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CHESTERTON
coisa mais séria do que essa tagarelice... uma coisa mais sé-
ria, que tanto pode ser a religião quanto a bebida.
— Muito bem, disse Gregory com o rosto sombrio. Você
vai conhecer uma coisa mais séria do que a bebida ou a religião.
Syme ficou aguardando delicadamente até que Gregory
retomou a palavra.
— Você acaba de falar em religião. É verdade, realmen-
te, que você tem uma?
— Claro! exclamou Syme, com um sorriso radiante. So-
mos todos católicos agora.
— Então posso pedir-lhe que jure por todos os deuses
e santos da sua religião que não revelará a nenhum filho de
Adão e especialmente à polícia o que vou contar? Jura? Se
assume tão terrível compromisso, se consente em sobrecarre-
gar sua alma com um juramento que nunca pensou em fazer e
com um conhecimento de coisas com que jamais sonhou, eu
lhe prometo em troca...
— Você me promete em troca!?! insistiu Syme quando o
outro se interrompeu.
— Eu lhe prometo uma noite muito divertida.
Syme tirou o chapéu e disse:
— Seu oferecimento é tão insensato que não merece re-
cusa. Você diz que um poeta é sempre um anarquista. Dis-
cordo. Mas espero que êle seja pelo menos um cavalheiro. Per-
mita-me, aqui e agora, jurar como cristão e prometer como
bom camarada e companheiro de ofício, que não contarei nada,
seja o que fôr, à polícia. E agora, em nome de Colney Hatch,
de que se trata?
— Acho, disse Gregory com plácida dissimulação, que de-
vemos chamar um fiacre.
Deu dois longos assobios, e um fiacre veio ressoando pela
rua. Entraram em silêncio. Pela portinhola, Gregory deu o en-
dereço de uma obscura taberna situada em Chiswick, à mar-
gem do rio. O fiacre foi posto de novo em movimento e, den-
tro dele, estes dois fantásticos sujeitos deixaram seu não menos
fantástico subúrbio.
CAPITULO II
vou contar-lhe uma coisa que não teria coragem de contar aos
anarquistas que estarão aqui dentro de dez minutos. Natural-
mente iremos proceder a uma forma de eleição. Não me aca-
nho de dizer-lhe que estou certo do resultado. E baixando mo-
destamente os olhos, disse: Está quase estabelecido que eu se-
rei o Quinta-feira.
— Bravo, amigo! exclamou Syme calorosamente. Congra-
tulo-me com você. Bela carreira!
Gregory sorriu com modéstia e, enquanto atravessava a
sala, falava apressadamente.
— A verdade é que tudo está pronto para mim nesta me-
sa, e a cerimônia provavelmente será a mais curta possível.
Por sua vez, Syme foi até à mesa e viu uma bengala que
um exame mais apurado revelou ser uma bengala de estoque.
Lá estavam também um grande revólver Colt, um embrulho de
sanduíches e uma formidável garrafa de conhaque. Numa ca-
deira, ao lado da mesa, fora atirado um capote.
— Resta-nos somente esperar que se cumpram as formali-
dades da eleição, prosseguiu Gregory com desenvoltura. Uma
vez concluídas, agarro a capa e a bengala, meto as outras coisas
no bolso e abandono esta caverna, saindo por uma porta que dá
para o rio. Lá me espera uma lancha a vapor. Então.. . De-
pois . . . Oh! A alegria selvagem de ser o Quinta-feira! E en-
trelaçou os dedos nervosamente.
Syme, que se sentara uma vez mais com seu habitual lan-
gor insolente, levantou-se com um desusado ar de hesitação.
— Por que é, perguntou de maneira um tanto vaga, que
eu acho que você é um sujeito honesto? Por que é que eu sim-
patizo francamente com você? Parou um instante e depois ajun-
tou, como se o fizesse por pura curiosidade: Será porque você
é um verdadeiro asno?
Ficou meditando em silêncio durante alguns momentos
e por fim exclamou:
— Ora, dane-se tudo! Nunca em minha vida me vi numa
situação mais engraçada do que esta, mas vou comportar-me à
altura. Gregory, antes de entrar aqui eu lhe fiz uma promessa.
E hei de cumpri-la, mesmo torturado por tenazes incandescen-
tes. Você está disposto a fazer, para minha segurança, uma
pequena promessa da mesma espécie?
— Uma promessa? perguntou Gregory espantado.
— Sim, uma promessa respondeu Syme muito sério. Pe-
rante Deus eu jurei que não contaria seu segredo à polícia.
26 G. K. CHESTERTON
sempre ouviu dizer que somos pragas vivas nunca ouviu nossa
resposta. É certo que ainda não vai ouvi-la nesta noite, em-
bora a paixão me mande romper o teto com minhas palavras.
Porque é nas profundezas do coração da terra que os perse-
guidos têm permissão para reunir-se, como os cristãos se reu-
niam nas catacumbas. Mas, se por um desses incríveis acasos,
estivesse aqui neste momento um homem que durante toda a
sua vida alimentou imensos preconceitos a nosso respeito, far-
lhe-ia esta pergunta: "Que espécie de reputação moral desfru-
tavam nas ruas de Roma os cristãos que se congregavam nas
catacumbas? Quantas histórias de atrocidades cristãs não con-
tavam os romanos cultos? Suponde (eu pediria a esse homem),
suponde que nós estamos apenas revivendo aquele misterioso
paradoxo da História. Suponde que nós parecemos tão escanda-
losos como os cristãos porque somos realmente tão inofensi-
vos como eram os cristãos. Suponde que parecemos tão loucos
como os cristãos porque somos realmente tão mansos como
eles".
Os aplausos que tinham saudado as primeiras frases de
Gregory foram esfriando gradualmente e ante as últimas pala-
vras sumiram-se de vez. Cortou o repentino silêncio a voz
forte e áspera do homem do casaco de veludo.
— Eu não sou manso!
— O camarada Witherspoon, tornou Gregory, diz que
não é manso. Ah, como êle conhece tão mal a si mesmo! Não
podeis negar que êle usa de expressões extravagantes e que
sua aparência é feroz e mesmo (para o gosto vulgar) pouco
sedutora. Mas somente o olho de uma estima tão profunda
e dedicada como a minha pode perceber as camadas de sólida
mansidão que lhe forram o âmago do ser, camadas tão inescru-
táveis que êle mesmo é incapaz de divisá-las... Repito: So-
mos os verdadeiros cristãos primitivos, só que chegamos muito
tarde. Somos simples como eles eram simples: contemplai o
camarada Witherspoon. Somos modestos, como eles eram
modestos: contemplai-me. Somos clementes...
— Não! Isso não! É demais! protestou Mr. Witherspoon,
o do casaco de veludo.
Gregory repetiu furioso:
— Somos clementes como os primitivos cristãos eram
clementes, o que não impediu que eles fossem acusados de co-
mer carne humana. Nós não comemos carne humana...
— Vergonha! bradou Witherspoon. Por que não?
32 G. K. CHESTERTON
A HISTÓRIA DE UM DETETIVE
A FESTA DO MEDO
A DESCOBERTA
O PROFESSOR EXPLICA
O DUELO
A TERRA EM ANARQUIA
A PERSEGUIÇÃO DO PRESIDENTE
OS SEIS FILÓSOFOS
O ACUSADOR
mente seu cérebro, Syme julgou ouvir uma voz distante recitar
um lugar-comum ouvido antes nalguma parte: "Podes beber
na mesma taça em que eu bebo?"
* * *