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Da liberdade e necessidade

HUME

Retirado de: HUME, D. "Da liberdade e necessidade". Uma investigação sobre o entendimento humano, seção 8.
In: Antologia de textos filosóficos. Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 2009. Pp. 376-397.

Parte 1

1. Poder-se-ia razoavelmente esperar, em lhes a vitória sobre seus antagonistas. É verdade


questões que têm sido examinadas e discutidas que, se os homens tentam discutir questões que
com grande vivacidade desde as primeiras estão inteiramente fora do alcance das
origens da ciência e da filosofia, que todos os faculdades humanas, tais como as que
debatedores já tivessem chegado a um acordo ao concernem a origem dos mundos, ou a
menos quanto ao significado de todos os termos, organização do sistema intelectual ou da região
e que nossas investigações, no curso de dois mil dos espíritos, eles podem ficar longo tempo
anos, tivessem sido capazes ir além das palavras, golpeando o vazio em suas infrutíferas contendas,
até chegar ao verdadeiro e real assunto da sem nunca chegar a qualquer conclusão
controvérsia. Pois não parece bastante simples determinada. Mas se a questão diz respeito a
oferecer definições exatas dos termos algum assunto da vida e da experiência
empregados no raciocínio, e fazer dessas cotidianas, julgaríamos que nada poderia
definições, e não do mero som das palavras, o preservar a disputa indecidida por tanto tempo
objeto de futuras análises e exames? Mas, se exceto algumas expressões ambíguas que
considerarmos o assunto mais de perto, mantêm os antagonistas imóveis à distância e os
estaremos inclinados a extrair uma conclusão impedem de atracar-se um ao outro.
oposta. Do simples fato de que uma controvérsia 2. Isso tem sido o caso na questão longamente
tenha se estendido por tanto tempo e ainda debatida acerca da liberdade e da necessidade,
permaneça sem solução, podemos presumir que e em um grau tão notável que, se não estou muito
há nela alguma ambiguidade de expressão, e que enganado, descobriremos que todos os homens,
os debatedores associam diferentes ideias aos tanto os sábios como os ignorantes, sempre
termos empregados na controvérsia. Pois como tiveram a mesma opinião sobre esse assunto, e
se supõe que as faculdades da mente são que umas poucas definições inteligíveis teriam
naturalmente iguais em todos os indivíduos – e se imediatamente posto um fim a toda a controvérsia.
assim não fosse, nada poderia ser mais infrutífero Confesso que essa disputa tem sido tão
que argumentarmos ou debatermos uns com os extensamente investigada de todos os lados, e
outros –, seria impossível, se as pessoas tem conduzido os filósofos a um tal labirinto de
associassem as mesmas ideias a seus termos, sofismas obscuros que não é de admirar que um
que pudessem durante tanto tempo formar leitor sensato leve sua comodidade a ponto de
diferentes opiniões sobre o mesmo assunto, recusar-se a dar ouvidos a uma questão da qual
especialmente quando comunicam suas opiniões, não pode esperar nem instrução nem
e cada uma das partes volta-se para todos os entretenimento. Mas a forma aqui proposta do
lados em busca de argumentos que possam dar- argumento pode, talvez, servir para renovar sua
1
atenção, já que apresenta mais novidade, que se tivesse visto antes, jamais teríamos, nesse
promete ao menos algum resultado na decisão da caso, alcançado a mais tênue ideia de
controvérsia e não perturbará muito seu conforto necessidade ou de uma conexão entre esses
com raciocínios intricados e obscuros.1 objetos. Poderíamos dizer, sob essa suposição,
3. Espero, portanto, mostrar que todos os homens que um objeto ou acontecimento seguiu-se a
sempre concordaram quanto às doutrinas tanto outro, mas não que um foi produzido pelo outro.
da necessidade quanto da liberdade, em Nesse caso, a relação de causa e efeito deveria
qualquer sentido razoável que se possa dar a ser absolutamente desconhecida pela
esses termos, e que toda a controvérsia girou até humanidade, e a inferência e o raciocínio relativos
agora meramente em torno de palavras. às operações da natureza chegariam a um fim,
Começaremos por examinar a doutrina da restando a memória e os sentidos como os únicos
necessidade.2 canais pelos quais o conhecimento de qualquer
4. É universalmente admitido que a matéria, em existência real poderia ter acesso à mente. Nossa
todas as suas operações, sofre a atuação de uma ideia de necessidade e causação surge, portanto,
força necessária, e que todo efeito natural está inteiramente da uniformidade observada nas
tão precisamente determinado pela energia de operações da natureza, nas quais objetos
sua causa que nenhum outro efeito, naquelas semelhantes estão constantemente conjugados,
circunstâncias particulares, poderia ter resultado e a mente é determinada pelo hábito a inferir um
dela. A magnitude e a direção de cada movimento deles a partir do aparecimento do outro. Essas
estão prescritas com tal exatidão pelas leis da duas circunstâncias compõem toda a
natureza que, do choque de dois corpos, seria tão necessidade que atribuímos à matéria. Para além
plausível surgir uma criatura viva quanto um da conjunção constante de objetos similares, e da
movimento de magnitude ou direção diferentes consequente inferência de um ao outro, não
do que efetivamente se produziu. Se quisermos, temos nenhuma ideia de qualquer necessidade
portanto, formar uma ideia justa e precisa de ou conexão.
necessidade, deveremos considerar de onde 6. Se ficar claro, portanto, que toda a humanidade
surge essa ideia, quando a aplicamos à operação sempre reconheceu, sem nenhuma dúvida ou
dos corpos. hesitação, que essas duas circunstâncias têm
5. Parece evidente que, se todas as cenas da lugar nas ações voluntárias dos homens e nas
natureza fossem continuamente alteradas de tal operações da mente, deve seguir-se que toda a
maneira que jamais dois acontecimentos humanidade sempre concordou com doutrina da
tivessem qualquer semelhança um com o outro necessidade, e se polemizaram até agora, é
mas cada objeto fosse sempre inteiramente novo, meramente por não se entenderem uns aos
sem nenhuma semelhança com qualquer coisa outros.

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Hume entende a filosofia como uma reflexão sobre o nosso (parágrafos 6 a 20), de mostrar que compreendemos o
modo comum de pensar. Nesse sentido, a filosofia não deve comportamento humano a partir de relações causais, o que
ser obscura e complicada, como se nos apresentasse um quer dizer, segundo sua concepção da causalidade, que
outro modo de pensar que não o ordinário. costumamos inferir as ações dos homens de seus motivos e
2
Nos dois parágrafos seguintes Hume resume a sua inclinações, a partir da percepção de relações regulares de
concepção da relação causal, pela qual é hoje conhecido e contiguidade e sucessão entre eles.
reconhecido como grande filósofo. Trata-se, em seguida
2
7. Quanto à primeira circunstância, a saber, a minerais e outros objetos externos por meio dos
conjunção constante e regular de eventos experimentos que realiza sobre eles. E a terra,
semelhantes, é possível que fiquemos satisfeitos água, e outros elementos examinados por
com as seguintes considerações. É Aristóteles e Hipócrates assemelham-se aos que
universalmente admitido que há uma grande estão presentemente dados a nossa observação
uniformidade nas ações dos homens em todas as tanto quanto os homens descritos por Políbio e
nações e épocas, e que a natureza humana ainda Tácito assemelham-se aos que agora governam
continua a mesma em seus princípios e o mundo.
operações. Os mesmos motivos sempre 8. Se um viajante, retornando de um país distante,
produzem as mesmas ações; os mesmos eventos traz-nos um relato de homens completamente
seguem-se das mesmas causas. Ambição, diferentes de todos os que já conhecemos,
avareza, interesse próprio, vaidade, amizade, homens inteiramente privados de avareza,
generosidade, espírito público, essas paixões, ambição ou vingança, que não sentissem outros
mescladas em graus variados e distribuídas por prazeres senão os da amizade, generosidade e
toda a sociedade, têm sido desde o início do espírito público, deveríamos imediatamente, por
mundo, e ainda são, a fonte de todas as ações e essas circunstâncias, detectar a falsidade e
empreendimentos que já foram observados entre apontá-lo como mentiroso, com tanta certeza
a humanidade. Quer conhecer os sentimentos, como se ele tivesse recheado sua narrativa com
inclinações e modo de vida dos gregos e romanos? histórias de centauros e dragões, milagres e
Estude bem o temperamento e as ações dos prodígios. E, se quisermos destruir qualquer
franceses e ingleses; você não pode estar muito falsificação em história, não há argumento mais
enganado ao transferir para os primeiros a convincente do que provar que as ações
maioria das observações que fez sobre os atribuídas a uma pessoa qualquer são
segundos. A humanidade é tão semelhante em diretamente contrárias ao curso da natureza, e
todas as épocas e lugares que a história não nos que nenhuma motivação humana, em tais
revela nada novo ou estranho nesse aspecto. Sua circunstâncias, jamais poderia induzi-la a tal
principal utilidade é apenas revelar os princípios conduta. A veracidade de Quinto Cúrcio é tão
constantes e universais da natureza humana, suspeita quando descreve a coragem
mostrando os homens em todas as variedades de sobrenatural de Alexandre, que o levava a atacar
circunstâncias e situações, e fornecendo sozinho multidões, como quando descreve sua
materiais a partir dos quais podemos ordenar força e atividade sobrenaturais, que lhe permitiam
nossas observações e familiarizar-nos com os enfrentar essas multidões. Reconhecemos uma
motivos regulares da ação e do comportamento uniformidade nos motivos e ações humanas de
humanos. Esses registros de guerras, intrigas, forma tão pronta e universal quanto nas
sedições e revoltas são outras tantas coleções de operações dos corpos.
experimentos pelos quais o político ou filósofo da 9. Daí igualmente o valor da experiência adquirida
moral fixa os princípios de sua ciência, da mesma por uma longa vida e uma multiplicidade de
maneira que o físico ou filósofo da natureza ocupações e convivências para instruir-nos
familiariza-se com a natureza de plantas, quanto aos princípios da natureza humana e
3
regular tanto nossa conduta futura quanto nossa minimamente em consideração a diversidade dos
especulação. Por meio desse guia, ascendemos caracteres, predisposições e opiniões. Uma
ao conhecimento das inclinações e motivações uniformidade desse tipo, em todos os detalhes,
dos homens a partir de suas ações, expressões não se encontra em parte alguma da natureza. Ao
e, até mesmo, seus gestos; e, reciprocamente, contrário, ao observar a diversidade de condutas
descendemos à interpretação de suas ações a em diferentes homens, tornamo-nos capazes de
partir do conhecimento que temos de seus moldar uma maior variedade de máximas, que
motivos e inclinações. As observações gerais, continuam pressupondo algum grau de
acumuladas no curso da experiência dão-nos a uniformidade e regularidade.
chave da natureza humana e ensinamos a 11. Se os costumes dos homens diferem em
deslindar todas as suas complexidades. diferentes épocas e países, isso nos instrui sobre
Pretextos e aparências não mais nos enganam, e a grande força do hábito e da educação, que
declarações públicas são tomadas como o moldam a mente humana desde sua infância e
disfarce plausível de um certo interesse. E dão-lhe um caráter fixo e determinado. Se os
embora se conceda à virtude e à honra seu modos e a conduta de um dos sexos são bem
apropriado peso e autoridade, esse perfeito diferentes dos de outro, isso nos familiariza com
desinteresse, tantas vezes alegado, jamais é os diferentes caracteres que a natureza
esperado nas multidões e facções, raramente em estampou sobre eles, e que ela preserva com
seus líderes, e ainda mais raramente em constância e regularidade. Se as ações de uma
indivíduos de qualquer categoria ou posição. Mas, mesma pessoa mostram-se muito distintas nos
se não houvesse uniformidade nas ações diversos períodos de sua vida, da infância à
humanas, e se todo experimento realizado nesse velhice, isso abre espaço para muitas
campo fornecesse resultados irregulares e observações gerais relativas à mudança gradual
anômalos, seria impossível coletar quaisquer de nossos sentimentos e inclinações, e as
observações gerais acerca da humanidade, e diferentes máximas que prevalecem nas
nenhuma experiência, por mais acuradamente diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo
digerida pela reflexão, poderia servir a qualquer os caracteres, que são peculiares a cada
propósito. Por que o velho lavrador seria mais indivíduo, exibem uma uniformidade em sua
habilidoso em seu ofício que o jovem principiante, influência, caso contrário nossa familiaridade com
a não ser porque há uma certa uniformidade na as pessoas, e nossas observações de sua
operação do sol, da chuva e da terra no que se conduta, não poderiam jamais ensinar-nos sobre
refere à produção de vegetais, e porque a suas disposições, ou servir para dirigir nosso
experiência ensina ao velho praticante as regras comportamento em relação a elas.
pelas quais essa operação é governada e dirigida? 12. Concedo que seja possível descobrir algumas
10. Não devemos, contudo, esperar que essa ações que não parecem ter nenhuma conexão
uniformidade das ações humanas chegue ao regular com quaisquer motivos conhecidos, e que
ponto de que todos os homens, nas mesmas são exceções a todos os padrões de conduta já
circunstâncias, venham sempre a agir estabelecidos para a direção dos homens. Mas,
precisamente da mesma maneira, sem levar se quisermos saber quais julgamentos devem ser
4
feitos sobre essas ações irregulares e máxima de que a conexão entre todas as causas
extraordinárias, será útil considerar as opiniões e efeitos é uniformemente necessária, e que sua
comumente mantidas sobre os acontecimentos aparente incerteza em alguns casos deriva da
irregulares que surgem no curso da natureza e secreta oposição de causas contrárias.
nas operações dos objetos externos. Nem todas 14. Assim, por exemplo, no corpo humano,
as causas estão conjugadas com a mesma quando os sintomas usuais de saúde ou doença
uniformidade a seus efeitos costumeiros. Um frustram nossas expectativas, quando os
artífice que manipula apenas matéria inanimada remédios não operam com a eficácia costumeira,
pode ter seus objetivos frustrados tanto quanto quando resultados irregulares decorrem de
um político que dirige a conduta de agentes alguma causa particular, o filósofo e o médico não
razoáveis e inteligentes. se surpreendem com isso nem jamais são
13. O vulgo, que toma as coisas tal como lhe tentados a negar a necessidade e uniformidade
aparecem à primeira vista, atribui a incerteza dos gerais desses princípios que dirigem a
resultados a uma incerteza nas causas, que as organização animal. Eles sabem que um corpo
priva frequentemente de sua influência habitual, humano é uma máquina imensamente
embora não sofram impedimentos em sua complicada, que nele se ocultam muitos poderes
operação. Mas os filósofos – ao observar que em secretos situados totalmente além de nossa
quase todas as partes da natureza está presente compreensão, que ele frequentemente nos
uma grande variedade de motivos e princípios parecerá muito incerto em suas operações, e que,
que, por serem muito remotos ou diminutos, estão portanto, os resultados irregulares que se
necessariamente ocultos – descobrem que é pelo manifestam exteriormente não provam que as leis
menos possível que essa disparidade dos da natureza não estejam sendo obedecidas com
resultados proceda, não de alguma contingência a máxima regularidade em suas operações e
na causa, mas da operação secreta de causas determinações internas.
contrárias. Essa possibilidade se converte em 15. O filósofo, para ser consistente, deve aplicar
certeza quando, após um exame rigoroso, o mesmo raciocínio às ações e volições de
observações adicionais mostram que uma agentes dotados de inteligência. As resoluções
disparidade nos resultados revela sempre uma mais irregulares e inesperadas dos seres
disparidade nas causas, e decorre de sua mútua humanos podem frequentemente ser explicadas
oposição. Um camponês não pode dar melhor por aqueles que conhecem cada detalhe
explicação de por que um relógio pára senão particular de seu caráter e situação. Uma pessoa
dizendo que ele não costuma funcionar bem; mas de gênio amável dá uma resposta irritada: mas é
um artífice facilmente percebe que uma mesma que ela tem dor de dente, ou não almoçou. Um
força na mola ou no pêndulo tem sempre a tipo vagaroso exibe uma vivacidade incomum em
mesma influência sobre as engrenagens, embora suas maneiras: é que um golpe de sorte
possa falhar em produzir seu efeito costumeiro subitamente o favoreceu. Ou mesmo quando uma
em razão, talvez, de um grão de poeira que ação, como algumas vezes ocorre, não pode ser
interrompe todo o movimento. Da observação de particularmente explicada nem pela própria
diversos casos paralelos, os filósofos extraem a pessoa nem por outras, sabemos, em geral, que
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os caracteres dos homens apresentam um 17. A dependência mútua dos homens é tão
determinado grau de inconstância e grande em todas as sociedades que dificilmente
irregularidade. Este, de certo modo, é o caráter qualquer ação humana está inteiramente
constante da natureza humana, embora seja completa em si mesma, ou é realizada sem
mais particularmente aplicável a algumas alguma referência às ações de outros que são
pessoas que não têm nenhuma regra fixa de requeridas para fazê-la corresponder plenamente
conduta, mas procedem em um contínuo fluxo de à intenção do agente. Mesmo o mais pobre
capricho e inconstância. Os princípios e motivos artesão, ao trabalhar sozinho, espera pelo menos
internos podem operar de maneira uniforme que a proteção do magistrado lhe garanta o gozo
apesar dessas aparentes irregularidades, assim dos frutos de seu trabalho. Também espera que,
como se supõe que os ventos, chuvas, nuvens e ao levar seus produtos ao mercado e oferecê-los
outras variáveis do clima são governados por a um preço razoável, encontrará compradores e
princípios estáveis, embora não facilmente será capaz, com o dinheiro que obtém, de
discerníveis pela sagacidade e a investigação conseguir que outros lhe forneçam os artigos
humanas.3 necessários à sua sobrevivência. À proporção
16. Parece, então, não apenas que a conjunção que os homens ampliam suas transações e
entre motivos e ações voluntárias é tão regular e tornam mais complicadas suas interações com
uniforme como a que existe entre a causa e o outros, seus esquemas de vida abrangem uma
efeito em qualquer parte da natureza, mas variedade cada vez maior de ações voluntárias
também que essa conjunção regular tem sido que eles esperam, pelos motivos apropriados,
universalmente reconhecida pela humanidade, e que colaborem com as suas próprias ações. Em
nunca foi objeto de disputa, seja na filosofia, seja todas essas conclusões, é da experiência
na vida ordinária. Ora, como é da experiência passada que eles extraem seus padrões, assim
passada que extraímos todas as inferências como o fazem em seus raciocínios sobre objetos
referentes ao futuro, e como concluímos que os externos, acreditando firmemente que os homens,
objetos que sempre observamos conjugados assim como todos os elementos, devem continuar
continuarão conjugados para sempre, pode a agir, em suas operações, do modo que sempre
parecer supérfluo provar que essa uniformidade se observou. Para a execução de uma tarefa
experimentada nas ações humanas é uma fonte qualquer, o proprietário de uma manufatura conta
a partir da qual fazemos inferências sobre elas. com o trabalho de seus empregados tanto quanto
Mas a fim de lançar o argumento em uma maior conta com as ferramentas que emprega, e ficaria
variedade de perspectivas, vamos também igualmente surpreso se suas expectativas se
4
insistir, embora brevemente, neste último tópico. frustrassem em qualquer um dos casos. Em suma,

3
A regularidade, com base na qual estabelecemos relações das causas ocultas e não imediatamente evidentes. É isso o
causais, nem sempre é observada na natureza, que, em que Hume procura fazer na sua filosofia, que se pretende
muitos casos, nos aparece de maneira irregular. No entanto, uma ciência da natureza humana.
4
diante dessas irregularidades nossa tendência é a de adotar Até aqui (parágrafos 6 a 16) Hume mostrou que tomamos
uma atitude que a filosofia, a ciência e a reflexão acabam por o comportamento como regular. Trata-se agora de mostrar
fortalecer, a saber, a de atribuir a irregularidade ao que, com base nessa regularidade, inferimos ações e
desconhecimento das causas. Esse modo de pensar comportamentos a partir de motivações.
impulsiona o desenvolvimento da razão no sentido da busca
6
essa inferência e raciocínio experimentais acerca moral, formando uma única cadeia de
das ações de outros está tão presente na vida argumentos, não hesitaremos em admitir que elas
humana que ninguém que esteja desperto deixa são da mesma natureza, e derivam-se dos
de efetuá-los sequer por um momento. Não mesmos princípios. Um prisioneiro que não tem
temos, portanto, razão em afirmar que toda a dinheiro nem rendimentos descobre a
humanidade sempre concordou com a doutrina impossibilidade de sua fuga tanto ao considerar a
da necessidade, segundo a definição e obstinação do carcereiro quanto ao observar as
explicação precedentes? paredes e grades que o cercam; e, em todas as
18. Tampouco os filósofos mantiveram, neste tentativas de ganhar a liberdade, escolhe antes
assunto, uma opinião diferente da do povo. Pois, laborar sobre a pedra e o ferro destas últimas do
para não mencionar que quase todas as ações de que sobre a natureza inflexível do primeiro. O
suas vidas pressupõem essa opinião, há mesmo prisioneiro, quando levado ao cadafalso,
igualmente poucas partes do saber especulativo prevê sua morte com tanta certeza a partir da
para as quais ela não é essencial. Que constância e fidelidade de seus guardas quanto
aconteceria à história se não tivéssemos da operação do machado ou da roda. Sua mente
confiança na veracidade do historiador, de acordo percorre uma determinada sequência de ideias: a
a experiência que tivemos da humanidade? recusa dos soldados em permitir sua fuga, a ação
Como poderia a política ser uma ciência se as leis do carrasco, a separação da cabeça e do corpo,
e as formas de governo não tivessem uma a perda de sangue, os movimentos convulsivos e
influência uniforme sobre a sociedade? Onde a morte. Eis aqui uma cadeia que entrelaça tanto
estaria a fundação da moral se caracteres causas naturais como ações voluntárias, mas a
particulares não tivessem nenhum poder certo e mente não sente nenhuma diferença entre elas
determinado de produzir sentimentos particulares, ao passar de um elo para outro, nem está menos
e se esses sentimentos não operassem de forma certa do resultado futuro do que estaria se ele se
constante sobre as ações? E sob que alegação conectasse a objetos presentes a sua memória
poderíamos dirigir nossa crítica a um poeta ou ou sentidos por uma sequência de causas
beletrista se não pudéssemos declarar que a cimentadas pelo que nos apraz chamar uma
conduta e os sentimentos de seus personagens necessidade física. A experiência da mesma
eram ou não naturais em vista de seus caracteres conjunção tem um mesmo efeito sobre a mente,
e das circunstâncias? Parece quase impossível, quer os objetos conjugados sejam motivos,
portanto, envolvermo-nos com qualquer tipo de volições e ações, ou forma e movimento.
ciência ou ação sem reconhecer a doutrina da Podemos mudar os nomes das coisas, mas sua
necessidade, e essa inferência das ações natureza e sua operação sobre o entendimento
voluntárias a partir dos motivos; da conduta a nunca mudam.
partir dos caracteres.5 20. Se um homem, que sei ser honesto e opulento,
19. E, na verdade, quando consideramos quão e com quem vivo em íntima amizade, vier à minha
adequadamente se ligam as evidências natural e casa, onde estou rodeado por meus empregados,

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Levando em conta essa doutrina da necessidade, Hume se enumerar: a história, a política, a moral e a crítica.
dedicou a desenvolver em sua obra as ciências que acaba de
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fico seguro de que ele não irá apunhalar-me pelas revele, contudo, tanta relutância a admiti-la em
costas antes de partir para roubar meu porta- palavras, e se mostre, em todas as épocas
tinteiro de prata, e não espero esse evento mais inclinada, a defender a opinião contrária. Penso
do que esperaria o desabamento da própria casa, que se pode explicar isso da seguinte maneira.
que é nova e solidamente construída e alicerçada. Se examinarmos as operações dos corpos e a
“Mas ele pode ser tomado de um delírio súbito produção de efeitos a partir de suas causas,
desconhecido”. Ora, do mesmo modo um súbito descobriremos que todas nossas faculdades
terremoto pode abalar minha casa e fazê-la jamais podem fazer-nos avançar, em nosso
desabar sobre minha cabeça. Vou, portanto, conhecimento dessa relação, para além da
mudar as suposições e dizer que sei com certeza simples observação de que objetos particulares
que ele não vai pôr sua mão sobre o fogo e estão constantemente conjugados uns aos outros,
mantê-la ali até ser consumida. E penso que e que a mente, por uma transição costumeira, é
posso prever esse acontecimento com a mesma levada, quando do aparecimento de um desses
segurança com que posso prever que, se ele se objetos, à crença no outro. Mas embora essa
atirasse pela janela e não encontrasse nenhum conclusão referente à ignorância humana seja o
obstáculo, não permaneceria suspenso no ar por resultado de um exame muito cuidadoso do
um momento sequer. Nenhuma suspeita de um assunto, as pessoas ainda têm uma forte
delírio desconhecido pode tornar minimamente propensão a acreditar que penetram mais
possível aquele primeiro acontecimento, tão profundamente nos poderes da natureza e
contrário a todos os princípios conhecidos da percebem algo como uma conexão necessária
natureza humana. Um homem que ao meio-dia entre a causa e o efeito. Quando, porém, dirigem
deixe sua bolsa recheada de ouro na calçada de em seguida suas reflexões para as operações de
Charing Cross pode tão bem esperar que ela suas próprias mentes, e não sentem uma
voará para longe como uma pena como que a conexão desse tipo entre o motivo e a ação, elas
encontrará intacta uma hora mais tarde. Mais da tendem, com base nisso, a supor que há uma
metade dos raciocínios humanos contêm diferença entre os efeitos que resultam de uma
inferências de natureza semelhante, força material e os que provêm do pensamento e
acompanhadas de maiores ou menores graus de da inteligência. Mas, logo que nos convencermos
certeza, proporcionais à experiência que temos de que tudo o que sabemos acerca de qualquer
da conduta usual dos homens nessas situações tipo de causação é simplesmente a conjunção
particulares.6 constante de objetos e a consequente inferência
21. Tenho frequentemente considerado qual de um ao outro realizada pela mente, e
poderia ser a razão pela qual toda a humanidade, descobrirmos que todos admitem universalmente
embora sempre admitindo sem hesitar a doutrina que essas duas condições ocorrem nas ações
da necessidade em todos seus atos e raciocínios, voluntárias, reconheceremos talvez mais

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Tendo mostrado que, de fato, em nossos raciocínios nosso comportamento. Tais razões consistem numa
ordinários, estabelecemos relações causais concernentes à concepção errônea da causalidade, notadamente, na
conduta humana, cabe agora investigar as razões que teriam concepção clássica da causalidade, que foi objeto da crítica
levado alguns a negar a necessidade e a determinação do de Hume.
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facilmente que essa mesma necessidade é que concebemos na matéria, e se há um
comum a todas as causas. E, embora este reconhecimento universal de que essas
raciocínio, ao atribuir necessidade às circunstâncias também ocorrem nas operações
determinações da vontade, possa contradizer os da mente, a disputa está concluída, ou, ao menos,
sistemas de muitos filósofos, descobriremos, tem de ser reconhecida, daqui em diante, como
após refletir, que esses filósofos discordam dele sendo meramente verbal. Mas enquanto
apenas verbalmente, não em sua real opinião. A supusermos irrefletidamente que temos alguma
necessidade, no sentido em que a tomamos aqui, ideia adicional de necessidade e causação nas
nunca foi – nem pode ser, acredito –, rejeitada por operações dos objetos externos, e, ao mesmo
nenhum filósofo. Pode-se, talvez, apenas alegar tempo, que não conseguimos descobrir algo
que a mente é capaz de perceber, nas operações semelhante nas ações voluntárias da mente, será
da matéria, alguma conexão adicional entre a impossível, perseverando em uma suposição tão
causa e o efeito, uma conexão que não ocorre errônea, chegar a uma conclusão determinada
nas ações voluntárias de seres inteligentes. Ora, sobre a questão. O único método que pode nos
se isso é ou não verdade, só pode ficar claro após abrir os olhos é ascender ainda mais e examinar
um exame, e cabe a esses filósofos tornar válida o limitado alcance da ciência quando aplicada às
sua asserção, definindo ou descrevendo essa causas materiais, convencendo-nos de que tudo
necessidade e mostrando-nos sua presença nas o que conhecemos destas são a conjunção
operações das causas materiais. constante e a inferência acima mencionadas.
22. Pareceria, na verdade, que os homens Podemos, talvez, achar difícil que se concorde
começam pelo lado errado dessa questão sobre em fixar limites tão estreitos ao entendimento
liberdade e necessidade ao abordá-la humano, mas não teremos, em seguida,
examinando as faculdades da alma, a influência dificuldades quando viermos a aplicar essa
do entendimento e as operações da vontade. Que doutrina às ações da vontade. Pois, como é
eles discutam, primeiramente, uma questão mais evidente que estas apresentam uma conjunção
simples, a saber, as operações dos corpos e da regular com motivos, circunstâncias e caracteres,
matéria bruta desprovida de inteligência, e e como sempre fazemos inferências destes para
experimentem se podem formar, aí, qualquer aquelas, devemos estar obrigados a reconhecer
ideia de causação e necessidade exceto a de verbalmente essa necessidade que já admitimos
uma conjunção constante de objetos e a em todas as deliberações de nossas vidas e em
subsequente inferência feita pela mente ao todos os passos de nossa conduta e
passar de um ao outro. Se essas circunstâncias procedimento.7
constituem, efetivamente, toda a necessidade 23. Prosseguindo, contudo, neste projeto de

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A prevalência da doutrina da liberdade pode ser explicada determinação de seus pensamentos a inferir a ocorrência
a partir de outra causa, a saber, uma falsa sensação ou dessa ação a partir de alguns objetos precedentes; assim
aparente experiência de liberdade ou indiferença que temos como a liberdade, quando oposta à necessidade, não é nada
ou podemos ter em muitas de nossas ações. A necessidade mais que a falta dessa determinação, e uma certa frouxidão
de qualquer ação, seja da matéria ou da mente, não é uma ou indiferença que sentimos ao passar, ou não passar, da
qualidade que esteja propriamente no agente, mas em ideia de um objeto à de algum outro que o suceda. Mas
qualquer ser dotado de pensamento e intelecto que esteja embora possamos observar que, ao refletir sobre as ações
observando a ação; e consiste principalmente na humanas, raramente sentimos essa frouxidão ou indiferença,
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reconciliação concernente à questão da liberdade liberdade, devemos ter o cuidado de observar
e da necessidade – a mais controversa questão duas condições necessárias: primeiro, que essa
da metafísica, ela própria a mais controversa das definição seja consistente com os simples fatos;
ciências –, não se requer muitas palavras para segundo, que seja consistente consigo mesma.
provar que toda a humanidade sempre esteve de Se observarmos essas condições e tornarmos
acordo quanto à doutrina da liberdade, assim nossa definição inteligível, estou convencido de
como quanto à da necessidade, e que toda a que toda a humanidade terá uma opinião
disputa, também nesse aspecto, tem sido até unânime a seu respeito.
agora meramente verbal. Pois o que se entende 25. Reconhece-se universalmente que nada
por liberdade quando esse termo é aplicado a existe sem uma causa de sua existência e que
ações voluntárias? 8 Com certeza não estamos acaso, quando bem examinada, é uma palavra
querendo dizer que as ações tenham tão pouca meramente negativa, que não significa nenhum
conexão com motivos, inclinações e poder real que exista em alguma parte da
circunstâncias que não se sigam deles com um natureza. Pretende-se, porém, que algumas
certo grau de uniformidade, e que estes não causas sejam necessárias e outras não. Eis aqui,
apoiem nenhuma inferência que nos permita então, a vantagem das definições. Basta que
concluir a ocorrência daquelas, pois tais fatos são alguém defina uma causa sem incluir, como parte
simples e bem conhecidos. Por liberdade, então, da definição, uma conexão necessária com seu
só podemos entender um poder de agir ou não efeito, e que mostre precisamente a origem da
agir de acordo com as determinações da vontade; ideia expressa pela definição, para que eu
ou seja, se escolhermos ficar parados, podemos abandone de imediato toda a controvérsia, mas
ficar assim, e se escolhermos nos mover, também isto é completamente impossível se aceitarmos a
podemos fazê-lo. Ora, essa liberdade hipotética é explicação precedente do assunto. Se objetos
universalmente admitida como pertencente a não apresentassem uma conjunção regular uns
todo aquele que não esteja preso e acorrentado. com os outros, jamais chegaríamos a conceber
Não há aqui, portanto, matéria para disputas. qualquer noção de causa e efeito, e é essa
24. Qualquer que seja a definição que se dê de conjunção regular que produz aquela inferência

sendo comumente capazes de inferi-las com grande certeza estamos desconsiderando que o caprichoso desejo de
a partir de seus motivos e das disposições do agente, ocorre demonstrar a liberdade é, agora, o motivo de nossas ações. E
frequentemente que, ao realizar essas ações, temos esse tipo parece certo que, por mais que possamos imaginar que
de sensação. E como todos os objetos semelhantes são sentimos uma liberdade dentro de nós, um espectador pode
prontamente tomados uns pelos outros, isto tem sido comumente inferir nossas ações a partir de nossos motivos e
empregado como uma prova demonstrativa ou mesmo de nosso caráter, e, mesmo quando não o pode, conclui em
intuitiva da liberdade humana. Sentimos que nossas ações geral que poderia fazê-lo se estivesse perfeitamente
estão sujeitas à nossa vontade na maioria das ocasiões, e familiarizado com todas as circunstâncias de nossa situação
imaginamos que sentimos que a própria vontade não está e temperamento, e com os móveis mais secretos de nossa
submetida a nada, porque, quando uma negação dessa natureza e disposição. Mas isto é a própria essência da
suposição nos desafia a fazer uma tentativa, sentimos que a necessidade, de acordo com a doutrina precedente. (N.A.)
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vontade se move facilmente em todas as direções e produz Tendo se mostrado que, de fato, tomamos o
uma imagem de si própria (ou uma veleidade, como se diz comportamento humano como necessário, cabe agora
nas escolas) mesmo naquele lado no qual não veio a se fixar. retomar a questão da liberdade das ações voluntárias da qual
Persuadimo-nos de que essa imagem, ou tênue movimento, se partiu para definir qual sentido podemos atribuir, de
poderia, naquele momento, ter-se completado e chegado à maneira coerente, à noção de liberdade. Exerce-se aqui uma
própria ação, porque, se isso for negado, descobrimos, numa função essencial da atividade filosófica, a de zelar pela
segunda tentativa, que ela é agora capaz disso. Mas aqui coerência dos nossos discursos.
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do entendimento que é a única conexão da qual sinônimos do termo que pretende definir.9 E se for
podemos ter alguma compreensão. Quem quer aceita a definição acima mencionada, a liberdade,
que tente dar uma definição de causa que exclua enquanto oposta à necessidade, não à coerção,
esses aspectos estará obrigado a empregar ou é o mesmo que o acaso, que é universalmente
termos ininteligíveis, ou termos que são considerado como desprovido de existência.

Parte 210

26. Não há método de raciocínio mais comum e que passa de um objeto para outro. Ora, a
não obstante mais censurável que o de esforçar- necessidade, em ambos os sentidos (que, no
se, nas disputas filosóficas, para refutar uma fundo, são de fato o mesmo), tem sido
hipótese a pretexto de suas perigosas universalmente reconhecida, ainda que de forma
consequências para a religião e a moralidade. tácita, nas escolas, no púlpito e na vida ordinária,
Uma opinião que conduz a absurdos é como participando da vontade humana; e
certamente falsa, mas não é certo que uma ninguém jamais pretendeu negar que podemos
opinião seja falsa porque tenha consequências fazer inferências acerca de ações humanas, e
perigosas. Esses argumentos, portanto, deveriam que essas inferências fundam-se na conjunção
ser inteiramente abandonados, pois não experimentada de ações semelhantes com
contribuem em nada para a descoberta da motivos, inclinações e circunstâncias
verdade, mas apenas tornam odiosa a figura do semelhantes. A única forma pela qual alguém
contendor. Faço esta observação a título geral, pode discordar seria recusando-se, talvez, a
sem pretender tirar nenhuma vantagem dela. chamar de necessidade essa propriedade das
Submeto-me abertamente a um exame desse tipo ações humanas – mas se o significado está
e arrisco-me a afirmar que tanto a doutrina da entendido, não se espera que a palavra possa
necessidade como a da liberdade, tais como trazer problemas –, ou então, afirmando que é
acima explicadas, não apenas são consistentes possível descobrir algum fator adicional nas
com a moralidade, mas absolutamente essenciais operações da matéria; mas isto, deve-se
para lhe dar suporte. reconhecer, não pode ter relevância para a
27. A necessidade pode ser definida de duas moralidade ou a religião, quaisquer que sejam as
maneiras, de acordo com as duas definições de consequências que traga para a filosofia natural
causa, da qual forma uma parte essencial. Ela ou a metafísica. Podemos estar enganados, aqui,
consiste ou na conjunção constante de objetos ao declarar que não há nenhuma ideia de
semelhantes, ou na inferência do entendimento qualquer outra espécie de necessidade ou

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Assim, se uma causa for definida como aquilo que produz que sabemos do assunto. E essa constância forma a própria
alguma coisa, é fácil observar que produzir é sinônimo de essência da necessidade, e dela não temos nenhuma outra
causar. Do mesmo modo, se uma causa for definida como ideia. (N.A.)
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aquilo por meio de que alguma coisa existe, isto estará Na parte 2, Hume considera certas objeções que poderiam
sujeito à mesma objeção, pois o que significam palavras ser feitas à tese sustentada por ele na parte 1. Hume retoma
como por meio de que? Se se dissesse que uma causa é aqui certos argumentos que foram mobilizados no debate em
aquilo após o que alguma coisa constantemente existe, torno da liberdade e da necessidade, mencionado no início
teríamos entendido os termos, pois isso, na verdade, é tudo do texto, por parte dos defensores do livre-arbítrio
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conexão nas ações dos corpos, mas, quanto às pessoa possa, por causa delas, tornar-se objeto
ações da mente, certamente não lhes atribuímos de punição ou vingança. Portanto, de acordo com
nada a não ser o que todos atribuem e devem o princípio que nega a necessidade e,
prontamente conceder. Não alteramos nenhuma consequentemente, as causas, um homem, após
circunstância no sistema ortodoxo aceito ter cometido o crime mais horrendo, está tão puro
referente à vontade, mas apenas no sistema e sem mácula como no instante de seu
referente aos objetos e causas materiais. Nada, nascimento, e seu caráter não está de nenhum
portanto, pode ser mais inocente do que esta modo envolvido em suas ações, dado que não é
doutrina. dele que elas derivam, e a perversidade destas
28. Como todas as leis se fundam em últimas não pode jamais ser apresentada como
recompensas e punições, admite-se como um uma prova da depravação do primeiro.
princípio fundamental que esses motivos têm uma 30. Os homens não são censurados pelas ações
influência regular e uniforme sobre a mente, e são que realizam por ignorância e de forma casual,
capazes tanto de produzir as boas ações como de quaisquer que possam ser suas consequências.
evitar as más. Podemos dar a essa influência o Qual é a razão disso, a não ser o fato de que os
nome que quisermos, mas, como ela está princípios dessas ações são apenas
usualmente conjugada à ação, deve ser momentâneos, e esgotam-se com as próprias
considerada uma causa, e tomada como um ações? Por que os homens são menos
exemplo da necessidade que queremos aqui censurados pelas ações que realizam de forma
estabelecer. abrupta e sem premeditação do que por aquelas
29. O único objeto apropriado de ódio ou vingança que procedem da deliberação, a não ser porque
é uma pessoa ou criatura dotada de pensamento um temperamento precipitado, embora seja uma
e consciência; e quando algumas ações causa ou princípio constante na mente, opera
criminosas ou prejudiciais excitam essa paixão, é apenas por intervalos e não contamina o caráter
apenas por sua relação com a pessoa, ou sua como um todo? Além disso, o arrependimento
conexão com ela. Ações, por sua própria natureza, apaga todos os crimes, se for acompanhado por
são temporárias e perecíveis, e nos casos em que uma reforma da vida e dos hábitos. Como explicar
não procedem de alguma causa no caráter e isso, a não ser declarando que as ações tornam
disposição da pessoa que as realizou, não podem uma pessoa criminosa meramente por provarem
nem redundar em sua honra, se forem boas ações, a existência de princípios criminosos na mente; e
nem em sua infâmia, se forem más. As ações, se, por uma alteração desses princípios, elas
elas próprias, podem ser repreensíveis, podem deixam de ser provas legítimas, deixariam
ser contrárias a todas as regras da moralidade e igualmente de ser criminosas? Mas, a menos que
da religião, mas a pessoa não será responsável se admita a doutrina da necessidade, elas nunca
por elas, e, como não procedem de nada que seja teriam sido provas legítimas, e,
durável e constante no agente, e não deixam consequentemente, nunca teriam sido
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nada desse tipo atrás de si, é impossível que essa criminosas.

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Os homens são louvados ou censurados, ou seja, suas disposições de caráter permanentes. A
responsabilizados moralmente, pelas ações que se seguem de responsabilização moral supõe a doutrina da necessidade.
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31. Será igualmente fácil provar, a partir dos podem conter nenhuma maldade moral, dado que
mesmos argumentos, que a liberdade, de acordo procedem de tão boa causa; ou, se contêm
com a definição dada acima, com a qual todos alguma maldade, terão de comprometer nosso
estão de acordo, também é essencial para a Criador na mesma culpa, dado que se reconhece
moralidade, e que nenhuma ação humana da qual que é ele a causa originária e o autor último
esteja ausente é suscetível de quaisquer dessas ações. Pois, do mesmo modo que o
qualidades morais, ou pode ser objeto de homem que detonou um explosivo é responsável
aprovação ou desagrado. Pois, como as ações por todas as consequências, quer tenha
são objetos de nossos sentimentos morais empregado um rastilho longo ou curto, assim, em
apenas à medida que são indicações de caráter, todos os casos em que se estabeleceu uma
paixões e afecções interiores, é impossível que cadeia contínua de causas necessárias, aquele
possam dar origem quer a louvores quer a Ser, finito ou infinito, que produz a primeira é, do
censuras se não procedem desses princípios mas mesmo modo, autor de todo o resto, e deve tanto
decorrem totalmente da coação exterior. sofrer a censura como receber o louvor que
32. Não pretendo ter esclarecido ou removido cabem a elas. Sempre que examinamos as
todas as objeções a essa teoria, no que se refere consequências de qualquer ação humana,
à liberdade e à necessidade. Posso antever nossas ideias claras e inalteráveis de moralidade
outras objeções, derivadas de tópicos que não estabelecem essa regra com base em razões
foram tratados aqui. É possível dizer, por exemplo, inquestionáveis, e essas razões devem ter ainda
que, se as ações voluntárias estiverem mais força quando aplicadas à intenções e
submetidas às mesmas leis de necessidade que volições de um Ser infinitamente sábio e
as operações da matéria, haverá uma cadeia poderoso. Pode-se alegar ignorância ou
contínua de causas necessárias, preordenadas e impotência para desculpar uma criatura tão
predeterminadas, estendendo-se da causa limitada como o homem, mas essas imperfeições
original de tudo até cada uma das volições não têm lugar em nosso Criador. Ele previu,
particulares de cada criatura humana. Não decidiu, tencionou todas aquelas ações dos
haveria nenhuma contingência em parte alguma homens que nós tão precipitadamente
do universo, nenhuma indeterminação, nenhuma declaramos criminosas. E devemos concluir,
liberdade. Ao atuarmos, sofremos ao mesmo portanto, ou que elas não são criminosas, ou que
tempo uma atuação. O Autor último de todas as a Divindade, e não o homem, é responsável por
nossas volições é o Criador do mundo, que elas. Mas como cada uma dessas posições é
primeiramente imprimiu movimento a essa absurda e ímpia, segue-se que a doutrina da qual
imensa máquina e situou todos os seres na são deduzidas não pode ser verdadeira, por estar
posição particular da qual, por uma necessidade sujeita às mesmas objeções. Se uma
inelutável, cada acontecimento subsequente deve consequência absurda se mostra necessária, isso
resultar. As ações humanas, portanto, ou não prova que a doutrina original é absurda, do

Com isso, Hume inverte um dos argumentos levantados vontade) que podemos, com justiça, ser responsabilizados
contra essa doutrina, a saber, que é apenas na medida em que por ela, posto que só assim a escolha depende inteiramente
nossa escolha é livre (no sentido de um ato inaugural da de nós.
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mesmo modo que ações criminosas tornam realidade, bens para o universo, e que, visto de
criminosa a causa original, se a conexão entre uma perspectiva mais abrangente, capaz de
elas é necessária e inevitável. abarcar o sistema da natureza como um todo,
33. Esta objeção consiste de duas partes, que cada acontecimento se tornaria motivo de alegria
examinaremos separadamente. Primeiro, que, se e exultação. Mas essa consideração, embora seja
ações humanas puderem ser reportadas à razoável e sublime, logo se mostrou fraca e
Divindade por meio de uma cadeia necessária, ineficaz na prática. Certamente não iríamos
elas nunca poderão ser criminosas, devido à apaziguar, mas sim irritar um homem que sofre as
infinita perfeição do Ser do qual derivam, que só dores torturantes da gota se louvássemos a
pode tencionar o que é completamente bom e exatidão das leis gerais que produziram os
louvável. Ou, segundo, se forem criminosas, humores malignos em seu corpo e os conduziram,
devemos retirar o atributo de perfeição que através dos canais apropriados, aos tendões e
atribuímos à Divindade e devemos reconhecê-lo nervos onde agora provocam aqueles agudos
como o autor último da culpa e da torpeza moral tormentos. Essas perspectivas amplas podem,
em todas as suas criaturas.12 por um momento, agradar a imaginação de um
34. A resposta à primeira objeção parece óbvia e homem de índole especulativa que esteja em
convincente. Há muitos filósofos que, após um situação confortável e segura, mas não podem
exame rigoroso de todos os fenômenos da habitar de forma constante sua mente, mesmo
natureza, concluem que o Todo, considerado quando ele não está perturbado pelas agitações
como um sistema único, está, a cada período de da dor ou da paixão; e menos ainda preservar-se
sua existência, ordenado com perfeita quando atacadas por esses poderosos
benevolência, e que a máxima felicidade possível antagonistas. As afecções apreendem seus
resultará, ao final, para todas as criaturas, sem a objetos de uma maneira mais circunscrita e mais
menor mistura de mal ou miséria no sentido natural, e, por estarem organizadas de uma forma
positivo ou absoluto. Todo mal físico, dizem, é mais adequada à fraqueza das mentes humanas,
parte essencial desse sistema benevolente, e não consideram apenas os seres ao nosso redor, e
poderia ser removido nem mesmo pela própria são influenciadas pelos acontecimentos conforme
Divindade, considerada como um agente sábio, estes pareçam bons ou maus para o sistema
sem introduzir um mal maior, ou excluir um bem privado.
maior, que dele resultaria. Dessa teoria, alguns 35 O mesmo que vale para o mal moral, vale
filósofos, entre eles os antigos estoicos, também para o mal físico. Não se pode
derivaram um motivo de consolação em meio a razoavelmente supor que aquelas remotas
todas as aflições, ao ensinarem a seus discípulos considerações que se revelaram tão pouco
que os males dos quais padeciam eram, na eficazes em um caso venham a ter uma influência

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A segunda objeção é de natureza teológica: o forma de responder à dificuldade de pensar a presença do mal
determinismo implica a responsabilização de Deus por no mundo sem imputá-lo a Deus. Como podemos fazer o mal
nossas ações. Nesse caso, ou nenhuma de nossas ações pode se fomos criados, de acordo com a doutrina cristã, por um
ser dita criminosa, ou, Deus, que seria em última instância Deus sumamente bom, do qual só o bem pode se seguir?
responsável por elas, não pode ser pensado como sumamente Segundo Agostinho, Deus nos deu uma vontade livre, que é
bom e perfeito. Com efeito, Santo Agostinho chega à noção em si mesma boa, e somos nós, e apenas nós, os responsáveis
de livre-arbítrio ou de uma vontade indeterminada como uma pelo mau uso que fazemos dela
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mais poderosa no outro. A mente humana foi pessoal? Ambas essas distinções estão fundadas
moldada pela natureza de tal forma que, tão logo nos sentimentos naturais da mente humana, e
certos caracteres, disposições e ações façam seu esses sentimentos não podem ser controlados ou
aparecimento, ela experimenta de imediato o alterados por nenhuma espécie de teoria ou
sentimento de aprovação ou de condenação, e especulação filosóficas. 36 A segunda objeção
não há emoções que sejam mais essenciais que não admite uma resposta tão fácil e satisfatória, e
estas para sua estrutura e constituição. Os nem é possível explicar precisamente como a
caracteres que granjeiam nossa aprovação são, Divindade pode ser a causa mediata de todas as
sobretudo, aqueles que contribuem para a paz e ações dos homens sem ser autora do pecado e
segurança da sociedade humana, ao passo que da maldade moral. Esses são mistérios que a
os que provocam a condenação são simples razão natural desassistida não está
principalmente aqueles que trazem prejuízo e minimamente preparada para examinar, e,
perturbação públicos. Disso se pode qualquer que seja o sistema que adote, encontrar-
razoavelmente presumir que os sentimentos se-á envolvida em insolúveis dificuldades, e
morais surgem direta ou indiretamente de uma mesmo em contradições, a cada passo que der
reflexão sobre esses interesses opostos. Que em tais assuntos. Reconciliar a indeterminação e
acontece, então, se as meditações filosóficas contingência das ações humanas com a
estabelecerem uma diferente opinião ou conjetura: presciência ou defender decretos absolutos ao
a de que tudo está correto com referência ao Todo, mesmo tempo em que se absolve a Divindade da
e que as qualidades que perturbam a sociedade autoria do pecado tem-se mostrado até agora um
são, em geral, tão benéficas e adequadas às problema que ultrapassa todo o poder da filosofia.
intenções originais da natureza quanto aquelas Feliz desta se, a partir disso, tornar-se consciente
que promovem de modo mais direto sua de quão temerário é espreitar mistérios tão
felicidade e bem-estar? Seriam essas sublimes, e, abandonando um cenário tão cheio
especulações incertas e remotas capazes de de obscuridades e complicações, retornar com a
contrabalançar os sentimentos que brotam da devida modéstia a sua província própria e
consideração imediata e natural dos objetos? Um genuína, o exame da vida ordinária, em que
homem de quem se roubou uma soma encontrará dificuldades suficientes com que se
considerável encontraria, porventura, algum ocupar em suas investigações, sem mergulhar na
atenuante para seu desgosto pela perda nessas imensidão de um oceano de dúvidas, incertezas
sublimes reflexões? Por que supor, então, que e contradições!13
seu ressentimento moral contra o crime seja
incompatível com elas? Ou por que o
reconhecimento de uma distinção real entre vício
e virtude não seria conciliável com todos os
sistemas especulativos de filosofia, assim como o
de uma distinção real entre a beleza e a fealdade

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Hume recorre mais uma vez ao nosso modo ordinário de da teologia: nosso modo comum de pensar implica a doutrina
julgar para responder às dificuldades que brotam do campo da necessidade e essa é uma razão suficiente para abraçá-la.
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