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MARIAZINHA*

Acho que eu nunca teria percebido a Mariazinha se não tivesse sido criada para ser uma delas, se não tivesse
me revoltado ainda muito pequena com a diferença de possibilidades e regalias abertas para mim e meu
irmão, se não tivesse tido um pai patriarcal e protetor e uma mãe aparentemente submissa, mas insatisfeita, se
não vivesse os medos, ansiedades e dor no abrir dos meus caminhos, e se não estivesse constantemente atenta
às tentações de voltar a ser Mariazinha.
Na adolescência, eu gostava de ter aulas de italiano e francês. Meu pai achava aquilo perda de tempo e me
alertava para os perigos de não saber falar inglês. "O importante, minha filha, é você falar inglês e saber bater
bem à máquina. Isso caso o comunismo vier".
Profissão? Ele não era contra. Até achava que eu devia ter. Mas algo que me protegesse contra a perda
eventual dos meus bens. Acho que, na cabeça dele, secretária devia ser uma função à prova de qualquer
regime. Hoje em dia, numa boa, me diz aborrecido que queria dizer que achava importante que eu tivesse
profissão. No mínimo, a de secretária. Na época, eu entendia que essa era sua pretensão máxima para a minha
pessoa.
Já minha mãe sempre se mostrava a favor da independência econômica da mulher. Falava frequentemente que
mulher não deve depender do marido financeiramente e rememorava como era agradável, quando solteira,
trabalhar na fábrica do pai como sua secretária. Quando eu perguntava então por que não voltava a essa
profissão, falava dos filhos, que meu pai não deixava e outras desculpas. Fazia lindos bordados e tapetes, se
dizia cansada, não entrava na cozinha. Acho que morria de chateação. Ela é inteligente. E, engraçado, quando
recebeu a herança de seu pais, imaginei que enfim iria fazer alguma coisa própria, administrar seus bens, sei lá.
Preferindo não assumir responsabilidades, pouco acostumada a resolver questões de negócios, delegou para
meu pai as decisões e continuou a pedir dinheiro a ele. E a reclamar da dependência da mulher... etc. ... etc. ...
(...)
Não se nasce mulher, torna-se mulher, já dizia Simone de Beauvoir três décadas atrás. Não se nasce
Mariazinha. É necessário uma educação esmerada, muito puxão de orelha, reprimendas e elogios, e uma boa
dose de imitação à figura da mãe, acompanhada de admiração pelo pai, para se produzir uma Mariazinha.
Quando a Mariazinha nasce, se for de classe média, seu "treinamento" provavelmente terá início no hospital,
nas suas roupinhas cor-de-rosa, prosseguindo com o atendimento das enfermeiras que, segundo as pesquisas,
falam mais docemente com as meninas do que com os bebês do sexo masculino.
As expectativas dos pais quanto à Mariazinha são bem definidas. Se alguém perguntar à mãe de um bebê do
sexo masculino o que ele será quando crescer, ela fará, provavelmente, divagações que vão do médico ao
músico. Se perguntar o que a sua filha será quando crescer, a chance de ela responder "Ela vai se casar, ora",
será bastante alta. (...)
Com a menina vai ocorrer que, desde pequena, será treinada para a dependência, enquanto seu irmão será
treinado para se livrar dela e buscar a autonomia. Seus pais reforçarão suas "gracinhas" infantis enquanto a seu
irmão não será permitido ser bobinho. A Mariazinha vai aprendendo que o ser "boazinha" significa ser
dependente e fiel seguidora da opinião dos pais, obedecer, e é nessa tarefa que se empenhará. Esse
aprendizado ficará arraigado no mais profundo do seu ser. É um aprendizado que a aliena de si mesma, que se
dá de forma inconsciente, que dificilmente ela perceberá. A capacidade de aprendizagem da Mariazinha não
será usada para emancipar, como a dos meninos, mas para antecipar às exigências dos adultos. Ela é treinada
para ser perceptiva do desejo dos outros e não de seu próprio. As meninas são aplaudidas nesse
comportamento e o manterão, com alta probabilidade, vida afora.
Marta Suplicy, De Mariazinha a Maria. Petrópolis, Vozes, 1985.

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