redistribuição e igualdade e as lutas pelo reconhecimento das diferenças nas
agendas construídas por esses novos movimentos sociais protagonistas. Já
a terceira linha de força, nesse esboço interpretativo, para a compreensão
dos novos movimentos sociais na Amazônia é o papel do território como
uma espécie de “condensador” de direitos.
No que se refere à primeira grande linha de força que atravessa
as experiências dos “acordos comunitários de pesca” e que também pode
ser considerada uma tendência mais ampla dos movimentos sociais ligados
aos povos e comunidades tradicionais é o papel que a natureza e o meio
ambiente, e os recursos naturais de um modo geral, vêm assumindo nas
lutas e nos conflitos sociais na Amazônia.
As comunidades ou povos tradicionais vêm lutando para
imprimirem outra racionalidade na apropriação dos recursos e dos meios de
produção, no sentido mais geral. Esse processo faz parte de um esforço da
construção de um projeto de autonomia política, mas também econômico-
produtiva desses movimentos que buscam, através das mais diversas
formas alternativas de produção e de economias solidárias, a construção de
sua autonomia material e simbólica em relação às forças do mercado, do
Estado e de outros setores da sociedade civil, como os partidos políticos.
328
Mas essa autonomia relativa é muito frágil, como vimos na experiência dos
“acordos de pesca”, embora, exista uma importante tendência da
consolidação de uma nova cultura política e de um novo imaginário em que
esses movimentos cada vez mais consolidam uma pedagogia da
participação e da autonomia.
As lutas pelos recursos e por reapropriação social da natureza a
partir de outra matriz de racionalidade econômica e ambiental que não a
racionalidade liberal-capitalista aponta para uma tendência de
desmercantilização das relações sociais. Os movimentos sociais ligados às
comunidades e povos tradicionais buscam afirmar novas práticas de
produção e de comércio fundadas em formas de organizações solidárias,
populares e cooperativas, bem como a valorização de formas alternativas e
não mercantis (familiares, comunitárias, cooperativas etc.) de apropriação
social dos recursos. Essa tendência está no centro das experiências dos
“acordos comunitários de pesca” nas quais são construídas regras de
coletivização dos recursos, afirmação do valor de uso sobre o valor de troca,
e o privilégio das formas coletivas sobre as formas individuais de
apropriação dos recursos.
Mas essas disputas pelos recursos e pelo território se dão ao
mesmo tempo no plano material e no campo simbólico. Nessa perspectiva,
segundo Acselrad (2004a), podemos distinguir dois espaços onde se
definem as relações de poder nas sociedades, espaços estes pertinentes
também aos modos de apropriação da base material da sociedade, ou seja,
na disputa pela apropriação dos territórios e seus recursos:
52
Neste sentido o termo assume uma conotação parecida; os termos
"industrialização" ou "proletarização" (este último, usado por Marx) foram
indicativos de novos fenômenos no século XIX, como se poderia também falar de
tendências de "desindustrialização" e de "subproletarização" desde o final do século
XX. Ou ainda, num sentido mais estrito, os termos usados por Norbert Elias para
caracterizar processos históricos passados, percebidos de forma nova como
importantes, tais como "curialização" - designativo da formação das sociedades de
corte europeias entre os séculos XIV e XVIII - ou "esportificação" - que ganharam o
mundo no século XX a partir da Inglaterra do século XIX.
331
de verdade53 que funcionam como uma espécie de “economia política da
verdade”, como um conjunto de características e dispositivos próprios.
Foucault elenca uma série de características que constitui o “regime de
verdade” das quais destaca cinco historicamente importantes:
53
A verdade é deste mundo; ela é produzida graças a múltiplas coerções e produz
efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
“política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p. 12)
332
quando olhamos mais de perto, vemos que está longe de ser um campo
tranquilo da produção da verdade, mas sim um campo de batalha e disputa.
Conceitos como “sustentabilidade”, “desenvolvimento sustentável” são
objetos de intensa disputa epistêmica, política e ideológica.
54
ACSELRAD (2010) mostra o quanto é problemática e contraditória essa
ambientalização conservadora em que “empresas suspeitas de práticas predatórias
ambientalizam seu discurso, recusando, ao mesmo tempo, controles externos e
proclamando sua capacidade de autocontrole ambiental; autoridades governamentais
flexibilizam a legislação ambiental, alegando ganhos de rapidez e rigor nos
licenciamentos; promotores de grandes projetos hidrelétricos que desestruturam a
vida de comunidades indígenas afirmam que desenvolverão programas de
“sustentabilidade” destinados “a assegurar a continuidade dos aspectos econômicos,
sociais, culturais e ambientais” dos grupos indígenas”. (ACSELRAD, 2010a:105)
333
ambientalização está assentado no paradigma da “modernização ecológica”,
noção que, segundo Acselrad (2010a), em diálogo com Blowers (1997),
designa como o “processo pelo qual as instituições políticas internalizam
preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico
com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação
tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração
e no consenso”
Mas o arco de influência da “ambientalização” atinge outro
extremo do campo ambiental; ele chega até as mais diversas comunidades
tradicionais e movimentos sociais que vêm reconfigurando suas identidades
sociopolíticas, as suas estratégias e táticas políticas e sua rede discursiva
pela incorporação do debate ambiental em suas agendas de lutas.
Nesse sentido, podemos afirmar que há diferentes efeitos do
processo de “ambientalização” na sociedade amazônica. De um lado temos
uma espécie de “ambientalização” conservadora, cuja questão ambiental é
discutida a partir de critérios técnicos e econômicos, buscando soluções no
âmbito do mercado, em que a natureza e a preocupação com o meio
ambiente estão diretamente vinculadas a uma lógica mercantil, e mesmo
quando se busca algum tipo de solução para problemas ambientais, esta
solução está diretamente ligada à produção de lucros. Já, de outro lado,
temos uma espécie de “ambientalização” mais contestadora, vinculada a
grupos subalternizados, os quais incorporam em suas agendas as
preocupações ambientais mais à luz de uma matriz política e cultural, que
questiona o uso e apropriação dos recursos naturais somente a partir das
leis do mercado e busca construir alternativas coletivas e comunitárias de
gestão e apropriação dos recursos naturais. Esse processo é descrito por
Aceselrad em escala mais ampla, mas que representa também a dinâmica
que vem ocorrendo na Amazônia:
334
com os seringueiros do Acre. Esse é o caso do Movimento de
Atingidos por Barragens (MAB) que acusa a economia do setor
elétrico de rentabilizar seus investimentos pela expropriação do
ambiente dos atingidos e do Movimento Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST), que questiona a noção corrente de
produtividade, sustentando que não é “produtiva” a terra que
produz qualquer coisa a qualquer custo, acusando a grande
agricultura químico-mecanizada de destruir recursos em
fertilidade e biodiversidade, e, assim, descumprir a função social
da propriedade. (ACSELRAD, 2010a:106).
55
.Segundo Tomas Tadeu da Silva, a palavra agenciamento, no dicionário Petit
Robert, “agencement” é “ação, maneira de agencer, arranjo resultante de uma
combinação”. “Agencer”, por sua vez, quer dizer “arranjar, combinando elementos,
organizar um conjunto por uma combinação de elementos”. No léxico de Deleuze e
Gattari, sobretudo no de Mil platôs, “agenciamento” não passa mesmo disso: o
arranjo, a combinação de elementos heterogêneos, díspares, fazendo surgir algo
novo, que não se pode resumir a nenhum dos elementos isolados que o compõem.
(...) Os agenciamentos seriam, pois, a resposta ao constante apelo deleuziano para
se “fazer multiplicidade”. Agenciar: fazer multiplicidade. É o paragmatismo de
Deleuze no seu mais alto grau. Combinar. Conjugar. Misturar. Mesclar. Ajuntar.
Reunir. Agrupar. Amontoar. Somar. Enxamear. Conectar. Ligar. Compor. Articular.
335
2. Um novo estilo/regime de enunciação/discurso;
3. A constituição de territórios;
4. E movimentos ou linhas de desterritorialização.
III
A segunda dessas linhas de força presente na experiência dos
acordos comunitários de pesca e que atravessa o conjunto das lutas sociais
na Amazônia é a tensão teórica e política entre uma agenda de lutas por
igualdade e redistribuição e as lutas pelo reconhecimento das diferenças.
Nas agendas construídas por esses novos protagonistas, as lutas contra a
exploração econômica, a exclusão e a marginalização se entrelaçam com as
lutas contra as diversas formas de preconceitos e discriminações étnicas, de
gênero, raciais e culturais. Esse debate coloca centralidade na questão
identitária e num novo sentido de justiça capaz de abarcar simultaneamente
redistribuição e reconhecimento.
Os “acordos de pesca” se constituem enquanto uma luta por
recursos materiais. De uma maneira radical, o que está em jogo são as
condições materiais mínimas de existência, como por exemplo, a luta pelo
direito à alimentação. Desse modo, é uma luta pela redistribuição no
sentido clássico, uma luta contra as formas de exploração econômica,
marginalização social, resultante das estruturas econômicas e políticas que
produzem uma desigualdade estrutural entre aqueles que têm acesso e
detêm o monopólio dos recursos e das riquezas produzidas pela sociedade e
aqueles que estão alijados do acesso a esses recursos. Nessa perspectiva,
os “acordos de pesca” trazem uma agenda clássica de luta, que se traduz
no direito à terra, à água e aos recursos naturais de uma forma geral, ou
seja, há um questionamento do monopólio dos recursos por parte de alguns
grupos sociais e há também, em certo sentido, um questionamento da
própria ideia capitalista de propriedade individual.
337
Mas as experiências dos “acordos” são mais complexas do que
simplesmente uma luta por recursos naturais, pois verificamos que no
interior do processo de luta emergiram outras questões e outras agendas
que deslocam ou, pelo menos, ressignificam a ideia de emancipação social.
Esse é caso das questões relacionadas à problemática de gênero, visto que
apareceu com muita força, nas experiências que analisamos, um
tencionamento sobre o papel de protagonista das mulheres nesse processo.
Verificamos nos depoimentos e narrativas que somente houve sucesso e
êxito das iniciativas de criação e implementação dos “acordos comunitários
de pesca” com a participação das mulheres como protagonistas nas lutas,
tencionando as estruturas e mentalidades machistas presentes nas
organizações sindicais. Esse elemento está expresso nas próprias
lideranças, visto que, na maioria das comunidades, os principais expoentes
de lutas são figuras femininas.
Essa parece ser uma tendência mais ampla ligada aos
movimentos sociais oriundos das chamadas comunidades ou povos
tradicionais na Amazônia, onde, cada vez mais, as mulheres assumem o
papel de protagonistas, seja no movimento camponês, quilombola,
seringueiro, indígena e ribeirinho, ou num movimento que traz no próprio
nome essa marca, essa identidade de gênero, como é o caso das mulheres
quebradeiras de coco de babaçu. É cada vez mais decisiva a atuação das
mulheres, criando novas estratégias e inaugurando novas agendas em que
entrelaçam a questão de gênero com questões étnicas, ambientais,
agrárias, produzindo um complexo emaranhado de ideias e práticas
emancipatórias que desafiam as antigas formas de conceber a emancipação
social.
Nesse processo de criação dos “acordos de pesca” houve uma
ressignificação das identidades, pois a própria afirmação da condição
ribeirinha e de pescador artesanal, enquanto identidade sócio-política,
envolveu um complexo processo de construção de uma nova subjetividade
política, visto que até então os pescadores e ribeirinhos estavam ligados às
lutas e à instituição do sindicato dos trabalhadores rurais. Nesse sentido, a
valorização e politização dessa condição especifica de uma cultura, de um
modo de vida dos grupos que vivem territorializados na várzea e que
338
estavam subsumidas, foram progressivamente ganhando visibilidade e
afirmando-se com uma identidade própria, enquanto protagonista das lutas
por direitos e, desse modo, superando uma visão negativa e estereotipada
da ideia de “caboclo”.
Esse processo de reconfiguração das identidades e de valorização
das diferenças implica na emergência de novas agendas e na construção de
novos agenciamentos coletivos, fazem parte de uma nova sensibilidade, de
um novo imaginário político que está fundado na valorização das diferenças
e das identidades, sintetizadas na ideia do reconhecimento do “outro”. A
incorporação desse novo imaginário tem como resultado uma res-
significação de nossa cultura política, colocando novos desafios analíticos e
políticos para pensarmos as lutas, os conflitos sociais, bem como, as ideias
e princípios de justiça e emancipação social que inspiram as lutas por
direitos no mundo contemporâneo.
A posição de uma parte do pensamento progressista de esquerda,
hoje muito minoritária, (organizações igualitárias, trabalhistas e socialistas)
em relação a essa nova sensibilidade política centrada na ideia de
reconhecimento, tem sido de negar, negligenciar ou marginalizar essa
reflexão, considerando que tal temática faz parte de uma agenda pós-
moderna que nega o materialismo histórico, as lutas por igualdade, a
dimensão de classe dos conflitos, e que, por fim, obscurecem o horizonte da
luta por uma sociedade socialista.
Igualmente problemática é a posição daqueles que se filiam na
postura de um “multiculturalismo celebratório” que coloca o papel da
diferença e do reconhecimento em uma condição totêmica (valorização das
identidades, das individualidades, das subjetividades como algo
fundamental e acima de todas as coisas) e que teimam em ignorar que
vivemos numa sociedade estruturada em torno de um capitalismo cada vez
mais perverso, onde nunca foi tão urgente uma agenda pautada nas lutas
por igualdade e justiça social orientadas por processos radicais de
redistribuição dos recursos materiais e do poder.
Entendemos que, ao invés de negarmos, marginalizarmos ou
simplesmente, de maneira apologética, celebramos esse debate sobre a
questão da diferença e das lutas por reconhecimento, torna-se urgente uma
339
reflexão de natureza teórica e política mais profunda sobre essa questão.
No atual momento histórico que vivemos, as lutas por reconhecimento e
pelo direito à diferença, as políticas de identidade como demandas por
“respeito” e “dignidade” vêm se tornando centrais e até paradigmáticas em
muitos campos da vida social. Por essa visibilidade e densidade histórica,
esse debate torna-se algo fundamental e estratégico para o entendimento
das lutas emancipatórias e para a renovação do pensamento crítico.
Para nos situarmos no debate que hoje povoa o cenário
intelectual e contemporâneo sobre a importância da ideia da diferença e do
reconhecimento como categorias explicativas e normativas para
compreender a realidade das lutas sociais contemporâneas, temos que ter
claro que essas categorias assumem uma dupla centralidade em nossa
sociedade. Uma centralidade empírica, histórica e política e, ao mesmo
tempo, uma centralidade no campo das ideias, uma centralidade
epistemológica e teórica no campo da filosofia e das ciências sociais.
No que se refere à dimensão empírica, nós vivemos um momento
histórico e político no qual muitas das problemáticas centrais para
compreender as sociedades contemporâneas passam por entendermos os
conflitos sociais que têm como demanda fundamental o reconhecimento das
identidades e das diferenças. No caso da Amazônia essa é uma questão
contundente.
As questões religiosas, étnico-raciais, questões de gênero e as
formas de viver a sexualidade aparecem como uma força catalisadora das
energias políticas do nosso tempo. Há um claro processo de politização da
cultura, da subjetividade e do corpo que inaugura uma nova sensibilidade e
um novo imaginário político, onde princípios como a igualdade, o
universalismo e a coletividade perdem terreno para princípios como a
singularidade, a diferença e o individualismo.
Já no que se refere à centralidade epistemológica e teórica, o que
assistimos no campo do pensamento social contemporâneo é a emergência
do conjunto de perspectivas teóricas, éticas e políticas que afirmam o papel
da diferença e da diversidade como um princípio fundamental de leitura da
realidade social. Nesse processo, surgiram diversas correntes de
pensamento que se imbricam, mas que se separam, como o pós-
340
modernismo, o pós-estruturalismo, o feminismo, os Estudos Culturais, os
Estudos pós-coloniais, entre outros. Tais correntes de pensamento se
ergueram, enquanto propostas teórico-políticas, a partir do ataque ao
legado epistemológico e teórico da modernidade iluminista ocidental, que
tinha como centro gravitacional o racionalismo, o universalismo, princípios
estes, expressos na ideia de que a sociedade era uma unidade homogênea
e que podia ser vista como uma totalidade. Nesse registro o sujeito era
concebido como soberano e unificado e a história era vista como sendo
universal. Essas ideias têm sido duramente criticadas por esse conjunto de
novas perspectivas teóricas que afirmam que o universalismo da história, a
ideia de um sujeito soberano e unificado, a afirmação do conhecimento
ocidental como o único e verdadeiro, são todos mitos e estratégias de poder
que serviram historicamente para afirmar uma certa ordem social.
Esse debate ganha várias matizes e tonalidades, especialmente
na filosofia política e no interior de uma tradição que podemos qualificar de
teoria crítica. Assistimos um acirrado, denso e polêmico debate teórico com
fortes consequências éticas e políticas em torno da ideia do reconhecimento
como uma categoria moral e política, considerada por muitos como
fundamental para a compreensão da dinâmica dos conflitos sociais em
nossa sociedade.
Mas esse debate constitui-se um campo de batalha teórico e
político, pois a valorização da ideia da diferença e do reconhecimento tem
sido apropriada das mais diversas maneiras, por diferentes interesses
políticos e filosóficos, criando uma arena de disputa, onde podemos
encontrar posições completamente antagônicas no espectro político atual,
desde posições radicalmente conservadoras até aquelas claramente
progressistas.
Segundo Nancy Fraser (2006), os termos reconhecimento e
redistribuição podem ser analisados a partir de duas perspectivas:
a) Como paradigma filosófico – trata-se de um conjunto de
formulações teóricas de caráter político-normativo a respeito das ideias de
justiça/injustiça formuladas, sobretudo no campo da filosofia moral e da
filosofia política.
341
b) Paradigma popular de justiça que se refere a um conjunto de
ideias e reivindicações formuladas a luz das lutas sociais concretas travadas
pelos movimentos sociais do presente e que apontam para as causas e as
soluções da injustiça do nosso tempo.
No que se refere à dimensão filosófica, Nancy Fraser (2006)
afirma que o termo redistribuição tem sua filiação localizada na tradição
liberal de filósofos analíticos anglo-americanos que, desde o final dos 1970
vêm buscando construir uma teoria de justiça distributiva, onde o ideário de
justiça está ancorada na justa distribuição de recursos socioeconômicos na
sociedade.
Já o reconhecimento é uma categoria hegeliana, mas que
recentemente vem sendo retomada por filósofos e pensadores sociais como
o filósofo canadense Charles Taylor (1994 [1992]) e o filósofo e sociólogo
alemão Axel Honneth (2003 [1992]). Cada um, à sua maneira retomaram a
alguns insights de Hegel em seus escritos de juventude para recuperar a
categoria de reconhecimento. Através do resgate desse conceito esses
pensadores vêm revitalizando o debate acadêmico e político
contemporâneo.
Nessa perspectiva, o sentido da ideia de justiça está ancorado
no reconhecimento mútuo das diferenças. Outra forma de localização
relacional na filosofia dessas duas categorias é aquela que coloca a
categoria da redistribuição como uma questão moral e o reconhecimento
como uma questão ética. O fato é que, com origens, horizontes políticos e
normativos distintos, esses conceitos apresentam-se como duas
perspectivas completamente antagônicas de pensarmos a justiça e a
emancipação social.
Mas, para além do debate filosófico, é preciso analisar essas
categorias a partir de uma reflexão que leve em conta as experiências
concretas de lutas, como é o caso das chamadas comunidades ou povos
tradicionais na Amazônia que, na luta pelo reconhecimento de seus
territórios e identidades, vêm desafiando nossas tradicionais formas de
pensar justiça e emancipação.
Entendidos como paradigmas populares de justiça, ou seja,
analisados a partir das experiências concretas de luta dos movimentos
342
sociais, segundo Nancy Fraser (2006), a concepção de justiça assentada na
ideia de redistribuição está materializada nas políticas classistas, ou seja,
está expressa naquelas lutas e reivindicações onde há um claro horizonte
político de classe ancorado em tradições socialistas. Já a noção de
reconhecimento, como um principio orientador de reivindicações pelos
movimentos sociais, está claramente materializado nas chamadas “políticas
de identidade”, com uma agenda composta por questões étnicas, raciais, de
gênero, sexualidade etc.
Não raras vezes, essas duas agendas estão em inteiro
descompasso, para não falar em antagonismos. A retórica e a estratégia
política de cada uma dessas correntes tende a secundarizar e invisibilizar a
outra. Assim, movimentos de uma tradição mais igualitarista colocam à
margem qualquer debate sério sobre o chamado reconhecimento das
diferenças, do mesmo modo que movimentos feministas, anti-racistas entre
outros, colocam a dimensão de classe fora de seus horizontes
programáticos.
Nancy Fraser (2006) distinguiu esses paradigmas populares de
justiça em aspectos a serem considerados: (1) concepções distintas de
injustiça, (2) concepção distintas de justiça (remédios e soluções). No que
se refere a concepções distintas de injustiça, do ponto de vista distributivo,
a injustiça tem origem na forma de desigualdades semelhantes às da
classe, baseadas na estrutura econômica da sociedade. Nessa perspectiva,
a quintessência da injustiça é a má distribuição, em sentido amplo, engloba
não só a desigualdade de rendimentos, mas também a exploração (ter os
frutos do trabalho de uma pessoa apropriado em benefício de outros),
marginalização (ser limitado a trabalhos indesejáveis ou baixamente
renumerados ou ter negado acesso completamente ao mercado de trabalho
assalariado) e a privação (ter negado um padrão material adequado de
vida).
Já do ponto de vista do reconhecimento, por contraste, a
injustiça surge na forma de subordinação de status, assentada nas
hierarquias institucionalizadas de valor cultural. A injustiça paradigmática
neste caso, é o falso reconhecimento, que também deve ser tomado em
sentido amplo, abarcando a dominação cultural (individuo ou grupos sendo
343
sujeitados a padrões de interpretação e comunicação associados a outra
cultura estranha e/ou hostil), o não-reconhecimento (ser considerado
invisível pelas práticas comunicacionais, representacionais e interpretativas
de uma cultura) e o desrespeito (ser difamado habitualmente em
representações públicas estereotipadas culturalmente e/ou interações
cotidianas).
Compreendendo que a natureza e os processos de produção de
injustiças são distintos, para Fraser (2006) teríamos ideias e práticas de
justiça também distintas, ou seja, os remédios e soluções para tipos de
injustiças diferentes também seriam distintos.
Nessa perspectiva, contra as formas de injustiça que produzem a
desigualdade, o remédio está na redistribuição, também entendida em
sentido amplo, abrangendo não só a transferência de rendimentos, mas
também a reorganização da divisão do trabalho, bem como a transformação
da estrutura da posse da propriedade e a democratização dos processos
através dos quais se tomam decisões relativas aos investimentos públicos.
A ideia de redistribuição é termo genérico usado por Nancy Fraser (2006)
que abarca um amplo leque de possibilidades de ideias e práticas de justiça
e de transformação social, desde perspectivas reformistas, superficiais e
assistencialistas até posturas radicais e socialistas de questionamento da
própria ordem política e econômica e da estrutura de produção e da
propriedade capitalista.
Já no que se refere aos remédios para as formas de injustiça
oriundas do não-reconhecimento, igualmente em sentido amplo, Fraser
(2006) propõe medidas que incluam não só as reformas que visam
revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos culturais de grupos
discriminados, mas também os esforços de reconhecimento e valorização da
diversidade, por um lado e, por outro, propõe os esforços de transformação
da ordem simbólica e de desconstrução das diferenciações de status
existentes, de forma a mudar a identidade social de todos.
No paradigma da redistribuição os sujeitos coletivos, “vítimas” da
injustiça, são as classes ou outras coletividades que tenham um caráter
classista no sentido estrutural de inserção nas relações sociais e econômicas
de produção. Já no que se refere ao paradigma do reconhecimento os
344
sujeitos coletivos, “vítimas” da injustiça, são os grupos de status definidos
por relações de reconhecimento, de respeito, estima, estigma e não pelas
relações de produção - como exemplo, grupos étnicos, religiosos, de gênero
e de formas diferenciadas de viver a sexualidade.
Compreendendo essas distintas práticas de injustiça e justiça e
seus desdobramentos para a ideia de emancipação social, Fraser (2002:8)
afirma que um traço que define o mundo contemporâneo é a politização
generalizada da cultura, especialmente, nas lutas pelas identidades e
diferenças – ou, como a autora prefere designá-las, as lutas pelo
reconhecimento. As lutas e os conflitos que envolvem o processo de
politização da cultura e uma demanda por reconhecimento ampliaram-se e
intensificaram-se nos últimos vinte anos, a expressão fenomênica desse
processo é profundamente diversa a partir de problemáticas e contextos
específicos, o conteúdo político e ético dessas manifestações são muito
diversos, situando-se em escalas que vão daquelas que são claramente
emancipatórias às que são absolutamente condenáveis.
345
estrutura em torno da ideia de valorização do direito a diferença e de uma
noção de justiça alicerçada na idéia de reconhecimento.
Esse processo tem implicado em resultados profundamente
ambivalentes e problemáticos. Esse deslocamento do paradigma da
redistribuição para o do reconhecimento, segundo Fraser (2002),
representa um alargamento da contestação política e um novo
entendimento de justiça social ultrapassando uma visão restrita de justiça e
de emancipação fixada em torno eixo da classe, ou seja, o debate sobre
reconhecimento amplia e complexifica a concepção de dominação,
contestação, emancipação social e justiça, abarcando outros eixos de
subordinação, incluindo a diferença sexual, a “raça”, a etnicidade, a
sexualidade, a religião e a nacionalidade, etc.
Assim, para Fraser (2002) esse deslocamento constituiu um claro
avanço relativamente aos restritivos paradigmas de justiça que
marginalizavam essas outras dimensões de subordinação social. Nessa nova
perspectiva a noção de justiça social já não se limita só às questões de
distribuição, abrangendo agora também questões de representação,
identidade e diferença.
Portanto, essa nova sensibilidade e conceitualização constituem
um avanço positivo relativamente aos redutores paradigmas economicistas
que tinham dificuldade em conceitualizar males cuja origem reside, não na
economia política, mas nas hierarquias institucionalizadas de valor e status.
Contudo, se essa nova cultura política amplia e enriquece noções de justiça
e emancipação a partir da incorporação do principio do reconhecimento da
diferença, não é nada evidente, conforme Fraser (2002), que as atuais lutas
pelo reconhecimento estejam contribuindo para complementar ou fortalecer
as lutas pela redistribuição igualitária.
346
um paradigma por outro: um economicismo truncado por um culturalismo
igualmente truncado, segundo ela, o resultado seria um exemplo clássico de
desenvolvimento combinado e desigual: “as recentes conquistas notáveis no
eixo do reconhecimento corresponderiam a um progresso paralisado, se não
mesmo a francas perdas, no eixo da distribuição”. (Fraser, 2002, p.9-10)
Como escapar dessa armadilha conceitual e política? Como incluir
essa nova sensibilidade política que valoriza o direito à diferença e as lutas
por reconhecimento sem abandonar a agenda distributiva e igualitária tão
importante e urgente em nossa sociedade? Rejeitando formulações
sectárias que caracterizam a distribuição e o reconhecimento como visões
mutuamente incompatíveis da justiça, Fraser (2002) procura formular uma
concepção que tenta abranger ambos paradigmas de justiça. O resultado
seria uma concepção bidimensional de justiça, o único tipo de concepção
capaz de abranger toda a magnitude da injustiça no contexto da
globalização. Dessa maneira, afirma Fraser:
IV
349
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