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Cartografia da ação

e movimentos da sociedade

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Cartografia da ação e movimentos da sociedade: desafios das experiências urbanas
Catia Antonia Da Silva; Ana Clara Torres Ribeiro; Andrelino Campos (orgs.) Cartografia da ação
© Lamparina editora
e movimentos da sociedade:
Revisão  Luísa Ulhoa
desafios das experiências urbanas
Projeto gráfico  Fernando Rodrigues
Catia Antonia Da Silva
Ana Clara Torres Ribeiro
Andrelino Campos (orgs.)

O texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,


assinado em 1990, que começou a vigorar em 1º de janeiro de 2009.

Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou pro­­­cesso, seja


reprográfico, fotográfico, gráfico, microfil­ma­gem etc. Estas proi­bições aplicam-se
também às caracte­rís­ticas gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos au­torais
é punível co­mo crime (Código Penal, art. 184 e §§; lei 6.895 / 1980), com busca,
apreensão e in­­­de­nizações diversas (lei 9.610 / 1998 – Lei dos Di­reitos Autorais –
arts. 122, 123, 124 e 126).

Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros

C316
Cartografia da ação e movimentos da sociedade: desafios das experiências
urbanas / Catia Antonia da Silva (org.), Ana Clara Torres Ribeiro (org.), Andrelino
Campos (org.); Alberto Toledo Resende… [et al.]. – Rio de Janeiro: Lamparina:
Faperj: Capes, 2011. 2.000 exemplares.
200 p.; il.; 12,6 × 20,7cm
Trabalhos apresentados no III Seminário Nacional Metrópole: Governo, So-
ciedade e Território, e, no II Colóquio Internacional Metrópoles em Perspectivas.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-98271-89-7
1, Sociologia urbana. 2, Regiões metropolitanas – aspectos sociais. 3, Regiões
metropolitanas – aspectos econômicos. 4, Renovação urbana. 5, Planejamento
urbano. I; Silva, Catia Antonia da. II; Ribeiro, Ana Clara Torrres. III; Campos,
Adrelino, 1949–.
11-4442.  CDD: 307.76
  CDU: 316.334.56

Lamparina editora
Rua Joaquim Silva  98  2º andar  sala 201  Lapa
cep 20241-110  Rio de Janeiro  rj  Brasil
Tel./fax: (21) 2252 0247 (21) 2232 1768
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Autores

Ana Clara Torres Ribeiro (org.) é graduada em Ciências Políticas


e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), possui mestrado em Sociologia pela Sociedade Brasi-
leira de Instrução (SBI/IUPERJ) e doutorado em Ciências Huma-
nas pela Universidade de São Paulo (USP). É também profes-
sora adjunta da UFRJ, pesquisadora 1A do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); membro da
Red Iberoamericana de Investigadores sobre Globalización y Ter-
ritorio e coordenadora do GT Desenvolvimento Urbano do Conse-
lho Latino-Americano de Ciências Sociais.

Andrelino Campos (org.) possui graduação em geografia pela Uni-


versidade Federal Fluminense (UFF), mestrado em geografia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado em
geografia pela mesma instituição. É também professor adjunto do
Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Pro-
fessores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (dgeo/FFP/
Uerj), coordenador do Núcleo de Estudos Sociedade, Espaço e
Raça (NoSER) e autor do livro Do quilombo à favela: a produção do
“espaço” criminalizado no Rio de Janeiro (Bertrand Brasil, 2010).
E-mail: <andrelinocampos@hotmail.com>.

Catia Antonia da Silva (org.) é professora adjunta, pesquisa-


dora e coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Territó-
rio e Mudanças Contemporâneas (DGEO/FFP/Uerj). É graduada
em geografia (UFRJ), com mestrado em Planejamento Urbano e
Regional e doutorado em geografia, todos pela mesma institui-
ção. É lider do Grupo de Pesquisa e Extensão: Urbano, Território
e Mudanças Contemporâneas, onde desenvolve o Laboratório de
Estudos metropolitanos. É pesquisadora do PROCIENCIA/UERJ.

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Alberto Toledo Resende é graduado em geografia (Uerj), possui Jorge Luiz Barbosa é graduado em geografia pela UFRJ, possui
especialização em Planejamento e Uso do Solo Urbano (UFRJ) e mestrado em geografia na mesma universidade, doutorado em
é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social geografia pela USP e pós-doutorado em geografia humana pela
(FFP/Uerj). Atualmente é professor docente 1 da Secretaria de Universidade de Barcelona, Espanha. É professor Departamento
Estado de Educação do Rio de Janeiro, coordenador de campo do de Geografia da UFF e coordenador do Observatório de Favelas
Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro e profes- do Rio de Janeiro. E-mail: <jorgebarbosa@vm.uff.br>.
sor substituto (FFP/Uerj).
Marcia Soares de Alvarenga é professora da graduação e do mes-
Anita Loureiro de Oliveira fez graduação em geografia, mestrado em trado em educação da FFP/Uerj e pesquisadora do Grupo de Pes-
geografia, ambos pela UFF, e doutorado em Planejamento Urbano quisa Vozes da Educação (DEDU/FFP/Uerj). Graduou-se em
e Regional (IPPUR/UFRJ). Trabalha desde 2010 no Departamento direito pela UFF, licenciatura em pedagogia pela Uerj, doutorado
de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da Univer- em educação pela UFRJ e pós doutorado em educação pela Univer-
sidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É Tutora do PET- sidade Federal de Minas Gerais (uFMG) e em educação pela Uni-
Geografia-IM/UFRRJ. E-mail: <anitaloureiro@yahoo.com.br>. versidade de Évora. E-mail: <msalvarenga@uol.com.br>.

Fábio Tozi é doutorando do Programa de Pós-Graduação em geo- Maria Tereza Goudard Tavares possui graduação em pedagogia,
grafia da USP, é doutorando em geografia humana (FFLCH/USP) pós-graduação lato sensu em Metodologia do Ensino Superior,
com estágio (PDEE/CAPES) na École des Hautes Études en Scien- mestrado em educação pela UFF e doutorado em Educação
ces Sociales (EHESS) de Paris. Possui graduação e mestrado em pela UFRJ. É professora e diretora (2008–2011) do Programa
geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). de Pós-Graduação em educação da FFP/Uerj. Pesquisadora do
prociencia/UERJ nos períodos 1999–2002, 2005–2008 e 2008–
Felippe Andrade Rainha é graduado em geografia (FFP/Uerj) 2010, e líder do Grupo de Pesquisa Vozes da Educação. E-mail:
e pesquisador Técnico da Fundação de Amparo à Pesquisa do <mtgtavares@yahoo.com.br>.
Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Renato Emerson dos Santos é graduado em geografia, com mes-
Ivy Schipper possui licenciatura em geografia e mestrado em Pla- trado em Planejamento Urbano e Regional, ambos pela UFRJ, e
nejamento Urbano e Regional, ambos pela UFRJ. Atualmente é da doutorado em geografia pela UFF. Atualmente é professor adjunto
UFRJ e participa do Laboratório da Conjuntura Social (LASTRO). da Uerj, e ocupa a posição de chefe do DGEO/FFP, no campus de
São Gonçalo (RJ).
Joana Bahia é graduada em ciências sociais com mestrado em
sociologia e antropologia social, ambos pela UFRJ. É também pro-
fessora adjunta da FFP/Uerj e pesquisadora associada ao Núcleo
Interdisciplinar de Estudos Migratórios Niem/Ippur/UFRJ, dou-
tora em antropologia social PPGAS / Museu Nacional e investiga-
dora visitante da Universidade de Lisboa.

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Apresentação  11

Cartografia da ação e desafios contemporâneos

A metrópole significante: usos rebeldes do território e


a efervescência de novas racionalidades  19
Fábio Tozi
Alberto Toledo Resende

Cartografia da ação e a juventude na cidade:


trajetórias de método  28
Ana Clara Torres Ribeiro
Catia Antonia da Silva
Ivy Schipper

Cartografias e lutas sociais:


notas sobre uma relação que se fortalece  41
Renato Emerson dos Santos

O retorno ao território como condição da democratização


da gestão da metrópole  59
Jorge Luiz Barbosa

Cidade e compartilhamentos da vida coletiva

Os pequenos e a cidade:
o município de São Gonçalo como um livro de espaços  81
Maria Tereza Goundard Tavares

Brasileiros no mundo: novas construções identitárias do


“salsa american way”  96
Profª Drª Joana Bahia

Projeto Baía Limpa: um exercício de mapeamento


dos resíduos sólidos pelo olhar dos pescadores  118
Catia Antonia da Silva
Felippe Andrade Rainha
Alberto Toledo Resende

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Metrópole e o movimento da sociedade  Apresentação
A particularidade do Movimento Negro
enquanto sujeito da história brasileira  131 Este livro tem a intenção de publicar artigos criados e inspira-
Andrelino Campos dos em debates, reflexões e estudos apresentados durante os
eventos III Seminário Nacional Metrópole: Governo, Sociedade
Leituras sobre movimentos sociais e ações organizadas e Território e II Colóquio Internacional Metrópoles em Perspec-
em contextos urbanos: notas de diálogos sobre método  159 tivas, ambos ocorridos de 1 a 3 de dezembro de 2010, na Facul-
Marcia Soares de Alvarenga dade de Formação de Professores da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj), e que tiveram como tema central “Territó-
Arte, educação e cidadania: rio usado e cartografia da ação: por outra gestão urbano-metro-
diálogo de saberes na metrópole  169 politana”. O evento foi promovido pelo núcleo de Extensão e Pes-
Anita Loureiro de Oliveira quisa: Urbano, Território e Mudanças contemporâneas Programa
de Pós-Graduação em História Social (área de concentração: his-
tória social do território) e Departamento de Geografia da Facul-
dade de Formação de Professores da Uerj, pelo Laboratório da
Conjuntura Social: tecnologia e território do Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Coordenação de Geografia Departa-
mento de Educação e Sociedade Instituto Multidisciplinar da Uni-
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
O tema central dos eventos foi o debate de orientações con-
ceituais e diretrizes teórico-metodológicas que hoje reconstroem
a análise da dinâmica metropolitana. Trata-se fundamentalmente
dos desafios relacionados ao reconhecimento das complexas rela-
ções entre sociedade, Estado e território, em seus vínculos com a
urbanidade. A questão metropolitana confunde-se com a questão
nacional. Junto com a consolidação democrática, conformam-se
outros determinantes da última fase do capitalismo, portadora
de profundas contradições: entre desenvolvimento econômico e
desenvolvimento social; entre avanço técnico-industrial e preca-
riedade da vida coletiva; entre multiplicação dos mecanismos de
controle social, reinvenção de insurgências e afirmação de novos
movimentos sociais.
O tema deste livro está voltado para a problemática de novas
metodologias referentes à possibilidade de novos olhares e novas
formas de representação da sociedade e do território em contex-

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tos urbanos e metropolitanos que possibilitem novas formas de sobre a problemática do direito da juventude à cidade com base
experiências e novos formatos para pensar o desenvolvimento nas trajetórias de jovens moradores da periferia da metrópole do
social. Deseja-se contribuir para o campo da gestão urbana com Rio de Janeiro. A análise da apropriação do espaço urbano por
base em múltiplas metodologias e experiências sociais urbanas. jovens que residem, estudam e/ou trabalham no município de
Ao tratarmos de trajetórias de pesquisadores populares, de crian- São Gonçalo, situado a leste da baía de Guanabara, teve como
ças, de pescadores, do movimento negro, de lutas identitárias pressuposto o diálogo entre sociologia, geografia e educação.
e de musicalidades, podemos compreender a complexidade da Recorre-se a diferentes métodos e técnicas de pesquisa, entre os
metrópole e ver nela novos devires. quais as metodologias da cartografia da ação e a técnica dos gru-
Este livro orienta-se pela compreensão do sentido das ações pos focais.
sociais na produção do espaço urbano com base nas seguintes O artigo de Renato Emerson dos Santos analisa quando os
categorias centrais: movimentos sociais, ações espontâneas e novos atores utilizam a cena cartográfica. Para ele, o campo da
identitárias, cartografia da ação e território. Pretendemos, com cartografia tem sido tensionado por diversos sentidos. Toma
articulação de ideias oriundas de pesquisadores das áreas de alguns exemplos em curso no Brasil e em outras partes do
geografia, sociologia e educação, ter nesse produto material do mundo. Identifica o uso crescente de objetos cartográficos como
evento, elementos contribuidores para o desafio contemporâneo instrumento de luta por movimentos e articulações de movimen-
que consiste na compreensão da metrópole e da vida urbana em tos sociais. Os objetos cartográficos vêm sendo utilizados como
uma conjuntura atravessada pela perturbação no entendimento leituras sociais do território que são confrontadas às leituras ofi-
do mundo. Este livro divide-se em três seções. A primeira busca ciais e/ou de atores hegemônicos, mas também como instrumen-
reconhecer a cartografia da ação como desafio contemporâneo e tos de fortalecimento de identidade social e de articulações polí-
tem a finalidade de colaborar com novas referências metodoló- ticas – ou seja, na sua plenitude de instrumento de representação
gicas que ajudem a novas formas de alargamento do pensar e do que exprime a realidade (segundo pontos de vista, posições defi-
fazer da luta social. nidas) e também ajuda a construir a própria realidade.
Fábio Tozi e Alberto Toledo Resende demonstram suas lei- Jorge Luiz Barbosa apresenta em seu artigo o resultado do
turas com base na coordenação conjunta do grupo de traba- projeto Rio Democracia, uma programação para o desenvolvi-
lho “Cartografias rebeldes e (re)invenção do território”, ocor- mento sustentável da metrópole, desenvolvido pelo Observató-
rido durante os eventos do III Seminário Nacional Metrópole: rio de Favelas do Rio de Janeiro no período de outubro de 2007
Governo, Sociedade e Território. É no diálogo entre as diver- a agosto de 2009. O projeto visava à construção de inventários
sas pesquisas e áreas, filiadas a diferentes leituras da cidade, da críticos de políticas públicas em favelas e periferias urbanas da
metrópole e do urbano que identificaram caminhos possíveis que metrópole do Rio de Janeiro, tendo como referência os 20 anos
nos ajudam a compreender a complexidade do presente, comba- de promulgação da atual Constituição Brasileira e, com base em
tendo as visões simplistas acerca do território e da sociedade. suas conclusões, contribuir para a elaboração de uma agenda
O artigo de Ana Clara Torres Ribeiro, Catia Antonia da Silva propositiva de superação de desigualdades sociais, enfatizando
e Ivy Schipper, fruto de pesquisa do Laboratório de Conjuntura as possibilidades de democratização da gestão urbana. Foram
Social: Tecnologia e Território, do Ippur/UFRJ, e do Laboratório realizados mapeamentos cognitivos do inventário de gestão de
de Estudos Metropolitanos, do Núcleo de Pesquisa Urbano, Terri- políticas públicas. O inventário realizado contemplou mapea-
tório e Mudanças Contemporâneas do PPGHS e do Departamento mentos cognitivos de práticas sociais – concepções, percepções,
de Geografia / FFP / Uerj, busca identificar novas possibilidades vivências e experiências – construídas e afirmadas no contexto

12  Apresentação Apresentação  13

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da gestão de políticas públicas, em particular aquelas voltadas baía de Guanabara). Eles focam como base para o desenvolvi-
às comunidades populares localizadas nos municípios que com- mento da análise do projeto, os “Princípios de cidadania e qua-
põem o arco metropolitano do Rio de Janeiro. lidade ambiental (qualidade de vida e trabalho) como direitos
Na segunda seção, intitulada “Cidade e compartilhamentos universais, direitos humanos essenciais”. Os autores invertem a
da vida coletiva”, encontra-se o artigo de Maria Tereza Goudard lógica, fazendo dos pescadores artesanais protagonistas da ação,
Tavares que realiza, com base nessa breve contextualização, uma abrindo condições de tratá-lo no contexto de uma cartografia
análise sobre a natureza educativa da cidade, que segundo ela participativa, em que a ação dos pescadores é que conduz o rumo
implica admitir no âmbito político e epistemológico a intenciona- da “prosa”, e não o saber oriundo da academia. Ao longo das
lidade formadora que a metrópole pode assumir na contempora- páginas que tratam do projeto, os pesquisadores mostrarão que,
neidade, sobretudo por ser o meio tecnico-cientifico-informacional apesar das dificuldades, a baía de Guanabara pode se tornar um
por excelência, locus da densidade comunicacional, reforçando a lugar de esperança, tanto para os trabalhadores da pesca artesa-
texturologia da cidade enquanto conteúdo alfabetizador. Diz que nal quanto para quem admira os contornos cantados em versos e
a cidade é educadora e ressalta seu caráter de agente educativo, prosas ao longo de muitos anos de história.
uma ideia-força que intenciona ser compartilhada e assumida A terceira e última seção trata do entendimento da “Metró-
pelos diferentes atores sociais, apesar das contradições nodais pole no movimento da sociedade”. O artigo de Andrelino Cam-
que tornam a cidade cenário dos conflitos e confrontos sociais. pos analisa o movimento negro como sujeito histórico no con-
A professora Joana Bahia analisará, por meio do artigo “Bra- texto brasileiro. No decorrer da história brasileira, o ativismo de
sileiros no mundo: novas construções identitárias do ‘salsa ameri- negros, que vem se destacando pela longevidade das suas ativi-
can way’”, a formação identitária de brasileiros que migram para dades, deixa de ser apenas um conjunto de pessoas para se tornar
o exterior por diferentes motivos, sendo o principal a busca de projeto de mudança da sociedade. Em função desses elementos,
oportunidade. A professora parte de um paradoxo: um país que formam-se as perguntas: como são formados os sujeitos? Qual é
até a década de 1980 era receptor de mão de obra, em 30 anos a importância da dimensão da particularidade em sua formação?
torna-se exportador desse material humano. Para tal emprei- Essas são questões centrais que nos ajudam a refletir sobre os sen-
tada, a pesquisadora parte de algumas variáveis que evidencia- tidos das ações em contexto político-urbano.
rão alguns aspectos: questões de classe entre a população imi- Marcia Soares de Alvarenga terá sua análise voltada para
grante, de temporalidade da imigração, de gênero e sexualidade, as questões que envolvem cidadania e desenvolvimento econô-
de ascendência europeia (diferenciada por graus diferentes de mico acelerado, sendo este responsável pelo alargamento das
ascendência), de cor/raça, de ocupação no mercado de traba- desigualdades sociais. A preocupação da autora nos leva a refle-
lho, de origem regional, de religião, entre outras possíveis. Uma tir sobre alguns aspectos da vida urbana e o distanciamento da
colcha de retalhos identitários. A proposta da professora eluci- justiça social, visto que as bases tanto do desenvolvimento eco-
dará problemas de quem precisa e/ou escolhe ser estrangeiro em nômico quanto da construção da cidadania são criadas de forma
outras terras, demonstrando também que os “sonhos” podem se “arcaica”, uma vez que um conduz com suas práticas a tentativa
distanciar da realidade. de anulação e exclusão do outro. É possível sintetizar a análise da
O artigo seguinte expressa a preocupação de Catia Anto- autora com a seguinte preocupação: “Podemos dizer que a ausên-
nia da Silva, Felippe Andrade Rainha e Alberto Toledo Resende cia deste estatuto impetrou relações contraditórias entre cida-
em conjugar esforços entre pesquisadores e pescadores arte- dania e vida urbana. Populações inteiras foram deslocadas pelo
sanais (elo frágil na cadeia produtiva da pesca, localizado na poder político ou mobilizaram resistências diante destes desloca-

14  Apresentação Apresentação  15

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mentos ao ocuparem espaços sem cidadania”. A autora permitirá Cartografia da ação
que cheguemos a conclusões diferentes daquelas às quais esta-
mos habituados.
e desafios contemporâneos
A jovem professora Anita Loureiro de Oliveira tem sua traje-
tória acadêmica ligada a questões urbanas. Um dos pressupostos
que movem a pesquisadora é pensar que a “cidadania é uma fer-
ramenta a ser aprendida, buscando como meio a educação liber-
tária”. Para tanto, não conta apenas com a formalidade da escola,
mas com a experiência acumulada das pessoas, visto que a “rua”
emana saberes dos quais a teoria, no seu isolamento epistêmico,
não daria conta, necessitando então das “práticas” da rua. “Fazer
arte”, expressão popular que os adultos dizem para os mais
jovens, guarda na dimensão da rua a possibilidade de educação,
pois, assim como a arte das crianças, sempre acontece o inespe-
rado. A autora nos convidará a uma reflexão bem sustentada teo-
ricamente construída sobre o quarteto: vida urbana, cidadania,
arte e educação, onde as ruas, por meio de seus atores, passam
a ser o cenário perfeito para outras vivências. Para exemplificar,
destacamos de seu texto a seguinte passagem: “Buscamos refletir
neste artigo o caráter múltiplo resultante de experiências que evi-
denciam o modo pelo qual os territórios urbano-metropolitanos
constituem a base de um processo educativo que vai muito além
dos espaços institucionais de aprendizagem e pode trazer contri-
buições significativas para a renovação da vida urbana”.
Este livro conta com o estimável apoio de Capes, que tam-
bém patrocinou os eventos junto com a Faperj e a SR3 – Sub-Rei-
toria de Extensão e Cultura. Agradecemos ainda a Direção da
FFP/Uerj, Cepuerj e Comuns/Uerj pelo apoio recebido, pro-
porcionando a infraestrutura para os eventos, ricos em debates,
ideias e proposições.

16  Apresentação

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A metrópole significante:
usos rebeldes do território e a
efervescência de novas racionalidades
Fábio Tozi
Alberto Toledo Resende

Em certas tardes nós subíamos


ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.
(Melo Neto, 1994)

Uma introdução:
a cidade, a metrópole e as disciplinas científicas

Qual a sobrevivência possível, não burocrática e repetitiva, de


ciências cujos fundamentos estruturadores referem-se a datas e
lugares de pouca equivalência com o Brasil contemporâneo? Tal
questão, longe de querer resumir em uma única frase os deba-
tes a seguir expostos, aponta, ao contrário, para um tema central
que envolve o rigor de todo trabalho científico nas ciências huma-
nas. O período tumultuado que nos acompanha, misto de glo-
balizações e fragmentações, parece sinalizar a efervescência de
novas formas de vida cujo entendimento analítico é débil se os
conceitos e categorias adotados não forem formulados a partir do
momento presente da formação socioespacial brasileira.
Vale retomar a fala da professora Ana Clara Torres Ribeiro
na conferência de abertura do III Seminário Nacional Metró-
pole: Governo, Sociedade e Território e II Colóquio Internacional
Metrópoles em Perspectivas, cobrando uma necessária interdisci-
plinaridade científica, especialmente entre geografia e sociologia.
Essa interdisciplinaridade deve ser traduzida na superação do
pensamento instrumental e operacional herdado das ideias filo-

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sóficas do século XIX, matrizes das disciplinas que hoje trabalha- a cidade grande é um grande espaço banal, o mais significa-
mos. Souza afirma que tivo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas
as técnicas e formas de organização podem aí se instalar,
o iluminismo tem muito a ver com o desenvolvimento das conviver, prosperar. Nos tempos de hoje, a cidade grande é o
ciências humanas e, muito especialmente com a geografia, à espaço onde os fracos podem subsistir (1996, p. 258).
medida que ela se funda como ciência humana. Fundando-
se no racionalismo absoluto, fundamentado no desenvolvi- Acreditamos, cada uma à sua maneira, que as pesquisas apresen-
mento científico e tecnológico, ele vai alimentar a esperança, tadas revelam manifestações concretas desse espaço banal, as
para a humanidade, de um mundo melhor a partir da melho- complexas estruturas presentes nas tramas cotidianas às quais o
ria das condições materiais da existência (2003, p. 2). olhar desatento nem sempre permite vislumbrar.

Tal esperança, no entanto, não se realizou, o que traz um desa- A riqueza na diversidade: um sobrevoo por 2 dias de reflexão
fio evidente às ciências como um todo e às ciências humanas em
especial. Não obstante viver um período científico, tecnológico e Em 2 dias de apresentações e debates, o grupo de trabalho “Car-
informacional, a humanidade sofre com desigualdades extremas, tografias rebeldes e a (re)invenção do território” revelou, com
pobreza crescente e uma desvalorização da comunicação em base em diversas leituras, os caminhos entrecruzados da geo-
benefício da repetição. grafia e da sociologia, sem, no entanto, resumir-se a elas. Distin-
É no diálogo entre as diversas pesquisas e áreas, filiadas tos recortes temáticos e posicionamentos teórico-metodológicos
a diferentes leituras da cidade, da metrópole e do urbano, que possibilitaram um debate científico de alta qualidade, do qual as
reside um dos caminhos possíveis que nos ajudam a compreender ideias e os relatos aqui contidos são uma amostra.
a complexidade do presente, combatendo as leituras simplistas O trabalho apresentado por Anita Rink analisa o grafite na
acerca do território e da sociedade. Lefebvre (1969), numa aula de cidade do Rio de Janeiro, buscando entendê-lo para além do
método, ensina que a cidade filosoficamente pensada é uma totali- seu possível enquadramento ou não como arte, para examinar a
dade não apenas abstrata, mas também concreta, cuja compreen- cidade como uso e como meio de expressão cultural. Assim, arte
são exige que todos os instrumentos metodológicos devam ser uti- e uso tornam-se, nesse caso, sinônimos, pois o ato de criar é indis-
lizados conjuntamente; discernidos, mas não dissociados: forma, sociável a ambos: criar é dar forma a algo novo, respondendo,
função, estrutura, instituições, linguagens, significados. Esse espí- subjetivamente, por instituir novas conexões que se estabelecem
rito esteve presente durante todo o seminário, e, particularmente, para a mente humana, novas relações e nova compreensão, como
no Grupo de Trabalho (GT) “Cartografias rebeldes e a (re)inven- sugere Ostrower (1987, p. 9), bem como, objetivamente, ofere-
ção do território”. A cidade, a metrópole e o urbano, mais do que cendo novas coerências aos objetos e às normas.
temas ou objetos de estudo de tal ou qual ciência, são condições da Essa compreensão promovida pelo “ato criador”, que rela-
vida social, sendo, por isso, um objeto interdisciplinar de estudo. ciona, ordena, configura e significa (ib.), é uma dimensão não
As situações abordadas no grupo de trabalho trataram de apenas individual, mas geográfica, posto que se dá com o indi-
cidades e municípios em áreas metropolitanas, ou seja, em gran- víduo em sua condição espacial da existência: o lugar. Demais,
des aglomerações populacionais, informacionais, materiais. San- as consequências do ato criativo não se resumem ao indivíduo
tos já alertava que como agente social isolado, influenciando o sistema de relações

20  A metrópole significante A metrópole significante  21

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dos lugares. Ou seja, o lugar exerce um dado ativo na criação e na Esse papel ativo das materialidades citadinas nas atividades
criatividade. artísticas também foi marcante nos trabalhos de Henrique Jacin-
Inspirados em Benjamin e sua discussão sobre a autenti- tho, tomando a realização do XII Salão do Livro para Crianças e
cidade (aura) da obra de arte, que é o seu hic et nunc (aqui e Jovens como objeto empírico, e de Vinícius Lima, com sua aná-
agora), não poderíamos argumentar ser o grafite uma manifes- lise dos movimentos sociais de Nova Iguaçu e os pontos/teias da
tação representante do lugar e do tempo convergidos? Ou, nas cultura. Em ambos os trabalhos revelam-se, através da cidade, as
palavras do próprio autor, “a unidade de sua presença no próprio imbricações entre geografia, sociedade, cultura e arte, comba-
local onde se encontra. É a esta presença, única, no entanto, e só tendo as visões simplistas e setoriais sobre o espaço e a sociedade.
a ela que se acha vinculada toda a sua história” (1975, p. 13). Os usos marginalizados do território aparecem na exposi-
Cidade e arte também foi o tema do trabalho apresentado ção de Fábio Tozi que discute os conteúdos geográficos da pirata-
por Francisco Ottoni, que reflete sobre o Viradão Carioca rea- ria. O período e o meio técnico científico informacional, propos-
lizado pela prefeitura do município do Rio de Janeiro, concen- tos por Milton Santos (1996), são pontos de partida para desmis-
trando centenas de atividades culturais em 3 dias do ano. Aqui, é tificar o senso comum que trata a pirataria como crime ou como
o par dialético “continuidade e ruptura” que se faz evidente, pois uma questão meramente econômica. A expansão do meio geográ-
há um papel ativo do poder público na normatização do que seja fico modernizado traz consigo a possibilidade da realização de
a arte, acompanhado da deslegitimização dos processos criativos novos usos do território, abarcando novas racionalidades na lida
que não coincidam com a política pública.1 É latente a contradi- com os objetos e as informações.
ção que há entre a difusão da arte, por um lado, e o controle das Portanto, a pirataria é entendida como um uso da técnica
manifestações artísticas, por outro, o que permite a transforma- e das informações que caracterizam o período histórico atual,
ção do Viradão em um artefato do marketing territorial. tendo na metrópole o lugar privilegiado dessa situação, que, con-
A arte, mais uma vez, não existe imune à cidade, à totali- tudo, se interioriza pelo país junto à urbanização da sociedade e
dade social:2 os equipamentos públicos, sua distribuição e cen- do território, compondo o aspecto nacional de um fenômeno de
tralidade, os sistemas de transporte, as praças e os sítios capazes dimensões globais.
de abrigar determinadas manifestações artísticas (como salas de A cartografia da ação e as cartografias participativas foram
cinema ou de teatro, por exemplo) se impõem à definição da pro- o tema central de alguns dos trabalhos, como os apresentados
gramação. Embora tenha havido uma distribuição territorial das por Ivy Schipper, Lya Boynard, Fabiane Bertoni, Rafaela Torres e
atividades do Viradão, as materialidades da cidade, os desloca- Diego Borges, que contribuíram com um debate riquíssimo acerca
mentos que ela permite ou inibe, são constrangimentos irremoví- do que é a geografia e quais são os seus instrumentos técnicos,
veis do dia para a noite. ou, dizendo de outra maneira, como representar os fenômenos
espaciais tendo como orientação uma teoria crítica do espaço.
1  Veja-se o relato do caso (ocorrido em julho de 2010) do artista que repre-
A cartografia da ação é um exercício teórico-metodológico
sentava uma estátua viva no largo da Carioca: foi impedido de trabalhar sob
a alegação de que sua arte contraria os usos estipulados à calçada pela mu- de observação dos conflitos sociais no território (leitura de jor-
nicipalidade. Esse acontecimento contrasta com o incentivo ao uso artístico nais, leitura sociológica e criação de bancos de dados), enquanto
dos espaços públicos, incluindo as calçadas, nos 3 dias do Viradão Carioca. a cartografia participativa trata das maneiras comunitárias de
2  Para Kosik (2002, p. 121), a arte é uma realidade humana, tal qual a
produção de mapas com base em valores e definições imanentes
economia, porém com tarefa e significados diferentes. No entanto, não é a
economia que gera a arte, nem direta nem indiretamente: é o homem que aos próprios lugares, que podem, assim, representar-se. Ambas,
cria a economia e a arte como produtos da práxis humana. no entanto, trazem um debate fundamental, especialmente nesse

22  A metrópole significante A metrópole significante  23

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presente histórico no qual a exacerbada instrumentalização da da população nacional é urbana.3 O processo de urbanização da
vida produz cartografias e cartogramas tecnicamente mais efi- sociedade e do território é um desafio analítico para as ciências
cientes, todavia, esvaziados de sentidos e de conflitos. Coincidem sociais, mas também para os governos e para a própria sociedade.
e contribuem também para a percepção do território usado em Sempre incompleto, esse processo cria incessantemente novas
processo, representando-o em mapas que trabalham com o movi- desigualdades, uma vez que há uma perpetuação da reprodução
mento da sociedade. da pobreza.
Evidenciaram-se as contribuições geográficas e sociológicas A cidade, especialmente a metrópole, é o lugar da constru-
à proposição de outras cartografias nas quais a vida real e suas ção das alternativas, pois, “cheia de atividades suspeitas, ela fer-
manifestações são fontes inspiradoras, rompendo com o deter- menta delinquências, é um centro de agitação” (Lefebvre, 1969,
minismo estatal e/ou corporativo na eleição das representações, p. 76), traz sempre o novo. O território e a cidade estão disponí-
dando atenção não somente ao que é perene, mas também ao veis para os diversos usos, obedientes a distintas racionalidades,
passageiro e ao transitório, igualmente significantes. embora nem todos os agentes sociais disponham da mesma capa-
Nesse movimento intelectual, os trabalhos apresentados por cidade de mobilizar, para a realização dos seus desígnios, os con-
Alberto Toledo, Igor Queiroz e Felippe Rainha buscam dar visibi- teúdos e as materialidades neles presentes.
lidade à pesca e aos pescadores artesanais da baía de Guanabara, A condição brasileira na era da globalização é esquizofrê-
mostrando a importância de práticas antigas que sobrevivem em nica, uma vez que somos impulsionados à modernização de alto
uma área metropolitana que sofre vigoroso processo de moderni- nível sem termos alcançado direitos e objetos sociais básicos. A
zação. Nesse local, pequenos barcos convivem, nem sempre har- cidade revela esse processo. Nas palavras de Santos,
moniosamente, com grandes navios cargueiros.
A pesquisa por eles desenvolvida revela outro aspecto per- Na cidade “luminosa”, moderna, hoje, a “naturalidade” do
verso manifestado pela incapacidade de uma gestão de uma objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de
região metropolitana: os resíduos sólidos dos diferentes municí- gestos sem surpresa. Essa historização da metafísica crava
pios se depositam na baía, gerando formas de poluição que afe- no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da moder-
tam diretamente a atividade pesqueira tradicional. Nessa situa- nidade e que se justapõem, superpõem e contrapõem ao
ção, a luta para preservar o ambiente é a própria luta para pre- resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas
servar a atividade artesanal. Por isso, a importância em conhecer, “opacas”. Estas são os espaços do aproximativo e da cria-
mapear e quantificar esses resíduos é muito mais do que um tividade, opostos às zonas luminosas, espaços da exatidão
levantamento, é a preservação de uma atividade que gera não (1996, p. 261).
somente a continuidade de uma cultura, mas a existência de uma
produção renovável extremamente importante para a cidade.
3  O conceito de “urbano” adotado pelo IBGE não é o mesmo que temos
adotado ao longo do artigo, pois, para aquele instituto, trata-se de habitar
Algumas considerações finais áreas institucionalmente definidas como urbanas, enquanto para nós o
modo de vida urbano passa a existir mesmo nas áreas onde a materialidade
do urbano (a cidade) não está presente. Um bom exemplo são as áreas de
A vida urbana, e mais que isso, a vida nas grandes cidades, é um
agricultura moderna, extremamente urbanizada, mesmo se realizando em
fato que se acentua na formação espacial brasileira: o recense- porções agrícolas do território. Essa divergência não impede o uso, tampouco
amento de 2010, realizado pelo IBGE, mostra que mais de 84% diminui a legitimidade dos dados fornecidos pelo IBGE.

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Nas insignificâncias, diz Ana Clara Torres Ribeiro, residem novas Referências
formas de experimentar a vida. Dar visibilidade a elas é uma
tarefa científica das mais nobres, a despeito do seu desconheci- Walter Benjamin. A obra de arte na época de suas técnicas de
mento pelo restante da população ou do discurso único e repe- reprodução. In: Textos escolhidos. São Paulo: Ed. Abril, 1975.
titivo da mídia, que se autodenominou como a opinião pública. Karel Kosik. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Afinal, o que se denomina racionalidade nada mais é do que o Henri Lefebvre. O direito à cidade. São Paulo: Editora Documen-
controle “racional” pelo capital, que, como nos alerta Smith tos, 1969.
(1988), se concentra na “anarquia” do privado, o que trans- João Cabral de Melo Neto. O engenheiro. In: Obra completa. Rio
forma a cidade numa irracionalidade para si mesma, uma de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
autodesregulação. Fayga Ostrower. Criatividade e processos de criação. Petrópolis:
Há que se destacar também a importância desse seminá- Vozes, 1987.
rio como uma construção da memória em relação às diversas for- Michael Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos
mas de se viver e estudar o espaço urbano, como Pollak nos lem- históricos. Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989.
bra bem: Milton Santos. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emo-
ção. São Paulo: Hucitec, 1996.
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das Niel Smith. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produ-
interpretações do passado que se quer salvaguardar, se inte- ção do espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
gra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes Maria Adelia Souza. Geografia, paisagens e a felicidade. In: ii
de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fron- Colóquio Internacional Sobre a Ideia de Felicidade. Fortaleza:
teiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: 10, 11 mar. 2003.
partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias,
nações etc. A referência ao passado serve para manter a coe-
são dos grupos e das instituições que compõem uma socie-
dade, para definir seu lugar respectivo, sua complementari-
dade, mas também as oposições irredutíveis (1989, p. 7).

Devemos valorizar os estudos apresentados nesse seminário e


mantê-los vivos na construção constante da memória dos grupos
que participaram de cada etapa da pesquisa para não cairmos no
vazio do esquecimento. As ciências e os cientistas devem dialogar
com o que existe nos lugares, com rigor e seriedade, cumprindo e
retribuindo a confiança que a sociedade em nós depositou.

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Cartografia da ação de conceitos que valorizam os nexos entre tecido social e espaço
urbano como indicam, entre outras, as seguintes noções: micro-
e a juventude na cidade: conjuntura urbana; superficialidade de relações sociais; territó-
trajetórias de método rio praticado; espaço público provisório e tentativo; arena oculta;
impulso global; circuito perverso; humanismo concreto; sujeito
Ana Clara Torres Ribeiro
corporificado; mercado socialmente necessário.
Catia Antonia da Silva
Estes conceitos têm sido utilizados para a análise crítica de
Ivy Schipper
informações veiculadas pela grande imprensa e para a identifi-
cação de atores sociais e políticos que, de fato, estão “nas ruas”.
A experiência desse trabalho em conjunto com o Leme/FFP/Uerj
Introdução tem como finalidade o aprofundamento do debate acerca de con-
ceitos da geografia e de experimentações, bem como ser a FFP um
A pesquisa “Cartografia da ação da juventude em São Gonçalo” dos pontos de partida da pesquisa em São Gonçalo.
encontra-se em andamento com apoio da Faperj (2009–2011) e Este texto tem a intenção de analisar a cartografia da ação
nesta seção intencionamos apresentar proposta analítica, meto- junto à juventude em São Gonçalo, município periférico da
dológica e os resultados preliminares. Os pressupostos analíti- metrópole do Rio de Janeiro, apresentando os princípios analíti-
cos visam justamente conhecer e estimular a reflexão do espaço cos e metodológicos e resultados preliminares do grupo focal rea-
em que vive essa juventude e, ao mesmo tempo, formar os jovens lizado com estudantes de graduação da Faculdade de Formação
envolvidos no projeto no domínio de informações e técnicas de de Professores, que se encontravam a partir do sétimo período,
expressão de sua experiência urbana. Compreender as práti- em março de 2010.
cas, as táticas, os vínculos sociais, os desencantos e os desejos
dos jovens exige uma análise contextualizada de ações sociais e Compreendendo a cartografia da ação
o mapeamento (objetivo e subjetivo) de (des)encontros com a
cidade. O mapeamento orienta-se por uma geografia da existên- Os contextos, a vida de relações que as novas cartografias devem
cia e por uma cartografia que valoriza cada gesto, iniciativa e pro- valorizar, são o próprio espaço. Deve-se valorizar a experiência
jeto dos sujeitos sociais. Nesta direção, a denominada cartografia social, traçar realmente a transformação do território em usado,
da ação possibilita o exame simultâneo de formas de apropria- praticado e vivenciado. A cidade viva e experimental não morreu,
ção do espaço urbano e de sentidos da ação, incluindo as suas ori- apesar de todas as afirmações em contrário, feitas pelo discurso
gens, objetivos, formas de manifestação e simbologia. da crise: ela é fortíssima, muito resistente. Daí a importância dos
A investigação é feita por dois grupos de pesquisa: Labora- sujeitos sociais que de fato existem, nas suas condições eventu-
tório da Conjuntura Social: Tecnologia e Território (Lastro), do ais de sujeitos da sua própria ação, e que, na verdade, são as pes-
Ippur/UFRJ, e Laboratório de Estudos Metropolitanos (Leme), soas que estão nas ruas, falando, acontecendo, dizendo, agindo,
do Grupo de Pesquisa Urbano, Território e Mudanças Contem- fazendo. É essa a cartografia da ação que nos referimos.
porâneas, da Faculdade de Formação de Professores (FFP), da Queremos saber dessa cartografia, e de outras dos territórios
Uerj / São Gonçalo. O Lastro possui uma década de experiên- usados, de maneira a resistir ao pagamento da vida de relações,
cia no desenvolvimento da metodologia da cartografia da ação o qual cada vez mais, achamos, vai ser a forma dominante, a
e tem permitido que esse exame aconteça por meio de uma rede forma hegemônica de ver e de ler as relações entre a sociedade e

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o Estado. E com isso, sim, nós podemos correr o risco, de ver cres- A trajetória da pesquisa
cer e se afirmar quase exclusivamente a leitura militar das rela-
ções sociais ou o crescimento dos ativismos. Em ambos os casos, A análise da apropriação do espaço urbano por jovens que resi-
a imposição política deseja ser dominante, caso contrário, à nego- dem, estudam e/ou trabalham no município de São Gonçalo
ciação teremos o extermínio do opositor. O que agora aconteceu, (RJ), situado a leste da baía de Guanabara da metrópole do Rio de
pode acontecer muitas outras vezes mais, e isso com o apoio pro- Janeiro, teve como pressuposto o diálogo entre sociologia, geogra-
duzido por uma sociedade em grande parte envolvida num uni- fia e educação. Recorre-se a diferentes métodos e técnicas de pes-
verso informacional que é muito difícil de analisar e criticar. quisa, entre os quais se destacam as metodologias da cartografia
É necessário, assim, alargar os diálogos não só com as dis- da ação e da pesquisa-ação e, ainda, a técnica dos grupos focais.
ciplinas, mas também com outros saberes, com a fala do outro, Em articulação com estas opções de método foram utilizados
com a leitura do outro, para que a banalização que está no espaço o geoprocessamento de estatísticas referidas às condições de vida,
banal não seja também a do controle, e sim a necessária ao diá- à estrutura urbana e ao transporte público; mapas mentais; entre-
logo. E nos parece que mais do que nunca se faz necessária a epis- vistas abertas e questionários. A investigação é dedicada à juven-
teme dialógica e a democrática, efetivamente democrática, que tude de São Gonçalo (RJ), destacando as suas condições de vida
procure realmente fazer representar todos os outros, os muitos e anseios relacionados à apropriação do espaço urbano. Em um
outros, para que todos nós, ou a maior parte possível, estejamos contexto marcado pela violência que atinge, sobretudo, os jovens
nas nossas representações do espaço e da sociedade. Assim, se entre 14 e 24 anos e pela carência de oportunidades de trabalho e
poderá contrariar a ação que se dá de cima para baixo. Para des- de formação intelectual, propõe-se a realização de uma pesquisa
cobrir como realizar isso, é necessária a leitura horizontal e a de que valoriza o protagonismo da juventude no desvendamento de
baixo para cima. intervenções urbanas. Intervenções estas que reduzem as desi-
Aderimos à proposição de Max Weber (2000) de que nem gualdades sociais, a fragmentação territorial e as diversas formas
todo tipo de ação é ação social. A ação externa é aquela orientada de espoliação (Kowarick, 1975) que se repetem no cotidiano de
exclusivamente pela expectativa de determinado comportamento municípios periféricos da região metropolitana do Rio de Janeiro.
de objetos materiais, projetos não ditos, que estimulam consumos Trata-se, portanto, de um município submetido a fortes pres-
e comportamentos. A ação social é aquela que pressupõe sentidos sões sociais, que se sobrepõem à carências urbanas acumuladas
(racional, emocional, orientada por valores), sentidos de imanên- em sua trajetória histórica recente (Cordeiro, 2009). No muni-
cia, mas também sentido de transcendência, portando sentidos cípio de São Gonçalo, que apresenta o quarto produto interno
de consciência. A cartografia da ação social refere-se, sobretudo, bruto e abriga o terceiro colégio eleitoral do estado, a juventude
às formas de protestos, reivindicações, vínculos sociais que aca- das classes populares tem os seus anseios de realização individual
bam por desenhar novas configurações espaciais e sociais, repre- tolhidos pela pobreza e pelo isolamento, em comunidades que
sentações espaciais de trajetos vividos e experimentados. Eles mais enclausuram do que ensinam e libertam (Carrano, 2002;
acontecem, sobretudo, nos contextos periféricos metropolitanos, Bauman, 2003).
de espaços carentes de bens culturais e de formas de expressão da É esta trajetória que conduzirá a integração entre técnicas
juventude, esta atravessada pelas dúvidas, incerteza de trabalho, quantitativas e qualitativas de pesquisa utilizadas no treinamento
de futuro, de sociabilidades (Ribeiro, 2000, 2003 e 2004, Ribeiro e no diálogo com os jovens integrantes da equipe do projeto e dos
et al. 2001 e 2002, 2005–2006, Ribeiro e Silva, 2000). diferentes grupos focais. Esta integração de técnicas corresponde

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tanto à natureza dos fenômenos estudados quanto ao intuito de têm indicado a gravidade desta crise por meio dos seguintes des-
apoiar, com informações consistentes e convincentes, as reivindi- locamentos conceituais: da segregação à fragmentação e da mar-
cações urbanas da juventude do município de São Gonçalo (Bob- ginalização à exclusão.
bio, 1992 e 1997). O desafio técnico do projeto decorre dos nexos
espaço-temporais da ação social (Santos, 1996), cuja considera- Compreendendo os contextos sociais e espaciais
ção é cada vez mais indispensável às intervenções no presente
que visam o alcance de uma vida urbana mais justa e solidária. A multiplicação de conflitos sem tradução em projetos defendidos
Os tempos da periferia, refletidos a partir dos tempos da na esfera pública, observada na região metropolitana do Rio de
juventude, formam territorialidades geradas por limites, projetos, Janeiro, constitui-se num dos mais claros sintomas da crise socie-
desejos e também pelo imaginário, o que impõe que a ação social, tária. Da mesma forma, são seus sintomas: a militarização do coti-
predominantemente estudada pela sociologia, não seja desco- diano e o encerramento da experiência urbana das classes popula-
nectada da teoria crítica do espaço. Como adverte Boaventura de res em espaços isolados e submetidos a formas paralelas de poder
Souza Santos: “Começamos a ver que cada um destes tempos é e ao medo (Delumeau et al., 2002; Caldeira, 2000; Souza, 2008).
simultaneamente a convocação de um espaço específico que con- São erguidas, por estes processos, novas e quase intrans-
fere uma materialidade própria às relações sociais que nele têm poníveis barreiras físicas e socioculturais, que reduzem as pers-
lugar” (1991, p. 63). pectivas de futuro da juventude a um “aqui e agora” precário e
Identificar essas relações, sustentando sua compreensão em incerto. Estes processos adquirem especial intensidade em muni-
análises de contextos que contemplem meios e obstáculos à ação cípios periféricos, como é o caso de São Gonçalo (ver Cordeiro,
social, corresponde, na perspectiva do projeto, a uma real pos- 2008 e 2009). Nesses municípios, a vulnerabilidade das famí-
sibilidade de apoio à construção de vínculos sociais entre dife- lias soma-se à pobreza do ambiente construído, gerando um acú-
rentes segmentos da juventude de São Gonçalo e à concepção de mulo de fatores responsáveis pela exclusão social e pela manu-
projetos que possam enriquecer a vida cotidiana no município. tenção de preconceitos. Refletindo essas condições do presente,
Por fim, a experiência construída pela pesquisa, com seus o projeto destaca o território como uma dimensão da experiên-
instrumentos e produtos, formará um acervo documental que cia urbana que adquire grande centralidade para a compreensão
permitirá sua reprodução em outros municípios da periferia da das carências coletivas e das representações sociais que orientam
região metropolitana do Rio de Janeiro. As fraturas e as desigual- a vida cotidiana.
dades sociais transformaram a região metropolitana do Rio de Compreende-se que as qualidades do território e as territo-
Janeiro, nas últimas décadas, em um real epicentro da crise socie- rialidades construídas pela juventude das classes populares for-
tária. Neste tipo de crise, obstáculos à socialidade e, portanto, à mam uma mesma realidade que precisa ser reconhecida para que
construção de vínculos sociais, manifestam-se por impedimentos o jovem amplie a sua capacidade de ação e, em consequência, de
à socialização (compartilhamento de valores) e à sociabilidade conquista de seus direitos de cidadania, onde se incluem os direi-
(interações sociais). tos urbanos. Para isto, é indispensável contrapor ao predomínio
Nestas circunstâncias, o esgarçamento do tecido urbano do espaço concebido (Lefebvre, 1969 e 2000), do espaço abstrato,
inclui a redução da adesão às instituições sociais, o que, na as representações do espaço vivido que incorporem o território
ausência de novos processos instituintes, significa aumento da usado e praticado (Santos, 1987 e 1993; Ribeiro, 2003) pela juven-
violência, inclusive simbólica (Lojkine, 2002). As ciências sociais tude. A valorização dessas representações, conjugada a infor-

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mações que viabilizem o conhecimento multiescalar do espaço São Gonçalo, que reúne pessoas de diferentes origens municipais,
urbano, permitirá aos jovens participantes do projeto ter acesso relativiza e articula o estar ligado pelas perspectivas de dentro e
a uma cartografia detalhada e ativa do espaço em que habitam, de fora, da casa e da cidade.
estudam e/ou trabalham. Este acesso será acompanhado de opor- Para o grupo, São Gonçalo é o lugar das igrejas e da sina-
tunidades de exposição e debate de dificuldades vividas no coti- goga, onde amizades, identificações e investigações podem ser
diano e de anseios relacionados à dinâmica da vida urbana. construídas nos bairros de Porto Novo, Porto Velho, Santa Iza-
Nesta direção, o uso de instrumentos de pesquisa (ver meto- bel, Alcântara e Patronato. O lugar da faculdade é da vida univer-
dologia e metas) que articulam tecnologia e cognição (Dupuy, sitária, por unanimidade, o melhor lugar, onde os locais e os de
1996), constitui um compromisso do projeto, viabilizando a supe- fora, que moram em repúblicas, se encontram, numa das escas-
ração de mecanismos culturais que tendem a limitar anseios ao sas redondezas em que estabelecimentos ficam abertos até mais
que é considerado como imediatamente disponível ou alcançável tarde, permitindo que pessoas de origens diversas possam se
(Certeau, 1994 e 1998). conhecer e a outros frequentadores populares. Aí, até a ciclovia
O desenho do projeto expressa a compreensão de que a pes- faz parte do lugar. Este é o centro, já que São Gonçalo é um lugar
quisa precisaria ser concebida de forma a integrar avanços no de poucos bares com música e boates. Academias de musculação
processo de conhecimento à ampliação da participação social e artes marciais localizam-se perto de outras atividades: a facul-
na esfera pública e à oferta de subsídios para a implementação dade, o trabalho ou a moradia.
de intervenções urbanas que reduzam desigualdades sociais; As pracinhas e os campinhos deveriam ser os lugares cata-
estimulem a sociabilidade e possibilitem o usufruto do espaço lizadores da convivência, da diversão; mas eles são inexistentes.
urbano pela juventude – de 15 a 29 anos. Há a necessidade de Se as crianças usam canteiros entre pistas de automóveis para
uma nova episteme, dialógica e aberta, que desvende espaços de se divertirem com bola, é porque faltam os campinhos de terra
esperança, como propôs David Harvey (2004), no cerne das dife- batida. Quando eles existem, como no Mutondo, o campo de fute-
rentes faces da crise societária. bol passa a ser o lugar de encontro no fim de semana entre tur-
mas de amigos, com idades variadas, envolvendo o jogo, a cer-
O olhar da juventude residente em São Gonçalo veja e, até mesmo, as brigas de turma.
São Gonçalo também pode ser repulsivo para estudantes
Com base no grupo focal realizado em 31 de março de 2010, com de fora do município que para lá se mudam durante os períodos
graduandos veteranos da Faculdade de Formação de Professores letivos: a cidade enseja experiências de estranhamento e rejei-
da Uerj, foi possível conhecer um pouco o universo desses jovens ção para quem vem de “lugares pacatos, onde as pessoas moram
de 20 a 26 anos, compreender as suas trajetórias sociais e espa- com pelo menos 50m de distância umas das outras”. Em São Gon-
ciais. Para eles, estar ligado a São Gonçalo é fazer parte da histó- çalo, esses estudantes vivem em bairros aglomerados, em pré-
ria do lugar e, ao mesmo tempo, compartilhar diferentes modos dios onde a vizinhança está colada e os vizinhos costumam ter
de vida; pois, os diferentes lugares fazem parte também da pró- contato visual constante entre si, mesmo estando dentro de casa.
pria história do indivíduo. É reviver, pela visita ou nos percur- Ou ainda, o estranhamento e a rejeição advém do tempo despen-
sos, os lugares que ligam a lembrança às atividades da infância e dido no trajeto para o trabalho nos horários de pico entre o bairro
da adolescência e, ainda, os lugares que ligam as novas ativida- aglomerado de Porto Novo e a área comercial e de trabalho de
des ao presente do sujeito. A experiência universitária a partir da Alcântara. Aqui, somam-se a hora e meia no transporte à extrema
Faculdade de Formação de Professores da Uerj (FFP/Uerj) em exploração a que é submetido o trabalhador do comércio tradi-

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cional, chegando a trabalhar diariamente, de forma ininterrupta, com aqueles terrenos onde são construídas casas espaçosas, que
até 10 horas. dividem o terreno com varandas, pátios e quintais, dando outro
Para o grupo, Alcântara é também o lugar da desigualdade, recorte ao modo de vida local. Indicaram ainda que parece existir
onde meninos permanecem nas ruas, em frente às lojas, usando um desconhecimento dos moradores de bairros populares sobre o
a praça para solucionar todas as suas necessidades de sobrevi- seu lugar no espaço urbano.
vência: “Onde também é um inferno, onde a gente se aglomera, Qualquer pequena melhoria relativa às más condições de
quente, imundo”. Outros lugares hostis reconhecidos, além das vida é vista como uma grande contribuição do poder público.
aglomerações de Alcântara e Porto Novo, são: Galo Branco (cons- Segundo os depoentes, movimentos de bairro deveriam se asso-
tantes assaltos), Colubandê, Tribobó (falta de asfaltamento e ciar de forma autônoma a assessorias técnicas, para que, por
iluminação). exemplo, o asfaltamento seja acompanhado por infraestruturas
O tempo despendido na circulação e no trabalho acaba, independentes de esgotamento fluvial do sanitário. Caso contrá-
segundo os depoentes, por inviabilizar o próprio usufruto da rio, os problemas decorrentes ultrapassam os anteriores.
vida doméstica. Em outro sentido, a vida universitária incluindo Por isso, a estrutura de São Gonçalo não se compara à de
o deslocamento diário até o bairro Patronato consome o tempo Niterói. Falta infraestrutura e lugares de encontro e atividades
que poderia ser aproveitado na circulação livre e com intuito culturais. Na verdade, o município deve ser equiparado a outro
exploratório ou, mesmo, para atividades culturais. No entanto, tipo de município, como Cabo Frio, por exemplo, para, depois,
a vida universitária colocaria os alunos em contato com um cir- confrontá-los a Niterói.
cuito específico de atividades e compromissos, fazendo com que A questão debatida pelo grupo focal como desdobramento
a experiência universitária surja como matriz da identidade espa- tratava dos determinantes do pertencimento: será a densidade de
cial e norte da circulação. equipamentos urbanos que qualifica os pertencimentos ou são as
Por outro lado, a possibilidade de uma vida coletiva em relações sociais estabelecidas a partir do lugar de existência que
outros municípios, como o Rio de Janeiro e Niterói, onde estão possibilitam o convívio, os momentos de reflexão sobre as condi-
concentradas as atividades culturais e econômicas, na visão dos ções de vida e a luta por melhorias? Ficou esta questão no ar.
estudantes, é compensada pelo o ritmo de vida mais calmo da As mobilizações políticas em São Gonçalo foram debatidas
cidade de São Gonçalo, que tem origens e história de vida dife- sob o ângulo do tempo da organização de lutas:
rente. O estresse do trabalho em outros municípios da metrópole 1  Em função da momentaneidade com que se experimenta
do estado é compensado por uma circulação em diversos bairros a indignação frente a transtornos permanentes e recorrentes;
onde a sensação é de “estar em casa”, em oposição à estranheza quando (e onde) a indignação pode durar dois ou três dias. Em
causada por estar frequentando e vivenciando ambientes análo- resposta, os depoentes salientaram que os compromissos do coti-
gos, em outros municípios. diano impedem qualquer possibilidade de mobilização ampliada
Os estudantes do grupo focal declararam que na arquitetura ou coletiva, em termos de reunião de pessoas que compartilhem
da cidade surge outro indicador visível do modo de vida em São as mesmas dificuldades.
Gonçalo. As diferenças de concepção da moradia entre as classes 2  Por meio do aprendizado de quais condições desfavorá-
sociais, materializadas no aproveitamento dos terrenos residen- veis, experimentadas individual e coletivamente, podem levar as
ciais com suas construções, produzem fortes contrastes: nas áreas pessoas à associação, iniciando procedimentos de mobilização
populares, os terrenos são mais baratos e as construções são para a conquista de melhores condições de vida.
intensivas e ocupam ao máximo o lote adquirido, em contraste A participação das classes médias na luta por melhorias em

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seus bairros (Camarão, Centro, Patronato, Alcântara etc.) são tra- de apropriação da cidade e da metrópole é um desafio importante
vadas na esfera jurídica e anunciadas em faixas penduradas nas para orientar a gestão territorial e abrir novos caminhos para pos-
vias de maior circulação e visibilidade. Já as formas mais indig- sibilitar novas formas de sociabilidades.
nadas e populares de protesto e a luta por melhorias das classes
populares por melhorias adquirem a forma de incêndios de lixo e Referências
de objetos de médio e grande porte nas ruas de maior movimento
dos bairros desassistidos. Zygmunt Bauman. Comunidade: a busca por segurança no mundo
Entre os estudantes, a mobilização política em São Gonçalo atual. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003.
parece obedecer a uma lógica na qual os alunos do ensino médio Norberto Bobbio. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Cam-
se mobilizam mais que os do ensino superior. Por outro lado, o pos, 1992.
movimento universitário recebe maior adesão dos universitários — Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
que vem de fora de São Gonçalo. Também há uma grande expec- Cahiers de la recherche architecturale et urbaine. L’espace anthro-
tativa desses setores mobilizados pelo alcance de compromissos pologique. Paris: Éditions du Patrimoine, n. 20/21, 2007.
com a produção acadêmica e com a educação pública, gratuita e Teresa Pires do Rio Caldeira. Cidade de muros: crime, segregação
socialmente referenciada. e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34 / Edusp, 2000.
No momento propositivo da sessão, surgiram duas deman- Paulo Cesar Rodrigues Carrano. Os jovens e a cidade: identidades
das: a primeira, pela transformação de São Gonçalo em um muni- e práticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas. Rio de
cípio formador de atletas por meio da multiplicação dos centros ou Janeiro: Relume Dumará / Faperj, 2002.
quadras poliesportivas, incluindo áreas menos urbanizadas e aces- Michel de Certeau. La prise de parole et autres écrits politiques.
síveis, geridas pelas comunidades via associação de moradores e Paris: Seuil, 1994.
apoiadas ou supervisionadas por entidades tais como universida- — A invenção do cotidiano: artes do fazer. 3. ed. Petrópolis:
des, Sesc etc., com clara autonomia em relação ao governo muni- Vozes, 1998.
cipal. A segunda diz respeito à inclusão da antropologia na for- Denise Cordeiro. Juventude nas sombras: capturas e devires de
mação aos futuros professores e bacharéis, fazendo com que esses jovens pobres. Niterói: UFF (PPG em Educação), 2008. Tese de
passem um semestre dedicados ao envolvimento vivencial com o doutorado.
tema a ser trabalhado em suas monografias de final de curso. — Juventude nas sombras. Rio de Janeiro: Lamparina e Faperj,
2009.
Algumas considerações Jean Delumeau, et al. El miedo: reflexiones sobre la dimensión
social y cultural. Medellín: Corporación Región, 2002.
Trata-se de uma proposta metodológica da cartografia ação junto Jean-Pierre Dupuy. Nas origens das ciências cognitivas. São Paulo:
à juventude em municípios periféricos, levando em conta a abor- Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
dagem crítica em que as metrópoles devem ser averiguadas como David Harvey. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004.
lócus de contradições entre inovações, modernização e pobreza; Lucio Kowarick. Capitalismo e marginalidade na América Latina.
são lugares de aglomeração urbana, concentração demográfica Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
e centralização das atividades secundárias e terciárias. Ouvir os Henri Lefebvre. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969.
jovens e conhecer suas trajetórias, suas formas de compreensão e — La production de l’espace. 4. ed. Paris: Economica Editions,
2000. Col. Anthropos.

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Jean Lojkine. Les sociologies critiques du capitalisme: en hommage Cartografias e lutas sociais:
à Pierre Bourdieu. Paris: Presses Universitaires de France,
2002.
notas sobre uma relação que se fortalece
Ana Clara Torres Ribeiro, et al. Por uma cartografia da ação: Renato Emerson dos Santos
pequeno ensaio de método. Cadernos ippur , ano 15 e ano 16,
n. 1 e n. 2, 2001 e 2002.
— Pequena reflexão sobre categorias da teoria crítica do A cartografia, como corpo disciplinar acadêmico e científico, tem
espaço: território usado, território praticado. In: Maria Adé- seu desenvolvimento atrelado ao processo de eurocentrismo do
lia de Souza (org.). Território brasileiro: usos e abusos. São mundo, num período histórico conhecido como modernidade.
Paulo: Edições Territorial, 2003. Seu desenvolvimento foi também, portanto, associado ao estabe-
— (org.). El rostro urbano de América Latina. Buenos Aires: lecimento de uma ordem e à afirmação de hegemonias em rela-
CLACSO, 2004. ções de poder, o que a tornou historicamente um instrumento de
— Relatório técnico-científico do projeto: cartografia da ação e dominação e controle.
análise de conjuntura: reivindicações e protestos em contex- Como nos mostrou, entre outros, Lacoste (1988), a repre-
tos metropolitanos (quatro volumes). Programa Cientista do sentação cartográfica do espaço sempre foi um trunfo de grupos
Nosso Estado, Rio de Janeiro: FAPERJ, 2005–2006. hegemônicos. O controle do instrumento cartográfico, dos pro-
Ana Clara Torres Ribeiro e Catia Antonia da Silva. Faces ativas cessos de produção e das formas de representação (postulados,
do urbano: mutações num contexto de imobilismos. In: Ana concepções etc.) durante muito tempo despertou pouca atenção
Clara Torres Ribeiro (org.). Repensando a experiência urbana de forças e grupos contra-hegemônicos. Isto permitiu que, por
da América Latina: questões, conceitos e valores. Buenos Aires: séculos, a cartografia se mantivesse praticamente incólume frente
CLACSO, 2000. às disputas sociais nas quais ela era um instrumento a serviço de
— Tendências da metropolização brasileira: ação e território. forças dominantes, o que serviu para reforçar um discurso (posi-
In: Ana Clara Torres Ribeiro e Catia Antonia da Silva. Rio tivista) de que ela era apenas uma técnica calcada na neutrali-
Urbano 2. Rio de Janeiro: CIDE, 2003. dade de suas bases. Permitiu também o amplo desenvolvimento
Boaventura de Sousa Santos. Uma cartografia simbólica das de formas de “mentir com os mapas” (Monmonier, 1996).
representações sociais: prolegômenos a uma concepção No período recente, entretanto, um conjunto cada vez maior
pós-moderna do direito. Espaço e Debates, v. 33, ano 11, São de experiências vem indicando transformações (ou ao menos ten-
Paulo, 1991. dências) no campo da cartografia. Diversas experiências de car-
— A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiên- tografias vinculadas a movimento sociais vêm mostrando que
cia. São Paulo: Cortez, 2000. parece haver algo novo no campo. O “novo” parece ser o uso da
Milton Santos. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. cartografia como instrumento de lutas de grupos socialmente des-
— A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São favorecidos e não apenas um instrumento de dominação, como
Paulo: Hucitec, 1996. historicamente foi desenvolvida a cartografia moderna. Aponta-
Marcelo Lopes de Souza. Fobópole: o medo generalizado e a milita- mos, entretanto, que esta dimensão conflituosa do “uso” da car-
rização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, tografia também vem envolvendo transformações no próprio
2008. “objeto” cartográfico, e no “processo” de produção deste objeto.
Processo, objeto e uso cartográfico são três dimensões da

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cartografia que vêm sendo tensionadas por e com base em jogos tais vivenciadas pelos povos da Amazônia”, central na campa-
de poder. Diversos atores vêm se inserindo em disputas que arti- nha “Na floresta tem direitos: justiça ambiental na Amazônia”
culam cartografias e relações de poder onde o que está em jogo uma iniciativa de movimentos sociais, entidades, ONGs e redes da
pode ser, por exemplo, o controle do território, de propriedade, Amazônia.
de comportamentos e relações sociais, de processos políticos ou, O mapa foi elaborado sob responsabilidade técnica da Fede-
das próprias formas e instrumentos de representação. ração de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase),2
A valorização política e analítica da dimensão espacial de por meio de uma metodologia participativa: foram coletadas
fenômenos, processos, objetos e atores transforma os instrumen- informações fornecidas pelos próprios movimentos, em encon-
tos de representação espacial cada vez mais no centro de dispu- tros e eventos. A coleta foi executada principalmente por meio da
tas de poder. Esta valorização do espaço é que faz com que a car- exposição de mapas impressos aos participantes e lideranças dos
tografia cada vez mais se cruze com jogos e disputas, ou, ela pró- movimentos que nele indicavam os conflitos vivenciados e suas
pria se torne objeto de disputa. Sem a pretensão de esgotar o localizações. A indicação ia além, na verdade: eles também qua-
debate, trazemos aqui alguns exemplos de ações nestas disputas.1 lificavam os conflitos socioambientais, apontando as atividades e
práticas que causam tal degradação, sua localização e os atores aí
Novos atores na cena cartográfica envolvidos.
Abrangendo toda a Amazônia Legal, o mapa foi utilizado
O campo da cartografia está sendo tensionado por (e em) diver- como um instrumento de denúncia e pressão junto ao Ministério
sos sentidos. Tomemos alguns exemplos em curso, no Brasil e em Público Federal e outras autoridades competentes, e também para
outras partes do mundo, que provocam nossa reflexão. Um pri- a articulação de organizações, entidades, movimentos sociais na
meiro fenômeno é o uso crescente de objetos cartográficos como luta por alternativas locais que assegurem o desenvolvimento da
instrumento de luta por movimentos e articulações de movimen- Amazônia com justiça ambiental e garantia dos direitos humanos.
tos sociais. Os objetos cartográficos estão sendo utilizados como O mapa opera com uma classificação dos conflitos por
leituras (sociais) do território que são confrontadas às oficiais e/ agenda, do que são definidas 14 modalidades: recursos hídricos;
ou de atores hegemônicos, mas também como instrumentos de queimada e/ou incêndios provocados; pesca e/ou caça preda-
(fortalecimento de) identidade social e de articulações políticas tória; extração predatória de recursos naturais; desmatamento;
– ou seja, na sua plenitude de instrumento de representação que garimpo; pecuária; monocultivo; extração madeira; grandes pro-
exprime a realidade (segundo pontos de vista, posições defini- jetos; regularização fundiária; ordenamento territorial; violência
das) e também ajuda a construir a própria realidade. física declarada; moradia.
Estes usos cartográficos podem ser exemplificados com o Foram identificados 675 focos de conflitos socioambientais
caso do “Mapa dos conflitos socioambientais da Amazônia Legal: por todo o território da Amazônia Legal que, classificados e asso-
degradação ambiental, desigualdades sociais e injustiças ambien- ciados cada qual a um símbolo, têm a sua espacialização (e, con-
sequentemente, identificados os focos de concentração) expressa
1  Valemo-nos aqui das análises que realizamos no relatório da pesquisa no mapa. Outro aspecto interessante do mapa é o conjunto de
“Cartografagens da ação e dos conflitos sociais: análise comparativa de ob-
servações e representações do espaço-tempo do fazer político”, coordenado
por nós e apoiado pela Faperj. Neste, coletamos e analisamos 34 experiências 2  As informações a seguir, bem como o mapa, foram extraídos da página de
de cartografias relacionadas a lutas, movimentos sociais e disputas sociais e internet da Fase. Disponível em: <http://www.fase.org.br/noar/anexos/
cartográficas. acervo/2_mapa_conflito_amazonia>. Acesso em: 20 set. 2006).

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objetivos elencados como motivadores para sua confecção, que antirracismo, e, em Salvador, pela prefeitura e o Centro de Estu-
denotam as decisões estratégicas tomadas em torno dele: dos Afro-Orientais da UFBA, com recursos da Seppir e da Funda-
1  dar visibilidade aos conflitos socioambientais na região; ção Cultural Palmares.
2  ser instrumento de pressão e denúncia; O ponto de partida para a elaboração do mapeamento é
3  auxiliar no diagnóstico local, desmistificando o que a constatação e a reivindicação dos movimentos sociais sobre
tem sido chamado de “desenvolvimento e progresso para a a invisibilidade das religiões afro-brasileiras nos cadastros ofi-
Amazônia”; ciais. Essa invisibilidade aparece como uma dimensão institu-
4  caráter educativo no sentido de possibilitar a organização cional da negação da herança africana pelo Estado brasileiro, o
e mobilização; que ao longo da história já assumiu a forma da perseguição poli-
5  viabilizar o diálogo com dados oficiais; cial, fechamento de casas e mesmo assassinatos de praticantes.
6  contribuir no planejamento das ações das organizações Hoje ela aparece na forma do desconhecimento que este mesmo
populares, indicando caminhos estratégicos e alianças/parcerias. Estado sustenta em relação a estes grupos, muitos então coloca-
A estes, agrega-se um aspecto concernente à própria forma dos na condição de ilegalidade por conta desta violência espiri-
como o mapa é construído: a metodologia participativa, “em que tual, religiosa e epistêmico-cultural.
os próprios sujeitos coletivos, que conhecem e vivenciam os impac- A ausência de informações sobre estas religiões nos formu-
tos negativos das atividades degradantes existentes em suas loca- lários censitários, que só foi revertida no censo 2010, impossibili-
lidades, identificam os conflitos e constroem o mapeamento”. Isso tava reivindicações de ações do Estado em relação aos praticantes
se constitui, cabalmente, num aprendizado da operação de refe- destas religiões. Esta falta de informações sistemáticas e reconhe-
rências espaciais no pensar e no fazer da sua experiência de luta: cidas, ao contribuir para a invisibilidade destas religiões, con-
ao indicarem sobre um mapa os conflitos vivenciados, sua locali- cedia terreno para a reprodução de violências e perseguições às
zação, quais são as “agressões” e os sujeitos coletivos envolvidos, religiões de matriz africana, que vêm se avolumando nos últimos
os participantes estão aprendendo e apreendendo novas formas anos no Brasil. A cartografia neste caso é, portanto, um instru-
de pensar para agir, o pensar no espaço, e o pensar com o espaço. mento de reconhecimento estatal dos grupos envolvidos, instru-
Neste caso, o objeto cartográfico é instrumento de identi- mento de fortalecimento de articulações e identidades, e também
dade e articulação, e também de disputa nas leituras e represen- uma ferramenta para a promoção de políticas públicas.
tações da realidade que servem de base para tomadas de deci- Essas dimensões aparecem também numa série de iniciati-
são e ações. Tal quadro também aparece em recentes iniciati- vas de mapeamento participativo nucleadas pelo projeto “Nova
vas de mapeamento de casas de religiões africanas, que estão Cartografia Social da Amazônia”, coordenado pelo antropólogo
sendo realizados, por exemplo, no Rio de Janeiro e em Salva- Alfredo Wagner Berno de Almeida, vinculado ao PPGSCA/Ufam
dor, como resultado da luta de setores do Movimento Negro Bra- (Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Ama-
sileiro contra a intolerância religiosa, por meio do levantamento zônia), financiado pela Fundação Ford e que já gerou quase duas
e visibilidade das casas religiosas que o mapa promove. No Rio centenas de fascículos resultantes de oficinas de mapeamento
de Janeiro, o mapeamento está sendo realizado através da parce- participativo. Trata-se de uma cartografia elaborada pelos pró-
ria entre a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igual- prios grupos sociais que ela representa no mapa, um processo
dade Racial (Seppir, do Governo Federal, que é conhecida como o no qual membros de um determinado grupo registram quem
“ministério da igualdade racial”), a PUC-Rio e movimentos sociais são, onde e como vivem. O que se busca, portanto, não é mapear

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os grupos, mas sim, permitir aos grupos que eles próprios se ção de representações configura uma forma distinta de “ativismo
mapeiem, e este processo de (auto)mapeamento é denominado, cartográfico” do núcleo.
segundo o próprio núcleo, de “mapeamento situacional”. Todas essas experiências que acabamos de analisar têm, em
Este processo de mapeamento traz nítida influência do pen- maior ou menor grau, uma tensão em relação ao objeto carto-
samento situacionista, que pregava o combate à alienação pro- gráfico, ao seu uso e, sobretudo no caso do PNCSA, ao processo
duzida pela sociedade capitalista por meio da valorização das de produção cartográfica. Elas têm também em comum o fato
visões dos indivíduos que vivem as relações. Com isto, buscava-se de que, em sua maioria, um dos interlocutores fundamentais é o
romper com a passividade inerente à “sociedade do espetáculo” Estado. Mas, se de um lado elas nos mostram que uma crítica à(s)
(Debord, 2003), dentro da qual indivíduos e grupos desfavoreci- cartografia(s) oficial(s) vem se fortalecendo, de outro elas nos
dos são transformados em espectadores e participantes passivos chamam a atenção para um olhar sobre como o Estado vem rea-
diante de um roteiro sobre o qual não têm qualquer influência. gindo neste debate sobre objetos, usos e processos de produção
Com base nessa influência, a cartografia do PNCSA vai valo- cartográfica. E o Estado se revela fundamentalmente uma com-
rizar as visões da realidade daqueles que a vivem, mas são des- plexa e múltipla “arena”, muito mais do que um ator.
tituídos de fala na construção das representações hegemônicas. Verificam-se diversas formas de “reação” do Estado às dis-
Como esta matriz combate a rigidez na compreensão da reali- putas em curso no plano da produção cartográfica. Uma delas é a
dade (sobretudo, das matrizes estruturalistas e funcionalistas), reação negativa: nas tramas de poder em que atores contra-hege-
a cartografia situacional vai se propor também uma representa- mônicos se utilizam de instrumentos cartográficos, o setor do
ção transitória e parcial de uma realidade. Como afirma Alfredo Estado diretamente envolvido pode adotar a negação, a desqua-
Wagner (2009, p. 4), o mesmo grupo pode num outro momento lificação, ou a notável ignorância em relação àquilo que é trazido
refazer um mapa e gerar um produto cartográfico completamente pelos movimentos na forma da representação cartográfica. Entre-
diferente. A valorização de identidades inerente à construção tanto, o que nos chama mais atenção é o fato de que, dentro do
dos mapas enquanto representações ganha um componente cen- próprio Estado, de maneiras ambíguas, multilocalizadas e con-
tralmente político, pois é na vivência de conflitos, interlocuções, traditórias, também há variados graus de permeabilidade a pro-
embates e articulações que são engendrados os esforços mobiliza- cessos e objetos cartográficos assemelhados àqueles que estão no
dores de ação coletiva que constituem os grupos que se põem em núcleo da convergência entre cartografia e lutas sociais.
processo cartográfico. Cada mapa produzido trata-se, portanto, Políticas públicas recentes começam a incorporar processos
de uma leitura contextualizada da realidade. de mapeamentos participativos. Este não é um processo linear,
O PNCSA é, sem dúvida, a maior articulação de experiên- unidirecional, nem isento de contradições. Ele envolve, na ver-
cias de mapeamento participativo no Brasil e na América Latina. dade, múltiplas dimensões: incorporação da participação de gru-
É, para nossa análise, um grupo concentrador de experiências pos que são chamados de “público alvo” em processos de formu-
sociais de mapeamento, que difunde objetos cartográficos para lação e/ou execução de políticas públicas – ou, quase sempre, em
a luta e também difunde um modelo de construção de represen- partes bem definidas destes processos, e com restrita capacidade
tações cartográficas. Para os grupos (auto)mapeados, esta ação de decisão e interferência; incorporação de elementos, linguagens
constrói um instrumento útil em suas lutas, além de transmi- e visões de mundo tradicionalmente excluídos de cartografias ofi-
tir aprendizados sobre como elaborar (participativamente) um ciais – o que envolve diálogos interculturais em alguns processos.
mapa e sobre como raciocinar por meio do espaço sobre suas pro- Um exemplo de política pública que incorpora mapeamen-
blemáticas e lutas. Mas esta difusão de um “modelo” de constru- tos participativos é o projeto Maplan (também chamado de pro-

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jeto Mapear), uma parceria do Governo do Estado do Ceará com O diagnóstico participativo aparece, na perspectiva indicada,
a Universidade do Arizona, para a elaboração de diagnósticos como um instrumento de valorização da voz e da fala de grupos
participativos como ferramentas para o planejamento do desen- desfavorecidos, portanto, um instrumento de equilíbrio democrá-
volvimento local. A previsão era de realização dos trabalhos em tico; e um instrumento de enquadramento desta fala em formatos
14 municípios, mas, pelas informações disponíveis, podemos con- (ou, meios) válidos de conhecimento. Com isto, torna-se também
firmar sua execução em 8. Os municípios foram escolhidos a par- paradoxalmente um instrumento de desqualificação das falas que
tir da gravidade de seu quadro social, medido pelos índices de não se encontram enquadradas neste mesmo formato, como as
desenvolvimento humano e condições da população local. próprias formas de expressão dos grupos a quem se pretende dar
A abordagem do trabalho parte do entendimento de que o voz. Torna-se, portanto, uma tecnologia de gestão social que, se
processo de planejamento local deve, obrigatoriamente, incluir a no discurso (e, por que não, também na prática) é instrumento de
opinião das populações que porventura sofrerão a intervenção de fortalecimento e luta de grupos, também o é de desqualificação
políticas públicas. Foram escolhidas regiões no interior do Ceará de outras falas e expressões dos mesmos grupos.
que, dentre outros problemas, sofrem com a fome e a seca. Os Dentro deste paradoxo, opera-se a junção das técnicas de
idealizadores do projeto acreditam que os residentes das comu- Sistema de Informações Geográficas Participativo, conhecido
nidades possuem um entendimento próprio sobre inúmeros fato- como SIG Participativo, dos métodos de diagnóstico participativo,
res que oferecem desafios frente ao processo de desenvolvimento e de um cuidadoso arranjo pluri-institucional que garanta a utili-
da sua região. dade do processo para fins de planejamento. Este arranjo permite
Além disso, há um consenso geral sobre a necessidade de a participação com controle das relações de poder envolvidas no
estimular uma prática de planejamento local que tenha como processo de construção da política pública, limitando a capaci-
base a participação ativa das comunidades em todo o processo. dade (ou o poder) dos grupos não hegemônicos.
O nível de participação almejado deveria abranger tanto a defi- Estes paradoxos vêm aparecendo também em processos de
nição e descrição da problemática local, quanto a discussão em reconhecimento territorial baseado em pertencimento étnico e
torno das metas prioritárias e a própria elaboração dos planos. cultural, como com populações indígenas e quilombolas no Bra-
Enquanto tecnologia de gestão social, o diagnóstico participativo sil e em outros países da América Latina. Correia (2007) ana-
serviria como instrumento para a descentralização da execução lisa estes dilemas, realçados enquanto ainda se desenrolam, num
das políticas, e este projeto ofereceria então uma ferramenta ino- quadro de diálogo/conflito intercultural, em casos de reconheci-
vadora de diagnóstico participativo que poderia subsidiar e esti- mento de terras indígenas no Acre. Ele mostra em casos empíri-
mular um processo de desenvolvimento local. cos aquilo que analisa Hale (2002), que associa as práticas parti-
É neste sentido que os mapas são usados: para promover as cipativas de mapeamento à emergência de políticas baseadas no
discussões de grupo, para auxiliar a identificação de condicionan- multiculturalismo, afirmando a existência de um “multicultura-
tes e potencialidades nas comunidades do interior, e para discu- lismo neoliberal”, um paradigma de políticas estatais inserido na
tir sobre as metas de desenvolvimento das populações. Ressalta- onda neoliberal que opera direitos culturais e à diferença, mas de
se que todas as informações contidas nos mapas são fornecidas caráter essencialmente conservador. Acselrad vai apontar “dife-
pelos próprios residentes. Os mapeamentos são, portanto, instân- rentes apropriações das práticas de mapeamento com inclusão de
cias de construção coletiva e participação aberta, que permitem populações locais, ora por desenvolvimentistas “participacionis-
conhecer a realidade por meio das memórias cotidianas de indiví- tas”, ora por ambientalistas ou por agentes das políticas da dife-
duos que convergem para um mesmo espaço horizontal. rença cultural e territorial” (2010, p. 23).

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Em meio a estas disputas de paradigmas (e, evidentemente, vêm emergindo como instrumentos de luta de grupos historica-
envolvidas nelas) estão os grupos desfavorecidos, diante de mente excluídos de processos de representação e tomada de deci-
novos processos de modernização e neocolonização chamados de são, mas, ao mesmo tempo, aparecem como tecnologia de gestão
“participativos”. em diferentes processos de planejamento estatal, e nem sempre
A participação é um procedimento que está se consolidando beneficiando a real democratização do acesso a recursos.
como um princípio na execução de políticas públicas, e isso se dá A relação entre cartografias e lutas sociais está profunda-
de maneira essencialmente paradoxal. Nas últimas décadas, dife- mente mergulhada nesta bifurcação – instrumento de dominação
rentes núcleos sociais de enunciação têm problematizado, reivin- versus instrumento de luta de grupos desfavorecidos. Ela trans-
dicado, difundido e criado canais e mecanismos de participação forma o próprio processo de desenvolvimento das técnicas e tec-
– de diferentes matizes ideológicos. Esses canais e mecanismos nologias cartográficas em objeto de disputa. Outra forma de “ati-
são criados pela tensão entre limites estabelecidos pelo formatos vismo cartográfico” que tem sido desenvolvida é exatamente a
representativo e participativo instituídos pela democracia. disputa na criação, difusão e hegemonia sobre os meios, formas e
Avritzer e Santos (2003), discutindo a ideia e experiências instrumentos de produção cartográfica. Já comentamos este ati-
democráticas em alguns países selecionados, dialogam com o vismo como algo inerente ao trabalho do projeto Nova Cartogra-
conceito de que a chamada democracia representativa, historica- fia Social da Amazônia. Entretanto, há muitos outros atores que
mente, além dos representantes delegados com mandatos, gerou disputam a construção de instrumentos tecnológicos (como sof-
também uma poderosa burocracia, ou, tecnoburocracia, respon- twares, programas, ambientes, instrumentos como GPS etc.) e
sável por definir prioridades e tomar decisões, que iam então se também de procedimentos (criando, por exemplo, manuais para
afastando do próprio povo. mapeamentos participativos) para as cartografias participativas.
Para nossa discussão, podemos inserir também os técni- Vejamos alguns exemplos.
cos mapeadores dentro desta burocracia: são aqueles que têm o Uma das maiores articulações de fazedores de mapas parti-
poder de definir critérios de verdade (o que é plotado no mapa, cipativos do mundo é aquela centrada em torno do Iapad / PPGIS
e o que não é) que servem de base para tomadas de decisão. Este / Mapping for Change. Iapad Participatory Avenues (Integrated
afastamento do anseio de grupos não representados no Estado Approaches to Participatory Development, <http://www.iapad.
fortalece a crítica e a proposição de canais orientados para o org>),3 que é uma página na internet, criada em 2000, para com-
incremento da participação direta. partilhamento de conhecimento sobre mapeamento comuni-
É nesta seara que emergem práticas e formatos institucio- tário (community mapping). PPGIS (Open Forum for Participa-
nais voltados para uma concepção participativa de democracia, tory Geographic Information Management and Communication,
o que será marcado por profundas tensões. As práticas e institui- <http://www.ppgis.net>) é outra página, um fórum de executo-
ções de participação criados no bojo destes processos são a resul- res de mapeamento participativo baseado em GIS, que reúne téc-
tante possível entre a diretriz de equilíbrio democrático – confe- nicos de todos os continentes.
rindo a grupos minoritários (ou, dominados) a possibilidade de Ambas as iniciativas foram criadas pelo mesmo técnico, o
influir em processos decisórios – e o risco (evitado pelos grupos
dirigentes) de que novos modelos democráticos ameacem inte- 3  Merece destaque, nesta página, uma extensa bibliografia disponibilizada,
organizada por ano de publicação, com mais de mil textos entre artigos,
resses hegemônicos.
teses, livros, trabalhos de congressos etc., sobre mapeamento participativo
A disseminação crescente de cartografias participativas no (experiências, problematizações, políticas públicas etc.) em todos os conti-
período recente deve ser analisada à luz destas contradições. Elas nentes – e, nas línguas originais de escrita dos textos.

50  Cartografias e lutas sociais Cartografias e lutas sociais  51

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italiano Giácomo Rambaldi. Especialista em mapeamento comu- o kit etc.) são voltadas para o desenvolvimento e a difusão do
nitário em países em desenvolvimento desde a década de 1980, mapeamento participativo. Este é, portanto, o cerne do ativismo
Rambaldi trabalha no Centro Técnico para Agricultura e Coope- cartográfico desempenhado por esta (ou nesta) rede. Mas, a Map-
ração rural, na Holanda, ligado à União Europeia. Dentre suas ping for Change e o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia
parcerias, está o IIED (International Institute for Environment não são os únicos atores (atores-rede ou rede de atores) a propor
and Development), uma agência de cooperação inglesa. Entre e disputar a forma de construção de mapeamentos participativos.
as linhas de trabalho do IIED, está a “governança”, o que contem- Dentre diversos outros, podemos também citar a Asocioación de
pla também o desenvolvimento e a difusão de tecnologias sociais Proyectos Comunitarios (APC), uma entidade sem fins lucrativos
baseadas na participação. Neste bojo, aparece a dimensão do que atua com fortalecimento de processos organizativos comu-
mapeamento participativo. nitários, dando assessoria para formação de lideranças de outras
O trabalho de articulação, atraindo outros pesquisadores e entidades, no Pacífico Sul colombiano, no vale do Rio Cauca.
executores de mapeamento participativo em países em desenvol- Uma de suas principais atividades é a formação para a cartogra-
vimento e subdesenvolvidos culminou na realização, em 2005, fia participativa.
em Nairóbi, no Quênia, da “Mapping for Change International A APC trabalha articulada a um conjunto de entidades de
Conference on Participatory Spatial Information Management campesinos, afrodescendentes, indígenas e populações urbanas,
and Communication”, uma reunião com técnicos apresentando o que tem relação com marcos multiculturalistas. Ela indica como
experiências em vários continentes. No ano de 2008, a articula- seus princípios fundamentais a equidade de gênero; inclusão
ção promoveu um novo encontro na sede do CTA, na Holanda. social, econômica e política; respeito à diferença; multiculturali-
Neste, o propósito foi dar cabo de um dos objetivos delineados na dade e interculturalidade; a convivência comunitária e a autono-
conferência de Nairóbi, que era gerar um “kit” modelo para práti- mia. Opera com processos formativos em três linhas fundamen-
cas de mapeamento participativo. tais: formação intercultural comunitária; autonomia, territó-
A partir da constatação da diversidade de procedimentos rio e produção; e gestão para o desenvolvimento comunitário. A
adotados nas diferentes experiências apresentadas na primeira entidade foi formada em 1992, mas um marco importante para o
conferência, com acertos e desafios a serem compartilhados, nosso debate foi a realização, em 2005, do curso “Fortalecimiento
alguns dos participantes indicaram a necessidade de uma sín- de las organizaciones pertenecientes a la Asociación de Proyectos
tese dos problemas e soluções em práticas de mapeamento. Ques- Comunitarios (APC)”, no qual foram publicados 8 módulos de tra-
tões como: quais são as soluções tecnológicas para cada mapea- balho e estudo, espécies de apostilas para a formação. A primeira
mento, definição e estabelecimento de relações entre os técnicos apostila, numerada como “módulo 0”, tinha o título de “Território
e os grupos sociais mapeados, propriedade e uso da informação e cartografia social”, onde se trabalhava um diálogo intercultural
sistematizada no objeto cartográfico; eram alguns dos desafios com base no mapeamento participativo (Santos, 2010).
enfrentados nas práticas que, na primeira conferência, aparece- A experiência da APC tem como objetivo formar lideranças
ram com múltiplos caminhos de enfrentamento. Um kit modelo para o diálogo com o Estado. É, neste sentido, um ator dentro
poderia oferecer, para o praticante do mapeamento participativo, de um paradigma de diálogo entre Estado e sociedade civil que,
conjuntos de soluções para cada um dos desafios apontados. a partir do compartilhamento de responsabilidades (mas, quase
Todas estas iniciativas (as páginas para compartilhamento nunca, dos recursos), molda o perfil das lideranças dos movimen-
de ferramentas, a conferência, a revista e outras publicações, tos sociais. Contraditoriamente, este processo é constituído por

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meio da concessão de direitos aos grupos e do reconhecimento de O mundo da educação já está sendo profundamente impac-
matrizes culturais marcadas pela diversidade. Cabe também res- tado por novas tecnologias associadas à informática, as quais ocu-
saltar que esta sociodiversidade tem um papel fundamental na pam cada vez mais espaço na comunicação e interações sociais,
região, pois as culturas lá existentes são as formas de relação com e o campo cartográfico se torna cada vez mais importante nisto
a natureza que mantém a área como uma das maiores reservas de – por isso, é objeto de disputa. Ver a própria casa ou rua num
biodiversidade relativa do planeta. Concessão de direitos cami- mapa, plotar informações sobre o espaço de vivência neste mapa
nha, aí, com a apropriação de saberes. E, a cartografia participa- e relacionar tais elementos com o mundo é uma operação de
tiva é um dos elos entre estas duas vertentes do processo. raciocínio espacial, que molda visões de mundo e pode permitir a
Os instrumentos tecnológicos de produção cartográfica tam- atores a concentração de informações.
bém tem sido objeto de disputa. Os avanços técnicos no campo Controlar os instrumentos de produção destes processos car-
do geoprocessamento – que são fruto mais da valorização analí- tográficos (“espontâneos”, “interativos” e “participativos”) pode
tica do espaço enquanto chave de leitura da realidade, do que do significar a definição de possibilidades e limites a estas operações
desenvolvimento tecnológico no campo da informática4 – vêm de raciocínios espaciais – ou seja, um controle social. É neste sen-
permitindo a associação de tido que vemos grandes corporações, como a Microsoft, Macin-
1  complexos bancos de dados e informações de distintas tosh e a Google investindo pesado em softwares, serviços de
naturezas,5 com mapas on-line, convergência entre representações cartográficas,
2  formas de representação da realidade em diversas dimen- bancos de dados, fotos, computação gráfica, entre outros.
sões espaciais e temporais (do plano ao 3D, do estático à repre- Controlar o instrumento é definir a linguagem, o ambiente
sentação intertemporal), e dialógico – poderíamos dizer o “meio”, num sentido geográfico,
3  diferentes formas e graus de interação com o “leitor” (que na medida em que as técnicas contemplam sistemas de objetos e
em diversos casos é, ele próprio, o produtor). A difusão destes também de ações. Lembremo-nos do importante debate de Mil-
instrumentos (que são chamados de “interativos”), como o Goo- ton Santos (2002) sobre a relação entre a “tecnosfera” e a “psicos-
gle Maps e o Google Earth coloca em cena novas possibilidades fera”, para perceber a relação entre o controle da definição dos
de constituição de visões de mundo, o que reposiciona a educa- instrumentos técnicos válidos (ou, considerados superiores) e o
ção cartográfica e o ensino/aprendizagem de geografia. controle de racionalidades, irracionalidades e contrarracionalida-
des, enquanto controle e adequações comportamentais.
4  Castro (1999, 2000) aponta a distinção entre Sistema de Informação Se há grandes corporações nesta disputa, também há redes
Geográfica (sig) e sintetizador de ilusões geográficas (SIG). Debatendo a
diferenciação ontológica entre o ente e o ser, ele aponta que entre o sig (pa-
de ativistas, como a MapOMatix, um ambiente colaborativo para
cote ou conjunto de pacotes tecnológicos da informática) e o SIG (substância, a criação e edição de mapas.6 Desenvolvido e sustentado por ati-
forma de representação), há uma dissociação necessária entre, de um lado, vistas, ele se propõe a ser um espaço onde colaboradores geram
o que é a funcionalidade, a estrutura e as aplicações do pacote e, de outro,
e complementam mapas, produzem cartografias que se confron-
a dimensão dos impactos filosóficos, éticos e estéticos sobre a produção
geográfica da difusão do SIG enquanto sistema de informação. tam, utilizam bases para suas cartografias, dialogam sobre pro-
5  Strauch, Matoso e Souza (1996) discutem esta inter-relação entre dados e cessos, fenômenos e ações por meio dos mapas gerados na base.
informações de distintas naturezas (“combinações entre dados gráficos e não É, portanto, uma ferramenta técnica, mas também uma ferra-
gráficos georreferenciados em relação a um sistema de coordenadas”) apon-
tando seis tipos de “conflitos” comuns: conflitos entre dados gráficos e não
gráficos; conflitos semânticos; conflitos sintáticos ou estruturais; conflitos 6  O software encontra-se disponível para download em <http://source
entre dados gráficos; conflitos contextuais; e conflitos genéricos. forge.net/projects/mapomatix/>.

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menta política, no sentido de que se pretende um instrumento delineando na própria cartografia. Nossa intenção foi mostrar
para os grupos e também um potencializador de diálogos entre os dilemas políticos engendrados, não trabalhar os embates de
grupos sociais ativistas. concepções sobre cartografias e representações sociais que não
O desenvolvimento do MapOMatix, voltado para dar voz e caberiam nos limites deste artigo. Neste processo em que ato-
permitir a comunicação política de grupos desfavorecidos, parte res sociais subalternos começam a criar suas próprias cartogra-
de uma crítica às tecnologias cartográficas que priorizam a preci- fias, com diferentes formas de interação entre seus conhecimen-
são locacional (“GPS sense”), mas que não são capazes de apreen- tos e saberes tradicionais e os conhecimentos técnicos, as possi-
der as formas espaciais que estruturam narrativas, sentimentos bilidades e os limites da representação cartográfica clássica são
(como as espacialidades de afetividades, do medo), imaginações questionados. Isso devido às novas formas e aos novos instru-
geográficas – e estas, ao serem condicionantes de comportamen- mentos de representação da realidade, que passam a comporta-
tos humanos individuais e coletivos, bem como de interações rem também concepções de espaço e de tempo não apreensíveis
entre sujeitos, são cruciais na formação e estruturação da ação pela racionalidade dominante, racionalidade tecnicista ocidental
coletiva. Aqui vale destacar este cruzamento promovido entre as subjacente à cartografia tradicional. Trata-se de uma busca não
chamadas “cartografias sentimentais” – por meio da ideia de “psi- apenas de captar de outras racionalidades, mas de deixá-las cons-
cogeografia” e a dimensão política e ativista do fazer cartográfico. truir as próprias formas de representação.
Esta convergência, que é resultado de influência de Deleuze O campo do ativismo cartográfico é, portanto, uma impor-
e Guattari,7 permite uma repolitização de elementos simbóli- tante chave de leitura para compreender a complexidade dos
cos, emocionais e subjetivos da experiência espacial humana, por processos que vem provocando tensões na cartografia, a despeito
meio da cartografia. Cartografar a psicosfera se torna, mais do da notável postura de indiferença que ainda predomina entre
que nunca, um instrumento de lutas políticas. muitos cartógrafos. Apesar de hegemônica, esta postura não é
unânime, e acreditamos que cada vez mais cartógrafos, e mais
Notas finais processos de formação e educação cartográfica (envolvendo o
ensino de geografia) atentarão para a relação entre cartografias
O olhar sobre a relação entre cartografias e lutas sociais é tarefa e lutas sociais, formando para novas possibilidades de raciocínios
crucial, sobretudo para aqueles que têm entre suas premissas o centrados no espaço.
comprometimento com as lutas de grupos socialmente desfavo-
recidos – esta é a posição que assumimos. Os exemplos que tra- Referências
balhamos aqui nos evidenciam que este campo é, fundamental-
mente, marcado por tensões, disputas e apropriações variadas Henri Acselrad. Mapeamentos, identidades e territórios. In:
do que é desenvolvido em campos políticos e tradições dialógi- Henri Acselrad (org.). Cartografia social e dinâmicas territo-
cas distintas e antagônicas. A vigilância se torna, portanto, ainda riais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: Ippur/UFRJ, 2010.
mais importante. Alfredo Wagner Berno de Almeida. Nova cartografia social da
Ativemo-nos aqui às experiências práticas, propositada- Amazônia. Manaus: PPGSCA/UFAM (Programa de Pós-Gradu-
mente passando ao largo dos debates acadêmicos que já vêm se ação em Sociedade e Cultura da Amazônia), 2009. Dispo-
nível em: <http://www.novacartografiasocial.com/index.
7  Ver, no Brasil, por exemplo, o livro Cartografias do desejo, de Guattari e php?option=com_content&view=article&id=19:os-3-proje-
Rolnik (2005). tos>. Acesso em: 17 set. 2011.

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Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos. Para ampliar O retorno ao território como
o cânone democrático. Eurozine: 2003. Disponível em:
<http://www.eurozine.com/articles/article_2003-11-03-
condição da democratização da
santos-pt.html>. gestão da metrópole
Murilo Cardoso de Castro. sig – Sistema de Informação Geográ-
Jorge Luiz Barbosa
fico ou sig – sintetizador de ilusões geográficas: desconstrução
de uma forma discursiva. Rio de Janeiro: UFRJ (PPG em geo-
grafia), 1999. Tese de doutorado.
— Sistema de Informação Geográfico (SIG) ou sintetizador de Introdução
ilusões geográficas (sig): desconstrução de uma forma dis-
cursiva. In: Jornal da agb -Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, jul. 2000. Este artigo é um dos produtos do projeto Rio Democracia,1 desen-
Cloude de Souza Correia. Etnozoneamento, etnomapeamento e volvido pelo Observatório de Favelas do Rio de Janeiro2 no perí-
diagnóstico etnoambiental: representações cartográficas e ges- odo de outubro de 2007 a agosto de 2009. O projeto em tela
tão territorial em terras indígenas no estado do Acre. Brasília: visava à construção de inventários críticos de políticas públicas
UnB (em Antropologia Social), 2007. Tese de doutorado. em favelas e periferias urbanas da metrópole do Rio de Janeiro,3
Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contra- tendo como referência os 20 anos de promulgação da atual Cons-
ponto, 2003.
Felix Guattari e Suely Rolnik. Micropolítica: cartografias do 1  O projeto “Rio Democracia: uma agenda para democracia e o desenvolvim-
desejo. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. ento sustentável da metrópole” foi desenvolvido por uma equipe multidis-
ciplinar de trabalho constituída por estudantes universitários oriundos dos
Charles Hale. Does multiculturalism menace? Governance, cul-
espaços populares dos municípios estudados (oitenta bolsistas), orientadores
tural rights and the politics of identity in Guatemala. In: de pesquisa bibliográfica, documental e de campo (Cátia Antonia da Silva,
Journal of Latin American Studies, n. 34, p. 485–524. Cam- Eblin Joseph Farage, Ecio Salles, Ricarda Tavares, Simone Rocha, Marcus
bridge: Cambridge University press, 2002. Vinicius Faustini e Verônica dos Anjos), consultores de formação acadêmica
e de pesquisa (Ivaldo Lima, Ana Torres Ribeiro e Raquel Willardino), coor-
Yves Lacoste. A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer denação executiva (Alberto Aleixo e Fernanda Gomes) e coordenação geral
a guerra. Campinas: Ed. Papirus, 1988. (Jorge Luiz Barbosa). Os resultados dos estudos estão disponíveis no site
Mark Monmonier. How to lie with maps. Chicago: University of <http://www.riodemocracia.org.br>.
Chicago Press, 1996. 2  O Observatório de Favelas do Rio de Janeiro é uma organização social
de pesquisa e ação pública dedicada à produção de conhecimento e de
Milton Santos. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emo- proposições de políticas de direitos sociais. Criado em 2001, o Observatório
ção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. de Favelas (<http://www.observatoriodefavelas.org.br>) se tornou um
Renato Emerson dos Santos. Cartografagens da ação e dos con- organização da sociedade de interesse público (Oscip) em 2003.
3  Os territórios de morada constituintes da linha de base da pesquisa foram
flitos sociais: análise comparativa de observações e repre-
os seguintes: Maré, Rocinha, morro do Dendê, Cidade de Deus, morro do
sentações do espaço-tempo do fazer político. Rio de Janeiro: Pereirão, morro da Providência, Cidade Alta e Anil (Rio de Janeiro); Jardim
Faperj/Uerj, Relatório de pesquisa, 2010. Leal, Jardim Gramacho, Vila Itamaraty, favela do Lixão, Parque Fluminense
Julia Celia Mercedes Strauch, Marta Lima de Queirós Mattoso e e Nova Campina (Duque de Caxias); Comendador Soares e Posse (Nova
Iguaçu); bairro Vermelho e Lote XV (Belford Roxo); Vila Rosali, morro das
Jano Moreira de Souza. Interoperabilidade de bases de dados
Pedras e Parque Araruama (São João de Meriti); Cabral e Chatuba (Mes-
espaciais heterogêneas e distribuídas. I Semana Estadual de quita); Colubandê e Jardim Catarina (São Gonçalo): Vila Ipiranga, Cafubá,
Geoprocessamento (I SEGeo/RJ), 1996. morro do Ingá, morro do Estado, morro da Penha (Niterói).

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tituição brasileira e, com base em suas conclusões, contribuir em diferentes cenários institucionais e políticos. Sem desprezar
para a elaboração de uma agenda propositiva de superação de outros aspectos relevantes, como os de ordem quantitativa dos
desigualdades sociais, enfatizando as possibilidades de democra- investimentos públicos setoriais, o desafio assumido priorizou
tização da gestão urbana. responder como a gestão de políticas públicas permite a inven-
Os estudos foram dedicados a um conjunto de experiências ção da democracia em uma sociedade profundamente marcada
selecionadas em nove municípios da região metropolitana do Rio pela desigualdade socioeconômica e pela distinção territorial dos
de Janeiro: Niterói, São Gonçalo, Belford Roxo, Mesquita, Niló- direitos, cuja expressão mais relevante pode ser identificada nas
polis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, além da condições sociais das favelas e das periferias urbanas.
capital. O inventário em destaque abrigou levantamentos diretos Como proposta de reflexão e prática de desvelamento da
com gestores públicos e organizações da sociedade civil, estudos gestão de políticas públicas, o inventário realizado no âmbito
documentais e pesquisa bibliográfica, dedicados à gestão de polí- do projeto Rio Democracia exprimiu uma reconstrução qualita-
ticas sociais, notadamente no campo da educação, da geração de tiva de processos de formulação, organização e execução de polí-
trabalho e renda, saúde, segurança, habitação, assistência social ticas públicas sociais, sublinhando as dimensões territoriais em
e cultura. que estão inseridas e da garantia de direitos sociais declarados
Para tanto, a realização dos inventários contou com a parti- constitucionalmente.
cipação ativa de uma equipe de pesquisadores populares, consti- Essa proposta se efetivou a partir da pesquisa realizada
tuído por oitenta estudantes universitários residentes em favelas tendo como objeto a implementação de programas e projetos
nos municípios selecionados, devidamente orientados por coor- públicos em favelas e periferias urbanas localizadas em muni-
denadores temáticos e com apoio de consultores e da coordena- cípios anteriormente discriminados. A metodologia utilizada
ção geral do projeto Rio Democracia. Além da contribuição na permitiu a construção de mapas sensíveis, realizados a par-
pesquisa documental e direta (formulação e aplicação de entre- tir das contribuições dos cursos de formação de pesquisa minis-
vistas com gestores públicos e atores sociais), o envolvimento dos trados pelos coordenadores temáticos em estações de trabalho
estudantes em oficinas de vivência e seminários de pesquisa foi dos pesquisadores populares, servindo também como um exer-
decisivo para os resultados gerais e os produtos mais específicos cício de cotejamento entre os estudos de caráter teórico-concei-
do projeto, dentre estes, o presente artigo. tual e documental com a realidade imediatamente vivida pelos
estudantes/pesquisadores.
Mapeamentos cognitivos do inventário Privilegiando a relação sujeito-território, o trabalho de pro-
de gestão de políticas públicas dução do conhecimento visava promover uma apuração da obser-
vação analítica de políticas sociais – moradia, educação, saúde e
Como informamos, o inventário realizado contemplou mapea- assistência social, trabalho, cultura e segurança – em cada espaço
mentos cognitivos de práticas sociais – concepções, percepções, popular de vivência dos pesquisadores.
vivências e experiências – construídas e afirmadas no contexto Considerando a complexidade do inventário de políticas
da gestão de políticas públicas, em particular aquelas voltadas públicas em foco, buscou-se combinar a escala dos espaços popu-
às comunidades populares localizadas nos municípios que com- lares com a escala de comando institucional mais imediata: a ges-
põem o arco metropolitano do Rio de Janeiro. tão municipal. Para tanto foram elaborados e aplicados um con-
Ao enfatizar a construção de práticas sociais, a pesquisa junto de entrevistas dedicadas à produção de conhecimento
inventariante valorizou as relações entre o estado e a sociedade inédito sobre conceitos, práticas e intencionalidades das políti-

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cas públicas sobre ótica de agentes governamentais e de atores 2  Os enlaces institucionais entre os municípios e o governo
sociais diretamente envolvidos em sua realização prática. estadual são frágeis e quando existem são pouco duradouros,
A pesquisa inventariante abrigou diferentes ações públicas e mesmo em se tratando de ações governamentais que são esta-
instituições diversificadas – secretarias municipais e órgãos exe- belecidas nos limites territoriais da administração municipal, a
cutores de políticas sociais, organizações não governamentais, exemplo da educação, da saúde e da assistência social. Há inclu-
Conselhos de Direitos da sociedade civil, Associações de Mora- sive dificuldades extremas de compartilhamento de equipa-
dores e entidades associativas – com o objetivo de construir um mentos para a execução de serviços governamentais. Essa frá-
mapa cognitivo da garantia de direitos e da participação social. gil articulação denota uma fragmentação de programas, projetos
Foram realizadas 210 entrevistas estruturadas com dois grupos e ações governamentais, cujos resultados são os baixos impac-
principais: agentes (secretários e subsecretários municipais, ges- tos positivos nas condições de vida e na experiência democrática
tores e operadores de programas e projetos) e atores (membros de realização de direitos constitucionalmente consagrados. Por
de Conselhos de Direitos, lideranças de organizações da socie- outro lado, os programas e projetos são descontínuos no tempo e
dade civil e dirigentes de organizações não governamentais). A no espaço por sua característica dominante de ações de governo e
diversidade de agentes e atores foi considerada como um filtro não de políticas de estado.
importante para a leitura das ações e das percepções da gestão de 3  A descontinuidade das políticas públicas – ou melhor,
políticas sociais, permitindo apreender o universo complexo de de programas e de projetos – tem sido notória entre gestões que
sua materialidade no território. sucedem e dentro de uma mesma gestão municipal. Tal fato cor-
Das conclusões relevantes do estudo realizado podemos des- responde à inconsistência de ações governamentais na atenção
tacar, especialmente no que concerne à gestão, o empenho e o aos cidadãos, à pulverização de recursos de financiamento e ao
compromisso político-institucional de diversos agentes na formu- emprego seletivo de recursos de pessoal em determinadas ações.
lação e execução de políticas no âmbito da governabilidade muni- 4  Os municípios pouco desenvolvem articulações horizontais
cipal. Todavia, se tornaram evidentes as diversas lacunas, des- de gestão entre si, no sentido de estabelecer políticas comuns, res-
continuidades e fragilidades particulares ao desempenho das tringindo suas ações aos seus limites territoriais administrativos.
políticas públicas como garantia e promoção de direitos para o Trata-se de uma realidade criada não exclusivamente pela limita-
conjunto de cidadãos, particularmente quando se trata de sua ção de recursos de financiamento e/ou de pessoal, mas de enten-
inscrição em espaços populares: dimento do sentido da gestão pública e da primazia do particu-
1  Os municípios são recorrentemente instâncias adminis- larismo sobre a universalização dos direitos. São poucos os ges-
trativas de execução de políticas federais. O papel na formula- tores que têm conhecimento das questões mais relevantes para o
ção, acompanhamento e avaliação de políticas públicas ainda não desenvolvimento integrado de políticas públicas em seus municí-
são escalas acessíveis à esfera municipal. Não há uma plena e efe- pios, mesmo quando se trata de questões de transversalidade mais
tiva descentralização que garanta ao “poder local” um papel mais explícita, a exemplo do saneamento ambiental, do transporte cole-
abrangente em termos de concepção, definição de recursos e exe- tivo e dos serviços de promoção à saúde e à assistência social.
cução de políticas públicas. Na prática, os municípios não conse- 5  Os instrumentos reguladores municipais – dentre eles o
guem converter políticas, programas e projetos federais em polí- Plano Diretor – ainda são ineficazes pelo seu descompasso com a
ticas municipais fundamentadas em suas prioridades, particula- concretude da dinâmica do território usado e incapazes de operar
ridades e demandas locais. Essa situação ressalta a incompletude mudanças substanciais diante da fragmentação e da descontinui-
do pacto federativo preconizado pela Constituição de 1988. dade de suas atribuições normativas.

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6  Há um conflito anunciado entre a Lei de Responsabili- 11  O acompanhamento, monitoramento e avaliação de polí-
dade Fiscal e as demandas sociais por equipamentos e serviços, ticas, programas e projetos implementados ainda são extrema-
fazendo com que a gestão municipal não responda adequada- mente limitados e pouco consistentes para definir resultados e
mente à garantia, à promoção e à reparação de direitos, face às impactos com maior precisão em termos de seu alcance, validade
desigualdades socioeconômicas e à distinção territorial vivida, e oportunidade de promoção de direitos sociais.
em particular no que diz respeito aos cidadãos e cidadãs dos 12  Há uma nítida falta de reconhecimento por parte dos ges-
espaços populares. tores municipais, estaduais e federais do capital material e sim-
7  A esfera municipal ainda não se efetivou como forma pri- bólico das comunidades populares, situação que implica a recor-
vilegiada de participação, acompanhamento e controle social rente assistencialização como matriz de políticas, programas e
democrático de políticas públicas. Conselhos e fóruns de direi- projetos de distintas naturezas, inclusive as de educação, traba-
tos e de controle social permanecem, em sua expressiva maioria, lho e cultura.
com limitações da sua representação de ordem política no que 13  Ainda permanecem formas clientelistas de relação entre
concerne a contemplação de demandas, reivindicações e valores beneficiados e beneficiadores de projetos e programas públicos,
da sociedade civil diante de executivos e legislativos municipais. reproduzindo situações onde serviços são prestados como favor e
8  É notoriamente inconsistente o diálogo e a interação entre não como direitos sociais constitucionalmente protegidos. Essas
secretarias de um mesmo município, reproduzindo concepções formas clientelistas são diretamente responsáveis pela fragmen-
e práticas setoriais na formulação, gestão e execução de políti- tação das ações de programas e projetos, além de estabelecer
cas, programas e projetos, cujas repercussões mais evidentes são uma percepção ofuscada do direito social por indivíduos e grupos
o parcelamento/sobreposição das ações e a seletividade discricio- sociais, particularmente os residentes em espaços populares.
nária/atomização do público beneficiado.
9  O uso do território pela gestão municipal – assim como os A necessária redefinição do sentido
praticados pela gestão estadual e federal –, no tocante à formula- do público na gestão pública
ção e à execução de políticas públicas, continua a ser mobilizado
como palco de ações isoladas e de interesses dispersos de agentes Os termos básicos da equação – gestão pública e garantia de
governamentais e atores sociais. Não se observam políticas para direitos – estão localizados em movimentos que abrigam distin-
uma verdadeira efetividade socioespacial, aqui entendida como tas tensões no campo da formulação e da execução de políticas
processo e conteúdo de mobilização das oportunidades presentes públicas. Estas, por sua vez, resultam da presença de diferentes
no território de modo equitativo e integrador de políticas e ações protagonistas – instituições governamentais, representações da
públicas, o que conduziria à justiça territorial. sociedade civil, partidos políticos, movimentos sociais, entidades
10  Uma lacuna também em comum na administração dos profissionais, organismos multilaterais – envolvidos em arenas de
municípios é a insuficiência de estudos em relação às demandas poder pela definição de instrumentos normativos, dos princípios
presentes nos espaços populares em relação às políticas públicas. regulatórios, do uso de recursos financeiros e da execução pro-
A ausência de diagnósticos participativos limita a realidade das priamente dita de políticas públicas.
favelas e de periferias a uma peça de informações secundárias – Nesse percurso, multiplicam-se os agentes governamentais
e genéricas – que pouco contribui para a identificação dos proble- em instâncias hierárquicas de gestão de políticas públicas, reite-
mas e as potencialidades vividas em cada comunidade e no con- rando a fragmentação notoriamente identificada em programas e
junto territorial formado por elas. projetos setoriais. Acrescenta-se, ainda, que no campo da execu-

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ção também se amplia a presença de atores não governamentais conforma e configura o público? O público pode ser revelado
encarregados pela realização de parte do processo, notadamente pelas suas manifestações concretas de relações e de intencionali-
no que concerne aos programas e projetos inscritos em espaços dades. O público é uma figura da construção política da democra-
populares. cia, portanto uma expressão de poder político.
Observa-se, portanto, uma tensa e contraditória rede de A distinção daquilo que é privado do que é público é decisivo
mediações institucionalizadas entre as legítimas demandas de na consolidação de democracias liberais. Recorre-se a essa sepa-
direitos sociais e as políticas (programas, projetos, ações) públi- ração em tais sociedades como dispositivo de abrigar o mercado
cas em curso, inclusive fazendo dessas mediações um capital polí- e a propriedade privada em um estatuto próprio, sem as devi-
tico personalizado para agentes governamentais e atores da socie- das referências de universalidade para o compromisso ou fun-
dade civil em sua ação no território. ção social. Por outro lado, sua indistinção sob a leitura do público
Por outro lado, se localiza no campo dos direitos uma institu- como estatal, instância por excelência de todos, consagra a ideia
cionalidade política relevante, cuja matriz é a própria Constitui- de público como sendo o comum, pois o que tornaria comum (e
ção cidadã, com seus desdobramentos em conteúdos de promo- comuns) aos indivíduos e grupos sociais seria a sua posição de
ção e proteção social (Loas, SUS, Suas). Emergentes da luta pelo igualdade afigurada com o uso de bens, serviços e equipamen-
reconhecimento de novos direitos, as reivindicações e proposi- tos estatais. No extremo da definição, podemos inferir que o mer-
ções sociais (traduzidas em conferências setoriais, Conselhos de cado e a propriedade privada particular não precisam responder
Direitos e movimentos sociais) expressam a entrada na cena polí- por nada que se possa equivaler ao bem estar social fora de sua
tica de novos sujeitos sociais, implicando a construção de garan- própria e individual esfera: a privacidade.
tias para efetividade de políticas públicas face a face com as desi- Em seu sentido mais óbvio, o público aparece sempre como
gualdades profundas da sociedade brasileira. Entende-se o por- inconcluso, provisório e flexível. Por isso, geralmente abstrato
quê do uso da expressão “arena de poder” para definir com maior e, assim sendo, perfeitamente moldável às retóricas discursi-
precisão o sentido da gestão pública em nosso país. vas e à codificação estatística. Definir com clareza quem é e o
Conhecer o significado da relação entre a garantia (promo- que é o público das/nas políticas públicas se torna imperioso, na
ção e reparação) de direitos e a política pública é, em termos medida em que seu curso inicial e final será delimitado (e demar-
mais abrangentes, observar em que momento e em quais luga- cado) com intencionalidades, relações e articulações que envol-
res o significado do público comparece de modo efetivo no dese- vem indivíduos, grupos e classes sociais em inscrições territoriais
nho global e/ou temático da política. E, consequentemente, inda- distintas e desiguais. E, além dos papéis assumidos por cada das
gar pelas normativas éticas que permitem garantir ao público uma personas sociais na arena de poder das políticas públicas se
o seu estatuto de cidadania. A conclusão dessas questões certa- faz necessário balizar direitos e as instâncias como possibilidade
mente fará do público não mais uma figura de retórica ideoló- de criação do público em sua plena dimensão de cidadania.
gica, mas uma referência concreta de sujeitos socialmente situa- Considerando que os princípios constitucionais e os marcos
dos no mundo. regulatórios são orientações fundamentais para a formação de
Busca-se, portanto, reconhecer a complexidade do sentido instâncias de definição de investimentos, de controle social e de
político e social do público, superando suas definições de objeto/ execução de políticas governamentais, a questão da legalidade
alvo, assim como o seu tratamento usual de consumidores ou torna-se inseparável dos processos de legitimidade das instâncias
cliente no seio de políticas governamentais. Entretanto, quem de decisões. A participação cidadã como expressão popular é por

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si uma expressão do direito, pois nos remete ao ato de substancia- com a sua acomodação às demandas localizadas. Acrescenta-se o
lizar direitos e responsabilidades com o outro. Cabe ainda inda- conflito de tais instâncias serem organizadas por meio de pautas
gar qual seria o sentido dessa participação e, sobretudo, quais setoriais e, evidentemente, em desarticulação recorrente quando
são os seus fóruns adequados de representatividade e de poder se trata da elaboração de uma agenda comum de direitos. Repro-
político. duz-se no âmbito dos Conselhos a divisão técnica/setorial que
É preciso insistir, ainda, que a institucionalização da política permeia os programas e projetos governamentais.
pública dependerá do conteúdo de sua afirmação legal e de sua E, como situação suplementar das dificuldades vividas nos
legitimidade social, definindo o modo pelo qual os propósitos, Conselhos, destacam-se os limites políticos, materiais e funcio-
as práticas e as experiências ganham materialidade no espaço- nais identificados para o exercício da sua autonomia, como ele-
tempo da existência humana. mentos decisivos para o ainda frágil cumprimento do papel que
Redefinir o modo de concepção e de formulação de políti- lhes foram outorgados pela Constituição. Para tanto, o fortaleci-
cas públicas é decisivo, uma vez que corresponde a distintas lei- mento dos Conselhos de Direitos será – no sentido mais amplo e
turas do significado de democracia e, portanto, de cidadania e da pleno de uma cidadania participativa – uma das medidas práticas
participação social. A interpretação e a representação vigente nas das mais importantes para a articulação dos direitos constitucio-
instâncias da concepção e formulação de políticas governamen- nais às políticas públicas.
tais, definidas como públicas, se afirmam realmente como espaço Contudo, quais são as outras esferas possíveis do processo de
público de tomada de decisões participativas? afirmação do público como orientação e instância de articulação
Ainda são frágeis os fóruns onde as políticas públicas gover- dos direitos sociais com as políticas públicas? Pautar essas novas
namentais são abordadas em dimensões socialmente abrangen- instâncias em uma agenda de promoção de direitos nos parece
tes. Embora se reconheça o aumento quantitativo de Conselhos imperiosamente necessário. Não se trata, entretanto, de denomi-
de Controle Social (saúde, educação, assistência social, cultura, nar instituições cujo notório compromisso com as causas popula-
dentre outros) nos municípios estudados, a sua atuação vem se res as autoriza e/ou as evidencia como representativas do público.
limitando a interpretação de controle social como mera fiscaliza- A proposta aqui defendida é outra! É ir além de indicações formais
ção, reiterando o seu ofuscamento como instância de participa- para encontrar possibilidades de produção de espaços para
ção social no momento de concepção e de formulação de políticas (re)união de práticas exemplares e referências legítimas para a
públicas, momento essencial para validação da democracia e da articulação desejada entre direitos sociais e políticas públicas.
participação cidadã. Para tanto, as instâncias estatais (federais, estaduais e muni-
Em entrevistas realizadas com membros de Conselhos de cipais) de formulação, regulação e execução de políticas públi-
Controle Social, assim como para os Conselhos de Direitos, se evi- cas precisam exercer um diálogo mais profícuo e, por isso, mais
denciaram ambiguidades, distorções e conflitos no exercício de democrático, com as instâncias participativas da sociedade civil,
seus papéis. A ambiguidade se reproduz cotidianamente no seu sobretudo as criadas com objetivo de aperfeiçoar democratica-
funcionamento, ora como instância de executivos municipais ora mente as ações e intenções da gestão pública. Trata-se, portanto,
como fórum de demandas populares. da reinvenção do público como lugar do exercício pleno da cida-
Advém daí as distorções, uma vez que são assumidos papéis dania e das escolhas políticas em relação ao tempo presente, aos
excessivamente comprometidos com a aprovação do uso de territórios vividos e, sobretudo, ao futuro da sociedade.
recursos sem a devida e efetiva formulação das políticas e não

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O retorno ao território como possibilidade de gestão tos, de todas as ações e todas as intenções humanas possui a sua
democrática da metrópole vivência real da política em espaço/tempos demarcados. Esses
encontros no território também expressam permanente tensão
No campo das relações das distintas personas envolvidas na for- e, não raramente, conflitos, o que resulta em possibilidades, as
mulação, gestão e execução de políticas públicas, em particular quais o mundo nos apresenta e onde são vividas distintivamente,
as sociais, podemos afirmar que princípios, normas e instrumen- segundo as relações entre os sujeitos sociais em diferentes escalas
tos somente podem ser efetivamente observados quando territo- geográficas da vida em sociedade.
rializados. É no uso do território pela política pública que emer- Retomando o debate das políticas públicas – e sua direta rela-
gem (e convergem) intencionalidades, disputas e negociações ção com o território –, é necessário observar que as políticas (pro-
políticas que envolvem, inclusive, a relativização desses mesmos gramas, projetos) públicas, ao incidirem seletivamente no espaço
princípios e práticas confrontando normas e instrumentos cria- geográfico, (re)configuraram territórios. Isto significa dizer que a
dos para viabilizar as ações públicas. política pública implica o estabelecimento de formas e conteúdos
Há uma dimensão da realização da vida em sociedade que que mobilizam e conduzem fluxos materiais e imateriais do e no
nomeamos de território; espaço-tempo demarcado pelas inten- território e, por isso, redefinem sentidos e expectativas sociais.
ções e ações humanas, emergindo como recurso e abrigo que exte- O território tem, portanto, centralidade, já que é nele que,
rioriza a existência individual e coletiva (Santos, Souza e Silveira, como visto, se concretiza o mundo, onde se recebe seus impactos
1994). A sociedade, ao se apropriar e fazer uso de um território, das intervenções do Estado e das corporações e onde substancia-
compartilha o domínio das condições de produção e reprodução lizamos os direitos sociais. É também onde residem as possibilida-
da vida. O território significa a constituição necessária de laços des reais da construção da política como exercício da cidadania.
que se definem pela apropriação e uso das condições materiais, e Reconhecendo o importante papel do território para a rea-
também dos investimentos simbólicos, estéticos e éticos que reve- lização da vida, vislumbra-se a sua necessária incorporação no
lam o sentido da própria sociedade instituída (Santos, 2002). processo de formulação, execução e avaliação de políticas públi-
Pertencemos a um território, o guardamos, o habitamos e cas e da própria construção do significado do público. E, no que
nos impregnamos dele ao realizar nosso modo de existir. Pode- concerne às favelas e às periferias da metrópole, as seguintes pre-
mos afirmar, então, que há uma forte relação entre cidadania e missas de uma agenda participava são extremamente valiosas:
território. A primeira delas é que, quando vivemos em um mesmo 1  Reconhecer a legitimidade dos espaços populares: Promover
território, não é possível admitir a distinção entre categorias infe- a superação das representações hegemônicas dos espaços popu-
riores e superiores de cidadãos, sendo assim a questão da igual- lares como territórios sem ordem, sem lei, sem civilidade; ou seja,
dade é um princípio irrefutável. Afirmar que a cidadania significa uma não cidade marcada pela violência, pelo caos e pela miséria.
o exercício de direitos e deveres é falar da busca permanente por A construção de representações públicas positivas em relação aos
sua efetivação, sobretudo quando vivemos em sociedades mar- espaços populares é fundamental para a qualidade de bens e servi-
cadas por profundas desigualdades sociais e distinções territo- ços destinados às comunidades. Em outras palavras, romper com
riais. É nesse campo de forças que emerge o sentido mais rico do o estigma de coisas de pobres e para pobres muda o sentido das polí-
debate a respeito da gestão pública como mediação possível da ticas públicas em termos de eficácia e efetividade, criam-se com-
efetivação territorial da cidadania. promissos políticos e vínculos de afetividade entre os agentes ope-
O retorno ao território é o fundamento para pensar a gestão radores locais (servidores do Estado) e os grupos locais, além de
urbana democrática, uma vez que o cotidiano de todos os sujei- mobilizar a autoestima da comunidade nas ações públicas.

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2  Mobilizar o capital social das comunidades populares: Criar no que tange à sua capacitação para a função de protagonistas de
condições locais para o desenvolvimento autônomo e emancipa- políticas públicas. O acompanhamento e a avaliação processual
dor da situação de vulnerabilidade social como matriz de orienta- dessas políticas figura, então, como um coroamento do exercício
ção da formulação de conceitos, ações e metas das políticas públi- pleno da cidadania, com base em ações válidas e validadas, que
cas, ao incentivar o protagonismo e a cooperação, ensejando a corporificam sujeitos de direitos.
captação e multiplicação de recursos (humanos, materiais e sim- 6  Construir redes de participação social: Mobilizar diferentes
bólicos) endógenos na solução de problemas locais. sujeitos sociais por meio das instituições locais, buscando estabe-
3  Estimular a articulação sociopolítica entre as organizações lecer o reconhecimento político de intervenções diretas nas polí-
locais e destas com as do Estado em seus diversos níveis federativos ticas públicas, promovendo o exercício da cidadania como o de
(federal, estadual e municipal): Para criar condições de ampliar o direitos e responsabilidades comunitárias. Ao ampliar os níveis
escopo social e integrar políticas públicas se faz indispensável à decisórios, criam-se espaços públicos para além da esfera esta-
articulação das organizações populares com o Estado, tendo no tal, contribuindo para uma democracia participativa legítima e
município sua escala de relação privilegiada, promovendo maior não meramente de processos formais de consulta, pois trata-se da
integração entre agentes e atores de ações públicas no territó- criação permanente e diferenciada de compartilhamento de deci-
rio. A integração proposta deverá, entretanto, ser praticada pre- sões e responsabilidades. Essa dimensão inclui os compromis-
servando a autonomia das organizações locais na diversidade sos cívicos, centrados no processo público de participação ética
de representações comunitárias e, ao mesmo tempo, superando que, por sua vez, confere a identidade de pertencer a uma mesma
a fragmentação de responsabilidades no tocante à execução de coletividade territorialmente inscrita.
ações, programas e projetos de origem governamental, hoje tão
comum aos espaços populares. Conclusões propositivas
4  Garantir a continuidade e a ampliação das ações públi-
cas exemplares realizadas nas comunidades populares: Trata-se Na especificidade do projeto Rio Democracia, a Constituição de
da retomada da confiança dos moradores nos agentes e nos ato- 1988 foi o marco temporal da leitura da conquista de direitos –
res das instituições envolvidas diretamente com o fazer das polí- na forma da lei – por parte da sociedade. Por outro lado, a metró-
ticas públicas. Para além da garantia de continuidade das ativida- pole do Rio de Janeiro foi o marco espacial da efetivação das con-
des, é criado um sentimento de reconhecimento de suas deman- quistas de direitos como conteúdo da vida social.
das e a percepção de direitos individuais e coletivos é ampliada. Esse recorte espaço-temporal de garantia e realização dos
Por outro lado, o reconhecimento das experiências poderão ser direitos abrigados na letra constitucional, como já aludimos, con-
referências para renovar a formulação e a execução de políticas duziu distintas experiências de políticas públicas em territórios
públicas consistentes e duradouras. da metrópole ainda profundamente marcados pela desigualdade
5  Desenvolver metodologias participativas de acompanha- social e, cuja presença soberana e republicana do Estado ainda é
mento e de avaliação de políticas públicas: Consiste em fortale- pouco expressiva na sua missão democrática de promoção e repa-
cer a atuação de instituições locais e de cidadãos para um efetivo ração de direitos sociais.
controle social de aplicação de recursos, de eficácia das ações, do A construção de uma agenda de gestão urbana democrá-
cumprimento de metas e da realização de objetivos estabeleci- tica nos termos aqui propostos advém dos inventários de políticas
dos nas políticas. Deve-se ter em conta a preparação dos cidadãos públicas realizados em diferentes contextos de espaços popula-

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res. O conhecimento oferecido pela pesquisa inventariante permi- ética e estética. Dimensões que compõem o ser social de forma
tiu a formulação de proposições nascidas do empenho articu- integral e indivisível e que devem orientar a formulação e execu-
lado da prática teórica, metodológica e empírica da investigação, ção de políticas públicas como instrumento de garantia, promo-
envolvendo a tríade política pública – direitos sociais – território, ção e reparação de direitos sociais.
sob a dimensão da experiência democrática em favelas e perife- 3  A efetividade da legislação e dos instrumentos regulatórios:
rias da metrópole. Nas últimas décadas, houve um importante avanço na elabora-
A proposta a seguir é fruto e semente do empenho traduzido ção de legislação pertinente aos direitos sociais e em seu conse-
pela equipe de pesquisadores do projeto Rio Democracia. Pre- quente desdobramento em marcos regulatórios de políticas públi-
tende-se com essa proposta oferecer subsídios às instituições da cas. Pode-se afirmar, inclusive, que, em termos de saúde e assis-
sociedade civil, aos movimentos sociais e ao conjunto de cidadãos tência social, a legislação brasileira é uma das mais completas
e cidadãs, no sentido de qualificar e ampliar os processos de par- do mundo. Entretanto, a eficácia e a efetividade de leis e normas
ticipação social como possibilidade da garantia, promoção e repa- regulatórias ainda não são integralmente realizadas. Essa limita-
ração de direitos sociais, em particular no que concerne às favelas ção não está contida na oportunidade maior ou menor de recursos
e periferias da metrópole do Rio de Janeiro. disponíveis para substancializar a legislação. Há atravessamen-
1  A afirmação de sujeitos corporificados de direitos: É impe- tos de ordem política, ideológica e social que interferem na apli-
rioso considerar os moradores dos espaços populares como cida- cação completa e/ou progressiva da legislação. O fortalecimento
dãos que devem ter seus direitos sociais garantidos na forma de da esfera pública de decisão e controle de políticas sociais se faz
políticas públicas afeiçoadas aos seus territórios. Trata-se, por- imediatamente necessário para o cumprimento democrático dos
tanto, de um princípio da validação plena da vida social, democra- avanços no plano dos instrumentos normativos institucionais.
ticamente orientada e configurada nos usos legítimos do território 4  A produção, sistematização e democratização das informa-
por grupos sociais marcados por profundas desigualdades sociais. ções: No mundo contemporâneo, a informação é um dos princi-
Deve-se entender, portanto, que a garantia dos direitos a partir do pais atributos de poder político e social. Portanto, a sua produ-
reconhecimento das demandas e das necessidades apresentadas ção, sistematização e, principalmente, a sua difusão democrática
pelos próprios sujeitos desses territórios é o caminho mais preciso se configuram como condição do exercício pleno da cidadania. As
para se alcançar a justiça territorial, que assegure aos diferentes informações sobre a gestão pública não podem estar confinadas
territórios instituintes da cidade as condições para a construção em segmentos burocráticos de poder. Além de produzidas e sis-
do cidadão pleno e da integralidade dos direitos sociais. tematizadas, situação ainda distante em muitas esferas da gestão
2  A cidade como diversa, una e plural: Compreender a cidade do Estado, a informação precisa circular como um bem público,
de forma ampla e plural, portanto composta por diferentes terri- possibilitando ao cidadão não somente fiscalizar o poder público,
tórios que fazem parte de uma mesma totalidade, é reconhecer mas também contribuir de modo eficaz nas escolhas e decisões de
as especificidades de cada espaço construído histórica e social- importância para seu bairro, sua cidade, município, estado e país.
mente. Isto pressupõe efetivação dos direitos dos seus habitan- É preciso compreender, entretanto, que estamos nos referindo
tes de modo indivisível. Assim como a cidade, na perspectiva da não exclusivamente à informação produzida por gestores e agên-
democracia territorial, precisa ser considerada de modo integral, cias de pesquisa, mas àquela gerada também por e para a diver-
moradores dos diferentes espaços populares devem ser conside- sidade de territórios que compõem a metrópole, em especial os
rados em suas múltiplas dimensões: social, econômica, biofísica, espaços populares. Espaços estes que, na maioria das vezes, apa-

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recem nos dados estatísticos apenas como foco de problemas. É ração de seus modos de vida compartilhados. Em síntese, a ges-
fundamental que um novo olhar seja lançado sobre esses espa- tão democrática da metrópole deve reconhecer e mobilizar os
ços, com a utilização de sistemas mais complexos e completos diferentes sujeitos sociais em seus contextos territoriais, em uma
de informação, visando ao desenvolvimento das potencialidades perspectiva sistêmica e ampliada da justiça social.
neles existente e a sua integração ao espaço metropolitano. Para
tanto, é necessário considerar as experiências e percepções que Referências
os moradores acumulam na vivência cotidiana de sua comuni-
dade, capacitar esses sujeitos para que sejam também produtores Jorge Barbosa (org.). Rio democracia: relatório final. Rio de
de informação, diminuindo as chances de sua manipulação ou da Janeiro: Observatório de Favelas. Disponível em: <http://
apropriação utilitária de seus saberes. www.riodemocracia.org.br>. Acesso em: 5 dez. 2010.
5  Justiça territorial e gestão democrática da metrópole: A jus- Quim Brugué e Ricard Gomà (orgs.). Gobiernos locales y políticas
tiça social constitui um elemento complexo e indissociável da públicas. Barcelona: Editorial Ariel, 1998.
construção da democracia em sua concretude, o que exige a refle- Adolfo Ignacio Calderón. Democracia local e participação popu-
xão do significado do conceito de justiça territorial. A distinção lar: a lei orgânica paulistana e os novos mecanismos de partici-
da garantia e a distribuição de direitos que marca a vida social pação popular. São Paulo: Cortez Editora, 2000.
da metrópole e nela, nos conduz à superação das leituras do ter- José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil: longo caminho.
ritório como um mero conjunto de objetos socialmente produzi- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
dos, os quais devem ser repartidos e rearrumados de forma equâ- Maria do Carmo Carvalho e Ana Cláudia Teixeira. Conselhos
nime. Para tanto, se faz decisiva a articulação entre concepção e gestores de políticas públicas. São Paulo: Polis, 2000.
prática política em relação ao uso do território como distribuição Joan Botella Corral (org.). La ciudad democrática. Barcelona:
justa dos direitos sociais. Justiça territorial é, pois, uma das con- Ediciones del Sebral, 1999.
cretizações da democracia e uma das condições para o exercício Henri Lefebvre. O direito a cidade. São Paulo: Documentos, 1969.
pleno da cidadania. A justiça territorial reconhece a relevância Silvana Maria Pintaudi. Participación ciudadana en la gestión
das diversas escalas de ação entrecruzadas no território metro- pública: los desafíos políticos. Scripta Nova, Revista Electró-
politano. As escalas territoriais – de concepção, de ação e da vida nica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barce-
– são efetivas arenas políticas, configurando-se como contextos lona, v. IX, n. 194, 1 ago. 2005.
sociais específicos e propícios ao diálogo, à convivência e à nego- Milton Santos. O retorno do território. In: Milton Santos, Maria
ciação democrática das diferenças (exprimindo, portanto, o sen- Adélia de Souza e Maria Laura Silveira (orgs.). Territó-
tido político do público). Entendemos, por isso, que não haverá rio: globalização e fragmentação. São Paulo: Editora Hucitec,
gestão democrática da metrópole que se pretenda transforma- 1994.
dora sem levar em consideração a complexidade de contextos e — O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2002.
das escalas das relações humanas mediadas pelo território, com Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa. Favela: alegria e
suas demandas de direitos, seus sujeitos sociais corporificados e dor da cidade. São Paulo / Rio de Janeiro: Senac/X, 2005.
seus horizontes cívicos. Isso é o que viabiliza o encontro da jus-
tiça social com o território, em um processo de construção plu-
ral e diverso, onde protagonistas atuam criativamente na elabo-

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Cidade e compartilhamentos da
vida coletiva

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Os pequenos e a cidade: o município de
São Gonçalo como um livro de espaços
Maria Tereza Goundard Tavares

(…) Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém


como linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas gran-
des janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos
para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento ris-
cado por arranhões, serraduras, entalhes, esfoladuras…
(Calvino, 1998)

Viver nas cidades hoje é a realidade de mais de 80% dos brasilei-


ros (IBGE, 2010). Segundo os números oficiais dos últimos cen-
sos demográficos, nas grandes cidades brasileiras, denominadas
de megalópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e
outras, vivem milhões de pessoas, o que torna essas cidades ver-
dadeiros formigueiros humanos.
A enorme concentração demográfica nas cidades – o estado
do Rio, por exemplo, registra a maior taxa de urbanização do
Brasil, tendo 91% de sua população vivendo em cidades –, ocor-
rida especialmente nos últimos 30 anos, relaciona-se com os com-
plexos processos de transformação territoriais advindos do nosso
modelo de desenvolvimento capitalista concentrador, de sua ação
perversa nas áreas rurais.
O processo acelerado de urbanização brasileira vem atin-
gindo, nesse começo de século, índices insuportáveis, agra-
vando uma desigualdade urbanística que se manifesta em uma
apropriação desigual das metrópoles e, sobretudo, na violência
urbana, que envolve a todos, em maior ou menor intensidade,
independente de seu contexto espacial.
A questão urbana, em especial o inchamento das metrópoles1

1  Os índices demográficos do IBGE (2010) apontam o crescente número de


cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes, sendo que, em 2002, 30%
da população brasileira urbana aglomera-se em apenas nove cidades do país,
o que torna o direito à cidade um constante desafio.

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e a degradação ambiental a elas associadas, vêm exigindo que Janeiro em densidade demográfica. De acordo com os dados pre-
a discussão sobre a habitabilidade da cidade transcenda o meio liminares do último censo (IBGE, 2010), estimou-se um total de
técnico (dos especialistas), tornando-se uma discussão política 999.901 mil habitantes na cidade. Desse total, 475.336 mil do
de toda a sociedade, uma vez que nossa histórica desigualdade gênero masculino, e 524.565 mil são do gênero feminino.
social e econômica (renda, escolaridade, desemprego, violên- A questão do real número de habitantes do município tal-
cia) é complexificada pela nossa desigualdade urbanística (con- vez seja um dos primeiros dilemas que a cidade tenha de investi-
dições de moradia, saneamento, transporte etc.). Esta constata- gar e administrar, pois existe um grande contraste entre os núme-
ção implica a afirmativa da inseparabilidade dos aspectos sociais, ros oficiais de sua população, apontados pelo IBGE (999.901), e
econômicos, jurídicos e culturais dos aspectos urbanísticos e aqueles estimados extraoficialmente por meio da imprensa local,
ambientais (Maricato, 2000). dos órgãos da prefeitura municipal, dos empresários e demais
Portanto, é a cidade um dos lugares onde o mundo se move instituições da cidade. Para os últimos, a cidade teria quase um
mais, pois as ruas da metrópole têm sido, especialmente para as milhão e trezentos mil habitantes.
camadas populares o lugar mais apropriado do “correr atrás”.2 O fato é que, com essa imprecisão quantitativa, o município
Correr atrás do emprego, da escola, do posto de saúde, do lazer, do deixa de receber do estado e da União um montante considerá-
espaço para se ganhar algum trocado, passear ou simplesmente vel de recursos financeiros que poderiam e deveriam ser utiliza-
zoar, como nos contam muitas das crianças com as quais trabalha- dos em políticas sociais na cidade, visando melhorar a qualidade
mos em escolas públicas dos bairros da periferia de São Gonçalo. de vida do(a) gonçalense.
Concretamente, esse déficit de recursos, com certeza, contri-
Quantas vezes eu já saí por aí, pedindo, correndo atrás… bui para que a cidade, apesar de ser a segunda em termos demo-
não tem arroz, não tem feijão… eu boto a mão na cabeça… gráficos-populacionais, ocupe a posição de vigésimo segundo
Fulano, o problema é o seguinte: Tô com um monte de crian- (22º) município em qualidade de vida, entre os 91 municípios do
ças lá em casa. Você não tem uma roupinha pra eu lavar? Tô Estado do Rio de Janeiro.3
precisando… pra comprar um quilo de arroz, um quilo de Os indicadores sociais recentes do município, aliados à taxa
feijão… quando eu vejo, eu lavo, passo… quando venho, já média de crescimento anual de 1,48% da população gonçalense,
venho com dinheiro pra comprar as coisas. Isso não é feio, apontam a necessidade urgente de um debate e de um (re)pla-
não! (…) (fala extraída da entrevista realizada com C., da nejamento urbano, tendo em vista que o Plano Diretor, ainda
“família Barbosa”, mãe de quatro crianças da escola, em vigente na cidade, foi elaborado no começo da década de 1990.
julho de 2002). O sistema de saneamento, de saúde, de educação, de trá-
fego, de trabalho, de cultura e lazer, de segurança, enfim, a infra-
Na atualidade, em termos populacionais, o município de São estrutura urbana do município encontra-se totalmente em crise,
Gonçalo representa o segundo município do estado do Rio de dificultando – senão impedindo – uma melhor qualidade de vida
na cidade, colocando em risco sua própria habitabilidade.
2  A expressão correr atrás faz parte do vocabulário das camadas populares Essas questões não são recentes, possuem explicações e
urbanas, denotando a “gramática da viração” que as mesmas materializam
na cidade em busca de sua sobrevivência. Como em nosso país, os(as) pobres,
os(as) oprimidos(as) e os(a)s subalternos(as) historicamente dependem de suas 3  Dados retirados do relatório do índice de qualidade de vida no Estado do
astúcias para a materialização de suas condições da vida, correr atrás expres- Rio de Janeiro, elaborado pelo Centro de Informações e Dados do Rio de
saria uma tática-síntese dessas operações de caça (Certeau, 1994) na cidade. Janeiro (Cide), dezembro de 2001.

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interpretações sociológicas, antropológicas, políticas, econô- de delimitação da pesquisa, venho refletindo algumas questões
micas, culturais, entre outras. que se imbricam na genealogia acerca do impacto da cidade na alfabetização de crianças das
da cidade, em sua formação histórico-social, pois as marcas da classes populares, buscando discutir, entre outras coisas, as pos-
exclusão social na materialidade urbana podem ser consideradas sibilidades educativas da metrópole e suas inter-relações com
muito mais estruturais do que conjunturais. a escola, na expectativa de contribuir para a ampliação do que
Para melhor compreendê-las, foi fundamental realizar um seja alfabetização, bem como sua problematização à luz de outra
inventário (no sentido gramsciano) do município, investigar seu epistemologia, a epistemologia da complexidade (Morin, 2000;
passado “nas linhas de suas mãos”, perscrutando os indícios, as Morin e Le Moigne, 1999).
evidências, os vestígios dos processos constitutivos da cidade. Foi Historicamente, o pensamento ocidental moderno especia-
necessário ler a cidade pelo avesso, a contrapelo, como nos ensi- lizou-se em separar e isolar as coisas, os objetos de seus contex-
nou Benjamin, procurando realizar nesse processo permanente de tos, na crença cartesiana de que, compartimentando a realidade
reinterpretação do passado um diálogo auspicioso com o presente. em disciplinas isoladas, maior e melhor seria a inteligibilidade da
Temos consciência, porém, de que os problemas que atra- realidade investigada.
vessam as cidades brasileiras, especialmente as grandes áreas Segundo Morin e Le Moigne (1999), a tradição cartesiana
metropolitanas, como é o caso de São Gonçalo, não são recen- deixou como herança à modernidade um tipo de pensamento
tes. As questões referentes à expansão urbanística desenfreada disjuntivo, que fundamentalmente separaria o sujeito-pensante
e à ausência de infraestrutura se inscrevem no bojo do perverso (res cogitans) da coisa externa (res extensa), colocando como
modelo de urbanização implementado no país, principalmente princípio de verdade um paradigma de conhecimento “claro e
nas últimas décadas do século passado. distinto”, cujo objetivo científico seria a eliminação da complexi-
Na cidade de São Gonçalo, local de minhas atuais “andanças dade dos fenômenos, visando revelar a ordem simples a que estão
interessadas” como professora-pesquisadora, o projeto neoliberal submetidos.
em curso vem acelerando a desestruturação da cidade, acentu- A este modelo de pensamento que rege o pensamento oci-
ando sua fragmentação, buscando consolidar as fronteiras obje- dental desde o século XVII, Morin (ib.) vai opor a necessidade de
tivas e subjetivas entre cidadãos e não cidadãos, entre incluídos um pensamento complexo que procuraria integrar modos simpli-
e excluídos, entre o povo do asfalto4 e o povo da periferia, difi- ficadores de pensar, recusando, porém, suas consequências redu-
cultando, senão impedindo, a edificação de uma cultura urbana toras, fragmentadoras e unidimensionadoras. O pensamento
mais identificada com a democracia e a inclusão. complexo, na perspectiva “moriniana”, não teria a pretensão de
Com base em minha experiência na cidade5 e na tentativa controlar, mutilar, dominar o real.
Sua perspectiva é o estabelecimento de um diálogo com o
4  Estou denominando povo do asfalto os moradores da cidade que habitam real, uma negociação na busca de sua compreensão, com todas as
os espaços dotados de infraestrutura urbana e considerados não degradados
suas ambiguidades e incertezas:
aos olhos do capital. O povo do asfalto caracterizaria os habitantes da cidade
formal, dos espaços (material e simbolicamente) estruturados da metrópole.
Aqueles que de certa forma estariam incluídos no “direito à cidade”. À primeira vista, a complexidade é um tecido (complexus:
5  Meu contato com São Gonçalo se deu apenas recentemente, a partir da o que é tecido em conjunto) de constituintes heterogêneos
minha inserção profissional na FFP, no bairro do Paraíso. Apesar de ter morado
inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno e do
parte da vida em Niterói, meu imaginário sobre São Gonçalo foi constituído
a partir de outros registros semióticos, reportagens, fala de amigos e/ou de múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efetiva-
alunos(as), excluindo uma vivência pessoal, isto é, uma experiência da cidade. mente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroa-

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ções, de terminações, acasos, que constituem o nosso mundo cional, pelas mass medias, pelas texturologias6 da cidade e, como
fenomenal (Morin e Le Moigne, 1999, p. 20). nossa pesquisa faz crer, continua sendo reforçada na cultura
escolar, com poucos indícios (pelo menos na rede municipal de
O pensamento complexo proposto por Morin implicaria a recupe- São Gonçalo – espaço de minha investigação interessada) de um
ração da unidade e diversidade do todo-partes, já que complexus maior questionamento e complexificação.
significa “o que é tecido em conjunto”, o que nos exige o esforço Portanto, ao relacionar infância, alfabetização e cidade,
de construção de sistemas de pensamento que superem o para- visando à complexificação do que seja alfabetizar na contempo-
digma da disjunção e da clássica redução interpretativa na arqui- raneidade, estamos defendendo que a cidade é como um livro de
tetura do pensamento e superem as formas de conhecimento espaços, onde os diferentes textos, imagens, mensagens, corpos,
modernas que remetem a forte simplificação e abstração na com- fluxos se hibridizam, configurando uma poderosa mídia, cujos
preensão de mundo. O pensamento complexo é o pensamento significados atravessam o sujeito citadino, exigindo outras formas
que se esforça para unir e diferenciar, pois se: de percepção, leitura, de ensino e aprendizagem.
O meio tecnico-cientifico-informacional que a cidade contem-
Tentarmos pensar no fato de que somos seres ao mesmo porânea condensa, e do qual a escola também é uma dimensão,
tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espi- expõe ao sujeito citadino uma proliferação de signos, mensagens,
rituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta imagens, fluxos que o hábito de habitabilidade da cidade (Ferrara,
conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos 1993), na maioria das vezes, dificulta (e na maior parte das vezes
esses aspectos, enquanto o pensamento simplificante separa impede): a sua percepção, leitura e compreensão.
esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução Entendo, assim, que aprender a reparar a cidade contem-
mutilante. Portanto, é evidente que a ambição da complexi- porânea implica em enxergar a multiplicidade dos fluxos de sig-
dade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos nificações que a constituem. A heterogeneidade desses fluxos
cortes entre as disciplinas, entre categorias cognitivas e entre (comunicacionais, políticos, econômicos, disciplinares, ritualísti-
tipos de conhecimento (Morin e Le Moigne, 1999, p. 176–7). cos etc.), bem como seus impactos nas subjetividades contempo-
râneas, nos remetem ao exercício de refletir e vivenciar a cidade
Pensar a alfabetização e, de forma mais ampla, a própria cul- como um dos espaços privilegiados de educação.
tura escrituralística ocidental (Certeau, 1994), à luz da comple-
xidade, implica compreendê-la para além das questões meto- La ciudad, en la perspectiva educativa, puede ser considerada
dológicas que dominam as discussões no cotidiano escolar, a partir de tres dimensiones distintas pero complementarias.
polarizando professores(as), especialistas e familiares em torno En primer lugar, como entorno, contexto o contenedor de ins-
do(s) método(s). tituciones y acontecimientos educativos: “Educarse o apren-
A alfabetização em uma perspectiva complexa exige o rom- der en la ciudad”, sería el lema que describe esta dimensión.
pimento com uma concepção clássica, escolar, que só faz referên-
cia ao mundo impresso, à cultura letrada, onde o livro e as tec- 6  Para Certeau (1994, p. 46), a texturologia de uma cidade, de um bairro e/ou
nologias da palavra a ele associadas ocupam uma centralidade rua, se exemplifica pelo seu labirinto de imagens. Essa texturologia “tem grafia
no mundo da escola. Centralidade que embora há muito já tenha própria, diurna e noturna, que dispõe um vocabulário de imagens sobre um
novo espaço de escritura. Uma paisagem de cartazes organiza a nossa reali-
sido abalada e descentrada pelo meio técnico-científico-informa-
dade. É uma linguagem mural com o repertório de suas felicidades próximas”.

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En segundo lugar, la ciudad es también un agente, un vehí- Às vezes eu tenho que ir ao conselho tutelar. Que às vezes
culo, un instrumento, un emisor de educación (aprender de eu preciso pedir alguma coisa. Vou ao PETI resolver pro Moi-
la ciudad). Y, en tercer lugar, la ciudad constituye en sí misma sés. Tem a dona Júlia do conselho tutelar de São Gonçalo,
un objeto de conocimiento, un objetivo o cotidiano de apren- no centro empresarial. Eu vou muito lá. Às vezes eu tenho
dizaje: aprender la ciudad (Trilla apud Zainko, 1990, p. 16). que assinar a folha da APAE da Joeli; tenho de ir na prefei-
tura. Eu vou muito (…). Vou de ônibus. Geralmente eu vou
A afirmativa de que, para as classes populares, a cidade repre- com eles… Joeli tem passe. Como eles é tudo parecido uns
senta um livro de espaços, nutre-se do pressuposto de que, na com os outros (…) aí eu ando com o passe do ônibus com o
busca de sua sobrevivência, a metrópole e os espaços públicos e/ Moisés. A passagem é muito cara, como eu não posso pagar
ou privados da cidade ocupam uma centralidade histórica. Para a passagem, eu boto a blusa delas da escola (…) passo pela
as camadas populares em suas táticas de (sobre)vivências, as porta da frente. Eu dou o meu jeito! (fala de C., mãe das
ruas, os espaços públicos, as áreas menos controladas pela racio- crianças da “família Barbosa”, em julho de 2002).
nalidade urbana se tornam espaços privilegiados do correr atrás.
Correr atrás do emprego, do benefício, das trocas, da venda de Acredito que, justamente nos territórios da cidade, premidas por
sua força de trabalho, do negociar e/ou do simplesmente men- uma vida de urgências, as camadas populares urbanas vão cons-
digar, roubar, “achar algum otário”, “praticar algum conto do truindo práticas de leitura e escrita que, fundadas em outros regi-
vigário”, “dar pinta”, zoar, enfim, circular, transitar, bater perna, mes semióticos, não só aqueles oriundos da cultura escolar, lhes
se virar… A fala de Singer é ilustrativa da “gramática do correr permitem “correr atrás”, ler a rua, ler o espaço público, deci-
atrás” impressa pelas classes populares na e da cidade: frar seus códigos surrealistas, escrever com seus corpos o espaço
urbano, marcar com seus passos, seus trajetos, a epiderme da
Os pobres raramente podem se dar ao luxo de ficar “desem- cidade, inscrevendo seus signos na multiplicidade de signos que
pregados”. Os pobres ficam “parados” quando a procura por transitam e (re)definem a paisagem urbana.
serviços cessa, mas eles não podem permanecer nesta situ-
ação por muito tempo. Se não conseguem ganhar a vida na Meu nome é Douglas eu tenho 8 anos agora vamos a o
linha de atividades que vinham se dedicando, tratam de assunto no meu Bario não tem cinema policiamento nem
mudar de região, caso contrário, correm o risco de morrer de asfauto (…) (trecho de uma carta escrita por D., aluno da
fome (1998, p. 31–32). alfabetização, junho de 2000).

Entendo que, na multiplicidade de usos que as camadas popu- A cidade é um sistema aberto e complexo, cheio de instabilidade
lares materializam nos territórios da cidade, vai sendo gestada e contingência. Cenário dos fixos e dos fluxos (Santos, 1979) no
certa “gramática da viração”, isto é, determinadas operações qual as camadas populares urbanas, de modo geral, com poucos
materiais e simbólicas, determinadas táticas e astúcias que, no anos de escolarização, são desafiadas constantemente por uma
sentido dado por Certeau (1994, p. 175), poderiam ser traduzidas texturologia que, somente pelos modos de uso cotidianos, se torna
à luz de uma teoria das práticas cotidianas, no espaço vivido e de legível, compreensível, decifrável, familiar.
uma inquietante familiaridade da cidade. Para as camadas populares especialmente (embora essa con-
cepção de leitura seja aplicável a qualquer sujeito / grupo social),

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a leitura do mundo/cidade precede e acompanha a leitura da as crianças (…) não dava para trabalhar só por área, tipo
palavra (Freire e Macedo, 1990) e as suas práticas do espaço português, matemática, estudos sociais (…) um assunto
remetem a uma forma específica de “operações” (“maneiras de entrava no outro, se relacionava (…) a rua da escola, a Cor-
fazer”) e a “outra espacialidade” (uma experiência “antropoló- reia D’Ávila, eles desenharam, contaram as casas pares e
gica”, poética e mítica do espaço) e a uma modalidade opaca e ímpares, os tipos de casas, reclamaram do lixo e dos orelhões
cega da cidade habitada. Uma cidade transmutante, ou metafó- quebrados (…) perguntaram do homem bêbado estirado
rica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível do lado da pizzaria (…) Tá tudo ligado, o conhecimento das
(Certeau, 1994, p. 172). coisas, como separar? (fala transcrita da entrevista realizada
Para as crianças com as quais venho trabalhando e pesqui- com a profª A. C., em agosto de 2002).
sando, ler e escrever a cidade e nela implica operar tipos de conhe-
cimentos de quem constrói e utiliza os espaços vividos dos territó- Quando crianças, como, por exemplo, N., J. e M. da “família
rios citadinos. Assim, viver a cidade e nela como um livro de espa- Barbosa” falam de seu caminho casa–escola, de suas andanças
ços requer astúcia, intuição, aprendizagem, disciplina, boa dose de no bairro, de suas paisagens preferidas, descrevendo-as, dese-
sorte e capacidade de frustração, especialmente para decifrar as nhando-as, escrevendo-as com as suas possibilidades, elas ofere-
armadilhas e desviar das páginas que não trazem felicidade. cem a oportunidade de que seu grupo de referência – sua classe,
turma escolar – estimulado pela professora. Trata-se da possibi-
Não dá pra brincar de noite, é muito perigoso. Só brinco na lidade de produzir a geografia do percurso, construindo saberes
rua quando a minha mãe tá na calçada… Já teve caso de vio- transversais que migram da sociologia para a política, para a eco-
lência, de estupro de uma moça lá na 43. De noite não ando logia, para a estética, para a semiótica etc. Assim, tensionam-se
sozinha nem de bicicleta porque tem roubo, é perigoso por as fronteiras rígidas que (ainda) disciplinarizam, desistoricizam e
causa de uns caras que vêm lá da pica-pau.(fala transcrita da despolitizam o conhecimento no mundo da escola.
entrevista realizada com T., aluna da 1ª série, junho 2002). Se na semiótica urbana, as ruas da cidade sempre foram
atrativas para as pessoas, pois nelas estão presentes, muitas
No itinerário de meu trabalho junto aos setores denominados vezes, de forma conflitante, o mistério, o perigo, a ordem e a
populares, venho observando que os conteúdos alfabetizadores7 desordem, os diferentes fluxos da vida citadina. Por que será que
transbordantes da cidade deveriam fazer parte do universo das na escola pouco discutimos e problematizamos a experiência de
práticas materiais e simbólicas em tensão nos territórios escolares: viver na cidade? Por que pouco se fala sobre o direito das crianças
(pré)escolares viverem e usufruirem dos espaços culturais e das
Quando a gente andou pelas ruas próximas à escola para paisagens naturais que constituem sua cidade?
conhecer um pouco o bairro (…) a gente tava estudando o Se a escola é uma paisagem da cidade, e se, a caminho
bairro, eu pensava nos conteúdos que podia trabalhar com da escola, as crianças se relacionam com outras paisagens do
entorno, por que essa experiência urbana não é (ou quase nunca
7  Estou denominando conteúdo alfabetizador todo e qualquer dispositivo de
é) complexificada, tornada conteúdo alfabetizador na instituição
significação negociado em uma cultura. Não faz sentido falar em conteúdo escolar?
alfabetizador no singular, e sim conteúdos alfabetizadores em um nível mais Essas questões vêm me intrigando e me desafiando a inves-
complexo, pois nossa concepção ampliada de alfabetização possibilita inte-
tigar as formas pelas quais as crianças, principalmente as das
grar todo (con)texto como linguagem, como mensagem, como significação.

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camadas populares, imaginam, vivem, inventam a cidade, muitas e simbólico às interfaces entre escola e cidade, garantindo as con-
vezes de forma muito dolorosa, como era possível constatar em dições político-culturais para a escola ensinar a e na cidade.
São Gonçalo.8 De modo geral, a retórica da cidade educadora e da educa-
ção na e pela cidade, apesar de bem fundamentada nos projetos
O C. H. já está na rua novamente. A mãe disse que não tem de governabilidade urbana, concretamente só propiciou a cria-
jeito não, que ele já tá na vida (…) falaram que viram ele em ção de um símbolo próprio e a padronização da pintura dos equi-
Alcântara perto do Extra (…) acho que perdemos mais um! pamentos públicos municipais. A ideia-força de um sistema edu-
(fala de V., orientadora educacional da escola, em maio de cativo integrado que colocasse em interlocução as escolas e as
2002). demais instituições socioculturais da cidade ainda não passava de
uma proposta (uma carta de intenções) baseada em experiências
Na cidade de São Gonçalo, com base em nosso mergulho na pai- a princípio bem-sucedidas das metrópoles vizinhas (Niterói e Rio
sagem cotidiana da pesquisa, foi rapidamente possível a difí- de Janeiro).
cil (porém inevitável) constatação de que os poderes locais da A proposta da escola ensinar a cidade, de torná-la um livro
cidade, pouco ou nada implementavam para discutir e garantir o de espaços para se escrever (se inscrever) o orgulho de ser gon-
direito da infância à cidade. As estratégias institucionais, quando çalense (ainda) era um horizonte complexo e distante do movi-
existiam, eram fragmentadas, episódicas, restritas aos eventos mento cotidiano das escolas da cidade.
oficiais da cidade, como, por exemplo, os festejos comemorativos Com base nessa breve contextualização, afirmar a natureza
da emancipação da cidade, no mês de setembro, e as comemora- educativa da cidade implica admitir, no âmbito político-epistemo-
ções da semana da criança no mês de outubro. lógico a intencionalidade formadora que a metrópole pode assu-
Apesar da Secretaria Municipal de Educação local utilizar, mir na contemporaneidade, sobretudo por ser o meio técnico-
desde 2000, dois projetos que davam centralidade à cidade – os científico-informacional por excelência, locus da densidade comu-
projetos Meu Brasil começa aqui e Orgulho de ser gonçalense, efeti- nicacional. O que mais uma vez reforça a texturologia da cidade
vamente, no chão das escolas – como carro-chefe de suas políticas como conteúdo alfabetizador.
para a rede municipal, até agora, além de uma retórica ufanista, Dizer que a cidade é educadora é ressaltar seu caráter de
pouco ou nada foi concretizado. agente educativo, é uma ideia-força que busca ser compartilhada
Seja qual foi o peso da presença do discurso da cidade edu- e assumida pelos diferentes atores sociais (Trilla, 1997), apesar
cadora nos documentos oficiais da SME, nenhuma política ou das contradições nodais que tornam a metrópole cenário dos con-
ação mais sistemática foi efetivada visando dar suporte material flitos e confrontos sociais, que a tornam lugar das disputas.
Milton Santos (1994, p. 83) define a cidade como o lugar
em que o mundo se move mais, e os homens também. De acordo
8  Em São Gonçalo, apesar da retórica oficial dos poderes públicos, é cres-
cente o descaso com as crianças e jovens pobres da cidade. Segundo dados da com essa concepção, ela seria um dos lugares da educação, pois,
Fundação da Infância e da Adolescência (FIA) polo da articulação leste, de 93 quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movi-
óbitos registrados, na faixa etária dos 15 aos 19 anos em 2000 na cidade, 78 mento, mais vasta e densa a copresença e também maiores as
foram de menores assassinados na guerra do tráfico no município. Segundo
lições e o aprendizado (ib.).
a juíza da Vara de Infância e da Juventude do município, de janeiro a agosto
de 2001, 240 adolescentes (de 9 aos 17 anos) se envolveram com a criminali- Para a escola, a cidade e seus fluxos podem ser extrema-
dade; 98% das infrações estavam relacionadas ao tráfico de drogas. mente educativos, pois ao caminhar pela rua é possível reconhe-

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cer os atores que produzem a cidade enquanto uma cena cultu- Paul Singer. Globalização e desemprego: diagnósticos e alternati-
ral (Morse, 1996). A cidade é formada por múltiplas e complexas vas. São Paulo: Contexto, 1998.
ações de muitos agentes e é formada também pelas práticas esco- Maria Teresa Goudard Tavares. Os pequenos e a cidade: a centra-
lares, pois são elas que possibilitam a percepção das diferenças do lidade da cidade de São Gonçalo na alfabetização das crianças
estar no mundo. A densa rede de sociabilidade nas cidades ofe- das classes populares. Faperj/Uerj, ago. 2002. Mimeo.
rece, sobretudo, no contexto das metrópoles, possibilidades pri- Jaume Trilla. Introducción. In: Jaume Trilla. En la ciudad edu-
vilegiadas de aprendizado da alteridade e da problematização cadora: la ville éducatrice. Ajuntament de Barcelona. I Con-
das desigualdades sociais, historicamente presentes na formação grés Internacional de Ciutats Educadores. Barcelona: Ajun-
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Brasileiros no mundo: dade; de ascendência europeia (diferenciada por graus variados
de ascendência); de cor/raça; de ocupação no mercado de traba-
novas construções identitárias do lho; de origem regional; e, finalmente, de religião, entre outras
“salsa american way”1 possíveis. Uma colcha de retalhos identitários.
Estas diferenças não aparecem em muitas fontes. Muitas
Profª Drª Joana Bahia
estatísticas, variando de país receptor e do tempo em que o grupo
migrou, transformam os brasileiros em “nosotros” (latinos). E
somam-se colombianos, peruanos, chilenos, todos metidos em
Introdução um balaio de latinos. São classificados ao lado de asiáticos e afri-
canos, todos postos em blocos, em categorias abrangentes nas
O Brasil, que foi, por mais de um século, um típico país de imigra- quais as representações em si são mais importantes para o pesqui-
ção, tornou-se, a partir de 1980, um exportador de mão de obra, sador do que os próprios números.
um país de emigração. O fenômeno da emigração é algo novo A lógica subjacente às fontes é o desafio com o qual nos
para um país que se constituiu historicamente como área de des- deparamos na sua desconstrução crítica. Lemos o que não está
tino de imigrantes. Esta mudança não é apenas demográfica, mas escrito. Exceção das emigrações incentivadas pelos governos
denota um fato social e político complexo com implicações diver- receptores, a ilegalidade é parte da realidade de alguns números
sas. Uma delas é do próprio imaginário popular que se espanta e também do cotidiano dos brasileiros.2 Os casamentos mistos e
diante do fato de sempre ver o Brasil como país receptor, no qual a formação de novas gerações complexificam as relações sociais
“todo mundo vem pra cá, acha tudo uma maravilha e vira brasi- que devem ser percebidas pelo pesquisador e que não constam
leiro”. Como pode então a tal da “pátria amada” mandar os seus das fontes. Podemos afirmar que, fazer a história das migrações,
filhos embora? em muitos casos, é fazer uma história da clandestinidade. Mas
Parafraseando a música, o que os brasileiros trazem nos seus que para, além disso, dependemos também da compreensão das
tabuleiros? E de que modo há diversos arranjos identitários? Nas motivações de saída para entendermos quando se é clandestino e
bagagens se carregam não só símbolos, mas processos de escolha quando se deixa de ser por assumir novas identidades, sem deixar
e seleção de elementos que são moldados em uma nova realidade. de lado o que é levado na bagagem.
Há inúmeras variáveis que devem ser consideradas ao tratar- A construção de locais de sociabilidade e de motivações de
mos do fenômeno migratório, pois não abordamos apenas uma saída depende do que é chamado de redes sociais. Os laços de famí-
identidade brasileira, mas sim várias. A heterogeneidade dessa lia e de amizade são vínculos de ordem afetiva, econômica e simbó-
população emigrante pode ser analisada considerando os seguin- lica que constroem pontes entre os países de saída e de entrada.
tes aspectos: questões de classe entre a população imigrante; Não obstante as remessas de dinheiro e a formação de empre-
questões de temporalidade da imigração; de gênero e sexuali- sas serem importantes para pensarmos o quanto os processos

1  Carmen Miranda, ao cantar South American Way, trocava propositada- 2  De acordo com o Registro Central de Estrangeiros (Ausländerzentralregis-
mente à letra para “salsa”, essa troca sutil é pensada aqui como marcação iden- ter), vivem 31.461 brasileiros na Alemanha. Segundo os dados da Subsecre-
titária, como sinal diacrítico nos termos descritos por Barth (2000). Pensamos taria Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior (sgeb), 89 mil vivem
o que os brasileiros trazem consigo quando migram e de que modo reelab- atualmente no referido país. Entre as duas fontes há uma defasagem de
oram suas identidades em novos contextos. Como vemos nos versos: “E o que quase 60 mil indivíduos, o que demonstra a complexidade do fenômeno ao
traz no seu tabuleiro. Vende pra ioiô. Vende pra iaiá. In South American Way”. tentarmos precisar o número de migrantes.

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migratórios movimentam economias, o migrante é usado como Segundo Sales (op. cit.), tanto a migração para os países europeus
bode expiatório nas explicações sobre os índices de desemprego. quanto para os Estados Unidos é uma migração de trabalhadores,
Além dessa questão, temos os problemas de adaptação mal suce- de pessoas originárias da classe média e que vão trabalhar nesses
dida, da constante ideia de migração como algo temporário, as países em serviços não especializados.4 Contudo (op. cit.), o perfil
diferenças geracionais e principalmente as dificuldades de inser- ocupacional dos imigrantes brasileiros tanto nos Estados Unidos,
ção no sistema escolar dos países receptores. A exemplo, temos o como na Europa e no Japão, mostra um declínio no status de sua
caso do Japão (Sasaki, 2010) e da Alemanha (Bahia, 2010). ocupação, quando comparada com a que tinham no Brasil.
Antes da emigração, eles eram professores de ensino básico
Brasileiros pelo mundo e médio, bancários, estudantes e até profissionais de nível supe-
rior. Nos demais países trabalham em áreas tais como limpeza
Segundo Teresa Sales (1999, p. 20–1), é a partir de meados dos de residências e escritórios, como lavadores de prato e em outros
anos 1980 que a emigração brasileira assume proporções signi- serviços em restaurantes que não exigem o uso do inglês e de
ficativas. Essa afirmação é confirmada pelo World Economic and outras línguas, na construção civil, arrumação de hotel etc. No
Social Survey 2004, relatório elaborado pela ONU (2004).3 De caso americano, alguns montam seus próprios negócios de lim-
acordo com tal estudo, desde o primeiro quinquênio dos anos peza de escritórios ou residências, pequenos reparos e pintura, ou
1980, o Brasil começa a ter saldos migratórios constantemente comércio de produtos brasileiros. A ascensão econômica é repre-
negativos, característica que lhe dá, atualmente, a classificação sentada, sobretudo, pela possibilidade de consumo, levando em
de “país de emigração”. De acordo com a autora: conta o aumento substancial de ganho financeiro.
Entretanto, não somente a crise econômica impulsiona a
Essa é uma migração típica de trabalhadores, em busca de evasão. Torresan ao estudar os brasileiros em Londres mostra que
ascensão social e econômica que começaram a sair do Brasil eles “foram para reinventar sua identidade e criar novas oportu-
durante a década de 1980, a chamada “década perdida”, não nidades de vida, foram buscar algo além dos motivos alegados
apenas fugindo da crise econômica e das altas taxas de infla- para os empreendimentos da viagem” (1994, p. 5–6). Viver novas
ção que caracterizaram o período, mas também da frustra- experiências caracteriza o grupo por ela estudado, e mostra cla-
ção de promessas não cumpridas de sucessivos planos eco- ramente que, para além de escolhas racionais (como fazer pou-
nômicos que fracassaram como foi o caso mais conhecido do pança e estudar), justificativas subjetivas são oferecidas. Mui-
Plano Cruzado (2006). tos querem começar a vida longe de “padrões de comportamento
impostos pela sociedade brasileira, num país que considerava ser
3  Também o World Migration Report – 2005 da IOM reconhece o expressivo modelo de modernidade” (op. cit., p. 146).
aumento da emigração brasileira nos EUA, sobretudo na virada do milênio: Frigério (1999, p. 76) mostra que as redes sociais são cons-
“Like its northern neighbour, Brazil is also witnessing an emigration trend.
truídas pelos imigrantes entre lugares de origem e de destino na
The us has become one select destination, as legal and irregular immigrants
make homes in states such as Florida, Massachusetts and New York. Inflows of direção e volume dos fluxos migratórios. Estas redes sociais pro-
Brazilian immigrants into the us have risen steadily since 1999, from slightly piciam aos migrantes recursos na forma de assistência e infor-
less than 4,000 to nearly 9,500 in 2002. According to us census figures, the stock
of Brazilians, too, has been rising from 82,500 in 1995 to 212,400 in 2000. (Note 4  Não é objeto de estudo deste projeto a emigração orientada para a prosti-
that the inflow numbers do not capture unauthorized entries)” (IOM. World tuição, mas ela vem sendo estudada tanto por pesquisadores brasileiros (ver
Migration Report – 2005. Costs and benefits of international migration. v. 3, Piscitelli) e portugueses (ver ISCTE: Lisboa). Lembramos que o mesmo ocorre
p. 93. Disponível em: <http://www.iom.int>. Acesso em: 6 mai. 2011). na Alemanha, entretanto há poucos estudos sobre o referido país.

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mação e permitem entender o fenômeno da migração em cadeia Muitos emigrantes não fogem da realidade descrita por Sal-
(chain migration), pela qual migrantes novos são levados ao lugar les (op. cit.), entretanto muitos brasileiros também trabalham
de destino por iniciativa dos que ali já se encontram. com expressões da arte e cultura brasileiras. Músicos, dançari-
Sales indica que situações de crise no país não são motores nos, professores de dança, capoeira e fotografia são profissões
suficientes para levar a decisão de migrar quando não há redes presentes entre aquelas exercidas pelos brasileiros de camadas
estabelecidas de amizade, parentesco e conhecimento (ib.). médias da população. Mas muitos possuem outros empregos na
Conforme vimos, há muitos modos e formas de emigra- área de serviços, especialmente em empresas de limpeza, escri-
ção. Estas formas podem ser inicialmente mapeadas como sendo tórios, bares e restaurantes e call centers para dar continuidade
importantes na diferenciação do grupo. Como no caso da Alema- financeira aos trabalhos e projetos na área cultural até que mon-
nha, uma grande maioria está relacionada ao casamento entre tem uma empresa e consigam ganhar sua autonomia.
brasileiros e alemães. Há uma emigração por conta das empre- Em 2003, o Ministério das Relações Exteriores estimava em
sas alemãs que atuam no Brasil. Mas também há um modo de 1,9 milhão o número de brasileiros vivendo no exterior. A essa
emigração que passa pelos estudos de língua alemã e inserção realidade de âmbito internacional, somam-se os movimentos
na estrutura acadêmica, especialmente nas profissões técnicas migratórios internos.
(engenharia, áreas que envolvam uso de tecnologia de ponta).5 Atualmente as estimativas são de 3.040.993, sendo que
As variações na composição dos fluxos migratórios de brasileiros 816.257 na Europa. Segundo os dados do Ministério das Rela-
para Alemanha extrapolam os registros oficiais e evidenciam a ções Exteriores (2009), essa população tem se direcionado em
complexidade do tema.6 maior proporção para os Estados Unidos (1,28 milhão), seguido
de Paraguai (300 mil), Japão (280 mil) e vários países da Europa
(Reino Unido, Portugal, Espanha e Alemanha são os de maior
5  Muitas vezes, os brasileiros estão invisíveis aos fluxos de maior intensidade
e, conforme vimos, são muitas vezes confundidos com os demais latinos e fluxo). Os fluxos restantes distribuem-se em vários outros países,
também os caribenhos. De acordo com o Registro Central de Estrangeiros entre os quais se destacam Argentina (43 mil), África do Sul (30
(Ausländerzentralregister), viviam na virada de 2007, 31.461 brasileiros na mil), Canadá (26,3 mil), Suriname (20 mil) e Guiana Francesa
Alemanha, dos quais 52% eram casados (na maioria dos casos com alemães
ou cidadãos europeus, constituindo famílias binacionais). Deste total, 73%
(19 mil). Ainda que bastante diversificados quanto à origem geo-
eram mulheres. Este número, porém, ilustra apenas meia-verdade, pois gráfica, nota-se que três países alimentam o fluxo com aproxima-
não se levam em consideração os brasileiros registrados sob alguma outra damente 60% do volume total: Paraguai, Japão e Estados Unidos
cidadania, em geral europeia, obviamente nem os brasileiros em situação (Fusco e Souchaud, 2010).
irregular. Os dados publicados tampouco consideram o número de crianças
binacionais, que muitas vezes só são registradas sob a cidadania alemã.
Cada um desses fluxos tem a sua especificidade. A migra-
6  No Statistisches Amt für Hamburg und Schleswig-Holstein 2010, temos ção para o Paraguai, que na verdade antecedeu às demais em
atualmente na região de Hamburgo e Schleswig-Holstein, 15.646 latinos e uma década (começa nos anos 70, enquanto as demais come-
caribenhos, sendo que os grupos majoritários nesta mostra são advindos
çam nos anos 80), é caracteristicamente uma migração de fron-
do Brasil, Chile e Peru. Não há números que tratem separadamente de cada
um desses grupos. Não obstante constatar a presença de brasileiros em teira e que começou a ocorrer em face do incentivo paraguaio
cidades como Frankfurt am Main e Düsseldorf em várias fontes e documentos para que fazendeiros brasileiros comprassem terras e produzis-
levantados, não foi possível precisar o número exato, apenas o número geral sem naquele país. A esses se seguiu o maior contingente de emi-
de estrangeiros. O mesmo ocorre na área bávara da Alemanha. Na região da
grantes, que é formado pelos trabalhadores rurais, também cha-
Baviera são 1.164.027 estrangeiros, porém não são especificadas as nacionali-
dades, sendo que as cidades de Munique, Nurenberg e Augsburgo são as que mados de “brasiguaios”.
possuem os maiores números, sendo respectivamente 305.327, 82.681 e 45.179.

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A emigração para o Japão também foi estimulada por um migratórias do Brasil com o Japão (Sasaki, 2010), da emigração
programa do governo e de empresas japonesas para atrair des- para Portugal (Machado, 2006), para Itália (Póvoa Neto e Fer-
cendentes de japoneses (principalmente do Brasil e do Peru) para reira, 2005; Póvoa Neto, 2006; Póvoa Neto, Seyferth, Santos e
trabalhar na área industrial, numa tentativa de acabar com a imi- Zanini, 2007), da organização dos brasileiros em Boston (Sales,
gração ilegal dos vizinhos países asiáticos. Uma das característi- 1999), EUA (Assis, 1999), e de questões ligadas aos países sul-
cas desse fluxo migratório é que ele é inteiramente legal, ao con- americanos: situação social dos brasileiros e descendentes no
trário das migrações para Europa e Estados Unidos, nas quais Paraguai (Sprandel, 2006); mobilidade de populações na tríplice
é muito comum o imigrante brasileiro deixar expirar o visto de fronteira de Brasil, Peru e Colômbia (Oliveira, 2006) e nas fron-
turista e permanecer trabalhando como imigrante ilegal. teiras Brasil–Guiana (Pereira, 2006) e Brasil–Venezuela.
Para Bosi, os efeitos causados por tão grande êxodo não são Não obstante vários autores problematizarem os fluxos des-
apenas de ordem econômica: “Problemas de identidade cultu- critos acima, especialmente os que se referem ao relacionamento
ral e de comportamento afloram em todos os polos visados pelas dos brasileiros no continente americano e no Japão, lembra-
migrações” (2006, p. 220). Carvalho mostra que o Brasil, entre mos também da importância dos trabalhos que abordam a situ-
1980 e 1990, ação dos brasileiros no sudoeste (Portugal e Espanha) (Caval-
canti, 2004) e oeste da Europa (França) (Reis, 2006). Entretanto
teria experimentado uma perda líquida de 1.800 mil pessoas a quantidade de estudos sobre os brasileiros nesta área da Europa
por meio de fluxos internacionais: 1.050 mil homens e 750 (especialmente em Portugal) é recorrente (Feldman-Bianco,
mil mulheres. Essas estimativas correspondem à média dos 2001; Padilha, 2004; Padilha e Xavier, 2009; Pordeus Jr., 2009;
valores máximo e mínimo estimados pelo autor e nelas não Mafra, 2002; Machado, 2003, 2004 e 2006), sendo necessários
estão incluídas as crianças nascidas durante o decênio (1996, mais estudos sobre a presença dos mesmos no norte da Europa e
p. 220–221). uma análise comparativa entre estas distintas sociedades.
A presença de brasileiros na Europa tem sido expressiva
Patarra (1987) afirma que a questão migratória internacional desde as mudanças socioeconômicas ocorridas no contexto inter-
“explodiu” e sua governabilidade passa pelos movimentos sociais. nacional, mas especialmente no que se refere às políticas de imi-
Esta explosão de emigrados pelo mundo pode ser percebida na gração nos EUA (consequência do 11 de setembro de 2001). Essa
importância dos direitos humanos como instrumento legítimo imigração cresceu tanto nos países do oeste e sudoeste (França,
contra as dimensões dos racismos e xenofobias resultantes des- Portugal, Espanha e Itália) quanto no norte da Europa (Alema-
tes movimentos. Bosi (2006) contempla diversos aspectos dessa nha, Inglaterra7 e Suíça8). Entretanto há poucos trabalhos sobre a
globalização forçada, que evidencia agudos desequilíbrios regio- comunidade brasileira nos países do norte europeu.
nais. Por exemplo, a necessidade de articulação de políticas de
7  Sobre a presença brasileira na Inglaterra ver Torresan (1994).
migração internacional com esforços para o desenvolvimento
8  Segundo Marinucci (2008), “podemos conferir uma avaliação diacrônica
econômico e social dos países envolvidos, os impactos da imigra- comparativa da presença de brasileiros em alguns países da União Europeia
ção para os EUA e França nos processos políticos e sociais dos dois e na Suíça. Assim, se em 2002 as mais numerosas comunidades residiam
países e os efeitos (negativos e positivos) da remessa de dinheiro em Portugal, Itália, Alemanha e Suíça, em 2007, o primado passou ao Reino
Unido, seguido por Portugal, Itália e Espanha. Chama a atenção o expressivo
para a economia dos países de origem dos imigrantes são alguns
crescimento do número de brasileiros no Reino Unido, na Espanha, na Bélgica
dos aspectos de caráter internacional que devem ser estudados. e na Irlanda. No país ibérico, por exemplo, passou-se de 20 mil em 2002, para
Em relação ao Brasil, vários autores mostram as relações 110 mil em 2007. Já no Reino Unido, no mesmo período, o aumento foi de →

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Singularidades dos brasileiros no mundo recentes. As igrejas e centros religiosos são, por definição, insti-
tuições expansionistas: é preciso levar a palavra de Deus aos mais
Não obstante haver pouca visibilidade nas estatísticas e na política recônditos cantões. Lembramos que, a partir da década de 1980,
europeia em relação aos países de maior fluxo migratório, os bra- são os missionários brasileiros e demais agentes religiosos que
sileiros tem maior presença no cenário cultural. A demanda por saem pelo mundo seguindo os fluxos dos emigrantes.
aumento de produtos nacionais cresce conforme há um aumento A religião vai na bagagem dos brasileiros, quer como sím-
no crescimento populacional, alimentando o chamado “mercado bolo de fé, quer como “capital” étnico e identitário.
da saudade”. Este envolve bares, restaurantes, mercearias, cafés, Desde os anos 60, a prática e expansão das religiões afro-
salões de beleza e eventos culturais e bens culturais como escolas brasileiras na América Latina (Uruguai e Argentina) foram estu-
de samba (a exemplo temos a Paraíso Samba School e Sapu Caiu no dadas por Frigério (1999), Segato (1991 e 1997) e Oro (1998). A
Samba), grupos de forró e grupos de capoeira tanto administrados partir dos anos 1970, estas cruzam o Atlântico e se expandem por
por brasileiros, portugueses como por outras nacionalidades. Portugal (Pordeus Jr., 2009, e Saraiva, 2010) e hoje se encontram
A “fome de casa” cria novas geografias nos lugares onde se na Espanha, Bélgica, Itália, França (Capone e Teisenhoffer, 2001–
situam, produzindo sentidos de brasilidade para brasileiros e 2002), Alemanha e nos Estados Unidos. Atualmente se contabili-
outros grupos (Brightwell, 2010). Estas novas geografias marcam zam 40 terreiros em Portugal (Saraiva, 2010).
não apenas um mercado brasileiro voltado para o público euro- Saraiva (ib.) mostra que a imigração mudou a face de Lis-
peu, mas locais de sociabilidade brasileira por onde circula uma boa, transformando a cidade em lócus de uma sociedade multi-
diversidade de representações sobre o que é o Brasil, sendo tam- étnica e multicultural não apenas no sentido religioso. As novas
bém momentos de reforço das redes sociais. religiões emergem em um momento em que são protegidas pela
Outro modo de lembrar que a imigração é um networking lei de liberdade religiosa sancionada em 2001. Segundo a autora,
process é mostrar o papel das redes sociais mantidas por intermé-
dio das religiões que atribuem vários significados a emigração. no século XXI Portugal possui judeus, grupos islâmicos
A inserção dos brasileiros não se dá apenas no mercado de tra- (majoritariamente sunitas e ismaelis), igrejas evangéli-
balho, mas também nas reconstruções simbólicas do campo reli- cas (igreja de Nazaré), várias pentecostais e neopentecos-
gioso. Mas além do trabalho árduo, o que os brasileiros levam tais (incluindo a Igreja Universal do Reino de Deus / IURD,
consigo? Vimos em vários estudos a importância da rede de rela- Assembleia de Deus e Maná), algumas igrejas africanas
ções, sociabilidades e também a mudança do campo social e reli- (quimbandistas) e práticas animistas trazida por uma varie-
gioso nos países em que se instalam (Saraiva, 2010). A participa- dade de migrantes africanos (Bastos e Bastos, 1999; Vilaça
ção das igrejas nos movimentos de migração internacional é um 2008; Mafra, 2002; Pordeus Jr., 2009; Saraiva, 2010).
fenômeno milenar (Martes, 1999). Entretanto, este tema não tem
merecido a devida atenção dos movimentos migratórios mais Muitos desses movimentos religiosos aparecem como novas for-
mas de cultos que se apresentam como práticas terapêuticas
→ 30 mil para cerca de 150 mil”. Não obstante os dados apontarem para alternativas, como é o caso dos cultos afro-brasileiros.
uma forte presença de brasileiros na Alemanha, não há estudos suficientes
Cabe também ressaltar a importância da presença da religio-
sobre este fluxo migratório. Trata-se de dados estatísticos produzidos pelos
relatórios consulares referentes aos anos de 2002–06 e estimativas gerais sidade e o modo como os imigrantes a dispõe. Temos a presença
referentes ao ano de 2007. do fenômeno da religiosidade afro-brasileira nas sociedades ibé-

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ricas (Mafra, 2002) e do norte da Europa. Quais religiões aí se bros locais) quanto do funcionamento das mesmas como redes
desenvolvem? Por exemplo, como se dá a participação de outros sociais (auxílio na busca de emprego e melhor inserção na socie-
grupos étnicos nestas religiões e como esses se relacionam? dade receptora).
Por razões históricas, não temos a mesma construção sim- A ideia de teologia da prosperidade é fundamental na clas-
bólica em cada país receptor. Será diferente e consequentemente sificação do emigrante não como migrante, mas sim como um
marcará os modos de inserção religiosa brasileira. Não obstante empreendedor. A emigração é estimulada como modo de ascen-
os brasileiros não terem uma proximidade linguística ou mesmo são social, pois reafirma a mesma como um valor religioso. Ganhar
uma perenidade ou continuidade de um pensamento colonial, dinheiro é expressão de um reconhecimento divino do esforço e
pois o Brasil não foi colônia nem da Inglaterra e nem da Alema- do mérito de cada um. Sua teologia estimula o aumento da renda,
nha, esses não deixam de ser “exotizados”. a reorientação dos gastos, o esforço da poupança e a entrada das
Em cada país há uma determinada possibilidade de expan- mulheres no mercado de trabalho. A ascensão é reforçada pela
são religiosa, entretanto a grande maioria dos brasileiros que ideia de um ethos capitalista, que se coaduna especialmente em
migram se convertem às igrejas evangélicas. O que não mini- países de forte influência protestante. O uso do espaço da igreja é,
miza a presença de outras religiões tais como: catolicismo, santo ao contrário da católica, semelhante a um clube. O templo católico
daime, kardecismo, religiões afro-brasileiras e outras. é apenas o espaço do culto e da residência dos padres.
Se os brasileiros levam a religião para os países para onde No caso da igreja católica, conscientizar o brasileiro de
vão, eles também trazem consigo a diferenciação interna da sua condição de imigrante é parte fundamental do trabalho.
comunidade brasileira, que não é nem um pouco homogênea Seguindo a doutrina da teologia da libertação, muitas igrejas
(Machado, op. cit.). Muitos brasileiros em Portugal não perten- católicas substituem a identidade de pobre (acionada nas comu-
cem aos cultos afro-brasileiros, sendo a maioria de seus frequen- nidades eclesiais de base no Brasil) pela identidade de trabalha-
tadores e partícipes portugueses. Muitos frequentam as igrejas dor imigrante. Isto os distancia da base de catolicismo popular,
neopentecostais, sendo os responsáveis pela sua expansão em originária de parte das trajetórias destes imigrantes. Estas repro-
Portugal (Mafra, 2002), demais países europeus e Estados Uni- duzem a ideia de comunhão com o sagrado como parte de um
dos. Muitos brasileiros não querem ser relacionados a uma reli- sujeito coletivo. O ator básico que permite a referência ao sagrado
gião associada a um passado africano e escravo, e, somados a é a comunidade e não o indivíduo.
isso, a estereotipagem e estigmatização, que se tornaria maior Na literatura sobre expansão do candomblé, tanto na Ame-
caso fossem adeptos destas religiões (Saraiva, 2010). Muitos já rica Latina quanto em Portugal, é ressaltada a capacidade plás-
ocupam estratos sociais mais inferiorizados no processo migra- tica e altamente flexível da religião se adaptar a diferentes con-
tório e “não podem ser dar ao luxo” de pertencer a cultos que os textos e sociedades. Conforme vimos, essa expansão transforma o
tornariam mais “exotizados” do que já são. Brasil na “Meca” da religião, não relacionando esta a África como
Além disso, as igrejas evangélicas se diferenciam das católi- lócus produtor central de símbolos afro-religiosos. Devido à raiz
cas no modo como representam a ideia da emigração. São igrejas comum do catolicismo popular brasileiro e do português, se torna
descentralizadas e que não dependem da hierarquia para tomar possível um processo de adaptação e hibridismo destes aos cultos
decisões ou promover mudanças necessárias ao seu cotidiano afro-brasileiros.
que viabilizem a sua própria manutenção e a expansão, tanto das Os portugueses, italianos e franceses de classe média diri-
suas unidades (cada igreja depende do financiamento dos mem- gentes e frequentadores dos cultos afro-brasileiros são atraídos

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por aquilo que consideram a sua quintessência brasileira, pelo nário, no caso alemão, que se construiu em torno das influências
lado exótico do candomblé e pela proximidade que fazem ao pan- da chamada Lebensreformbewegung (movimento da reforma da
teão católico (Saraiva, 2010). vida).9
Segundo Mauss, “quem fala são os deuses, que falam por Dentre as influências mais sentidas por esse movimento
suas bocas. Não são simples indivíduos, eles mesmos são forças temos, atualmente, o discurso ecológico na Alemanha e em vários
sociais” (1981, p. 205). Nesse caso, para muitos europeus o “ser países europeus, o que Castells nomeia por “o enverdecimento do
estrangeiro” é uma força que lhes confere poder (Segato, 1997): o self” (1999, p. 121). Segundo o autor, o fator que unifica os movi-
poder da alteridade. mentos ambientalistas é uma temporalidade alternativa, que pede
Conforme relata Pordeus Jr. a capacidade de hibridismo, que a sociedade e as instituições aceitem a realidade do lento pro-
de bricolagem do candomblé o aproxima ao panteão católico cesso evolutivo de nossas espécies no seu meio-ambiente, sem um
português: fim para o nosso ser cosmológico, enquanto o universo se expande
desde o momento e o local de sua/nossa origem comum.
Nalguns terreiros portugueses, a música dos atabaques Além das limitações do submetido tempo do relógio ainda
é bem mais lenta que no Brasil, o ritmo é diferente, mais vivenciado pela maior parte das pessoas no mundo, a disputa his-
cadenciado, como no vira. Nos terreiros que não utilizam tórica por uma nova temporalidade ocorre entre a anulação do
atabaques, somente canto e palmas, se fecharmos os olhos tempo nas redes de computação e a realização do tempo glacial
tem-se a impressão de estar perante a um ritual da igreja na tomada de consciência de nossa dimensão cosmológica (cos-
católica (2009, p. 148). mological self). Por meio dessa disputa pela apropriação da ciên-
cia, do espaço e do tempo, os ecologistas induzem a criação de
Cabe ressaltar a importância da rede de relações familiares e de uma nova identidade. Uma identidade biológica, uma cultura das
amizade na construção do processo migratório. Temos que consi- espécies humanas como componentes da natureza. Esta identidade
derar a ideia de família de santo e de parentesco simbólico. Mui- sociobiológica não implica em negar a cultura histórica. Os ecolo-
tos autores mostram o carisma e a tolerância dos cultos afro-bra- gistas respeitam as culturas folk e toleram a autenticidade cultu-
sileiros em relação às demais práticas religiosas, que não são ral de várias tradições.
excluídas do novo cotidiano religioso. Estas possíveis correlações não significam que os processos
Na Alemanha, por exemplo, a preocupação pode ser vista a de hibridismo e transnacionalização da religião não sofram pro-
partir da questão ecológica. Atualmente o candomblé no Brasil e blemas e impasses em seus novos contextos nacionais. Estes pro-
no mundo se volta para uma apropriação romântica da ideia de blemas estão presentes nos vários processos de adaptação reli-
natureza a fim de responder as demandas do atual discurso eco-
lógico e ambiental (Machado e Sobreira, 2008). De que modo 9  Lebensreformbewegung (reforma da vida) designa vários tipos de reformas
este discurso se aproxima de uma discussão presente e, digamos, presentes na Alemanha e na Suiça que foram iniciados em meados do XIX,
moderna da mentalidade europeia sobre ambientalismo? As for- decorrentes do romantismo alemão e que influenciaram algumas comuni-
dades na virada de século. Movimento crítico aos excessos do industrialismo
ças da natureza no candomblé são representadas por orixás que e aos males causados por este a saúde e ao corpo humano e que ratifica certo
são também tão imperfeitos quantos homens e mulheres mortais. retorno a uma vida natural. Teve influência nos movimentos new age, hippie,
Essa concepção de mágico que correlaciona sagrado e profano e na formação de comunidades alternativas e em várias formas de misticismo.
Muitas das ideias deste movimento ressurgem atualmente no discurso
que os interliga à natureza se torna interessante para um imagi-
ecológico, na agricultura orgânica e a um modo de vista autossustentável.

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giosa: as diferenças linguísticas (domínio da lógica do português muitas vezes reforçando suas identidades sociais, mas também
e do yorubá), os objetos utilizados nos rituais que não são facil- estereótipos dos outros sobre si mesmo.11
mente encontrados e a concepção de sacrifício presente em tais Religiões que a princípio os adaptariam a sociedade recep-
práticas religiosas que envolvem a morte de animais. tora, no caso as evangélicas e especialmente as neopentecostais, e
não os tornariam “exotizados” (especialmente nos EUA), em outro
O Xangô de Baker Street10 país possuem forte marca étnica, sinal de brasilidade, e são asso-
ciadas a uma fala de telenovela (especialmente em Portugal) e a
Uma das evidências de que o Brasil se tornou um país de emigra- uma língua que “invade o país e lhe fere os ouvidos”. Essas asso-
ção é a recente criação, junto ao Ministério das Relações Exte- ciações e exotismos novamente dependem das conexões históri-
riores, da Comissão do Regimento do Conselho de Represen- cas e processos sociais dos países envolvidos12 e muitas relações
tantes de Brasileiros no Exterior (CRBE) homologada, em 11 de podem ser em alguns momentos subvertidas. A Iurd usa Portugal
novembro de 2010. Como informado pela nota à imprensa 637, como porta de entrada da Europa e inverte, de certa forma, o tra-
de 29 de outubro, a criação do CRBE amplia o conjunto de ações dicional fluxo metrópole-colônia. Mafra descreve esta inversão:
que o ministério desenvolve com o objetivo de aprimorar a assis-
tência consular e o apoio aos cerca de 3 milhões de compatriotas Nas cruzadas de outros tempos (…) não é o centro que vai
que vivem fora do Brasil. Foram criadas representações divididas em direção da periferia para civilizá-la, organizá-la, retirá-la
em quatro regiões: Américas do Sul e Central, América do Norte das brumas da decadência, mas são os moradores dos subúr-
e Caribe, Europa, Ásia, África, Oriente Médio e Oceania. Para bios das cidades, dos países de periferia que embarcam em
cada uma das regiões foram eleitos quatro representantes e três aviões e navios para fundar templos, falar nas praças públi-
suplentes. Não obstante o trabalho desta representação junto ao cas, disputar espaços na TV, nos países do centro. A renova-
ministério, há de se ressaltar a importância crescente dos movi- ção agora vem das margens (2002, p. 36).
mentos sociais e das militâncias locais. A formalização política
ainda é recente neste fluxo migratório, que variam de acordo com A religião, além de renovar o campo religioso local, possibilita
as interações entre as políticas de governo brasileiro e os gover- abertura social, implica com a intolerância do outro, abrindo suas
nos dos países receptores, e ainda não foi tema de investigação. portas para este outro ser convertido.
Para além da recente estruturação do processo político, a
objetividade da cultura está no corpo, na musicalidade e na reli- 11  O estereótipo é uma forma de descrever o “outro” por meio de uma série
giosidade. São estes os espaços ocupados pelos brasileiros e con- de características generalizantes (habitualmente, depreciativas). A eficácia
sumidos como bens culturais pelos grupos receptores. Os brasi- do estereótipo – exemplarmente descrito por Said (1995), como conheci-
mento que não conhece, mas se justifica como um conhecimento empírico
leiros encarnam o que culturalmente seus corpos representam,
– resulta na (e da) hierarquização do campo das alteridades, restando ao
estereotipado um lugar inferior em relação ao estereotipador, quando o
estereótipo é um consenso na sociedade que abriga os diferentes grupos.
10  No livro escrito pelo humorista Jô Soares, Dr. Watson incorpora Xangô 12  Lembramos o caso do Coliseu do Porto em que muitas matérias de jornais
depois de tomar várias caipirinhas a fim de solucionar o caso policial do portugueses (ver O Público) afirmavam que a Iurd fala a mesma linguagem
que trata o livro. Enquanto o delegado Mello Pimenta busca pistas, Holmes das telenovelas. O sotaque ganha uma conotação de óbvia intenção de gerar
e Watson desembarcam no Rio de Janeiro sem saber “os perigos que os uma emoção que engana, como nas telenovelas. O caso “Coliseu” foi um
esperam”: feijoadas, caipirinhas, vatapás, pais de santo e o poder de sedução movimento de protesto que ocorreu no Porto, em 1995, quando membros da
das mulatas locais. Iurd se envolveram na compra do local, fato considerado uma afronta, tendo
em vista a importância do Coliseu.

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O trabalho é outro caminho para os processos de exotização, peito e ainda promovendo novos arranjos identitários nas socie-
já que os lugares oferecidos pelo mercado de trabalho são relati- dades dos outros in “salsa american way”. Jenkins (1997, p. 14)
vos aos estereótipos: animadores, músicos, capoeiristas, dançari- afirma que a etnicidade é uma identidade social coletiva e indivi-
nos, jogadores de futebol e atendentes ao público em geral. Esse dual, sendo externalizada na interação social e internalizada na
mercado varia de país a país, mas em grande parte é o mesmo autoidentificação pessoal. Em sua elaboração são eleitos elemen-
(Machado, 2006). tos culturais que melhor expressam a identidade.
O trabalho no “mercado da alegria” se refere aos empregos
que envolvem a animação e também o atendimento ao público, Referências
porque os empregadores europeus pressupõem que, de alguma
forma, os brasileiros são mais adequados para qualquer profissão Gláucia de Oliveira Assis. Estar aqui, estar lá…: uma cartogra-
que exija o trato com clientes, por conta da simpatia, cordialidade fia da emigração valadarense para os EUA. In: Rossana Rocha
e alegria que esperam de qualquer brasileiro. Reis e Teresa Sales (orgs.). Cenas do Brasil migrante. São
Como o trabalho da maioria está ligado às imagens essencia- Paulo: Boitempo, 1999. p. 45–85.
lizadas/estereotipadas do Brasil, os imigrantes procuram reforçar J. Bahia. Brasileiros em Berlim: sociabilidades e identidades em
sua autenticidade enquanto brasileiros, articulando o jogo de cen- construção. Trabalho apresentado no 34º Encontro Anual da
tralidades. Quanto mais abrasileirados aparentarem ser, maior Anpocs. Caxambu, Minas Gerais, 2010.
influência exercerão sobre os seus compatriotas e maior legitimi- Fredrik Barth. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o
dade ganharão entre os outros face aos quais se encontram em iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:
posição simbolicamente subordinada, já que os empregos são Contracapa editora, 2000.
mais facilmente conquistados por “aqueles que sabem seu lugar”, José Gabriel Pereira Bastos e Susana Pereira Bastos. Portugal
ou seja, aqueles que se encaixam nos estereótipos sobre o Brasil. multicultural. Situação e Identificação das minorias étnicas.
Diferentes exotismos são construídos e desconstruídos tanto Lisboa: Fim de século, 1999.
pelos brasileiros quanto pelos outros. Espera-se deles que se ocu- — Filhos diferentes de deuses diferentes: manejos da religião em
pem artisticamente do corpo13 e dos sentidos, objeto de exotiza- processos de inserção social difererenciada: uma abordagem
ção dos brasileiros. O Brasil é o lugar do sonho, do tropical, da estrutural dinâmica. Portugal: Observatório da Imigração,
floresta, do desconhecido. Dos corpos em movimento e também 2006.
de múltiplas identidades para além destas. Se por um lado bus- Alfredo Bosi (ed.). Estudos avançados. São Paulo: USP, 2006.
cam uma zona de conforto nas redes sociais para amenizarem as Maria das Graças Brightwell. Saboreando o Brasil em Londres:
agruras do trabalhador migrante e clandestino, por outro buscam comida, imigração e identidade. In: Dossiê brasileiros em
espaços de compreensão e resignificação da cultura do outro, Londres. Revista Travessia. CEM, Revista do Migrante. n. 66,
reforçando ou se afastando de imagens que constroem a seu res- jan.–jun. 2010.
Herausgegeben von Kai Buchholz, Rita Latocha, Hilke Peck-
13  De acordo com Machado (op. cit., p. 177) ideias sobre o corpo brasileiro mann e Klaus Wolbert. Katalog zur Ausstellung im Institut
“que são sempre exemplificadas pela ginga do jogador de futebol, pelo jogo Mathildenhöhe Darmstadt. Darmstadt, 2001.
de cintura das prostitutas brasileiras. A construção de um corpo, de uma
Stefania Capone. A busca da África no candomblé: tradição e poder
forma de estar e agir, movimentar, olhar, pegar, é fundamental na con-
strução de uma identidade ou de uma cultura. No caso de brasileiros ela é no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2004.
implacavelmente evidente”.

112  Brasileiros no mundo Brasileiros no mundo  113

Cartografia da ação e movimentos da sociedade.indd 112-113 14/10/2011 19:39:35


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Cartografia da ação e movimentos da sociedade.indd 114-115 14/10/2011 19:39:35


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116  Brasileiros no mundo Brasileiros no mundo  117

Cartografia da ação e movimentos da sociedade.indd 116-117 14/10/2011 19:39:36


Projeto Baía Limpa: um exercício de podem possibilitar melhoria das condições ambientais, de vida e
de trabalho dos pescadores, cujo saber se dá pela oralidade, um
mapeamento dos resíduos sólidos pelo saber passado por várias gerações.
olhar dos pescadores A pesca artesanal é de origem pré-colonial, anterior à urba-
nização e à industrialização brasileiras, remonta ao Brasil colô-
Catia Antonia da Silva
nia e foi se readaptando às condições econômicas atuais do país.
Felippe Andrade Rainha
Trata-se de comunidades tradicionais que vem passando por
Alberto Toledo Resende
um processo profundo de crise, precarização do trabalho e do
ambiente de labor.
A metodologia, portanto, baseia-se em princípios de tecno-
O projeto Baía Limpa ocorreu entre 5 de janeiro de 2009 e 5 de logias sociais, ou seja, na maior compreensão do ambiente por
fevereiro de 2010. Foi protagonizado pelos pescadores artesanais, parte dos saberes dos pescadores, utilizando esses saberes em
em destaque pelo pescador e presidente da colônia Z8, senhor consonância com o conhecimento científico na investigação de
Gilberto Alves, que a mais de uma década desejava ver o projeto campo. Também compreendem características e especificidades
em andamento. A articulação do saber acadêmico geográfico, do ambiente da baía de Guanabara e a grande concentração de
relacionado com o conhecimento popular e o conhecimento cien- poluentes – destacando os resíduos sólidos – que são a referência
tífico, envolveu milhares de pescadores homens e mulheres e 16 de estudo da nossa pesquisa.
pesquisadores para realizar uma atividade de coleta de resíduos Intenciona-se alterar visões das comunidades de pescadores
sólidos na baía de Guanabara. Tinham como objetivo: e população vizinhas e envolver os mesmos em todo o processo
1  Monitorar quantitativamente e qualitativamente os resí- da pesquisa. Criar condições de buscar novas iniciativas e melho-
duos sólidos na baía de Guanabara. rias nas condições de ambientais e, portanto, do habitat, tendo
2  Mapear os resíduos sólidos na baía a partir do saber coti- como referência a importância da atividade da pesca, referência
diano do pescador. de memória e de identidade, histórica e social. Logo no início de
3  Dar visibilidade social às condições de trabalho do pesca- pesquisa, na fase de elaboração do projeto e antes da atividade
dor artesanal. ocorrer, foi iniciada a elaboração da logo referência do projeto,
O presente texto, pelo limite de suas linhas, apresentará a feita por um especialista em programação visual, mais orientada
metodologia e os resultados da pesquisa. pela percepção, sentidos e referências simbólicas dos pescadores.
Outra referência fundamental para a pesquisa consiste na
Introdução compreensão do diagnóstico processual para a gestão ambiental.
Na primeira fase da pesquisa, ficou notável que a existência de
Princípios de cidadania e qualidade ambiental (qualidade de vida resíduos sólidos na baía deve-se a vetores de drenagem, tais como
e trabalho) são direitos universais, direitos humanos essenciais, rios, ruas e nas praias. Esse material é deslocado pelas correntes
são as referências desse projeto. A metodologia do projeto funda- marinhas e oscilações de marés dentro da baía, chegando até ao
menta-se na pesquisa-ação, orientada por Thiollent (1985), que fundo da baía (Magé). Os principais vetores de comando são pro-
relaciona pescadores e pesquisadores, sendo os pescadores pro- venientes da Baixada Fluminense, São Gonçalo e Rio de Janeiro.
tagonistas. Trata-se referência fundamental para estabelecer os O período de 12 meses, com acompanhamento dos pescado-
estágios de vivência, a relação ciência e conhecimento popular res foi possível ver o pré e pós-coleta, e estes espaços, após três

118 Projeto Baía Limpa  119

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meses em média sem coleta, voltavam a acumular resíduos. Esse
acúmulo acontecia apesar de algumas barreiras, como nas fozes
de rios oriundos da Baixada Fluminense, porque nos dias de chu-
vas fortes com maior vazão, essas redes de drenagem fazem che-
gar grande quantidade de resíduos flutuantes e de fundo na baía.
O projeto, portanto contribui também para a identificação de que
a coleta é uma das etapas do processo de produção urbana dos
resíduos que necessita de políticas públicas, ações processuais e
mudanças de hábitos da população e alteração na legislação que
atue e interfira da nos vetores geradores.
Por isso que, reforçando aqui na seção de metodologia, o
projeto original que tem como finalidade contribuir com a(s)
melhoria(s) das condições ambientais da baía de Guanabara e
da vida dos pescadores artesanais. Por meio de coleta de resíduos
sólidos na baía de Guanabara, elaboração de radiografia qualita-
Figura 1  Logomarca do projeto – dezembro 2008.
Figura 1  Logomarca dos projetos 2009–2010. tiva e quantitativa desses resíduos; de atividades que visem sen-
sibilizar, com base na melhoria do ambiente, a sociedade e poder
público; de instrumentos de visibilidade da atividade da pesca
artesanal e das condições ambientais de trabalho, contribuindo
para o fornecimento de subsídios para a elaboração de políticas
públicas.
A proposta tem a intenção de gerar um diagnóstico quali-
tativo e quantitativo dos resíduos sólidos na baía de Guanabara,
feita com apoio de pescadores que contribuíram em todas as eta-
pas da pesquisa, como a demonstração dos pontos e dos vetores
de concentração, da coleta e do transporte. Trabalharam junto
com a equipe técnica composta por pesquisadores graduados e
estudantes universitários que monitoraram os trajetos, os pontos,
mapearam o grau e os pontos de maior concentração de polui-
ção. Esses diagnósticos contribuíram para maior compreensão
do universo da problemática dos resíduos sólidos na baía de Gua-
nabara. Estudos mais aprofundados sobre metais pesados e nível
de indicadores bacteriológicos nos resíduos e nas águas da baía
foram descartados pelo patrocinador, que apontou o desenvolvi-
mento desses estudos em outras instituições ligadas diretamente
a análise bioquímica de poluentes e que a inserção dos mesmos
encareceria muito o projeto.

120  Projeto Baía Limpa Projeto Baía Limpa  121

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Resumo da metodologia prevista e sitiva a ser desenvolvida e apresentada por meio de um seminário
executada no projeto original aos conselhos legislativo de meio ambiente.

Retirada dos resíduos sólidos depositados no litoral (praias, man- Resultados da pesquisa
guezais, etc.) e de fundo e mensuração das etapas com a utilização
de embarcações pequenas, que retiraram os resíduos sólidos do O período de atividade compreendeu de janeiro de 2009 a feve-
litoral, das ilhas e em alguns casos resíduos flutuantes. Foram pre- reiro de 2010, com três encontros semanais e, ao final deste perí-
vistos 1.152 pescadores, mas por motivo de problemas organizacio- odo, foram contabilizados 734.208kg de material sólido, distribu-
nais da colônia Z12, seus pescadores não participaram do projeto, ídos em 90.540 sacos de 200 litros. Os pescadores da colônia Z8
com isso, de fato foram cerca de 1.080 de pescadores, divididos em retiraram 343.376kg com 50.106 sacos de 200 litros. Nas colônias
quatro grupos trabalhando uma média 3 meses cada. Os pescado- Z10, praia de Tubiacanga (Ilha do Governador, Rio de Janeiro),
res iam a campo três vezes por semana, coletando resíduos sólidos foram coletados 88.834kg em 7.435 sacos de 200 litros. Nas colô-
e trazendo aos pontos de coleta, onde o material depois de pesado, nias Z10/Z11, Ilha do Fundão (Ramos, Rio de Janeiro), foram
catalogado, fotografado (por amostragem) foram encaminhados coletados 127.043kg em 15.704 sacos de 200 litros. Na colônia Z9,
às secretarias municipais de limpeza pública e as cooperativas de Magé, foram coletados 174.955kg em 17.295 sacos de 200 litros.
reciclagem patrocinadas pela Petrobrás.
Os pontos de amostragem e embarque das atividades de Características do material recolhido e áreas de atuação
campo foram:
1  Praia de Ipiranga (Mauá, colônia Z9); Observando pelo aspecto do barco, a maioria deles recebeu em
2  Praia de Gradim (São Gonçalo, colônia Z8); média 12 sacos por dia de atividade, devido à limitação, tanto do
3  Área da colônia Z11; transporte quanto da capacidade de queima da parceira “Usina
4  Praia da Bica (Ilha do Governador, colônia Z10). Verde”, uma usina termoelétrica (protótipo) que funciona a par-
O mapa a seguir mostra as dezenas de pontos de coleta de tir da queima de resíduos sólidos cuja reutilização ou reciclagem
resíduos sólidos em praias, mangues continentais e ilhas e as não é possível.
áreas em que houve arrasto de fundo. As áreas que tinham maiores quantidades de resíduos sóli-
Foi realizado também, de forma inicial, o programa de edu- dos coletados no período de agosto de 2009 até fevereiro de 2010
cação ambiental, a partir dos dados do projeto no colégio Carlos foram: Coroa Grande, Carrefour, Ilha do Pontal, Manchete, praia
Maia, situado no município de São Gonçalo, bairro Porto Velho, da Beira, praia da Luz, praia das Pedrinhas, rio Imbuassú e rio
área tradicional de comunidades de pescadores. Trabalhamos Marimbondo (áreas de abrangência da colônia Z8); praia de Tubia-
com quatro turmas do primeiro ciclo fundamental (em 2010) e canga, praia do Galeão, Ramos, Catalão, Ilha do Fundão – cidade
o trabalho foi muito produtivo, pois identificamos a importân- universitária, próximo do prédio da educação física da UFRJ (área
cia de, por meio da educação, de mudar olhares sobre o mundo de abrangência da Z11 e Z10)– morro Grande, praia de São Fran-
e possibilitar outra postura frente a sociedade, o Estado e o meio cisco, praia do Anil, rio Suruí e praia do Ipiranga, praia de Olaria,
ambiente, buscando compreender e buscar mecanismo de prote- foz do rio Suruí e canal de Magé (área de abrangência da Z9).
ção ambiental, tal como a coleta seletiva, não jogar lixo nos rios, De acordo com cada área e respectivos períodos selecionamos
nas encostas e na baía. Foi realizada também uma agenda propo- as três principais áreas de concentração em cada ponto de coleta.

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Mapeamento dos dados Análise qualitativa dos resíduos coletados

Os dados quantitativos foram tratados por meio do GPS e de pro- A maioria dos resíduos coletados é de origem industrial – mer-
grama de geoprocessamento, para serem georeferenciados. Foram cadorias de bens de consumo durável e não durável. São em sua
construídos dois mapas. A seguir será visto o mapa que trata da maioria formados por garrafas pet, pneus, plásticos em geral
localização dos pontes de coletas de resíduos sólidos apontados (copo, boneca, cadeira, bacia, balde, vasilha de manteiga, entre
pelos pescadores e mensurados pelo grupo de pesquisadores. outros), tecido (roupas, lençóis), latas (óleo, sardinha em lada,
cerveja, refrigerante), garrafas de vidro (cerveja, aguardente) e
sacos plásticos (supermercados, lojas). Encontra-se em menor
escala resíduos perigosos – hospitalares: bolsas de sangue, agu-
lhas e seringas.

Figura 2  Projeto Baía Limpa. Pontos de coleta de resíduos sólidos na baía de Figura 3  Atividade do projeto no campo, 2010.
Guanabara.

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Considerações finais

O presente texto apresenta somente uma parte muito limitada


do projeto que, por envolver a experiência de troca de saberes do
pescador e do geógrafo, ampliou em muito a nossa compreensão
sobre o cotidiano, o território, o conhecimento coletivo vivido e
aprendido a partir da oralidade e da experiência espacial. O pro-
jeto, neste sentido, constitui em pesquisa e extensão, com ativi-
dades de campo e de laboratório, de organização de pessoas e de
dados, de captura de saberes, imagens e construção primária de
dados analíticos.
Trata-se de uma atividade na qual pensávamos e repensá-
vamos o tempo todo o método dialético no sentido de permitir a
compreensão de conflitos políticos, conflitos entre saberes e ten-
sões do próprio cotidiano da metrópole fluminense, na sua rela-
ção com os poderes públicos e a percepção da sociedade urbana
que veem a baía de Guanabara como “quintal dos fundos”, uma
espécie de “espaço público invisível”.
No entanto, para os pescadores artesanais que moram pró-
ximo, navegam e/ou pescam na baía, esta é seu lugar de abrigo e
de trabalho, referência cotidiana, memória e território de auferir
sua renda e sustentação familiar. Por isso, a visibilidade aos pro-
blemas da baía de Guanabara é tão vital para eles e é igualmente
fundamental ao saber científico compreender essa dimensão que
brilhantemente Milton Santos (1996) denominava de espaço
banal (espaço de todos).

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128  Projeto Baía Limpa

Cartografia da ação e movimentos da sociedade.indd 128-129 14/10/2011 19:39:37


A particularidade do Movimento Negro
enquanto sujeito da história brasileira
Andrelino Campos

Introdução

Compreender a formação do sujeito não é – nem nunca foi – uma


das tarefas fáceis na história socioespacial brasileira. Se, por um
lado, os discursos qualificam os sujeitos hegemônicos por meio da
história oficial; por outro, a desqualificação de todos e quaisquer
movimentos populares acabam tornando esse movimento legí-
timo, visto que não se constrói oposição à ação hegemônica. Sem
resistência, não há ponto de vista divergente, ocasionando movi-
mentos convergentes. Os sujeitos tornam-se universais e o ati-
vismo popular um particular invisível na história da sociedade
brasileira.
As lutas contidas nesses ativismos sociais, por exemplo,
dos negros, dos sem-terra, do feminismo, são travadas por pes-
soas que, reunidas em dado momento da história, iniciaram e/
ou mantiveram um determinado interesse em assuntos que esta-
vam (e continuam) fora de seu controle pessoal. Os espaços de
resistência constituídos por estes grupos, dada a longa trajetó-
ria, necessitam ser examinados de forma direta para determi-
nar a importância enquanto fazedores de história coletiva. Estes
espaços de resistência constituídos pelos grupos subalternos
sofrem pela invisibilidade, pela mudez, pela pouca acessibilidade
ao mundo do trabalho, pela pseudoeducação progressista, pela
saúde combalida e, fundamentalmente, associada a estes fatores
a falta de importância social apenas reconhecido por aquilo que
os grupos hegemônicos acreditam não ter importância.
Ressalta-se o ativismo de negros ao longo da história bra-
sileira, que vem, através da história socioespacial urbana, des-
tacando-se no âmbito dos movimentos sociais pela longevidade
da suas atividades, deixando de ser apenas um conjunto de pes-
soas para se tornar projeto de mudança da sociedade brasileira.

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Em função destes elementos, pergunta-se: como são formados os Se quisermos descobrir pretos e pardos como sujeitos da his-
sujeitos? Qual é a importância da dimensão da particularidade tória, precisamos vê-lo em movimento com os outros sujeitos que
em sua formação? produzem o espaço urbano. A passagem de indivíduo1 a sujeito
Este ensaio será apresentado em duas partes: a primeira tra- tem algumas mediações que necessitam ser feitas para que se
tará da transformação da pessoa em sujeito do conhecimento e possa compreender melhor o movimento entre um e outro, para
da história e a segunda parte levará em consideração ação do que, a partir de então, possa acontecer a relação com a socie-
sujeito e a sua atuação do no urbano. dade. Apesar da tradição nos remeter a uma polissemia, a pala-
vra indivíduo torna-se, dependendo de seu emprego, mais nebu-
Entre a pessoa e o sujeito do conhecimento losa do que esclarecedora. Etimologicamente, o termo deriva do
ou a sociedade em movimento latim e significa aquilo que é indivisível, uno, que não foi separado,
mas o indivíduo-homem não se torna diferente do elefante ou de
As expressões “somos todos iguais” ou “somos todos seres huma- uma árvore isolada ou em uma floresta. Todos são únicos, por-
nos” embutem uma pseudouniversalidade do sujeito, onde a his- tanto singulares. Segundo Elias, “Não há duvida de que cada ser
tória parece ser uma história comum. Contudo, ela não é tão humano é criado por outros que existam antes dele; sem dúvida,
comum: a universalidade como fenômeno não dita a história de ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um
todos, visto que cada um de nós, apesar de viver fora da reunião todo social – seja este qual for” (1994, p. 19).
(Castoriadis, 1986), é na reunião com o grupo que aprendemos, Contudo, mesmo no senso comum, capitaneada pela influ-
tomamos consciência do “eu”, pessoa-para-si, do “outro” que em ência da biologia, fala-se em ser humano, que de alguma forma
articulação com “eu”, torna-se pessoa-para-o-outro (Vaz, 1992) e é para distinguir esse ser dos demais na dimensão do indiví-
das coisas. duo. O primeiro nível de distinção é do indivíduo para indivíduo
Desta maneira, a família, o grupo da escola, o trabalhador, o humano. Em qualquer situação, enquanto espécie, o indivíduo
integrante de movimentos sociais (sindicalistas, movimentos sem- humano será diferente dos demais indivíduos, não havendo pos-
terra, sem-tetos), apesar de conter elementos da universalidade, sibilidade de colocá-lo em qualquer esquema de natureza, sendo
possuem uma distinção, que se faz pela particularidade da famí- um passo da transcendência para construção de o próprio “ser”.
lia, dos grupos de escolas, da localização dos movimentos sociais Essa é uma das possibilidades de se constituir toda cadeia ascen-
que atuam no Brasil, distinguindo dos movimentos localizados em
outros lugares. Se o sujeito da história tem seu princípio básico 1  Quando a literatura trata do tema sujeito e objeto, em geral, a referência
é da indissociabilidade dos dois – Schopenhauer (2001); Castoriadis (1986);
nesta, a história de todas as pessoas também é universal? Então, Elias (1994) e, de certa forma também Santos (2008) – é para reafirmar que
como os grupos se tornam e se reconhecem produtores da histó- não há possibilidade de um existir ou deixar de existir sem a presença do
ria na cidade e no campo? Como negros e negras podem ser sujei- outro. Nesses termos, apesar das adaptações aqui e acolá, os autores referem-
se ao conhecimento, sendo então esse termo da indissociabilidade. No caso
tos da história se não são sujeitos universais? Como encontrar
específico tratado por Santos em diferentes ocasiões, o que é relevante são
diferença entre os movimentos sociais, se os tornamos universais? os objetos materiais colocados na escala singular ou particular. Para que os
Estas perguntas não têm nenhuma possibilidade de resposta, se objetos materiais (singular ou em sistema) possam se constituir em elemento
adotarmos os esquemas que produzem sujeitos no contexto da fundamental para a análise, o movimento entre indivíduo-pessoa-sociedade
precisa de estágios diferentes, para que o objeto passe a condição de repre-
universalidade da história, seja ela brasileira, norte-americana,
sentação. Isto não pode (e não deve) ser atributo do indivíduo humano, mas
sul-americana. Precisamos de mediações para encontrar o ethos da pessoa em sua condição de existência na particularidade (Chaui, 1995;
de cada um dos sujeitos responsáveis pela história. Schopenhauer, 2001; Castoriadis 1986; Elias, 1994).

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dente em movimento incessante e constante. Porém, apesar do natural dada, indivíduo da espécie humana, diferente de outras
Ser constituir-se em um abismo indecifrável, o indivíduo, ao se formas de vida, para “pessoa-para-si” que “está no mundo”, jun-
transformar em indivíduo humano, é vedada a condição de fazer tamente com outras “pessoas-para-o-outro”, deve ser ponto chave
o movimento descendente, por livre vontade, em direção à condi- desse movimento.
ção natural de tornar-se indivíduo como todos os outros. Este estágio, primário e singular, permite que as materiali-
O movimento posterior ao estado de indivíduo humano, dades das coisas e dos objetos materiais, em conjunto com suas
como dito acima, é constituído à medida que ele “é criado por próprias materialidades, façam de suas existências uma existên-
outros que existam antes dele; sem dúvida, ele cresce e vive como cia concreta, visto que “pessoa-para-si” e objetos (isolados), ou
parte de uma associação de pessoas, de um todo social – seja este considerados em seu conjunto (sistema de objetos), são elemen-
qual for” (Elias, 1994). Esse movimento é a chave. Em movimento tos concretos. As pessoas, em suas singularidades, apenas utili-
ascendente de transformação-alteração2 constante, de indivíduo zam as informações que são produzidas: cadeiras, carros, casas,
humano-pessoa chega-se a possibilidade tornar-se sujeito, sendo ratos, elefantes, Joaquim, Rosi, Arion Abaáde, Pedro etc.; são
que esse, segundo Castoriadis (1986) e Schopenhauer (2001), só designações que nos ajudam a reconhecer a todos e tudo, faz com
ocorrerá pela história. Ainda de acordo com o primeiro, só aque- que não criemos confusão. Contudo, que não esqueçamos, essas
les (grupos) que constroem seus projetos poderão completar esse designações são herdadas e a recebemos quando somos inseridos
movimento. no grupo maior do que nós mesmos, como apontam Vaz (1992),
Expõe-se uma polêmica: onde poderão enquadrar-se os indi- Elias (1994) e Castoriadis (1986).
víduos que fazem o primeiro movimento de indivíduo a indivíduo A “pessoa-para-si” ou “pessoa-para-o-outro”, apesar de suas
humano e por condições biológicas e psicológicas não adquirem condições de indecifrável tem, por meio de sua materialidade,
consciência de si nem dos outros? Como vamos tratá-los do ponto uma única possibilidade ser tratada como indivíduo, como qual-
de vista conceitual? Diferente do tratamento que cada grupo ou quer outro indivíduo. Nesta condição, não há como a “pessoa-
sociedade lhe dispensa? Essa é uma questão polêmica, visto que, para-si” ou “pessoa-para-o-outro” transformar-se em indivíduo,
para ser considerada sociedade, a produção de preconceito, dis- mas cada um dos viventes é transformado em indivíduo para que
criminação e segregação lhe é inerente, seja ela qual for, longe possa ser mensurado, classificado, objetivado, entre outras pos-
do que pretende Castoriadis (1986) quando disserta sobre a auto- sibilidades, portanto conhecível em toda sua totalidade, função
nomia. Pelo estatuto “natural” da sua forma, homem é dado a si que dificilmente poderá ser exercida para a dimensão da pessoa
mesmo na complexidade das suas estruturas somática, psíquica ou da sociedade, apenas cabendo ao individuo tal situação (Vaz,
e espiritual, do seu “estar no mundo” e seu “estar com o outro”, 1992, p. 213).
do seu abrir-se para a transcendência. A transição entre a forma Segundo o autor, o que faz a diferença entre indivíduo e pes-
soa, é que o primeiro pode ser desvendado em toda a sua exten-
2  Entendemos que o movimento alteração-transformação tem fases dis-
são, enquanto a pessoa é inatingível em seu “ser”, seja qual for o
tintas. A alteração diz respeito ao sentido, à posição, à situação entre outras
possibilidades que se encontra o “ser”, ou o objeto, ou qualquer coisa que esquema científico. Neste sentido, uma ciência da pessoa mostrar-
conhecemos. A transformação nos dirá se há permanência ou mudança do se-ia inexequível, pois a pessoa não pode ser aplicada a nenhum
“ser”, do objeto, ou de qualquer coisa que conheçamos. No que refere à per- conceito operacional, construído segundo um modelo que a sub-
manência, quando se trata de estrutura societária mais atrasadas, acredita-se
meta a objeto ou a regras de experimentação a partir das quais se
que carregam fortemente as tradições, homens lentos (Santos, 2008), por-
tando os movimento são pouco perceptíveis em comparação, por exemplo, obtenham resultados indefinidamente repetíveis (ib., p. 213).
com os atores que vivem espaços luminosos (ib.). Enquanto a razão dessacraliza tanto a natureza quanto o

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indivíduo na passagem à pessoa, o mesmo não ocorre na pas- norma, onde a ideia de pessoa passa a ocupar a centralidade do
sagem de pessoa em sua transcendência cristológica e trinitá- universo simbólico em nossa civilização.
ria para um ser historico-social. Essa, segundo Vaz (1992, p. 206), A pessoa enquanto “ser para o outro” (ou “pessoa-para-o-
será feita em dois movimentos: heurístico e normativo. O arqué- outro”), movimenta-se entre a singularidade e a particularidade,
tipo teológico desempenhou uma função ao mesmo tempo heu- sendo que, na dimensão escalar da singularidade, encontra-se
rística3 e normativa na configuração histórica da “experiência da com outras “pessoas para si”, em reunião para se tornar “pes-
pessoa” – que se tornou para o homem ocidental a experiência- soa-para-o-outro”. Ainda nesta dimensão, por meio do corpo de
fonte da sua autocompreensão –, sem a qual dificilmente podería- cada “pessoa-para-si”4 em reunião com outras e os objetos mate-
mos compreender o sentido profundo da preeminência da pessoa riais (isolados ou em sistemas), a relação é estritamente con-
no centro do universo simbólico da nossa civilização. creta. Desta forma, são absorvidos os fluxos enviados da particu-
A função heurística, em primeiro lugar, foi sem dúvida a laridade pelo sujeito por meio da ação de “pessoa-para-o-outro”.
revelação da pessoa no mistério cristológico e trinitário que É nesta dimensão da relação que acontecem as mediações entre
apontou para o núcleo essencial a partir do qual foi possível pen- tudo que pertence ao imaginário social – mitos, lendas, conceitos,
sar a analogia entre a pessoa divina e a pessoa humana. Esse compreensão de si e dos outros, ou seja, tudo que faz parte do sis-
núcleo, no qual Deus é afirmado na profundidade inalcançável tema simbólico e seus desdobramentos – para a “pessoa-para-si”.
do mistério – e dessa profundidade irradia para o homem, envol- Contudo, a existência desse movimento só pode ocorrer dessa
vendo com um reflexo do mistério divino a intimidade inviolá- maneira em função do sujeito, mediador entre a particularidade
vel da pessoa humana –, é constituído justamente pela “unidade e a universalidade, que ratifica os fluxos de todo imaginário social
de oposição”. Segundo esta, a pessoa se realiza no próprio prin- para moldar a sociedade.
cípio de inteligibilidade do seu “ser”, ou seja, na sua essência, a Se a sociedade, o sujeito e a pessoa são inatingíveis em fun-
identidade paradoxal do absoluto “ser em si” e do absoluto “ser ção do que Castoriadis (1986) estabelece como abismo, não
para outro”, assim como a pessoa divina se revela no mistério da sendo possível nenhuma operação ou estudo para desvendá-las,
encarnação e na circunsessão da vida trinitária. então como se operam as estatísticas populacionais? O movi-
Esse foco primeiro de inteligibilidade da analogia da pessoa mento que se faz é descendente, torna-se o sujeito em pessoa-
ilumina definitivamente o centro mais íntimo da natureza da pes- para-o-outro, desta em pessoa-para-si, onde são encontradas as
soa humana que é – ou deve ser –, na unidade de um mesmo exis- possibilidades da não reunião. Mas, ainda assim, enquanto pes-
tir ou no movimento da sua realização, a inviolável identidade soa-para-si ainda não há como desvendá-la, sendo necessá-
em si (estruturas) e a radical abertura para o outro (relações). Em rio ainda o movimento derradeiro, torná-la individuo humano.
segundo lugar, a função normativa que se dá na (e pela) histó- Enquanto indivíduo humano, existe a possibilidade de ser men-
ria que foi desenvolvida na tradição ocidental, teve inicialmente surado, compreendido em grandes conjuntos matemáticos, ser
como princípio a suposição de que somos todos constituídos “a contado, transformado em parte, 1⁄3, quase todos: portanto cons-
imagem e semelhança do criador”, sendo este processo mediati- titui uma totalidade. Nesta dimensão, não há história e nem há
zado pelo tema da imagem metafísica, fora da história humana. lugar, portanto não se pode falar da dimensão do tempo, nem de
Neste sentido, o passo seguinte foi criar referências com esta espaço, nem tampouco de sociedade.

3  Conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à 4  Adiante, a corporeidade será tratada como uma dimensão importante para
resolução de problemas. constituir o lugar.

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A “pessoa-para-si” – em sua singularidade – inicia a de gênero etc.)” (ib., p. 281). Estes ativismos sociais permanecem
mudança ao se movimentar com outras “pessoas para si”, tor- enquanto tal quando as ações são regulares, mas não têm como
nando-se então “pessoa-para-o-outro”. Neste estágio de trans- base o tempo histórico que possa ser reconhecido como impor-
formação, a escala da singularidade inicia seu movimento para a tante do ponto de vista social. Mesmo sendo importante em suas
particularidade, tendo como lastro o movimento das pessoas. O posturas, ainda não podem ser reconhecidos como movimento
fato de constituir-se em “pessoa-para-o-outro”, no limite superior social em seu sentido stritu, como, por exemplo, o movimento
da singularidade, necessita de alguns atributos que os distinguem sem-terra, movimento negro, sindicatos de trabalhadores que,
de atividades ocasionais. Quando as torcidas de grandes times de um dia, reuniam “pessoas para outro”, mas não podiam ser classi-
futebol se movimentam para os estádios em dias jogos com riva- ficados no sentido forte. Desta forma, podem ser classificados no
lidades extremas, confrontam-se aqui ali, provocando mortes, nível intermediário da particularidade.
quebra-quebras em transportes públicos, patrimônios públicos Entre uma escala e outra (particularidade/universalidade),
etc. Algumas horas depois da partida, contam-se prejuízos e as na ação da “pessoa-para-o-outro”/sujeito/sociedade, são criadas/
mortes, situação essa que exemplifica bem o estágio de fraqueza produzidas uma gama de elementos que compõem o sistema sim-
da reunião da “pessoa-para-o-outro”, onde o passo seguinte é bólico, a emoção e todo tipo de sentimentalidade que interfere
retorna à escala da singularidade de cada um dos participantes. na compreensão dos objetos que fazem parte do mundo material,
Outra situação bem diferente é quando pessoas se movimen- inclusive de “si mesmo”.
tam em protesto contra a violência policial, o descaso com a edu- Na relação espaço-temporal, os eventos se sucedem dentro
cação, a saúde pública ou outras ações de cunho mais político, de alguma lógica que envolva a cronologia entre diferentes ele-
constituindo em possibilidade real de se tornar a frente em ati- mentos: sujeito da ação,5 as representações do objeto e/ou do sis-
vismo social. Com esta perspectiva, Souza (2006, p. 280) reco- tema de objetos materiais. Neste caso, para a dimensão espacial,
nhece que há dificuldades em distinguir entre os diferentes ati- o lugar ocorre pela copresença da “pessoa-para-si” e da “pessoa-
vismos urbanos, em função de suas práticas. Neste sentido, dirá para-o-outro” na escala singular juntamente com os objetos mate-
o autor, há de se fazer uma distinção entre “ativismos urbanos
stricto sensu e ativismo urbano lato sensu”. Os primeiros, em sen- 5  Quer se colocar em discussão a denominação de Santos (2008, p. 61–87)
tido forte, giram muito e explicitamente em torno de problemas “sistema de ação”. No primeiro momento, é necessário apontar a ação (capa-
diretamente vinculados com as práticas socioespaciais, como, por cidade de mover-se, de agir; movimento, funcionamento). Essa perspectiva
diz respeito ao sujeito. Contudo, quando vamos examinar o sistema de objeto
exemplo, o acesso aos equipamentos de consumo coletivo e, mais também, segundo Schopenhauer (2001), tanto na sua singularidade como
abrangentemente, às condições de reprodução da força de traba- inserido em contexto mais amplo, a sua essência é a atividade. A explicação
lho que assumem importância central nesta relação. mais geral, de acordo com o autor, é a existência da substância, fundamento
para a existência da matéria. Sem movimento, não há substância, sem
Por outro lado, os ativismos urbanos lato sensu, “em sentido
substância não existe matéria, sem matéria não há objeto. Como, de acordo
amplo e fraco, são aqueles que, embora tenham as cidades como com que acreditamos, não há como rediscutir o princípio da matéria, é mais
seu palco preferencial (e, às vezes, quase exclusivo), se referen- prudente propor novos entendimentos no que concerne à relação entre o
ciam apenas indiretamente pela espacialidade urbana. Sua exis- sujeito da ação / sistema de objeto com intuito de reduzir sensivelmente as
contradições existentes no sistema de ação / sistema de objetos de Santos
tência gravita em torno de questões ‛setoriais’ (melhores condi-
(2008). Lembrar que esta discussão precisará ainda de muita reflexão para
ções de trabalho e resistência contra a exploração e a opressão que possa chegar ao bom termo para a aceitação razoável. Voltaremos ao
na esfera da produção, luta contra a desigualdades e injustiças tema em outros momentos.

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riais, mas, de certa forma, essa relação não poderá ser constitu- e as intenções de cada um são realizáveis. Por esta razão, ela é
ída por meio de a priori, visto que ela é histórica. o mundo da intimidade, da familiaridade e das ações banais.
O lugar, de acordo com Silva (1988), é a maior e a menor Assim, como a sucessão/cotidiano expressam a organização de
dimensão em que pode ocorrer o evento (social-histórico e/ou atividades das pessoas, a dimensão espacial que melhor repre-
“natural”). Neste sentido, ele não é apenas lócus, mas onde são senta é o lugar, onde as práticas espaciais podem ganhar ritmo
abrigadas as pessoas e tudo que as cercam, incluindo neste o sis- de acordo com o tempo. Ainda pensando a não-relação do coti-
tema simbólico que é atribuído ao que se conhece. Desta forma, diano e da história, o autor entenderá que a guerra é a história.
tempo não é simplesmente tempo, por que o lugar não é lugar de No choque entre a guerra (a história) e a cotidianidade, a cotidia-
todos os seres, mas apenas de “pessoa-para-si” em reunião con- nidade é dominada: para milhões de pessoas cessa o usual ritmo
substanciada de “pessoa-para-o-outro”. Tal movimento se desdo- de vida. Mas também a cotidianidade dominará a história: até a
bra em história da relação de uma pessoa com as outras, possibi- guerra tem a sua própria. No choque da cotidianidade com a his-
litando cumprir a transição entre a singularidade e a particulari- tória (com a guerra), no qual a (primeira) cotidianidade foi des-
dade (“pessoa-para-si” e “pessoa-para-o-outro”). truída e a outra (a nova) ainda não se formou, porque a ordem
É nesta dimensão do tempo que ocorre o movimento que da guerra ainda não se estabilizou bem como ritmo de ação e de
caracteriza o esquema da sucessão. Castoriadis nos dirá que: “O vida – habitual, mecânico e instintivo. Neste vácuo se descobre o
que se dá em (e pela) história não é uma sequência determinada caráter da cotidianidade e da história e, concomitantemente, se
do determinado, mas emergência radical, criação imanente, novi- revela o seu relacionamento recíproco.
dade não trivial. É isto que manifestam tanto a existência de uma Essa possibilidade que permite ao autor afirmar que histó-
história in tato como aparecimento de novas sociedades” (1986, ria não pode ser (e nunca será) uma repetição. Como na guerra
p. 220) e de novas pessoas e a fabricação também de novos indi- que rompe a cotidianidade, cortada pela simultaneidade da pri-
víduos humanos. A sucessão6 enquanto processo temporal é res- meira. Exemplificando: João sai de casa para ir ao trabalho. Para
ponsável pelo cotidiano das pessoas em suas singularidades, que chegue ao trabalho, ele fez uma série de movimentos sucessi-
pois de certa maneira as submetem a rotinas repetitivas, corta- vos em tempos/espaços diferentes. Sem levar em conta a dimen-
das muito eventualmente pelo inesperado. Ou seja, em geral saí- são do devir, apenas executou os movimentos, como acordar (em
mos pela manhã para nossas atividades e, em algum momento algum lugar), ficar sentado (na cama ou algo que o valha), levan-
do dia esperamos voltar (sem que tenhamos nenhuma surpresa). tar-se (nesse e desse lugar), andar (…) sair de casa (lugar) che-
Sobre o tema, recorremos a Karel Kosik (1976, p. 68–71), quando gar ao trabalho (lugar). Há sempre a indissociabilidade entre
afirma que a vida cotidiana é antes de tudo organização, dia a espaço/tempo, ou, melhor dizendo, entre o cotidiano/lugar7 para
dia, da vida individual dos homens; a repetição de suas ações a pessoa.
vitais é fixada na repetição de cada dia, na distribuição do tempo
7  A dimensão da sucessão/simultaneidade não deve (e não pode) ser
o em cada dia. Na cotidianidade, tudo está ao alcance das mãos
considerada sem a sua dimensão espacial, horizontalidade/verticalidade do
fenômeno. Santos (2008, p. 284) diz: “As segmentações e partições presentes
6  A sucessão, nesse esquema proposto pelo autor, encontra a diacronia, visto nos espaços sugerem, pelo menos, que se admitam dois recortes. De um lado,
que naquilo que trabalha a diacronia, horizontalidade e a corporeidade no há extensões formadas de pontos que agregam sem descontinuidades, como
contexto do lugar. Parte desta relação será tratada neste texto, enquanto a na definição tradicional de região. São as horizontalidades. De outro lado,
referente às horizontalidades/verticalidades como dimensão da espaciali- há pontos no espaço que, separados uns dos outros, asseguram o funciona-
dade e diacronia/sincronia, pertencentes ao tempo serão abordadas em mento global da sociedade e da economia. São as verticalidades. O espaço se
outra ocasião. compõe de uns e de outros desses recortes, inseparavelmente”.

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Porém, se João tem família, ela também, em movimentos algumas particularidades que não repetem em parte alguma.
sucessivos de cada “pessoa-para-si”, torna-se movimento “pes- Alguns elementos da universalidade, como o caso dos movimen-
soa-para-o-outro”, então de uma simples sucessão de tempo, coti- tos sociais, são transferidos dessa à particularidade (e vice-versa).
diano/lugar singulares, sucessão de tempos cotidianos/luga- Contudo, outros elementos são retidos na escala da particulari-
res singulares, transformam-se em história particular de uma dade para serem compreendidos em toda a sua extensão. Ao pen-
família. sar “pessoa-para-si” em movimento para a reunião com “pes-
A dimensão de “pessoa-para-o-outro”, constituída no con- soa-para-o-outro”, permite que as diferentes associações não se
texto da família de João, ou seja, o estado de reunião, é a simulta- repliquem, visto que os grupos constituem metas distintas para
neidade espaço/tempo, possibilidade de encontros em que ocorre viabilizar a sua reunião. Por exemplo, o sindicato de metalúr-
a história de alguém em dado lugar. O trabalho de João, a situa- gicos do ABC paulista convoca uma greve de seus trabalhadores
ção é também de encontro, de reunião de múltiplos tempos/espa- associados, ao mesmo tempo em que sindicato de metalúrgicos
ços e de múltiplas “pessoas para si”, tornando-se na reunião “pes- de Berlim, apesar da universalidade de ser sindicalizado metalúr-
soa-para-o-outro”. Neste sentido, o esquema da sucessão (coti- gico, as pautas de reivindicações se aproximam aqui e acolá, mas
diano) torna-se esquema da simultaneidade. Assim, a dimensão cada qual terá as especificidades pelas quais serão identificados
espacial, também em movimento, transforma-se, mesmo que seja como metalúrgicos do ABC paulista, diferentes dos trabalhadores
apenas pelas mudanças de lugares, visto que cada “pessoa-para- de Berlim. Cada grupo precisa, desta maneira, de particularidade
si” tem história e lugar singular. (ou melhor, de particularidades).
A particularidade, enquanto movimento social urbano, age
Os movimentos sociais negros e a produção no espaço geográfico recortado no território, pois além das hie-
de sujeitos no espaço urbano rarquias, encontramos fortes correlações de conflito. Porém, a
“pessoa-para-si” e a “pessoa-para-o-outro”, sobretudo a primeira,
Todas as mulheres, homens, estudantes, professores, escolas e tem como campo de atuação inicial o lugar, onde é encontrando a
movimentos sociais são fatos universais que não há como deter- dimensão do tempo da cotidianidade, Neste sentido, por meio da
minar nem lugar, nem história. Nesse caso, o sujeito é difuso, por corporeidade da “pessoa para si” articulada com o sistema de obje-
isso, o conhecimento produzido por eles, também é difuso. Para tos materiais cria-se identidade singulares para si. Isto é o lugar.
que possamos entender a ação do sujeito em toda a sua exten- Como cada “pessoa para si” tem história e localização, a rela-
são, é necessário compreendê-lo em escalas menores: as particu- ção irá acontecer primeiro consigo mesmo, para depois ocor-
laridades. Nesta escala, as práticas socioespaciais dos sujeitos tor- rer “pessoa para o outro” e, posteriormente com as coisas e obje-
nam mais próximos dos eventos, ou seja, de suas histórias e das tos isolados ou articulados – sistema de objetos (Santos, 2008).
dimensões espaciais onde ocorrem os fenômenos. Desta maneira, A relação inicial é da “pessoa para si” consigo que é resultado da
podemos distinguir os movimentos sociais de escala local, regio- sua corporeidade. Assim, a noção de corporeidade:
nal, ou continental sem que tenhamos generalizar atuação de
cada grupo pela dimensão da universalidade. (…) mais que a materialidade do corpo, que o somatório de
É, neste sentido, que podemos compreender os movimen- suas partes; é o contido em todas as dimensões humanas;
tos sociais urbanos de negros, das mulheres sem-tetos do Rio de não é algo objetivo, pronto e acabado, mas [um] processo
Janeiro, dos professores públicos de Araruama, dos alunos das contínuo de redefinições; é o resgate do corpo, é o deixar
escolas públicas de Vassoura que, pela suas atuações, possuem fluir, falar, viver, escutar, permitir ao corpo ser o ator princi-

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pal, é vê-lo em sua dimensão realmente humana. Corporei- tenham projetos, nos termos como nos ensina Castoriadis (1986),
dade é o existir, é a minha, a sua, é a nossa história (Polak, em que a “pessoa-para-o-outro” se reúna para alcançar um dado
1997; apud Scorsolini-Comin e Amorim, 2008, p. 208). objetivo e que seja historicamente demarcado pela ação.
Não é qualquer encontro que cumprirá esse objetivo, são
Aceitando que tudo se encontra em movimento, representado em os grupos que tem a vontade de mudança e, pela sua disposi-
larga medida pela história, entendemos que a corporeidade se faz ção, rejeitam a condição do movimento alteração-transformação
pela ação de corporificação do ser em sua materialidade, sendo da permanência, como, por exemplo, a escola, a família, igreja,
a primeira responsável pelas imaterialidades que dão sentido ao o Estado constituído, sindicatos legitima e são legitimados pelo
segundo movimento, a corporeidade. capital. Para entender a preocupação, seguimos Souza (2006,
Em uma visão mais complexa, Kolyniak (2008, p. 338–339), p. 273) quando afirma que:
em artigo publicado pós-revisão de Scorsolini-Comin e Amorim
(2008), definirá a noção de corporeidade da seguinte maneira A expressão “movimento social”, que soa simpática à maio-
(comentários do autor entre colchetes): ria dos ouvidos dos acadêmicos, notadamente àqueles mini-
mamente educados para apreciar o protagonismo popular e as
Nascemos como corpo, em torno do qual e com o qual cons- abordagens críticas do status quo capitalista/heterônomo, tem
truir-se-á uma história pessoal, inserida na história fami- sido usada de numerosas maneiras. No Brasil, em particular,
liar e cultural. Desde o momento do nascimento, o corpo vai- onde a literatura sobre os movimentos sociais urbanos produ-
se conformando como corporeidade, por meio da atividade zida nos anos 70 e 80 [século XX] caracterizou-se fortemente
[movimento] e da consciência. Por meio da ação [que tam- por empirismo e escassez (ou rarefação analítica) de referen-
bém é movimento] e da percepção multissensorial (visão, ciais teóricos, além de inconsistência e pouco vigor político-
audição, tato, gustação, olfato, cinestesia, propriocepção), filosófico (simpatia um pouco ingênua por quase quaisquer
aprendemos a perceber e a sentir. Esse processo vai se desen- “movimento popular urbano”), praticamente “tudo” passou a
volvendo ao longo de toda a nossa vida, no processo continuo ser denominado movimento social: de uma organização paro-
de humanização, no convívio social. A corporeidade pode ser quial e puramente reivindicatória de bairro ou favela, às vezes
observada tanto na forma [aparência?] como em seu movi- até criada e/ou manipulada por políticos clientelista, até orga-
mento, expressividade, postura, em seu padrão estético e, em nizações e mobilizações muito mais abrangentes, contestató-
especial, nos significados e valores a ela atribuída. rias e capaz de contextualizar os problemas urbanos dentro da
preocupações com a política e a economia em escalas supra-
Assim como em Scorsolini-Comin e Amorim (ib.), Kolyniak locais. As diferenças foram pouco ou muito pouco estuda-
(2008) pensa que o sentido de corporeidade diz respeito ao movi- das, balanços sóbrios do alcance e das contribuições dos movi-
mento desde indivíduo humano até a “pessoa-para-si”, contem- mentos raramente foram feitos e análises sensíveis e “realistas
plando a relação em todas as outras dimensões. Cada família, da dinâmica e do significado próprio de cada situação singu-
escola, empresa, ativismo social (sindicatos, movimento social lar foram prejudicadas por prejulgamento teórico e wishful
contra a propriedade rural e/ou urbana, associações de vários thinking político (inserção do autor entre colchetes).
matizes etc.) têm histórias e lugares ditados pela “pessoa-para-
o-outro” em reunião. Contudo, nem todos os grupos se consti- Essa longa citação espelha que o autor entende que a reunião,
tuem em sujeito do conhecimento e da história. É continente que sobretudo no espaço urbano, não constitui movimento social,

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mas necessita ter radicalidade e predisposição da alteração-trans- sendo que este também é transferido a “pessoa-para-o-outro”
formação da mudança, estabelecendo o conflito. O recorte espa- quando considerado como ativistas sociais. Apesar de não estar
cial estabelecido no urbano será o território onde o sujeito fará a explicitada a disputa de projetos de sociedade, existem interesses
sua história. Entendemos, ainda de forma muito preliminar, que conflitantes entre diferentes grupos sociais, sobretudo na reunião
o sujeito acontece em duas dimensões: de “pessoa-para-o-outro”. Neste sentido, como particípe da “inau-
1.1  Na universalidade, onde são constituídas as histórias dos guração do novo” Castoriadis (1986), a “pessoa-para-o-outro”
grupos hegemônicos que, na disputa de sentido da existência não vive o cotidiano, pois tem como localização privilegiada o ter-
humana, difundem, quase sempre, a homogeneidade na forma- ritório. Por outro lado, para um grupo de pessoas reunidas em
ção do conhecimento e da história, não reconhecendo ou invisibi- manifestação religiosa, apesar da reunião, o recorte espacial pri-
lizando a atuação de outros segmentos sociais. vilegiado é o lugar, pois o movimento anterior, “pessoa-para-si”
1.2  Os discursos sobre a verdade, sobre a vida; ou, ainda, advém das práticas socioespaciais individuais.
sobre tudo que possamos imaginar está contido de acordo com o Desta forma, propomos um quadro-síntese (na p. 148) da
sistema simbólico assentado por aqueles que acreditam dominar relação entre sujeito e recorte espacial de atuação.
a estrutura de classe social. A representação que sai e volta à pessoa em sua singulari-
1.3  Observa-se que estas verdades só passam a ter efetivi- dade de forma continua, tem como princípio a reunião de “pes-
dade à medida em que os grupos não hegemônicos as legitimam soas-para-o-outro”, caracterizando-se o primeiro estágio da par-
por meio de sua ação não contestatória. ticularidade. Nesta dimensão, o movimento seguinte é a trans-
2.1  A formação de sujeito na dimensão da particularidade formação do conjunto de pessoas em sujeito. Neste sentido, a
só pode ser entendida na relação direta com a totalidade da produção de representação tem movimento entre a “pessoa-para-
universalidade. si” (em sua vida concreta com objetos concretos) ao sujeito cria-
2.2  Como a toda totalidade é vedada atuação homogênea, dor de representações. A vida real da pessoa em sua singularidade
para tanto, é necessário que ela (universalidade) seja constituída (lugar/cotidiano) alimenta (e é alimentada) pela representação
de partes, onde podemos explicar a existência da particularidade criada no âmbito da experiência sócio-histórica do sujeito. É justa-
e dos sujeitos particulares. mente nesse nível que a relação espaço-tempo pode ser constitu-
2.3  Por isto ser metalúrgico (universal), tem algumas dife- ída. Desta forma, os lugares e suas histórias tornam-se uma redu-
renças de ser metalúrgico brasileiro ou metalúrgico berlinense, ção da realidade, uma inversão da lógica, visto que são as pes-
para tanto precisamos distinguir a relação espaço/tempo entre os soas que fazem o lugar, com todo o sistema de objetos presentes.
brasileiros e os berlinenses. Neste sentido, a pessoa/cotidiano/lugar ocupa a escala da sin-
2.4  A diferença da atuação do sujeito não se faz pela univer- gularidade; enquanto a reunião de pessoas (como possibilidade
salidade, mas pela sua particularidade. de encontros, simultaneidade) transita entre o lugar/cotidiano
Os movimentos sociais, nos termos compreendidos por Souza e o território/história (particularidade). Pois, neste movimento,
(2006), tem o caráter da radicalidade e continuidade histórica. a reunião de pessoas pode também se converter em movimento
Também pela natureza de sua atuação e disputa de projeto de para o se tornar sujeito e ainda assim continuará na particulari-
sociedade, tem como recorte espacial privilegiado o território,8 dade. O sujeito, nesta escala, guarda uma especificidade que o
diferencia de outros sujeitos, mas interage com a universalidade
8  Ver Campos, França Filho e Fernandes (2010), quando tratam da dimensão permitindo que o reconheçamos como parte do sujeito universal.
socioespacial do agir da pessoa ao sujeito. Por exemplo, ser trabalhador metalúrgico (universalidade, em

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quase todas as partes do mundo reconhecemos um metalúrgico);

história não pertence a todos os sujei-

“pessoa-para-o-outro” sem projeto de


os elementos da história são percebi-
Nas dimensões espacial e territorial,

dos em quase toda parte. Contudo a

transformação radical da mudança.


ser trabalhador metalúrgico brasileiro (existe um qualitativo: bra-

tos, mas aos grupos hegemônicos


e legitimados pela dimensão da
sileiro, portanto uma particularidade). Observe que não estamos
tratando ainda do ativismo social, apenas que apontando que,
enquanto trabalhador, se diferencia nos termos de ser trabalhador
metalúrgico; que é diferente de ser trabalhador metalúrgico brasi-
Universalidade

leiro (universal para o particular). Ao tratar do sujeito universal /


sociedade / tempo / espaço encontramos uma conjunção de ima-
terialidade que só pode ser apreendida de forma conceitual, por
isto a sua universalidade (ver tabela ao lado: “Base de atuação e
política e espacial. A temporalidade
os recortes socioespaciais da pessoa ao sujeito”).
ativista social se coloca na posição/

e acolá, mas também são rejeitadas


Movimento ascendente de “pessoa-

para que a particularidade se torne


Neste sentido, a atuação dos contingentes negros na história

particularidade sendo aceitos aqui


da ação, inscrita na (e da) história

dimensão da universalidade, vive-


situação da transformação social,

alvo de identidade única, pois na


é que permitirá a construção do

da universalidade transitam na
sujeito nesta escala. Os valores
permite afirmar que, estes, em sua ação coletiva, ao longo da histó-
para-o-outro”, na condição de

ria, tem atuado no sentido de mudar/contestar a história hegemô-

se a dimensão do geral.
nica e produzir conhecimento sobre si mesmo e sobre os outros. O
ativismo negro, desde o Brasil colonial, passando pelo império, até
Particularidade

a república, vem buscando uma sociedade diferente daquela em


que vivemos. O fato marcante é que, ao longo de muitos anos de
história, o negro e o ativismo negro (enquanto movimento social

Tabela 1  Base de atuação e os recortes socioespaciais da pessoa ao sujeito.


urbano) tornaram-se objeto do conhecimento de outros. Pesqui-
sadores (e os grupos hegemônicos em diferentes situações) inter-
sistema de objetos (Santos, 2008) e

seja como ativista social de alguma


“pessoa-para-si” tem relação direta

sistema simbólico – para que possa

pretam e fizeram dos negros e seus ativismos sociais objeto de


juntar-se a outras pessoas e consti-
tuir-se em “pessoa-para-o-outro”,

causa ou interesse coletivos, seja


Explicado pela corporeidade em

como massa que se desloca para


atingir um determinada posição
seu movimento descendente, a

seus conhecimentos. Entretanto, esta postura não reduziu a força


com o lugar – constituído pelo

geográfica ou situação social.

constitutiva desse sujeito. A reação é sempre presente na história,


seja por meio da ação quilombola,9 seja pela via dos movimentos
sociais. Para que se possa destacar atuação diferenciada na dimen-
são de “pessoa-para-o-outro” no movimento para se constituir em
Singularidade

sujeito, Cardoso (2002, p. 27), escreve que:

9  Um bom exemplo deste ativismo, ver Campos (2010), é quando se faz a


trajetória da estrutura quilombola até produção do das favelas. Ao contrário
dos quilombolas, este autor irá considerar que a dimensão da segregação so-
“Pessoa-para-o-outro”

cioespacial, uma das dimensões do espaço urbano brasileiro, é despolitizada,


pois o deslocamento dos pobres em direção a tais espaços são isolados (ver
“Pessoa-para-si”

Campos, 2006). Mesmo que parte significativa da população de uma dada


favela seja negra, este aspecto é invisibilizado pela condição da pobreza.
Desta forma, criam possibilidade de “despolitizar” a ação de morar e ser
Sujeito

negro invisibilizado em prol de ser pobre – análise pelo “viés” economicista


(ver Campos, 2007).

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No período anterior a abolição da escravatura, homens e tos quilombos organizavam-se, dentro desse contexto ideo-
mulheres negros escravizados, encontraram inúmeras for- lógico, onde as fugas implicavam numa reação ao colonia-
mas para confrontar com a classe dos senhores de escra- lismo. Já existia naquele momento a tradição oral ao lado de
vos. Entre algumas dessas, podemos destacar o banzo – espé- referências literárias da experiência quilombola do passado.
cie de greve de fome –, o assassinato individual do senhor
pelo escravo, a fuga isolada, o aborto praticado pela mulher A instituição quilombo, pelo que representou ao longo de três
negra escrava, o suicídio, a organização de confrarias reli- séculos, livre, com designação paralela ao sistema dominante,
giosas, manutenção das religiões africanas, as guerrilhas e é o que irá alimentar os anseios de liberdade de parte do povo
insurreições urbanas: Alfaiates, Balaiada (1838–1841), Caba- negro e outras pessoas que se sentiam oprimidas pelo julgo colo-
nagens (1835–1840), Farroupilha, Revolta da Chibata (1910), nial/imperial. Essa passagem de instituição em si para símbolo
Malês (1835), Carrancas (1833). de resistência inaugura ideologicamente o movimento de espírito
de combate à opressão do século, às vezes mais evidente, outras
Em nosso entendimento, nem todas as revoltas são exclusivas de latentes, sem grandes assunções. A longa duração de luta contra
negro, mas contaram com participação deste contingente, pois a opressão – quase sempre sem aceitar, nem propor negociação
o interesse extrapolava as lutas de pretos e pardos. Um exem- para amenizar as lutas – faz com que os negros passem a história
plo desta parceria é Alfaiates, uma revolta de cunho nativista em na condição de sujeitos e prontos para ingressar no pós-abolição.
1798 teve a participação de negros, mas não pode ser creditado Contudo, os termos da luta mudaram, outras formas de lutas
aos ideais contestatórios como os quilombos. Da mesma maneira, necessitavam ser criadas. Um dos problemas que foi percebido
a Praieira (1848) e Farroupilha (1845) têm a mesma classifica- é que, nos primeiro 40 anos da república, os negros desaparece-
ção das Sabinadas (1837): revoltas regionalistas que buscaram ram do cenário político, intelectual e administrativo do país, da
lutar contra o sistema imperial. Em contexto, a Revolta da Chi- mesma maneira que relatado acima. Eles participaram, mas per-
bata, posterior a proclamação da república, é de responsabilidade deram a centralidade do movimento, mesmo se considerarmos
dos marinheiros que lutavam contra a situação desumana a que a Revolta da Chibata com João Candido como revolta negra. Tal
eram submetidos pelos superiores da marinha, mas apenas conta- marasmo será rompido a partir da segunda década com a funda-
vam com participação de negros. Entretanto, cabanagens, malês, ção de diversos jornais que tratavam da questão negra, como O
irmandades religiosas e estruturas quilombolas (rurais ou periur- Clarim (1824). De acordo com Oliveira (2002, p. 15–20):
banas, de resistência ou abolicionistas) são lutas libertárias, em
favor da libertação de escravos. As associações de negros vinham sendo fundadas desde 1902,
Quilombo, sobretudo o dos Palmares, passou ao imaginá- todavia, inicialmente, não se propunham à arregimentação
rio de toda população de descendentes de escravos e, por meio da da raça negra, possuindo um caráter mais cultural e benefi-
tradição oral, transpôs barreiras de gerações. De acordo com Car- cente. Essas associações, mesmo não propondo uma luta polí-
doso (2002, p. 75): tica organizada, foram de vital importância para a ressociali-
zação do negro, cultivando o autorrespeito e a solidariedade.
No final do século XIX, o quilombo já significava reação con-
tra todas as formas de opressão. Sua mística povoava o De acordo com a autora, a imprensa negra era consideravel-
sonho, o imaginário coletivo de milhares de escravos nas mente influenciada pela imprensa operária. Ambas possuíam o
plantações e em diversas outras atividades econômicas. Mui- mesmo objetivo: denunciar os problemas vividos pelo seu grupo.

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Embora, vale ressaltar, as denúncias e reivindicações das lideran- Ao fim da Frente Negra Brasileira,10 os negros continuam
ças negras eram bem mais modestas, na medida em que estavam ativos na produção de conhecimento sobre si e a sociedade. De
em estágio embrionário e não recebiam instruções de nenhum acordo com Nascimento e Nascimento (2000, p. 206), o negro
órgão ou movimento internacional (ib., p. 49). estava totalmente excluído, no sentido stritu do termo, do tea-
Em outubro de 1926, é fundado O Centro Cívico Palmares, tro brasileiro: não entrava nem para assistir ao espetáculo, muito
associação que, segundo expressões da época, reunia a “nata” do menos para atuar no palco. O Teatro Experimental do Negro (TEN)
elemento negro paulistano. O próprio jornal Progresso exalta o nasceu menos de 10 anos depois da extinção da FNB, em 1944. O
CCP, reconhecendo a sua importância para a integração do negro seu objetivo maior foi contestar essa discriminação, formar ato-
na sociedade. Não apenas o “meio negro” o reconhecia, outros res e dramaturgo afro-brasileiros e resgatar uma tradição cultural
segmentos da sociedade paulistana também reconheceram a cujo valor foi sempre negado ou relegado ao ridículo pelos nossos
seriedade e competência da associação em representar os interes- padrões culturais: a herança africana na sua expressão brasileira.
ses dos negros. Numa passagem bastante reveladora dos hábitos O TEN tem atuação destacada até 1968, quando seu men-
mentais da época, Vicente Cardoso abordou o assunto, nas pági- tor foi obrigado a abandonar o país. Segundo Nascimento e
nas do jornal Progresso, em 1928; Nascimento:

A Frente Negra Brasileira foi fundada nesta cidade de São O centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito
Paulo em reunião efetuada no salão das classes laborio- da Universidade de São Paulo (USP), convidou Abdias do
sas, à rua do Carmo nº 25, perante regular assistência no dia Nascimento em 1968 para falar sobre negritude, uma noção
16/09/1931. No dia 12 de outubro, no mesmo local, perante que começou a fazer a cabeça dos que militavam no movi-
mil e tantos negros, foi lido e aprovado por unanimidade o mento negro naquele momento em função da repercussão
presente estatuto. Publicados no Diário Oficial e registrado da atitude dos que confrontavam a política norte-americana
em 4 de novembro de 1931 (ib. p. 57–58 apud A Voz da Raça, de discriminação racial por meio dos punhos cerrados brada-
n. 5, 1933). ram, por ocasião da festas das medalhas Black power. O Dire-
tor da faculdade proibiu o uso do auditório, e a palestra foi
Na verdade, a luta da Frente Negra Brasileira não era exclusi- realizada no pátio interno da escola, sob constante ameaça
vamente contra o preconceito racial. O seu interesse maior era de repressão (ib. p. 216–7).
a união dos negros com o objetivo de superar as dificuldades
decorrentes do passado escravista. A sua orientação e atuação O fim do TEN não significou o fim da atuação do professor Abdias.
não estava centrada no passado, nas injustiças e desumanidades Em julho de 1978, voltou ao Brasil para a fundação do Movimento
cometidas pelos “brancos”. Sua preocupação era com o presente e Negro Unificado. Em 1980, o professor Abdias colocava para
o futuro, apagando definitivamente as “marcas da escravidão”. debate, no Movimento Negro, uma proposta que denominou de
Em agosto de 1936, a Frente Negra transforma-se oficial- quilombismo – um conceito científico emergente do processo his-
mente em partido político e, por ter delegações em vários esta- tórico-cultural do estado brasileiro, colônia, império e república
dos, torna-se um partido de proporções nacionais, o que não – que significava terror organizado contra a população negra, o
era comum na época. A vida do partido, contudo, é efêmera, proponente buscava um conceito que sistematizasse a experiên-
pois todos os órgãos políticos são dissolvidos em 1937 pela lei do
Estado Novo (ib. p. 81). 10  Ainda sobre a Frente Negra Brasileira, ver Velasco (2009).

152  A particularidade do Movimento Negro… A particularidade do Movimento Negro…  153

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cia histórica do povo negro, que pudesse ser uma ferramenta teó- tivo, ele se faz pela história por meio de projetos que, em con-
rica do Movimento Negro e alavancar a mobilização das massas junto, traça para si e a para a sociedade que pretende. Compreen-
negras oprimidas no Brasil (Cardoso, 2002, p. 78). der esta dimensão da vida é compreender que a sociedade é uma
Dedicar algumas poucas palavras sobre este grande brasi- arena em constante disputa, pois somos constituídos de diferen-
leiro é muito pouco, visto a sua importância na luta contra a desi- tes interesses e psiques.
gualdade. Contudo, é necessário destacar, nos idos da década Entendemos que tratar a diferença é fundamental e saudável
de 1970, a atuação também de duas grandes brasileiras negras: para qualquer sociedade, visto que nascemos diferentes e nos tor-
Maria Beatriz do Nascimento (1942–1995)11 e Lélia Gonzalez namos parte de sujeitos também diferentes. Se assim é verdade,
(1935–1994),12 que inspiraram jovens e conduziram as reflexões então a universalidade também se constitui de sujeitos diferentes.
sobre a mulher (sobretudo a mulher negra), o preconceito e a dis- Como vimos, o negro se constitui como um dos sujeitos legítimos
criminação sofrida por negros de forma geral. da sociedade brasileira, não reconhecer esse fato é ignorar a pró-
Portanto, a trajetória do Movimento Negro, com mais de pria história nacional. São “pessoa-para-si” que se tornam “pes-
470 anos (em 1532 aconteceram as primeiras incursões quilom- soa-para-o-outro” e constroem a vida desde muito tempo.
bolas, de acordo com a literatura, sendo a principal delas a repú- Demonstrou-se ao longo deste ensaio, que a melhor maneira
blica Palmares – 1595–1695) nos mostra que a atuação dos negros de aprendermos o sujeito é na particularidade. Se negarmos as
condiz com a sua condição de sujeito da história e do conheci- evidências, criamos falsas verdades, tentando homogeneizar
mento de si, dos outros e das coisas. No que diz respeito à consti- aquilo que por essência é outro. Por mais próximo que estejam os
tuição do sujeito, explanados até aqui, o conjunto de movimentos grupos que buscam justiça e superação da sociedade hierarqui-
negros podem se arrogar como legítimo sujeito da história brasi- zada produtora de heteronomia, há sempre muita discrepância e
leira. Diga-se de passagem, se o sujeito é constituído nas particu- diferença no tratar de si e do outro. O exemplo que pode ser sus-
laridades do movimento da sociedade, então se entende que os citado aqui é Movimento Sem Terra, apesar de ter inúmeras pes-
sujeitos se legitimam pela sua atuação política, cultural, espacial, soas negras, o princípio que dirige a luta contra a propriedade, e
educação e em tantas outras áreas da vida social. não passa pela questão étnicorracial, mesmo que o militante seja
preto. O sujeito dos movimentos sociais forma-se na dimensão da
Considerações finais particularidade, onde história e projetos são gestados para está-
gios descendentes ao seu, a “pessoa-para-o-outro” até outra vez a
A proposta do ensaio teve como objetivo principal compreender condição de ser mensurado como indivíduo humano.
a formação do sujeito no contexto dos movimentos sociais urba- Muitas “pessoas-para-si” que se tornaram emblemáticas no
nos, sobretudo o sujeito negro. Ser negro, branco, indígena não contexto de “pessoa-para-o-outro”, foram importantes para for-
cobre a universalidade do fenômeno de homem ou mulher, ou mar o sujeito do movimento social negro e se tornaram sujeito da
ainda criança. O movimento que acompanha do nascimento pas- história, como: Ganga Zumba, Andalaquituche, Dandara, Acoi-
sando pela vida até a morte é inexorável, da mesma forma que a tirene, Aqualtune Danbraganga, Zumbi (Cardoso, 2002, p. 65),
transformação do ser. Não nascemos pessoa ou sujeito, nascemos Abdias Nascimento, Arthur Ramos, Arlindo Veiga dos Santos,
indivíduos humanos, nos tornamos parte do sujeito que é cole- Lélia Gonzales, Maria Beatriz Nascimento e tantos milhões de
pretos e pretas: Joãos, Marias, Josés, Cosmes de sobrenomes
11  Ver Ratts, 2006. Silva, Santos, Oliveira, que lutaram, viveram, morreram e desa-
12  Ver Ratts e Rios, 2010. pareceram ao longo desses 478 anos de combates (1532–2010).

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Cartografia da ação e movimentos da sociedade.indd 154-155 14/10/2011 19:39:38


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notas de diálogos sobre método
anais/trabalhos/487.pdf>. Acesso em: 9 jun. 2010. Marcia Soares de Alvarenga

As capacidades produtivas e criadoras nascem humilde-


mente ao nível do chão; logo emergem do cotidiano e do
vivido, se erguem, se ampliam, e por último se desprendem e
se tornam autônomas.
(Henry Lefebvre1)

Primeiras aproximações

O desafio em promover o diálogo com e entre jovens pesquisado-


res que dinamizaram o GT 7 “Movimentos Sociais e Cartografias
das Ações Organizadas”, no III Seminário “Metrópole, Governo e
Sociedade”2 se traduz em tentativas de fazermos aproximações
entre objetos de pesquisas, cujas abordagens teóricas e metodo-
lógicas são orientadas pela inquietude de interrogar as tensões
entre estrutura e conjuntura deflagradas pelas lutas sociais agen-
ciadas, constrangidas e/ou confrontadas por sujeitos sociais em
diferentes contextos urbanos.
As pesquisas compartilhadas no seminário reafirmam que,
diferentemente da República Velha constituída pelas oligarquias
agroexportadoras, o Brasil de hoje é urbano, porém sem ter rom-
pido com o modelo de desenvolvimento desigual capitalista. Este
modelo, ao combinar, contraditoriamente, o arcaico e o moderno

1  Em Martins (1996) para o debate sobre a dialética do cotidiano e do vivido


em Henri Lefebvre.
2  O III Seminário “Metrópole, Governo e Sociedade” e Ii Colóquio
“Metrópoles em Perspectivas” 2010 foi realizado na Facudade de Formação
de Professores da Uerj, 1–3 dez. 2010.

158  A particularidade do Movimento Negro… 159

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produz desigualdades sociais, não como anomalia (Martins, 1993) “epistemologia existencial” de Milton Santos (1994) e nos instiga
inerente a um determinado espaço-regional, mas como composi- a realizar o exercício de estudar o que cada lugar tem de singular,
ção orgânica da qual se sustenta, reproduz e acumula o capital. de específico, de diferente para compreendermos como os sujeitos
Santos (1994) analisa que a grande crise econômica do capi- agem e produzem modos de vida, resistências e práticas sociais.
talismo de livre mercado levou, sobretudo, os países do chamado Inspiradas na generosidade desta formulação teórica, as pes-
“terceiro mundo” a retrocederem em certas – embora nem sem- quisas brevemente resenhadas neste ensaio, possuem muitos
pre extensivas – conquistas sociais e políticas dos seus povos. pontos que se interconectam, a começar pelos objetos e os percur-
O caso brasileiro toma magnitude no pensamento deste sos metodológicos que são construídos pelos seus autores, cujo
autor para quem (e estamos de acordo) em nenhum outro país trabalho reflexivo tem como lugar os contextos urbanos nos quais
do mundo os processos de desruralização, de migrações brutais se movem sujeitos sociais que, em suas diversidades, buscam
desenraizadoras, de urbanização, expansão do consumo de mas- (re)criar condições de vida e de direitos.
sas, entre tantos outros fatores, se efetivaram de forma tão conco-
mitante e contemporânea quanto no Brasil. Movimentos sociais e cartografia das ações organizadas:
Tais processos, alicerçados pela suspensão das liberdades contribuições de um grupo de trabalho
civis e democráticas, contribuíram para a “elaboração brasileira
do não cidadão”. Santos atribui ao modelo político-econômico, As desigualdades se multiplicam e se diversificam nas esferas
particularmente àquele relacionado ao “milagre brasileiro”, a res- da produção e da acumulação de bens simbólicos e econômicos.
ponsabilidade pela eliminação do embrião de cidadania que no Intensifica-se, ao mesmo tempo, a criação de modos de resistên-
Brasil se gestava. O “milagre” operou pelo alargamento de uma cias produzidas pelos sujeitos, no limite da exclusão destes bens.
nova classe média em detrimento das massas pobres e popula- Desse modo, buscando identificar a relação entre desigualdade
res, aumentando as disparidades sociais e econômicas entre estes e lutas por direitos, as pesquisas que integraram o eixo temático
segmentos. Durante esse período, o desenvolvimento econômico nos avivam sobre os movimentos sociais no Brasil contemporâneo
acelerado dispensou a redistribuição de renda e diminuiu a capa- que, residual ou em seu conjunto, tomam a forma de uma espi-
cidade do Estado de fazê-la. ral crescente e complexa graças aos recursos e estratégias criados
Todo o equipamento do país destinado ao escoamento rápido e/ou (re)inventados por homens e mulheres na mobilização de
e mais fácil da produção serviu ao modelo econômico que o energias criativas que embalam seus projetos de vida.
gerou, para a criação do modelo territorial a ele correspondente: Pesquisas sobre movimentos e ações sociais organizadas
as grandes migrações (muito mais de consumo do que de traba- expressam um potencial inesgotável em termos de requererem a
lho, esvaziamento demográfico de inúmeras regiões, concentra- continuidade de investimentos tanto teóricos quanto metodológi-
ção da população em crescimento, principalmente em áreas urba- cos. Esse potencial é ainda maior especialmente se considerarmos
nas e formação de grandes metrópoles em todas as regiões). as consequências geradas pela reestruturação pós-fordista3 que,
O que passamos a assistir foi o crescimento econômico base- ao atingirem profundamente o mundo do trabalho e as sociabi-
ado em certos setores produtivos e em certos lugares, agravando
3  Frigotto (1994) adverte que a expressão “pós-fordismo” assume particulari-
a concentração de riqueza e a ampliação das injustiças entre as
dades em realidades diferentes. Para este autor, no Brasil predominou o ford-
pessoas, entre os lugares. ismo periférico, tendo predominado as relações tayloristas de organização
Nessa medida, a dimensão do lugar nos leva ao encontro da produtiva e de controle do trabalho, associadas ao populismo e clientelismo.

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lidades das classes trabalhadoras, tentam se apropriar de espa- giram acuidade no tratamento dos contextos nos quais “são vivi-
ços de autorrepresentação,4 estratégias de lutas sociais das clas- das as transformações do capitalismo” e a velocidade com que se
ses populares. ampliaram os processos de exclusão social.
Os desafios postos aos pesquisadores para realizar leituras Em torno das questões metodológicas suscitadas pelo III
compreensivas e formular perspectivas metodológicas, tanto para Seminário, a escala das temporalidades dos eventos que tomaram
a ciência quanto para a política, sobre ações engendradas pelos a cidade como sujeito da modernidade, sem as pessoas (os cida-
sujeitos sociais em conjunturas que se movem, já haviam ocupado dãos), ou ao menos sem parte delas, Teixeira (2010) descreve os
o pensamento de Gramsci ao nos descrever, por meio de bela descompassos entre as teorias europeias sobre processo de urba-
metáfora, que nização e reforma social levadas a cabo no Brasil nos anos de
1920 e 1930, sem que o país fosse urbano e industrial.
todo raio passa por prismas diferentes e produz refrações Este descompasso, no entanto, não foi obstáculo para o pla-
diversas de luz (…) Encontrar a efetiva identidade na apa- nejamento e organização hierárquica da cidade, com vistas a for-
rente diversidade e contradição, e a substancial diversidade jar um “corpo urbano”, excluindo as populações, em especial os
na aparente identidade, eis o mais delicado, incompreendido trabalhadores, das decisões em torno do pacto de um estatuto
e, não obstante, essencial dom do crítico das ideias e do his- sobre o “direito à cidade” (Lefebvre, 1991). Vale dizer de fruição
toriador do desenvolvimento social (2000, p. 132). criativa do espaço da cidade e sua relação com os equipamentos,
bens, serviços, entre outros que nutrem a vida cotidiana.
Para Gramsci, a premissa da “difusão orgânica, por um centro Podemos dizer que a ausência deste estatuto impetrou rela-
homogêneo, de um modo de pensar e de agir homogêneo” consis- ções contraditórias entre cidadania e vida urbana. Populações
tia em “erro iluminista” dos intelectuais ao desconsiderarem que inteiras foram deslocadas pelo poder político ou mobilizaram
a vida social, os fatos particulares comportam, como interpreta resistências diante destes deslocamentos ao ocuparem espaços
Baratta, “o movimento de circulação do empírico e do individual sem cidadania,5 redesenhando-os por ações sociais que não se
ao universal e total e vice-versa, sem nunca fechar o círculo ou comprimem em uniformes estratégias de lutas.
chegar a uma conclusão definitiva ou peremptória” (2004, p. 18). A “leitura de contextos”, como propõe Ribeiro (ib.) reaviva a
No tempo presente, Ribeiro (2009, p. 148) recupera que, compreensão “dos sentidos da ação social, o que implica nos estu-
tanto as análises críticas dirigidas aos modelos de desenvolvi- dos dos vínculos entre sujeito social, conjuntura e lugar”. As lei-
mento econômicos que se mantiveram descolados dos desafios turas nos convocam à realização de esforços não somente teóri-
estruturais das sociedades latino-americanas, quanto a “resistên- cos, mas também metodológicos, que possibilitem “desvendar
cia à abstração das condições de vida impostas pelo neolibera- contextos e antecipar atos” (Almeida apud Ribeiro, 2001, p. 45).
lismo” tiveram impactos nas ciências sociais. Tais impactos exi- Isto significa tanto a contextualização veloz da ação hegemônica,
cada vez mais estrategicamente localista, quanto a valorização
4  Em relação à questão da autorrepresentação, Spivak (2010) interroga imaginativa dos lugares vividos, onde a vida escorre ou ganha
sobre a possibilidade das classes subalternas falarem sobre si sem a interme-
diação dos intelectuais. Esta problemática suscita não apenas desdobramen- 5  Para Santos (1994), olhando-se o mapa do país e as plantas das cidades em
tos teóricos e metodológicos que envolvem a ação das classes subalternas, cujas periferias há densidades demográficas, é fácil constatar áreas desprovi-
mas também epistemológicos sobre os modos de conhecer e se apropriar das de serviços essenciais à vida social e à vida individual. Para este autor, “É
da realidade. como se as pessoas nem lá estivessem” (p. 43).

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força reflexiva e transformadora. Como carta, o mapa não apa- as próprias marcas de origem e identidade territorial dos sujeitos
rece como instrumento isolado ou como bela ilustração analítica de direitos.
e como sustento da memória dos outros. Essas marcas iluminam modos de compreender e orientam
Perspectivas sobre a produção do espaço pelos sujeitos das suas decisões na construção de vínculos com outros sujeitos de
ações organizadas revelam o crescente compromisso teórico- origens sociais, étnico-raciais e culturais diversas; com sujeitos
metodológico dos pesquisadores sociais no esforço em problema- portadores de aspirações, compartilhadas ou não, que pela diver-
tizar os vínculos e a produção de sentidos que emergem dos con- sidade do “popular” traçam e fazem o espaço hibridizado.
textos analisados. Por sua vez, Pereira (2010) analisa os conflitos de longa
Sobre isso, Vale (2010) discute que as reformas neoliberais duração da apropriação do uso de um terreno localizado no cen-
que atingiram o mundo do trabalho, acarretando desemprego em tro da cidade de São Paulo, envolvendo, por um lado, um grupo
massa e flexibilizando os estatutos de proteção dos trabalhado- empresarial do ramo das comunicações e seu intuito em construir
res, tem intensificado o interesse, tanto da academia, quanto dos um shopping center e, por outro, um grupo vinculado às políti-
sindicatos e organizações da sociedade civil, pelas formas de tra- cas de patrimônio cultural da cidade com o objetivo de concluir o
balho associado e cooperado. projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi no terreno em questão.
A autora analisa que em São Gonçalo, município do leste As dificuldades em entrevistar as partes em conflito levaram
metropolitano do estado do Rio de Janeiro, a expansão dos a autora a optar, metodologicamente, pela coleta de dados em
empreendimentos econômicos solidários encontra no Fórum fontes documentais diversas como jornais e suportes midiáticos
Municipal de Economia Solidária uma importante instância de e imagéticos que expressavam a situação de disputa. Eles foram
articulação entre a sociedade civil organizada, iniciativa pri- fonte para análises sobre os sentidos produzidos pelos grupos liti-
vada e o poder público local com o objetivo de construir políticas gantes e os modos particulares de atribuir significados à cidade.
públicas de trabalho. A perspectiva metodológica que envolve materiais discursi-
No entanto, adverte que o maior desafio dos projetos de eco- vos/enunciativos como fontes de pesquisa, também é empregada
nomia solidária é superar a fragmentação e o isolamento das por Silva (2010) ao analisar as condições de criação do Sindicato
ações com objetivo de consolidar projetos sustentáveis de desen- Estadual do Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe),
volvimento local, o que requer a continuidade de pesquisas na tendo como contexto as mudanças sociais e políticas no Brasil no
(re)leitura de contextos em mudanças, jogos de poder e relações final da década de 1970 e início da década de 1980.
de força que envolvem a formulação destas políticas. No confronto entre o velho e o novo sindicalismo, Silva ana-
Esta perspectiva também pode ser vista no estudo de Dioní- lisa o Sepe como um dos frutos deste último na composição de
sio (2010), pois o autor não descuida de refletir sobre as percep- movimento de classe sem as correias de transmissão que atrela-
ções construídas pelos pesquisadores populares sobre os sentidos ram o sindicalismo brasileiro transformado em um hóspede do
de “espaço popular”. Ao trabalhar a concepção de “espaço popu- governo populista de Vargas, nos anos 1930.
lar” e a relação do direito à educação de jovens e adultos como Baseada em estudos que abrangem o movimento sindical
direito humano, percebemos que, ao lerem os espaços populares, dos professores na década de 1980, a autora rememora a disputa
os pesquisadores entrevistados se confrontam não apenas com a entre as diversas orientações políticas de esquerda pela hegemo-
lógica hegemônica das diferentes formas de segregação, entre as nia do sindicato. O que não invalida o esforço em se construir a
quais a gramática normativa do direito à educação se confronta unidade do movimento em torno das reivindicações de defesa

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dos interesses de uma categoria profissional diante das tentati- e as atividades do homem: a ação e a paixão humanas” (Marx
vas neoliberais de destruir/desidratar as sociabilidades e solida- apud Lefebvre, 1964).
riedade entre os trabalhadores e, no caso estudado por Silva, de Perscrutar os sentidos da cartografia das ações organizadas
uma categoria profissional. é acolher a possibilidade de pensar a relação entre sujeitos, movi-
Estas abordagens nos levam a encontrar apoio em Bakhtin mentos, contextos, não como relação determinista e funcional,
(1992 e 2000), para quem um objeto de pesquisa e seus senti- mas como relação que ativa a ação e as paixões humanas concre-
dos só podem ser compreendidas com base em contextos tanto tas e imaginárias, descortinando cenários às ações nas pequenas
quanto forem estes possíveis. Em nossa tentativa de diálogo com e grandes lutas que movem o cotidiano.
as pesquisas do seminário, buscamos compreender os contextos,
não simplesmente colocá-los em relação de justaposição. Consi- Referências
deramos, pois, a existência de diversos contextos de interação e
as visões de mundo implicadas que expressam o lugar social ao Giorgio Baratta. A rosa e os cadernos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
qual pertencemos e de onde partimos. Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1992.
Para uma conclusão provisória — Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
T. Dionísio. Cidadania não territorializada: a educação de jovens
As pesquisas que integraram a temática do GT 7 do III Seminário e adultos nos espaços populares. In: Anais do iii Seminário
nos ajudam a ler que os cotidianos da vida nas cidades acusam os Metrópole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010.
efeitos do desenvolvimento desigual como anomalia estruturante. Gaudêncio Frigotto. Educação e formação humana: ajuste neo-
As abordagens metodológicas dos textos expressam profunda liberal e alternativa democrática. In: Pablo Gentili e Tomaz
capacidade de diálogo, pois contribuem para a sistematização Tadeu da Silva. Neoliberalismo, qualidade total e educação.
de memórias de lutas pretéritas, das ações do presente vivencial Petrópolis: Vozes, 1994.
como reservas de energias para antecipação do futuro. As pesqui- Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. v. 2. Trad. Carlos Nelson
sas nos ajudam a realizar leituras compreensivas de que a diversi- Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
dade de sujeitos e contextos possuem rugosidades, trabalho para Henri Lefebvre. Marx. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1964.
uma “cartografia das ações organizadas” que tem a dimensão — O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.
molecular como um dos planos das análises sociais desenvolvidas. José de Souza Martins. O poder do atraso. São Paulo: Hucitec,
É neste plano que a vida de homens e mulheres representa a 1993.
dramaticidade de seus sentimentos, capacidade, ideias, paixões — Henri Lefebvre e o retorno da dialética. São Paulo: Hucitec,
e ideologias. É por meio das relações dialógicas com o mundo 1996.
que as pessoas atualizam sentidos sobre a realidade vivida, obje- R. P. Pereira. Os conflitos na apropriação e usos dos espaços da
tivando-a de forma humanizada. Esta atualização percorre todo metrópole de São Paulo: artistas, empreendedores e Estado.
o sentir e o imaginar humano, pois é humanizando os sentidos In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Ter-
e a sensibilidade que inscrevemos nossa riqueza humana: “Ver, ritório. Uerj/FFP, 2010.
ouvir, cheirar, gostar, apalpar, pensar, contemplar, sentir, querer,
agir, amar (…). É assim múltipla, tanto quanto as determinações

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Ana Clara Torres Ribeiro. Cartografia da ação social, região Arte, educação e cidadania:
latino-americana e novo desenvolvimento urbano. In: Héctor
Poggiese e Tamara Tania Cohen Egler (orgs.). Otro desar-
diálogo de saberes na metrópole
rollo urbano: ciudad incluyente, justicia social y gestión demo- Anita Loureiro de Oliveira
crática. Buenos Aires: Clacso, 2009. p. 147–156.
Ana Clara Torres Ribeiro, et al. Por uma cartografia da ação:
pequeno ensaio de método. Cadernos Ippur, ano 15, n. 2, ano Introdução: cidadania se aprende?
16, n. 1, 2001 e 2002.
Milton Santos. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. A presente reflexão sugere uma proposta de educação libertária
— Técnica espaço tempo. Globalização e meio técnico-científico que pretende colaborar com o fortalecimento das lutas por jus-
informacional. São Paulo: Hucitec, 1994. tiça social na metrópole. Ao contrário do imobilismo e da apatia
Rita de Cassia da Silva. O velho e o novo sindicalismo e a cria- provocados por discursos representativos do pensamento único, a
ção do Sindicato dos Profissionais da Educação do Rio de proposta desta reflexão é tentar enriquecer o conhecimento teó-
Janeiro. In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Socie- rico produzido academicamente com a multiplicidade de ideias
dade e Território. Uerj/FFP, 2010. que vêm da experiência vivida nas ruas, de modo a intensificar
Gayatri Spivak. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora relações entre teoria e prática. Outro objetivo desta reflexão é evi-
UFMG, 2010. denciar o papel da educação no incentivo ao diálogo e ao apren-
Vitor Hugo Teixeira. A idealização funcionalista do espaço: dizado da cidadania.
gênese, implementação e conflitos no território urbano da Em “O espaço do cidadão”, Milton Santos (1987) afirma
cidade do Rio de Janeiro. In: Anais do iii Seminário Metró- que a cidadania se aprende e pode se tornar um estado de espí-
pole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010. rito enraizado na cultura. As práticas educativas que buscamos
M. Vale. Dialogando com o movimentos de Economia Solidária refletir neste artigo têm um caráter múltiplo resultante de expe-
em São Gonçalo: perspectivas na produção do espaço. In: riências que evidenciam o modo pelo qual os territórios urbano-
Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Terri- metropolitanos constituem a base de um processo educativo que
tório. Uerj/FFP, 2010. vai muito além dos espaços institucionais de aprendizagem e
pode trazer contribuições significativas para a renovação da vida
urbana.
Tal como propõe Carrano (2003), a educação é entendida
como um amplo processo social, que não se resume aos cotidia-
nos institucionais de aprendizagem. Para o autor, o cultivo da
racionalidade crítica, em conjunto com o refinamento de nos-
sas capacidades éticas e sensíveis, pode representar um efetivo
combate aos racionalismos que dificultam a apreensão da multi-
plicidade da realidade cotidiana, podendo se constituir também
como condição para o diálogo com a dinâmica que produz múl-
tiplos processos sociais educativos que se desenvolvem na cidade

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(ib.). Ainda de acordo com Carrano, para além do texto visível que caminham no sentido da criatividade, da coletividade e da
da racionalidade urbanística, insinua-se um texto composto pelas solidariedade horizontal. Tal como nos lembra Carrano (2003),
práticas concretas dos habitantes das cidades e é sobre este movi-
mento do real que buscamos refletir. a cidade educativa não é a cidade-conceito impregnada de
A proposta de uma educação voltada para a vida urbana utopismo urbanístico como aqueles que pregam tolerância
indica a necessidade de ampliarmos as possibilidades de afir- zero – eufemismo pós-moderno, antiético e antipopular, da
mação de uma cidadania ativa e que seja construída cotidiana- velha intolerância com os marginalizados – para combater a
mente com base no diálogo de saberes. A compreensão de direi- violência e higienizar as ruas de uma metrópole. Concorda-
tos e deveres relacionados à cidade parece ganhar profundidade mos com o autor quando sugere que as práticas educativas
e gerar consequências positivas quando um processo educativo em uma cidade ocorrem no terreno da pluralidade do real
se instaura com o propósito de viabilizar uma vida urbana reno- e são compostas por pequenos gestos, práticas microscópi-
vada e transformada. Tal como ressaltamos em trabalho anterior cas, singulares, espontâneas e plurais que se articulam como
(2008), mesmo em uma “cidade-espetáculo”, a arte torna possí- educadores coletivos em redes sociais que, por vezes, conse-
vel reconhecer contradições que marcam o espaço urbano e que guem escapar aos controladores da ordem.
evidenciam a complexidade da espacialidade capitalista em cons-
tante transformação. É nesse sentido que sugerimos um conheci- Espaço público, arte e diálogo:
mento territorializado, com forte apoio nas artes, para a constru- a cidadania numa perspectiva geográfica
ção de formas de aprendizado significativas para a conquista da
cidadania plena. Recentemente, um artista de rua que atuava como estátua-viva
A reflexão lefebvreana sobre a potencialidade transforma- no largo da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro, foi
dora da arte para a vida urbana renovada também nos inspira. impedido de exibir sua performance artística em um espaço
Para o autor, a arte cria momentos de negação que apontam para público ao ser abordado por um guarda-municipal orientado para
transformações em curso e, assim, obras de “desconstrução cons- retirar trabalhadores informais das ruas do centro da cidade.
trutiva” que manifestam o devir do mundo (Lefebvre apud Bar- Diante da cena incomum, uma força coletiva e espontânea sur-
bosa, 2000). Assim, buscamos reconhecer que os habitantes da giu dos transeuntes armados de câmeras de celulares que regis-
cidade não se submetem ao ideário racionalizante do urbanismo travam a opressão sem argumentos do “choque de ordem” e
disciplinar e suas técnicas de impor uma ordem verticalizante e argumentaram em favor do artista de rua, até o recuo da ação
inflexível. Numa cidade como o Rio de Janeiro, os habitantes nem opressiva do guarda. Esta cena, que acabou virando um vídeo
sempre apoiam medidas baseadas em “choques de ordem” e a postado no YouTube com o título “Proibido Parar”, exemplifica
arte pode evidenciar momentos de negação e imprevisibilidade. como a arte é capaz de emocionar e mobilizar, inclusive politica-
É preciso ampliar as possibilidades de reflexão da cidade, mente, não só o artista como, principalmente, o público.
articulando a técnica e o conhecimento científico à sensibili- O exemplo serve para pensarmos sobre o que Carrano (2003),
dade dos que escolheram a arte como meio de sobrevivência e/ou num sentido próximo, diz sobre as ruas serem laboratórios de
manifestação e que experimentam a vida urbana como homens inovações (não necessariamente projetadas, mas praticadas) e
comuns, não especialistas. Torna-se cada vez mais urgente e de experiências concretas. Lefebvre (2001), em outro contexto,
necessário reconhecer as formas de existência (e de resistência) afirma que os habitantes reconstituem centros e utilizam certos

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locais para promover encontros negados pela cidade. É sobre pro- principais beneficiárias da ação do Estado, fazem do espaço
cessos espontâneos, que surgem no cotidiano das ruas, que propo- urbano o lugar preferencial da acumulação capitalista, e muitas
mos uma reflexão sobre práticas educativas, cujo caráter libertário vezes isso depende de formas de convencimento opressivas e não
pode ser significativo para a renovação da vida urbana. O uso da abertas ao diálogo.
rua e a apropriação simbólica do espaço urbano para manifesta- Em tempos de preparação da cidade do Rio de Janeiro para
ções artístico-culturais potencialmente críticas, evidenciam lutas sediar megaeventos internacionais (copa do mundo, olimpíadas
simbólicas pelo direito à cidade, tal como destacamos em trabalho e afins), cabe refletirmos sobre as formas de apropriação e domi-
anterior (Oliveira, 2008) e podem evidenciar o diálogo no espaço nação da cidade e nela. Ainda que o discurso dominante procure
público e uma ação libertária em contextos metropolitanos. ordenar as ações sociais, a vida pulsa nas ruas para dizer que a
Para Lefebvre (2001), o direito à cidade significa a constitui- desordem pode ser mais rica e fértil do que o ordenamento arti-
ção ou a reconstituição de uma unidade espaço-temporal, de uma ficial que se projeta quando se busca vender a imagem da cidade
união, em vez de fragmentação. Segundo o autor, esta unidade para o exterior. Ainda que muitas formas de arte e comunicação
não elimina em absoluto os confrontos e as lutas. Muito pelo con- sejam esvaziadas e espetacularizadas para servirem de base para
trário. O direito à cidade implica e aplica um conhecimento sobre a criação ou fortalecimento de uma imagem forjada da cidade,
a produção do espaço (Lefebvre, 2001), que envolve a produ- acreditamos que a vida que pulsa nas ruas é sempre mais rica e
ção social do espaço e a produção política do espaço, porque “o complexa.
espaço é política” (ib., p. 52). Lefebvre (2001) ressalta também a Tal como Ribeiro (2006a) afirma, áreas da cidade, monu-
possibilidade de pensarmos outra cidade, cujos planos, projetos mentos naturais e artificiais, corpos e gestos transformam-se em
e ações possam ter outras finalidades e outras intencionalidades focos (ou nichos) da acumulação primitiva de capital simbólico.
distanciadas das normas e regras da acumulação capitalista ou de Os impulsos globais que atingem a cidade de um país peri-
suas formas de disciplinarização de corpos e sujeitos. férico submetida a longo processo de involução urbana (Santos,
Em um contexto no qual se pretende solucionar problemas 1997), como é o caso do Rio de Janeiro, criam excepcionais opor-
urbanos por meio de “choques de ordem”, que visam à preparação tunidades de acumulação primitiva de capital simbólico (Ribeiro,
da cidade para o abrigo de eventos internacionais, acreditamos 2006a, p. 48).
que uma reflexão sobre a produção do espaço pelos habitantes Por meio do uso instrumental da administração pública,
possa ser muito proveitosa para uma renovação urbana baseada ocorre a realização de investimentos que organizam a vida espon-
na horizontalidade e na criatividade espontânea do habitante. tânea na cidade em direção à realização do lucro global e a subor-
Lefebvre (1987) afirma que o espaço contém as relações sociais dinação da vida espontânea a imposições da economia globali-
(ib.) e também representações dessa dupla ou tripla interferência zada, alterando usos do espaço urbano (Ribeiro, 2006a).
das relações sociais – de produção e reprodução (ib.). Legitimada por noções neutras, do tipo parcerias público-
Segundo os autores, Lefebvre alerta para o fato de que tais privadas, a ação considerada eficaz permite a fragmentação do
relações podem ser tanto frontais, públicas e declaradas, quanto espaço urbano, por meio da criação de barreiras sociais visíveis
ocultas, clandestinas, reprimidas e capazes de conduzir à trans- e invisíveis, e a implementação de políticas públicas que geram
gressões. A cidade é obra dos citadinos, mas nem sempre existe intolerância e interrompem o diálogo interclassista espontâ-
diálogo entre o habitante e as grandes instituições que se afir- neo. Este diálogo, agora enfraquecido, constitui um dos elemen-
mam sobre a realidade prático-sensível. O Estado, principal res- tos mais relevantes da singularidade do Rio de Janeiro, como
ponsável pelo planejamento urbano, e as empresas privadas, demonstra a riqueza da música criada na cidade (Ribeiro, 2006a).

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Entretanto, se as cidades, no contexto de um mercado globa- escala, do lugar onde está, já que o acesso aos bens e serviços
lizado, assim transformadas, sobretudo devido ao turismo, tor- essenciais, públicos e até mesmo privados é tão diferencial e con-
nam-se imagens espetaculares, outdoors, imagens sem corpos, trastante, que uma grande maioria de brasileiros acaba por ser
espaços desencarnados, simples cenários (Jacques, 2006), a exis- privada desses bens e serviços. Por vezes, bens e serviços não
tência de manifestações culturais contrárias à sua espetaculariza- existem em áreas de favelas e periferias ou não podem ser alcan-
ção evidencia a complexidade da espacialidade capitalista. Exis- çados por questão de tempo ou de dinheiro.
tem sujeitos que não se conformam com a limitada função de A reflexão sobre cidadania não pode ignorar o lastro espa-
espectador de ações alheias e muitos outros sujeitos que ganham cial e nos parece relevante à análise das consequências no espaço
visibilidade e legitimidade social por meio de suas formas de público da afirmação positiva de territórios que não recebem
manifestar outras leituras de mundo. investimentos adequados em políticas públicas, mas que evi-
A educação tem papel importante na formação do sujeito e denciam sua vitalidade e criatividade por meio da arte e da
na ampliação de suas formas de não conformação com uma rea- comunicação.
lidade que cria barreiras sociais e dificulta a aproximação social. A produção criativa e crítica de ações como o Imagens do
Trata-se, portanto, de pensarmos como – frente à dominação Povo – que desenvolve ações nas esferas da educação, comunica-
capitalista do espaço urbano –, práticas artístico culturais podem ção e cultura com objetivo de democratizar o acesso à linguagem
ser educativas do ponto de vista de uma ação renovada na cidade fotográfica, apresentando a fotografia como técnica de expressão
e importante quando pensamos a copresença. e visão autoral da sociedade – ressalta os movimentos de costura
A estigmatização territorial que atinge moradores das fave- do tecido social por meio da valorização destes territórios estig-
las ou das periferias esconde as estratégias criativas, complexas e matizados. Um olhar atento a estas formas de afirmação vincula-
heterogêneas acionadas por estes sujeitos para enfrentar suas difi- das a territorialidades insurgentes tem a ver com o processo edu-
culdades do dia a dia. A postura ativa e contrastante dos espaços cativo mais amplo de que estamos tratando. No livro Favela: ale-
populares na produção cultural das metrópoles revela movimentos gria e dor, os autores Jailson Souza e Silva e Jorge Barbosa (2005)
que podem contribuir para romper o isolamento destes territórios apresentam um olhar próprio da dinâmica do espaço favelado,
e legitimar a presença do outro, sua atividade criativa e seu direito em termos temporais e espaciais e optam por tornar mais visível
de manifestar leituras próprias do “seu mundo” (Oliveira, 2008). o cotidiano plural destes espaços populares. A proposição princi-
Para pensar a cidadania do ponto de vista da educação é pal é de que só teremos uma cidade marcada pela possibilidade
necessário considerar que o cidadão é o indivíduo em um lugar do encontro das diferenças quando pensarmos uma cidade e um
(Santos, 1997) e, ainda, que há desigualdades sociais que são, cidadão, sem que se deixe de reconhecer a pluralidade das iden-
em primeiro lugar, desigualdades territoriais, porque derivam tidades, práticas e territórios, o que significa dizer que é preciso
do lugar onde cada qual se encontra. Isto significa que, para os ver, efetivamente, a favela como parte da cidade.
pobres, estar excluído dos “processos globais” não é a pior das Tal como Gomes (2002), acreditamos que não pode haver
exclusões, pois tal como Santos (ib.) alerta, a carência de todos cidadania sem democracia, não pode haver cidadania sem espa-
os tipos de consumo, seja ele material ou imaterial, não é a única. ços públicos, e o espaço público não pode existir sem uma dimen-
Há também a carência de participação política, de direitos bási- são física. Assim, um olhar geográfico sobre o espaço público
cos, enfim, de cidadania, entendida de forma ampliada. deve considerar sua configuração física e as práticas e dinâmi-
Para Santos (1997), o valor do indivíduo depende, em larga cas sociais que nele se desenvolvem. Para Gomes (ib.), ser cida-

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dão é pertencer a uma porção territorial e o autor adverte que as tivamente tratados como parte da metrópole e não à parte dela,
discussões sobre cidadania e democracia não devem ignorar a é uma forma de evidenciarmos que o analista separa do imenso
dimensão espacial, pois as disputas socioterritoriais correspon- devir do mundo, da totalidade do devir, certos fragmentos, certos
dem a disputas de um espaço, que é condição e meio para o exer- “objetos” e, ainda que esta demarcação ocorra no plano teórico, o
cício da cidadania. conhecimento inicia-se no vivido (Lefebvre, 1987).
Segundo Gomes, o espaço público é a arena de proble- Segundo Sartre (1967, p. 23), o pensamento concreto deve
matizações, debates e diálogo e, assim, a redefinição dos qua- nascer da práxis e voltar-se sobre ela para iluminá-la. Considera-
dros da vida social que modificam as práticas – processo que o mos relevante o fato desta reflexão poder fazer parte de uma pes-
autor denomina de “recuo da cidadania” – é paralela ao recuo do quisa que se desdobra em ações práticas que podem favorecer
espaço público. Para Gomes (ib.), ser cidadão corresponde a um uma transformação efetiva da vida urbana por meio do que consi-
estatuto derivado de um contrato social e, a cada momento, sua deramos como processo educativo ampliado.
definição foi construída de maneira diversa e com manifestações Também nos inspira a proposta de Harvey (2004), que no
próprias. Gomes não compreende a cidadania como uma relação livro Espaços de esperança trata da força política da mudança e da
distante e abstrata entre Estado nacional e os indivíduos de uma busca por alternativas que contraponham à lógica destrutiva ine-
coletividade. O autor destaca que no próprio conceito de cidadão rente ao processo de globalização contemporânea. Ao longo de
existe uma matriz territorial, o que faz com que a geografia gere sua argumentação, Harvey propõe um projeto político emanci-
contribuições efetivas sobre este fenômeno no quadro da dinâ- patório, de ideais utópicos e recorre a Lefebvre e a Foucault para
mica territorial cotidiana da sociedade. evidenciar sua contestação à visão mecanicista por meio da qual
Tal como aponta Gomes, o espaço público, dentro de uma o corpo é disciplinado. Harvey critica a produção do espaço e do
perspectiva geográfica, tem uma centralidade absoluta na condi- tempo propostos por visões cartesianas e newtonianas que difi-
ção de uma análise sobre a apreciação da cidadania. De acordo cultam a elaboração de estratégias emancipatórias. O autor pro-
com o autor, o encolhimento do espaço público corresponde a um põe utilizarmos nossos trabalhos para a promoção de uma política
recuo na vivência da cidadania. Conforme aponta Gomes (ib.), o regeneradora; sugerindo como passo inicial desta regeneração a
“recuo da cidadania” corresponde a um recuo paralelo do espaço leitura da produção do espaço humano (ib.) e aqui apontamos a
público e a uma redefinição nos quadros da vida social coletiva importância de praticas educativas voltadas para tal leitura.
que evidencia um “encolhimento” do projeto social e espacial – Estes referenciais teóricos colaboram para uma reflexão
apropriação privada dos espaços comuns; amuralhada da vida sobre o papel da espacialidade nas dinâmicas que envolvem a
social; e o crescimento das ilhas utópicas. cidadania. Santos (1987) alerta que a cidadania pode começar
O espaço público, como espaço da possibilidade da ação com definições abstratas, mas tem seu corpo e seus limites como
política na contemporaneidade, é visto também como espaço situação social, jurídica e política e, por esta razão, para ter eficá-
simbólico, da reprodução de diferentes ideias de cultura, da cia, ser fonte de direitos e ser válida às sucessivas gerações deve
intersubjetividade que relaciona sujeitos e percepções na produ- se manter nas letras das leis. Entretanto, para tratarmos a cidada-
ção e reprodução dos espaços banais e cotidianos (Serpa, 2007). nia como conquista da liberdade, é preciso considerar que a situ-
Nesta perspectiva, o que está sendo proposto é a articulação entre ação dos indivíduos está sujeita a possibilidades de retrocessos
leituras de cunho intersubjetivo e simbólico, com o pensamento e avanços e, assim, a educação – vista como amplo processo de
crítico que sustenta a teoria crítica do espaço. A opção por refle- aprendizado – tem papel relevante nesta conquista.
tir sobre a possibilidade de territórios estigmatizados serem efe- Tal como Gomes (2002) demonstra, o debate sobre cidada-

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nia em uma perspectiva geográfica nos convida a refletir sobre o há cidadãos e sim consumidores insatisfeitos. Cada vez mais as
conceito de espaço público; pois os atributos destes espaços têm empresas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo
relação direta com a vida pública e com a noção de copresença. O de produzir os produtos; cada vez mais governos inspiram-se no
espaço público é o lugar do discurso político e, para que o diálogo mercado para gerir cidades; e se utilizam de um discurso convin-
possa ocorrer de modo satisfatório entre os indivíduos, é neces- cente, cuja base é a ideologia tecida ao redor do consumo e da
sário que os discursos sejam veiculados por meio de uma língua informação ideologizados (Santos, 2007).
pública que é parte de uma cultura pública, que, por sua vez, per- Toda a vida em sociedade pressupõe linguagens que tradu-
mite que os indivíduos apresentem sua razão em público, sem zam valores compartilhados. A arte, enquanto recurso da apreen-
obstáculos, podendo confrontá-lo à opinião pública e instituir um são da complexidade da vida urbana, sugere práticas que incenti-
debate (ib.). Para Gomes, é no espaço público que os problemas vam uma leitura renovada do urbano, enquanto realidade densa
se apresentam, ganham dimensão pública e, simultaneamente, e diversa. Algumas expressões artísticas, especialmente criadas
são resolvidos. O espaço público, além de lugar no sentido mate- em territórios estigmatizados, evidenciam um descontentamento
rial, é também imaterial, abstrato, espaço que se constrói no diá- ativo, capaz de retratar o cotidiano com base em outros ângulos
logo (ib.). de observação. Tais expressões revelam uma atitude contestadora
A arte no espaço público colabora para a criação ou fortale- e propositiva que indica que o aprofundamento da crise social
cimento desta cultura pública e facilita a instituição do debate. não elimina a inventividade permitida pela experiência social
A arte é trabalho da expressão que constrói um sentido novo (a (Ribeiro e Lourenço, 2005). E este seria o sentido amplo do pro-
obra) e o institui como parte da cultura (Chaui, 2003). O sujeito, cesso educativo que a arte no espaço urbano pode promover.
tendo a oportunidade de se expressar com arte e construir novos
significados, busca exprimir seu modo de estar no mundo na Diálogos e saberes na metrópole do Rio de Janeiro
companhia dos outros seres humanos, refletindo sobre a socie-
dade, voltando-se para ela, seja para criticá-la, seja para afirmá- Tal como Ribeiro (2004a) propõe, algumas ideias e conceitos
la, seja para superá-la e é aqui que a arte tem uma função social sinalizam rumos possíveis para a ação social e que correspondem
relevante. Para Chaui, a arte é expressão e construção; expressão a verdadeiras ferramentas para a elaboração de projetos voltados
de um sentido novo, escondido no mundo, e um processo de cons- ao desvendamento de relações sociedade-espaço, conduzidas por
trução do objeto artístico. Segundo Chaui (ib.), a arte inventa um racionalidades alternativas. Para a autora,
mundo de cores, formas, volumes, massas, sons, gestos, texturas,
ritmos, palavras, para nos dar a conhecer nosso próprio mundo. por meio da ideia-conceito de saber manifesta-se a frente
Por ser expressiva, é alegórica e simbólica. A arte estimula expe- de investimentos reflexivos voltada ao diagnóstico dos efei-
riências e vivências que podem ser de grande relevância para a tos nocivos da tecnociência, associada ao esmaecimento da
afirmação de valores culturais que orientam a convivência entre pauta humanista e da produção científica que, abrigada nos
os diferentes segmentos sociais, ainda que em muitos momentos códigos do racionalismo ocidental, nega o diálogo com o
o acesso à arte seja mediado pelo consumo. senso comum (ib., p. 54).
Santos (1997) lembra que o cidadão é não raro ofuscado
pelo usuário e pelo consumidor, afastando para muito depois a Tal como propõe Carrano (2003), inspirado em Bakhtin, a com-
construção do homem público. Daí a busca de privilégios em vez plexidade da vida social nas cidades necessita ser compreendida
de direitos. Há décadas, Santos (1987) afirma que no Brasil não em sua dimensão comunicacional dialógica. A cidade polifônica

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abriga múltiplas vozes que se cruzam, relacionando-se por sobre- sugere que uma teoria geral da cidade e da sociedade urbana uti-
posição e contrastes. Assim, “a autoria é múltipla” e a organização lize recursos da ciência e da arte. Apreender as formas pelas quais
democrática de espaços e tempos das cidades identifica-se com a a arte nos permite reconhecer apropriações e diferentes raciona-
instauração de práticas educadoras orientadas para a produção lidades constitutivas da vida social em uma cidade como o Rio de
continuada do humano segundo as necessidades sociais concretas Janeiro, é, portanto, uma opção de método que enxerga na arte
e as trocas comunicativas que produzem sentidos culturais. um importante recurso para a apreensão das ações daqueles que
A promoção de circunstâncias e ações transformadoras é efetivamente estimulam diálogos sobre (e no) espaço urbano.
potencializada por práticas educativas que caminham no sentido Alguns sujeitos, em suas ações cotidianas, criam uma forma
da produção de subjetividades múltiplas, que incorporam a com- comunicação sensível que traduz necessidades e desejos, mui-
plexidade da vida social, os conflitos e os diálogos que a cidade tas vezes desvalorizados pelos técnicos e teóricos que se negam a
pode promover e incentivar. O reconhecimento e o incentivo ao ouvir as vozes do homem comum – não especialista em planeja-
diálogo de saberes colabora com a consolidação de uma episteme mento urbano.
sensível e dialógica, que não só é necessária, como é urgente para A ação conjunta entre cidadãos, pesquisadores e planeja-
pensar o urbano. dores urbanos é ressaltada por Souza (2004, p. 69), que, inspi-
Tal como indica Souza em sua crítica ao planejamento e à rando-se em Chaui (apud Souza, 2004), destaca o risco do “dis-
gestão urbanos, é necessário “debruçar-se sobre as possibilidades curso competente” revelar-se como uma ideologia tecnocrática e,
de ação, refletindo sobre perspectivas, limitações e potencialida- em última instância, autoritária, quando nega aos não especialis-
des” (2004, p. 36), de um ângulo que denomina de dialógico. Para tas em uma dada matéria o direito de participarem ativamente da
o autor, a missão do intelectual/pesquisador/planejador passa produção daquele saber e da sua aplicação, mesmo quando esta
por chamar a atenção para aqueles que, para ele, são, ao mesmo aplicação afeta a vida e os interesses de muitos, como é o caso do
tempo, objeto de conhecimento e sujeitos históricos, cuja auto- planejamento urbano. Em concordância com este autor, afirma-
nomia precisa ser respeitada e estimulada. A ideia é dar voz ao mos que o saber popular sobre a vida cotidiana pode ser impor-
outro, reconhecendo-o por meio de sua própria fala, de modo que tante para refletirmos a própria maneira como fazemos ciência e
seja possível aproximar o senso comum dos acúmulos teóricos nossa formação enquanto técnicos e cientistas sociais.
abarcados na pesquisa sobre a vida urbana. Para Souza, mesmo que pareçam termos antagônicos, “téc-
O adjetivo dialógico usado por Souza é tomado de emprés- nica/ciência” versus “política”, “reforma” versus “revolução”, “pla-
timo de Paulo Freire, cuja obra possui um destacado alcance polí- nejamento” versus “liberdade”, podem e devem ser integrados
tico-filosófico que, de acordo com o geógrafo, é simbolizado pela não apenas retoricamente – o que para o autor já seria válido –,
sentença “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; mas conceitual, teórica e metodologicamente. Acreditamos que,
os homens se libertam em comunhão” (2000, p. 58). O ensina- para superar a racionalidade dominante, é preciso ver o planeja-
mento de Freire sobre o ato de educar reside em vê-lo não apenas mento como algo bem mais amplo do que uma ação estatal base-
como dialético, mas verdadeiramente como dialógico, isto é, fun- ada em uma técnica puramente objetiva. Tal como afirma Souza
dado no diálogo. Ensinamento que possui nítida relevância para a (2004, p. 37), um planejamento crítico não arrogante não pode
ação coletiva em geral que, para Souza (ib.), inclui o planejamento simplesmente ignorar saberes locais e mundos da vida de homens
urbano crítico e qualquer processo organizado de mudança social. e mulheres concretos, como se suas aspirações e necessidades
O diálogo proposto por Freire tem um sentido político filosó- devessem ser definidas por outros que não eles mesmos.
fico próximo ao indicado por Lefebvre (2001), quando este autor As artes podem sugerir formas de resistência às leituras do

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urbano que transformam a grande cidade no cenário sem histó- mento e ação política, e que, ao trazerem concretude à luta
ria dos interesses hegemônicos. A proposta de consolidar uma por cidadania, obrigam o repensar de relevantes fenômenos
episteme dialógica e criativa que permita desvendar a complexi- sociais (Ribeiro, 2004a, p. 53).
dade do (e com o) outro (Ribeiro, 2004b) parte do pressuposto
de que é por meio do diálogo entre ciência e política que vai se Racionalidades alternativas frente à razão instrumental
dar a superação de um pensamento pragmático e operacional que
ainda é dominante, mas não único. O aprofundamento das relações capitalistas em todos os ângulos
Para Ribeiro (2004a), lugar e saber são ideias-conceitos e da vida social está associado ao triunfo da supremacia da razão
também ideias-projetos. Segundo a autora, na obra de Milton instrumental ocidental, mesmo que não seja possível reduzir o oci-
Santos, são indicadas experiências e expectativas que, desdobra- dente ao sistema econômico hegemônico. A razão instrumental
das nos espaços opacos (antagônicos aos espaços luminosos do de base ocidental alcançou a supremacia produzindo fragmenta-
agir operacional, estratégico e do marketing), propiciam a resis- ção não apenas como projeto dominante, mas também como fato
tência social (Santos apud Ribeiro, 2004b). Para a autora, tais (ib.). Na base do pensamento ocidental, encontra-se um raciona-
noções indicam contextos propícios à descoberta de temas que lismo centrado na obtenção do lucro e do poder. Para Morin,
devem ser incorporados à pesquisa socialmente comprometida,
além de orientar a busca do sujeito da transformação e de um o economicismo torna-se ideologia racionalizadora e o
modelo cívico que favoreça a real experiência da cidadania. desenvolvimento economico-tecnoburocrático das socieda-
Como afirma Porto-Gonçalves (2006), novos territórios epis- des ocidentais tende a instituir uma racionalidade “instru-
têmicos estão tendo que ser reinventados juntamente com outros mental”, em que eficácia e rendimento parecem trazer a rea-
territórios de existência material silenciados pela escrita da histó- lização da racionalidade social (2002, p. 160).
ria. Enfim, são novas formas de significar nosso estar-no-mundo,
de grafar a terra, de inventar novas territorialidades, enfim de Sob a égide do individualismo e da competitividade e orientada
geo-grafar (ib.). E essa geografia transformada em ação evidencia para a dominação, essa razão oculta mecanismos garantidores
aquilo que Santos (apud Ribeiro, 2004a) falava acerca da existên- da permanência de formas tradicionais de estratificação social
cia como produtora de sua própria pedagogia. e divisão territorial, contribuindo para que a superação da crise
De acordo com Ribeiro, assumindo tarefas conceituais asso- pareça ainda mais distante e difícil de ser alcançada.
ciadas à valorização do lugar, Milton Santos reposicionou a cate- No entanto, este pensamento dominante mostra-se desgas-
goria território na teoria crítica do espaço, alertando para sua tado e incapaz de promover integração, exatamente pelo fato de
relevância na ação política, por meio da compreensão do territó- partir do imperativo da dominação e do medo do outro. Ainda
rio usado. Assim, Ribeiro nos chama atenção para o fato de que assim, Santos (2007) alerta para o fato de que o medo e o desam-
“o saber é a força dos lugares, da mesma forma que o lugar é a paro se criam mutuamente, fazendo com que a busca desen-
seiva de diferentes saberes” (2004a, p. 47). Para a autora, freada pelo dinheiro seja tanto causa como consequência deste
desamparo e medo. Não à toa, Garaudy (1983) considera que o
ambas as ideias (conceitos e projetos) correspondem à tena- ocidente é um acidente. Para o autor, o ocidente não é apenas uma
cidade do existir, à insistência do fazer a vida, à riqueza entidade “geográfica” e sim um estado de espírito que se orienta
do agir realmente experimentado. São ideias que condu- para a dominação da natureza e dos homens.
zem, sem separá-los para além do que a ética exige, conheci- Uma nova episteme torna-se necessária e urgente para o

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reconhecimento de toda a complexidade e a diversidade da vida está a “supervalorização da matéria” e o individualismo, que sus-
urbana atual; não somente pelo fato da ordem hegemônica não tentam o consumismo e a competição por uma “vitória a qualquer
ser uma ordem total, mas também pela limitação do modelo custo” geradores de miséria e violência. Para o compositor, o valor
mecanicista de leitura da sociedade. É necessário ter uma imagi- individual está longe de ser traduzido pelo que a pessoa tem. Este
nação analítica mais ampla, no que diz respeito a teorias e méto- valor surge no que a pessoa é, na sua existência e ação cotidiana.
dos, para que seja possível realizar uma reflexão crítica e consis- Ao questionar o comportamento individual, o compositor sugere
tente sobre as alternativas existentes à racionalidade dominante. uma nova visão: “antes de querer que a humanidade mude, que tal
Tal como havíamos ressaltado (Oliveira, 2008), a emergên- mudar um pouco nosso próprio ponto de vista?”. A “nova visão” de
cia poética do novo exige uma postura aberta a uma nova ati- BNegão inclui a superação da hipocrisia ou da tendência de exigir
tude diante do mundo, especialmente no que se refere à relação dos outros aquilo que não fazemos e, também, a não reprodução
sociedade-natureza e no que tange as relações entre os homens. no cotidiano dos deslizes morais que estão na base de uma socie-
Garaudy (1983) sugere a abertura do horizonte reflexivo para dade injusta, como a hierarquização desnecessária e a exploração
novos possíveis, capazes de orientar a concepção de um mundo “do mais fraco”. Destacam-se na letra os seguintes versos: “Nada
diferente e um crescimento econômico com face humana. O autor muda, enquanto não mudarem os valores na raiz de todos, eu
ainda afirma que para que o “projeto esperança” possa criar um disse todos – exploradores e explorados, violentadores e violenta-
tecido social novo e um conceito inusitado de política, é pre- dos – tudo é meio a meio, tudo caminha lado a lado”.
ciso superar a concepção da teoria política como instrumento de O estímulo ao consumismo, ao individualismo e à competiti-
poder ao dispor de instituições e aparelhos exteriores ao homem. vidade tende a ameaçar o compartilhamento de valores e códigos
Uma nova reflexão precisaria surgir, portanto, apoiada no enga- comportamentais, provocando conflitos e desagregação social
jamento pessoal e interior de cada um com o todo e é justamente (Ribeiro, 2004a). Mas é preciso estar atento para não ocultar as
porque estamos falando de formação do sujeito que as práticas formas por meio das quais o capitalismo se preserva, como a que
culturais e educativas na cidade tornam-se mais necessárias e envolve a generalização da certeza de que as pessoas são compe-
urgentes rumo a uma cidadania ativa. titivas, individualistas e consumistas (ib.). Para Milton Santos,
A reflexão de Garaudy aproxima-se muito da “nova visão”
proposta pela música de BNegão, a partir da qual o compositor Neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo,
propõe uma mudança nos valores que estão na base das relações a confusão dos espíritos constituem baluartes do presente
humanas. Nesta letra, BNegão fala da força da ação individual e estado de coisas. A competitividade comanda nossas for-
também da força que vários sujeitos adquirem ao se unirem em mas de ação. O consumo comanda nossas formas de inação.
um projeto comum. O verso que fala de uma nova geração que E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do
faz do “microfone um megafone”, que “passando de mono pra mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós
estéreo a sua compreensão” sugere uma ampliação da forma de mesmos (Santos, 2007, p. 120).
ver os fatos, por meio de mais de um canal de comunicação, de
escuta. Esta metáfora do mono para o estéreo evidencia que “uma O contexto espaço-temporal que estimula a presente reflexão é
nova visão” só pode ser construída por meio da escuta das múlti- a cidade do Rio de Janeiro do início da década de 1990 aos dias
plas vozes que nos permitem ver o mundo para além do que ofe- atuais. Nesse período, em que ocorre a combinação entre política
rece o pensamento único (mono). neoliberal e o avanço de novas tecnologias, o capitalismo reor-
Para o músico BNegão, na raiz dos problemas da humanidade ganiza-se na escala mundial, revelando o aumento da concentra-

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ção do poder econômico, da desigualdade social, enquanto varia- modelo de gestão urbana está conectado ao metabolismo do capi-
das formas de violência evidenciam, por sua vez, o predomínio de tal e fortalece a lógica da competitividade, por visar tornar a
uma ação pragmática em relação ao território – cujos princípios cidade competitiva e “preparada” para o abrigo dos megaeven-
são orientados pela lógica da troca e da propriedade. tos internacionais, enfraquecendo o diálogo entre segmentos e
Sobre a violência, Santos (2007) alerta para a existência de grupos sociais, justamente no momento em que este diálogo pre-
uma violência estrutural que evidencia o fato de que vivemos em cisa ser estimulado para que seja contido o aumento da violência
uma época de globalitarismo muito mais do que de globalização. urbana (Ribeiro, 2006b).
A violência difusa, mas estrutural, que é típica de nosso tempo, A crise – que altera a dinâmica do capital e produz fragmen-
permite que Santos afirme que a realidade é uma fábrica de per- tação socioterritorial para a garantia do lucro – reflete-se na ade-
versidades. O autor nos fala ainda da perversidade sistêmica, cuja são do modelo da cidade-marketing-espetáculo, cujo estilo de
causa essencial é a instituição da competitividade como regra intervenção cosmética, estética e imagética reforça os contrastes
absoluta, fazendo do outro uma coisa a ser removida. Daí decor- sociais, com as suas consequências mais perversas, como a indi-
rem: a celebração do egoísmo, do narcisismo, da corrupção e o ferença e o medo do outro. Os modelos de gestão urbana inte-
abandono da solidariedade entre pessoas, grupos e lugares. Para ressam a essa análise por interferirem fortemente no uso e na
Santos, estas são as causas da submissão da vida de todos os dias apropriação dos lugares da cidade, por evidenciarem suas con-
a uma violência estrutural, que é mãe de todas as outras formas sequências nas práticas culturais e educativas e por revelarem a
de violência. A violência urbana é, portanto, um sintoma desse materialização da razão global no território.
mal maior, que muitos buscam confrontar por meio de ações e Segundo Garcia (1997), para forjar um consenso em torno
gestos desvalorizados pelo pensamento acadêmico dominante. do modelo dominante de gestão urbana, governo locais e agen-
Quando se pretende refletir as consequências de um planeja- tes econômicos evocam a exigência da economia competitiva.
mento urbano de cunho empresarial, (Souza, 2004) a cidade do São assim elaborados projetos de renovação urbana, por meio de
Rio de Janeiro oferece um bom caso para exame. Segundo o refe- estratégias transescalares, que buscam projetar positivamente a
rido autor, imagem da cidade. Este modelo produz representações que obe-
decem a uma determinada visão de mundo e a uma série de ima-
No Brasil, as perspectivas mercadófilas têm se aninhado, a gens-síntese (Ribeiro, 1991) sobre a cidade que muitas vezes
partir da década de 90, no discurso dos “planos estratégi- não corresponde à realidade sentida nos lugares menos lumino-
cos”. O mais conhecido exemplo é o Rio de Janeiro, elabo- sos. São assim criados discursos referentes à cidade, de forma a
rado durante a administração do prefeito César Maia pela encontrar na mídia e nas políticas de city marketing, os instru-
prefeitura em parceria com numerosas entidades da socie- mentos para a sua difusão e afirmação urbana (Garcia, 1997).
dade civil (ib.). A retórica planetária dos atores hegemônicos (Paraire apud
Garcia, 1997) tende a instaurar o pensamento único – uma ide-
De acordo com dados apresentados por Souza (2004), “tenta- ologia que, em sua vertente urbana, configura uma agenda para
se criar a sensação de um firme consenso”, quando em reali- as cidades, com pautas e programas definidos para a promoção
dade “linhas de tensão e conflito são escamoteadas em favor de e a legitimação de determinados projetos, como sediar megae-
uma imagem de unidade”. O modelo de gestão urbana adotado ventos internacionais. Suas imagens publicitárias baseiam-se nas
na cidade do Rio de Janeiro tem favorecido os interesses priva- chamadas “cidades-modelo” e seus pontos de irradiação coinci-
dos – empresariais – em detrimento dos interesses coletivos. Este dem com as instâncias políticas de produção de discursos: gover-

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nos locais em associação com as mídias; instituições supranacio- no fato de que os governos municipais tendem a se desfazer de
nais, como a Comunidade Europeia; agências multilaterais como sua responsabilidade com relação a toda a área urbana e a con-
o Banco Mundial, o BID ou a ONU. As agências de cooperação e centrar investimentos em fragmentos centrais, obedecendo à
instituições multilaterais têm grande comprometimento com a lógica de uma política de localização que segue critérios econô-
difusão deste modelo e seu ideário. Ainda segundo Garcia (ib.), a micos no contexto de uma competição entre as cidades criada
identificação destes elos políticos entre as agências multilaterais com o objetivo de gerar a máxima produtividade e lucratividade.
de cooperação e alguns dos principais ideólogos encarregados da Em trabalho anterior (Oliveira, 2004), identificamos as desi-
difusão do “novo modelo de gestão urbana” nos permite o enten- gualdades que marcam as políticas culturais da cidade do Rio de
dimento das conexões entre o chamado “pensamento global” e a Janeiro, enfatizando o acesso à cultura como um direito à vida
ideologia neoliberal. urbana renovada, em que são mais equilibradas as oportunidades
Tal como afirma Garcia, esse modelo propõe mudanças tanto de produção e uso da cultura. Destacamos que esta renovação da
no nível das práticas espaciais (infraestruturas, isenções e favores vida urbana exige uma postura ativa do sujeito na luta para que a
fiscais) quanto no nível das representações do espaço (imagens, produção cultural não seja definida exclusivamente por uma polí-
discursos), que fazem da mercadoria cidade, um palco onde o tica cultural orientada pela lógica da troca e do mercado hegemô-
espetáculo é conduzido por atores que cumprem o papel de con- nico, que vê no lucro imediato o motor principal da ação.
sumidores específicos e qualificados: o capital internacional, os No caso do Rio de Janeiro, o Rio Cidade é o plano de reforma
turistas e os cidadãos “solváveis”. Tal como afirma Ribeiro, urbanística que buscou obedecer ao signo da ordem e ao signo
do embelezamento, atingindo a cidade de modo pontual e dife-
o discurso que difunde novos ideários para a gestão urbana, renciado (Oliveira, 2002). Tal como afirma Oliveira, a reforma
realçando o mercado e a iniciativa empresarial, não deve ser da cidade, a criação ou a recriação do solo urbano, o embele-
compreendido, apenas, como sinal de alienação; pois, con- zamento e a adequação da cidade a novas situações mundiais,
cretamente, este discurso defende interesses que conectam aparece recorrentemente no discurso de políticos, engenhei-
a vida urbana ao metabolismo do capital (Ribeiro, 2006a, ros, arquitetos e urbanistas. As atividades instigadas por interes-
p. 45). ses econômicos são pertinentes à análise por seus efeitos em prá-
ticas mais subjetivas, já que projetos culturais dessa perspectiva
No discurso que busca interferir no senso comum, o modelo da perdem grande parte da relevância intrínseca (Pallamin e Lude-
cidade competitiva aparece como resultado do desempenho dos mann, 2002). Assim, concordamos com a autora quando esta diz
governos de cidade que, por meio das denominadas boas práti- que práticas que promovem a espetacularização da cidade atuam
cas, conseguiram destacar-se na ação urbanística, ambiental ou no sentido da crescente legitimação de valores que disciplinam e
na gestão urbana. Esta aparência esconde um complexo mercado dominam as esferas do cotidiano, em vez de lhes abrir novos cam-
onde as imagens são construídas e postas em circulação em varia- pos de autonomia.
das escalas, com mútuas influências de diversas ordens, e o con- Tais práticas caminham no sentido oposto aos sugeridos
junto de agentes e estratégias territoriais interescalares compa- pelas práticas educativas que afirmam de maneira plena a cida-
recem para gerar o convencimento de que as ações ocorrem de dania. Os processos de formação da subjetividade e dos valo-
dentro para fora, a partir da ação local de governos e habitantes res sociais ocorrem de modo diferenciado em variadas partes da
(Garcia, 1997). cidade. A opção por privilegiar o homem lento, habitante das
A perversidade da tentativa de implantar este modelo está áreas opacas da cidade, que vivencia o espaço do aproximativo

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(Santos, 1997), parte da necessidade de considerarmos a voz do nismos de fragmentação do espaço. Trata-se de buscar compreen-
sujeito que resiste, ainda que não de forma completamente cons- der como a arte pode enriquecer essa linguagem que os agentes
ciente, às imposições de um modo de vida que já dá sinais de acionam no espaço público e como este aprendizado pode ser for-
esgotamento. Tal como Ribeiro e Lourenço (2005), entendemos talecedor das lutas por justiça social.
o homem lento como uma síntese político-filosófica do outro e da Tal como sugere Carrano (2003), uma pauta alternativa à
sua capacidade de criar o discurso que exprime suas carências e hegemonia neoliberal aponta para o reconhecimento da cidade
de criar caminhos para sua sobrevivência. Assim, o homem lento como espaço legítimo e necessário à educação em condições de
sintetiza sentidos mais amplos da organização social e da parti- pluralismo cultural e como processo social de compartilhamento
cipação política daqueles que, por habitarem as áreas opacas da de significados e sentidos culturais. O diálogo de saberes parte
cidade, são os mais prejudicados pela lógica hegemônica do capi- do pressuposto de que o potencial educativo das formas descon-
tal. O homem lento desvenda o espaço enquanto o mundo impõe tínuas de aprendizagem cria numerosas possibilidades para a
a adesão à velocidade, ao individualismo e à competitividade. incorporação do inesperado e da flexibilidade educacional em
Tal como Ribeiro, acreditamos que “são os que experimentam diferentes âmbitos da vida social. Tal incorporação considera os
a escassez que precisam desvendar as múltiplas ações possíveis sentidos e interesses das diferentes subjetividades como vitais
permitidas pelo espaço herdado e costurar projetos num tecido para a afirmação de uma cidadania ativa. Para Carrano (2003)
social esgarçado e precário” (2005b). “as ruas, transformadas em espaços de sociabilidade cidadã
podem ser, ao mesmo tempo, educativas e culturalmente públi-
Considerações finais cas”. Para o autor, a perda da cultura pública leva ao desconheci-
mento do próprio sentido de cidade e “as cidades violentamente
A identificação da “polifonia urbana”, isto é, do reconhecimento protegidas e vigiadas, o próprio corpo tende a tornar-se também
da existência de ações insurgentes, cujo sentido político estaria hermético e impermeável a outros corpos” (ib.).
na propagação de outras falas sobre o urbano – artes que eviden- A cidade que educa não é apenas a que planeja pedagogica-
ciam insatisfação frente a uma ordem específica e, ainda, o poten- mente os espaços de aprendizagem: as relações podem ser edu-
cial de renovação da vida na cidade – constitui a base de uma lei- cativas também no contexto de redes informais de sociabilidade e
tura da dialética entre objetividade e subjetividade. Muitas vozes conhecimento (ib.) e as artes evidenciam formas difusas assumi-
querem estabelecer o diálogo, o encontro das diferenças para que das nos espaços praticados e reveladoras de experiências criativas
a vida urbana possa ter um sentido mais positivo. Algumas bus- e não planejadas de produção do espaço urbano. A arte no espaço
cam dar visibilidade a uma existência negligenciada e fazer poe- público pode, ainda, revelar o sentido libertário da ação social e
sia a partir dos conflitos experimentados no urbano. Em comum, formas singelas de expressão de lutas pelo direito à cidade, como
estas expressões artísticas vindas “de baixo” têm a capacidade de no caso da estátua-viva que ganhou apoio popular e conseguiu se
criar outros imaginários que revelam territorialidades, identida- livrar do choque de ordem, e cuja sensibilidade analítica permite
des, lugares escondidos e práticas socioespaciais bastante rele- a construção de novos conhecimentos sobre a vida urbana.
vantes para a reflexão sobre a vida na metrópole e o aprendizado
da cidadania.
A proposta concreta que desenvolvemos busca evidenciar
como a arte parece gerar um sentido novo – criativo, inventivo e
libertário – para o sujeito que busca questionar e romper os meca-

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Dia a casa
Noite a rua

Os músicos da rua
Todos tocam e perda de silêncio
Sob o céu negro nós vemos claro

A lamparina está cheia de nossos olhos


Nós habitamos nosso vale
Nossos muros nossas flores nosso sol
Nossas cores e nossa luz

A capital do sol
É a imagem de nós mesmos
E no asilo de nossos muros
Nossa porta é a dos homens

Paul Éluard, “Por um beijo”, em Últimos poemas de amor

Lamparina (Do esp. lamparilla) S. f. 1. Pequena lâmpada.


2. Pequeno recipiente com um líquido iluminante (óleo, quero-
sene, etc.) no qual se mergulha um pequeno disco de madeira,
de cortiça ou de metal traspassado por um pavio que, aceso,
fornece luz atenuada […].
Novo Aurélio – O dicionário da língua portuguesa

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Esta obra foi composta em Charter
e impressa em papel offset 75g/m2 pela Vozes
para a Lamparina editora em setembro de 2011

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