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O AUTO DA COMPADECIDA

Ariano Suassuna

Personagens
DORA
PADEIRO
SEVERINO
JOÃO GRILO
BISPO
PADRE
DIABO
JESUS
A COMPADECIDA
CANGACEIRO

Cena: Julgamento de João Grilo


(Pessoas caminham ao redor dos mortos, cantando alguma música cristão de procissão. Cada um
vai se levantando e acendendo sua própria vela.)

SEVERINO: João! Seu cabra safado!


JOÃO GRILO: Mas será o impossível?! Será que nem aqui o senhor me dá sossego capitão?
SEVERINO: Já rodei, rodei, rodei... e nem sinal do meu padrinho.
JOÃO GRILO: Pelo visto ele está com muita gente pra atender.
SEVERINO: É mesmo! (olhando ao redor) Tá lotado!
JOÃO GRILO: E chegando mais... Olha ali mais quatro que o senhor já despachou. (mostra os
demais)
BISPO: Deve haver aqui um lugar reservado aos eclesiásticos.
SEVERINO: Por falar nisso... o que é que você tá fazendo aqui que não tá lá embaixo?
JOÃO GRILO: Estou morto que nem você.
SEVERINO: Olhe o respeito! Eu sou lá homi de morrer?!
JOÃO GRILO: O senhor não se lembra da história da gaita?
SEVERINO: É mesmo e que será que meu cabra tá fazendo que num toca logo a danada pra eu
envivecer de novo.
JOÃO GRILO: Eita Severino vei besta, já viu gaita envivecer os outros? Lezeira!!
SEVERINO: Olhe como fala comigo que eu te mato.
JOÃO GRILO: Me mata como? Se eu já morri. (todos riem)
SEVERINO: Mato só ele não, mato qualquer um que ficar de riri pro meu lado.
PADEIRO: A gente num tá querendo lhe ofender não capitão...
BISPO: Mas o senhor num morreu sozinho não, morremos todos nós.
PADRE: Ou como dizia Chicó cumprimos nossa sentença e nos encontramos com o único mal
irremediável.
DORA: E... cadê Chicó?
JOÃO GRILO: Chicó escapou, tá vivinho o miserável, eita cabra danado aquele Chicó foi o único.
PADRE: Pois então, como dizia Chicó...
JOÃO GRILO: Já vi muito vivo citar morto, é a primeira vez que vejo morto citar vivo.
SEVERINO: Escuta aqui amarelo, você vai me pagar por essa história da gaita. (coloca uma faca
no pescoço de grilo e o ameaça)
JOÃO GRILO: Amarelo é sua vó! Já morri mesmo num vou ficar ouvindo desaforo de seu
ninguém. Agora num tem pobre nem rico, valente nem frouxo, é todo mundo igual diante de Deus
ou do diabo. (O diabo aparece, sons de dor e lamúrias)
DIABO: Mas por que essas caras de espanto, por acaso eu sou algum monstro?
BISPO: Não de jeito nenhum, nós estamos até impressionados com sua elegância, com sua finura.
DORA: Parece até um artista.
PADEIRO: E você acha mesmo é?
DORA: E-e-eu acho...!
PADEIRO: Então também acho.
PADRE: Alguém já lhe disse que o senhor é muito mais simpático pessoalmente.
SEVERINO: E olhe que é difícil eu gostar da cara de um sujeito assim de primeira.
DIABO: Estão vendo? O diabo não é tão feio quanto parece...
JOÃO GRILO: Pode ser mas esse cheirinho de enxofre... (faz o gesto de que algo fede)
DIABO: Talvez o meu cheiro esteja incomodando vocês?
TODOS, menos JOÃO GRILO: Não!!!
DORA: Eu acho bem bonzinho...
JOÃO GRILO: Pois eu tô a beira de ter uma pilora com esse fedor! (Severino tampa a boca de
Grilo)
DIABO: Olhe!!! Respeito é bom e eu gosto!
PADEIRO: Mas que isso criatura? Ninguém tá lhe desrespeitando não...
DIABO: Dessa vez passa.
SEVERINO: Você devia dar graças a Deus que o diabo é um cabra bom. Eu no lugar dele...
JOÃO GRILO: Eu no lugar dele tomava era um banho com um chá de amolece casco pra vê se
diminui essa inhaca.
DIABO: Vocês agora vão pagar tudo o que fizeram.
DORA: Ai que eu adoro um homi brabo...
DIABO: Vou mandar todos para o quinto dos infernos. (Correria para ambos os lados, os figurantes
saem arrastados para o lado)
PADEIRO: Danou-se foi tudo!!!
BISPO: Viu, viu o que você fez???
JOÃO GRILO: Então, eu queria que ele mostrasse a cara dele de verdade. Agora pelo menos a
gente sabe com quem está falando.
SEVERINO: Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no inferno!
BISPO: Senhor demônio tenha compaixão de um pobre bispo.
DIABO: Que compaixão o que...Vamos, todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo
eterno, para padecer comigo.
DORA: Ai! Leve Eurico!
PADEIRO: Ai Leve o Bispo!
BISPO: Ai! Leve o Padre!
PADRE: Ai! Leve Severino!
SEVERINO: Ai! Leve o Grilo!
JOÃO GRILO: Ai! Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação? Eu sempre ouvi dizer que
para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!
DIABO: Besteira, maluquice!
JOÃO GRILO: Besteira ou maluquice, eu apelo pra quem pode mais! Valei-me meu Nosso Senhor
Jesus Cristo!! (Entrada de Jesus)
DIABO: (de costas, grande grito, com o braço ocultando os olhos) Quem é? É Manuel?
JESUS: Sim, é Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi. Venham todos, pois vão ser julgados.
JOÃO GRILO: Eu não quero faltar com o respeito a uma pessoa tão importante, mas se não me
engano aquele sujeito acaba de chamar o senhor de Manuel.
JESUS: Foi isso mesmo, João. Esse é um de meus nomes, mas você pode me chamar também de
Jesus, de Senhor, de Deus...
JOÃO GRILO: Mas, espere, o senhor é que é Jesus?
JESUS: Sou. Por que?
JOÃO GRILO: Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era
muito menos queimado.
BISPO: Cale-se.
JESUS: Cale-se você. Você estava mais espantado do que ele e só escondeu essa admiração por
prudência mundana. O tempo da mentira já passou.
JOÃO GRILO: Muito bem. A cor pode não ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto.
JESUS: Muito obrigado, João, muito obrigado, mas você também é cheio de preconceitos de raça.
Eu vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. E você (para o
diabo) largue essa mania de copiar minha aparência, você sabe muito bem que não pode se igualar a
Deus.
DIABO: Grande coisa!
JESUS: Agora deixe de história e fique de frente.
DIABO: Estou bem assim.
JESUS: Como quiser. Faça seu relatório começando pelo bispo.
DIABO: Simonia: negociou com o cargo, aprovando o enterro de um cachorro em latim, porque o
dono lhe deu seis contos.
BISPO: E é proibido?
DIABO: Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei é que você achava que era e depois, de
repente, passou a achar que não era. E mais velhacaria, arrogância com os pequenos, subserviência
com os grandes. E tudo que se dizer ao bispo pode ser aplicado ao pabre.
PADRE: Mas eu não citei o Código Canônico em falso.
DIABO: Em compensação, acaba de incorrer em falta de coleguismo com o bispo.
PADRE: Menino e o que eu fizer aqui ainda voga?
JESUS: Não, isso é confusão do demônio. E o padeiro?
DIABO: Ele e a mulher foram os piores patrões que Taperoá já viu.
MULHER É mentira!
JOÃO GRILO É não, é verdade. Três dias passei...
JESUS: Em cima de uma cama, com febre, e nem um copinho dágua lhe mandaram. Já sei, João,
todo mundo já sabe dessa história, de tanto ouvir você contar.
JOÃO GRILO: Mas eu posso? Me diga mesmo se eu posso! Bife passado na manteiga para o
cachorro e fome para João Grilo. É demais!
DIABO: Avareza do marido, adultério da mulher. Bem medido e bem pesado, cada um era pior do
que o outro.
JESUS: Acuse Severino.
DIABO: E precisa? Matou mais de trinta.
JOÃO GRILO: Esse diabo é uma mistura de tudo que eu nunca suportei: promotor, sacristão,
cachorro e soldado de polícia.
DIABO: É, você está muito engraçado agora, mas Manuel é justo e a situação está favorável para
mim e preta para vocês .
JESUS: É verdade, a situação está ruim para vocês, porque as acusações são graves.
DIABO: O que me diverte nisso tudo é ver esse amarelo tremendo de medo.
JOÃO GRILO: Não sou eu é meu corpo, se a tremedeira parasse eu era capaz de me defender.
JESUS: Pois pode parar.
JOÃO GRILO, parando e respirando: Que alívio, já estava ficando cansado. O que é isso?
JESUS: É besteira do demônio. Esse sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica.
JOÃO GRILO: Eu logo vi que isso só podia ser confusão desse catimbozeiro.
JESUS: E agora? Que é que você diz em sua defesa? Sei que você é astuto, mas não pode negar o
fato de que foi acusado.
JOÃO GRILO O senhor vai-me desculpar, mas eu não fui acusado de coisa nenhuma.
JESUS: Não?
DIABO: Foi mesmo não. Começou com uma confusão tão grande que eu me esqueci de acusá-lo.
Agora você me paga, amarelo. Tramou o enterro da cachorra. Incitação a simonia. Vendeu um gato
à mulher do padeiro dizendo que ele botava dinheiro. Es-te-li-o-na-to. Encorajou encontros de
Chicó com uma mulher casada. Incitação a Concupiscência; Arquitetou a morte de Severino, com
uma história de gaita que trazia os mortos a vida, dizendo que Padre Cícero esperava ele aqui.
Crime com premeditação.
JESUS: É João... realmente você passou da conta.
DIABO: De modo que o caso dele é sem jeito. E é o primeiro que vou levar.
JOÃO GRILO: Ah... você pensa que eu me entreguei? Pode ser que eu vá, mas não é assim não! Eu
Vou apelar.
PADRE: Pra quem João? Você mesmo ouviu Nosso Senhor dizer que a situação está difícil.
JESUS: Espere! Com quem você vai se pegar, João?
JOÃO GRILO: Vou pedir por alguém que está mais perto de nós, por gente que é gente mesmo.
JESUS: É algum santo?
JOÃO GRILO O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é maior do que
qualquer santo.
JESUS: Quem é?
JOÃO GRILO: Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba
dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, agora sou
escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus
de Nazaré! ( A Compadecida entra. )
DIABO: Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!
A COMPADECIDA: Como você ficou bonito com essa cor meu filho, mas uma pouquinho magro.
Foi você que me chamou não foi João?
JOÃO GRILO: A senhora se zangou com o versinho que eu recitei?
A COMPADECIDA: Não, João, por que eu iria me zangar? Tem umas graças, mas eu até acho
bom. Quem gosta de tristeza é o diabo.
DIABO: Protesto!!!
JESUS: Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho. Discordar de minha mãe
é que não vou.
DIABO: Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando
tudo.
SEVERINO: Você fala assim porque nunca teve mãe.
JOÃO GRILO: É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira!
A COMPADECIDA: Para que você me chamou, João?
JOÃO GRILO: É que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me
pegar com a senhora mesmo. Padre João, puxe aí uma Ave-Maria!
PADRE, ajoelhando-se: Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as
mulheres, bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós
pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém.
A COMPADECIDA: Vou ver o que posso fazer. Intercedo por esses pobres que não têm ninguém
por eles, meu filho. Não os condene.
DIABO: Eu apelo pra justiça!
JOÃO GRILO: E eu pra misericórdia!
A COMPADECIDA: É preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. Os homens
começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.
DIABO: Medo? Medo de quê?
A COMPADECIDA: Medo de muitas coisas. Medo do sofrimento... da solidão. E no fundo de tudo
medo da morte...
JESUS: E é a mim que você vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai!
A COMPADECIDA: Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que você teve de passar,
pobre homem, feito de carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também
abandonado na hora da morte e do sofrimento.
DIABO: Medo da morte todo mundo tem e nem por isso as pessoas se tornam virtuosas. E que é
que esse medo fez o padeiro e sua mulher, por exemplo, se tornarem melhores? Medo da morte por
si só não redime os pecados.
A COMPADECIDA: Mas na hora da morte, as vezes sim! Na oração da Ave Maria, os homens me
pedem para eu rogar por eles na hora da morte e eu rogo. E olho para eles nessa hora e vejo que
muitas vezes, e na hora de morrer que eles finalmente encontram o que procuraram a vida toda. Foi
o que aconteceu com Eurico e Dora, quando iam ser fuzilados pelo cangaceiro. (abaixam-se as
luzes e mostra somente Dora e Eurico caminhando para um canto, sob a coação do cangaceiro)
CANGACEIRO: Acho que por aqui tá bom, eu vou andando até a igreja e de lá eu atiro vice. É o
tempo de uma Ave Maria, vocês vão rezando de lá que eu vou rezando de cá que é pra num ter
perigo da Santa não escutar.
PADEIRO: A gente sempre pensa que vai poder esticar a vida mais um bocadinho...
DORA: Por mais que eu goste de viver, eu sempre me perguntei se queria que a minha vida se
espichasse além da sua. Agora eu sei... eu não ia aguentar ver você morrer. Eu quero morrer
primeiro Eurico.
EURICO: Oh Dora por que que você me traiu esse tempo todo?
DORA: Acho que foi por isso mesmo, trair você era lhe matar um pouquinho dentro do meu
coração, eu tinha tanto medo de lhe perder de vez que eu ia tentando lhe perdendo aos pouquinhos.
EURICO: Tenha cuidado não, agora a gente vai ficar junto pra sempre. Oh seu moço eu tenho um
último pedido pra fazer pro senhor. É pra gente morrer junto.
CANGACEIRO: É bom que economizo uma bala. E quando fizerem as contas vão achar que matei
menos um. (ouvem-se o tiro e as luzes reaparecem)
A COMPADECIDA: Alego em favor dos dois o perdão que o marido deu à mulher na hora da
morte, abraçando-se com ela para morrerem juntos. O mais ofendido pelos atos que ela praticava
era ele, e no entanto, ele rezou por ela.
JESUS: Está recebida a alegação. Quanto ao padre e ao bispo.
A COMPADECIDA: Na hora da morte eles também tiveram sua revelação. (abaixam-se as luzes e
mostra somente o padre e o bispo caminhando para um canto, sob a coação do cangaceiro)
CANGACEIRO, vai atirar mas para pensativo: Diz que matar padre dá um azar danado.
PADRE: Sobretudo para o padre.
CANGACEIRO: Eu queria que antes de atirar os senhores me perdoassem dos meus pecados, vice.
BISPO: Mas, para perdoar, antes você tem que se arrepender e desistir de nos matar.
CANGACEIRO: Me arrependo depois...
BISPO: Então vai se arrepender no inferno!
CANGACEIRO: Então num tem jeito não! Que nem que seja no inferno tem que obedecer as
ordens de capitão.
PADRE: Nós não podemos negar-lhe a absolvição senhor bispo.
BISPO: O que não podemos é abençoar um assassino, ainda por cima o nosso...
PADRE: Somos sacerdotes eminência, nossa missão é salvar as almas mesmo que a gente não
consiga salvar as nossas. Lembre-se senhor bispo da oração que Jesus fez pelos seus carrascos.
BISPO:Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem!
PADRE: Meu Deus, por que nos abandonaste? (ouvem-se os tiro e as luzes reaparecem)
A COMPADECIDA: Eles seguiram seu exemplo meu filho, perdoando seus assassinos.
DIABO: É sempre assim depois de morrer todo mundo fica bonzinho.
A COMPADECIDA: Quanto a Severino...
JESUS: Quanto a esse, deixe comigo. Não foi a sua morte que o redimiu mas a de seus pais. Com
oito anos de idade ele conheceu a fera que existe dentro dos homens.
SEVERINO: Escapei daquele massacre sem querer passei a vida desafiando a morte.
JESUS: Severino enlouqueceu depois que a polícia matou a família dele e não era responsável por
seus atos. Está salvo.
DIABO:Isto é um absurdo! Contra o qual...
JESUS: Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você não entende
nada dos planos de Deus. Severino foi um mero instrumento da cólera divina. Severino está salvo.
Severino meu filho, pode ir por ali.
BISPO: E nós?
PADRE: Decida-se logo, por favor, que essa ansiedade é pior do que qualquer coisa.
JESUS: Não diga isso, você não sabe o que se passa lá embaixo. Qualquer ansiedade é melhor do
que aquilo.
DIABO: É, mas não posso ficar eternamente à espera. Afinal, qual é a sentença?
JOÃO GRILO: Um momento senhor. Posso dar uma palavra?
JESUS: Você o que é que acha, minha mãe?
A COMPADECIDA: Deixa João falar meu filho.
JESUS: Fale, João.
JOÃO GRILO Os quatro últimos lugares do purgatório estão desocupados?
JESUS: Estão.
JOÃO GRILO: Pegue esses quatro camaradas e bote lá.
A COMPADECIDA: É uma ótima solução meu filho. Dá para eles pagarem o muito que fizeram e
ainda assegura a salvação deles.
JOÃO GRILO: E tem a vantagem de descontentar esse camarada aqui que é pior do que carne de
cobra. Não está vendo ele ali, de costas?
JESUS: Estou.
JOÃO GRILO: Isso é de ruim.
JESUS: Minha mãe o que é que acha?
A COMPADECIDA: Eu ficaria muito satisfeita.
JESUS: Então está concedido. Podem ir, vocês quatro.
DIABO: Não tem jeito não. Homem que mulher governa...
JESUS: E agora nós, João Grilo.
DIABO: Pelo menos esse eu faço questão de levar.
JESUS: Você que é tão sabido, o que é que você tem a dizer em sua defesa?
JOÃO GRILO: Nada não Senhor...
JESUS: Como nada? Chegou a hora da verdade.
JOÃO GRILO: E por isso que eu estou lascado, comigo era na mentira.
DIABO: Ainda bem que reconhece... (abre o inferno novamente)
A COMPADECIDA: Você mentia para sobreviver João.
JOÃO GRILO: Mas eu também gostava, eu acabei pegando o gosto de enganar aquele povo. (vai
caminhando lentamente na direção do inferno)
A COMPADECIDA: Não, porque eles lhe exploravam. A esperteza é a coragem do pobre. A
esperteza era a única arma que você dispunha contra os maus patrões.
JOÃO GRILO: Agradeço sua intervenção mas devo reconhecer que eu não vivi como um santo.
DIABO: Tá se fazendo de humilde para ela tomar as dores dele.
JOÃO GRILO: Do jeito que eu sou ruim pode até ser isso mesmo.
A COMPADECIDA: Não!!! Não se entregue! João, esse é o pai da mentira está querendo lhe
confundir.
JOÃO GRILO: A verdade é que eu não fui nenhum santo e nem tive uma morte gloriosa como dos
meus companheiros.
A COMPADECIDA: João foi um pobre como nós, meu filho. E teve que suportar as maiores
dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Pelejo pela vida desde menino, passou sem
sentir pela infância, acostumou-se a pouco pão e muito suor. Na seca comia macambeira e bebia o
sumo do xique-xique, passava fome, e quando não podia mais rezava. E quando a reza não dava
jeito, ia se juntar a um grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral. Humilhado, derrotado,
cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva pegava o caminho de volta, animava-se de
novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revia sua terra
dava graças a Deus, por ser um sertanejo pobre mas corajoso e cheio de fé. Peço-lhe muito
simplesmente, que não o condene.
JESUS: O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso também tem um
limite. Acho que não posso salvá-lo.
A COMPADECIDA: Dê-lhe meu filho então outra oportunidade.
JESUS: Como?
A COMPADECIDA: Deixa João voltar.
JESUS: Você se dá por satisfeito?
JOÃO GRILO: Demais. Para mim é até melhor, porque daqui para lá eu tomo cuidado para a hora
de morrer e não passo nem pelo purgatório, para não dar gosto ao cão.
A COMPADECIDA: Então João, fica satisfeito?
JOÃO GRILO: Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira. (O diabo, furioso, volta-se
para João, mas nesse momento, vê a Compadecida e dá um grande grito e corre para o inferno)
JOÃO GRILO: Que foi que ele teve, meu Deus?
A COMPADECIDA: Na raiva, olhou-se para você e me viu.
JOÃO GRILO: Quer dizer que posso voltar?
JESUS: Pode, João, vá com Deus.
JOÃO GRILO: Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me valeu. (Ajoelhando-se diante de
Nossa Senhora e beijando-lhe a mão.) Até à vista, grande advogada. Não me deixe de mão não,
estou decidido a tomar jeito, mas a senhora sabe que a carne é fraca.
A COMPADECIDA: Até à vista, João.
JOÃO GRILO, beijando a mão de Cristo: Muito obrigado senhor. Até à vista.
JESUS: Até à vista, João. João!!?
JOÃO GRILO: Senhor?
JESUS: Veja como se porta.
JOÃO GRILO: Sim senhor.
JESUS: Mãe, se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar
virando uma repartição pública, existe mas não funciona.

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