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e o dever de
compreender
Manuela Fonseca Grangeiro
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O direito e o dever de compreender:
escutar/ser escutado, falar, dialogar
1. Paulo Reglus
Neves Freire
Manuela Fonseca Grangeiro
nasceu em
1921, no Recife, Não tenho caminho novo.
Pernambuco, um
dos estados mais O que tenho de novo
pobres do país. É o jeito de caminhar.
Faleceu em São Aprendi
Paulo em 1997.
Foi educador e (o caminho me ensinou)
filósofo brasileiro. A caminhar cantando
É considerado um Como convém a mim
dos pensadores
mais notáveis na E aos que vão comigo.
história da Peda- Pois já não vou mais sozinho.
gogia mundial,
tendo influen-
Thiago de Mello
ciado o movi-
mento chamado Depois da conversa acerca da felicidade, da dignidade humana e da ética, é sobre
Pedagogia Crítica.
Destacou-se por o diálogo que vamos falar neste fascículo. Assim, esse texto tem como objetivo refletir
seu trabalho na sobre as inúmeras maneiras de pensar e sentir o mundo e as possibilidades de compre-
área da educação
popular, voltada ensão a partir da capacidade de escuta, reflexão e diálogo, tendo este como caminho
tanto para a es- para melhoria da convivência e método possível na mediação de conflitos.
colarização como
para a formação Paulo Freire1, um conhecido educador brasileiro, escreveu um texto denomina-
da consciência do “O encontro dos homens e mulheres através do Diálogo2” e baseado nele, vamos
política. Autor
de vários livros, construir uma teia de relações e reflexões sobre as inúmeras possibilidades do diálogo
é mundialmente como recurso de comunicação para a busca da felicidade com dignidade e ética. Enfim,
conhecido. Em 13
de abril de 2012, o diálogo como recurso para a geração de uma cultura da paz.
foi sancionada Vamos começar retomando questões já levantadas no primeiro fascículo:
a Lei Nº. 12.612
que declara o
É possível ser feliz no mundo em que vivemos? Qual o mundo que
educador Paulo
Freire “Patrono queremos viver? O que podemos fazer para vivermos melhor?
da Educação
Brasileira”. Foi o São indagações que pulsam e que nos mobilizam em busca de possíveis respostas.
brasileiro mais
homenageado da Você tem alguma resposta para elas? Essas perguntas remetem a reflexões de duas natu-
história: ganhou rezas distintas: no âmbito individual, quando você procura responder olhando para você
41 títulos de Dou-
tor Honoris Causa mesmo, se apoiando no seu autoconhecimento. Neste aspecto, o tipo de diálogo que se
de universidades estabelece é interno, dirigido para sua consciência, seus valores, seu jeito de ver o mundo.
como Harvard,
Cambridge e
Uma segunda natureza de resposta para essas indagações é a que diz respeito à
Oxford (wikipédia. comunidade, a coletividade de indivíduos que vive em sociedade e que precisa estabe-
org)
lecer relações de convivência saudável e baseadas no respeito, na dignidade humana, na
2. Texto extraído ética. Esse diálogo é recheado de muitas vozes, de valores distintos, de pontos de vistas
do livro Pedagogia
do Oprimido de variados, embora também busque a construção de uma sociedade cujos valores éticos
Paulo Freire (17ª. conduzam ao bem viver, à justiça social e à felicidade.
ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987) Como seres humanos, temos o privilégio da fala3 e é nela que o diálogo se efetiva,
se amplia e adquire função social.
3. Embora a fala
O encontro dos homens e mulheres através do Diálogo seja um requisito
importante para o
Paulo Freire diálogo, existem
inúmeras formas
1. N ão é no silêncio que os homens e mulheres se fazem, mas na palavra, no traba- de comunicação,
especialmente
lho, na ação-reflexão. Por isto, o Diálogo é uma exigência existencial. entre outras
2. Não há Diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens espécies vivas,
e mulheres. que ocorrem
sem o recurso
3. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se da fala. Neste
não há amor que a infunda. fascículo, vamos
nos restringir as
4. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens e mulheres, possibilidades
não me é possível o Diálogo. de diálogo entre
5. Não há, por outro lado, o Diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, seres humanos.
com que os homens e mulheres o recriam permanentemente, não pode ser um
ato arrogante.
6. O Diálogo, como encontro dos homens e mulheres para a tarefa comum de saber
agir, rompe-se, se seus polos (ou um deles) perdem a humildade.
7. Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro,
nunca em mim?
8. Como posso dialogar, se me admito como um homem ou mulher diferente, virtuo-
so por herança, diante dos outros, meros “isto”, em que não reconheço outros eus?
9. Como posso dialogar, se me sinto participante de um “gueto” de homens e mu-
lheres puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora
são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”?
10. Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reco-
nheço, e até me sinto ofendido com ela?
11. Como posso dialogar, se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro
e definho?
O caminho percorrido pela grande maioria das sociedades humanas, entre elas, a
nossa sociedade brasileira, tem valorizado e incentivado o individualismo e a competi-
ção exacerbada, priorizando mais o ter do que o ser.
Alguns estudiosos apontam para uma profunda crise no modelo de sociedade que
estamos vivendo, que tem no consumo dos bens materiais, na exploração dos re-
cursos naturais e no abandono da religiosidade, seus pilares de sustentação.
A necessidade de consumir cada vez mais, na grande maioria das vezes,
leva as pessoas a descartarem objetos em perfeitas condições de funcionamento;
é o caso de trocar o aparelho celular que ainda funciona pelo último lançamento,
que além de mais caro, tem apenas uma função adicional, que certamente você
vai fazer pouquíssimo uso, de sentir a necessidade urgente de
adquirir o último modelo de calça jeans e tênis, mesmo já tendo
meia dúzia de calças no guarda-roupa.
A exploração desmedida dos recursos naturais tem significado
agressões a Terra, que segundo especialistas, está levando o planeta a
exaustão, a um caminho sem volta. Um exemplo que ilustra bem essa
situação é o aquecimento global, associado a significativas mudanças
climáticas e à geração de poluentes que afetam o solo, a água e o ar. Pre-
cisamos cada vez mais de energia para trazer conforto, por meio do
ar-condicionado na casa e no carro, dos aparelhos eletroeletrônicos que
se multiplicam, e isso é apenas o começo. Tente, num exercício de ima-
ginação, fazer uma relação de atividades que você faz no dia a dia que usa
alguma forma de energia. E aí? De onde vem toda essa energia?
O abandono da religiosidade está diretamente relacionado com a
perda da fé no transcendente, ou seja, ser capaz de acreditar que existe
algo além da simples e transitória existência terrena. Isso tem levado a
um enfraquecimento dos vínculos afetivos, dos valores de solidariedade, dignidade, respeito,
tolerância, e muitos outros. A banalidade da vida e sua falta de sentido pode ser observada nas
páginas de jornais, nas redes sociais, nos programas de televisão. De tanto ver humilhação, des-
respeito, intolerância, desamor, a gente acaba se acostumando e achando tudo normal. Perde-
mos a capacidade de indignar-se diante da tragédia humana.
Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que
um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de
Mariotti ressalta que não se trata de um ser melhor do que o outro, mas são formas
diferentes e em alguns momentos necessárias, de expressar o que se pensa. Há momentos em
que precisamos fragmentar o pensamento para ser melhor compreendido e recomposto no
instante posterior. Há outros momentos em que é necessário ter uma visão ampla da situação.
Diálogo e debate são estruturas diferenciadas. No diálogo é possível haver maior
cuidado, respeito e amorosidade. Já no debate, há um entremeio de perguntas e res-
postas que é preciso ter cuidado para não alterar os ânimos emocionais. Como diz o
autor, “se no debate um fala e o outro responde, no diálogo um fala, o outro fala, todos
falam juntos”. O princípio é o da cooperação e não do confronto.
Diálogo7
O menino rico falou: — Meu pai tem muito dinheiro e pode dar-me o que eu
quiser. Quem traz melhores roupas que as minhas? Quem tem brinquedos mais
belos que os meus?
E ele estava todo vestido de seda e apontava, orgulhoso, os brinquedos es-
parsos...
Então, o menino pobre levantou o rostinho triste e falou: — Meu pai tem muito
pouco dinheiro e nada me pode dar do que se compra... Mas, quando vem do tra-
balho, beija-me e abraça-me tanto que eu fico toado enfeitado de festas... E, como
não tenho brinquedos, divirto-me com o sol, com as crianças iguais a mim e com os
animais que encontro pelo caminho...
É sob esse prisma que devemos ver e perceber o ser humano. O cuidado deve per-
9. Utopia é o mear a sua relação consigo mesmo, com o outro e com os demais sistemas vivos e não-
conceito de algo
ideal, perfeito,
vivos. Urge uma necessidade de equilíbrio entre a existên-
fantástico, imacu- cia humana no âmbito individual e a consciência coletiva.
lado, ideia que se
torna imaginária,
Mas não paramos por aqui. Vem novamente Paulo Freire e
segundo os nos faz pensar de modo ainda mais complexo.
padrões da atual
sociedade. Pode-
se referir aos 10. Como posso dialogar, se me fecho à con-
ideais do presente
como também tribuição dos outros, que jamais reconheço,
do futuro, é uma
palavra oriunda
e até me sinto ofendido com ela?
do grego que
significa “lugar
Segundo Moraes (2003), é preciso experimentar o flu-
que não existe”. xo da vida para que possamos sentir a felicidade plena de sen-
[...] O utopismo é
uma forma irreal
tido, a realização consciente dos desejos e das potencialidades
e absurdamente em relação aos desafios que se apresentam diante de cada um.
otimista de ver Temos escolha. Posso escolher o caminho do diálogo, do re-
as coisas como
gostaríamos que conhecimento do outro, da humildade, ou simplesmente me
fossem (http:// fechar nas minhas crenças e confrontar todos que surgirem
www.brasilescola.
com/filosofia/ na minha frente, não mais como iguais, mas como obstáculo.
utopia). É utópico9 ao mesmo tempo em que é real. Essa postura facilita o salto no eixo
espiral de transformação. Estamos sempre em movimento, por mais igual que possa
parecer a nossa vida
Não posso desistir diante da vida, pois o Universo existe, porque existe a vida, e a vida
está num movimento contínuo de organização, construção e reconstrução. Esse princípio
coloca a vida com a capacidade de auto-organização, como disse Maturana (2000).
Mas o que vivemos hoje é a repressão do potencial criativo que provoca uma
dissociação principalmente afetiva, de onde surgem os sentimentos negativos
como rancor, ressentimento, ódio que reforçam os aspectos negativos da persona-
lidade. Essa dissociação, talvez seja o grande mal da humanidade.
Síntese do fascículo
A imersão no contexto socioeconômico onde os aspectos sociais, econômicos, cul-
turais e humanos, somados ao descrédito da sociedade e do sistema capitalista são
notórios. Esse sistema incentiva o individualismo e a competição exacerbada pro-
voca a destruição dos vínculos afetivos e da estrutura de formação das pessoas.
O objetivo é refletir sobre as inúmeras maneiras de pensar e sentir o mundo e
as possibilidades de compreensão a partir da capacidade de escuta, reflexão e diálogo,
tendo este como caminho para melhoria na convivência e método possível na me-
diação de conflitos. A indicação da principal referência que mediou todo o texto foi a
produção de Paulo Freire, “O encontro dos homens e mulheres através do Diálogo”,
que passou pela fragmentação do texto de Paulo Freire e o diálogo com outros auto-
res que facilitaram a compreensão e escrita deste.
O destaque é o exercício da humildade, o resgate dos vínculos primordiais da exis-
tência humana e a capacidade de colocar a vida no centro de tudo. O diálogo é um forte
mediador na geração da paz e na compreensão do outro, com o exercício da escuta sensí-
vel do ser, com amorosidade, cumplicidade, sinceridade e simplicidade.
Atividades
1. C
omo você entende a solidariedade? Em que situações você já foi solidário?
2. Apresente pelo menos três pacifistas que se destacaram pela humildade, contando
um pouco da sua história.
3. O que você entende por liberdade?
4. Quais as diferenças entre diálogo e debate? Você prefere o primeiro ou o segundo?
O segundo.
Autora
Manuela Fonseca Grangeiro: Mestre em Educação com Especialização em Educação Biocên-
trica e Formação Pedagógica pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) possui Bacharelado
em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Atualmente é analista de Desenvolvimento
Humano no Instituto Nordeste Cidadania e professora da Universidade Aberta do Brasil/UECE e
de cursos de especialização e de graduação na área da Educação.
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