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Dia Internacional da Mulher: Mary Wollstonecraft e Mary Shelley

“Admito que as mulheres tenham diferentes obrigações a cumprir, mas são obrigações humanas,
e mantenho com firmeza que os princípios a regular seu desempenho devem ser os mesmos”
Mary Wollstonecraft (1792, p. 75)

Em 2018 se comemora os 100 anos do direito de voto feminino na Inglaterra. A vitória do


movimento sufragista inglês não veio de graça, mas aconteceu depois de muita luta. Um marco
na luta sufragista inglesa foi o livro de John Stuart Mill, “A Sujeição das Mulheres”, de 1869. O
exemplo inglês foi fundamental para a ampliação do sufrágio das mulheres nos demais países
do mundo e para a ampliação da cidadania feminina. Nos Estados Unidos – onde a luta também
atravessou décadas - o direito de voto feminino, em nível federal, foi conquisto em 26 de agosto
de 1920. No Brasil, o direito de voto veio em 24 de fevereiro de 1932, durante o governo Vargas.

A conquista do direito de voto foi um processo que aconteceu, fundamentalmente, no século


XX e abarcou país a país até, praticamente, se universalizar. Mas uma das raízes deste
movimento pode ser encontrada no final do século XVIII, quando Mary Wollstonecraft publicou,
em 1792, o famoso livro “Reivindicação dos direitos da mulher”.

Mary Wollstonecraft tinha 17 anos quando aconteceu a Independência dos Estados Unidos (4
de julho de 1776) e tinha 30 anos quando ocorreu a Revolução Francesa (14 de julho de 1789) e
foi profundamente influenciada por estes dois acontecimentos históricos. Aliás, ela era
admiradora e se tornou amiga de Thomas Paine (1737-1809) que foi um revolucionário britânico
que deu uma contribuição fundamental para a Independência dos EUA, ao publicar o livro
“Senso Comum” (1776) e, anos depois, participou da Revolução Francesa, foi eleito deputado
na Convenção Nacional Francesa, tornou-se amigo do Marquês de Condorcet, e escreveu o livro
“Direitos do Homem” (1791), dentre várias outras obras. Mary também foi muito influenciada
por Joseph Priestley (1733-1804), um teólogo, clérigo dissidente, cientista, escritor prolífero e
político britânico que se posicionou a favor da Independência dos EUA e da Revolução Francesa.

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Em 1778, Mary Wollstonecraft saiu da casa dos pais e assumiu um emprego doméstico, que, por
insatisfação, ela abandona em pouco tempo e funda uma escola na comunidade Newington
Green Unitarian Church (NGUC), gerenciada por dissidentes ingleses e marcada pelo radicalismo
político (sob a liderança de Richard Price). Depois desta experiência que marcaria a sua atuação
em prol da educação feminina, Mary Wollstonecraft resolveu ser escritora e, para tanto, teve o
apoio imprescindível do editor liberal Joseph Johnson, onde encontrou um lugar para trabalhar,
viver de forma independente e participar de um círculo de intelectuais progressistas que foi
essencial para a sua formação. Seu primeiro sucesso foi a obra “Uma Reivindicação dos Direitos
dos Homens, em uma carta para o muito honorável Edmund Burke”, de 1790, onde ataca a
aristocracia europeia, defende a República e os direitos de cidadania, contra a elite inglesa e em
conformidade com os ideais da Revolução Francesa. Estimulada pelo clima intelectual e
revolucionário, Mary escreveu e publicou, em 1792, o seu famoso e seminal livro “Reivindicação
dos direitos da mulher”.

Em dezembro de 1792, Mary chegou a Paris, pouco antes da execução de Luís XVI e Maria
Antonieta e buscou divulgar o seu livro “Reivindicação dos direitos da mulher”. Mas ela
conheceu e apaixonou-se, por Gilbert Imlay, um empresário norte-americano. Pouco tempo
depois, ficou grávida e, no dia 14 de Maio de 1794, deu à luz a sua primeira filha, Frances
Wollstonecraft Imlay (1794-1816), conhecida como Fanny. Depois de deixar a França e viajar
para os países escandinavos, Mary foi abandonada pelo aventureiro Imlay.

Em 1795, Mary voltou para Londres e se uniu novamente ao círculo editorial e intelectual de
Joseph Johnson, onde retomou suas atividades literárias e onde retomou o contato com o
grande filósofo William Godwin, com quem começou um namoro e se casou após ficar grávida
de sua segunda filha, Mary Wollstonecraft Godwin, nascida em 30 de agosto de 1997. Porém,
10 dias depois do nascimento, a primeira grande feminista da era moderna morreu de morte
materna, em decorrência das complicações do parto.

William Godwin criou as duas filhas de Mary Wollstonecraft. Em dezembro de 1801, ele se casou
com sua vizinha, Mary Jane Clairmont, que já tinha dois filhos, Claire Clairmont (1798-1879) e
Charles Clairmont (1795-1850). Juntos tiveram o caçula William Godwin Jr (1803-1832). Os sete
passaram a viver em uma pioneira família mosaico. As três meias-irmãs cresceram juntas e, por
injunções do destino, acabaram se envolvendo com os grandes poetas românticos Percy Shelley
(1792-1822) e Lord Byron (1788-1824) e viveram vários eventos trágicos, como a perda de filhos
pequenos, gravidez fora do casamento e o suicídio de Fanny.

Em maio de 1816, com apenas 18 anos de idade (e com filho pequeno) Mary Wollstonecraft
Godwin acompanhou o seu futuro marido, Percy, juntamente com sua meia-irmã Claire (que
estava grávida de Lorde Byron) até a cidade de Genebra para se encontrar com Lord Byron
(1788-1824) e seu amigo médico e escritor John Polidori (1795-1821). Em decorrência do verão
atípico - o tempo estava frio, chuvoso e desagradável - o grupo permaneceu em casa por vários
dias. Nas palavras de Mary Shelley: “Caíram em nossas mãos alguns volumes de histórias de
fantasmas”. Para passar o tempo, Lord Byron propôs: “Cada um de nós vai escrever uma história
de fantasmas”. Polidori escreveu o conto “O Vampiro” e Mary Shelley teve o insight do livro
“Frankenstein, ou o moderno Prometeu”, escrito em 2016 e 2017 e publicado em 01/01/2018.

Indubitavelmente, o livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu” é uma obra-prima que alerta


sobre os perigos do desenvolvimento científico desregrado, criticando várias pretensões da
filosofia iluminista, particularmente a fé cega nos benefícios do progresso tecnológico,

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econômico e social. Seria como reconhecer que as promessas maravilhosas da energia nuclear
já traziam embutidas os desastres de Chernobyl, Three Mile Island e Fukushima.

O livro de Mary Shelley, de certa forma, é um contraponto ao livro revolucionário de sua mãe,
mas ambos se somam na ambição de construção de uma sociedade mais justa, mais democrática
e com maior equidade de gênero. Mary Wollstonecraft e Mary Shelley são a dupla de escritoras
– mãe e filha – mais famosa e mais influente da língua inglesa.

O livro “Reivindicação dos direitos da mulher” foi traduzido para o português, ainda no século
XIX, pela educadora e positivista - pioneira do feminismo brasileiro - Nísia Floresta. Numa
tradução recente, Maria Lygia Quartim de Moraes, diz no prefácio:

“Extremamente revolucionária para a época, a ‘Reivindicação’ foi traduzida para vários idiomas,
tornando-se um referencial teórico para outras mulheres, precursoras do feminismo
contemporâneo. O texto trata da condição de opressão da mulher na sociedade inglesa num
período histórico marcado pelos ideais iluministas e pelas profundas transformações que o
capitalismo industrial traria para o mundo. E, apesar da distância histórica que diferencia a
situação das mulheres de hoje em relação à realidade de Mary Wollstonecraft, a luta pela
igualdade de gêneros continua atual” (p. 8).

O livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu” também é considerado uma obra feminista,


não apenas porque foi escrito por uma jovem autora, mas porque traz uma mensagem dupla
sobre as injustiças sociais e os perigos de uma ciência arrogante e viril, que transforma o papel
das mulheres e da “Mãe Natureza” em simples objetos passivos a serem manipulados pela
racionalidade científica, tal como notou Mellor:

“O romance, portanto, questiona a metáfora de gênero sobre a qual se baseia a teoria e a prática
científica ocidental. A tentativa da ciência de penetrar, possuir e controlar a Mãe Natureza
implica tanto uma violação dos direitos sagrados da natureza como uma falsa crença na
"objetividade" ou "racionalidade" da pesquisa científica. Quando interpreta a natureza como
uma fêmea passiva e possessível, a ciência ocidental codifica uma metáfora sexista que tem
implicações profundamente preocupantes, não só para as mulheres, mas para a sobrevivência
humana. Como o monstro de Frankenstein diz a ele: "Lembre-se de que eu tenho poder ... Eu
posso te tornar tão miserável que a luz do dia será odiosa para você" (p. 165). Como Victor
Frankenstein, os cientistas modernos têm tratado muitas vezes a natureza como o "outro", a ser
explorado ao invés de ser compreendido e servido através de uma descrição detalhada, amorosa
e não intervencionista. Na busca da verdade sobre o funcionamento do universo físico, eles
ignoraram a possibilidade de que suas manipulações da natureza possam prejudicá-la. Muitas
vezes, eles não conseguiram assumir a responsabilidade pelas consequências previsíveis de suas
pesquisas, não conseguiram cuidar de sua própria progênie tecnológica. Como Mary Shelley
percebeu pela primeira vez, um método científico fundado na construção de gênero da natureza
como a outra, como o objeto passivo do desejo, portanto, possessível e explorável, pode produzir
monstros, mesmo monstros de guerra biológica, química e nuclear capaz de destruir civilização
como a conhecemos” (Mellor, 1987).

O Dia Internacional da Mulher é uma data de reflexão e um momento de rememorar o luto e a


luta do sexo feminino contra a exploração, a opressão, a escravidão, a violência, a guerra, a
pobreza, a destruição da natureza, a superstição, a ignorância, a heteronomia, a iniquidade, o
fracasso, o preconceito, o obscurantismo, o fatalismo e a favor da paz, da harmonia, da
liberdade, da educação, da ciência, da tecnologia, da simpatia, da empatia, da solidariedade, da
pluralidade, da autonomia, da diversidade, da saúde, dos direitos sexuais e reprodutivos, do

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amor, do progresso, do sucesso, do bem-estar e do compartilhamento respeitoso do espaço
terrestre com todos os seres vivos do Planeta. Mary Wollstonecraft e Mary Shelley são duas
mulheres que merecem sempre serem lembradas no Dia Internacional da Mulher.

Merecidamente, Mary Shelley foi apresentada ao público brasileiro na Sapucaí no carnaval 2018.
A escola de samba Beija-flor de Nilópolis representou o enredo: "Monstro é aquele que não sabe
amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu", para homenagear os 200 anos do livro
“Frankenstein, ou o moderno Prometeu”. Infelizmente, a maior parte do movimento de
mulheres não percebeu a importância de trazer ao grande público a obra de uma feminista de
18 anos que escreveu um romance “imortal” e fundamental para a discussão sobre os
experimentos genéticos, da clonagem, da Inteligência Artificial, etc. Indubitavelmente, a vitória
da Beija-flor foi também uma vitória das feministas Mary Wollstonecraft e Mary Shelley.

Referência:
ALVES, JED. Frankenstein e o ‘monstro’ do aquecimento global, Colabora, RJ, 17/10/2017
https://projetocolabora.com.br/clima/frankenstein-e-o-aquecimento-global/
ALVES, JED. Os 200 anos do livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu”, Ecodebate, RJ,
23/10/17 https://www.ecodebate.com.br/2017/10/23/os-200-anos-do-livro-frankenstein-ou-
o-moderno-prometeu-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. O Frankenstein de Mary Shelley na Sapucaí, Ecodebate, RJ, 14/02/2018
https://www.ecodebate.com.br/2018/02/14/o-frankenstein-de-mary-shelley-na-sapucai-
artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
Anne K. Mellor. Frankenstein: A Feminist Critique of Science, 1987)
http://knarf.english.upenn.edu/Articles/mellor1.html

José Eustáquio Diniz Alves


Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População,
Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

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