Você está na página 1de 126

o Tao de Brecht

Este livro de Fredric Jameson começa por juntar,já desde o título, dois
termos anatematizados: Brecht e método. O primeiro, soterraram-
I -.)

-no o capitalismo triunfante e o respectivo penacho de teorias pós-


-modernas; o segundo, impugnaram-no as suspeitas de entificação
metafísica e de outras reificações. Mas sendo o autor do livro quem é,
não seria de se esperar que jazesse inerte, em pleno coração das per-
formáticas universidades americanas, sob o peso de tais escombros.
Ele trata de sacudi-Ias, a essas ruínas, e de com elas armar uma ale-
goria teórica. Sua primeira providência, para fazê-Io, é a de estabelecer
uma correspondência súbita entre esses termos de cariz tão díspar, de
certo modo tornando-os sinônimos.
De fato, método, aqui, será outro nome para Brecht, na medida em
que, com essa palavra, se designa "o que é 'realmente' ou 'na realidade'
brechtiano em Brecht". Essequid, embora tenha caráter prático-teórico
e seja da ordem da "utilidade", não se deixa apreender sem mais. Para
refugir à reificação generalizada, ele se retirou da esfera das coisas fei-
tas e se apresenta indisponível para o consumo: trata-se de algo que
não se pode confundir inteiramente com as figuras particulares ern
qu se investiu o trapalho artístico ou teórico de Brecht, mas que se
d pr nde de todas elas, constituindo um modo de proceder, uma
"p lur" (uma "Haltung"?) - um Brecht-método, assim designado "com
oI~ cI(\vld pr c uções"
1',11,) J, m on, ssa "ldeia de Brecht" seria justamente o que se mos-
1101 di! \1 d o r n d r no desastre universal. Se ainda alcançarmos
111111 Ilu "I) 1(1 ,I n O rllico m ricano, ela poderá nos reconduzir,
di .iluvl.tu P " Il\ dt 111, o" ° r nd rio do tempo ou ao Tao, que len-
1,11111 1111 1111'0 II Vollo! ((HI{ nt 7, ab Ixo, nov m nte em direção ao mo-

I1II 11111 doi 1'1 .IX'" I I"

I \ /lnlonlo pc; (a
/.
,,\
/ -")

FAEDAIC JAmEfog
((

tradução e notas
mARIA sílVIA BETTI

prefácio e revisão técnica


InÁ CAmARG"o COSTA

COSACNAIFY
PR ÁCIO Iná Camargo Costa 148 Gestus fundamental
164 Casus
PRÓlOGO Alegoria
17°
~
q Utilidades
It Cronologias monádicas 3. PROVÉRBIOS

Triangulações com Brecht 181 Provérbios e história camponesa

194 Registros e descontinuidades de gênero


1. DOUTRJNA Representabilidade do capitalismo
2°5
I / Estranhamentos do efeito de estranhamento 221 "Por um triz" (quase)
Autonomização
Épico, ou a terceira pessoa EPílOGO
81
Dualidades do sujeito ) 225 Modernidade

Da multiplicidade à contradição 23° Factibilidade

238 Historicidade
2. GESTUS

Pedagogia como autorreferencialidade 245 íN DICE ONOMÁSTICO


1 7
I 9 Parábola 249 íNDICE DE OBRAS
Dialética em Brecht

Iná Camargo Costa

Uma das Sequências brasileiras do livro de mesmo nome de Roberto Schwarz


é um ensaio muito a propósito chamado "Altos e baixos da atualidade de
Brecht" Ali se encontram importantes determinações da recepção desse dra-
maturgo entre nós e se iluminam algumas das mais pesadas sombras que por
aqui ainda pairam sobre sua obra, em parte significativa expressão de nossa
parca experiência estética e política. São também tratadas as múltiplas assi-
/ milações da teoria, lembrando por exemplo que, tomado em si mesmo (isto
é, desvinculado de seus propósitos estético-políticos), o vanguardista "efeito
de distanciamento" hoje faz parte do repertório da publicidade.
Uma implicação prática da intervenção schwarziana pode ser formulada
nos seguintes termos: quem ainda continua interessado em Brecht tem que
se haver com problemas incontornáveis. O prímeiro diz respeito ao estágio
em que se encontra hoje o capitalismo, em relação ao qual se perdeu parte
importante do poder de revelação das peças de Brecht, expressão histórica
de um período em que o cultivo das aparências de progresso vinculado à ci-
vilização fazia parte das regras de bom comportamento da classe dominante,
pelo menos em relação a seus negócios econômico-políticos e ao exercício
da dominação. Hoje, como se sabe, ninguém mais perde tempo com essas pe-
nosas coreografias que Brecht se especializou em desmascarar em suas peças.

7
Um iutro, J11 nos direto, diz respeito à simples possibilidade de conhe- 11 1111111\11' di' Mil 1,.11'1 lU 11,1111",1\ 1'111 "M.tI 111 ' lIS' (lI Hre ht' li , eITI 1989

III 'IHOdo onjunto de sua obra, da qual a dramaturgia é uma parte, ainda ),1I"Ihl'IIt Wllgltt pll11111 nu 111\1 estudo, Postiuod irn Brecht: A Re-presentation,
que 1\ moi importante, num país em que até hoje mal e mal se conseguiu t'llI 1111' 1"'0 ur iva llbertnr o drc maturgo de seus pressupostos teóricos e·
IIIIdu1.ir as peças (feito inestimável de Christine Rõhrig, Fernando Peixoto e ItI 'oló li ·os para m ilhor atualizá-Io, facilitando a sua apropriação por uma
Woll' ung Bader), O romance de três vinténs, algumas antologias de poemas cpocu I os-industrial e pós-moderna. O interesse da obra brechtiana para os
\' plll': bolas, além de alguns textos teóricos. Em todo caso, é preciso reco- I .mpos "p -pós" não estaria em seus argumentos de caráter político, mas
IIh' r que esse tipo de penúria é regra em país heterônomo de nascença, rn sua complexas construções de identidade e agência (ou ação consciente,
pOl' isso ITI mo ávido por informação importada e cujo interesse se esgota orno preferem com boas razões alguns tradutores). Esse tipo de expropria-
1111 'Ii ITI SITIO de se completar o processo de importação: são raros os casos ã do butim da esquerda derrotada teria recolocado Brecht na pauta anglo-
dt, uut r estrangeiros com toda a obra traduzida entre nós. No caso' do -falante dos anos 1990 e parece que Iameson se dispôs a enfrentar a tarefa de
I 'ill ro, então, a regra quase chega a ser geral: mesmo brasileiros consagrados acertar essas contas.
I I I 111in uarn com boa parte da obra inédita. Por isso em Brecht e a questão do método assistimos a um marxista tra-
( utro problema, desdobramento do anterior, é a fortuna crítica. Temos tando, por assim dizer, de arrumar a casa, tendo em vista a ameaça concreta
11 'rmanccido sistematicamente à margem das mais interessantes contribui- de ver o maior dramaturgo do século xx transformado em um ingrediente
,m's mundiais para o conhecimento da obra de Brecht. Com isso, perdemos a mais na ampla salada, dita teórica, que vem sendo oferecida nos cardápios
mufto dos esclarecimentos sobre sua trajetória política e artística, sem falar (para já ir atualizando um dos mais elo quentes tópicos brechtianos) do que
nus polêmicas de que ele mesmo participou (o que se publicou por aqui das passa por reflexão nestes anos de ambições teóricas rebaixadas. (Eu quase
hatalhas teóricas dos anos 1930 envolvendo Lukács, Brecht e Adornos) e nas disse emburrecimento generalizado, mas me contive a tempo.) Iameson já
ti 'S involvidas, depois de sua morte, por seguidores ortodoxos, simpatizantes, abre o livro, como apontou Michael Richardson, avisando que a pergunta é
.rpóstatas e inimigos declarados. pela utilidade de Brecht em tempos que realizam a notável proeza de serem
em muita esperança de alterar significativamente um quadro cujas ainda mais anticomunistas que os de Brecht e os da Guerra Fria, tempos
li 'I .rminações ultrapassam muito o possível empenho do movimento edi- em que prevalece, aparentemente sem qualquer contraposição, a retórica
turial, este livro de Fredric Iameson, mais que uma interpretação, propõe mercadológica em todos os domínios (inclusive e sobretudo os da cultura
o I afio de um melhor e mais exigente conhecimento da obra de Brecht. e da teoria). Para respondê-Ia, nosso crítico não hesita em passar a limpo
)':s r ta da a edição da Coleção Zero à Esquerda e passados mais de dez o repertório dos temas "pós': E, na busca das genealogias, acaba desenter-
II nos, o interesse por uma segunda edição agora se explica por finalmente rando o que a balbúrdia teórica soterrou: suas raízes dialéticas, marxistas e
.star disponível entre nós a manifestação da ala pós-dramática dos inter- até mesmo brechtianas - em caso de dúvida, Mitorogtas de Barthes está aí
10 utores de [ameson. para testemunhar. Um dos resultados deste escrutínio é o enunciado por
Já está publicada entre nós, por exemplo, a obra de Hans- Thies Lehmann, extenso daquela desconfiança que ronda o espírito de todo marxista esfor-
I ' rítimo representante de uma vertente da fortuna crítica brechtiana (neste çado em acompanhar a movimentação acadêmico-editorial: o grande aná-
uso, os brechtianos deveríamos ter o direito de falar em infortúnio crítico), tema para a Theory é justamente a di al ética, permanentemente caluniada e
na "ala teatral" do que se chamava Theory nas longínquas últimas décadas do
s ulo xx. Expressão de sua insaciável "fome de matéria-prima" - segundo • M. Richardson, "Makíng use of Brecht" The Book Press, fev. 1999.

9
111'11' ,d,1 pw \111 IS' Iodos os que npr 'S intam nlt rn ulv I. I".,I~111'
to date.
( ) P 01 (. q\l ' :I úni <I novidad ão a carta escondidas, os prcs .upostos ca-
IIl1dl,dos 'as postura tergiversantes. Os adversários d'antanho (Nietzsche,
11\'ld '1:\ 'I', Max Weber, para ficar nos que nunca saem da ordem do dia)
I111h 1 m p ·10 menos a lealdade de nomear sem vacilações o inimigo.
A r' onstituiçâo que [arneson faz do diálogo-pilhagem com a dialética
toma matéria-prima os problemas que interessaram a Brecht desde
011'10

~ 'Us primeiros escritos até obras como Me-ti, ou o livro das reviravoltas
(vdlçâo alemã de 1965) e o Romance dos Tuis, que permanecem inéditas
\ ntr nó. em dúvida, a operação brechtiana mais constante é o exame crí-
III () do papel do intelectual, personagem coletivo que também protagoniza
'1/II'I/I1dot,peça-paródia que ficou inconclusa (encenada em São Paulo na
di .ada de 1990, não por acaso pelo teatro do CPC-UMES em continuidade à
luta iniciada nos anos 1960 pelo Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE).
A esgotar a pauta dos temas pós-modernos, Jameson demonstra que
Hre ht continua a ter utilidade, ao menos para os que conseguiram resistir à
tirania do discurso hegemônico, pluralista apenas para fins de jogo de cena.
S' h uver mesmo um debate teórico, a palavra está agora com ô adversá-
rio, a quem cabe demonstrar, entre outros desafios, que a reflexão hegeliana
sobre identidade, diferença, oposição e contradição, para ficar apenas nesse
-xcrnplo, não tem maior alcance, e mesmo sofisticação, que a diferança. Nos
I .rrnos da Ciência da lógica, a abstrata afirmação da diferença, simples ne-
gação da identidade, permanece presa a essa mesma identidade. Quem se
habilita? Pois essas questões lógico-metafísicas também permeiam a obra
I rechtiana, só que, assim como em Hegel, com conhecimento de causa, o
qu faz toda a diferença, como demonstrou o nosso autor.
Uma das teses centrais deste livro é a de que Brecht não apenas continua
atual mas, muito mais que isso, os temas encenados ou enfrentados teori-
arnente por ele permeiam o que há de mais interessante no pensamento
ontemporâneo. E suas formulações têm maior alcance porque são dialéticas.
Isso é uma questão de método.

São Paulo, janeiro de 2013.

10
Prólogo

Utilidades

Gosto de imaginar o quanto Brecht se deliciaria com um argumento que de- ,


fendesse não sua grandeza, seu caráter canônico ou seu inesperado valor para
a posteridade (sem falar em seu caráter "pós-moderno"), mas sua utilidade, e
não para um futuro incerto ou simplesmente possível, mas para um presente
imediato em que a retórica do mercado pós-Guerra Fria chega a ser mais an-
ticomunista que a dos velhos tempos. Sagacidade brechtiana: foi assim, por
/

\ exemplo, que, ao invés da denúncia de um "culto da personalidade", que lhe


provocaria náuseas, Brecht propôs a celebração da "utilidade" essencial de Stá-
lin (coisa que não apenas Trótski e Mao Tsé- Tung, como provavelmente o pró-
prio Roosevelt haveriam de apoiar).' Na verdade, foi apenas como um encami-
nhador de propostas que ele próprio quis ser lembrado: 2

Na edição deste livro em inglês, os originais de Brecht foram referidos dentro do texto por vo-
lume e página de acordo com o Werke. GrojJe kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe
[doravante Werke] (Frankfurt: Aufbau/ Suhrkarnp, 1989-98), editado por Werner Hecht, Jan
Kopft, Werner Mittenzwei e Klaus- Detlef Müller. Nesta edição, mantivemos essas referências
em nota e acrescentamos a essas informações o título do texto em questão, quando foi possível
localizá-lo. Portanto, a alusão a Stálin deve ser encontrada em Werke, v. 18, p. 66. [N. E.]
2 São citadas as traduções consagradas da obra de Brecht para o português sempre que dispo-

13
1,11 II'~ "1\1' II I
IOlllpl'"" '111111'11'11'1111) íur.uu unl 11 idas xob u forma d mét do.rnaís
No I 1\ 1·1111I11()~.'
do que (01110 NiIllpl 'S ()l\lpil,I~( ('S de furos, I' O xõ s, convicções, pressupos-

tos' 011' 11'I' .s. Truta S', mtrctanto, de um "método" igualmente sagaz e
1'01 01111'0 Indo, 'ara I rístí o da dialética brechtiana nunca abolir por com-
b m-su cdid no s ntido de escapar a todas as objeções convincentemente
pll'lo Ii I\lnbi ruidadc d tai ugestões. Assim é, pois, que, precisamente o
fcita peJa filosofia moderna (como em Verdade e método, de Gadamer) con-
"K'"1H.'1110, uí ilizad p 10 arquiteto "modernista" de Me-ti, ou o livro das
tra as reificações do métodológico como tal. Ainda assim, já que tentaremos
/f'I'/mvol/as na defesa de uma estética corbusiana de beleza e utilidade, atrai elucidar esses paradoxos mais adiante, talvez possamos retomar este mo-
0111 'si o repúdio do que para ele trabalhavam:
mento em que é introduzida a ideia da utilidade brechtiana que, embora
certamente envolva o ensino, é um pouco mais fundamental que o mero
I'odc S' muito bem oferecer bancos com cintos de segurança de couro no trans-
didatismo (na arte como em qualquer outro campo).
POI" ' d ' peões asiáticos acostumados a serem espancados com tais cintos en-
Lembremos, por exemplo, que para Brecht a ciência - em alemão Wis-
1(11.111' ) ,. mamo Talvez o útil seja realmente belo. Mas, nesse caso, nossas máqui-
senschaft [conhecimento 1 - é também um pouco mais do que "ciência" es-
llilS ub olutamente não o são, já que elas certamente não têm utilidade nenhuma
pecializada nas línguas ocidentais - ciência e conhecimento não são tarefas
puru 11 S. Mas, Len-ti exclamou pesarosamente, elas poderiam sê-lo, Claro, disse-
árduas e enfadonhas, mas sobretudo fontes primeiras e principais de prazer:
1,IIl1 os trabalhadores, e seus prédios também poderiam ser belos, mas não o são.'
mesmo as dimensões epistemológicas e teóricas da "ciência" devem ser pen-
sadas considerando uma revista como Mecânica Popular e o caráter de entre-
"I li li" nc e contexto não significaria apenas "didático'; embora, como já su-
tenimento manual resultante da combinação de ingredientes e do aprendi-
em outro texto, haja sinais de que a "era presente'; com seu recente gosto
, ii
zado do uso de ferramentas novas e incomuns. Mas talvez só os leigos, em
pdas .stéticas impuras de todos os tipos, também tenha se tornado mais to-
nosso tempo, pensem na ciência de modo reificado: de fato, os atuais estudos
I 'r uu com atitudes e elementos didáticos do que a alta modernidade mais de ciência parecem ter retomado uma visão da história das "idéias" científi-
jllII'lsl que a precedera. Ainda que didático, é preciso acrescentar que Brecht,
cas como um pouco mais próximas da história das instituições e instalações
1i 1I '01', nunca teve uma doutrina a ensinar, mesmo no que se refere ao mar-
lab~ratoriais, das operações materiais e das relações sociais que estas pres-
Isrno enquanto sistema ("o ABC do ...", para evocar uma forma de fazê-lo
supõem, da transcrição de modificações físicas e da investigação de outras
IJIIl' istava, então, em voga). O que desejamos demonstrar no ensaio que
modificações a partir daí imagináveis. Grande parte da filosofia moderna (ou
t' S .zue é que suas "propostas" e lições - as fábulas e provérbios que ele se pós-kantiana) vem lutando de uma forma ou de outra para eliminar o peso
epistemológico do conceito de ciência-conhecimento, para diluir seu caráter
nlveis. Quando não, as citações foram traduzidas dos textos em inglês e apresentam duas de representação estática e para ativá-Io ou novamente traduzi-lo sob a forma
r .ferêncías, a do original em alemão e a da tradução para o inglês. Assim, do inglês são
da prática original da qual ele provém.
referidos dentro do texto os Poems 1913-1956, editados por Iohn Willett e Ralph Manheim
Brecht nos oferece um mundo no qual essa prática é dotada de um ca-
(Londres: Methuen, 1976); e Brecht on Theater, editado e traduzido por Iohn Willett (Nova
York: Hill & Wang, 1957). [N. E.] ráter de entretenimento, e em que sua própria pedagogia se torna um ele-
n. Brecht, "Não necessito de pedra turnular" in Poemas 1913-1956, 7~ed., seleção e trad. mento da classe por ela representada: o ensino da prática também é, em si,
Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 340. uma prática legítima, e, assim, "participa" das próprias satisfações propor-
/1 Il. Brecht, "Me-ti, Buch der Wendungen', in Werke, v. 18, p. 148.
cionadas a seus aprendizes. Nessas circunstâncias, pelo menos dois elemen-

1'1
15
111 d,I r"IIIII 11I1 ,Idl li, CI '10 (UlIIIOV 'I, ('lIsllIlI. d VI'I'I I) pomo li pOU'O 1'111111110,111"111"111
Illvldul'!.\llIh('1II um dos truços do onhe imento
di dll\ll nn S '1'111111\1 011110:"cnslnur'' 1" upcrn sua r laç,\( 0111 a brígat - 'd,l ,11'1' 11.1l11edld,I cru que ,I 'S r '(lu '\11 em direção ao útil: ela é o "meio"
I 1'lI,IlIt'ti' "d IWI'Ii r': 'o di Il\ti 'o mais uma v z r nquista gradatívarnente in 'r ntc no I 111 pr icss rn que o útil e converte em um fim em si - não
I 1I"'lllltnhlll III I' so .lal qu há muit tempo admite (apenas secundária e um fim C rrnali ta e vazio, um fim-pretexto, ou um fim qualquer que invo-
11111nt ) a fun
1111110111 ã s ial da arte enquanto embelezamento da vida. amo para sermos capazes de nos manter ocupados, mas antes uma união
(J I o terc clro 'I irn into da tríade - "comover" -, como se sabe, foi ques- ubstantiva e hegeliana de meios e propósitos de tal modo que a atividade
I 10 I or Br
t11111 ht: n s sentidos de suscitar emoção, controlar, empregar, valha a pena em si; que imanência e transcendência se tornem indistinguí-
I' Inl1 tir ou purgar sentimentos
1'1 11\11', fortes, é objeto de várias formula- veis (ou transcendam sua oposição, se se preferir); ou, em outras palavras,
~Ili'. I rlli as qualificadoras que criaram problemas tanto para brechtianos que a "coisa em si" apareça. "Die Sache selbst:: assim é a memória debilitada,
1011\\1purn nntibrechtianos: a seguir, trataremos dessas formulações à nossa a palavra na ponta da língua de que Brecht nos lembra, e que se oferece a
1" 1I(l11\1mancira.) ajudar-nos a reconstruir, se não a recriar: a "construção do socialismo" é ape-
1'01'outro lado, a versão da ciência e do conhecimento sob o prisma da nas um dos nomes deste processo utópico concreto que a seguir tentaremos
11\\', 111n P pular será necessariamente uma noção moderna em Brecht, e esboçar - como a fundação de uma cidade antiga, com faixas de pavimen-
li lI' .sar da imemorial rusticidade que subjaz a uma grande parte de seu tação dispostas aqui e ali, multidões fustigando o terreno ainda vazio que se
1I,IIlIllho 'de sua linguagem, e da "pós-rnodernidade" para a qual procura- transformou em um lugar (ainda virtual), início das infindáveis polêmicas
IIIO,~urrar-I com a finalidade de redes cobrir sua mensagem. Deixemos de sobre códigos legislativos e rituais.
lido I qu stão de saber se aqui temos que tratar da modernidade, do mo- Mas é importante lembrar que, se a doutrina brechtiana de atividade ou-
dcrnlsrno ou da modernização: por enquanto a qualificação de moderno trora teve força empreendedora porque atividade e práxis estavam na ordem
ru ial para nós porque o tabu que recai sobre o didático em arte (que do dia, essa mesma doutrina é agora urgente precisamente porque elas não
11th,"o identais" modernos, pressupomos) é de fato em si próprio um traço estão mais, e porque tanta gente parece imobilizada nas instituições e a profis-
111' nossa própria modernidade. Nenhuma das grandes civilizações pré-ca- sionalização não parece admitir mudança revolucionária, ou mesmo evolucio-
pil.lli 'ta clássicas jamais duvidou de que sua arte tivesse alguma vocação nária ou reformista. Hoje a paralisia em todo o mundo - dominado pelo mer-
d ill. Ii a fundamental; recuperar aquela vocação é muito precisamente o cado, globalização, mercantilização e especulação financeira - nem ao menos
,1'111id daquilo que poderia ser chamado de a dimensão chinesa de Brecht, se apoia num funesto sentido religioso de Natureza; mas é clara a percepção
I onforrne veremos. Mas se esse didatismo for verdadeiro, precisaremos su- de que ela ultrapassou os limites da iniciativa humana, tornando-a obsoleta.
I crar O modos pré-capitalistas de produção - "uma explosiva abertura do Eis por que a concepção brechtiana de atividade hoje em dia deve vincu-
rontinuum da história" que agora pode recolocar-nos em contato com a lar-se a um renas cimento do antigo sentido pré-capitalista do próprio tempo,
China antiga, como observaria Benjamin -, precisamos isolar todo o "an- da mudança ou fluxo de todas as coisas: é o movimento deste grande rio do
Ilquarismo" que incessantemente a ameaça. Esta é, sem dúvida, a tarefa do
"modernismo" de Brecht na acepção mais estrita: seja do ponto de vista tec-
o termo aparece no capítulo v, item c de Fenomenologia do espírito e é historicamente li-
nol gico, seja do industrial: produzir o prazer em aviões e no rádio e acres-
mitado ao estágio de transição para a sociedade moderna na qual as atividades produzidas
c cntar a dimensão "trabalhadores" à de "camponeses" em uma espécie de pela divisão social do trabalho ainda parecem imediatamente significativas e servem de
" Ian ça estética gramsciana. suporte a sua própria "razão de ser" em si mesmas de modo imanente.

111 17
11'1111111111111'1111 '1111' 11'111 111I1I'1Iil' 1100 I('VIII (OII('III( '1.1 dll X() 110 1111 '11(' nn 11(11 IIlt'lo du 'lU" o \111 I II 1111111111' ti' 111' xht, {(LI' sozinho sobr 'vive ti gradual
11 11 '1111101110111('1110 dI! 1'1' xis, 1
'1 1wIIIOS que ocultr 10 ' rcprlmt-lo porque l'Illllllln~1 o tllI dltu 11' Idl,'IIO hlll'glll'sn () '1<.1 .rual outrora múltipla? Ou, em outras
llll'fllllloo 111 111'1\1' 1\0 cupltullsmo 01110 natural ct 'mo, c também para puluvrus, 'd ' lIl11U í(lI'Il1U que mais imediata desesperadamente ameaça o atual
• 1111111111 Itllll'll' dndo cxlst '11 ia] ' rcra ional, ou seja, a nos a própria morte, proj to, P rgunta-s , enfim: não há algo profundamente não brechtiano em si
1111 I 111 1l0S l une lnrnn a abra ar a dor daquele vir a ser, daquele passamento, na tentativa de reinventar e reviver "Brecht para os nossos tempos", algo como
I 11111 d 1 ilcunçnr nossos po sibilidades humanas mais satisfatórias. Não há "o que sobrevive e o que morreu em Brecht', ou o Brecht pós-moderno ou Brecht
Iúv ti I dl' que S traia de uma proposição metafísica no sentido máximo para o futuro, um Brecht pós-socialista ou mesmo pós-marxista, o Brecht da
do 1(111110: .po I 1110S onvocar Heráclito para atestá-lo por uma tradição, e teoria homossexual ou da política de identidades, o Brecht deleuziano ou derri-
MIIO 'Is( 'lun p r outra: de ano, ou talvez o Brecht do mercado e da globalização, um Brecht da cultura de
massas norte-americana, um Brecht do capital financeiro, por que não? Slogans
IJIIIlI 'oiso ti trói a utra, as coisas emergem, desenvolvem-se e são destruídas, ignóbeis, que carregam em si uma concepção reprimida da posteridade e in-
('111 todu a parte é assim. Se as coisas não são destruídas pelas outras, então elas conscientemente fantasiam o cânone como uma forma de imortalidade pessoal,
d. strocm-ac a si próprias. Por que as pessoas deveriam morrer? A aristocracia cujo oposto deve naturalmente ser a extinção pessoal.
IllIlh 1m morre? .sta é uma lei natural. As florestas são mais longevas que os se-
1'1' humanos: entretanto, mesmo elas duram apenas alguns poucos mil anos [... ].
I) SOl lnllsrno, também, será eliminado, ele não teria serventia se não o fosse, pois Cronologias monádicas
1'11([ () M o haveria comunismo [... ]. A vida da dialética é o movimento contínuo
'111 di r 'ç, O aOS opostos. A espécie humana também finalmente encontrará seu Quero explicar por que não temos que ser antiquários ou nostálgicos para
dl'sl Ino , ... 1. Deveríamos estar sempre inovando. Caso contrário, para que esta- apreciar as formas pelas quais Brecht ainda vive para nós: a própria plurali-
1110N li lU!? Para que é que desejamos descendentes? O novo deve ser encontrado dade dos "Brechts" reais, virtuais e possíveis começará a mostrar-nos como.
11 I I' -ul idade, precisamos captar a realidade." Não é uma questão de estilos (de que trataremos de outra forma e em ou-
tro lugar) ou de épocas biográficas exatas, mesmo se a ordenação que se-
11,1111' itum .taí perspectivas metafísicas têm com frequência sido mais usadas guirmos for de caráter ligeiramente biográfico-cronológico. A leitura canô-
I mil () S intid estrito de excluir o escritor que as professa. Pergunta-se: o ree- nica de Brecht possui dois fundamentos: o primeiro é a multiplicidade de
I,hor I lor de tantos textos antigos não recomenda a própria reelaboração, uma gêneros - Brecht foi acima de tudo um homem de teatro, ou foi, na verdade,
I ' 'N .ritura que deve, em última análise, estender-se aos textos publicados de como tentaram insinuar os críticos ocidentais a partir de Adorno, (apenas)
o IIIIS próprias peças (como nosso clássico e paradigmático Berliner Ensemble um poeta? E quanto à "teoria" - é mais representativa do que a dramaturgia?
pOI1W a pouco se transformando, diante dos nossos próprios olhos, em Hei- Em caso afirmativo, de que forma? Há um menor número de defensores da
11'" MOI! r e em pós-modernismo)? Pergunta-se ainda: não deveríamos, de fato, prosa de ficção, embora eu mesmo aceite fechar uma aposta a esse respeito,
I 0I110 os militantes aprendizes de A chinesa, de Godard, por fim, relutante e tris- afirmando o seguinte.' sem dúvida, as histórias e parábolas revelam uma for-
\1'1111111 " definir com firmeza e com conhecimento de causa uma última linha
7 Em matéria de narração romanesca, poderíamos apresentar como argumento Os negó-
r, Sltl\\I'1 S hrarn (org.), Chairman Mao Talks to People. Nova York:Pantheon, 1974, pp. 227-29. cios do senhor Júlio César (Werke, v. 17), ou, no caso do conto, "A velha senhora indigna"

111 19
111di V ,I (' utll Iurmn d' nurruüvu. Mas I ruulm '111' ind 'S 'Jt\ I .lasslf ar P1'(11. 0111Il1l1I' 'viravoltas ti' uma boa vida e obra (parti-
'I' 'S 1Il111111.11'111,1
111I pI'O 11I~ll() ti 111"'hl, visto qu , ind p nd ntemente do qu predo- .ularm 'nl ' num p rlodo vuln 'I' v tomo o n sso, quando o destino parece
IItllI" ilgumn olsa p rde no pr esso. E de qualquer forma, uma vez re- n vamente de ne tado da hi tória - é o mundo dos contatos históricos
olv do 'ss' (talv z (ais ) pr blema, resta a tarefa de extrair um cânone e de e evasõe nas vidas do Dichter: em Blake e Yeats, em Eisenstein e Gide; isso
" . olh I' ,IS" rondes" bras: não tenho nada contra celebrar as grandes peças, deve fascinar-nos e dar-nos apoio).
1111\hl muita nas diferentes que me interessa manter e que nem sempre No caso de Brecht, pretendo falar de camadas de história, mônadas cro-
uo lm li ív is ob a rubrica "peça" O mesmo sem dúvida ocorre com a poe- nológicas - desta vez sobrepondo-se no tempo mais do que no espaço, cada
I 'S .us vário estágios ou épocas; mas detesto ver nela uma progressão em qual com seus tipos específicos e distintos de conteúdo: cada um impondo
dll '~l o li alguma quintessência poética final (há quem defenda essa tese no sua própria ocasionalidade (para este tipo de "poesia ocasional" a própria
(liSO ti Elegias de Buckow), ou a projeção de um mundo sincrônico e feno- História é a ocasião, ou melhor, a múltipla sequência de ocasiões). Ortega
IIH.'110Iógico,uma coexistência de todos os poemas, antigos e recentes, nos gostaria que Goethe tivesse tido um tipo diferente de vida, fustigado pela
qlllls s identifique alguma unidade poética mais profunda, história de todos os lados, um Goethe náufrago, errante, "desgastado pelas
111' ht é acima de tudo moderno por suas descontinuidades e sua frag- intempéries" etc.? Foi esse precisamente o tipo de vida que Brecht teve, e
1IH.'l1lnão mais profunda: a partir da dispersão podemos continuar na dire- ela coincidiu, enquanto ele viveu, com a vida do próprio século. Entretanto,
\ 10 ti ' rta unidade, mas somente após havê-Ia atravessado. Essa é uma po- nosso ponto não é que essa vida seja interessante por esse aspecto, por mais
I~no que Haug defendeu" ao ver todo o corpus brechtiano como uma imensa difícil que ela possa ter sido para aquele que a viveu, mas, mais do que isso,
uuldndc em dispersão através de um grande número de discurso,s genéricos porque cada uma dessas camadas cristalizou uma série de trabalhos e ex-
, prr ti a discursivas, como as de Gramsci nos Cadernos do cárcere,·ou como pressões, ou organizou um fluxo de fragmentos ao redor de si própria. Da
IIlIS Passagens, de Benjamin (que evidentemente são muito mais limitados mesma maneira que na Idade Média poetas falavam da matiére [matéria]
10 que Brecht do ponto de vista do estilo, e cuja forma muito "incompleta" disto e daquilo - o "assunto" de Brittany, por exemplo, no qual o ciclo artu-
Impõe o método dispersivo, enquanto em Brecht às vezes há também ele- riano era central-, podemos então falar das várias "matiêres" da vida brech-
111.ntos completos esparsos). tiana, que celebrou em canção aquela história, ou aquela camada histórica,
uanto ao biográfico, penso que - agora que estamos muito distantes como se fosse autobiográfica, porque Brecht viveu sua própria vida do lado
da poca em que a crítica voltava-se aos estudos de "vida e amores" (caça de fora daquela história. Dizer que Brecht sempre pensou politicamente, que
1\ d cumentos originais) e também da antiquada história literária - pode- ele nunca teve uma ideia ou experiência que não tenha sido filtrada pelo po-
m intimidar-nos menos, mas podemos também ser mais dialéticos no uso lítico, é dizer algo como: a história foi, em outras palavras, sua vida privada, e
ti te. Em uma era de excelentes biografias, seria grosseiro reprimir nossos precisamos agora separar alguns de seus momentos e de suas nuances.
Mas a história também sempre nos leva a confrontos impossíveis entre
ela própria e sua pré-história: entre biografia e sua pré-história: no caso de
(Werke, v. 18); há também uma concisão extraordinária, que lembra Kleist ou o Hebbel
das narrativas curtas, como em "Der Arbeitsplatz" (Werke, v. 19), ou em muitas das "pa-
rábolas" em Me-ti (Werke, v. 18). O romance dos três vinténs (Werke, v. 16) parece tentar 9 José Ortega y Gasset, "In Search of Goethe from Within", in The Dehumanization of Art
combinar estes dois últimos impulsos em detrimento do primeiro. and other Essays. Princeton: Princeton University Press, 1968, pp. 136-37, 170-71 [ed. bras.:
li Wolfgang Fritz Haug, Philosophieren mit Brecht und Gramsci. Berlim: Argument, 1996. A desumanização da arte, 6~ ed., trad. Ricardo Araújo. São Paulo: Cortez, 2008].

o 21
1I1 '( 111 (' (' (I plohl'Ill.' dI /11/1//.1':1., que nun a 101 111,11. ('IIV'II lonal 1\l1l '111 111 11OSM" VO, (, hutundu O bOI11 '111 [ue sofre ti' g ta e ada abaixo
1111 111 111 \1 I.~I,I ortodoxo do qu . quando, mais tard " tentou d 111' li ar e r 'P .udumcn: ' (o qu s im dúvida r pr enta a advertência da sociedade
Illt'llll'I:lI' suu obra I' juv .ntude 01110 a expressão do antissocial, ou me- ntra a indulgên ia), lascivo, grosseiramente distraído por uma variedade
IIHII\ tio n so 'itll ("d r bôs Baal der asoziale"), o que é, decerto, uma forma de novos objetos, desrespeitoso e violento (não alheio a uma natureza ou
til 1[\1 li' diz -10. Baal é O monstro, em outras palavras, mas o monstro essência violentas, mas, mais do que isso, a uma reação imediata ao mundo
do 'P'I 11' 01110 tal, que me parece uma palavra mais satisfatória do que a seu redor). As primeiras aparições de Mickey Mouse em O vapor Willie
"d( , l'j()'~ d seio - mesmo enquanto conceito - emerge de uma reflexão (1928), por exemplo, também foram assim diante da camuflagem da cul-
(1111' • n histeria, sobre a ausência de desejo, sobre o desejo de desejar, e tura; o sentimentalismo do vagabundo ou de Mickey veio estragar esse
,I .~IIn p r diante. O mero apetite não necessita atravessar a estreita bre- produto arquinatural, sobre o qual não podem ser contadas histórias de
( 11,1 (tI/ljil ): ele já está lá com garfo e faca em cada mão, batendo sobre a forma exata. Esse é o próximo ponto, e ele explica por que Baal precisa ser
1111' n, I fato, é essencial empurrar as coisas para fora da mesa, entornar episódico: a figura do apetite deve irromper e quebrar a mobília, mas ela
(I I -lte, qu brar os pratos e copos, esparramar a comida - o escândalo é não pode evoluir, ela não conhece nenhuma história interessante a não ser
(IIIUI part necessária e constitutiva daquilo que Freud chamou de "Sua a da exaustão final e da morte. Não é nem mesmo patético-trágico como
M I) stad o ego', 10 e o que chamamos "egoísmo" (que não deveria neces- o Id ou o Desejo, que podem ser frustrados e definhar como o amor não
11 1,1111 nte implicar a formação do ego ou do eu) é o seu outro elemento: correspondido. Negar o apetite é, de alguma forma, deixar de corresponder;
.lIgo !lUO necessariamente presente no Id, que é bastante impessoal e que já um outro qualquer logo virá tomar seu lugar.
1\,10 dispõe de um eu em direção ao qual puxar todas as coisas.,e para fora Isso ainda não é cinismo brechtiano nem mesmo uma camada histó-
do [uul lançar-se. O Id conhece sua manifestação no Homem Selvagem da rica: ele toma o lugar de uma camada da infância que tantos escritores aca-
1101' ista da Idade Média, que é estranha e aterrorizante, mas radicalmente lentaram e, em uma visão retrospectiva se isso já houvesse sido inventado,
ll11p oal e até mesmo inumana: um abominável homem das neves virtual sem dúvida corresponderia àquilo mais tarde chamado de adolescência.
li -m fala, que rouba sua presa das aldeias humanas, mas é incapaz de dizer: Enquanto isso, essa é certamente a fonte de um materialismo propriamente
1\ minha! É minha! Esta última é, antes, a linguagem do Pai Ubu, de [arry, brechtiano - talvez, se histórico em alguma medida, ele seja o lugar situado
ou, d outro lado do espectro histórico, de Harpo Marx ou do Sr. Natural em meio à história, do qual as figuras do pai, o Kaiser e o resto desapare-
til' rumb. Esses são os marginais da literatura, mais do que seus zum- ceram ignominiosamente, sendo seu lugar tomado pelas revoltas obscu-
bis u mortos-vivos: criaturas de aparência e vestimentas negligenciadas, ras de todos os tipos (das quais pode-se buscar refúgio em Augsburgo no
St tiros, velhos sujos e congêneres, que são bem os arquétipos do apetite, apartamento do andar de cima), e antes que a nova ordem do mundo mo-
surgindo da cultura popular (mais do que, como ocorre com vilões supre- derno (Weimar) tenha se estabelecido. Acho que o gestus de apropriação
mo e manifestações do mal, da cultura letrada). O Chaplin do início da que agora ele encena - que talvez seja a própria fonte dos gestos em geral e
urreira, o vagabundo dos primeiros curtas-metragens, era, assim: revol- do dramático - o Garoto de Flaubert berrando como o seu senhor - pode
ter como seu número e princípio organizativo opostos em um momento

,o iigmund Freud, "Escritores criativos e devaneio", in Edição standard brasileira das obras de dissolução, como em "Menina afogada', em que um corpo lentamente
psicológicas completas [doravante ESB], v. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp. 149-58. O ori- se dissolve na água:
ginal encontra-se no volume 7 de Gesammelte Werke de 1941, pp. 213-23.

23
isso ucontc 'U (b '1111'111(\111'111 ,) para que I cus u 'SqllN'C Nl' 1111(111 illIl('lltl'," N ivulhu (' I.otk I.('IIY li \l1(' \ 1 S(' 1 Isso () rol11l11l1lSI110 I· S 'LI destino, que
hoje 11ÓS onhcc '1110S, • qu • wetrnar n50 poderia prever. O que parece pelo
A oposição poderia muito bem assumir muitas formas e interpretações: a de m nos justo diz r qu Weimar deu a Brecht uma experiência não amalga-
gênero, por exemplo, na qual a atividade peremptória é oposta a uma espécie mada da modcrnidade como tal, de Lindbergh à grande cidade industrial,
de passividade absoluta; mas parece-me que a mais compatível com a poesia do rádio às boates e cabarés, do desemprego ao experimento teatral, de uma
posterior será a identificação de qualidades e percepções com este segundo mais antiga burguesia ocidental à novíssima experiência soviética vizinha.
polo, do qual provêm os céus desbotados dos poemas posteriores, a palidez É estranho que precisamente essa modernidade nos pareça tão fora de moda
que torna a variedade de tons em si um pouco mais material, como se a per- atualmente, e que suas imagens de dinheiro e sua feroz competição capita-
cepção registrasse as sensações evanecentes de modo mais certeiro que as lista, bem como a mistura de sofisticação e miséria, pareçam tão exóticas,
sensações emergentes, e como se a dissolução fosse mais física e materializá- e em última análise tão "incultas" se comparadas aos estilos glamourosos
vel que uma visão de materiais meramente sólidos e resistentes. Isso também da pós-rnodernidade norte-americana dos anos 1980 e 1990. Pergunta-se:
desempenha um papel na música de Weill, e estabelece as grandes oposições seria justo resgatar apenas Brecht -Weill desse fiasco geral e designar este
tonais e rítmicas dos anos de Weimar entre o estridente e o elegíaco, entre os momento como o momento de Weimar, assinalando assim pelo menos a
ritmos dos "apetites básicos" dos homens (saufen, essen, lieben, boxen [beber relação com o espetáculo, com o musical, com a ópera, simultaneamente a
até cair, comer, amar, boxear l) e a "canção dos grous" em Ascensão e queda uma relação com a música, que será prolongada pelo amigo e colaborador
da cidade de Mahagonny. Hanns Eisler no coração da experimentação musical contemporânea?
A primeira camada histórica genuína é, assim, claramente identificada a No entanto, quatro ou cinco camadas ou esferas relacionadas precisam
Weimar em si e aos tropos do cinismo: a emergência do grande processo de ser ajustadas entre si e ainda no interior desta. Por exemplo, Brecht também
demonstração do paradoxo brechtiano e da reversão sarcástica do cinismo, é "Brecht', isto é, o lugar de uma obra propriamente coletiva, como se a in-
não do escritor, mas da realidade em si: a versão mais crua e dessecularizada dividualidade a ele atribuída em determinado período histórico, com suas
do capitalismo, sem qualquer de seus revestimentos culturais franceses, in- qualidades e obssessões singulares, tivesse sido ultrapassada no trabalho de
gleses ou italianos, começando da estaca zero do fim da guerra e da queda \ um grupo, que por certo parecia ter um estilo distinto (aquele que nós agora
do Estado e da autoridade - uma situação desesperadora e competitiva, des- chamamos "brechtiano"), mas deixou de ser pessoal no sentido burguês ou
provida de todos os traços exóticos da experiência muito mais longa dos individualista. Nós sabemos muito bem como Brecht pilhou textos teatrais
Estados Unidos no que diz respeito ao fato de não se apresentarem sob tais do passado e de outras culturas, o que não sem razão chega a ser motivo de
revestimentos (que veremos adiante). Essa é, sem dúvida, a experiência fun- choque. Mas quanto mais camadas de tempo humano, quanto mais gente de
damental de um verdadeiro "tempo de paz" em Brecht, que não mais voltará, todas as idades tiver deixado seus traços no artefato, tanto mais rico e melhor
mas que necessariamente marca sua concepção de realidade. No entanto, este será. Mas ainda hoje o trabalho colaborativo provoca escândalo: como
nesse sentido, Weimar é a mais difícil de caracterizar, visto que há muito (o fica a propriedade privada da assinatura? Brecht não explorou as pessoas
que absolutamente não se deve ao próprio Brecht) tornou-se imagem e cli- que trabalhavam com ele (o coletivo que estamos chamando de "Brecht"?).
chê - um cartaz historicista, uma "selva das cidades" assombrada por Mac Mais grave ainda, visto que tantos de seus colaboradores eram mulheres, não
é esse o padrão de comportamento dos escritórios onde o chefe é homem,
11 B. Brecht, "Vem ertrunkenen Mãdchen', in Werke, v. 11, p. 109. para não falar do professor que assina a pesquisa de seus alunos? Daí a con-

24 25
t IIIIIIIHI (\ IIIIHI 11/, PII HI)' qlll tlldllll qlll' 11111111'111 1\1t'~ 111 '111 'S fILo por 'sp \ I 's): pl im 'I! 11 ,1,1 \llllrnpOl' 11111 '111 IS Ias pollt i 'tiS ti ' id intidad 'aos da

uul t u ,I' H\'I dlll '111 pOl 'I',


111\1111 I Ip 'IIUS 1I11l!, ISSO que poli' ser úül para lula ti' lass .s, para .ntuo, .rn ou tr nível, deprc iar t talmente a política -
111111111111' om os treços de .rucklud i nutortturtsmo qu 'S atribu 111 a ele, como açã d c lctiv - em nome da propriedade pessoal e individual. Nos
NI n \11 1I I ','SSO uma atitud 'I Ifli a (mar ada p r m rali mo de várias anos 1960, muita gente compreendeu que, em uma experiência coletiva ver-
dadeiramente revolucionária, o que passa a existir não é uma multidão ou
massa, sem nome e sem rosto, mas, em vez disso, um novo nível de existência
Iuhn Pu 'I, Br h! & o. Nova York: Grove, 1994. Puegí acha que, como Brecht se encon-
1Iavo '0111 tantos Intelectuais de sexualidade dúbia em sua juventude, ele também deve ter
que Deleuze, seguindo Eisenstein, chama de Dividual" - no qual a indivi-
Ido um d le. eu envolvimento posterior com tantas mulheres pode, então, ser explicado dualidade não é apagada, mas se completa pela coletividade. É uma expe-
por rua perversidade inata e o constante gosto pelo escândalo. De qualquer forma, ele as riência que aos poucos está caindo no esquecimento, com seus traços sendo
explorou lespudoradamente, além de ser barbaramente infiel. Isso é um problema para sistematicamente apagados pela volta dos individualismos exacerbados de
Pu 'Si, uja postura heroica preferida (embora ele se dê ao trabalho de explicar que Brecht
todos os tipos.
Iol urn autêntico proletário na opinião de Helene Weigel) é a da apaixonada indignação
É assim que se ocultam e repudiam os traços propriamente utópicos do
10 ma ho feminista, algo que torna um pouco suspeita sua deselegante homofobia. Mas
enfim, Brecht foi um monstro, cujos vícios humanos comuns (egoísmo, crueldade, au- trabalho coletivo de Brecht e do trabalho coletivo ou colaborativo de todos
torltnrismo, luxúria, possessividade e alguns outros de que não me lembro agora) são os tipos; mas é justamente esse um dos traços mais instigantes desse tipo
d .llbcradamente ampliados pela situação histórica mundial, que permite compará-lo fa- de trabalho em geral, e uma das únicas fontes de entusiasmo que ele nos
vornv lrnente (se essa for a palavra) com Hitler e Stálin. Sua volta e sua "adesão" ao regime
reserva - a promessa e o exemplo de uma cooperação utópica, nos mínimos
dll Alemanha Oriental por certo parecem suficientes para justificar a segunda dessas com-
pnrações; no que diz respeito à primeira, é um fato bem documentado que suas investidas
detalhes daquelas sentenças literárias que nossa tradição tentou reservar-nos
ntra seus atores seriam comparáveis aos furores mais desabridos do Führ;r. Mas aqui há como os últimos refúgios da criação verdadeira e do gênio individual. É uma
he itação, pois também é preciso dar crédito a sua experiência em Hollywood, onde todos lição cujos prazeres certamente voltarão em gerações futuras, por maior que
os exilados alemães foram chamados a assumir os mais variados papéis nazistas em filmes pareça o seu descompasso com a atual era do mercado.
d guerra com sotaques diversos. De qualquer forma, tem-se que admitir que as histórias
Mas essa "camada" daquilo que Brecht pode querer dizer deve ser com-
de Puegi sobre Hitler (o futuro Führer mascateando suas aquarelas no Englisher Garten
e sendo resgatado de massacres direitistas dos Freikorps em Munique no final da Pri-
parada e desdobrada em outra camada maior, a do próprio teatro, tomado
meira Guerra) estão entre os agradáveis brindes de sua deliciosa e insolente, ainda que um como a imagem exata do coletivo e de um novo tipo de sociedade: aquela
pouco obssessiva, "biografia". O autor claramente sabe como desenvolver a história e não na qual questões clássicas e dilemas da filosofia política podem ser "estra-
decepciona com o clima celebrativo no qual fica mais do que sugerido que, ao final, entre nhados" e repensados. Darko Suvin escreveu de modo eloquente sobre os
os temores da iminente defecção de Brecht para o Ocidente (sob a tutela de uma clínica
usos do teatro como uma instituição microcósmica da sociedade como
de Munique), Helene Weigel mandou matar o grande homem, sob as ordens de Ulbricht.
Werner Mittenzwei (Das Leben des Bertolt Brecht. Berlim: Aufbau, 1956. 2 v.) nem chega
um todo, e também sobre as alegorias utópicas e simbólicas que ele oferece
perto de ser tão divertido, mesmo quando deseja contar-nos algo sobre o que essas pes-
soas realmente pensavam, falavam e sobre que se correspondiam - algo que não se pode
esperar encontrar em Fuegi, cuja recente conversão ao anticomunismo por certo é politi- 13 Ver suas extraordinárias páginas sobre Eisenstein como dialético: são as únicas a conceder

camente correta (embora talvez um pouco retardada para o Zeitgeist que dá alguns sinais a Eisenstein o que lhe é devido como filósofo sério. Gilles Deleuze, Cinema 1: A imagem-
de crescente ansiedade com o neoliberalismo). De qualquer forma, seu livro permanecerá -movimento, trad. StelJa Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985, capítulos 3 e n, e Cinema 2:

como um documento fundamental para futuros estudiosos das confusões ideológicas dos A imagem-tempo, trad. Eloisa de Araújo Ribeiro, rev. filosófica Renato )anine Ribeiro. São
intelectuais ocidentais durante os anos imediatamente posteriores à Guerra Fria. Paulo: Brasiliense, 2009, capítulo 7.

26 27
I umu I' 11 I~O I' PI'l'illll'nlld '111101':11(')1
10 ol{'llvo,'1 Adlllnl v 'I' '1ll0S 0!110 111'1
I dI 1111101H'(ti, ItI IIlHtIPII'II ,li r 11110,1 I' 'S '1IIHro 'I -111.nt do humor
(' 1dlllll'lI, O 11)I !lI' tlcn 'Sll~nus 'I'\l " a mo s 'r ti' modo figuratlvo, no I. 111'ndl los OlllO() 1'1'61'1'10ispaç
I' di hulon 11'1.1, âmbito do experimental.
' , 111 111 1101'purt , da po sia (mas talvez não na canção) - modi-
101111111 A jllodllÇl o t .nfcttu aqu 'Ia ujas marcas dos ensaios foram removi-
lu 1 li 111Iurczn dn "I .orín" m particular dos escritos teóricos de Brecht, e dus ( .xntnm 'nl ' J11 na mercadoria reificada em que os traços da pro-
pI'lml1 ' qu - -I 'S ingr m no sistema dos gêneros literários de uma forma duçao foram eliminados): Brecht abre essa superfície e permite-nos recuar
1I0V,I(bnstant div r a da teoria da prosa no estruturalismo francês e no nos Sl S alternativos e às posturas dos atores ensaiando seu papéis; assim
PC'IM .struturalisrno, cuja concepção de teoria, entretanto, provém do próprio qu a experimentação estética - que costuma ser entendida como ge-
111t'{ ht, via Barthes), radora do novo e do ainda não experimentado - poderia muito bem ser
Por nquanto interessa apenas frisar essa nova experiência do teatro en- ntendida como tentativa "experimental" de excluir a reificação (algo que
quanto xp rimento coletivo (entre os soviéticos e Piscator, e saltando do as outras artes, desde romances e filmes até poesia, pintura e performance
111'1oclo de Weimar para o da Alemanha Oriental) como algo radicalmente musical, mesmo a performance aleatória, estão estrutural e materialmente
li v -rso d teatro como expressão ou experiência, mesmo que muitos dos menos qualificadas a fazer).
fil ind 'S xperimentadores teatrais modernos - completamente diferentes Vinculo esse espaço ou dimensão brechtiana adicional à persona chinesa,
d' li!" ht em seu misticismo e seu ascetismo minimalista - também sacrali- não apenas por causa de algumas formas experimentais do Leste Asiático
11'111
S 'li trabalho como a emergência de uma nova coletividade ou o renasci- (particularmente o trabalho do Nô japonês, que também estimulou Yeats
1111'1110
ti uma sociedade utópica. Brecht nos dá tudo aquilo sem as nuances e Pound), mas principalmente porque se trata de uma característica assim
11,1
Iglosas e como um nível alegórico no interior de um exercífio prático, nos como de um espaço distinto." Característica no sentido em que uma es-
qunls n mesmos estamos envolvidos. pécie de exotismo e historicismo libidinoso funciona como indumentária
'trabalho de colaboração, práxis coletiva: a esses dois traços ou novos ní- teatral para a imaginação de Brecht: não voo, mas estilização, e a amplia-
veis da empreitada brechtiana podem ser acrescidos mais dois, não tão espe- ção do possível e de suas imagens; o que Kenneth Burke explicaria como
t 1,llizedo quanto parecem, que são o Brecht chinês e o Brecht experimental: produtividade da pura cena enquanto tal, seu desdobramento em uma va-
ind 'pendente do que se pensa de A decisão, por exemplo, esse texto inspirou riedade de gestos e ações de romance. Mas distinto por causa do espaço
os 's~ rços direcionados a novas formas desde sua origem; enquanto a re- cultural e da visão de mundo chinesa - algumas vezes associada aqui a
11~'tloentre gestus e música é uma outra área experimental, mais pervasiva, uma história propriamente camponesa e pré-capitalista -, paradigmáticos
1 própria teoria do estranhamento em si - o efeito- V - tende a transfor- da expansão da obra de Brecht, em última análise, em direção à meta física
mar até mesmo as peças mais convencionais de Brecht (Terror e miséria do ou visão de mundo. Foi uma estratégia sábia e sutil: pois em todos os âm-
'ter eiro Reich, por exemplo) em nada mais do que o experimentalismo de bitos do moderno a própria ideia de uma visão de mundo ou de metafísica
foi a primeira perda fatal da modernidade. A primeira torna-se uma obses-
são particular ou um passatempo pessoal, inspirando um cabo de guerra e
uma tensão interna entre nossa tentação de momentaneamente acreditar
14 Darko Suvin, "Politics, Performances and Organizational Mediation', in To Brecht and Be-
yond. Nova York: Barnes & Noble, 1984, pp 83-111. Os inúmeros trabalhos de Suvin sobre (eles não confiarão mais em mim, Rimbaud preocupava-se em seu leito de
IIrecht e sobre o teatro mundial têm sido de inestimável valor para mim, assim como sua
rxcmplar combinação de paixões: Brecht, ficção científica e utopia. 15 Ver a este respeito Darko Suvin e também Antony Tatlow.

29
IIHII['"n ,INlIlllllOlIIOIlOSS.I 11H'111 'IH, 11' I Ul'lh, I '111 I.IIWlt'lIll' 011 m Rllk
Mil' 1,,1 uuu o uu tll'II11dl,Itl'1"1'ltll'xlstl'
VI'I um 'si, lima m nada lcib-
de falo 1110J11cnlaniam ntc lransform LI os dois '111 prol .tas) c nos 'a LI
11li 111\ '1\1' ,I stllH 'pu, " 111' li, () ti 'v riu s 'r apr .ssadamente relacionada
pila de que os "sistema" deles são pouco mais do que racionalização p ico- 0111 ti 'XI 'rim -ntultsmo ou .om a .hina: é qu eu chamarei de Brecht
lógica e psicanalítica, se é que não são a mais pura ideologia social. Herme-
hlll~,1~1"11I1(). 11m pai O onvcn ionalmente referido como aquele no qual
nêutica da crença, hermenêutica da suspeita: a opção suspende-se quando 1\,', ht s16. d 1928 em diante, "aprendendo marxismo" de seu "professor"
o próprio Tao abre-se em torno de um escritor ocidental cínico e secular !"IrI I MS h. N s e palco ele está lendo O capital e congêneres, estudando
como Brecht, que não se pode presumir que creia nessa "visão de mundo" li npr priando dos conceitos." Mas prefiro a referência a Balzac, porque
imemorial naquele sentido, mas que a toma como aquilo que Lacan teria 11 'si O a problema da doutrina (o que era o marxismo para ele? Quando ele
chamado de um "tenant-lieu", algo que garante um lugar para a metafísica "t0I"l10U- e" marxista? Quando tentou incorporar ideias marxistas em seus
que se tornou impossível. Assim, não a "filosofià' do marxismo exatamente
trnbulhosi etc.) para o problema muito diferente que é o da representação do
(pois tal filosofia teria imediatamente retrocedido à categoria de visões de
pr prio capitalismo: como expressar o econômico, ou melhor, as realidades
mundo degradadas de cujas características tratamos acima), mas antes o pc uliares e a dinâmica do dinheiro como tal, na e por meio da narrativa
que tal filosofia poderia tornar-se em um futuro utópico (como também
IJt rária. A política nos acompanha desde o início dos tempos, juntamente
talvez com o ainda-não-pensado do Ereignis pré-socrático de Heidegger).'7 0111 o poder e suas vicissitudes: o dinheiro na forma de riquezas - ouro,
Entretanto, a teatralidade de Brecht salva sua sinité até mesmo de sua provi- nd mos, edifícios monumentais - é também uma realidade antiga, ainda
soriedade: basta imaginar uma volta real ao confucionismo na China atual
que decorativa. Mas a economia no nosso sentido moderno - o da perpétua
(ou uma oposição real àquele confucionismo em nome de Mo- Tsé, ainda
Iransformação do dinheiro em capital, assim como a descoberta dos modos
mais próximo do próprio Brecht) para compreender a diferença. Antony I elos quais o dinamismo capitalista circula através da política moderna - é
TatIow mostrou-nos como podemos utilizar a China de Brecht - nem como
um fenômeno tão novo como Adam Smith; sua teoria fundamental rapida-
um estereótipo kitsch nem como um esterótipo concretamente histórico _
mente se desenvolve ao longo dos três quartos de século entre o Iluminismo
como uma maneira inserida na alteridade radical da cultura chinesa que . cocês e a obra do próprio Marx. Assim, Lukács estava certo em privilegiar
torna esta última "útil" para nós e não apenas no nível historicista."
se imenso predecessor, mas pelas razões erradas: não porque Balzac era

16 Enid Starkie, Arthur Rimbaud. Nova York: New Directions, 1961, p. 429.
17 Para uma visão marxiana do "pragmatísmo" de Heidegger, ver "Heidegger e o Nazismo';
particular Po chu-yi, segundo sua própria imagem. Fica sugerido que, sem conhecer chi-
de minha autoria, em Valences of the Dialectic (Londres / Nova York:Verso, 1999). A noção
nês, as versões chinesas de Brecht são muito mais fiéis aos originais que as de Waley,já que
de Ereignis é entretanto o centro da obra póstuma Beitrdçe zur Philosophie (Vom Ereignis),
Brecht instintivamente devolveu-Ihes as dimensões sociais e os detalhes que (de forma
volume 65 das Gesamtausgabe de Heidegger (Frankfurt: Klosterman, 1989).
igualmente instintiva, sem dúvida) Waley omitiu.
18 Devo aqui expressar meu débito particular com o trabalho de Antony Tatlow em geral,
19 Os materiais relevantes que sobrevivem podem agora ser encontrados em Karl Korsch,
mas especialmente a sua obra-prima The Mask ofEvil (Bem: Peter Lang, 1977), que discute
Gesamtausgabe v. 5. Krise des marxismus: Schriften 1928-1935, editado por Michael Buck-
a dívida de Brecht com a poesia e o teatro da China e do Japão e com a filosofia chinesa
miller (Amsterdã: Stichting beheer IlSG, 1996). Para uma interessante discussão das re-
de uma forma ampla, rica e sugestiva, acadêmica e sutil. Cabe também chamar a atenção
lações possíveis de Brecht com o Círculo de Viena e o "empirismo lógico", ver também
para o livrinho intitulado Brechts chinesische Gedichte (Frankfurt: Suhrkamp, 1973), cuja
Ulrich Sautter, "Ich selber nehme kaum noch an einer Diskussion teíl" Deustche Zeitschrift
tese alarmante, porém extremamente plausível, desenvolve-se assim: sabemos que Brecht
for Philosophie, v. 43, n. 4, 1995, pp. 687-709. Finalmente, para este e outros detalhes biográ-
traduziu de Waley, um poeta de fim de século que remodelou os originais chineses, em
ficos, devemos a Wemer Hecht pelo soberbo Brecht Chronik (Frankfurt: Suhrkamp, 1997).

30
31
um realista (qualquer que S 'JtI o si 'Ilifi tido do (l'fIItO), 1ll'1ll pro I/, .sslstn ,'" , "/11'\ 111 1111/11 iulu I IlIlI I mhu 11111 \ ti 'SUIS 111 -Ihor 'S que ela omite
(ele era mesmo um horrível tory) , mas porque .lc ( 'I1(Oll ln lulr u ", onomia" \I "d 'li (' li IIl'((' j"llt 11 ('111 1111" 'lIdl'l' o que j~)ihistoricamente singular na
(no mesmo sentido que Pound dá à definição do épico 01110 um "poema polI! I( 1\ 'si>' '/fi 'I do nazismo para eles. Mas talvez isso seja precisamente o
que inclui a História" e, como se sabe, a ideia de "História" de Pound real- li li!' \ '1Illltlll nazista de Br ht tcm a oferecer-nos: uma Alemanha nazista
mente inclui a "economia" em algum sentido moderno ainda que idiossin- d" vldu cot idiana e precisamente daquela banalidade do mal que tornou tão
crático). Assim o estudo que Brecht empreendeu de Marx - como discípulo dlH '11P insar Eichmann." A Alemanha de Brecht é, antes, aquela na qual
de Korsch, mas ligado aos assuntos americanos, como a História das grandes \) 11 izlsrno é semelhante a todos os regimes conservadores de toda parte
fortunas americanas, de Ida Tarbell e Gustavus Meyers, que reúne uma série (' 10 próprio espírito da repressão tal como adormecido numa população
de anedotas econômicas - voltou-se muito aos problemas da representação 11 ' [ucno-burguesa. Não aparece sequer o não Holocausto do puro massacre
na narrativa tal como se pode ver em suas obras-primas, A Santa [oana dos étnico (como vimos em toda parte, da Iugoslávia à Africa Central e Índia),
matadouros e A ópera dos três vinténs. Não se trata de sugerir, como fre- mns simplesmente a "mentalidade" de um povo que deu boas-vindas ao con-
quentemente fazem os "revisionistas", que o Brecht posterior, preocupado N .rvadorísmo radical nazista e seus prazeres espetaculares (Nurernberg) e
com temas outros que não este, específico da representação, não é mais mar- d 's nvolvimentos modernistas (volkswagens, televisão, a Autobahn). Aquela
xista, mas apenas que essa é uma camada ou mônada específica em sua pró- v .rdade mais profunda, não de ódio, mas de ressentimento do qual a vio-
pria acepção, em comunicação com as outras, ainda que em sua própria se- I n ia pode surgir com tanta certeza quanto as mais dramáticas ou "nobres"
~ miautonomia e mesmo em sua própria moldura temporal específica. c m ções. Essa "miséria alemã" não deve, então, ser decomposta em alguma
Novamente estamos diante de camadas ou mundos monádicos que são Imagem culturalista da Alemanha como uma tradição histórica singular e
\

históricos em algum sentido cronológico: os anteriores sobrepuseram mui- enigmática, deve, antes, ser generalizada e transformada em parte de nossa
tos estágios da vida de Brecht, mas o exílio e Hitler vieram juntos abrupta pr pria autoanálise nacional, da nossa própria crítica da autocrítica, se é que
e catastroficamente. Entretanto, eles devem ser separados, pois há uma vida 11 ruma vez estivemos preparados para confrontar-nos com tal coisa.
brechtiana com Hitler e outra numa Alemanha hitlerista que ele próprio Passemos então para a outra face do período Hitler, a do exílio, que
nunca vivenciou, o que é significativo e singular, por sua vez, e que pede ti ve ser separada em duas "camadas" distintas: a figura generalizada de um
um exame detido. As reminiscências do nazismo e o fascínio pelo Terceiro Hrccht-em-movimento, de um Brecht-no-exílio, à medida que ele cruza a
Reich não foram passageiros no Ocidente, como demonstram os filmes e ()inamarca e a Suécia, a Finlândia e a imensidão da Rússia de Stálin e em-
biografias do pós-guerra: sua forma atual, contudo, em um momento em barca no S. S. Annie [ohnson, em Vladivostok, desembarcando alguns meses
que a geração do Holocausto está praticamente extinta, envolve uma volta mais tarde com sua família no ensolarado porto de San Pedro. Ao mesmo
àquele momento e um intenso esforço de reimaginá-Io, e isso em um tempo l .rnpo temos a figura bem mais nítida de Brecht em seu exílio americano,
em que, mesmo entre os netos - a juventude politizada dos anos 1970 -, lI!TI Brecht -na -América,' que estranhamente resgata toda a iconografia e
a memória na própria Alemanha dos anos Hitler extinguiu-se (e agora foi
substituída por uma obssessão com a DDR). Brecht não pode ajudar-nos em
).tI A referência é a Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do
nenhuma dessas coisas, pois a sua Alemanha Oriental não era a das atuais
mal [1964], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
obssessões como a Stasi; tampouco Brecht tratou do Holocausto enquanto 11 Título do trabalho definitivo de [ames K. Lyons (Princeton: Princeton University Press,
tal. Na verdade, a principal crítica de uma peça como Os cabeças redondas 1980).

33
'XOtlSlllOum 'ri 'unos que s .u trabalho r gislra, da W '111111
do 11\(1li) () -m 11111111"
11\ II'volll\ \111 I PIIHtl"\ 11,111 dlst \: lIll1~'spn~o "produtivlsta" e anti-
diante (num momento em que a América real, mais do qu 'li 'U '1'1'I I' ,til, não 1111111111.
ti \(1111dglllll lOl1SellSOpopullstn . niv .lador - democracia autên-
poderia ser imaginada como existente). til li, IglI,lI!!ItI ' V 'rd id -1I'lIduranl '<11rum t mpo - e no qual a imensidade do
Temos que inventar para nós uma posição (talvez lacaniana) na qual nos "1H'I't'st Ido, mal assurnlnd sua verdadeira forma geográfica no Imaginário
disponhamos a entender que esses Estados Unidos imaginários também são 111'li, 1110,por um longo momento entra e vive na História. É importante
a realidade americana de Brecht: dos furacões, gângsteres e cadeira elétrica, .nd 'r qu Brecht nunca conheceu, nunca viveu esse momento, como
111111[11"
e assim por diante, até Hollywood: dgllll1 mutante reino visionário que não lhe foi dado vislumbrar, para que se
i onformasse com a deprimente materialidade dos anos 1930/1950, com seus
Por aqui IlIlis lU' duvidosos "anjos" (vejam-se as Elegias de Hollywood). Não sabemos
As pessoas chegaram à conclusão de que Deus, 1IIIIltOb m como Brecht encontrará um lugar nessa história (literária) pro-
Precisando tanto de um Céu como de um Inferno, não precisava 1" 11111nte americana, pela simples e boa razão por que nós mesmos ainda
Planejar dois estabelecimentos mas 11\O I' uperamos inteiramente os nossos anos 1930 e essa história ainda não
apenas um: o Céu. Ele ". umiu o seu devido lugar em nosso Imaginário." Não podemos portanto
Serve o impróspero, o fracassado . onvldar Brecht a adentrá-lo, mas o faremos algum dia, se bem que não em
Como o Inferno." 11111
\ posição puramente honorífica, na medida em que seus textos ame rica-
IIlIStambém nos pertencem.
Essa camada, na passagem da luta sindical e da Depressão para o período E assim por diante até o final, na Alemanha Oriental e a DDR, em Berlim
macarthista do pós-guerra, contém uma temporalidade estranha para os I St LInovo / velho teatro, para a construção socialista (parece que os admi-
americanos, como se os anos 1930 tivessem durado essencialmente até o fra- I ulorcs soviéticos de Brecht, entre as forças de ocupação, o impuseram aos
casso da campanha Wallace, o fim da velha esquerda americana, o início da vl'l iranos comunistas alemães que retomavam da guerra). Um amigo íntimo
Guerra Fria, a lista negra, e o novo boom ocorrido no pós-guerra (quando ti ' HI' cht, arquiteto de alguns conhecidos monumentos da Berlim Oriental,
as encomendas de peças de reposição acumuladas durante a guerra se es- I ontou-rne que Brecht voltou à Alemanha, à cidade que em pouco tempo se
gotaram e toda a nova e inumerável parafernália doméstica inundou o mer- tornaria a capital do novo Estado socialista, "não apenas com novas ideias
cado, juntamente com os novos subúrbios e o imenso sistema de rodovias [l 11'<1
o teatro, mas com novas ideias para tudo": leis de trânsito, por exemplo,
federais que os torna possíveis). Então começam, não os anos 1940 (que são I' planejamento urbano, taxação e coleta de lixo, o ideal utópico da condi-
omitidos), mas os anos 1950 e a era Eisenhower. Ou talvez seja melhor di- ~ o urbana e agrícola do cidadão socialista, e o papel da própria cultura nas
zer que os anos 1940 desenrolam-se em um espaço completamente diferente, políticas do novo Estado socialista que, no coração do marxismo no país
um mundo substituto deste outro, real, dos anos 1930/1950, coexistente ou
simultâneo a ele: é a América da guerra, uma América verdadeiramente utó-
/1 Para uma estimulante iniciação, no entanto, ver Michael Denning, The Cultural Front
pica em que é a própria Segunda Guerra Mundial que se torna o "equivalente
(Londres: Verso, 1996). A malfadada visita de 1935-36 aos Estados Unidos por ocasião da
Igualmente malfadada produção do Theater Union de A mãe é obviamente o primeiro
22 B. Brecht, "Hollywoodelegien",in Werke, v. 12, P.115; "Hollywood Elegíes', in Poems 1913-1956, ontato com a América, mas antes em uma Nova York de esquerda do que com a direita
op. cit., p. 380. na Hollywood comercial.

34 35
que Lênin considerava o mais avançado em direção ao 50 lallsmo, c apc ar 11.1 , \1I1,,(,~.1I111I0VIIIIH1I1l'.h'lIl I 111I, \'1-\111'
li OU 110ln 'orri rlv 'I otimi mo

das vacilações de uma liderança partidária mesquinha, seria de esperar que ti, em Nov I VOII, o v -lhu Mlke
111111111\11 ;old mant vc a fé até a véspera de

acertasse o passo para o futuro. Eis por que os últimos anos de Brecht de- tvlillll ti ' 111M. I lcnrl l.cíebvr insln LIn qu a História avança com seu

vem ser considerados à luz da construção do próprio socialismo, apesar das 1'1111I • ~11I' '1:1a n» I 01' mci de atá trofes mais do que de triunfos. Por-

campanhas de propaganda nas quais ele foi chamado a participar (especial- I 1,,10,o vcrdad ir dialético - do qual Brecht, precedido pelos antigos filó-
mente nas campanhas pela paz e pelo desarmamento, presididas pela pomba "Ios -hlncs s, é cmblemático - sempre se dispõe a pacientemente esperar

de Picasso, e justapondo Galileu e Oppenheimer), mas talvez, incluindo de Iwl.Is r ivlrav Itas da evolução histórica ainda que em meio à derrota:

modo mais central o que podemos agora chamar o "levante plebeu" de 1953,
que o próprio Brecht tinha de alguma forma "reescrito" por antecipação em I ,I' insinou] que ao longo do tempo o movimento da água ondulante

seu Coriolano. V '11 crá a pedra mais forte.


Nesse ínterim, no que diz respeito ao socialismo, precisamos aprender () que é duro - você compreende? - deve sempre ceder,"

a ler um maoísmo subjacente naquilo que mecanicamente se costuma de-


signar por "stalinisrno" de Brecht (simplesmente com base no fato de, como Pil n se tentado, é verdade, a acrescentar um significativo anticlímax à for-

Althusser, ele ter permanecido ligado - por boas razões - ao partido, e dei- IlIlIlI p stuma de Brecht, que já começou em sua vida com a lendária visita

xando de lado o fato de que, ao contrário de A1thusser - e provavelmente 111Teatro das Nações em 1954 (Mãe Coragem e seus filhos), seguida de tem-

por razões igualmente boas -, ele próprio nunca foi oficialmente membro poradas triunfantes pelo mundo de uma companhia teatral já inflada (como

do partido). Mas é o socialismo na China no final do século xx, assim como IIS grupos cubanos hoje em dia) pela aura devida ao bloqueio e às sanções
I

na Rússia do início: assim como Lukács e outros membros assimilados e mal IIlpl máticas. Nesse "Brecht" dos anos 1960 e 1970, três condições concor-

informados do círculo de Weber em Heidelberg, incluindo o próprio Weber, 1\'/11para estabelecer uma reputação singularmente "brechtiana". Para um

atribuíram o entusiasmo pelo surgimento histórico ímpar de um Lênin às público burguês submetido a uma dieta de minimalismo teatral, tinha que

tradições da "alma eslava" e a um misticismo russo dostoievskiano, também h,IV r algo de shakespeariano nos extravagantes figurinos e cenários, e em

aqui, com muito mais razão histórica, a imensidão histórica da revolução I -xtos que incorporaram o repertório do mundo inteiro (do Nô a Moliere,

de Mao Tsé- Tung fica imediatamente associada ao caso chinês e às várias do próprio Shakespeare a Beckett, quando não aos épicos chineses e à saga

formas de sabedoria cíclica e camponesa associadas por Brecht à filosofia dos gânsgsteres de Chicago), não foi difícil fazer de Brecht, por algum tempo,

clássica chinesa e à poesia. "11 maior dramaturgo do mundo". Para a esquerda, uma teoria completa, com

Com isso concluímos nossa enumeração semibiográfica dos mundos, ou ('S 'ritos sobre estratégia e política, que podia ser adaptada a outros veículos e

mônadas, do material histórico que recobre "Brecht" Tudo isso agora reco- t uações (a realização de filmes "brechtianos", por exemplo, por um Godard,

lhe-se na pura celebração da própria mudança, sempre entendida como re- para não se falar das histórias "brechtianas" de Kluge, ou mesmo da pintura

volucionária, como a verdade interna da revolução. Isso é o que os dialéticos "da arte brechtianas de um Beuys ou em um Haacke), com a vantagem de

sempre entenderam e mantiveram em seus corações: eu penso em Lukács


em Moscou, pacientemente suportando a perspectiva de uma vitória alemã J I B. Brecht, "Legende von der Entstehung des Buches Taoteking auf dem Weg des Laotse in
iminente e uma hegemonia nazista estendendo-se por toda a Europa, com die Emigration", in Werke, v. rz, p. 33; "Legend of the Origin of the Book Tao- Tê-Ching on

a previsão de que mesmo dentro do gabinete vitorioso de Hitler a luta de l.ao- Tzü's Road into Exile'; in Poems 1913-1956, op. cit., p. 315.

37
permitir o retorno à velha mbina ,0 I r stnllnls! I di' v 1I1P.llll1dI 'poli
tica, embora ao mesmo tempo reafirmasse a posi t 111(\ls01'10 loxu sob r '
suas posições políticas. Quanto ao Terceiro Mundo, finalmente, o aspectos 1'11\'l\' qu '() Ir I~() Ilsllllllvo \'111.qulvoco d trabalh de Brecht só pode ser
camponeses do teatro brechtiano, que abriram vasto campo para a bufonaria di'. \ 1110 'J)) Gil' rorins dúbias, prin ipalmente as relativas a estilo, ideias e
chapliniana, para a mímica, a dança e todo tipo de encenação e performance c 111'do, que .xarnlnar m a eguir. Assim, em primeiro lugar, há um estilo
pré-realista e pré-burguesa, asseguraram a Brecht a posição histórica de um 111 I htiuno 6bvi ,para o qual a expressão "desvio de frase" (o sentido próprio
catalisador e de um modelo adequado para a emergência de muitos teatros I k Iropos, na m dida em que são detourné, sequestrados e desviantes do dis-
"não ocidentais" do Brasil à Turquia, das Filipinas à África. Três tipos de ne- \ urso .ornum) é muito adequada. Entretanto, "assim como a linguagem está
cessidades foram, assim atendidas: a da inovação teatral e teórica em um pe- If('sl lado da literatura', nos diz Barthes:
ríodo particularmente ávido de novas teorias e modos de encenação, após a
guerra (como testemunham todos os grandes experimentos teatrais, de Peter da m ma forma aquilo que chamamos estilo está quase além dela: imagens,
Brook a Grotowski, do "revival" de Artaud à migração de grupos teatrais na- uma certa maneira, um léxico, todos surgem pouco a pouco do corpo e do pas-
cionais de todo o mundo, particularmente onde a renovação de um cinema sado do escritor por tornarem-se os próprios reflexos da sua arte [... ]. O estilo
"new wave" não apresentou um concorrente à altura, seja de natureza econô- I..,I tem uma dimensão meramente vertical, mergulhando na memória secreta
mica, seja de natureza artística); a de um novo tipo de literatura e de política do sujeito, construindo sua própria opacidade a partir de uma experiência única
'I agitprop após a estéril execução de formas jdanovistas em alguns países, bem de assuntos [... ] seu segredo é uma lembrança confinada ao corpo do escritor."
como uma renovação das tradições ricas e múltiplas de arte de vanguarda
que precederam a consolidação do poder de Stálin; e, finalmente, a das pos- M \5 e é isso o estilo, a marca de uma subjetividade singular, como uma
sibilidades a serem exploradas pelos povos descolonizados experimentando mpressão digital ou o som de uma voz familiar, então o trabalho de Brecht
novas vozes, para os quais o exilado e itinerante Brecht foi não eurocên- pod ser observado lentamente ao longo dos anos a partir da eliminação
trico a ponto de tratar seu próprio país como se fosse de Terceiro Mundo. di' tudo isso, arquivando ou absorvendo tudo com o mínimo possível de
Visto que essas situações não existem mais, e que Brecht, de qualquer forma, u-síduos: as cores desbotadas da poesia antiga, o tom desbotado do estilo, a
conheceu um momento de sucesso literário mundial concedido apenas a pl xlileção por palavras como fahl [pálido], e aqueles temas correlatos dos
uns poucos, costuma-se hoje em dia reclamar de "cansaço brechtiano" e per- I urpos afogados e o lento movimento na água aos quais já nos referimos ...
guntar como continuar sendo brechtiano, enquanto outros perguntam se ludo isso forma constelações temáticas e estilísticas que se decompõem sob
é possível continuar sendo marxista, ou mesmo socialista, após 1989. Mas II I 'Ú matinal; e os resíduos permanecem.
provavelmente essa fadiga tem mais a ver com a última série de Brechts, a do
estereótipo desenvolvido durante os anos 1960 e 1970. Desconfio que encon- Junto ao lago, entre pinheiro e álamo
traremos muita coisa nos outros, e em algumas das suas interseções menos Protegido por muro e sebe, um jardim"
comuns, para nos manter não apenas ocupados, mas sobretudo interessados.

Roland Barthes, Oeuvres completes, v. 1. Paris: Seuil, 1993, pp. 145-46.


" 11.Brecht, "O jardim de flores'; in Poemas 1913-1956, op. cit., p. 325.

39
Deixando uma casa com fumaça crgucnd -s de sua h'lIllll1": uln e
111111"11110 O IIIVc'111110.I IlIlplll. 111 1.1111gins It.o p 'I1St\11l .nto 'a ão
'11I.. 11110.IIOS.ON une t'iIO/i do verbal.
'111I11111
A pequena casa entre árvores no lago. 1',111
Il'l,llIlo, h uns on -11)$ r 'Ióri O n sentido mais estrito que pa-
Do telhado sobe fumaça II I c'lIl uproprlndos: o d ironia, p r x rnplo, enquanto categoria que com-
Sem ela Illc'c'lld ' as vari xlad da a u ação, do sarcasmo, do paradoxo cínico e da in-
Quão tristes seriam cI o N:\'lIZ, qu frequentemente encontramos em meio às frases de Brecht.
Casa, árvores e lago." I) c011. .no de ironia traz ainda uma dupla vantagem: é uma das estraté-
I11 I'dóri as que se considera um tropa no sentido estrito (ou no sentido
Os objetos que até aqui exprimem a Weltanschauung do corpo tornaram- 11"lIs p6s- ntemporâneo, como em Paul de Man) ao mesmo tempo que,
-se o conteúdo do último verso; o estilo anterior deixou de ser um meio e I muo lima atitude mais geral, ele tem sido atribuído de preferência à visão
agora é algo que a própria línguagem interroga e produz como um objeto, dc' mund de todos os grandes modernos, ou pelo menos foi uma parte
como Althusser diz da ideologia artisticamente incorporada." É uma tra- luudurn ntal da ideologia do modernismo até que começassem os ataques
jetória muito diferente daquela que Barthes tinha em mente, dos grandes \ II.1ISaçÕesde obsolescência histórica no período pós-moderno. Assim, o
escritores modernistas e poetas cuja própria vocação estava no aprofun- . I ni O alemão" (a caracterização que Erich Heller faz de Thomas Mann, que
damento de tais maneirismos verbais instintivos e em sua fiel e pertinaz IC11m n te fez da ironia um fetiche) disseminou a influência dessa categoria
procura de conjuntos extremos de palavras não habituais e bem distantes 1'01' I da a literatura moderna durante algum tempo; e a atitude irônica fi-
da linguagem comum. c1111amosa por fazer de tudo, desde preservar o frescor da linguagem como
Se o estilo é então uma categoria que ameaça nos levar de volta à subje- " ( orno em T. S. Eliot) até distanciar as posições indesejadas e demasia-
tividade para atingir sua explicação suprema, talvez a retórica seja mais con- .Inmcnte políticas, que a ironia permite hoje endossar e repudiar ao mesmo
veniente pois, precisamente ao contrário do estilo, a retórica visa à exterio- IC'l11pO.A ironia de Brecht certamente não é esta, e sim aquela "ironia mais
ridade e busca influenciar seus possíveis públicos, como qualquer literatura \'\1, vel" e limitada que Wayne Booth procura diferenciar da Weltanschauung
política, pública e antissubjetiva por princípio deveria fazer. Talvez, então, \1. ral moderna e irônica a que acabamos de aludir,'? Porém, quanto mais
no sentido mais amplo da palavra, haja uma retórica brechtiana de ambi- IInzemos a ironia de Brecht para a velha retórica fora de moda, menos o
I ções tão amplas quanto as de Aristóteles, que busca o Bem na sua suprema I onceito é capaz de fazer o trabalho descritivo que o conceito de estilo pôs
forma clássica de cidade-estado, e sobre a qual Heidegger disse que deveria \( nosso alcance e mais a "ironia" nesse sentido retórico se torna uma pro-
I
ser "apreendida como a primeira hermenêutica sistemática da vida social pri dade da própria Weltanschauung de Brecht, (se é que ele tem uma) ou no
cotidiana".» Nesse caso, será algo um pouco mais abrangente do que marcar I\línimo um aspecto das suas demonstrações teatrais.
Em qualquer dos casos, resgatamos Brecht de uma noção convencional
ti ' modernismo (o estilo singularmente subj etivo, a atitude caracteristica-
27 Id., "A fumaça': in Poemas 1913-1956, op. cit., p. 330.
111 nte irônica), mas, por isso mesmo, ficamos impossibilitados de caracte-
28 Ver Louis Althusser, "Letter on Are: in Lenin and Philosophy. Monthly Review, Nova York,
1971. r lzar uma distinção na sua linguagem que todos reconhecem, até os estran-
29 Martin Heidegger, Sein und Zeit. Tubingen: Niemeyer, 1957, p. 138 [ed. bras.: Ser e tempo, ed.
bilíngue alemão e português, trad. Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes, 2012]. 10 Wayne Booth, The Rhetoric oi Irany. Chicago: The University of Chicago Press, 1974.

40 41
gcíros: a se ura, a isplrttuosldndc a lronln. 'Iuls quulldud 'I' li 'SSl' uso da I I I d, 1" '1\1" 1i 1110111001110 ho 111110.. 11'1111I
I', tllosofin .spc ulativa
linguagem nos tentam a acrescentar Brc ht à lista que Nictzsch fez (em (, 11111"I dlll' 101" 111111'1
I 1111
111\ qu 11O pl''lprio liHol foi treinado, mas tam-
espírito relativamente antialemão) dos melhores livros alemães (a Bíblia de I•• 111,di 111\1
outro ponto dl' vlsíu, essas afirma' e se vinculam ao Círculo de
Lutero e Conversas com Eckermann, de Goethe). Isso eleva a análise estilís- I 1\ I do 1111
il llr ht I .riv li algumas atitudes filosóficas via Karl K rsch):"
tica até uma leitura alegórica e "geopolítíca" na qual os próprios atributos da IIH.IIII I 1,11111m a um imagi mo geral na literatura, que (muito mais am-
linguagem constituem uma ácida reprovação aos conterrâneos do autor que 1,111111'111'
qu ' O ba tante estreito movimento hulmiano ao qual essa desig-
escolheram o fascismo, mas cuja rusticidade também é sinal, do século XVIII 11.1\10 111ItI 1111a aplica) marcou o sentimento de alguns escritores mo-
em diante, de um certo atraso "terceiro-mundista" ("Mantenham-na rápida, ti, 11111'ti 'qll , geralmente, a ideia no texto era um tipo de corpo estranho
leve e forte': recomendou ele à Companhia a caminho da Inglaterra pouco tI"I' lals idcias "literárias" demandavam precauções especiais e, no limite,
antes de morrer, lembrem-se de que estrangeiros consideram nossa arte "ter- 1111\ ISOS mai extremos, exigiam ser rastreadas e eliminadas por completo
rivelmente pesada, lenta, laboriosa e pedestre")." Assim, nos termos deste ou ( dlK" o não com ideias, mas com coisas"). Essa atitude literário-ideológica,
daquele enfoque estilístico ou retórico da linguagem, emerge uma interpre- '1"1' trun forma o problema da relação entre conceito e literariedade numa
tação que muda as marchas e nos repõe em um nível diferente, o da Haltung l"III\l1 problema crucial e tópica (e que por consequência tende a impedir
[postura], da inter-relação coletiva ou da arte simbólica, da "retórica" no sen- '11I1Ipl'lamente o didatismo), foi talvez formulada em termos inesquecíveis
tido social e relacional ou do "sentido" e "interpretação", em algum código 11\I'nnde celebração que Eliot faz de Henry [ames: "Ele tinha uma mente
que transcenda o meramente linguístico ou verbal. I ,I fina que nenhuma ideia podia violá-Ia"> Entretanto a forma-solução em
Portanto, aquela dimensão do trabalho de Brecht, que é o sentido in- 1111'1
ht videntemente envolve uma combinação que foi evitada pelos outros
terno ou simbólico de sua linguagem ou estilo, pareceria reter uma distinção IllOd irnos - uma escolha de imanência em lugar da transcendência, mas, no
própria, embora suscetível de formulação em pelo menos duas outras áreas. ,11 uso, é uma postura didática ou pedagógica que nos outros está de todo
Assim, podemos sentir que o que dá à linguagem seu sabor singularmente 111'.nte -, desdenhada mesmo pelos outros modernos, ou assumiu formas
brechtiano é um modo estritamente brechtiano de pensar; se não, em úl- '1"1' não foram suficientemente examinadas. É assim que a Haltung professo-
tima análise, o formato do gesto - para não dizer o gestus - dessa linguagem 1,11'i nveterada de Pound é posta de lado como secundária e insignificante
considerada como um ato simbólico no sentido próprio. Essa terceira possi- (I om base na excentricidade de sua economia, seu confucionismo etc.). Mas
bilidade leva-nos à formação do enredo em Brecht, e dos traços "distintivos" \I próprio Eliot é, aqui, um caso interessante, pois, ao mesmo tempo que um
e "supremos" (para continuar usando os nossos Leitmotive) que marcam a I itolicismo padrão e um conservado ris mo monarquista neutralizam o con-
construção de uma cena de narrativa tipicamente brechtiana, ou de uma n-údo das ideias, tornando-o convencional, respeitável e portanto invisível,
apropriação e transformação brechtiana da narrativa de outros. h, '111Eliot, em larga medida, uma postura fortemente didática, não despro-
Passando para nossa segunda área, então, a alternativa de uma doutrina i Ia de analogias com a postura do próprio Brecht. Assim, Eliot tem uma
distinta, podemos fazer uma pausa para relembrar as observações revelado- t' unda observação curiosa, uma segunda lição, igualmente instrutiva para
ras de T. S. Eliot, nos primórdios do movimento moderno, sobre a relação
entre "idéias" e textos literários. São afirmações que pressupõem uma atmos-
\J Ver nota 16.
I I T. S. Eliot, Se/ected Prose, ed. Frank Kermode. Nova York: Harcourt Brace [ovanovich, 1975,
31 W Hecht, Brecht Chronik, op. cit., p. 1249; J. Willett, Brecht on Theater, op. cit., p. 283. P·151.

42 43
nós no presente contexto; ela se encontra no sugestivo ensaio sobre William li" IIIIHIIIH'II IIVIII .• 11, 1111 ti 's 'ngana-
IIIIH'IIII' 110, dl'~pIOI-\l'"\Il111rIl10S,
Blake, no qual ele trata da filosofia desse autor, observando secamente: I" 11"1Illv.IIIH'III' dI' OIlV'I lidos; O p.ISSOse ruinte o engajamento simi-
I li 1111110.1
,'si' Ou qu 'lI.' 'S ritor mod rn , p nt no qual todo o processo
Temos pela filosofia de Blake o mesmo respeito [... ] que temos por uma en- ('1" IIlt "li lulmentc mod rnista) se repet . Qualquer que seja o valor dessa
genhosa peça de mobiliário caseiro: admiramos o homem que as engendrou a d. til, o .spo If ::I, vale notar que o próprio Eliot propõe a detonação dela
partir de toda a miscelânea doméstica [... J. Mas não estamos tão afastados do " t umcndu lima trutura bem diferente para o trabalho do poeta ou do
continente, ou mesmo de nosso próprio passado a ponto de perder as vantagens u Il 1.1:\I 111 onjunto de ideias aceitas e tradicionais que o impediriam de
da cultura se as desejarmos." 1.11"1 011 S - es a uma filosofia própria"> - o que significa, no seu caso, a
11.11111,
.10 atólica romana tal como preservada nos rituais da Igreja Anglicana.
"Cultura" aqui significa para Eliot um corpo doutrinário já amplamente M 'IS precisamente essa proposta, de neutralização da incompatibilidade
aceito e mesmo institucionalizado, e cuja "vantagem" para o escritor é tornar 1111' onteúdo ideado e linguagem poética, que nos permite ver a questão
óbvia a necessidade de desviar uma parte considerável de energia criativa dll p -nsarnento e do sentido em Brecht sob nova luz. Pois o equivalente da
em favor de uma "filosofia" pessoal, empreendendo (por assim dizer) uma dtHllrlna cristã no contexto brechtiano é obviamente o próprio marxismo,
colagem filosófica particular para si próprio e para o seu trabalho moder- 1111
Vl'Za única filosofia totalmente codificada, sancionada por coletividades
nista "distintivo". Isso sem saber que muitos modernos sentiram-se obriga- nu-Ira e pela própria autoridade do Estado, comparável ao cristianismo,
dos a incorporar esse tipo de filosofia particular para consumo próprio, as- t 0111 lias tradições escriturais e arquivos de comentários (nem o islamismo
sim como sua linguagem, evidentemente também particular: exemplos disso 11,'1\1 judaísmo têm o mesmo tipo de codificação doutrinal, enquanto as
são Lawrence ou Proust, Rilke ou Wallace Stevens, Musi( ou Khlébnikov. 0111ra religiões "maiores" ou mesmo as filosofias seculares jamais tiveram o
A advertência também diz respeito aos próprios leitores: embora seja muito 1\1.srno relacionamento com o poder estatal).
difícil imaginar uma escala para mensurar a energia mental necessária para em dúvida, o marxismo de Brecht também poderia ser lido como uma
inventar cada sistema ou mitologia particular em questão, é plausível que .strutura que explicitasse a necessidade de elaborar uma "filosofia particular"
tal esforço necessário da parte do leitor inevitavelmente venha a drenar ou muito própria, e assim criar uma estrutura para uma produção estética não
desviar recursos mentais e perceptivos que poderiam ser mais bem aprovei- problematizada. Mas uma questão séria (ainda que produtiva) deve ser levan-
tados na simples fruição, exposição e avaliação da poeticidade, ou, em outras tada precisamente aqui, pela própria natureza do marxismo de Brecht. De um
palavras, na própria linguagem. Naturalmente foi isso que levou a caracte- lado, o que ele aprendeu de Korsch não foi um conjunto de doutrinas e princí-
rizar a experiência do modernismo, ou dos vários modernismos, como a de pi s que poderiam servir como uma simples moldura, mas antes uma atitude
uma conversão quase religiosa, para a qual éramos chamados - uma espécie h stil ao sistema em geral, o assim chamado "empirismo lógico" do Círculo
de ingresso a pagar para o "mundo" fenomenológico exclusivo em questão - ti Viena, que era igualmente hostil à dialética (e às versões hegelianas do mar-
a nos converter à sua ideologia dominante e aprender seus códigos, absorver xismo); e, de outro, na medida em que estava comprometido com uma polí-
sua estrutura de conceitos e valores relativamente exclusiva que, em nosso tica radical e marxista, tornou-se capaz de denunciar a doutrina abstrata e de
entusiasmo literário, tende a excluir um enfoque de outros códigos literá- acreditar plenamente em um caminho tão direto quanto o que os literatos mo-

34 T. S. Eliot, Se/ected Essays. Nova York: Harcourt Brace, 1950,p. 279. 5 Id., ibid., p. 279·

44 45
dcrnistas cvo QVQm ti 'Ima. nde, »uao.pnru 0111 '<yoti' (h IV III ',I'sl. () mar 1111111
1111 I pl.III'1.1 Ijlll' 1111111IlIdo .IIIIII'S, I' li 11, I 'li' S -ntur lima dirn n-
xis mo de Brecht enquanto doutrina a ser cn ontrada] Ond ' csu o suas ld 'ias? 11111' III vol du vldu soc lul e cutkllunu,
E se, como Lukács tão escandalosamente sugeriu em "O que é marxismo or- dl'IIIOII,II'iI~,'() IlHlIN ulhal d 'SS' proc zdirncnto encontra-se na conhe-
todoxo?" (ensaio tão decisivo sobre "idéias" na tradição marxiana quanto o de I ItI I \ o/IC'/"/ dos / r s vill/h/s,IM na qual le converte seu descontentamento
Eliot acima citado sobre filosofias não seculares burguesas), que o marxismo 1IIIIIhl o Judi ial v r lad 'ira, d pois a transforma em ação judicial escrita,
.I~.

ortodoxo for exclusivamente uma questão de método» - pista que deveremos I l~i'Cl rita \ a imaginária em experimento sociológico, e finalmente "sub-
I'S

seguir mais adiante - permanece o problema do conteúdo ideativo que a obra 111111''''sl' último (Aufhebung) numa crítica à sociologia a caminho de se
de Brecht deveria ensinar, visto ser precisamente o didatismo que nos deu a IIIIII.IJ' outra isa.
outra pedra fundamental. lJlII último exemplo pode ser útil para refutar a ideia de que o autopro-
Entretanto, poderíamos também querer pensar no tipo de didatismo ine- I 1.IIIII Id ) "marxismo vulgar" de Brecht (assim chamado plumpes Denken
rente ao ato de ensinar uma Haltung mental específica, um tipo caracteristi- 1111"p in arnento bruto") é funcionalista e reduz ideologias e até mesmo
camente brechtiano de pragmatismo (mais do que "marxismo") do qual ofe- u'ubulbos literários ao serviço de "interesses" materiais: o que Brecht disse
reço aqui três exemplos, Pode-se inicialmente descrevê-lo como segue (antes Ic I "TO bem próximo ao contrário disso tudo, visto que era precisamente o
de mais nada omitindo suas consequências filosóficas e pressupostos): você . lolgl'lIlos"39 - o que não tinha consequências práticas específicas, nem en-
transforma o problema em sua solução, deformando o assunto e enviando ulvia mudanças específicas - que ele acusou de ser ideológico. Na verdade,
o projétil a uma nova e mais produtiva direção do que a do beco sem saída I' I -ntador sugerir que precisamente a conhecida sagacidade de Brecht seja
no qual ele foi imobilizado. Por exemplo, evocándo o desprezo platônico Cl Sl'U método ou mesmo sua dialética: a inversão das hierarquias de um
clássico pelo ator (você confiaria nele mais ou tanto quanto em seu médico, problema, a premissa maior tornando-se a menor, a absoluta tornando-se
pergunta Sócrates, mais do que em seus políticos? Mais do que em seus juí- Ii I' .latíva, a forma tornando-se o conteúdo e vice-versa - são todas opera-
zes?), Brecht recomenda construir a partir desse desprezo e usá-lo, ao invés \ () '$ em que o dilema em questão é virado do avesso, e uma linha de ataque
de tentar eliminá-lo, fazendo-o desaparecer no papel: 111' perada e imprevisível se abre sem levar nem para o beco sem saída do
1I1S lúvel nem para a banalidade da doxa estereotipada sobre o assunto.
A opinião do público sobre a profissão de ator - um absurdo e um acinte e, por
seu próprio caráter chocante, algo admirável - faz parte dos meios de produção
I
do próprio ator. Ele precisa fazer alguma coisa com essa opinião. O ator tem,
IH Episódio pouco divulgado no Brasil: trata-se do processo judicial no qual Brecht teve que
então, que adotar essa opinião do público sobre ele."
enfrentar a empresa alemã que filmou A ópera dos três vinténs. Entre outros problemas,
estavam em questão os direitos autorais. [N. T.]
Para mim, ele quer dizer que, ao invés de esconder o ato de representar (e lI) Por exemplo: todas as nossas instituições para o desenvolvimento de ideologia (''Aparelhos

a profissão que daí resulta), o espetáculo como um todo deveria tentar de- Ideológicos de Estado'; em outras palavras) veern como seu papel fundamental impedir a
ideologia de ter quaisquer consequências; para isso preservam o conceito de cultura que
sustenta que a formação pela cultura e da cultura já ocorrreu e não precisa de maior aten-
36 Georg Lukács, História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista [1923], ção criativa (B. Brecht, "Schriften L 1914-1933'; in Werke, v. 21, p. 554). Essa é evidentemente
trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 64. uma doutrina que abre caminho para a pedagogia tanto quanto defende uma arte política e
37 B. Brecht, "Schríften L 1914-1933'; in Werke, v. 21, p. 388. ao mesmo tempo define a natureza do Tui intelectual (ou seja, a de não ter consequências).

47
Recapitulando, procuramos certa especificidade da obra de Brc ht m I 1111111,1111
li, JII 11111111
I Idl' 11di /I/(,(!t/ ('/I (/'/(',S/(/(I tio /11 todo, se não
suas práticas linguísticas - tanto estilísticas como retóricas - que parecem I ti" '111\111\\'1-\\11111110 I" 1111101 ilruu c '111favor da originalidade de

comportar algum campo extralinguístico de investigação: presente nas suas 11111'111 IIIH'1I100111'0" ,I 'sI" ili '1I1ll 11[' brc htianos? E sa originalidade,
ideias e atitudes (o próprio Brecht as chamará, ao longo de sua vida e obra, 11111
I 111111, ' um
.ISS\1I11 I forma div r a, u melhor, não resisto à tentação de

Meinungen ou Absichten, opiniões ou mesmo ideologias), e outro nas pos- I1 ", 11110111,':\s istrauliada, se onsideramos que "método" é uma espé-

turas quase dramáticas e narrativas, Haltungen, posturas exemplares, gestos 11


..1\
di (11"//1\ ' n iirna
11I1\111t IIlI
'
além da estrutura "dramática" e interpessoal
P" pria r tórica, devolveremos a tais atos a situação narrativa
sempre

característicos que, presumivelmente, constituem os germes e fontes anedó-


ticas de suas próprias narrativas similares. Mas a questão envolvendo seu 11111111'111"
011virtual que eles pressupõem.
pensamento parece ter-nos conduzido de volta a um formalismo no qual as I 11tolo que nos levou a chamar "método" quando o tratamos como

principais "idéias" veiculadas pelo discurso estético são simplesmente mui- Id ,I, abstrata agora situada em uma hipotética
11111<1 terceira dimensão dra-
tas recomendações vazias em relação ao próprio método: tantos pensamen- 111li 11 IIm',,1 desdobrada na própria situação pedagógica tal como foi distin-

tos sem um conteúdo específico, mas que fundamentalmente consistem em '11 cnada, ridicularizada,
1111111111' analisada, profetizada e utopicamente pro-

projeções a respeito daquilo que o pensamento deveria ser em primeiro lu- l' 111111,\0longo de um trabalho obcecado por esse ideal concreto que - por

gar e de como ele deveria ser conduzido. 1111I I -ndendo-se à proposição "educar os educadores", de que trata a ter-

Mesmo no âmbito do marxismo, isso lembra perigosamente um "sis- 1I1 II'~I'


sobre Peuerbach - poderá ser eventualmente compreendido como

tem à' puramente metodológico do tipo generalizado nas filosofias burgue- I""1,,10 orrelato e como a outra face ou o reverso do tema da própria

sas, em particular entre aquelas hipnotizadas' pelas promessas verdadeiras 11111.1


III,a. orrer à frente da mudança, alcançá-Ia, adotando suas tendên-

das ciências, das quais a metafísica de tipo sistemático tem sido alijada II .I forma a começar a atrair seus vetores em sua própria direção - essa
em nome deste ou daquele "método" (seja no caso de uma proposta tão I (ll'dnl:; gia brechtiana, que agora inesperadamente descortina toda uma

meritória como aquelas do pragmatismo americano ou do "solucionador 111111


IIS\() deste trabalho que não é a do trabalho micrológico da linguagem,

de problemas" deleuziano, seja nas formas mais rasteiras de empirismo 111I Iilo e das sentenças, nem a do conceito imanente, aquele do Brecht

e das regras lógicas ou dos positivismos em geral). O verdadeiro conteúdo I' 11 IIl! \ e filosofante, e do seu "modo" de filosofar, o da sagacidade com a

dessa ênfase no "método" - que se encontra em todos os lugares na filo- 1",tI I I, navega no conceito e nas aparências oficiais, mas, em vez disso, a das

sofia moderna - está evidentemente em seus efeitos negativos, no repúdio '" li Id,\ll s distintas de incorporação e narração de histórias, ou, se preferir-

dos princípios ou do conteúdo metafísico que tem consequências cujo re- 11111III1!r s termos (do próprio Marx), a dos "indivíduos concretos" que, "de-

púdio o método agora procura superar com algum tipo de ingenuidade , uvulvendo sua produção e suas relações materiais, transformam, ao longo

intelectual ou filosófica. Mas certamente a fetichização do "método" não I, 1111 ixístência real, seu pensamento e os produtos dele"," O pensamento

apenas merece toda a desmoralização de que foi objeto, ela também é parte,
moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia [... ] não têm história, não
ingrediente e inevitável acompanhamento daquela autojustificação insti-
I ,\I ti senvolvimento; ao contrário, são antes os homens que, desenvolvendo a sua pro-
tucional para a qual a filosofia parecia ser seguidamente invocada (talvez "\I~11le suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu
desde os primórdios de uma filosofia secular na Renascença), e que pode- I" \I nmento e também os produtos do seu pensamento:' Karl Marx & Friedrich Engels,
ria muito bem merecer uma denúncia bastante diferente e desta vez inspi- Id"II/agia alemã, 2~ ed., trad. Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes,

rada em Bourdieu. 'H')., PP.19-20. K. Marx, Die Frühschriften, ed. S Landshut. Stuttgart: Kroner, 1953,p. 549·

49
a que Marx nos convida aqui na O é ap nas aquele da roduçuo lndustrtal '11I1I'111t' 1'11'1111, I' d1'1I1K11I1I11 111,1111'1111 delt, ti v '1/\em todas as so icdades
(como tantas passagens de O capital dão a entender), mas o da vida diárfa 111 111111 I, 'J Itll ,I \/\ Sllllpks ou .ompl .xus. N ire ho que se segue, to-
em geral ("sua relação material"). Espero que isso não neutralize a reversão IIIIIH'IIIO pm I)bJl'tOI) ainda pOLI o onhc ido trabalho de 1929 de André
materialista e o impacto produzido pelo texto de Marx nesta tentativa de 1I tlll ,1"OIII/I/~ sl/llfJl 's,'" qu l '111, P 10 menos, a vantagem de ser ambíguo o
cooptar essa reversão para o aspecto "narratológico" e de sugerir que o ato IIlh 1.-111 ' para a 0111 dar a versões subjetivas e objetivas da mesma forma,
de contar histórias, ou melhor, o ato incorporado de contar histórias, ou seja, I 111 I' I olh 'I' ntr arnbas, e suscitar a análise histórica sem influenciar o

a interpretação teatral, se torne o campo de alguma verdade mais profunda I r Idl Ido, No entanto, precisamos, no momento, ser mais sucintos, pois
relativa às imagens abstratas posteriores dos jogos de linguagem e das figu- 111I as ategorias dramatúrgicas do próprio Brecht - do gestus até o
1110
ras conceituais sobre as "formas de pensamento". 111'1111 de stranhamento e o julgamento que ele invoca, juntamente com
As aparências dos atos, então, são estas: muito antes das terminologias IIlltll 1/\ das mais famosas cenas de seus trabalhos, os episódios do tribu-

oficiais da assim chamada semiótica da narrativa (ou narratologia) enten- 11" tlt' O circulo de giz caucasiano, por exemplo, mas também a mise en
deu-se, sem dúvida, de forma obscura e inconsciente, que os escritores ten- ,111)111/1' de O círculo de giz, ele próprio uma exibição de um "drama de tribu-
dem a organizar os eventos que representam de acordo com seus próprios 1\ li" maior, Tudo isso confirma a sugestão maravilhosamente produtiva de

esquemas mais profundos do que Ação e Acontecimento lhes parecem ser. 11,11 ko uvin de que a categoria do casus de André [olles - o caso exemplar
Para não dizer que esses escritores projetam suas próprias fantasias "subjeti- Il'xl ir julgamento - é a dominante na narrativa de Brecht, e não apenas
vas" de interação na tela do Real, mesmo quando tais projeções estão a rebo- 1111 I -otro propriamente dito. De qualquer forma, nós mesmos nos envolve-
que de toda uma episteme cultural e coletiva é demonstram ser sociais, por- H'IIlOS na tentativa de mostrar que, vista por esse ângulo, a narrativa brech-
tanto, "objetivas" além de sua subjetividade e até mesmo através dela. Assim, verdadeiramente informada por algo como um "método", mas um
I 111I li! é
sem dúvida, há movimentos específicos característicos dos grandes poemas método que é rigorosamente não formalista e que assim foge a objeções fi-
medievais - o gestus e a Haltung são similares -, o que define o próprio pro- 111 óficas feitas ao método enquanto tal, conforme esboçamos acima. O caso,

cessamento da realidade e da vida diária nesse modo de produção predomi- I11I outras palavras, deve ser mostrado como um conteúdo genuíno, e não
nantemente agrícola e feudal; ao mesmo tempo as convenções da tragédia 11\fomente como estrutura abstrata na qual os conteúdos narrativos de to-
grega ou da peça Nô apresentam em si mesmas algum tipo de singular "cena dos os tipos podem ser dispostos e classificados.
primal" a ser socialmente analisada de forma análoga à interpretação dos Entretanto, precisamos triangular essas proposições, pois é um pressu-
sonhos ou delírios. posto que nenhuma das áreas ou dimensões já abordadas do trabalho de
Entretanto, na maior parte dos casos, a leitura de tais estruturas privi- 111' .cht - sua linguagem, seu modo de pensar e finalmente sua narrativa -
legiadas de narrativa tem sido objeto de uma clássica disputa entre o obje- prioridade sobre as outras, mas, antes, que elas podem ser vistas como
1\'111
tivo e o subjetivo: este último, seguindo o estudo do estilo, deseja condu- (untas projeções umas das outras em diferentes meios, assim como um fenô-
zir as cenas em questão a um repertório de fantasias singulares e pessoais 11\ 'no cristalino poderia assumir diferentes aparências no domínio de ondas
(marcadas, todavia, pelo valor dominante do singular ou pelo particular, os ti' luz enquanto permanece "o mesmo': O objeto de estudo e caracteriza-
inequívocos produtos do gênio ou da loucura), enquanto, por outro lado,
as idiossincrasias narrativas estão prontas a cristalizar-se em convenções
11 Formas simples: Legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste [1930],
que tendem, elas próprias, a tornar-se formas humanas mutáveis, psicolo- trad. Álvaro Cabra!. São Paulo: Cultrix, 1976.

50 51
çao, .nuio - aluo que poli' scr ld '1IIIIIlldo multu v I!"IPH'III' on\O "1)1"'h I ilu , \ I 1'11111111'1111' dl'II'\I/III'''\ "11'1/:' l\l' \ ti' lugar (o que sígnif a, reio,
tiano" - assume suas várias espc ifi a 0'$ à m xlida que obs .rvado '111 I 11\ I 11111 \lI \)
dido com base em três dimensões fundamentais em questão; mas cs c bjeto 1'11,1 \1I1\l, 11' ti' Idlrnws manter a palavra "método", então precisamos
triangulado e invisível não tem linguagem analítica própria ou autônoma: , 11111 1111.11 um lOUCO ubsorv Ia m lima linguagem, pensamento e prática
precisamos, portanto, continuar a traduzir cada dimensão nas linguagens 11111.\1 V.I que ouíiram lima ressonância e distinção especificamente brech-
das outras duas, verificando e corrigindo cada uma por meio da seguinte. 1111111 Iremos portanto deslindá-la, não enquanto método em geral, mas
A ordem de discussão não precisa ser tão cíclica como esse programa sugere 11\\11\ o "Grande Método", aquela doutrina ensinada pelo legendário Me-ti
e necessariamente suscita expectativas de que um breve ensaio desse tipo 111 111-\111'1:1 tória alternativa à nossa. De fato, o não traduzido Livro
pró-hi

nunca atenderá satisfatoriamente (a expectativa de que toda característica (/" 11'l'il'llvoltas de Brecht claramente impõe-se às nossas discussões aqui; e
11111111 o .uf mi mo de Gramsci - a "filosofia da práxis" - modifica aquela
verbal encontre sua equivalente no âmbito da doutrina e da fabulação e vice-
-versa). Mas me parece uma hipótese produtiva que pelo menos tem a van- di dlll t" marxiana que ele desejava esconder de seus censores fascistas, as-
tagem de antecipar determinismos indesejáveis e hierarquias (a tentação de 11\1 t.unb m o Grande Método brechtiano põe em cena a mesma dialética
converter tudo em linguagem, por exemplo, se não em Weltanschauungen 1\ 11111 onal de um modo bastante diverso, expondo suas dimensões metafí-
ou mesmo emfantasme). ".1 ou pré-socráticas ("no Grande Método, o descanso é apenas um caso
111'1 I \1 de desarmonia")" de uma maneira muito diferente do materialismo
Mas, pergunta-se, o que é feito do "método" nisso tudo? Ele foi satisfa-
.11.111 II O de Stálin, e dando ao marxismo a sua única filosofia não ocidental,
toriamente apagado do programa? Espero que não completamente, já que
interessa manter a conexão entre a "utilidade" de Brecht para nós hoje em 1111 110 mínimo não burguesa sob a forma de um tipo de Tao marxista.
dia e as diversas atividades possíveis nas quais seria de esperar que ele nos
revigorasse. Na verdade, quero sugerir que, por interessantes, importantes Me t i disse: é vantajoso não simplesmente pensar de acordo com o Grande Mé-

e significativos que sejam, como quaisquer textos de Brecht para a pró- tudo mas viver de acordo com o Grande Método também. Não ser idêntico a si

pria história literária, o que distingue essas conquistas das obras literárias mesmo: aceitar e intensificar crises, transformar pequenas mudanças em gran-

de outros "grandes escritores" é alguma lição ou espírito mais geral que des C assim por diante - não basta apenas observar tais fenômenos, pode-se

eles desencadeiam. Isso significa que "a ideia de Brecht" é tão importante I -presentá-los. Pode-se viver com maiores ou menores mediações, em relações

quanto seus textos individuais, ou talvez, para ser um pouco mais exato, mais ou menos numerosas. Pode-se almejar ou lutar por uma transformação

que ela é distinta deles (incluindo-os todo o tempo). Creio que podemos mais durável da própria consciência através da modificação do nosso próprio

ainda viver e avançar nessa ideia, e que ela nos é extremamente útil no sen- eu social. Pode-se ajudar a tornar as instituições do estado mais contraditórias e

tido de dissolver paralisias múltiplas nas quais estamos todos agora histo- portanto mais capazes de evolução."
ricamente aprisionados, e que derivam tanto de um agudo senso de impos-
sibilidade da práxis em todos esses níveis quanto dos próprios fatos e de
"condições de existências" muito pesadas. Desejo evitar as piedades burgue-
sas do "aprimoramento da vida" tanto quanto os perigos do voluntarismo
infantil esquerdista, mas pensar a ideia da capacitação ainda não é ruim I' 1\.Brecht, "Me-ti, Buch der Wendungen", in Werke, Y. 18, p. 184.
para a liberação das novas energias que aqui temos em mente; nem é a 1\ Id., ibid., pp. 192-93.

53
52
Estranhamentos do efeito de estranhamento

o fato de a obra de Brecht de algum modo incluir uma doutrina terá sido
sentido por muitos que também acharão difícil identificar sua forma ou seu
conteúdo. Se ela for simplesmente "marxismo': e mesmo se a questão da ten-
dência estiver resolvida (a linha Korsch? Luxemburgo? Uma simpatia emer-
gente pelo maoísmo?), os trabalhos parecem encenar muito mais do que isso,
ou talvez, como alguns críticos têm afirmado em júbilo, a falta de conteúdo
doutrinário ortodoxo nos últimos trabalhos simplesmente prova que o mar-
xismo não é realmente uma filosofia ou uma visão de mundo, afinal de con-
tas. Na verdade o próprio Brêêht não disse que

Me-ti encontrou indicações suficientes nos escritos dos clássicos a respeito do


comportamento dos indivíduos. Com muita frequência eles falavam de classes
ou de outros grandes grupos de pessoas. I

Bertolt Brecht, "Me-ti, Buch der Wendungen" in Werke. Grof3e Kommentierte Berliner und
Frankfurter Ausgabe [doravante Werke], ed. Werner Hecht, [an Kopft, Werner Mihenzwei
& Klaus- Detlef MüIler. Frankfurt: Aufbau / Suhrkamp, 1989-98, v. 18, p. 188.

57
o marxismo é portanto uma doutrina dos agr' rudos, UIII I 10111
1'i1\(1'sln- P 111111111111.1111111111
ouklll'l (1IIIIO"PIO,I'I('1I01l1 I
tística da qual qualquer equivalente da ética está excluído - ti ilxando de 1IIIIhnnwnlo,nnlhlll,loll·1 ~IIIO,IW,I/I,\1v rlus outrus ! 111 IHd'IIjlIt' "1111
lado as críticas implícitas e explícitas às quais ele submeteu as tradições da ~ o), Nn 111-Ih01' Ins hlpót 'N,"'S pode se dlz 'r qu 'essas til'! IS SI' 11'1111
I 11111'111
filosofia ética, e de fato ignorando as próprias restrições de Brecht à filoso- ti um tip d st ti a, .nquant lima st ti o ' .rulm '(111'ftlo <'li I I '111
fia enquanto forma. Talvez, por outro lado, algo como a "sabedoria' chinesa Nuas impli ações, grande parte do sistema fi] sóf os trunsc 'lidei 1111I1
clássica lá esteja para compensar essa carência (se não essa incapacidade) do .omponentes estéticos ou subsistemas que eles p d 111ou 1). 01',' 111IlIflllI
marxismo e preencher a lacuna. Tatlow lembra-nos de como é diferente a Por outro lado, a estética também tende a projetar medita H sllllht'tll, I 1111

ênfase dos pensadores clássicos chineses se comparada à filosofia ocidental , camoteadas nos dilemas ou ideais, sociais ou políticos. Assim, \ 1'01 "'11
em geral: de Aristóteles pode ser vista como uma meditação sobre o slsl .m \ d,' ,I I, I

nquanto muita coisa na tradição estética posterior reflete a op lei I(ld, di I


Não podemos dizer que não havia "metafísícos" ou epistemologia na filosofia corpo e suas capacidades sociais de repressão ou sublimaçã .1 <.0111111\1111
chinesa, mas essas duas áreas - tão cruciais para a filosofia ocidental- eram con- frequência, a própria experiência estética é chamada a funciona" \lIHO1111111
cebidas de modo muito distinto. Os primeiros filósofos chineses eram humanis- suspensão utópica, enquanto no modernismo o valor est ti o lei" d"
tas práticos, preocupados com a ordem social. À parte o padrão humano e uma muito frequentemente concebido como um apelo à inovaçã ra II 11,11111\11
conscientização constante do contexto social, talvez a qualidade mais marcante substituto para a modernização ou revolução, ou, ao contrário, 01111111111
do pensamento chinês seja a insistência na mais próxima conexão possível entre reforço de uma ou ambas as coisas, nunca é muito claro: e ai UI1I", VI'/I
conhecimento e ação." apenas como uma compensação por elas.
Brecht geralmente tem sido caracterizado como o defens r ti ' UIII 1I 1III I
Essa distribuição de ênfases tende a afastar essa filosofia do domínio da ética intelectualista - didático, sem dúvida, se fosse um pouco mais I \I 011 '111I
individual e a reconduzi-la na direção daquele saber estatégico e prático que ele queria ensinar - e como um adversário do entretenimento ( do I'" 1,11
costumamos chamar "teoria política', basicamente associando-a a Maquia- chamou de culinário, em teatro ou música;" ele próprio foi, enlr 1111111,11111
vel e a Lênin. Mas é também lançada a uma nova luz pelo papel do exemplo grande leitor de histórias de detetive). Costuma-se dizer, então, qu ,I, 1 \I

pessoal - que Brecht chamará Haltung ou postura' - no discurso filosófico tou suavizar essa imagem bastante austera e severamente puritann 110/1"
que transmite seus ensinamentos. que no Organon/ a fim de facilitar seu retorno aos palcos europ 1I8 do 1','1
Mas isso agora sugere um modo muito diferente de reorganizar nossa -guerra: visto qu~onforme sugeri acima, ele sempre pensou qu a j 1\ \ I
questão sobre a doutrina de Brecht, pois ela subitamente suscita a possibi- a aquisição do "conhecimento" científico (Wissenschaft) eram capazes d""11
lidade de uma dramaturgia filosófica, ou mesmo aquela da filosofia como
dramaturgia, depois da qual a própria ideia de dramaturgia como filosofia já 4 Gerald F. Else, Aristotles Poetics: The Argument. Cambridge: Harvard, 1957, pp. ~ I 'I 11.

5 Ver Terry Eagleton, A ideologia da estética [1990], trad. Mauro Sá Rego COSIO.
1011
di /lI
parecerá menos paradoxal. Na verdade, o pensamento de Brecht tem sido as-
neiro: Zahar, 1993.
sociado em grande parte (particularmente fora do âmbito da língua alemã) a
6 B. Brecht, Werke, v. 24, pp. 76-84; JohnWillett, Brecht on Theater. Nova York: liilllX WIIII •

1957, pp. 35-42.

2 Antony Tatlow, The Mask ofEvil. Bem: Peter Lang, 1977. pp. 353-54. 7 Id., "Schriften 3. 1942-1956", in Werke, v. 23, pp. 65-97; J. Willett, Brecht on 'Iheatci .• 011 I I

3 Id., ibid., p. 369. pp. 179-205.

58
tr tenlm '11[0, .ssa mo lill a ao pod ser on idcrada r latlvum ntc rct ri ti do p I ('111' i 11.111111100 1101111'11\ dl)~ I utos, que 1'1' isou S' faz r de bobo
(embora o estudo filológico da emergência e substituição de terminologia c t' p.1I ,11 di' Pi'I1Sóll .111111 dt' 11.\0 cntrur .m h que mo indesejado e assim
das formulações brechtianas seja evidentemente uma atividade significativa (1)) as r 'ti lida 1 'S in 'ons 'i .m 'S d sua própria existência." A sociedade de
e útil). consumo hoj m dia, n Estados Unidos e, cada vez mais, nas demais par-
No entanto, ele parece ter levantado questões relativas ao prazer, ao en- I 'S do mundo, enfrenta um dilema e um impedimento similares quando se
tretenimento e à "culinária" de uma maneira completamente diferente e mais [rala de pensar sobre os resultados finais de seu sistema socioeconômico, e
funcional ou situacional: assim, falando dos clássicos do teatro" e sobre o ertarnente tem sacrificado seus clássicos a distrações culinárias muito mais
conteúdo progressista e intelectual que eles tiveram outrora mas que perde- laboradas, Mas deve ficar claro que a posição de Brecht a respeito de tais
ram nos dias atuais, ele observa: prazeres da cultura de massas atravessa a velha oposição entre populismo
e elrtrsmo de uma forma inesperada; sua função não é o prazer, mas pensar
A burguesia foi obrigada a liquidar suas iniciativas puramente intelectuais em historicamente estética e cultura.
um período em que os prazeres de pensar provavelmente envolviam riscos ime- Isso também situa Brecht obliquamente entre as tradições do moder-
diatos para os interesses econômicos. Ali onde o pensamento não foi completa- nismo artístico que, de outra forma, poderiam ter oferecido uma transição
mente desativado, ele tornou-se cada vez mais culinário. Ainda se fazia uso dos da exposição especializada da dramaturgia brechtiana em direção a suas im-
clássicos, mas um uso cada vez mais culinário." plicações filosóficas mais profundas. Brecht poderia ser um rude filistino
como é o próprio Lukács quando se refere às correntes mais herméticas do
Esse pensamento constitui uma justaposição estranha e desfamiliarizada ao modernismo;" mas rejeitou a condenação que este faz das técnicas então
diagnóstico que Lukács faz da filosofia burguesa em História é consciência experimentais em nome de um supostamente decadente "formalismo', pro-
de classe; e poderia sugerir uma leitura dos males da cultura de massa um pondo discutir o assunto em termos da "realidade" mais do que do "rea-
tanto quanto diferente daquela célebre apresentada pela Escola de Frank-
furt (no capítulo "A indústria cultural" de Dialética do esclarecimento, de
Adorno e Horkheimer). Há aqui a sugestão não de censura sem reservas, lO Sigmund Freud, "Notas sobre um caso de neurose obsessiva': in Edição standard brasileira
mas de uma autorrepressão instintiva do pensamento real, de desvio cons- das obras psicológicas completas, v. 10. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 139-273.

ciente de qualquer coisa que pudesse conduzir a verdades desagradáveis II Ver, por exemplo, "Über blaue Pferde": "Eu gosto de cavalos azuis ... mas tenho minhas dú-
vidas sobre se o tipo certo de cursos de apreciação de arte poderia realmente transformar
e a ideias de ação que acenem com culpa ou nos desafiem a mudar a vida.
trabalhadores em seus patrocinadores" (B. Brecht, Werke, v. 20, p. 350). O caso de Kafka é
Não me parece que essa seja uma análise "marxista vulgar" (embora tenha
mais complexo: as observações perversas de Brecht sobre o fascismo de Kafka (para Ben-
implicações para a concepção brechtiana de ideologia que exploraremos jamin, durante a estada ~te último em Svedenborg: Walter Benjamin, Understanding Bre-
mais tarde). Pelo contrário, parece ter suas afinidades com a visão de Freud cht. Londres: NLB, 1973, p. 108; W Benjamin, Gesammelte Werke. Frankfurt: Suhrkamp, 1985,
v. VI, p. 527) precisam ser postas em perspectiva com sua apreciação posterior (B. Brecht,
"Schríften 2.1933-1942", in Werke, v. 22, pp. 37-38) da antecipação, por Kafka, do movimento
8 Falando sobre a morte dos clássicos em 1929, Brecht observa: "Se eles estão mortos, quando nazista; a observação posterior tem algo a ver com passividade e vitimização - entretanto,
exatamente morreram? O fato é que eles morreram na guerra" (B. Brecht, "Schríften l. ela nos proporciona a suposta parábola chinesa "das atribuI ações da utilidade": "Numa
1914-1933': in Werke, v. 21,309). mata há diversas espécies de troncos de árvore ... dos mirrados eles nada fazem: estes esca-
9 Id., ibid., p. 310. pam às atribulações da utilidade':

60 61
Iismo";" De forma bastant similar, O mod .rnlstu 111'I1 () IttlhlH' (:,'111('1 ti' Ilt'II)'1I11 11 ti oh, l'fVtl~ \0 dI' q\II' () qllt' llre ht lhe insin LI f i a situação inte-
fendeu seu próprio nouveau rornan contra a imag m ItI '01 I' UIlI Balza 1.'( 111 ri • so '10' '011 1111'1 do -scrltor sob O apitalismo:" é uma reflexão que
canonizado." Mas hoje em dia já superamos todos os escândalo t cnicos de .1:, 11'":1 quulldad di Unta a tod o eu trabalho subsequente e que particu-
um modernismo agora clássico, e esse antiquado debate parece ter sido subs- 1.II,"en!' ara teriza Benjamin a um só tempo como marxista e modernista.
tituído por outro, muito diferente, que opõe literatura em geral (realismo O ,rcil -V, então," não é o único traço de modernismo de Brecht, nem
juntamente com modernismo) à cultura de massa, ou, em outras versões, ao 111 .sm O central (examinaremos um traço especificamente autorreferencial
visual ou ao espacial, ao televisual ou ao eletrônico. O pensamento de Brecht li' S LI trabalho na segunda parte deste livro). Mas parece aconselhável "es-
sobre o modernismo precisa ser umfunkioniert (reconstruído e readaptado, 11'inhar" ou desfamiliarizar o chamado efeito de estranhamento a fim de
um de seus termos favoritos), assim como os versos de Robbe-Grillet, nos l'x~ssar algo de sua função original e histórica e também de surpreender
quais o conteúdo filosófico do esteticamente moderno deve ser encontrado 1 variedade de formas que ele é capaz de assumir. Brecht apresentou-nos

na crítica da representação propriamente dita. muitas "definições" desse termo, que parece ter migrado do "ostranenie" ou
De fato, Brecht desempenhou papel central no desenvolvimento daquele "cstranhamento" dos formalistas russos a partir das inúmeras visitas de sovié-
tema e daquela crítica devido ao trabalho de seus mais importantes discípulos, Ii os modernistas como Eisenstein ou Tretiákov a Berlim." Como o conceito
cujos prestigiosos destinos tenderam a obscurecer a participação que ele teve
no assunto. Mas nenhum estudo decente sobre a trajetória de Roland Barthes
"1 Carta a Gershom Scholem, 20 de julho de 1931: "Estes ensaios são os primeiros - para ser
pode dar-se ao luxo de omitir suas origens brechtianas (assim como sartria-
exato, o primeiro dos ensaios poéticos ou literários - que eu defendo como crítico sem
nas): seu clássico Mitologias abriu caminho para a entrada triunfal do efeito de reserva (pública). Isso porque parte de meu desenvolvimento nos últimos anos registrou-
estranhamento na teoria francesa. Quanto a Walter Benjamin, 'sua influência -se no confronto com eles, e porque eles, mais rigorosamente que quaisquer outros, apre-
póstuma (aumentando tão inexoravelmente quanto a de Barthes diminuiu, e sentam um insight sobre o contexto intelectual no qual o trabalho de pessoas como eu é

aparentemente imune ao fastio relacionado a Brecht, a partir do qual iniciou conduzido em meu país". W. Benjamin, Briefe, v. 1. Frankfurt: Suhrkamp, 1966, pp. 534-35;

Correspondence. Chicago: University Chicago Press, 1994, p. 380.


uma carreira totalmente nova desde a "unificação") agora parece seguir duas
15 Não é para depreciar o imenso serviço prestado por [ohn Willett à causa brechtiana - Brecht
diferentes direções ao mesmo tempo: a pós-moderna, que se desenvolve so- on Theater concentrou e sistematizou o pensamento de Brecht aqui tão completamente quanto
bre o prestígio inabalado de seus ensaios sobre tecnologia, e a do misticismo os Cadernos do cárcere de Gramsci ou a coleção de ensaios definitivos de Benjamin intitulada
da linguagem, como resultado de um melhor conhecimento de seus primei- fluminações - a respeito da qual devemos chamar a atenção para o equívoco de sua tradução
ros escritos. Pelo menos o primeiro Benjamin deverá parecer muito diferente (no volume acima citado) de Verfremdungseffekt por "efeito de alienação". Entretanto, o conceito
marxista que identificamos como "alienação" é Entfremdung em alemão, de modo que seria
quando for devolvido a seu contexto brechtiano original; por enquanto, o
melhor que traduzir o primeiro por "estranhamento', preservando o vínculo com seu ancestral
perfil de um Benjamin posterior, profundamente brechtiano, ainda não emer- russo (ostranenia - "do estranhamento"). De qualquer forma, o efeito-V será traduzido assim
giu claramente devido ao desconhecimento geral de sua incansável produção em todo o trabalho, apesar de alguns preferirem o termo mais estético "desfamiliarização"
como crítico literário e resenhista de livros. Provisoriamente deve-se reter de L6 Ver a nota no "Schriften 2. 1933-1942", in Werke, v. 22, p. 934. Relações artísticas entre Berlim
e Moscou parecem ter sido particularmente vivas e desenvolvidas durante esse período, algo
enfatizado em Willett, The New Sobriety 1917-1933: Art and Politics in the Weimar Period
12 Esses ensaios e fragmentos inéditos foram coletados em Aesthetics and Politics (Londres: NLB, (Londres: Thames & Hudson, 1987), assim como na magnífica exposição Berlim-Moscou,
1977) e podem ser encontrados dispersos nas passagens de 1938 de Werke, v. 20, pp. 417SS. Moscou-Berlim 1900-1950 (o catálogo foi editado por r. Antonowa & 1. Merkert. Munique:
13 Alain Robbe-Grillet, Pour un Nouveau Roman. Paris: Minuit, 1964. PrestelIccs).

62
111 K I1 V,I, 11"1'1\1'1 11'111 11111 I \ 1111111 ,I " 1111 1III'IIII11I1It1.I, 1111 11 111 111111
de "montagem" de Eisenstein, o efeito- V permitiu a Brc ht org. nlzur c oor
I 'hllllll':,t,1 do 1'11'1111, 111 1"111"1 1111111 1I1I1~.lIll"
denar um grande número de traços de sua prática teatral e estética.
Ihl \ qu.u tu 'úllllll;1 111I'"ld,I~,IO, (1011111.1 ('Ill úlll"I,I 111 II~I', .1111'11'111
Algumas vezes ele é evocado em termos do próprio efeito que lhe dá o
,1,1 tem n unçuo ti' in lul lodas as d '1' 'ri~'o 'S 1''' 'ti '111l'N, ,I',\illl 111111' til
nome. Tornar algo estranho, fazer-nos olhar para isso com novos olhos, im-
010', las ~ob uma nova luz. Aqui, familiar ou I abituul Il\lVIIIIH'III!' 1.1, 11
plica a existência de uma familiaridade geral, de um hábito que nos impede
tlf ado 0111 "natural", eu stranham nto J SV Ia aqu Ia .1!l'1I 11\ ,I, '1111
de realmente olhar para as coisas, uma forma de dormência perceptiva: essa
SlI rc imutável e eterno, e mostra que o objeto "histórl o': Asso d\' I' I
ênfase mais frequentemente dada pelos formalistas russos oferece uma es-
a 'r sentar, como corolário político, feito u c n truí I por SI'I '~ 1IIIIIlil
pécie de psicologização do Novum e uma defesa da inovação em termos da
no ,assim, também pode ser mudado rnplctnm '111' por ele ou li\!
novidade da experiência e do resgate da percepção.
'\ tiuído. Essa forma final e as próprias categorias nas quai Ia s i nSl'll' 11111
Mas Brecht também, muitas vezes, enumerou as técnicas por meio das
tiLuirão a versão popularizada por Barthes na França e o p nto I' P 1111t1 I
quais as coisas podiam de fato ser "estranhadas", e embora ele não tenha se
para um certo pós-estruturalismo propriamente brechtiano, OIl\O v, li
limitado ao teatro (há maravilhosas páginas sobre Brueghel, por exemplo),"
mos no epílogo.
em geral tais técnicas provêm da arte da encenação na qual uma forma espe-
Para o momento, entretanto, vale a pena não só historicizar o '/to 111
cífica de atuação e de distanciamento é recomendada - como citar as falas ou
mas também apreender sua função política no iluminismo burgu s, () 1"11
mostrar a personagem que você está representando e seus traços de caráter
prio Brecht reuniu um certo número de exemplos dos "clás i os", qUI\lIII"
sem tentar "transformar-se" no papel. Essas técnicas estendem-se para o do-
de sua primeira exposição das convenções do teatro chinês." li, 1.1111111 111
mínio dos dados físicos do cenário, os "intertítulos" e o uso da música. Mas
versões modernas: "Um homem bebe vinho diante de mulhere ajo .111 1,1.1 •• ,
seria importante também entender tudo isso à maneira das meditações de
A proposição de Sartre nos alerta para a relação constitutiva, no prluu- 1111111
Loyola ou da disciplina espiritual de Grotowski como um meio simbólico ou
no décimo oitavo século de seu desenvolvimento, do efeito- V 0111 li 1'1111'111
um método de processar a realidade: as "técnicas" têm um significado simbó-
lico próprio, elas não são apenas meios para atingir um fim.
18 Os ataques de Brecht à empatia na representação, que podem algumas vez 'S p\ll(' \'I \1111
Entretanto, esse fim ainda proporciona uma terceira forma de aborda-
pouco obsessivos, poderiam muito bem ser reposicionados e reavaliad s qUllldl1 I" 10\
gem do efeito-V, ou melhor, talvez uma terceira e uma quarta, desde que
postos ao ataque de Platão à arte imitativa (a recitação e atuação de uma tlI1tIlI.1 ,\ ,,0111
o primeiro desses dois fins ou objetivos seja também algum efeito e, em si essencialmente oral, de acordo com Eric Havelock) na República: "Parece-m " Ali 111111111,
próprio, um meio para algo mais. E esse é evidentemente o desativamento ou que a natureza humana se reduz a partes ainda menores, de modo que o homem 11, o plldl

a eliminação do Einfühlung, da empatia ou mesmo simpatia: objeto das polê- imitar bem muitas coisas, ou fazer as próprias coisas que a imitação reproduz" (Llvru 111,

parágrafo 395, trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973, p. l(jl). 1'1\1
micas com Aristóteles ("compaixão e terror") e Stanislávski, e o slogan mais
Brecht, como em Platão, é o aspecto pedagógico que justifica as posições apar nll'Il\i'1111
célebre do arsenal brechtiano, que permite (com um olhar de esguelha para
antiestéticas.
A decisão) acusar esse teatro de ser frio e intelectualista, por um lado, e pro- 19 B. Brecht, "Verfremdungseffekte in der Chinesischen Schauspielkunst", in Werk(', v. J I,

pagandístico e didático por outro. Sua ambiguidade decorre da formulação pp. 200-10; "Estrangement Effects in Chinese Actíng', J. Willett, Brecht on Theater, op, I I,
pp. 91-99. Este ensaio de 1936 é o primeiro em que Brecht utiliza o termo (ver a notn 1111

Werke, v. 22, p. 959)·


20 [ean-Paul Sartre, Oeuvres romanesques. Paris: Pléiade, 1981, p. 51.
17 B. Brecht, Werke, v. 20, pp. 270ss; J. WiIlett, Brecht on Theater, op. cit., pp. 157-59·
jovens hegeliano de Bruno BULI'I', -m mais ti ' um s 'nl ido os prc .ursor, s ti • 1IIIIIII'IIII.IIIIIIII,IIIh 111111
1I,IIIIvII,N 11l1\11l1l1~'O'S
'ao ornportament 0-
todas as críticas contemporâneas da rn taffsica. Poi tas nã apenas dão 11,11,IIIIIS1tllllht"1l1sohl\.' os sIsIl.'nHIShlstóri os, a irn como sobre palavras e
continuidade e perpetuam a tradição para a qual é a destruição do on eito 11111 nos I .rdudos para d 'si mar s diversos sentimentos e emoções. Aqui
metafísicos que substitui a crítica da religião como o ato radical mais funda- li ,'kllo V pare g rar ant a átira social que a crítica da metafísica; nesse
mental; elas também detêm o mais rico arsenal de métodos para a crítica da I ,I~(),prc isarcmos pelo menos perguntar-nos o quanto esses dois objetivos
ideologia e portanto para as próprias teorias da ideologia (qualquer que seja ;10 r alrnente incompatíveis.
o nome que se dê a esse fenômeno em suas várias versões contemporâneas).
No presente contexto, portanto, pretendemos ir mais longe na interroga-
ção do efeito de estranhamento brechtiano no que se refere a suas implicações utonomização
filosóficas, e em especial interessa justapor duas vias que parecem abrir-se '\
a um radicalismo contemporâneo. Se identificarmos o efeito-V, por exem- 11Ir ce possível redefinir o efeito de estranhamento como uma subsitui-
plo, com um nominalismo que alguns situaram na emergência da própria ,I o linguística bem diferente, especialmente se remontarmos às teorias do
rnodernidade," essa estratégia precisa enfrentar uma situação na qual as ca- drama "épico" e do teatro "épico" que o precederam no final dos anos 1920.

tegorias artificais dos vários universais - tantas palavras ou nomes - servem P(li sempre é preciso lembrar ao leitor de língua inglesa, e talvez também
para classificar um grande número de seres radicalmente distintos e obscu- "" alemã [e portuguesa], que o termo crucial - épico - de forma alguma
recer ou ocultar sua diferenciação. Remover os nomes torna-se, então, uma rnvolve as associações elevadas e clássicas da tradição homérica, mas antes
forma de terapia filosófica que promete nos conduzir de volta à originalidade .11, como monotonia e cotidiano enquanto narrativa ou ato de contar histó-
da experiência primeira (uma espécie de equivalente filosófico da estética dos Iias. No caso de Brecht, um teatro que narra histórias versus um teatro teatral,
formalistas russos). Podemos, inclusive, lembrar-nos que Schopenhauer acu- ,111dotas versus peças de oratória, um fato conduzindo ao outro em lugar de
sou Kant de ter-se esquecido de incluir a categoria da "coisa" em sua lista das 1'0 turas e poses em conflito escultural.
formas mentais com que organizamos o mundo exterior;" ora, abolir naquele Quando lembramos as tradições da pesquisa moderna sobre o ato oral
ponto seu nome último, a categoria de coisidade ou objeto, aparentemente nos 1111
"épico" de contar histórias, compreendemos também que uma das ca-
colocaria em choque com alguma forma primal e final do fluxo bergsoniano I,\ terísticas da narrativa em geral, particularmente na prática do mestre-
ou deleuziano. Todavia, é um tanto quanto paradoxal justapor essa versão de . ontador, é que ela pode se expandir ou contrair, desenrolar-se em gran-
realidade à versão sino-brechtiana, aparentemente tão afiliada em espírito, de d 'S e saborosos detalhes por horas a fio ou concentrar-se na anedota mais
um fluxo heraclitiano do Tao, no qual nunca se pisa duas vezes. expressiva. É essa propriedade da narrativa, em especial, que proporciona
Nesse ínterim, o nominalismo brechtiano, se assim quisermos chamá-Io, um primeiro enfoque para o estranhamento, de acordo com aquela ob-
atua sobre um sistema de nomes bastante diferente: não apenas sobre nossa ervação de Dôblin que Brecht citava com frequência: "Ao contrário da
ti ramática, a narrativa pode ser recortada em vários pedaços separados
I orno se cortados com uma tesoura"," É um processo que opera indife-
25 Situar as origens da modernidade recuando para os debates medievais sobre o nomina-
lismo é a originalidade de Louis Dupré, em Passage to Modernity (New Haven: Yale, 1993).
26 Arthur Schopenhauer, The World as Will and Idea, v. 2. Suplemento ao Livro Segundo (ao , B. Brecht, "Schríften 2. 1933-1942", in Werke, v. 22, p. 107; J. Willet, Brecht on Theater, op. cit.,
capítulo 18 do v. 1). Nova York: Dover, 1958, pp. 191-200. p·70.

68
rentem nt sobre r <11 sobr o 1 .xto cultural 1'1' ' I I '111 " ('llIhor,I s ')a IN" ,\" 11111"'111"1'11111,.1 11111\ dll 11111 di 111 1111111111 li 11111 Idllll'llllIlllI I "I" ,
também uma tendência literária, desenvolvend -sc .Int .nstfi .ando-sc ao , I 111111,11 IIlIId I, li' I,IH' 11 11"\111 VI'IIIIII"" ,'"

longo do modernismo, a que chamaremos "autonorniza ãpartindo do


",

modo pelo qual os episódios de uma narrativa assim fatiada em segmentos 1 111,,10, Il 1I'I'Il1vos uuubém Issln Ill\11\ '!'t' IsII'·II\\.I IOIlOIc, I d.I 111

menores tendem a assumir uma maior independência e uma autonomia 1111 I 111 101 • u Gu .rru dos 'I'rlntu Anos p 'I I [uul os ti 'StlIlOS 1\1 '1101 '

em relação aos demais (os "pedaços separados" permanecem lebensfãhig ." M \t' .orug '\11 'SU'} Iarnílin 'slão ond 'nado' a passur: na v 'I' IlId(', ,I,
[com vida própria), prosseguindo com a citação de Dõblin). Ulisses, de Ia- 111 IIH' llndor ' inlr o d is, < bordando assim outra r' om 'nd I~ 10 I
mes Ioyce, claramente oferece o exemplo mais marcante de tal produção 11" Ii ti I\lI" ht, a d ontar a hist ria da xp ri n ia indivi lunl 01\)0 "O
narrativa, na qual os capítulos separados terminam por seguir seus pró- 11 'I \I, de hi t ria. Ma a na - e ne sa peça, em e pe ial, d li \'0 111111 '1\1
prios caminhos, desenvolvendo estilos e estruturas diferentes uns dos ou- 1
111
toda orno crônica, as cenas ão episódios, e os epi ódi s, S p'II' I lu
tros, e finalmente parecendo tão distintos como os vários órgãos do corpo 111" dos urro no tempo, também constituem as etapas de uma zrand ,I ,10,

(analogia do próprio Ioyce). O que se precisa acrescentar, entretanto, é que '1\11' M. eoragem deixa de aprender: e são os componente d a Ilç: o qu
aquela autonomização não é um processo que pode ser impunemente ati- , Il ()aqui esmiuçados para nós e dispostos como um processo n 'ativo di'

vado: pelo contrário (como o exemplo de Ioyce igualmente atesta), uma IIH' indízagem.
vez em vigor, ela tende a descer até as unidades menores da narrativa, tor- Podemos ver como seria um processo positivo em outro drama 111 li I '11111,

nando as frases individuais potencialmente autônomas, como Sartre e Na- 11,1 versão de A mãe, de Górki, em que a lição pode ser esmiuçado' s • '"1 11

thalie Sarraute notaram em relação às sentenças de Flaubert, no surgi- I,1<.1a com mais confiança, para além do título óbvio: "Amãe vê 0111 dOI 'li
0
mento do modernismo. íllho reunido com operários revolucionários".3
A autonomização no teatro brechtiano com certeza parecerá bem diversa A própria "dor", entretanto, pode ser esmiuçada em seus c mpon 'lIt"
disso, visto que ocorre dentro de um meio diferente no qual a ação precisa :I im, produtivamente, pode ser utilizada para se transformar. 1 SS(' 1\111I111,
antes de mais nada ser traduzi da para a forma de narrativa (como veremos no primeiro momento, Pelagea Wlassova, desaprovando a atividad,' I 1111" il,
na próxima seção), antes que aquela forma narrativa possa ser submetida e tá descontente e preocupada com as más companhias de LI 111110, I' 111
à análise segmentar e à disjunção. Mas o símbolo do processo está lá para um segundo momento, porém, ela aprende algo sobre perigo \11 '~jl' \,tI

que todos o leiam naquilo que deve ser o mais famoso dos Merkmale [si- sobre a repressão policial. Em um terceiro, ela desenvolve uma Llri()~ldlld,

nais característicos 1 teatrais de Brecht, a saber, os títulos que aparecem para pelos conteúdos dos panfletos que a polícia procurava e que seu filho Il
emoldurar uma cena ou nomear uma canção, remanescentes dos cabeçalhos companheiros haviam planejado distribuir. Esses panfletos contêm um \ li
de capítulo dos romances do século XVIII que anunciam seus conteúdos aos ção. E, no segmento final dessa cena, ela própria decide distribui-I s n,"lIl
leitores curiosos, ou talvez relutantes: estes "no qual" poderiam, então, ser de preservar seu filho do perigo, da possível captura e da prisão. Não _1ItHll
diretamente transferidos para a sequência brechtiana das cenas: a conversão completa à atividade revolucionária que ocorrerá no r stant
da peça. Contudo, é uma sequência autonomizada na qual a separaç50 do
[Na qual] Ana Fierling, conhecida como Mãe Coragem, perde um filho."

29 Id., ibid .• p. 53·


28 Id .• Werke, v. 6, p. 9. 30 Id., Werke, v. 3, p. 265·

70
morn ritos no tcmp .ru ial paru o modo 01110,1101111 I I II'~ I utlcula 11 I 1'111 Ollt IIIV.I 1111111 11111) di' 11111.1 ,', 11I IIllz \~t1o 'da I' 'ifi a ao y n rali-
sua "mensagem': Seria tedio ada um d s S"\11 .ntos 'stiv sse for 1111,1 hi plll qUI 11.1 1)lIII'1 -xt rcru! lati' da hist ria d apitalismo o triunfo

malmente separado dos outros pelo sistema de títul S: ma basta p nsar 11 11111 -mo do tn' lodo de 1) s art . h ga com TayJor e a "administração cien-
filme mudo, e sua muito mais completa interpolação de "legendas'; para que I I11 1": aqui, nevam ntc, é tempo que, na realidade, mais do que o espaço,
o espírito da autonomização brechtiana fique claro. Aqui, todavia, não são I "unultsado" fr~gmentado em suas menores unidades (ao análogo espa-
as palavras do diálogo, mas antes o significado e as funções do gesto - o ges- l.tI a linha de montagem de Ford - segue-se, então, a nova reorganização
tus, incluindo o próprio diálogo falado - que são segmentados e executados u-mporal) e a "racionalização" weberiana encontra seu principal exemplo
passo a passo. • Nua manifestação privilegiada na forma como as práticas tradicionais, os
A autonomização modernista inclui em si duas tendências contraditórias 1'1'0 edlmentos do trabalho que eram transmitidos de geração a geração na
(ainda que dialeticamente idênticas) da obra: rumo ao minimalismo, por um I()I~ de gestos relativamente completos e de "todos" significativos, foram
lado, e à megaestrutura por outro. Pois se a lógica da produção consiste na Nul stituídos por segmentos novos e artificiais e por séries de movimentos
análise - no sentido literal do termo grego, ana-luein, quebrar -, ela é una, solndos desprovidos de significado, cuja sucessão regulada resulta em efi-
quer o ideal supremo consista naquele menor denominador comum de um i ncia aumentada e maior e mais rápida produtividade. A admiração de
tipo de silêncio que, em Beckett, é associado à pureza estética, quer consista I. 11in e de Gramsci pelos métodos novos deveria ser registrada aqui, mesmo
numa infinita expansão do trabalho, como em Musil, não necessitando de que a função do taylorismo tenha sido a de destituir os trabalhadores de
fechamento em especial, ainda que este não possa ser julgado "incompleto". qualquer poder de decisão e controle sobre o processo de trabalho, ficando
As duas tendências estão presentes em Brecht, juntamente com uma grande IIU mãos da relativamente nova casta de gerentes, como mostra o grande
dose de genuína incompletude. livro de Harry Braverman sobre o assunto."
O processo necessita de uma identificação que transcenda o estritamente Mas a reificação - no sentido especificamente weberiano e bergsoniano
estético; as diferentes concepções de "análise" (médica, lógica, matemática, de divisibilidade de um processo que tenha sido transformado em uma en-
crítica) não devem dissolver seus elos e inter-relações, nem fazer o "objeto" tidade "coisificada" - é uma tendência absolutamente não limitada nem à
retroceder às partes que o constituem e que são, em última análise, tão rele- .iência e tecnologia, por um lado, nem ao processo de trabalho, por outro.
vantes quanto sua mais poderosa e sucinta formulação histórica no segundo Mais do que isso, é uma tendência social e tem seus efeitos últimos e suas
preceito metodógico de Descartes: "Dividir cada uma das dificuldades que implicações sobre a estética e a obra de arte. Adorno é apenas o pioneiro
eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias .ntre aqueles que tentaram definir o próprio modernismo estético no que
fossem para melhor resolvê-Ias"> O declínio da capacidade de dividir pro- diz respeito à reificação de uma maneira dúplice: por reificação ele define
blemas até as menores partes e de realizar o mesmo processo de análise das a situação e o elemento contra o qual o trabalho quer resistir, mas também
coisas ou de outros fenômenos susbstantivos é, em si, um índice de reifi- define a lógica daquela resistência como um tipo de remédio homeopático
cação: não precisamos de Bergson para nos ensinar, que, se uma entidade que combate uma lógica geral de objetíficação com a objetificação de suas
- seja uma coisa ou um problema - é divisível assim, de qualquer forma ela próprias formas.

31 René Descartes, "Discurso do método" [1641], parte n, in Os pensadores, v. 15, trad. Jacó 32 Harry Braverrnan, Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho no século xx
Guinsburg e Bento Prado Iúnior, São Paulo: Abril Cultural, 1973 , pp. 45-46. [1974], 3~ ed., trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 2011.

72 73
De forma clarís ima, a ad ã p r 13r ht da I' dfll.ll, o 1Il1l10IIIll "m IlIpllll'I" ti "'li ti I I11 , 11II 11111
'1111111111
pllH" 111p,1IdIIVII,111111 1111I
todo" representacional e dramático será até mais ambíval 'nl ' do qu ' isso, di jow' li ,lllvo 110qlhtlllll 11 1111 '11111111"11
,I p,lIlll d '11I'd 1\0 di 0111111
pois incorpora o espírito da admiração leninista pelo fordi mo, nquanto, 1I1.lb '11I(i'01>,1101>
qu.u: Iml.1 t ~lIplllf il' ll'ifll.\tI.I ti 11111
!,I'llodo Ip 1111111
ao mesmo tempo, procura mais imediatamente resgatar o que é verdadei- 111'111'silllldo 'li 1111:1hlst: rlu • ai 11\da mudnnçn suhruc] M ,i '01,1 1111111
ramente compreensível na ação e no comportamento humano, tornando pi lm .Irn d s nstru ão lúdi a, nt s de h 'ar n umu r ai r' \l1I~tl"\ \11111
aquele comportamento incompreensível: um realismo alcançado por meio lctlvo ial r v lu i nária. H sita-s em hamar "S' signifr Ido IId v
do cubismo poderia ser uma descrição adequada. Entretanto, a questão sus- dual simbóli o de realização ética, psicológí a u psi an líU ,,1\111lodo I 11,
citada por críticos como Lukács - o trabalho modernista reificado distancia \ id ia d um tipo de ética da produção é atraente, qu rvlrin p Ir I li' 111.11
e subverte as reificações sociais mais gerais da modernidade, ou simples- css t rmo que caiu em total desgraça (numa situaçã hist ri n lnle I 11111111
mente as replica e perpetua? - evidentemente é menos relevante aqui, já que '\ dominada pelo consumo e pela distribuição/comunica ã ), 'rclllill"'1 10 I

também está claro que o próprio Brecht deseja eliminar as formas específi- um construtivismo emergente, que também pode ser nt ndldo (1111011111
cas de comportamento que são objeto de estranhamento no palco, para que m do de superar a paralisia e a impotência, o fracasso da a no Indlv til! til
se mostrem suas unidades, partes constitutivas ou atômicas. u ideia de uma situação global que não pode ser mudada. Tal ,ti' 1\1tlqw'l
Mas, no momento, queremos retomar as implicações filosóficas dessa ló- modo, a energia alegórica suplementar da autonomização brc hll \1\ I. li I
gica da autonomização e suas implicações sobre a ação humana em geral. capacidade de encenar nossas próprias ações possíveis e virtuais, SI'II \I o di
(Veremos que ela é acompanhada por um tipo de autonomização também um espetáculo único (e portanto aparentemente imutável, mas upenu , lI' I
no domínio da subjetividade, cujo significado não é desprezível.) Na verdade, rentemente) que estimule o público à percepção de múltiplas possll: IltI 111
já é uma desreificação da ação postular sua maleabilidade analítica, ou, em É uma dimensão filosófica de um aspecto da dramaturgia bre htlunu 1\\11
outras palavras, libertá-Ia da unidade de sua forma. Isso sempre foi, para re- eus discípulos levaram mais longe na direção metafísica d que I' 1111'11111
tomar nossa discussão anterior, o lado positivo da racionalização weberiana: parece ter desejado ir. Assim, Benjamin, ao incorporar e objetiva 11111I11Id"
a nova liberdade resultante da destruição da tradição. Em Brecht, entretanto, brechtiano em um recurso novo como a câmera, celebra a apn Id.ld,' d. I,
esse tipo de liberalização não redunda em uma retórica da liberdade, mas de desvendar dimensões espaciais de nossa existência qu tinhum idll.
antes em algo mais produtivo do que isso, que é o todo da mensagem polí- camoteadas pelos convencionalismos da estatura humana. sssa p I I ,'111
tica e o conteúdo do próprio efeito-V, ou seja, a liberalização revela o que foi merece ser citada em detalhe, e não apenas pela justaposiçã b n)1I1\111I 111\
considerado eterno ou natural - o ato reificado, com seu nome e conceito - do cinema à "psicopatologia" freudiana dos lapsos (que "rev larnm I 1111'11
como simplesmente histórico, como um tipo de instituição que passou a sões profundas de uma conversação que parecia estar se desenvolv '11 10 1II
existir devido às ações históricas e coletivas do povo e de suas sociedades, superfície")," mas também, e acima de tudo, por sua revelaçã da nnlllll'/I
e que portanto se revela passível de mudança. O que a história solidificou brechtiana da câmera, por assim dizer.
sob a forma de estabilidade e substancialidade pode agora ser dissolvido no-
vamente, e portanto reformado, melhorado, "umfunktioniert" [refuncionali- Através de close-ups das coisas ao nosso redor, enfocando detalhes o 'Itllo di
zado [. O processo de autonomização estética, fragmentando a ação em suas
menores partes, tem, assim, significado simbólico e epistemológico: mostra 33 W. Benjamin, Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1974, v. 1, p. 498; 111111111,,"111111 o

que o ato "realmente" é, sem dúvida, nada mais que a própria atividade de trad. Harry Zohn. Nova York: Schocken, 1969, p. 235·

74
objetos familiares, cxploran to ambl .ntcs 11h sob" '111-\1'11110
I1 olld\l~ \I ti I 1"" 111,11\101,11"1,,
(11 IIII}\IIIIIIII' 111111111'1111
OIIlVI'I1I;I'II't!1I1Inul em mullu
I I
cârnera, o filme, por um lado, amplia no a ompr 'nSllo das ne 'sslda I 'S tI\I ,I li I 111I1 '11111''li, li\(' 111111'
11P Il il'lIi1' 10p'nt'll 11110 orpo do pu I inte, '
regem nossa vida; por outro.lado, ele nos proporciona um im 'IlS r inesp irado ,1111111111
I I II'v '111
'111' P '10 I \lld,ltlO (lJll que NU \ nulo se move ntre s órgão.
campo de ação. Nossas tavernas e ruas metropolitanas, nossos es ritórl s 1i,1I1
suJlla, 1'J11onlrnsll' '0111 O 111, ico 'lu csu ainda culto no prático -, o
salas mobiliadas, nossas estações ferroviárias e nossas fábricas parecem ter-no 1111'I io no 1110111 'lHO d isívo abstém-se de encarar o paciente de homem
confinado inapelavelmente. Então veio o filme e explodiu este mundo-prisão pll'U horn im, ,1 invés disso, é através da operação que ele o penetra. Mágico e
com a dinamite do décimo de segundo, de tal forma que agora, em meio a suas clrur >i, sã mparáveis ao pintor e ao cameraman. O pintor mantém em seu
ruínas e destroços, nós calma e aventurosamente viajamos. Com o close-up, o trubalho uma distância natural da realidade, ao cameraman penetra profunda-
espaço se expande, assim como o movimento com a câmera lenta. A ampliação 111intc em sua trama."
de um instantâneo não torna simplesmente mais preciso o que de qualquer
maneira era visível, apesar de obscuro: ele nos revela formações estruturais N \0 apenas a perspectiva hermenêutica é mais contemplativa e episterno-
inteiramente novas do assunto. Portanto, também a câmera lenta não apenas 1,"Hia do que a que encontramos no trabalho de Brecht; podemos também
apresenta qualidades conhecidas de movimento, como revela neles outros in- ohs ervar que, por mais bem-vinda que seja a ênfase no diagnóstico, doença
teiramente desconhecidos "que, longe de parecer movimentos rápidos retarda- I' lira, a imagem da intervenção puramente cirúrgica não incita à atividade
dos, dão o efeito de singulares e sobrenaturais movimentos de deslizamento e Ii -m suscita a práxis da mesma forma que os textos teatrais; mesmo que
flutuação" [Rudolph Arnheim]. Evidentemente uma natureza diferente abre-se possa de algum modo produzi-Ias: "Quanto mais frequentemente interrom~
à câmera mais do que ao olho nu." P .rrnos alguém no ato de representar, tanto mais gestos resultarão di SO':17

Temos aqui uma análise sem reconstrução subsequente. Mas tamb m


A versão de Benjamin, porém, parece relativamente hermenêutica: mesmo purece possível que esse seja um resultado do meio em questão: por n '\Is
quando insiste nos processos tecnológicos que nos são escamoteados na -splêndido que o resultado de Kuhle Wampe possa ser, os pen am nlos '
montagem, ele destaca os meios com os quais "o equipamento mecânico pe- pr jetos hollywoodianos de Brecht não sugerem uma imaginaçã parti 1i
netrou profundamente na realidade?» de modo que a comparação culmi- lnrrnente receptiva às possibilidades do filme como a de suposto dis {pulo
nante com o cirurgião já fica implícita: .rn perspectiva (Godard, por exemplo). Ele tinha um senso mais a lido d,1
I I ssibilidades da montagem fotográfica como tal, enquanto Benjamin I ilv '"
Aqui a questão é como comparar o cameraman com o pintor? Para respon- I .nha levado a "ética da produção" brechtiana muito mais adiante, tão lotlH
I der a essa pergunta recorreremos a uma analogia com uma operação cirúrgica. quanto possível em relação ao filme de seu próprio período, transf rmnndo

. I1 O cirurgião representa o pala oposto ao do mágico. O mágico cura uma pessoa , sa ética em seu outro grande ensaio sobre a tecnologia. "O autor c mo pro
doente pela imposição de suas mãos; o cirurgião corta o corpo do paciente. tutor", numa forma clássica de autorreferencialidade modernista, na quul I

O mágico mantém a distância natural entre o paciente e ele próprio, e, embora produtividade da arte coloca-se como uma alegoria para a produtividade 10
a reduza muito sutilmente pela imposição de mãos, ele a aumenta em muito

14 Id., ibid., p. 499; id., ibid., p. 236. 36 Id., ibid., pp. 495-96; id., ibid., op. cit., p. 233.
\ Id .• lbld., p. 495; id., ibid., p. 233. .\7 Id., ibid., op. cit., p. 495; id., ibid., op. cit., p. 151.

(,
71
próprio sistema socio on mi '0. Mns Isso 'slt rnals próxlmo das ItI 'I,ISti . 111,1"1 (p"III'I)('1 (I INI'" 10 1'lIrV('1 do I 'XIO) avança!' de nome a nome, de
Brecht sobre modernidade do que de Liasicl ias sobre arte, dlllllllIIdohl'lj t· dohl'll' () 1'xlo ti • II ordo 0/11 um n me e então desdobrá-Io ao
Quanto ao escrito ou ao literário, o texto impresso, talvez seja Roland 1.1111111d,' novas dobros d ssc nome, J 50 é proairetismo: um artifício (de arte) de
Barthes quem vai mais longe ao desenvolver uma forma de autonomizaçã I,· 11I1l1 qu . pro ura n me , que se inclina na direção deles: um ato de transcen-
específica para ele, e agora de modo apenas muito remotamente relacionado li IIlla I xi a, um trabalho de classificação desenvolvido com base na c1assifica-
às origens brechtianas. Tomando emprestado o termo proairesis [escolha ,110 da linguagem - uma atividade maia, como os budis as diriam, um relato de
racional] de Aristóteles, ele teoriza um assim chamado "código proairético", npur n ias, mas enquanto formas descontínuas, como nomes."
uma prescrição para o estranhamento que nos conduz ao âmago das estru-
turas do próprio ato, mais profundamente até do que a câmera de Benjamin, ( ) voo de Barthes, aqui rumo ao inominado, rumo a algum fluxo deleuziano
no processo de abandono de um modelo hermenêutico benjaminiano para 111l~ .m última análise não codificado que pudesse estar subjacente a todas
o que ele claramente concebeu como um modelo semiótico, que podemos I roi as, é evidentemente muito diverso, em espírito, quer do materialismo
também comparar com a tradução: dos órgãos e das macro ou microdimensões espaciais de Benjamin, quer da-
'111 'I fluxo muito diferente do Tao, que se encontra nos momentos mais chi-

o que é uma série de ações? O desdobrar de um nome. Entrar? Posso desdo- nesc de Brecht. Na verdade, a passagem barthesiana para além da superfície
brar em "aparecer" e "penetrar': Sair? Posso desdobrar em "querer'; "parar", "sair parece mais com os alemães no sentido estereotipado - está mais para
novamente" [" .]. Dois sistemas de dobras (duas "lógicas") parecem ser alter- \ hopenhauer ou Wagner - do que com a firme clareza proposta pelos pró-
nadamente necessários. O primeiro quebra o título (substantivo ou verbo) de Jll'io alemães. Mas com a seguinte especificação, que Barthes - ele mesmo
acordo com os momentos que o constituem (a articulação pode ser ordenada: 11111 satirista no sentido da tradição brechtiana, particularmente naquelas
começar! continuar ou confusa: começar/parar/sair. O segundo sistema vincula Mitologias que devem tanto a Brecht - também adequadamente insiste na
ações contigentes à palavra guia (dizer adeus / confiar / abraçar). Esses sistemas, I ontrapartida dialética a esse fluir do ser sem nome, principalmente nos ter-

um analítico, o outro catalítico, um definidor, o outro metonímico, têm apenas a 111 estereotipados, na empiricidade preexistente das palavras e nomes que a
lógica do já-visto, já-lido, já-feito, a lógica dos impérios e da cultura." odíficam ou organizam. Esse material social em estado bruto - sobre o qual
) trabalho em suas operações analíticas e processos precisa atuar, cortar, sati-
Aqui a ênfase transita da natureza visível da própria realidade para o sistema ri amente anatomizar - é o elo vital entre o modernismo de Brecht e as rea-
de palavras e nomes coerente com o que ela está ligada: têm-se em vista uma lidades às quais seu realismo deseja permanecer fiel. Assim como seus textos
comparação com dinheiro e a troca de tipo estruturalista e periódico, mais são agressivamente intertextos, que explicitamente plagiam ou atuam sobre
ou menos na direção da sinonímia do que na do confinamento (ou, por ou- seus "originais" preexistentes (mais de mil anos de poesia chinesa clássica
tro lado, uma abertura em leque que tem um pouco a ver com "dobras" bar- onstruída sobre alusões a versos anteriores), então também as operações
rocas e leibnizianas de Deleuze): dramatúrgicas apoiam-se no subtexto preexistente, que é ele próprio um in-
tertexto, do material social nomeado, a substância, como Hjelmslev poderia
ler dito, ela própria já organizada em expressão estereotipada, numa socie-
IH Itnlul\d Barthcs, /Z. Nova York: Ferrar Strauss & Gíroux, 1974, p. 82 fedo bras.: 5/Z, trad.
I, II Nuv I ·S. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992]; Oeuvres, op. cit., v. 2, p. 609. 39 Id., ibid., pp. 82-83; Oeuvres, op. cit., v. 2, p. 610.

79
dade já plenamente verbal c portando S .us nOIl1 '8 'Inl('I'pl'dll\ )('/1,1/\1 I, do 111111'111110, (I di'. ruvolvhncut» til' 1\ 11'111'S nos 010 a diante de uma al-
bras, dentro mesmo do mais aparentemente 11 linguíst] o '111 () 11I1I1l'1' li !llllllllv 1111'111 d fcn'lIl '; elllre s 'r '11l O S 'r, por um lado, e a de transformar-
de seus componentes. l\tl '11111'0. Assim, () morn nto proairético pode ser o espaço teatral em
A insistência de Barthes, portanto, ressalta tudo o que já é profund 1 1[111 11111\,YI'nIO J6 xlstentc estereotipadamente pré-formado pode ou não
mente pós-estrutural e "textual" em Brecht. Mas ela também nomeia se 111111111: QIl11l1do um cenário muito diferente no qual, pelos processos múl-
eretamente a dramaturgia que contém em si: pois de fato o curioso termo 111'111 11, inális e desfamiliarização, de divisão em partes, a reconstrução
aristotélico que Barthes toma emprestado para seu neologismo grego - di I1I dI' maneiras totalmente novas e insuspeitas, uma transformação pode
proairesis" - significa originalmente escolha ou decisão, uma palavra s- 11111111'1' algo novo e até agora não nomeado pode emergir do léxico do já
tranha para um nome estereotipado que designa uma ação. A estereotipia 'I I1I 111 ndo. E também não basta lembrar que as duas espécies de eventos
da "dobra" sugere que não temos nada a ver com o assunto: há todo um III~" -m nas peças de Brecht: Grusha pega o bebê ao invés de deixá-lo; mas
dicionário de tais entes-actantes - entrar, sair, começar, parar - de cuja es- I, dy Gay é desmontado e reconstruído de modo inusitado e assustador; um
trutura temos pouco a dizer. O "eu" sempre acompanha nossas ações, disse 1'1d III iro Novum de ferocidade. Mais adiante voltaremos a tal reconstrução.
Kant: só precisamos acrescentar nosso pronome pessoal ao ato já formado
que espera por nós. Entretanto, nós finalmente temos a alternativa de sim
ou não: nós podemos entrar ou não; a escolha final entre o ser ou não ser I'.plco, ou a terceira pessoa
do ato permanece. Portanto isso é dramático e restaura o elemento teatral
que o aparato cinemático de Benjamin dissipou. Aqui, no próprio âmago I nslstência na primazia da "narrativa" sobre o "dramático'; no entanto, pode
do conceito aristotélico, podemos ver o ator hesitar diante desse ato e trazer I uubérn assumir outras formas e ter outras consequências, podendo "pro-
para o primeiro plano suas possibilidades e alternativas. dll~ir estranhamento" de maneiras diferentes. Já vimos que, segundo Dõblin,
unta narrativa pode ser esticada e fatiada como uma linguiça, com suas par-
Il's e incidentes lentamente se transformando em cenas completas e episó-
40 Na Ética nicomaqueia (livro II1, capítulo 3), Aristóteles identifica e distingue escolha (fim) rllos autônomos. A superposição das palavras "épico" e "narrativo" em alemão,
e deliberação (meios), enquanto em Barthes (não resisto à tentação de atualizar a velha 11(' fato, lembra-nos de que algo semelhante a essa teoria já foi desenvolvido
piada soviética) acontece o oposto. Para Aristóteles não se pode dizer que se escolhe por Goethe e Schiller na sua correspondência sobre épica grega de abril de
algo sobre o que não se pode deliberar (algo absolutamente impossível - ser imortal, por
1797, e, mais tarde, por Auerbach em Mimesis: em especial o que este último
exemplo): pode-se deliberar sobre algo ainda não definitivamente escolhido. Mas na sis-
( hama de "hipotaxe'," a tendência das várias cenas de serem não apenas adi-
tematização narrativa que Barthes faz do conceito, uma intensificada modernidade se faz
presente na identificação entre escolha e deliberação, de modo que uma hesitação em de- Ilvas e segmentadas, mas também "próximas de Deus", para usar a expressão
liberar sobre meios alternativos não pareça mais muito distinta da alternância de finalida- ti ' Ranke. Cada uma dessas cenas é banhada por uma luz que exclui o pers-
des (que provavelmente significa que os fins últimos foram associados em favor dos meios, p ctivismo e exibe o que deveria ser um episódio secundário ou subsidiário
que agora, como na racionalização weberiana, ocupam todo o primeiro plano). Sobre Bre-
cht então seria o caso de dizer que são precisamente essas confusões e diferenciações, e as
próprias categorias, que são concebidas para ocupar o primeiro plano e orientar no exame -li Erich Auerbach, Mimesis. Princeton: Princeton University Press, 1953, pp. 11-34 passim
e na procura de uma espécie diferente de deliberações - avaliação histórica, julgamento [ed. bras.: Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental, 5~ed. São Paulo:
político - por sua plateia que fuma charutos. Perspectiva, 2011].

Ho 81
no desdobrar d um cnr do mais unplu ou ti uma 1111,1;1 nmu (' 'ONNt' 111.1.1 '11'''' I ti '('111 I 1I11(
(' NV I 11111-nsam ,,110 OIlS .lcntc e uas alego-
muito interessante, em si mesma, um bj .to compl ti' 'onl '1111ItH"IO de I1I , !'lldl 11111~ '1lI duvkl: IIIHI,111.11' OS voos m 'laflsi que descobrimos
leite ou uma série de tableaux independentes po tos lad a lado. I ' 010 til' o 1"11,.111o. 1l0!lIl'S t,,',1I11urran los da' eventos, permitindo que

il teatro brechtiano nessa tradição clássica também oferece um estranham nt dI ""' '''IXO prtmul lnorninad fos vislumbrado sob eles. Mas talvez o jogo
útil e confere uma interessante ambiguidade à sua própria modernidade. I "' \ ,\I'US S() .íals em Brecht não seja menos fascinante e misterioso, par-
I'
Mas o efeito da narrativa é bastante diferente quando o seu objeto é o li, 111011
'li 'nl 'quando registrado na prosa narrativa de, digamos, A ópera dos
I sujeito ou a personagem, o protagonista. Nesse caso, o resultado não é tanto 11I "11//(111" na qual uma multiplicidade de protagonistas-Macheath atra-
tornar a ação objetiva, com todos os seus episódios e incidentes, passíveis de ., confusarnente uma era.
uma divisibilidade e de uma análise que lança uma luz diferente sobre eles, I' .is onversões narrativas ou deslocamentos estão intimamente liga-
quanto produzir uma estranheza anormal para o momento subjetivo de de- ti" , outra onhecida técnica brechtiana, a da citação: assim, recomenda-se
cisão e da própria ação, a proairesis do protagonista com seus oscilantes mo- '1'11111101' ite suas falas e transmita seus versos e os discursos de sua perso-
tivos e intenções, seus impulsos psicológicos e mesmo suas pulsões incons- ""1 "111corno se estivessem em itálico ou entre aspas - uma recomendação
cientes. Afinal de contas, a "cura pela fala" de Freud era apenas uma narrativa IIIIIlto .stranha que geralmente é entendida como parte do ataque de Brecht
na qual a história do paciente aos poucos se voltava sobre seu protagonista 1I I11palia" e emoção stanislavskianas. Assim presume-se que há uma emo-
para lançar todas as noções de eu (self) a uma nova luz: posso realmente I" du primeira pessoa e também uma da terceira pessoa, que podem ser
ter sido aquele que ... certamente começa a parecer como se eu realmente 1\ !,Il S .ntadas no palco: na primeira pessoa, o ator "alagaria o palco com
quisesse ... O próprio analista então prepara e proporciona as pistas; seus I 'I" Ima e trespassaria os ouvidos gerais com falas horríveis", desper-
sentimentos em relação ao sr. K ... à sra. K ... Segundo Haberrnas, a psica- I IIIdo a im um sentimento solidário por parte do público, chamado, dessa
nálise freudiana fundamentalmente propõe um reescrever, um recontar, um a "identificar-se"
1111111.1, com ele e com seu "sonho de paixão" e, finalmente,
novo modo da narrativa de vida implícita do sujeito:" para que finalmente I "!lU" "compaixão e temor" ante a perspectiva de um destino que poderia
o que emergir seja menos alguma nova concepção do Inconsciente do que • , o ti espectador.
a capacidade da narrativa de reestruturar nossa representação "ímaginária" 1\lllretanto, essa noção de "identificação" constitui-se num dos mais pro-
daquele actante que é o eu (selj), o ego, a primeira pessoa, ou o que quer que \',,"111ticos e inexaminados conceitos no arsenal dos clichês sociológicos; e
seja, para modificar nossa distância interior dessa "identidade"; remodelar e I"li 1S, os sociólogos os únicos que constroem elaborados modelos teóricos
construir de novas maneiras aquele "eu penso que deve acompanhar todas Ir" ociabilidade" e "sociedade", de "intersubjetividade" e "relações interpes-

as minhas representações': II,M: Existe, sem dúvida, algum instinto impessoal, uma ansiedade vital ou
É importante pensar, no entanto, no que é assim modificado de modo liMO que é impropriamente personalizado e antropomorfizado por meio do
mais relacional, mais do que substantivo: não tanto uma autoentidade li, 1110"auto" (selj) na expressão autopreservação, que se manifesta no terror
quanto, muito precisamente, a "função" designada pela narrativa semiótica uunlo dos pássaros diante dos restos esparsos de algum exemplar de sua
ou narratologia. Lembrando que para Kant o "eu" (self) era também um nú- • til 'ie pregados em uma porta de celeiro ou, o que gera ainda maior ambi-
uldade, numa multidão de seres humanos tomados por fascínio visceral e
42 [ürgen Habermas, "Self-Reflection as Science; Freud's Psychoanalyctic Critique of Mean-
, 111lável horror diante de um cadáver humano. Mas isso tem pouco a ver
1111(,
in Knowledge and Human lnierests. Boston: Beacon, 1971, pp. 214-45· 111111conceito pseudopsicológico de "identificação", que pode, no máximo,

1I
ser imaginado sob a forma de algum 'stódlo do .sp 'lho h 111 1110. E, 11 .ss ti'lltl\~ \\1 "S('IIII'I • ,I di 1('11101 Iv 1i 'nos dado 01110 ornplctamente des-
o qu

caso, a "ausência de identificação" entre tais eu signifi aria qu ' o "outro" '$ plllvltlo til' tom ou moüvuçúo. Assim, ílux de consciência alucinatório da
taria de alguma forma completamente excluído da categoria de humano? mu ' sobre li d 'sumanidad d período nazista é transferido com muita habi-
De fato, penso que se entendem melhor as posições de Brecht, não como lida t para um 1 ngo discurso cheio de divagações durante sua visita semanal
recusa de identificação, mas antes como as consequências a serem extraídas no s natório; mas a amadora a quem o papel (ou melhor, somente a própria
do fato de que tal coisa, para começo de conversa, nunca existiu. Nesse caso, fala, a palavras do monólogo) foi confiado apenas interpreta direitinho con-
a "representação em terceira pessoa", a citação de expressões de sentimento forme a provável direção de Straub, ou seja, simplesmente lê as frases o mais
e emoção de uma personagem, é o resultado de uma ausência radical do eu - rapidamente possível, sem absolutamente nenhuma expressão: na melhor das
(self) ou, ao menos, um acordo com uma compreensão de que o que chama- hipóteses, então, o espectador tende a reinterpretar essa ausência de tom como
mos "eu" é em si um objeto da consciência, e não nossa própria consciência: um~toma daquela desordem mental que o romance pretende enfaticamente
é um corpo estranho dentro de uma consciência impessoal, que tentamos negar que ela tenha.
manipular de forma a emprestar-lhe algum calor e pessoalização. Os mo- Por outro lado, é possível que o meio esteja errado em si e o estrago
delos mais simples de identificação ficam, portanto, sem significado nessa consumado: a "representação" já foi feita e agora está irremediavelmente
situação, na qual, na melhor das hipóteses, numa complexidade lacaniana, registrada para sempre num filme que pode ser passado repetidas vezes
dois auto-objetos mantêm entre si uma relação complexa e mediada por sem nenhuma modificação possível. No palco, entretanto, estamos no pró-
meio das lacunas da consciência isolada. prio presente da performance: ela não continua disponível quando se torna
A citação, então, ou a representação em terceira pessoa, é uma forma de passado (por mais irremediáveis que sejam os gestos já representados, eles
tirar partido dessa situação, de suas evidentes impossibilidades, ratificando a nunca mais poderão ser testemunhados outra vez, apenas lembrados) - mas,
natureza "imaginária" do eu (self), mantendo-o à distância no palco e per- na longa duração de seu presente, o gesto do ator ainda pode ser modificado,
mitindo que seu ventriloquismo se autodesigne. Entretanto, algo precisa ser inúmeras possibilidades se oferecem no presente do palco, que certamente é
citado, algum gesto "já existente" e reconhecível (ou pelo menos nomeável) dotado daquilo que Deleuze chamou de "virtualidade" - muito mais rica do
do ator precisa constituir a substância da citação, assim como o gesto do ator que a mera possibilidade e um tipo de aglomeração, um presente no mesmo
citando seu texto deveria também ser identificável como um tipo de conduta espírito em que Heidegger reinterpretou a vontade de Nietzsche como uma
(ao menos a conduta historicamente reconhecível e legítima do próprio ato de energeia aristotélica. Independentemente do que o filme possa fazer, ele não
representar). Assim, não há como evitar o sentimento de que o agora clássico pode apresentar esse sentido de emergência e práxis.
filme de Straub / Huillet, Os não reconciliados (1965), há tanto tempo admirado Contudo, todos esses argumentos certamente podem dar auxílio e con-
como uma primeira forma de cinema brechtiano, nem sempre está em con- forto aos críticos de Brecht, que sempre sustentam que o distanciamento
sonância com o espírito da narrativa brechtiana. Nessa versão cinematográ- brechtiano, para começar, é impossível e que nós inevitavelmente nos iden-
fica taquigrafada ou xerocopiada da adaptação cinematográfica do complexo tificamos com Mãe Coragem e sua "tragédia" independentemente de nossa
romance de Heinrich Bõll, Bilhar às nove e meia (1958), na condição de voz vontade. Mas talvez isso ainda seja uma forma de reificar o eu (self) e a
sobreposta ou de longos monólogos desprovidos de expressão, o texto original "personalidade" do espectador em vez de apreender a natureza do distancia-
está de alguma forma ligado a uma série de imagens fílmicas e certamente mento narrativo da "terceira pessoa" em proposições como "a mercadora
pode oferecer inúmeros exemplos de "citação':Porém, em primeiro lugar nossa Anna Fierling [... ] perde um filho".
As próprias recomendaç es Inld \I, ti· II1 ',Itl l.tI I1 "1'1111 IIIllis últ'ls do "III'~ O 101111 ,I' IIl11a pnU I slmbóltca li a, de empobrecimento, por
que qualquer análise meramente interprctutlv I. lill' PIOP)' li' li "["111 as' exemplo "0n10 'o uso de Grotowski.
para seus atores: A ita _o em Brc ht também é assim, creio, embora ela seja uma ética
dlrc ionada a falhas e fraquezas muito diferentes da condição humana. Mas
Três recursos que podem ajudar a estranhar as ações e observações dos persona- 1 Iorrna como ela deve funcionar pode ser mais bem observada em outro lu-
gens que estão sendo retratados: assim, em um famoso ensaio, Sartre avalia o efeito do estilo de [ohn dos
Ht1r:
1. transposição para a terceira pessoa Passos de forma muito parecida com as pistas e recomendações brechtianas.
2. transposição para o passado . \ um estilo tão simples e neutro como o de Camus em O estrangeiro, porém
3. dizer as rubricas em voz alta" I. estranho quanto o dele: traindo a operação interna de uma estranha es-
péc~de mecanismo, que liquida a empatia (ou "identificação") que de outra
Mas eu imagino que as objeções dos críticos provêm da dificuldade de iden- r, rma poderia ocorrer, mas acaba parecendo amaneirada e artifical pela trans-
tificar essas técnicas em uma performance real. Nos ensaios podemos sem- P<rência de sua simplicidade e de seu caráter coloquial e comum. No francês
pre comparar as alternativas, mas como distinguir durante a própria peça de Camus, a operação de um tempo verbal que não se usa da mesma forma
se Laurence Olivier está citando Shylock, representando o papel com senti- ( que os franceses não empregam em narração escrita) - o passé composé -
mento genuíno ou simplesmente representando como um canastrão? p rmite que o truque seja identificado. Isso não é tão fácil de se fazer com o
Nesse caso, o ator talvez seja mais importante do que o espectador, e inglês de Dos Passos. Sartre consegue, entretanto, desmontar o mecanismo na
então devemos começar a pensar nesse "método" de Brecht como uma es- versão de Dos Passos: ele está escrevendo na terceira pessoa uma narrativa
pécie de éthos ou pelo menos de um treinamento moral de um tipo especí- de primeira pessoa; quer dizer, ele está fazendo em sua prosa o que Brecht
fico. a uso de narrativas por Loyola é bem conhecido e tem sido objeto de r comendou a seus atores. É irresistível (seguindo Bakhtin e Deleuze) pensar
atenção renovada no momento em que a própria questão da performance numa língua estrangeira no interior da materna (mas uma língua estrangeira
é objeto de investigação.« A esta altura já foram mencionados alguns dos que tenha, de alguma forma borgiana, exatamente as mesmas palavras que as
outros diretores carismáticos ou cultuados, para os quais a própria repre- nossas, a mesma sintaxe e gramática etc. ). Mas isso, - que (segundo Bakhtin)
verdade a respeito de todo modernismo ou (segundo Deleuze) de todo dis-
43 J. Willett, Brecht on Theater, op. cit., p. 138. urso minoritário -, é bem diferente e específico aqui. a aparato crítico de
44 Ver também o estudo que Barthes faz de Loyola. Poder-se-ia argumentar que os Exercícios
artre reescreve uma das principais oposições narratológicas do entre guer-
espirituais são, ao contrário, um texto stanislavskiano par excellence, demandando a mais
ras (derivadas de Gide e Ramon Fernandez), ou seja, aquela situada entre o
completa identificação e perda de consciência restlos [irrestritaJ; entretanto, note-se como
Barthes descreve a estrutura deles em "Sade, Fourier, Loyola": "Não só a matéria estética é romance (com seu presente e futuro abertos) e o relato (como um passado fe-
dividida e articulada ao máximo; ela ainda é exposta por meio de um sistema discursivo hado e deste momento em diante imutável): Dos Passos portanto traduz um
de anotações, de notas ... quando surge um objeto intelectual ou imaginário, ele é quebrado, presente romanesco em termos daquele passado daquela imutabilidade, que
dividido, recenseado ..:' (Oeuvres completes, v. 2, op. cit., p. 1089). Esse texto é melhor para
ile expressa por meio da linguagem do jornalismo, como uma reportagem:
examinarmos os últimos vestígios da inspiração brechtiana na obra posterior de Barthes
do que o mais famoso "Díderot, Brecht, Eisenstein" escrito poucos anos depois do primeiro.
Nele fica embaraçosamente mais clara a consciência infeliz de Barthes com o realismo e a De nosso correspondente especial: "Charlie Chaplin declara que matou Carlitos"
representação (com que ele identifica as figuras de vanguarda do passado de seu título). Agora entendo: todas as falas de seus personagens, Dos Passos as relata no estilo

86
das declaraçõe à imprensa. 1 •.. 1 UJ1l0 simples 'SS" protl'dlnwnlo, 11110 'ft
11 "11111111(101111 dmll ('1\, dllv di' li'" 11\1 '''I'lldo" 11101'11111111 (""111111 1I ""1
caz: basta contar uma vida com a técnica d j rnalism am irlcano 'a vida se
" I ~II\I p' '~ '''I ' J1osl~,10, 1lido O qllt' SI' pO lerlu ~IW'III dl'ks (" I (""I" (' "111 (
cristaliza na qualidade de social."
10 prol '(,lriU to". I ols P .qu 'nos bur zu 'S '8 lnvo Indo ~lI,1 olu I 11,10 I' \ I 1i11\1I11I1

desculpn I ara vitar mpr mi p llí i : .ssa 'ra I verdade \' ptll \,,111 1\ \11
É claro que aqui Sartre dá um passo adiante em relação a Brecht ao identificar pr '( .ndíarn se qu ê-la."
a linguagem da narrativa em terceira pessoa de um deeterminado ato em re-
lação ao que é alienado e social ou coletivamente inautêntico (o "homem" hei-
N,1O lã claro em que medida Sartre e Beauvoir prati aram 'SS' "1111 I\,dl"
deggeriano ou "qualquer" é mencionado, e também se evoca uma espécie de
u romances; de qualquer modo sua ênfase na classe so i ,I • !lI! d\
\'111 S
visão flaubertiana da onipresença do clichê e do estereótipo no capitalismo).
lvimento de uma autoconsciência crítica de ela e entr lntel '11\111
SI'I1V
Mais a propósito em nosso contexto presente, porém, é a forma na qual
burgueses contrasta de forma proveitosa enquanto técni a om I Itlll I
esse entusiástico endosso sartriano inclui seu tipo específico de ética, uma
hr htiana sobre a história. Pois em Brecht é menos uma qu Si o dI'
ética na qual a velha oposição entre a moralidade individual e a coletiva é
Iuar um dado indivíduo numa classe social preexistente, com seus v tlOI i'
transcendida: neste ponto deixemos que Simone de Beauvoir, em suas me-
kl iológícos e aparência específica, do que de transcender Oduplo I'ndlllll
mórias, ocupe o palco:
I' ventos individuais e coletivos. É como se recontar event s Indlvldlll
tomo históricos não fosse meramente uma técnica satírica, mas I \111111'111
Fomos imediatamente nocauteados pelos efeitos deliberadamente chocantes que
um novo modo de auto conhecimento. Assim, a citação de M' 1/ 0111 ; 1\\1 ti
Dos Passos concebeu. Cruelmente, ele observou a humanidade em termos da co-
.omeçamos esta seção, e na qual Me-ti observou a ausência de I I" • 111 I I
média rotulada "liberdade'; que os homens representam ·em sua própria interiori-
os nos "clássicos" (ou, em outras palavras, Marx, Engels e L nln), 1'1111111 ,
dade, e também como simples projeções impotentes de sua situação. Sartre e eu
da seguinte forma:
muitas vezes tentamos distinguir alguma terceira pessoa, ou mais frequentemente
a nós mesmos, nessa maneira estereoscópica. Embora possamos seguir pela vida
Ele também pensou neste contexto que o ponto de vista históri o 111111 I Id"
alegres e auto confiantes, não podemos ser acusados de autocomplacência. Dos
recomendado de forma mais útil. Foi então que, após muita rcíl XlIO. ,I· 111 1111 ,

Passos fornecera-nos uma nova arma crítica, e tiramos ampla vantagem dela. Por
lhou o indivíduo a considerar a si próprio historicamente, assim 0J110 I••\ 1I \
exemplo, esboçamos nossa conversa no Café Victor como Dos Passos poderia tê-Ia
e os grandes grupos de pessoas, e a comportar-se de forma hi t ri' I. A d,l,
desenvolvido: "O gerente sorriu com satisfação, e ambos sentiram-se enfurecidos.
quando vivida enquanto material para uma biografia, assume certa I'nvll,ld· \
Sartre tirou seu cachimbo e disse que talvez não bastasse apenas simpatizar com
pode fazer história por sua vez. Quando o senhor da guerra [u Seser lJúllo LI 111 I
a revolução. O Castor mostrou que tinha que fazer seu trabalho. Eles pediram
escreveu suas memórias, escreveu sobre si próprio na terceira pessoa. 'lumh "111
duas cervejas grandes e contaram como foi difícil estabelecer o que cada um de-
se pode viver na terceira pessoa, disse Me-ti."
via aos outros e o que devia a si próprio. Finalmente, declararam que se tivessem

45 J.-P. Sartre, Situações I: Crítica literária [1947], trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac
Naify, 2005, pp. 42-43. Ver também o ensaio sobre O estrangeiro de Camus no mesmo vo-
_16 Simone de Beauvoir, The Prime oi Life, trad. P.Green. Nova York: World, 1962, pp, II \ I I
lume, pp. 117-32.
17 B. Brecht, "Me-ti, Buch der Wendungen" in Werke, v. 28, p. 188.

88
Dualidades do sujeito ( II IlIdll 1,11 11' 111'11 11111'1"111, .tll'lIl dll\llI ' , '''/111 '111 ' eSIÓ((\'1. indo, ele irá, nos
plllllll,~ 'SS\'II( IlIs, di' (lIh, I,', t"~p'dli .ur, . d .lxar [aro aquilo que não está fa-
Entretanto, mesmo quando se reescrevem velhas histórias em nova forma, a I 'lido; Isso si nlf ,I diz '" que ,I, atuar de tal maneira que a alternativa venha
questão do conteúdo empírico preexistente (segundo a expressão de Barthes) I em 'r Ir do m do mais laro possível; que sua atuação permita que as outras
necessariamente vem à tona; a narrativa em terceira pessoa pode não parecer posstbllldadcs sejam inferidas, sendo que apenas uma das variantes possíveis é
a narrativa em primeira, mas não se dissolve em algum fluxo inominado da r 'pr 'sentada. Ele dirá, por exemplo, "você me paga" e não dirá "eu o perdoo" Ele
pura percepção, ou mesmo em experiência sensorial. Minha intuição, no en-
II tanto, é que nem por isso essa tensão filosófica entre o social e o metafísico,
entre o nomeado e o inominado, desaparece. Ela simplesmente é deslocada
d 'I sta eus filhos, não os ama. Ele se movimenta
, 11, o
em direção à esquerda
à direita alta. Tudo o que ele não fizer precisa estar contido e conservado
naquilo que ele faz. Desta maneira, toda fala e todo gesto significam uma decisão,
baixa

para um contexto filosófico ligeiramente diverso, porém relacionado, e que ~personagem permanece sob observação e é testada. O termo técnico para esse
pode ser descrito como a tensão, se não como a oposição, entre dualismo e procedimento é "fixar o 'não ... mas"."
multiplicidade - uma tensão que naquele sentido é algo como um membro de
III sua própria classe,isto é, um dualismo em si mesmo, ou, como quer Deleuze," Mas mesmo nesse texto fundamental, fica claro que o assunto é muito mais
algum tipo de nova multiplicidade que até agora não identificamos? Quero nbrangente do que o dualismo que de início ele parece sugerir. Com cer-
evitar, nestas discussões filosóficas,qualquer indulgência adicional ou ameaça; li za, a piedade e o amor materno de Grusha, sua decisão de adotar o bebê
trata-se apenas de indicar que elas são centrais em certos debates "pós-moder- thandonado e resgatá-lo são a princípio representados contra o horizonte
nos" muito influentes. pur da outra possibilidade: sair do conturbado palácio em chamas o mais
Para voltarmos ao concreto e aos textos, pareceria claro que a primeira e rnpidamente possível, salvar-se, deixar o bebê real para trás para que outros
mais simples forma daquilo que estamos chamando de "dualismo" na prática l' cupem dele ou para que seja morto pelos rebeldes, como é provável que
teatral brechtiana é a da afirmação ou negação. Esse é o mais óbvio espaço ,I nteça. Mas isso não implica necessariamente outras "variantes possíveis":
da liberdade brechtiana, pois nela um simples gesto visa não só a projetar o trata-se de uma decisão, sim ou não. Da mesma forma o Umfunkionierung
que logo terá sido feito, ou seja, o que está sendo feito na nossa frente, como d ' Galy Gay em um soldado imperialista não expressa exatamente, apesar
ainda o que não poderia ter sido feito, o que poderia ter se tornado outra do que o próprio Brecht diz, a mensagem de que se pode transformar um
coisa completamente diferente ou que poderia ter sido totalmente omitido. homem em qualquer coisa: pois a casualidade de qualquer coisa de alguma
Isso pode ser pensado como a forma representacional mais rudimentar da forma está ausente aqui, e a demonstração pedagógica não nos convence
proairesis de Barthes: o desdobrar-se positiva ou negativamente. E pareceria 1mente de que, com equipamentos e procedimentos adequados, transfor-
I '

oferecer um estilo ligeiramente diferente de representação daquele nos quais maríamos o "peixeiro pacato" em um estadista, por exemplo, ou num inte-
divido meus gestos ou represento a mim mesmo na terceira pessoa. I, tual, num grande cortesão, num chefe da máfia ou num rufião. Talvez se
pudessem fazer todas essas coisas, mas não está na lógica dessa demonstra-
~n teatral provar esse ponto particular: tudo o que nos apresenta é a trans-
48 Este é o argumento central (contra o conceito de negatividade como tal) de Gilles Deleuze.
Ver Diferença e repetição [1968], 2~ ed, trad. rev. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São 1'1 B. Brecht, "Schriften 2. 1933-1942': in Werke, v. 22, p. 646; J. Willett, Brecht on Theater, op. cit.,
Paulo: Graal, 2009. P·137·

90
91
formação binária de «pa at "U
m roz "I"
,t c IV 11".m so I I·.H I() ",t' I "\ unu
U
I II II'VI 1I0~' puru I" 111\111 di 11t1l11ll1,IS p\'lstlldtti'us(L'/irslü ke),so-
casado" em "solteirão', de "colonizado" em "colonizad 1"" " S '111 dúvl Ia, ti ' 1111' ns quuls, (101 bso 1111'1'11111, IHOI' \ pr .lsamos dizer alguma coisa.
hindu em britânico. É uma meditação interessante sobre o que em pou S I\ss () 'spa~() mais -xp irlm ntal de Brecht, pelo menos tomado no
anos se tornou o fascismo; ainda que de um ponto de vista literário ele pa- st'nl ido m d 'rni ta: também o espaço de uma espécie de minimalismo
reça, não obstante, aprisionado em uma sátira social à maneira de Moliere, hr htiano, antes derivado, como se pode imaginar, do convencionalismo do
ou em um drama de caracteres, em que temos um padrão ou um ponto de I, 'ste A iático, mais especialmente do teatro japonês (e também das perfor-
partida "típico" (o avarento, o hipocondríaco etc.), sobre o qual acrescenta- man es chinesas de Mei Lan-Pan) do que do experimentalismo europeu -

mos as mudanças. - do expressionismo a Beckett. Aqui se exige tanto da plateia quanto dos ato-
É importante, por outro lado, questionar a noção de que Brecht é sim- 1'(" uma simplificação radical da experiência. Uma igual redução da ação e
plesmente um satirista, pois isso é algo que o confinaria injustamente à sua do ~to ao mínimo da decisão enquanto tal, numa situação em si mesma re-
época e à sua sociedade e ambiente específico. A história, de qualquer forma, duzida ao mais mínimo maquinismo da escolha. Aqui, então, os fragmentos
rompeu explosivamente essa sua eventual condição e nos anos 1930 estendeu , r squícios do conteúdo - o cenário histórico na Roma antiga ou na China
para o resto do mundo suas experiências sociais, mas tampouco é particular- r .volucíonáría, os representantes das forças opostas e poucos esparsos traços
mente sobre o aspecto biográfico que se quer insistir. Ao invés disso, o Brecht ti caráter dos protagonistas sem nome +Iembram-nos em alguma medida
filosófico, o Brecht "modernista" que queremos expor aqui é um pouco mais aqueles Merkmale [sinais característicos] do cenário teatral físico sobre o
do que um comentador social ou um crítico de "moeurs": mesmo os dramas qual Brecht em alguma medida também teorizou, levantando novamente a
de Weimar mantêm uma relação muito diferente com a própria Weimar do questão da diferença entre conhecimento e aparência ("os elementos COl1S-

que aquela que, digamos, Ibsen mantém com a sociedade norueguesa de I iluitivos das coisas ou sua aparência perceptual específica ?"). Mas assim ele
seu tempo, ou quase qualquer dramaturgo americano contemporâneo com 1150 quis referir-se à distinção entre duas espécies de conhecimento estático,
os Estados Unidos dos nossos dias. Ao mesmo tempo, como já vimos antes, .ntre contemplação fenomenológica enquanto oposta ao abstrato e ao estru-
é muito importante livrar Brecht da "ironia" enquanto valor dominante da tural, pelo contrário, ele tinha em mente muito especificamente a diferença
agora tradicional ideologia do alto modernismo. Northrop Frye defendeu ntre produção - construção como atividade - e recepção - ou, em outras
enfaticamente a separação entre sátira e ironia, que Wayne Booth com igual palavras, contemplação como consumo: a confusão resulta do estado atual
plausibilidade deseja dissipar (me parece que, pelo menos em parte, para ti ' coisas, "nós, filhos da era da mercadoria, lidamos com as coisas na con-
reconquistar o território da sátira com sua ideia normativa de "ironia está- dição do produtor ou na do consumidor, e em geral somos irresistivelmente
vel", contrapondo-se à versão modernista ou instável)." Mas Brecht, como mais propensos ao processo de consumo'>' Mas, para ser montado ou repre-
pretendo demostrar, não é nenhuma dessas coisas nem fica no meio-termo. s .ntado, por sua vez, esse dualismo particular precisa receber uma forma ou
Esse tipo de projeção binária de alternativas opostas, de simples afirma- direção muito diferente.
ção ou recusa, a bem da verdade, não nos reconduz ao conteúdo dos tipos Além disso, acho que temos todo o interesse em desembaraçar a evolu-
sociais e da sátira social, empiricamente rico mas contingente; pelo contrário, çao da Lehrstück do destino, relacionado mas independente, da música no
l .atro brechtiano. Sabemos que no início do período experimental, no final

50 Ver Wayne Booth, The Rhetoric of lrony. Chicago: The University of Chicago Press, 1974· \1 B. Brecht, "Schriften 2. 1933-1942'; in Werke, v. 22, p. 247.

92 93
da década de 1920 m xo da ti ad I li' li ,\ l1lú~k \ 1111' ''OU S 11 \ '1"1 11111 ~ I IId, 101 t luuu.ulo d' 111111 humanlsmo csscn ialrnente uma po-
forma de cantata da qual o rádi roi pioneiro, enquanto tal, orno '111 O 1/0(/ 1I lltil I ,,"11 I um Indlviduallsmo [uc era ncccs ariamente parte integrante
sobre o oceano: essa cantata é às vezes classificada como Lehrstü k LI "p a .11 11111,\ ultura buruu isa por um lado e que era claramente "centrado" numa
de didática" (invenção inglesa do próprio Brecht, segundo consta); ma a 1'1'1 p" Ilvr f norncn lógica ou psicanalítica, por outro.
sim também é a adaptação de A mãe de Górki que, por mais pedagógica 1~lllr tant , a própria ascese do sujeito pós-humanista ou pós-individua-
que possa ser, não parece ser da mesma espécie que Aquele que diz sim ou 11 1.\ oi obj to de mal-entendidos históricos, particularmente quando o pri-
A decisão. Apesar da íntima colaboração teórica de Hanns Eisler e Brecht 1III'Iro x mplo das Lehrstücke em geral é a célebre A decisão, que tem sido
nesse período, no exílio americano, e depois da guerra em Berlim Oriental, uunada com mais frequência como uma defesa dos expurgos realizados por
é importante, por outro lado, compreender como as conotações de música li 1111 (que estavam por vir), e como chamada para um liberal autossacrifício
eram muito mais ativas e produtivas numa Alemanha em que a apresenta- d 11111 das exigências impessoais da revolução. O jovem camarada realmente
ção caseira de números com improvisação era muito mais natural do que motiva sua própria execução como resultado de suas falhas e de seu mesmo
em muitos outros países, e também o grau em que, na cantata radiofônica, a I, sim generoso engajamento no partido; tais lições são particularmente ina-
música também é portadora do signo do tecnológico e está associada a tudo d, quadas para um tempo como o nosso, no qual toda repressão ou sacrifício
o que constitui a concepção brechtiana de modernidade (oposta ao "moder- u-nde a ser interpretado como uma mistificação e atribuído a esta ou àquela
nismo" puramente estético, mas, pela relação de forma e conteúdo, não intei- I onspiração ideológica. Mas nós não precisamos nem ficar na defensiva no
ramente desvinculada do passado de Eisler como discípulo de Schoenberg '1" ' diz respeito ao aspecto desagradável e cruel de A decisão, nem indireta-
e proponente das mais "modernas" técnicas musicais). Quaisquer que sejam 111 nte defender o stalinismo a fim de evitar a sua condenação logo de saída.
a destinação das cantatas e sua inter-relação com a tecnolcgia do rádio, as Em vez disso, precisamos compreender que a peça é incompleta (apesar
mais clássicas Lehrstücke (se me permitem o termo) estão associadas priori- da central idade radical que Brecht lhe conferiu em sua obra teatral). Basta
tariamente à sala de aula e à pedagogia, na representação ou no ativismo, e a examinar os primeiros trabalhos do conjunto de peças didáticas, o par de
sua discussão precisa ser encaminhada primeiro e sobretudo nessa direção. p iças das que se espelham entre si chamadas Aquele que diz sim e Aquele
A escassez dessas peças, que se voltam para uma estética oriental do vazio flue diz não, para ver o que está faltando aqui. Pois essas peças, elaboradas
e do objeto ou item isolado, deve ser antes associada à cultura pré-capitalista, s cgundo o modelo de uma tradicional peça Nô,53apresentam as alternativas
creio, do que à desolação pós- Auschwitz identificada com tanta frequência j, implícitas e recomendadas pelas teorias da representação acima citadas.
nas peças de Samuel Beckett." O desfecho radical das Lehrstücke brechtia- Na primeira, o menino ferido concorda com sua própria morte a fim de
nas não deve, portanto, ser compreendido como treinamento simbólico em s guir o ritual de praxe e evitar o fracasso da expedição. Na segunda, como
alguma pesquisa grotowskiana espiritual e de empobrecimento, mas ele tem o título sugere, o menino recusa-se a ser sacrificado, e a expedição retorna.
um significado claramente alegórico que as temáticas estruturalistas e pós- Isso significa tornar perfeitamente inteligíveis o sim e o não com uma exten-
-estruturalistas do fim do humanismo e da morte do sujeito também expres- são incomum, o pró e o contra; ampliando o leque de escolhas e possibili-
sam, talvez porque elas próprias descendam dele. Pois na época de Brecht, o dades. Bastaria ter acrescentado uma contrapartida para a própria A decisão
para desacreditar os erros de interpretação referidos acima: o jovem cama-
52 Caso da famosa interpretação de Adorno em "Versuch, Endspiel zu verstehen', in Noten zur
Literatur, v. 2. Frankfurt: Suhrkamp, 1961. 53 Ver Darko Suvin, Lessons of ]apan. Montreal: Ciadest, 1996.

94 95
rada poderia recusar e S 'I" .xc uludn: dI' POt!I'1 111'111 I1 I (I IOllduzido III1I1 () 111 IIIHI ,'d, 11I11\/1'/ 1/1/\\, qll" 111011' issnrlnm nu ' prc isa da pre ença

por seus companheiros, que, por sua v 1.111111 I 01"


'Z, 1'0 1"1 11111 'alisa I 'I ' dI um dlretur: Illl'SllIO '1"(' lill,l "11 'mos o S hiflbaucrdamm" como uma mas-
ou até mesmo cumprir a missão. A lição p !lLi a '111 todos os a s l ria 11'/ cluss p .rrnan .nt " para a qual um público pagante é convidado somente em

sido a mesma: a importância central da própria situação. Ao mesmo tempo, p iai: o significado de Brecht para o estado era tal, na verdade,
ficaria desfeito o outro equívoco sobre A decisão, certamente ainda mai qu inve til! dinheiro e recursos, inclusive pessoais, não apenas para criar
desgastante para Brecht do que a acusação de stalinismo - a classificação nul ro teatro, mas para satisfazer o desejo supremo de qualquer verdadeiro
desse drama como uma autêntica tragédia, que suscita piedade e terror. Mas homem de teatro - realizar infindáveis ensaios nos quais, de modo verda-
não se trata de uma tragédia, e sim da dramatização da dialética, do primado - li iramente brechtiano, todas as alternativas podem ser testadas e intermi-
da situação coletiva sobre a ética individual. Assim, se é isso que significam navelmente debatidas. Nesse ínterim, a passagem dos vários atores por todos
a peça e a própria dialética, então está explicado o estatuto central, embora os PâPéis cria necessariamente uma multidimensionalidade que é a própria
enigmático, de A decisão no trabalho de Brecht. essência do teatro de repertório, ou do teatro enquanto tal, mas que dificil-
Devemos ainda extrair outra lição, de outra espécie, das peculiaridades mente pode ser realizada por meio de programação própria e teorizada. Isso
das Lehrstücke: e este sem dúvida é o momento de dizer que a tese radical de Implica que, conforme o texto e sua representação lentamente se desvanecem
Reiner Steinweg sobre as Lehrstúcker ainda pode oferecer perspectivas ana- C desaparecem em discussões ampliadas, em lutas sobre a interpretação e as
líticas produtivas que permanecem inexploradas. Trata-se, evidentemente, propostas de todos os tipos de alternativas gestuais e cenográficas, precisamos
de uma intervenção "revolucionária" de 1972 que contribuiu para cristalizar meçar a inventar uma nova concepção para o tipo de arte e estética que a
a ortodoxia, embora não à maneira clássica, deixando o fIanco aberto a todo I, hrstück parece ensaiar. Essa arte terá que evitar a reificação da linguagem
tipo de revisionismo; mas não surpreende que a investigação filológica deixe li ual dos trabalhos e objetos de arte, esse termo novo, mas terá que incluir as
escapar este ou aquele detalhe. 55 Apesar de tudo, a proposição de Steinweg discussões e as revisões, as alternativas propostas, de forma um pouco mais
inesperadamente completa a demonstração a que demos início aqui, ou seja, substancial do que a geralmente feita quando pensamos nas discussões com
mostrar como um tipo específico de diferença ou de oposição - a alterna- O público que o Berliner Ensemble e outras companhias dramáticas defen-
tiva sim ou não, a decisão que faz avançar o "Nicht / sondem': o "não isto mas deram desde os anos 1960. De fato, se algo como a ideia de uma master class
aquilo" - constitui pelo menos um dos níveis dessa dramaturgia, ou, diga- ~adotado para uma nova entidade-processo tão estranha, um traço que ela
mos, traduz pelo menos uma implicação filosófica daquela teoria teatral e l rna claro é a inseparável presença da assim chamada teoria dentro do pró-
de sua prática. prio "texto" maior. Não que a teoria se transforme em obra de arte no sentido
I
Steinweg, como se pode lembrar, afirmou que o que era específico às próprio, tampouco que o texto artístico simplesmente reincorpore a teoria e
II
Lehrstücke e verdadeiramente único naqueles experimentos de dinâmica cê- se torne uma nova espécie de colagem ou experimento de mixed media. Ana-
"li. I nica era a exclusão que promoviam do público e, ao mesmo tempo, o reveza- li ando a questão de forma mais teórica, já que, para nosso uso, registramos
mento dos atores nos vários papéis. Trata-se, em outras palavras, do que no alguns desses processos nos escritos dramatúrgicos de Brecht, a teoria é parte
I

do próprio processo, e seria possível, de forma igualmente fácil, tanto defen-

54 Reiner Steinweg, Das Lehrstück. Stuttgart: Metzler, 1972.


55 Ver a réplica do próprio Steinweg a essas críticas e em particular a Klaus- Dieter Krabiel, Composição do Schiffbauerdamm: Helene Weigel, Caspar Neher, Peter Lorre, Lotte Lenya,
Brechts Lehrstück (Stuttgart: Metzler, 1993), no Brecht Yearbook, n. 20, 1995, pp. 217-37. entre outros. [N. T.]

97
der a ideia de qll a pc a Ou I 'xlo orl rluul c lstc 111111
di líllIVIH I I t 'orla' 1'111O\IIHI Lido, IlIholl\1I0 du dll('I('II\ \ '1111''1111"1'1'1'
'I' '01 s .rvador nã
dar-lhe conteúdo, ocasião e matéria-prima, pl !lllo cl -vlsta mais
quanto, ti 11111 I IlIosol! ,11Il('llll' I\l 'III)~ lund.un '111al, 'O11l0O cguint fragmento (precisa-
convencional, postular a ideia de que a teoria está I. lmpl 'sm n te para per- do I \
1111'111(' 'SIl10 P .rlodo qu ' O prirn ir , 1930-31) esclarece:
mitir uma produção mais acurada do texto. Voltarem post riorrncnte a esse
ponto, cujas implicações ainda não se esgotaram. ( s fil sofo burgue es insistem na distinção fundamental entre ação e contem-
O que deve agora ser demonstrado, entretanto, é que a tese de Steinweg, pla o. Mas o pensador verdadeiro (o dialético) não faz essa distinção. Se você
ou, se se preferir, o seu ponto de vista sobre a unidade brechtiana de teoria a fizer, você deixa a política para aqueles que agem e a filosofia para aqueles que
e prática, também envolve a negação ou a reversão filosófica da categoria da contemplam, enquanto na realidade o político deve ser um filósofo e o filósofo,
diferença, proposta anteriormente. Pois a operação também pode ser formu- um político."
I
i lada como a ultrapassagem de tal oposição e, em particular, a transcendência '\
e a superação" precisamente da distinção entre ator e público: I" 'vidente, a partir da variação temática das outras notas e escritos de
111" ht, que quaisquer outras oposições "ocidentais" ou burguesas funda-
o Grande Aprendizado transforma completamente o papel da própria interpre- 11\intais também se incluem aqui - aquela entre trabalho mental e manual,
tação teatral. Ele nega o sistema no qual o intérprete e o espectador são correla- por exemplo," ou entre arte e vida, entre governante e governado etc. En-
tos. Ele conhece de antemão apenas intérpretes que são aprendizes (estudantes 11''tanto, essa particular "superação" ou "transcendência" visa não a abolir
em geral) simultaneamente. 58 os dois lados da oposição, mas, antes, completá-los, intensificar o que pode
~l'r chamado de "utilidade" de cada um, como a continuação da citação
A diferenciação em um nível - a decisão de representar oú não esse gesto .mterior enfatiza (na qual o termo "estado" significa o estado socialista ou
em especial, ou de representar o seu oposto - prOVa agora ser a anulação Il'V lucionário):
da diferença em um nível talvez mais básico, no qual ela se apresenta como
diferença entre atores e público. Talvez devêssemos ir mais longe para dizer o prazer na contemplação solitária é prejudicial ao estado, mas também o é o
que a obtenção da identidade nesse segundo nível requer o exercício de vá- prazer do ato solitário. No grau em que jovens em geral brincam através de atos
rias formas de diferenciação no primeiro: entretanto, não está claro qual ní- imbolicamente completos e ao mesmo tempo sujeitos ao seu próprio julga-
vel é filosoficamente o mais fundamental. Pois, pergunta-se, a alternância do mento, pode-se dizer que esses jovens são educados em função do estado ideal."
"não / mas" não é crucial no treinamento dos atores numa liberdade especifi-
camente brechtiana, seguindo a convicção de que a práxis é possível sob vá-
rias formas, e que nada é realmente necessário ou inevitável naquele sentido?

') Id., ibid., p. 398.


57 Optamos por traduzir Aufhebung sempre por "superação", uma vez qu o autor usa o fi!) Como, de maneira clássica, em Alfred Sohn-Rethel, Manual and Intellectual Labor (Nova
termo alemão. [N. T.] York:Humanities, 1978).
58 B. Brecht, "Schriften 1. 1914-1933': in Werke, v. 21, p. 396. fll B.Brecht, "Schríften 1. 1914-1933': in Werke, v. 21, p. 398.

99

~ I
( a mult iplicidudc l()I\II' .tI \ li 1('1111',1111\'1110111,1" qll,lI 1111'111111.10 P,II' • I 'I' 11 10 'SP' 'ia I int rcssc. M mo
ollsid '1'lI1\(lo 1111' S '\1 p' (')p' 10 ddlo ti 'si ranharnento eja certamente uma
Há uma alternativa, entretanto, para m '!'tIS ali rnativa : no lugar do !TI vi- mau .lru li faz 'I' ai 'o '0111 as conhecidas entidades satíricas preexistentes
mento que nos leva simplesmente a não no enfurecermos mas do que a nos que não as ti ixass impl mente marcadas por uma desaprovação moral,
enfurecermos, podemos de forma imprópria sentir alguma outra coisa com- mesmo pre ervando-as como quantidades sociais ainda conhecidas. A con-
pletamente diferente - alívio, por exemplo, ou uma gratidão desviada, ou fu ão mental do sr. Peachum, por exemplo, que conhecemos desde A ópera
euforia ou depressão. Junto com não/ senão há toda uma multiplicidade de dos três vinténs como uma preocupação banal acerca do desperdício com o
sentimentos nomeados e emoções que raramente são o oposto uma da ou- casamento secreto de Polly e Macheath, e que é imensamente obscurecida e
tra e que algumas vezes podem de fato parecer misturadas, sobrecarregadas, intensificada por suas ansiedades financeiras em O romance de três vinténs, é
quimicamente combinadas." O que são exatamente esses afetos psicológicos, apenas um aspecto da novidade psicológica desta última personagem em es-
como distinguir sentimentos de emoções, como racionalizar os elementos pecial, cuja representação pode ser justaposta em complexidade à crítica que
da tabela Mendeléiev que antes de mais nada eles constituem - essa é a Nietzsche faz da religião e do altruísmo. No episódio que nos interessa aqui,
areia movediça sobre a qual "ciências" como a psicologia foram construídas. entretanto, o esquema de lucrar com os contratos governamentais durante a
O certo é que cada cultura tem sua enumeração própria de tais fenômenos. Guerra dos Bôeres e de vender três imprestáveis navios a preços extorsivos
Na ocidental eles vão da Ética nicomaqueia, de Aristóteles, a As paixões da proporciona um contexto único para registrar algumas das mais ingênuas
alma, de Descartes, antes de se dividirem na era burguesa, dando lugar a reações de Peachum ao negócio fraudulento do qual ele próprio é vítima:
inúmeras espécies até então não nomeadas. Como exemplo, há a "simpatia" "Ele entrou no esquema em primeiro lugar porque se tratava de enganar o
de Rousseau, que fica em algum lugar entre a antiga "piedade" e a "empatia" governo, uma perspectiva em que se inspirou com cega credulidade'lv
brechtiana, e consiste numa descoberta primordial do Outro; ou então a "an- Seria um erro pensar, como sem dúvida é mais fácil em relação à Ópera
gústia" de Kierkegaard ou Angst, assim como o ennui [tédio 1 de Baudelaire e dos três vinténs (que passaremos a examinar), que estamos diante das técni-
talvez ainda várias formas modernas do sentimento do sublime. cas simples de inversão do cinismo brechtiano. O que se propõe é um sis-
Mas essa enumeração lembra-nos de que a oposição entre a simples pre- tema psicológico totalmente novo, no qual os blocos básicos de construção
sença ou ausência e a pura multiplicidade articulada é, então, intersectada permanecem os mesmos - há, por exemplo, confiança, conduta baseada na
por aquela questão muito diversa do nomeado e do não nomeado ou do ino- honestidade, um senso moral de indignação e julgamentos a respeito do
minável: uma nova oposição entre o que Barthes chamava de empírico, o já bem e do mal. Todos esses sentimentos são tradicionais como geralmente se
existente e estereotipicamente familiar, e aquela nova espécie de intensidade pensa e com toda certeza podem ser encontrados num passado tão remoto
que, para o bem ou para o mal, não é nada do que já tenhamos conhecido ou quanto o do capitalismo protestante de Max Weber, assim como as formas
tenhamos probabilidade de conhecer novamente. O modernismo se interessa de frugalidade e atividade honesta lá desenvolvidas. Só que as relações entre
profissionalmente por estas últimas, acrescentando alguns nomes novos ao todas essas coisas foram profundamente modificadas. Em especial a visão
processo (dostoievskiano? jamesiano?) numa corrida e num processo de pa- que Peachum tem da natureza humana ("o mundo é pobre, a humanidade é
podre", como vimos na Ópera dos três vinténs), uma visão por certo dotada
62 É a objeção clássica de Sartre a Proust em L'Être et le néant (Paris: Gallimard, 1943,
pp. 216-17 fedobras.: O ser e o nada, trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2005]. 63 B. Brecht, "Alies für das kind" in Werke, v. 16, p. 46.

100 101
de um senso religio d P' 'lido l' l IlIp" '1111 I '111111011<11111 l', t' cxpundlu 1I IlId ,(. 11('1111 111 11111 1111' 111I I I. tI.I' P 'I • -bc o vcnd dor n o como um amigo
até um ponto em que sua ressonãn Ia não ,: !lHIi ,I !lH' 11111, (' \,011 elhelro, !lI '\llllll lu 11111'11 IJud ·10 d todas as formas, mas antes como uma
P 'SSOll maldosa 'hip6 rlta que visa a eduzi-Io e enganá-Ia. Nesta situação o
. Afinal, a intenção que qualquer homem de negócios tem de enganar outras pes- vcnd d r, adrno tado, muito frequentemente desencoraja-se e abandona qual-
soas é honrosa. Entretanto, o mundo era até mesmo mais corrupto do que se po- qu r tentativa de conquistar o cliente, de melhorá-Io, de abrir relações genui-
deria imaginar. Não havia limites para sua corrupção. Essa era a mais profunda namente humanas com ele, em suma, de transformá-Io em um comprador de
convicção de Peachum, na verdade sua única convicção genuína." primeira classe. Confiando apenas em Deus, o lojista simplesmente coloca suas
mercadorias na mesa e deposita uma última esperança na imprevidência e na
Assim como nos momentos de uma delirante transcendência satírica (como total miséria, que de vez em quando simplesmente forçam um freguês a tomar a
na Duncíada de Pope, por exemplo), uma dimensão quase metafísica torna- iniciativa. Mas essa perspectiva verdadeiramente incorre num erro de concepção
-se visível e inspira a tontura e a náusea das coisas verdadeiramente grandes. e de representação do cliente. Pois no âmago de seu ser este é melhor do que
Salvo pelo fato de, diferentemente de Pope, Juvenal ou Wyndham Lewis, aqui aparenta. Foram exclusivamente as experiências trágicas no seio de sua família
mal se pode dizer que o autor expressa sua visão de mundo: na melhor das ou na vida dos negócios que o tornaram fechado e desconfiado. No mais pro-
hipóteses ele oportunisticamente tira vantagem de uma de suas personagens fundo de seu ser persiste uma esperança muda de ser finalmente reconhecido
para testar sua voz na ressonância metafísica. Mas ela é apenas uma voz por aquilo que ele realmente é, ou seja, um comprador de grandes proporções!
entre muitas outras, mesmo que em uma situação posterior, A alma boa de Ele realmente deseja comprar! Ele precisa tanto! E quando ele tem tudo, ele é
Setsuan, possamos imaginar que o sr. Shui ta (o "primo mau") adote parte de infeliz! Então ele realmente deseja ser persuadido de que necessita de algo. Ele
uma visão "peachumesca" da natureza humana, e assim converta a multipli- precisa de instruções!"
cidade do Romance dos três vinténs precisamente em uma daquelas dualida-
des do capítulo anterior, o gesto alternativo que escolhe ora a generosidade, Aqui não é a recomendação ética que é estranha, mas sim o pano de fundo
ora a cruel cobrança das dívidas e uma convicção sobre o caráter imprestável dos valores, a Weltanschauung, contra a qual aquela é encenada; também nós
generalizado dos seres humanos. estamos acostumados à luta darwinista pela sobrevivência entre as classes
Entretanto, tudo isso pode ser tratado em combinações diversas nova- sociais como na própria selva: capitalistas contra outros capitalistas tanto
mente: assim é que o próprio Mac, mais permissivo que Peachum em suas quanto contra o trabalho (é uma história que encontraremos novamente
I11
reações imediatas (mesmo que muito mais enigmático como identidade em na Santa Joana). Mas é menos comum, ainda que bastante plausível, com-
geral, e nesse aspecto bastante diferente do exuberante Mac da Ópera), pon- preender o próprio negócio e o mercado como luta feroz entre dois grupos
dera sobre assuntos relacionados tal como segue, conjeturando se no fim das eternamente hostis.
contas a amizade não pode ser a melhor tática: O estranhamento também pode, por fim, inscrever-se dentro da própria
narrativa, como quando, ficticiamente ou não, se apresenta a Macheath uma
o cliente normalmente se materializa diante do lojista como um indivíduo avaro, caricatura bastante satírica, uma anedota na qual uma ovelha negra da famí-
mal-intencionado, desconfiado e absolutamente sem nenhuma necessidade. Sua lia Rothschild decide experimentar um romance completamente novo e até

64 Id., ibid., p. 46. 65 Id., "Eín Fehlschlag", in Werke, v. 16, p. 135·

102 103
então inédito em termo' de 'stl' 1i gll, 011 (')11, 1 111('I!' I I 1 IH)lu'lI ti lde, 1\, li I)' 111dqll\'I' 101111,1, " 1'1\ li 1111roduzlr iqu! duns zon 'P es LI cale-
ovelha desgarrada é examinada por pslquhurns, 1111111t1d 1 101' I do 1I1'al1 ' - do 1-\00'hls1'(·1\ . olllldns til!' omcçum suu vida 1110elementos na dramaturgia
negócio da família por muitos anos etc. É a reaçã de Ma' qu • expô o ' ti • !lI' "hl, m s .us l. xtos l atrais, que me parecem gradualmente assumir
nio da narrativa brechtiana, a súbita emergência do inesperado e do nov ,o 11m I signi~ a ã filosófica própria. São elas Trennung [separação] e dis-
cruel desviando-se de uma personagem familiar para reconstruí-Ia inteira- t, 11'111. A di tância interior pode ser simplesmente uma forma especial de
mente, na forma de um esforçado e crasso Mac que parece completamente '/'" innung, ao passo que Trennung necessariamente implica e impõe a pro-
não relacionado, do ponto de vista caracterológico, a outros Macs mais ou- du t O da distância enquanto tal (ali onde ela nunca existiu ou ficou visí-
sados, aqueles "capitães de indústria" cheios de uma iniciativa comparável v -I antes). Por outro lado, para que Trennung fique visível, os dois itens ou
apenas à dos grandes líderes militares, mas que nos impressiona como o dlrnensôes separados precisam ser de alguma forma superpostos, unidos
representante de uma espécie completamente diversa: ti .ntro de uma percepção que registra a distância que eles têm um do outro
01110 "uma separação radical de elementos":" "Palavras, música e cenário
» 68 - ,
Macheath ouviu com testa franzida; ele mal conseguia acompanhar a história pr isam tornar-se independentes uns dos outros. Entretanto, essa nao e
do velho Miller, quanto mais entendê-Ia. Ele não captou o ponto central, por ulnda uma formulação positiva ou substantiva, muito menos uma estética
assim dizer. "Segue-se então", ele observava com hesitação, "que você tem que IIlI acepção da palavra, na medida em que o programa de Brecht nesse mo-
tentar tudo na vida empresarial. É isso? Se você quiser ir em frente para obter 111 nto (1930) ainda está direcionado contra o Verschmelzung [amálgamaJ,
um balanço respeitável no fim do ano, você terá que tentar tudo, mesmo as ideias ou, em outras palavras, a fusão de vários elementos (que em épocas recentes
mais estapafúrdias?"66 I '111 sido designada por uma forma bem mais flexível, "orgânica", enquanto
op sta ao "mecânico" ou ao "heterogêneo").
Mas esse é precisamente o ponto no qual o fluxo de estágios interiores inter-
secta as questões de identidade: quem é este novo Mac, por exemplo? Per- Enquanto a expressão "Gesamtkunstwerk" (ou "obra de arte total") significa que a
gunta-se: "ele" é simplesmente o resultado da colagem de emoções nomeadas integração é uma confusão, enquanto se espera que as artes se fundam, os vários
e reações unidas de novas maneiras (uma proposição que poderia também elementos serão igualmente degradados, e cada um atuará como mero "alimento"
ser expressa na noção formalista russa da representação da personagem dos demais. O processo de fusão estende-se ao espectador, que é atirado nesse
como completo oportunismo, tal como ditado pela natureza dos efeitos que caldeirão e se torna uma parte passiva (sofredora) da obra de arte total."
você deseja combinar)? Mas até mesmo isso - que poderia estar baseado em
uma concepção de ilusionismo estético, de fazer a plateia acreditar nesta ou Mas a clareza com a qual elementos conflitantes se projetam uns contra os
naquela personagem, o que equivale a dizer, em termos brechtianos, mais outros - opondo-se a uma perda informe de especificidade informal que se
estereotipada e familar - até mesmo isso começa a pressupor uma metafí- estende à própria precisão ou intoxicação dos sentimentos do espectador -
sica muito pós-moderna, de fato - aquela da construção do psicológico e 11 é necessariamente a função estética primária da Trennung, embora possa
da personalidade, se não a da própria "morte do sujeito", sua nulidade, sua
existência mínima como um tipo de béance [abertura]. r" Id., Werke, v. 24, p. 79; J. Willett, Brecht on Theater, op. cit., p. 37·
IIH Id., ibid., p. 79; id., ibid., p. 38.
66 Id., ibid., p. 134. (") Id., ibid., p. 79; id., ibid., pp. 37-38.

105
10 4
sê-I tarnb m. A istrutura dl'M 1'1111
ItI" dll' I I I III 11,111li. dI IIll'lhl Pl'l'IlIil ' 1Il'I,lItz,lda, ti 'UllIlI Olllplt-t.1:-'\111111
'ISlIO no scn rial nas estesias de espe-
que estes sejam abordad S '111 v I'i IN dltl'~(H' • I 1111111'"1'lOlIl'l'il' ti .staqu 1'1\1110 'ti P 'rfol'lnan' " '01110 S 'v na heterogeneidade pós-moderna. Pois
a um tema específico ou produzir nfase I' 'tól'i I, quunlo para m ldá-l s ,'l.I última também é alegórica, seus espetáculos sensoriais sobrecarregados

àquilo que parece uma clara situação polêmi a. Ma aqui s ria igualment I I -rvilhantcs também significam "o subjetivo", na apologia do fluxo esquizo-
pertinente retomar a reivindicação de clareza dissonante, referindo-se ao I1 n i interno, ou da multiplicação e do fluxo de identidades e posições do

trabalho e ao espectador, como uma categoria formal que pode se aplicar à 'uj .ito. Ela também é política ou coletiva em seu engajamento nas políticas
plateia e portanto, por extensão e implicação, à própria coletividade. Assim, da id ntidade e da hibridização, nas combinações de microgrupos e no des-

a catarse aristotélica visa a unir uma plateia, simbolicamente unificar um Ili'.amento entre eles em um nível social em que o político já é implícito (en-
público dividido: 11Ianto na democracia liberal é exterior ao social na forma das instituições).
Mas essa complexa alegoria pós-moderna é imanente, ela não se expressa

Na demanda por um impacto imediato, a estética contemporânea requer um ~'IT\ um nível teórico capaz de envolver e articular a pós-modernidade. Junta-
efeito que nivela todas as distinções sociais e de outras ordens entre indivíduos m nte com todos os traços específicos e valores que Brecht compartilha com

[... ] O drama não aristotélico do tipo de A mãe não se interessa pelo sistema O pós-moderno - nesse caso, a estética da Trennung - destaca-se a ausência

(com base na "humanidade comum" compartilhada por todos os espectadores () tensiva dos escritos dramatúrgicos, da própria ideia do teatro (brechtiano):
indistintamente) de uma tal entidade coletiva. Ele divide sua platéia." ou melhor, um teatro especificamente brechtiano é um teatro para o qual a
ldeia de teatro é um processo alegórico pulsante, incluindo, mas indo além
Isso não significa dizer apenas que o teatro é político em seus efeitos formais, da obra ou da performance individual.
mas também que ele é em si uma configuração que expressa o social de A teoria, entretanto, não é exatamente uma ideia: o que quer dizer que
modo mais geral, que procura dividir e instigar contra si próprio. O teatro Ia não é um significado que poderia ser incorporado à obra e à qual tudo o
precisa, portanto, mesmo simbolicamente, reativar a luta de classes, e a teo- mais seria hierarquicamente incorporado. Testemunha disso é seu descarte
ria do teatro tornar-se-á uma alegoria do próprio processo, gerando, por um da peça-padrão enquanto forma e da estética da peça benfeita:
:1
lado, uma doutina estética ou formal abstrata - a da Trennunge da dissonân-
cia, distância interna e similares - e, por outro, a forma de toda uma política Este modo de subordinar tudo a uma única ideia, esta simples paixão pelo ato de

(envolvendo a divisão de classes e a luta polêmica), enquanto em outro nível conduzir o espectador ao longo de uma trilha simples onde ele não pode olhar

ainda é produzida uma figura específica para a subjetividade. nem para a direita nem para a esquerda, nem para cima nem para baixo, é algo

Esses níveis são distintos do desempenho individual, que é uma parte da que a nova escola de dramaturgia precisa rejeitar. Notas de rodapé e o hábito

teoria e mantém uma distância interna com relação a ela: isso não é, então, de voltar a fim de comparar notas precisam ser introduzidos na dramaturgia

uma situação convencional da obra de arte em que é a obra que é alegórica e também."
gera os níveis específicos de significado fora de si mesma. Acredito que a dra-
maturgia de Brecht vira isso do avesso, a teoria envolve a obra individual, e A impureza específica recomendada aqui são os títulos, sobre os quais já

não o contrário. É isso que preserva a obra brechtiana de uma estetização ge- falamos, embora uma concepção mais ampla de multiplicidades internas se

70 Id., ibid., p. 128; id., ibid., p. 60. 71 Id., ibid., pp. 58-59; id., ibid., p. 44·

107
106
expresse nesse trc ho, S 'riu um I ('II( 1\ \0 ( (111 1 11nlll d IIllIlIll\'ll (( m'tes- 1111111(('( 111 '1\(11 I(U ,1111 I1 vIII d, PII'II'X(Il, /\ SIIlI " 1(111', 10111 I '1"1 111 I

sário que haja o que comer e beber em iadu p dIlU), S ':'Sl'S II':\(OS múlt i ,,'I\,I~ ti' ,li 'I (UI,I ti' (,'tllIll'II, 11,1, 1111,11'0(\ lcní lslu (nlllSlIlIll ,I /\lIdl '11,'11

plos, gostos, texturas e líquidos não contivessem re saibos (ao mar .ant d 1"1111 '1110~ sohr ' O Sist '11111 Solar, 1\1" ht diz:
culinária e consumo. A "montagem de atrações" de Eisenstein também vem
à mente pela alegre miscelânea caótica dessa estética, embora seja ao mesmo Voe I 'rã qu ' d ecídir se i 10 ígnífica que I alllcu] é I. o ob "lido 1101' \111 d,'h,

tempo excessivamente linear e insuficientemente alegórica." que I nã para de falar sobre ela, mesmo para uma rian a, ou ~'II I 1111\ "

Pois aqui, mais uma vez, a recomendação dramatúrgica é precisamente sabcndo como ele é, precisou extrair dele a tran mi ã do .nstnum '1110, di

alegórica, e o gosto pela intervenção de corpos estranhos como notas de 111 nstrando assim seu próprio interesse."
rodapé também é uma declaração sobre a atuação e a virtualidade do ato
como tal. Talvez essas sejam de fato "interpretações" inseparáveis e perfeitarn .nt ' 11111
slstcntes; entretanto, elas apresentam características diferentes ou 01 o til ,

o ator desempenhará seu papel de tal forma que a interpretação alternativa à sua ou Abschattungen [sombreamento], da situação em exame - as' 1111ItI \ I '

apareça com a máxima clareza possível, e que as outras interpretações possíveis m tendo ao final do poema sobre Lao- Tsé:
I11 possam ser inferidas, sendo a sua apenas uma das variantes."
Mas a honra não deveria ser restrita
Mas é também uma reencenação simbólica de múltiplas hesitações e possi- Ao sábio cujo nome está escrito claramente.
bilidades alternativas na própria interpretação (o que é, naturalmente, não Pois o conhecimento do sábio precisa ser extraído
III um mero exercício de observação e uma forma de comentário, mas que de- De modo que o homem comum receba seu quinhão."

termina as escolhas do ator e o modo como ele mostra o significado de seu


próprio gesto). Não é exatamente indecisão essa hesitação interpretativa: ela enquanto a primeira dirige nossa atenção à possível fraqu za d' "tllllll,

não resvala para o informe; todavia, incita o espectador a reelaborar seus le é obcecado pela especulação, assim como alguém poderia s r olH ('\ 111111

pensamentos e testá-los um contra o outro e contra o evento inicial ou o por prazeres físicos? É bom ser obcecado pela verdade e pelas III ,li, PI,I
não estão talvez eclipsadas por essa paixão de outra ordem? P r out 111 I ,,111,
então Galileu pode ser tão obviamente manipulado por outr ? 1\1 '~IIII 1

72 Juntamente com a ideia de Trennung, Brecht, como seria de esperar, sistematiza o conceito mente, a possessão por uma ideia não é precisamente univocidad " I 1111'111
de "admistura" (Vermischung): conceitos que demonstram a "identidade do idêntico e do
transformação "total" (inteira, completamente stanislavskiana) em lol ,
II não idêntico". Ver, por exemplo, as sugestivas páginas sobre a utilização de categorias cien-
Un1l1

única, à qual a estética brechtiana se contrapõe? Não se deveria mant 'I" l'l (11
tíficas nos trabalhos artísticos (B. Brecht, "Schríften 2. 1933-1942'; in Werke, v. 22, p. 479):
categorias modernizadoras tais como "voe", "construção de ponte" e "guerra" devem ser
estrategicamente misturadas com as categorias psicológicas de "ciúme'; "desprendimento"
e "ambição".A recomendação enfatiza o grau em que, precisamente enquanto "combina-as" Id., "Schriften 3. 1942-1956'; in Werke, v. 23, p. 90; J.Willett, Brecht on Theater, op. lt., p, 11)1)

ou "mistura-as" em seus trabalhos, Brecht sentiu que tais categorias eram antes de mais B. Brecht, "Legende von der Entstehung des Buches Taoteking auf dem Weg des l.uot ,'111

nada distintas uma da outra. díe Emígration", in Werke, v. 12, p. 34; "Legend of the Origin of the Book Tao-Tê- hlllll 011

73 B. Brecht, "Schríften 2. 1933-1942'; in Werke, v. 22, p. 643; J. Willett, Brecht on Theater, op. cit., Lao-Tzüs Road into Exile",in Poems 1913-1956, ed. e trad. [ohn Willett e Ralph Mnnhclru

P·137· Londres: Methuen, 1976, p. 316.

1011
108
distân ia de qualqu r id 'Io? li IssI111 1"11 di 11111' 11 tllll' 1111' 11t\t! S o os :-dglll P.. I purtlr do qual 'I' tamb !TI examina seu próprio papel
Ilgdl I dI. I. 1111.\ li

ficados da peça exatament, Ias indl 011\, ,IIII( ~,IIIIIIII I IH'~I dl'Vl' s 'r usada; ( )1 v cr 1H'I'd -ndo () r I go :l vista dos diamantes, demonstrando sua sur-
essas questões também não se con titu 111 '111 'li iumu doutr+na a ser ensl !'ll'MI nfctudum mtc, m as mãos trêmulas) poderia então ser naturalmente
nada, como uma Lehrstück no sentido literal do teatro de tese. Entretanto, na 1(,11\( '1"1'1' te da mo narcisismo, de modo a devolvê-Ia para o interior da
condição de questões e linhas de reflexão, elas precisam estar separadas uma ~lluH â cstétí a comum, enquanto conteúdo, e pensada como um traço
da outra, cada uma mantida a uma distância mínima, mesmo que a cena n ('SP' ífico e não como forma, ou ela poderia, para utilizar a palavra que
palco seja a sua incorporação concreta e a sua unificação. 1\ ubarnos de enunciar, ser considerada afetada, e assim atribuída ao Olivier
Então, da ideia de Trennungvoltamos à questão da distância em si mesma I' .ssoa real, dotada de uma psicologia com determinados traços de caráter,
e até mesmo à ideia da distância que a distância mantém de si própria, po; em vez do próprio gesto impessoal. Talvez a distância, portanto, precise ser
assim dizer. Independentemente do que a representação brechtiana possa ser I'X mplificada de um modo mais puramente temporal, naquele estranho ru-

na realidade (uma questão sempre respondida pela afirmação do que ela não bato, aquela ligeira hesitação, como a de Rubinstein ao separar as notas in-
é, stanislavskiana ou aristotélica, por exemplo), é necessário pensar sobre a dividuais de um tema de Chopin, parecendo designar cada nota no teclado
maneira como os maiores atores - um Laurence Olivier, por exemplo, ao um instante antes de percutir a tecla e tocá-Ia. Entretanto, as notas não se
mesmo tempo estrela ou protagonista e criador de personagens, indepen- r tardam, cada uma é percutida com uma determinação que as envolve em
dentemente de sua idade e dos papéis que escolheu nos vários momentos silêncio e as oferece a nós como uma espécie de demonstração. Pois neste
de sua carreira - mantêm simplesmente aquela distância sutil de Heathcliff p nto a distância se tornou aquele espaço mínimo em torno de cada toque,
ou de Otelo, assim como a versão ficcional do dr. Mengele (em Marathon no objeto teórico tal como ele se transforma, o gesto brechtiano central
Man). Isso, que no início da carreira do ator poderia ter sido pensado como de mostrar (ao qual retomaremos) veio lentamente deslocar aquele gesto
certa frieza e arrogância ou interpretado como um traço de caráter na acep- Ic sobrecarga e flagrante heterogeneidade, o silêncio ao redor de cada ele-
ção própria, de fato teve como resultado precisamente aquele sutil e quase mento (como os lugares vazios naquelas pinturas chinesas que ele tanto
imperceptível silêncio no tocante às próprias falas e também, em grande admirava) tomou o lugar do penetrante acúmulo de notas e gritos, o sabor
medida, aquele processo de auto-observação que Brecht tanto admirava no <cido da diferenciação.
teatro chinês:
Agora temos que dizer por que tais distâncias e separações simplesmente
não encontram acolhida no gosto geral do Zeitgeist pelo descontínuo em
o artista observa a si próprio [... ] como se estivesse também olhando para o detrimento do orgânico, da ruptura em detrimento da continuidade, do con-
espectador e dizendo: não é assim? Mas ele também olha para seus próprios Ilituoso em vez da unificação. Evidentemente distância e separação também
braços e pernas, exibindo-os, examinando-os e talvez, em última análise, enal- são exemplos de tudo isso, mas explicitar o desengajamento das formas e
tecendo-os."
ategorias que agora nós realmente percebemos - o que constitui um re-
púdio simbólico aos valores formais do passado e a emergência de um No-
vum, cuja feiura, como afirmou Gertrude Stein, é "parte desta própria luta
para nascer?" - este certamente é um dos grandes significados históricos do
76 B. Brecht, "Schriften 2. 1933-1942': in Werke, v. 22, p. 201; 1. Willett, Brecht on Theater, op. cit.,
P·92.
77 Gertrude Stein, Four in America. New Haven: Yale, 1947, p. VII.

110
111
conjunto da bra de L3r' 'hl, pois ,I, I 'OIIZOlll', 1 I li lil di, o. 11111'(
lpou un:
do li d(' Illtdllp/ll i lutl
v\'ill. (" ('1111'IIlh 11111.1 1 1111,1\1111 'S l'X[ '1'1l1S(' il1[ '/'
processo em andamento m S LI ntorno '111v rias IOI'I11'lS'('Sp I~OS ('si 'li
11I,~. qm' pOI' si ltllOl 111111111
1 (11 ,I~ 10 ,IIlUI( ri n .ntr O o/ .tivo OITIO agr _
cos e ideológicos e nos habilitou a per cbê-lo ab tratam nt , n dar Ih ' UIH
H Ido ou I11ldllp/o 'li Illll~ 111 da pstqu
11111-\111( em div rsas p içõcs do sujeito.
nome e uma expressão.
AII"i, novarn nt VIII 1/(111/1:111 1111/homem é esclarecedor enquanto protótipo;
Mas é fundamental entender que para Brecht essas qualidades qu a a-
t' lima insistência em aly ay e sua desconstrução e reconstrução (Um-
bamos de enumerar - dissonânica, Trennung, distância, sobrecarga, multi-
IiIlrlung: remodelação), precisa ser completada por um lembrete sobre sua
plicidade etc. - também têm um significado. E um significado bem diferente
I 'Ia ão social "externa'; enquanto um solitário, com o coletivo masculino do
de não identidade ou heterogeneidade, que são as interpretações correntes,
\' r ito. É um tema que talvez reflita uma ambivalência ainda pré-marxista
mesmo que inclua estas últimas e as atraia para o interior de sua própria cen-
sobr os valores por parte do dramaturgo, ou talvez simplesmente registre
tralidade alegórica. Trata-se de contradição, e um método brechtiano não se
II!TItipo de suspensão de juízo, com o investimento sobre esses estereótipos:
completa enquanto não começarmos a entender como o meramente distinto
() 'xército imperialista é certamente um mau coletivo, mas as hesitações in-
e diferenciado deve ser gradualmente incluído na própria contradição, rees-
dividualistas e planos de felicidade de Galy Gay ("decidi comprar peixe para
crito como contradição ou, em última análise, como um papel que alguém
() jantar") não são inequívoca e ideologicamente endossados. Brecht poste-
estuda, interpretado ou expresso na forma da pura contradição enquanto tal.
1'1 rmente reescreveu muitas vezes essa peça de 1926 e, para uma versão ra-
(Poderíamos também ter identificado a contradição como simples mudança
di fônica, paradoxalmente começou a argumentar que "este Caly Gay não é
e tê-Ia reinterpretado à luz nova da passagem e da emergência de todas as
11.nhum fracote, pelo contrário, ele é o mais forte. Mas só nos certificamos de
coisas: mas esse novo gesto de revirar o objeto teórico e de mostrar, revelar
ILlC é o mais forte depois que ele parar de ser um indivíduo em si e se tornar
e demonstrar mais uma de suas muitas outras faces fica para mais tarde.) 8
íorte em gruPO':7 Enquanto isso, poucos anos depois, ainda uma variante do
A questão da contradição torna-se a diferença central entre Brecht (e
poema central (algo como a "moral da peça") ficará assim:
sua era como um todo) e o nosso próprio Zeitgeist (refiro-me a um Zeit-
geist progressista e não à retórica dominante do mercado): a questão rela-
Pois o homem ama a companhia de quartetos e trios
tiva ao ajuste ou à consistência entre as duas posições pode ser enquadrada
E só é feliz demais para deixar de ser um e começar a ser um quarto."
de diferentes formas dependendo de estar em jogo o nível estético ou o
filosófico. No tocante à própria subjetividade, que, segundo creio, para a
Portanto, a situação dramática torna praticamente impossível distinguir en-
maioria de contemporâneos é a questão realmente fundamental, e que ale-
Ir o externo ou social - a situação entre um número de pessoas ou perso-
goricamente mascara a si própria por meio dos outros argumentos, posso
nagens - e qualquer reajuste ou Trennung que possa estar ocorrendo dentro
demostrar que este, em particular, não é um problema e que Brecht pre-
da cabeça, nas funções psíquicas ou na antiquada unidade orgânica do in-
para algumas das noções correntes de subjetividade, sendo mesmo um pre-
cursor desse enfoque, mais do que uma personalidade antiquada - uma
subjetividade centrada ou individualista - que permaneceria sempre em
conflito com valores atuais. H B. Brecht, "Mann ist Mann Anheng'; in Werke, v. 2, p. 409 fedo bras: "Um homem é um
Mas mesmo antes da emergência de uma alegoria política no âmbito de homem'; in Bertolt Brecht: Teatro completo, v. 2, trad. Fernando Peixoto. São Paulo: Paz e
Terra, 1987.
um discurso psíquico da fragmentação, precisamos notar a identificação dos
') Id., "Schriften 1. 1914-1933'; in Werke, v. 21, p. 333.

112

113
divíduo. Alguns notáv 'is rI'\ III '11101\
ti ' 1)1'0:;\, l'IIII' '(111110,
'OIl\Pl'IIH 1111'SS\ 1111111
d,',' 1:-1li, lil ""plt' 1'11111
111111111'1\11'1110,11,,10,
Id,'IIIII" ,,111111111111
incapacidade formal: I 'Ilil\ d,\ I d,' I1'/'ojlOl
1\ I 'I ,I tlH"11IS 11M), klllO d 1~ lI"I~,1tI.I 111111
111111111
11110 "SSO d 'divlsibllidad' (nun t\ oIH11 tum 'nlt' I11fi 11(0) Vl'11I'1"11011
"Eu" não sou ninguém. Passo a existir a cada momento e quase não permaneço. I 111
umu massa li' tornos ou moi ulas que n \0 piu xciu 011,'11111111 11I
Emerjo sob a forma de uma resposta. A única permanência em mim é aquilo que dl'l\llIl "dos om totalidad rgâni as mais anti 'as.
atende àquele pedido de uma resposta, que assim torna-se permanente.P I) qualqu r m d ,o que u qui m trar aqui algo n1\110
'1\1" IIS luta teóricas contemporâneas, ostcnsivarn ntc voll 1 II
É um fluxo de cunho beckettiano apenas mantido em seu lugar pelas consi- (polfti -;) versus autonomia, texto versus trabalho) t11'SI11()u \/1/11111111
derações posteriores sobre a estrutura de situação e resposta: se o primeiro 111os abstratos (a totalidade em si mesma), em última análise, I' 11111
1"111111
eu não é nada mais que uma série de reflexos, então pelo menos pode-se di' vista alegórico, não são os assuntos supremos e não id nWit \1\\ o I 1111
considerar o que é respondido como aquilo que concede uma estabilidade 111 políticos que de fato estão em pauta. Na verdad , O ter 11'01('11111111
maior mas muito diferente. Porém, esse nascimento de uma noção proto- 1111'I Iv - não marca um retorno ao assunto centrado ap s n '1\ '111\\ 11 .111
marxiana de situação (e mesmo da base ou da própria História) do ponto 1'\1°1 to, o descentrado; mas ao invés disso, registra a IIp 'rtl~'t1od,' ,111"111
de vista de uma posição pós-contemporânea pode igualmente parecer uma 1111algo diverso. Estou sugerindo que os estereótipos antimurxlnnus I' 1111

forma de contenção e um modo de administrar em outras circunstâncias o . umunistas da Guerra Fria ainda desempenham um papel '(1) c '1'1\ VI'I 111
caos assustador do fluxo psíquico que ameaça dissolver a individualidade. 01 ' lima estética da heterogeneidade, mas vou limitar-rn ti nouu li I;0111I d
Toda objeção talvez seja até mais adequada a um outro fragmento, um es- I ,li ribuir uma dramaturgia "centrada" em Brecht, cujas p '~'\, 11111111I
crito literário do mesmo período (1930). I P rimentais que possam parecer - são consideradas bsol 'I.I~ '111 11I \I
1'1'1umiliaridade, ultrapassadas por Beckett (que ele c rio v 'I pl 1111 111\1I li
A pessoa se desconjunta, perde o fôlego. Torna-se uma outra coisa, sem nome, 1111;\1')ou, mais ainda, por Robert Wilson, para não falar 111 11,' 111I 1\11111,I
não ouve mais reprimendas, deixa para trás sua extensão e assume sua menor jl Ia-se então às Lehrstücke para confirmar essa suposta ri I I 'I 1111111,11
dimensão, evadindo-se de sua superfluidade em meio à nulidade - entretanto, 11111. .ítual, enquanto de fato (como espero ter dernon tra 10) (,li 1,1, 111
ao alcançar aquela menor dimensão, com o fôlego alentado de quem fez uma , uumente o oposto. Imagino que o texto exemplar para um 11'\111111111
travessia, reconhece que é indispensável para o todo." dt',sa espécie seria o ataque de Derrida a Lévi-Strauss." D rrtdu 1111-1"111
11111
'1"(' o estruturalismo do último, por mais que deseje se livrar ti I. VI,II11
A linguagem (o emprego da noção de "Ausdehnung", ou extensão cartesiana, ,,"1' pções de significado baseadas na identidade, permane 111111" 1

. por exemplo) trai as leituras intensivas que Brecht fez de filosofia clássica di' (nto a corrente ou fluxo, as heterogeneidades descentradas dos í ruh 11 li 11
durante esse período; e veremos posteriormente como seu Me-ti, ou o li- III"tI mos têm sido capazes de ser tão puramente descentrada qu,1I110I' lI,
vro de reviravoltas remodela essa terminologia herdada na forma de uma 11,11 li· e também de uma questão empírica: e a discussão pre isarla NU" I \I
doutrina totalmente nova de grupos, massas, coletivos. Assim como a fa-

111
.ques Derrida, ''A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humunus" 111,\ "
80 Id., ibid., p. 404. I l/fura e a diferença [1967], 3~ ed., trad. Maria Beatriz Marques Nizza da ilvu, Sllu 1'11I1"
81 Id., ibid., p. 320. l'erspectiva, 2005.

114 11
a questão da mídia, .m purtl ulur do I '111'0 I/C/"I/I,I 111111' (011 I 1110 VI'I ~II\
11101111111" podaln grudualm .ntc '111 ruir '01 11 S, u então a organização da
vídeo) como a forma na qual o tempo irr v rsívcl (e '111 qu • o fluxo t',lI
111111 Illlidiltl ' I 'l11pol'ul,aço '5 ornpleta u projetos, e assim por diante)? Mas
questão pode assim ser adequadamente exprc so dramatizado).
1111 I' ,1101110111 .nto '111 que a Identidade começou a sentir-se em casa e a ga-
É assim que a versão filosófica dessa querela tem nece ariarncntc mo
111,," ItI .ptos ti I do os lados, como categoria dominante ou fundamental, a
tópicos centrais a contradição e a negação, e a maior autoridade no assunto
IlIld~ Ilt" .ssárla, em a qual não poderíamos nem mesmo ser humanos, para
é Gilles Deleuze, com sua valorização da diferença em detrimento da n ga
I IIlIlt'~()ti onversa, subitamente ela sofre um ataque fundamental, que abala
ção. Quanto aos dialéticos e hegelianos, já terão de saída perdido a batalha
llil~ pr 'l nsões e reivindicações completamente, reduzindo-as a mera pro-
se aceitarem os termos em que o debate é proposto. Portanto, vou deixar qu
I'I~,111 Ia u ideologia. Pois esse é o momento da Diferença enquanto tal, o
os amigos que Brecht possui entre os deleuzianos (deve haver algum!) mo -
1110111.ru em que fica evidente para todos que omnis determinatia est negatia:
trem que aquilo que o dramaturgo (e talvez o próprio Hegel) chamavam de
\ ti .ntídade como a diferença que é idêntica a si':83Só se pode definir uma
contradição era em muitos casos apenas uma tenda ou guarda-chuva maior
IlIls I, dizer o que ela é em sua identidade mais profunda, mostrando o que
para ricas e sutis diferenciações de todos os tipos. É mais importante neste
11.1 nn é; abrindo assim as comportas para um sem-número de diferenças
momento mostrar que - para ambos - a contradição é um momento dentro
IIIl'Il()l'es e maiores. Isso é praticamente uma revolução social entre as cate-
de um processo, e não uma estrutura estática. Meu argumento é que, para
Hol'ias filosóficas, a apreensão do poder da massa imensa de subordinados e
Brecht, a dialética - o Grosse Methade [Grande MétodoJ- se define e consti-
nhnltcrnos, que destronam a monárquica figura da Identidade enquanto tal
tui na procura e na descoberta de contradições. Talvez possamos mesmo di-
I (lI .íteíam governar em um fluxo deleuziano até onde a vista possa alcançar.
zer: pela construção de contradições - visto que é um processo de reordena-
Talvez, entretanto, como todas as revoluções "burguesas': esta ainda não
ção necessário para se entender o método dialético em Brecht: na qualidade
"),1 a última palavra, pois essas diferenças inumeráveis e multitudinárias
de reestruturação de justaposições, dissonâncias, Trennungen, distâncias de
IIIio são "igualmente" diferentes umas das outras: não se quer dizer exata-
todas as espécies, em termos de contradição enquanto tal.
mente que novas hierarquias passam a exisitir, mas antes que facções e par-
E é exatamente o que ocorre também no filósofo ocidental favorito de lidos começam a mudar para melhor.
Brecht; no próprio Hegel, que Brecht caracterizou provocativamente como um
grande humorista, e cuja mais ilustre narrativa não linear pode ser encontrada
A diferença em si é a diferença que se relaciona consigo mesma; assim ela é a
no capítulo central da grande Lógica, chamado de "Determinações de reflexão':
negatividade de si mesma, a diferença não de um outro, mas sua diferença de si
A história contada por esse capítulo - é uma história clássica ou não? Seria
mesma; ela não é ela mesma, mas seu outro. O diferenciado da diferença, porém,
possível estranhar essa narrativa também? Suas personagens ou actantes são
é a identidade. Ela é, portanto, ela mesma e a Identidade.st
reflexivas? Elas se autodesignam? São auto distanciadas? Etc. etc. - é uma espé-
cie de Bildungsraman [romance de formação J, ou pelo menos uma narrativa
ESle é o momento que Hegel chama "diversidade': em que gradualmente se
das aventuras de um fenômeno chamado Identidade, que poderia ser reees-
lnrna evidente - numa espécie de Termidor filosófico - que "Diferença" tarn-
crito (na linguagem da Fenamenalagia do espírito, por exemplo) como familia-
ridade em si. Se não fosse assim, como poderíamos reconhecer qualquer coisa,
~\ G. W F. Hegel, Ciência da lógica [1816], trad. Marco Aurelio WerIe. São Paulo: Barcarolla,
de que outra forma um mundo estável de coisas poderia ganhar existência em
2011, pp. 135-36.
torno de nós (como uma personalidade estável ou o sentido de "identidade" H·I Id., ibid., p. 141.

116
117

)
bém depende de "Id nti lati ,,: . qu ' 1 III 10 111'I ISSlIlI -x , I I 1\l10 '. o lOlIll'ol ' 1'"1 111 !IA IIlIltI 1111'ti" "/{III I I ()II~II I1d.1 IH'lo I\lodo OIllO S 'lIS utrlbutos
ilimitado da pura diferença, mas algo bastam ' dif I'int " ou s 'ia, a "uni ln I' IIIllvltlll.d, ('I.IIi1II', ,~IIIISU)IIIf'ldii'.'l1ll1IlSU()S()utr S'~HI\

da Identidade e Não Identidade" - a partir da qual, m um mOI11.nto ru 'ia I 'lIl , 'ssn Idcnllli ilÇto da rola ão entre opostos nos dará um tipo
(:1.11':1111
de mudança e reviravolta, emerge a Oposição: e como tal, novo a tant. u IllIdlll ti f 'r '111'ti' p .rsona m a ser ob ervada no palco: usando nosso exern-
melhor, emergem as oposições nas quais as velhas multiplicidades aleató- 1'111pll vlo, 'lu ti 'mandará construção da personagem de Galileu como uma
rias começam a ser reconhecidas enquanto tantos dualismos provisórios. Em d pura fraqueza (obssessão por ideias no plano da fraqueza da
1111I1hll1n~'50
Marx, esse é, claramente, o momento da emergência da luta de classes mo- 111111','/11particular o apetite por comida, a paixão científica e a descoberta
derna, a partir das igualdades indiferentes e equivalências jurídicas da revolu- I IIlno (orrnas de gula) com as formidáveis virtudes pedagógicas do observa-
ção burguesa; mas, em algum sentido mais amplo ou brechtiano, é também o dlll uu sábi ,da generosidade de Lao-Tsé transcrevendo o Tao a caminho do
momento em que o caráter relacional das diferenças começa a vir à superfície I, IlIqUi! desterro da velhice, do desejo permanente de ignorar as próprias
ou, se preferirmos, começa a ser organizado, reescrito, construí do: 1IIIIIId'8 imediatas pelo prazer de ensinar, de fato, a própria tentação pedagó-
li I (qu poderia então converter-se dialeticamente em uma espécie de vício,
Cada momento [isto é, identidade e diferença] tem a autonomia indiferente para 11111"Illl reciprocamente a obsessão pelo conhecimento, pelo experimento,
si pelo fato de que tem nele mesmo a relação com seu outro momento; assim ele 1111,1
inovação, poderia ser reorganizada em uma nova forma de virtude).
é toda a oposição em si mesma fechada. Como esse todo, cada um é mediado Jli ti laro, portanto, que neste momento de emergência da Oposição
consigo por meio de seu outro e contém o mesmo. Mas, além disso, é mediado 1111diferenças vieram relacionar-se uma com a outra ou, em outras pala-
consigo por meio do não ser de seu outro; assim é unidade p.ara si existente e ex- II ,((U fomos obrigados a construir alguma forma de relação entre elas,
clui o outro de si. Uma vez que a determinação autônoma de reflexão, na mesma 1III'IId.ndo-se que qualquer relação desse tipo já é uma oposição.
perspectiva em que contém a outra e, desse modo, é autônoma, exclui a outra, MIIS, agora, o passo seguinte é mais arriscado e menos problemático, já
assim, em sua autonomia, ela exclui de si sua própria autonomia; pois essa con- 1'1. 1 10 na linguagem e na terminologia da citação anterior: pois agora, su-
siste em conter em si sua outra determinação e, desse modo, não ser unicamente hll,IIIII'nle, como uma força da natureza, a Oposição torna-se Contradição, e
relação com um exterior, mas da mesma maneira imediatamente no fato de ser I '1 IjI 'nas as comportas se abrem, como a própria represa transborda e vai
ela mesma e excluir de si sua determinação negativa. Assim ela é a contradição= I, IIlldno. É o momento em que a luta de classes (Oposição) torna-se revolu-
.1 ruuína - ou pelo menos estão dadas as precondições para a revolução
Este é um momento crucial também para a leitura e a compreensão equivo- 1"' IIOS"clássicos" do marxismo é sempre definida como a emergência da
cada da dialética, pois é aqui que seus inimigos têm mais probabilidade d 1111,1\1
o pré-revolucíonãna; E nesta - assim como uma quantidade inume-
ler a "unidade de opostos" como mera "unidade" pura e simples, e a "identi ,I di' diferentes códigos, a Laclau-Mouffe, se projeta sobre um significante
dade da identidade e não identidade" enquanto a simples e antiquada Iden "111IjI,ll único" - todos os planetas alinham-se em fila única, as oposições
tidade em pele de cordeiro. Tome-se, por exemplo, uma das mais formidá
veis observações sobre estrutura de personagem na teoria brechtíana, uma
formulação que reverbera simultaneamente em todos os nossos níveis ai " IIII't111.
"Schriften 3· 1942-1956'; in Werke, v. 23, p. 86; J. Willett, Brecht on 7heater, op. cit.,
" I.)n.

11111111Laclau & Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy. Londres: Verso, 1985,
85 Id., ibid., p. 156. 11' 111.182.

118
119
aleatórias e distintas proveni nt de um runde núrn '1'0 ti' di/li' nçus I, rvl.I lI! I, I' 11I I I11li, li, 11111111111, I 11,W 11I.I I' I ',I I' 0111"1 "I 1" "1' I I I
todos os tipos estão agora, por um largo momento, em xpl siva sln " nícl 1,'11111;111"II"x V d Idl' dll I~ 1'1 1'''',1 1I101lH'~111hcm IIIII,'~ do 1'11'111110
I,' 111
dade e ameaçadora "unanimidade" que, longe de ser a espécie antiquada d PI' is,1 l"osll \I IIO~. tI,'1I1 d,' 111
1111d.1 plt'p:II'a~ 10 dd,'; ,'o '1111'"1>1.11I111I11l1
identidade, é o prelúdio imediato do fim de todo um mundo e a emergência I'I0pll1llil .rulldudc, a dr IIIHIllII'gla da qual 'Ia próprlu um '."l\lplo"1I11I1
explosiva de um novo sobre seus fragmentos e ruínas. Tal é a história hege- lln rrnção. Isso não Impli a diz 'r, OITIO .ra frcqu mtc '101011\ '111" /to11'1111I
liana, e a maneira como todas essas variadas correntes conceituais e classifi- 1" 110 10 .struturalí ta, qu tcxt brc L xt tio tamb 111Uni te 101111 '"
catórias, descendentes das várias divisões do continente, arrastando consigo lido pl n , qu a crlti a também (como tud mais) um I ixto n 101111"1111
todo o aguaceiro - aquela humilde força da "água" ante a qual todas as coisas ,'111díunidadé estética em relação àquílo sobre o que ela L' is 'us 111I111'111
'I
cedem -, finalmente deságuam no grande Orinoco das Américas e do futuro, tios; lU (paralelamente à proposição de que os trabalhador 's lnt 'I, 111ti
que Hegel celebra na sua Filosofia da história, modestamente eclipsando-se uo rambém força de trabalho) os críticos também são riador 'S, 01'1'11111
"diante de uma filosofia que tem a ver com aquilo que [... ] não é passado u-duzir um pouco a estridência retórica, que, seguindo a fórmula d~' B 111111',
nem futuro, mas com aquilo que é", e com isso obrigado a ignorar o que é / / t ivuins de todas as espécies podem algumas vezes tamb 111tornar "" 11II
"intrinsicamente novo em sua constituição psíquica e física'." I'////(S, ou seja, produtores de Texto em seu sentido mai n br .
Em Hegel aquela Contradição depois avança para revelar o que Funda- Talvez seja aquela corrente sociológica caracteristicamenL hum Idll ""I
mento - ou seja, a própria situação histórica da qual o Novo emergirá - não 1111111
nodologia'; cujo princípio condutor consiste na exploração duqull« '1'"
é mais parte necessária de nossa história, mesmo que os paradoxos causais ,I pcs oas dizem sobre aquilo que fazem, ou sobre o conh im mto 111'I\'tll,
por meio dos quais se produzem tantos insights sobre Brecht provenham I verbal que seus gestos e ações portam em si, e como ela os ' pll 1111I I
desse senso de um Fundamento histórico, assim como este último pode oca- llic'!prias e aos outros. Nesse sentido, podemos sugerir qu , lamh/1I1 I' 11I
sionalmente ser reificado na imagem metafísica de um Tao. IIl1'l ht, todos sempre representam, e que contamos histórias i111'1111111
I" I
Mas o que eu quis frisar foi, principalmente, o processo a partir do uu-nte para nos explicarmos, dramatizando nossos pontos d visll I" 11111.1
qual uma contradição é construída: é um processo que algumas vezes pa- I maneiras, tanto as não dramáticas como as ostensivas e as autop IIlIdl
recerá uma percepção, uma sondagem mais profunda de uma superfície até ',I . (~portanto melhor mudar o vocabulário de reflexividad c sug"1 I '1111
aqui organizada em justaposições meramente empíricas e em termos não 11 >110 não são reflexivos e autoconscientes na medida em qu j, S 10 1'1"
relacionados e que, a um exame mais minucioso, demonstram reorganizar- \I 11I rurnáticos. O garçom de Sartre, que "brinca de ser garçom", não 11"" I
-se em campos de força e de antagonismos primários e secundários. Contudo, 1111Ira uma teoria do ser, ou da ausência de ser, como dramatiza toda 111111
algumas vezes, o mais evidente é um artifício retórico (em seu mais legítimo di unaturgia." Com a ressalva que esta não vai na direção do p pulismu «
senso aristotélico) em que dados são deliberadamente reorganizados a fim 1II ,11h com reverência os pequenos atos da vida diária, ou melhor, pror lIllI
de impor a seus vetores um alinhamento hostil e de ajudá-los a encenar seus I' 11.10populista e o incomum no comum, investigando atentament ' ;Iqlll'
próprios movimentos de tal forma que o dialético pareça estar demonstrando
a si próprio e oferecendo uma verdadeira alegoria de toda a mudança.
I Jl, Sartre, 1:Être et le néant, op. cit., pp. 98-100. Pode-se acrescentar que dessa dram,IIIIIII1\
urglrá mais tarde a "perforrnatívídade" de Iudíth Butler (Problemas de gênero: J!elllll/I.\/I/I/

88 G. W F. Hegel, Philosophy ofHistory. Nova York:Dover, 1956, p. 87 [ed. bras.: Filosofia da I' subversão da identidade [1990], 4~ed., trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: ivlll~,I, 111
história, 2~ ed., trad. Maria Rodrigues. Brasília: UNB, 1999]. 1IIIIsileira,2012).

120
I I
les instantes no quais o ontcúdo t 'óri o dos II()SNOH movhn '11(0, di dos 111IIUd,.1 illClId 1."'111, I 111 II 'I" 111 11111 I M' ""li,! uhordugcm ou ~ l10SSa
subitamente nos invade e a nossos cornpanhclr s "ator '8", nos quals, 0/110 lhlll'dUI/('llln 1ll'IIIH'1I1 11111 I () ,'I,'llc', V' l' '11 11uo .ssc ••r '<1 I!TI 'nl
"d que lança-
Gramsci poderia ter dito, todas as pessoas comun são mostrada 0010 in 1I10S mno '()111 luulu 11 'gl gt IIlI,I '11\ nossas nversa diárias; ele é a prova
telectuais ou teóricos no sentido próprio. IItlO ap nas d <.]U' u r 'l\lldat!' L' ri a, mas também de que a teoria de
O efeito-V é o instante de intrusão no cotidiano: é o que constantemente IIr' ht inclui dentro d si as bras "literárias" dele, que é ela em si nosso ob-
demanda ser explicado e reexplicado ou, em outras palavras, é um estra- ) 'to de estudo quando examinamos aquela obra; ela é o que é "realmente" ou
nhamento que exige ser ainda mais estranhado. O acidente na rua era uma "na realidade" brechtiano em Brecht.
ilustração disso, dos argumentos nos quais foram encenadas as causalidades
potenciais, e os correspondentes gestos dramáticos foram expostos um em
oposição ao outro. Entretanto, qualquer relato do efeito de estranhamento,
qualquer ilustração dele deve em si produzir estranhamento. A teoria do
estranhamento, que sempre parte da dormência e da familiaridade da vida
cotidiana, precisa sempre alienar-nos do dia a dia; a teoria é, portanto, ela
própria uma representação do processo, a dramaturgia é, em si, um drama.
É portanto tão surpreendente quanto lógico que, ao fim de um de seus pri-
meiros e mais abrangentes ensaios sobre a teoria do estranhamento (que
contém uma detalhada ilustração sobre um automóvel, tão válida hoje
quanto antigamente), Brecht acrescentasse:

o efeito-Vem certo sentido foi estranhado pela apresentação precedente; ten-


tamos promover algum entendimento de uma operação frequente e bastante
comum que pode ser encontrada em toda parte, iluminando-a de modo especial.
Mas esse efeito só vai agir sobre aqueles que realmente ("de fato") entenderam
que ele "não" resulta de toda representação, "mas apenas" de determinadas repre-
sentações: a operação é só "realmente" conhecida.??

Pois, nesse sentido, "realmente" significa que o que é afirmado não é visível
na superfície, mas está lá, mais profundamente, e "em realidade": "realmente"
é um operador hermenêutico que nos leva abaixo da superfície, constante-
mente insistindo que é inerente à própria superfície e à realidade em nossa

90 B. Brecht, "Schríften 2. 1933-1942': in Werke, v. 22, p. 657; J. Willett, Brecht on Theater, op. cit.,
p.145·

122
123
Pedagogia como autorreferencialidade

A autoreferrencialidade tem sido concebida, há muito tempo, não só me-


ramente como um sinal decisivo, indicador do que conta como moder-
nista em literatura, mas também como um agente do esteticismo inerente
ao modernismo e à maneira como, numa espécie de tropismo artístico,
cada vez com mais determinação, ela se volta para si mesma e se instaura,
formando um novo tipo de conteúdo muitas vezes inconsciente. Pode-se
argumentar que a autorreferência não é seu único conteúdo, mas antes
uma espécie de conotação suplementar pela qual a obra procura justificar
sua própria existência, uma vez dada a situação histórica única - a divisão
do público, a crise dos gêneros, a perda de status da arte no mercado -, na
qual a autorreferencialidade passa a existir e pode, ela própria, ser do-
cumentada. Mas se "modernismo" é uma palavra que caracteriza mais a
situação do artista do que sua ideologia estética, então não há de causar
supres a falar sobre Brecht também nesse contexto. O que pode surpreen-
der mais é o inesperado desfecho que ele reservou para traços e aspectos
que de outra forma (como essa) podem ser considerados obra do destino
e além de seu controle.

127
Entretanto, Brecht norrnalm I1l' 11.o onsld I' I 10 UII\ mud .rnlslu 1'01 oul I () lado,.rh 'I i I ,I I' 'Illill qu ,IH SIHO que 1'lIs 11.11 mio (')11 11111 I

nesse sentido, e ainda menos um autor aut rrc cn lal nbs irvld na ns- 1(111'. I 10 -ntral .m r 'laytlO à lIÇ o drumáti a ou às me 'n',~o S li '1>SI \ 11

trução de formas herméticas e circulares (relutância que já questionamos na i os, 'I forma mais ara terísli a em qu Br ht a r s r 'v' 11111 o' Ii 110 ,

discussão das Lehrstücke). De fato, com frequência, precisamente os elemen- 11111 I I 'a. A sim, os heróis anteriormente trágicos oriolano ou Illimlt'l ti

tos didáticos de Brecht são citados em oposição aos modernistas: encenação rcuvullados com base nos momentos de transição históri a: quando I p, 1111

e figurinos sem dúvida são experimentais, mas num conjunto de mensagens 10 >Í1IP P americana demandaria adaptação, Brecht abertam nt SI 'lUli I I

a serem insistentemente marteladas - em geral de natureza política - as que Ii rcndízagern. Hamlet e Coriolano são incorrigiveis; diante d novo, o 11

comumente são consideradas mais resistentes à estetização. upazes de aprender, seus hábitos e padrões de pensamento ainda .siuo un
Por outro lado, nossa procura, na seção anterior, por uma doutrina que 1111 dos às velhas obsessões de hierarquia e vingança. O prín ip de 110111

pudesse compor a substância de tais ensinamentos e suprir as mensagens de burg de Kleist, esmagado sob a desumana autoridade da tradiçã prusslunu,
tais técnicas didáticas foi infrutífera no que se refere a posições e filosofias, ti .vc se submeter a ela, celebrando-a:
ou mesmo àquilo que Brecht gostava de chamar Absichten ou Meinungen:
opiniões e ideologias, a substância daquilo a respeito do que se discute ou Não morto, por certo, mas o corpo estendido no chão
em que se diz acreditar. Uma contradição não é uma opinião ou uma ideo- Com todos os inimigos de Brandemburgo na poeira.'
logia nesse sentido, um estranhamento não é exatamente um conceito filo-
sófico para não se falar de sistema; a mudança pode levar a agir e até mesmo ( desenvolvimento dado ao motivo brechtiano por Alexand 'r I 11IW' JlIII

a pensar, mas talvez ela não seja, em si, algo que se possa ensinar. põe uma sobrevida pós-brechtiana digna de suas origens, quando, 11 I I1 I I

Há, sem dúvida, cenas didáticas em todos os clássicos: os coros gregos in- título "Lernprozesse mit tõdlíchen Ausgang" [pedagogias m rtais], ,li' 1111

formalmente expunham sabedoria e conselho de ordem moral e psicológica; I mbra que o processo de aprendizagem pode também ter dir 'Ç( 'S f 11>1

Henrique v põe em cena algumas aulas de linguagem, Hamlet, uma breve Paralelamente, imensos volumes pedagógicos - principalmenl ;('\( hl, 11",
master class, o Burguês fidalgo, de Moliere, conhecimentos de linguística e und Eingensinn" - propõem diversas pedagogias coletivas; e, apr .nd '1It1t1

Shaw, em obra muito mais famosa, um ramo específico dessa disciplina. Mas om o conceito maoísta de reeducação e Revolução Cultural (se n50 '0111

todos esses ensinamentos apeiam-se nos temas centrais da peça ou fazem a execução desses projetos), extrapolam tendências e correntes pr fundu
avançar o enredo de alguma maneira; a lição é um recurso para desenvolver mente brechtianas para um âmbito histórico maior. Mas, em Brecht, I:llal
o drama, mais do que o oposto. Em Galileu, porém, a grande lição introdu- é sempre o fracasso em aprender: como testemunha a suposta tragédia I
tória (à qual já nos referimos) é mais ou menos aquela: o público não pre- Mãe Coragem, para Brecht uma ilustração fundamental da destrutivi latli'
cisa aprender sobre o Sistema Solar, nem é necessário caracterizar Galileu da ideia de que você não pode desistir (o pequeno ninho, o capital da li

como professor - o drama se volta para a sua ciência e sua experimentação,


B. Brecht, Werke. Grof3e Kommentierte Beliner und Frankfurter Ausgabe [doravantc W('rAI'j.
sua relação com novas verdades e descobertas. Do ponto de vista de qual-
ed. Werner Hecht, [an Kapft, Werner Mittenzwei & Klaus-Detlef Müller. Frankfurt:
quer dramaturgia tradicional, essa grande cena de abertura é inteiramente
Aufbau / Suhrkamp, 1989-98, v. 12, p. 273.
gratuita (podendo no máximo ser entendida como, talvez, uma maneira de 2. Oskar Negt & Alexander Kluge, Geschichte und Eingensinn. (Frankfurt: Zweitauscnd . 1\ •

introduzir uma personagem - Andrea - que será um papel importante no fi- 1981. Ver também minha discussão in Valences of the Dialectic. Londres / Nova VOIk
nal, ao contrabandear o manuscrito novo e definitivo para fora da Holanda). Verso, 1999.

I \)
128
10~11qll' 1110 poli, 1'1 1)('1111110,
IkPI'Ild 'lido I',~ '\I IIIV.. 1111H'lIlo11,101111 () q\ll I'/.I illlpl (110 Iqll ,I 1'111lodo o (,'1111/1'11, nuo .xatamcnt uma ana-
1'011110'111(' n OIlIl'~'lI), 10HIII('nll" os lIVIIH;OSdas 'i 11 i IS nuturais e nossa capacidade de pensar
A 1111'I' .nçn fundam '11Ial ntr \ "adapta OU 01110 valor à luz da lunl MI I' , resolv 'r di! 'mas so 'j , : de fato, os últimos fragmentos sobre
1111'1I.11('111, mas tarnb m L das as "falhas trági < s" hak sp arianas de Brndl 'y l\inSl .in pp nheirncr sugerem justamente o oposto, uma defasagem en-
pod -rtnrn muito bem pr vocar "piedade e terror" - a ornbinaçã br htiana I," a in títuíções sociais e as inovações e descobertas da física moderna (e
multo di r ntc da celebração do Novum e o do prazer em aprend r ubjaz m .rtamente as apresentações de Galileu na DDR incorporaram essa ideia con-
por fim no gestus de mostrar. A cena de abertura de Galileu é no fim das 011 I xtual geral e política ao enquadrar a peça numa ampla política antibelicista
I IS 111.nos uma imitação do conhecimento científico - seus modelos e com , antinuclear). Mas isso não exclui outra perspectiva histórica, ou seja, a de
1'''' ldud 'S, seu valor como única solução para problemas particularmente que cada movimento na ordem social por si mesmo promoverá o avanço
11111111
lido - do que uma representação de como se procede ao transmitir onceitual na ciência. Trata-se de uma relação preparatória sublinhada ao
I 111'~s Ir' tal conhecimento: "A banqueta é a terra" Ensinar é portanto mostrar, I ngo da peça. Podemos pressupor, portanto, a dependência de novas ideias
1111110).se ob ervou; a representação dramática do ensino e a demonstraçã na ciência relativamente à emergência de novas formas e ideias sobre a or-
.111dl'llIonsLl'ação, a demonstração de como se mostra e demonstra. dem social. De qualquer forma, as possibilidades brechtianas de representa-
" 'li) dúvida, a complexidade da teoria também coloca problemas de re- ção em tais áreas são fundamentadas em um movimento alegórico que os-
1'11'.enlu ã ,e na "ciência da sociedade" mais intensamente do que em qual- cila entre esses "níveis': nos quais algumas vezes a ideia científica é adequada
qll 'I' outra parte: mais adiante examinaremos os problemas que Brecht en- a uma realidade social, e outras vezes é o contrário: a emergência de novas
I1 .ntou ao tentar encenar a economia, ou, em outras palavras, como ele a possibilidades sociais é sugerida pela excitação com a pura intelecção em si.
prln ípio pensou encontrar uma "técnica que tornasse possível uma repre- Fica-se, pois, tentado a levar mais longe essa linha de especulação e a afir-
S .ntação exata das grandes operações financeiras no palco'.' mar que, em Brecht, o que é ensinado, o que é demonstrado, é afinal sempre
E ainda, nas notas fragmentárias sobre A vida de Einstein, a complexa o próprio Novo, e assim, de alguma forma, a modernidade em sua acepção
I .oria científica é dramatizada enquanto uma função social, e a famosa ob- mais ampla (em vez da específica e tecnológica). A aprendizagem portanto
. rvação do cientista - "Deus não joga dados com o universo" - é reelabo- exibe o avanço do Novum sobre o ego: a alvorada de um mundo novo, assim
rada como segue: como de novas relações humanas. Ela torna-se, a partir daí, indissociavel-
mente ligada ao grande tema da mudança e reforça a insistência de Brecht
o protesto do trabalhador - ele quer ouvir mais quando se evidencia ao final que em que a mudança sempre traz o novo, bem como sua relutância em con-
há ainda legitimidade suficiente no universo para que planos e previsões sejam ceber uma mudança que fosse puramente retrogressiva ou degenerativa. Ao
possíveis [... ]. A teoria deles [a da nova física] é uma rebelião, e para rebeliões é mesmo tempo, o elo temático funciona também da outra forma, frisando a
necessário o tipo certo de causalidade." necessidade, na mudança, de uma pedagogia enquanto tal, projetando esta
última em imensa escala coletiva e, a partir daí, antecipando a descoberta
fundamental da Revolução Cultural, ou seja, a convicção de que transforma-
ções objetivas nunca estão garantidas enquanto não forem acompanhadas
3 B. Brecht, Werke, v. 10, p. 1070. por toda uma reeducação coletiva que desenvolva novos hábitos e práticas e
4 Id., ibid., p. 984. construa uma nova consciência capaz de adaptar-se à situação revolucionária.

L30 131
Ú pre iso então d 'S mvolv 'I' u p 'I'(t'p~do ti 1011 PI'('. CIl\,1 dt's t'S It'II111\ I 1,,101\1111i u1, (11I1I1lo luuur ' fun ao ti s rrnão atestam
IlpOl 1lIlIld,ld\' 11111
e motivos ao longo do trabalho de Brc ht, d ' modo a pod 'r '111-nd 'r qu ' '11\Ir IblllhoH IIll'l 'li los dt, M\'lvlll ' I JOY' '. ~ também o próprio lugar da re-
aquela pedagogia é mais do que um mero tema ou moliv c me til a apr I<1'1 11 slsl imatízaçã
'o .spa o I' 1I111l1 estratégica de emoções, e, nesse caso,
ciar a originalidade estrutural de sua relação com a forma enquant tal. ' muit pe if am nt a da piedade e do sentimento de companheirismo.
significativo, por exemplo, que A ópera dos três vinténs também comece com Pois se o hino matinal de abertura de Peachum pretende reforçar a culpa
uma extensa lição, que poderia ser erroneamente tomada por alguma expo- universal do calvinismo ensaiando a grande e terrível perspectiva do [uízo
sição engenhosa (do caráter de Peachum, de seus negócios, da natureza do l'inal (e isso é em si uma antecipação teatral que prepara e dirige nossas
intercâmbio entre "moralidade de classe média" e crime nessa peça), se não xpectativas para aquilo que funciona como clímax nessa peça, principal-
fôssemos previamente alertados para suspeitar de que o pretexto pode ser mente a "execução" final), a sua mais imediata preocupação é com a falta
mais significativo do que o motivo ostensivo. Para a excursão ciceroneada generalizada de sentimento que acompanha essa impiedade universal, e esta
de Peachum por sua firma, "o amigo dos mendigos" aproveita a ocasião em lhe parece menos obra do pecado que do puro hábito e do desgaste da novi-
! que há um empregado novo (Filch) para enumerar os vários trajes novos dade: "Na Bíblia há umas quatro ou cinco frases que tocam o coração; uma
para mendicância, "são cinco os tipos básicos de miséria capazes de como- vez desgastadas, lá se vai o nosso ganha-pão",'
ver o coração humano", e a maneira como cada traje deve ser utilizado. Isso Assim, um espetáculo que pretenda produzir certos tipos de emoção se
sem dúvida ilustra a natureza de um negócio e a relação do bom homem de equivoca ao acreditar no conteúdo enquanto tal. Não há verdades eternas e
negócios com seu trabalho: constitui, portanto, um dos primeiros exercícios situações atemporais e inequívocas com as quais se pode contar para apertar
daquilo que se tornará um "número" brechtiano fundamental, ou seja, a de- o coração e provocar lágrimas, pois "o homem tem a terrível capacidade de
monstração do capitalismo e de como ele funciona, o que 'se pode observar se tornar insensível a seu bel-prazer'"
pelo menos desde a venda do suposto elefante imaginário em Um homem é Peachum também não resolve depois esse problema em especial, apesar
um homem à prudente administração que Mãe Coragem faz de seu pequeno de toda a esperteza de sua encenação e de sua longa experiência no métier:
capital, mas culminando de forma claríssima na obra fundamental A Santa "Entre 'comover' e 'dar no saco' há uma diferença muito grande, meu caro. Eu
[oana dos matadouros. De fato, ficará bem mais claro na obra seguinte, O ro- preciso é de artistas",'
mance dos três vinténs, que todas as atividades representadas na Ópera dos Entenderemos por que quando voltarmos à estética brechtiana e exa-
três vinténs tendem ao capitalismo, e que o sinistro glamour de Macheath minarmos o assunto à luz da teoria do estranhamento. De qualquer forma,
como assaltante será posteriormente expiado ou expurgado por sua vida basta notar aqui a concomitante emergência de uma estética da inovação ou
naquele mundo alternativo como mais um capitalista entre outros. o Novum: "É que a gente sempre tem que lançar uma novidade";" e lembrar
Mas a lição de Peachum não é apenas um sermão sobre como ganhar di- a ambiguidade da relação de "empatia" com "simpatia" que é mais geral e
nheiro e uma sátira da religião: é isso também, mas o assunto será ampliado
e transcendido - mais literalmente estranhado - se nos lembramos do fas-
"A ópera dos três vinténs", in Bertolt Brecht: Teatro completo, v. 3, trad. Wolfgang Bader e
cínio de Brecht pelo Exército da Salvação como um tipo de partido protopo-
Marcos Roma Santa. São Paulo: Paz e Terra, 1989, p. 16.
lítico e o modo como a religião aqui geralmente representa o nível cultural
Id., ibid., p. 15.
enquanto tal, assim como os valores desviados e ilusórios do idealismo e Id., ibid., p. 46.
da filantropia. Certamente a religião também é um assunto literário e uma Id., ibid., p. 16.

132 133
m "pie \ad ", mais 'SI' '{fi li, ROllss 'nll ItI nt i/lI ,I I'sll~ 1'11
ti 1111,,1111, eu \ li. I' I P \1111ti IÍ 1!t10,I!> 11M,I.III~,III1IIl,tiS dúvkl \110\11' \ 011\('I'\IH' di
quanto constitutivas d sua teoria hist ri iam ntc 01'1'11101do Outro, J: '111 11110\(O 1I:1ll1l'1d, orno '11 't\llllnhol11 o terna do 'slr Illhnlllt'1I10 111I \ '1\11
Oscar Wilde, piedade vem a ser um argumcnt a fav r do 50 ínll 'mo, mas 10 'S du ulturu I' massas, orn simula 1'0, irnitaçí o '()1l1-rclul, IlIlllIlllI ,I
em um sentido estritamente negativo, quase brechtiano avant Ia I ur ,9 (' similar 5 O, pr s nl s m tcxt inaugurais, m 111 Mr,t!rl/I/(' 110\',,, r,
Mas aqui os objetivos de Peachum podem ser identificados especifica- ti' l'laub .rt, m que já não se sabe se Emrna Bovary scnt ai rumu 01,,\ 1'111
mente com os do "teatro culinário" e com o que Brecht chamaria de estética onta pr pria ou e está simplesmente imitando os cntirn ntos II 111III111
aristotélica: inspirar sentimentos de piedade, medo ou algo mais, hipnotizar dos a ela pelos romances e novelas que assimilou). Em Br ht, '1111'IIIIIItI,
uma plateia e pô-Ia em transe; mais que isso: produzir empatia de modo .ssa noção de artificialidade sofre uma inflexão um pouc diversa: 1\ IHI
que aquilo que a personagem sentir no palco a plateia também sinta com sibilita um tipo de amor mais elevado e auto escolhido em Mahogonn IIll1
ela, chorando quando ele chora e rindo quando ele ri, e assim por diante. ritual amoroso mais aparentado às práticas asiáticas (nas quais s 1 'slo \11
No entanto, os problemas de Peachum são precisamente os mesmos da es- tudo, a "sinceridade" do "sentimento", nada) do que ao romantismo () ItI '1\1\I
tética da própria empatia: ela se desgasta e deixa a plateia em um estado de Finalmente, ela endossa as imagens definitivas da personalidad rnúll 1'111,11
insensibilidade que necessariamente leva ao fracasso uma peça que depende bom e o mau primo, e os dois lados de Puntila (bêbado e sóbri ) as "dll,\
de suscitar sentimentos (essa falha pode, então, como no caso de Peachum, almas em um só peito" de Mauler: em tais casos a própria cone p ao li, 111
ser associada ao fracasso comercial da perda de lucro). Somos mesmo con- ceridade fica sem sentido, uma vez que o fundamento das personali 1111('. 1'111
vidados a uma lição ao estilo de Diderot sobre atuação quando Peachum questão - que absorvem as questões mais localizadas do amor ou 111 '1>11111
d,l
se horroriza ao encontrar o próprio Filch com pena (vítima do progresso "amizade" em "visões de mundo" mais gerais, para não falar de id '01011111 I

industrial): "Ele está com pena! Você jamais será um mendigo nessa vida!'." agora atribuído à própria situação e ao aspecto socioeconômi o,
Dizer, então, que a demonstração de Peachum incorpora algumas das Mas o episódio de Peachum também reencena nosso probl m \ '11111111
lições básicas da teoria de estranhamento não é apenas mostrar como, mais nível mais alto, sugerindo que há um conflito temático entre as inl 'I pl! 1I
uma vez, Brecht apresenta esta última estranhando-a; é, também, suscitar a ções alternativas, dramaturgia e capitalismo. Afinal essa é uma bru SOhll' 11
questão da autorreferencialidade com urgência renovada e de algumas ma- efeito de estranhamento ou sobre a cultura criminosamente com 'r !,d d,l
neiras novas. Antes de mais nada, porque o problema do sentimento será burguesia? A autorreferencialidade exclui outros tipos de referên ia? 11. ,ti
ele próprio "estranhado" de uma segunda e diferente maneira, na qual, jun- gum elo alegórico entre a teoria do estranhamento (como obra da id '010
tamente com essas imagens calvinistas de pecado e terror, a Ópera de três gia estética) e a teoria do capitalismo, já que esta se apoia no que Ea I 1011
vinténs também veicula imagens estereotipadas de amor e romance. Polly chama de "ideologia geral"?" Ou a primeira permanece simplesmenl OlHO
e Macheath encenam esses clichês em estilo elevado e enobrecido pela mú- uma forma puramente estética de ramificação e enfeite do didatismo s "1'111
de um foco sobre a vida real capitalista?
9 ''A maioria das pessoas desperdiça a vida num atruísmo doentio e exagerado - na verdade,
são forçadas a desperdiçá-Ia. Elas se veem cercadas por uma pobreza horrenda, uma feiura
horrenda, uma fome horrenda. É inevitável que se comovam profundamente com tudo isso:' 11 Com referência à importante distinção que Terry Eagleton faz entre "ideologia CSI{'t 1,1"

Oscar Wilde, A alma do homem sob o socialismo [1891]. trad. Heitor Ferreira da Costa. Porto (o conjunto da obra direcionado à representação ou. em outras palavras. as ideologlu: d"
Alegre: L&PM. 1983. forma) e a "ideologia geral" (posições relativas ao social ou o que é geralmente hnnuulu
10 ''A ópera dos três vinténs': in Bertolt Brecht: Teatro completo. v. 3. op. cit., p. 19. de "ideologia do conteúdo"): Criticism and Ideology. Londres: Verso, 1976.

134

11
Mahagonny n s permite 1 .var .ssa quest 0:1 uindu outro nív ,I I ulétko, 1'111 111,,11, Ir \ mun 11"1 P -lu [uul 1 di" 'li a 111' III ,lIH\ I 'solVI' 1'11 (11111111

visto que ela visa a tomar o "culinário" c a pcra d ' vclh sttlo omo sua ma 111.\11 (101 melo de uma ria ao in I .nhosa]
téria central por meio da mediação do próprio "prazer" nquanto aqui! qu A posiçuo privil "iada d ped g gla mo forma c 01110 OJlII'úd, I "li

o próprio capitalismo vende a seus consumidores. "Prazer" como tema, de I \O I" onfirrnada pela insi tentes figuras d pr f ssor ou do ~, bio ('111 IlId.\
fato, permite uma espécie de estruturação do polêmico objetivo da "ernpatia" 1 sua ol ra: a figura ambígua de Azdak, ne e Int rim, LI r 'lu' 'Iqul 11 1\

que requer uma situação interpessoal muito especial como preparação. Mas hlo 'o harlatão ão um só, de modo que o cor ejo d pr f ssor 'S SI')" VI 111

a Spass [diversão 1 tanto pode criticar como justificar-se: em p r pectiva desde o Schweik até os sábios chine es n quaí: s I \ ,'11.1

pulxã de Brecht pelo imaginário chinês (nunca em particular, orno 111 I I.

Quanto ao conteúdo desta ópera, seu conteúdo é o prazer. Diversão, em outras ntony Tatlow, para distingui-Io claramente das realidades da lit r II 111,1 I 1
palavras, não apenas como forma mas como assunto central. Pelo menos, o en- si a chinesa). É assim que Lao- Tsé torna-se a forma forte do b 11'\ pJ'()k~ '11

tretenimento foi criado com a intenção de ser o objeto da investigação mesmo (b m diferente das formas aberrantes, tais como o "preceptor parti .ulur" 111

que esta vise a ser um objeto de entretenimento. O entretenimento aqui aparece século XVIII, o infeliz Hofmeister de Lenz, que se castra para s r OIlS di'
em seu atual papel histórico: como mercadoria." rodo apto a instruir alemães das classes superiores); e a história du ',( I 111

10 Tao é tão fundamental para a análise do didático em Bre ht quuntu I

Mas aqui a mediação dialética está nos pregando uma peça, pois, presumi- rrelata e simétrica versão da parábola budista da casa em chamas. A Il\h 1

velmente, a diversão retratada como matéria central nas várias orgias cele- têm conteúdo que não é perverso e engenhosamente extraíd do l'xln 1"11

bradas nessa versão operística da fundação de um capitalismo puro talvez meio da inversão e estranhamento: como em Hamlet, que é um" ti '1111111
não seja inteiramente a mesma diversão que Brecht nos garante que encon- tração contra a violência feudal. Em vez disso, o ensinamento d ' Buli, d.
traremos no verdadeiro aprendizado, no trabalho da ciência galileana e na desesperada impaciência com o mundo (o típico acréscimo d Br' 111 1'111,

contemplação da própria mudança e da produtivídade.v Temos interesse então, a frase: "Como é agora"). A lição de Lao- Tsé também é co r !lll (1111.1

nessa crescente defasagem, nessa distância interpretiva, ou em reduzi-Ia e versão brechtiana do marxismo: "Com o tempo a água corrente v 'nu' , I'
dra mais dura'." Trata-se de uma doutrina que frisa a mudança tcrnpoi " 1111

l2 B. Brecht, Werke, v. 24, p. 77; [ohn Willett, Brecht on Theater. Nova York: Hill & Wang, 1957, processo - a água deve estar em movimento, e deve-se esperar qu o I 'm(lo
P·36. passe - e ao mesmo tempo demonstra-se que as relações externa d pod"1
13 Aristóteles nem sempre se opõe a esses argumentos: portanto, a Poética nos ensina que
são ilusórias. Esta é portanto uma doutrina do processo, mas tamb t11 d ' ,,'
"aprender é um grande prazer, não apenas para filósofos, mas para outras pessoas também,
viravolta e reversão ("revolução" no sentido literal): um conceito que pod ','I 1
por mais limitada que seja sua capacidade': É verdade que essa observação visa a dar
fundamento à posição de que a mimes e ou imitação é um "instinto natural"; entretanto,
também recapitular o processo pedagógico em sua "mise en abyme". Mns ,
juntamente com o argumento que classifica o reconhecimento provocado pela mimese própria narrativa move-se em uma direção diferente e frisa o papel ativo (li,
como um treinamento filosófico geral em assuntos universais (o que claramente fortalece aprendizagem no processo: o Tao é escrito não por alguma ambição 'xl.
o status quo), consideramos essa observação bastante brechtiana e desfamilirizadora; "se
tente em seu criador filosófico, mas sim devido ao pedido da figura ma r rln "
por acaso a coisa retratada não tiver sido retratada antes, o prazer não decorrerá do fato
que de passagem escuta a seu respeito e demonstra curiosidade e int r 'S , ,
de tratar-se de imitação de algo, e sim da execução ou da coloração a ela atribuída ou de
alguma outra causa" (parágrafo 48B4; trad. ing. T. S. Dorsch, em Aristotle, Horace, Longi-
nus: Classical Literary Criticism. Harmondsworth: Penguin, 1965, p. 35). 14 B. Brecht, Werke, v. 12, p. 33.

I 17
a partir de ua pr prlu 'XI 'ri li 'llI til' v do. N o li. "UIlOS ou tiL\. (plIlos 110 N IIUI,dllll'lllt', I ' JlO 1~llo di .1 11~Il" Isslll\ 01110SlI 1 'Sllllllll.I /111111
11.
quadro, apenas o menino qu onduz o boi 'l ma as provld 11 1,11\ I I' II lli 1110/'ssor 11-1111'I' um IllIJlO di 'sI" tudor 'S f'nz susp 'il.lr IIlH'di,II,IIIH'1l11
(com certeza ele conhece o ensinamento e faz o resumo a il11H ltado), 'nlt () da ufinldndc 0111aqu .la outra vo 'ação de int .rpr 'lar (que 'nll' .tunto 1\\111
o aprendiz é, por assim dizer, antes um amador que um pedag g profis i - h m sté, m meçam a uspeitar, no raçã d todas as o 111';\svo 11

nal. É o homem da alfândega - sem dúvida, um profissional da curiosidade ÇO .s). Portanto, ao descrever seu melhor profes or, cujo mais profundo I !'lI"'I
como tal, mas não um representante das classes dominantes ("Túnica usada. consiste em expor a estupidez e a ignorância de seus aluno, ínforruunt«
Sem sapatos. E na testa apenas uma única rugà:)15 E o poema se encerra com xplica que o conteúdo das lições é completamente irrelevante: "Ele pre ISílV I

uma exortação a honrar não só o próprio sábio, como também o ouvinte e o da matéria, assim como os atores precisam de uma fábula, s6 para s ixlbh "
aprendiz que extrai dele sua sabedoria, que em primeiro lugar insistiu nela. Portanto, mesmo na inversão satírica dessa relação, terminamos pOl
Esta é então precisamente a ambivalência pedagógica que Brecht enfatizou onfrontar a identidade entre atuação e pedagogia, e a onipresen a ti ,I \1'
III
em suas observações sobre Galileu: era verdade que o professor estava tão por todo o continuum social. Esses modelos múltiplos exigem qu a '01' 1
impregnado por sua matéria que não conseguia deixar de falar nela? Ou que falemos de pedagogia não mais como um processo interpessoal, ma. qu •
o estudante já sabia de antemão com que astúcia extraí-Ia dele? nela seja articulada aquela rua de mão dupla de uma relação genuinamcnll.'
Também não surpreende a descoberta de que a pedagogia torna-se re- dialética. Ela se torna de tal forma problemática para aqueles a qu rn I 'v '
flexiva por meio da mescla de suas próprias categorias, que o paradoxo que mos a doutrina, que pode agora emergir em sua acepção plena c m 'I 1\

resulta da virada inicial - ensinar já é o ensinamento - se inverte com a independência em relação àquele que "primeiro" a reconheceu c rc risl I(l(1
substituição das partes não ensináveis do ensino pela atividade identificada como doutrina. Juntamente com a característica descrição da plat ia hr li
e especializada enquanto tal. Essa é, sem dúvida, uma forma de extrair pe- tiana - aquela que deve sentar-se confortavelmente, analisando d 's! 'lho
dagogia de tudo, sobretudo da não pedagogia; mas é também uma maneira como se você estivesse assistindo a uma luta de boxe e comentando '\/\ 11.1
de destituir a pedagogia oficial de sua respeitabilidade e de minar a institui- bilidades dos participantes, fumando o célebre charuto com um c rto d '
ção comparando-a consigo própria, preservando o tempo todo a verdade prendimento calmo -, acrescente-se agora essa sempre desejável capa idlldl'
do processo. É então que um dos interlocutores de Diálogos de refugiados de querer aprender, de ansiar pela doutrina. Mais ainda, como foi dito: \
admite que suas melhores lições foram de fato aprendidas na escola: doutrina é simplesmente o próprio método.

Os professores têm a tarefa do fecundo autossacrifício de incorporar aqueles


tipos fundamentais da espécie humana com os quais o jovem terá que lidar mais Parábola
tarde na vida. Este tem a oportunidade de, durante quatro a seis horas diárias, es-
tudar a vulgaridade, o mal e a injustiça. Nenhum preço poderia pagar tais lições, Já se gastou muita tinta em teses e contrapropostas sobre os conceitos nar
que no entanto são gratuitas e asseguradas pelo estado." ratológicos mais gerais de Brecht: gestus é certamente um dos favoritos, mas,
em minha opinião, desde que o mantenhamos no original, com pronúncia

15 Id., Poems 1913-1956, ed. e trad. [ohn Willett e Ralph Manheim. Londres: Methuen, 1976,
latina (a sugestão de Willett, gest, parece piada; por outro lado, o adjetivo

P·315· poderia funcionar em inglês - gestural, por exemplo -, mas o substantivo


16 Id., "Buch der Wendungen'; in Werke, v. 18, pp. 212-13. facilmente absorvido por gesture, que é excessivamente restritivo). A etimo-

139
Iogía, e parti ularm nt a popular Oll 111111 ll,d,
'1Imulo "li 11111.1 l(lI mu dl' W" to li, II I) I' ohu 11qlll 111111111111111 11111 I o"ll' 1111 ,,,10 hlstt'tlll 0, A "\111

exposição filosófica no sentido própri ," bem 01110 uma forma ti ' urt I 'u lldude" do t '!'IlIO di' 11,1'( III 1"1111 0111 lis I' POLIU) m 'IlOS do llll' 11111 1011
lação, de modo que podemos utilizar a diferença, em fran ês, cntr I 7 si " I "110 onsistc tulvez 111I11I11Ill'll'a 01110 ,I' munt J)1O pm 'dil1H'1l10, NI'llI
que significa gesto, e Ia geste, épico, para distinguir com clareza um movi- s .rnpr I pre isamos da outra lirn .nsã ,a da ju 1 posi ão proust i,IIl,I; I, VI'

mento físico significativo de uma conquista celebrada em forma narrativa, '/. I o movimentos fj i o d at r no palco são uficientes, mo Iu'illdo 11

enquanto o latim de modo até mais útil nos permite estabelecer uma forma intérprete chinês, mostrando seu próprio gesto, destaca-o tarnb m poro IUI ,

puramente verbal e gramatical - o gerundivo - ao lado do gesto corporal e omo em uma moldura, e obriga-nos a nomeá-lo e dotá-lo de i nif 1\ 111

o feito épico ou lendário, De fato, é toda uma escala descendente que aqui levada, A própria definição favorita de Brecht é uma tentativa d r 'solvI'1

interessa ressaltar: pois o épico gesta (como em canção de gesta) fica muito esse enigma identificando o elevado com o cotidiano:
diminuído quando se pensa nas histórias vulgares das Gesta romanorum;
enquanto na novela até mesmo um gesto físico - em especial alguns dos Ele desenvolveu uma maneira de falar e de usar a linguagem que era csttllzudu

mais ornamentados sinais corporais italianos incluídos nos grandes catálo- e natural ao mesmo tempo. Ele obteve a combinação prestando aten O l\S P()~

gos sicilianos, por exemplo - poderia ser uma história no sentido próprio, turas que servem de base às frases simplesmente transformando po 11lrl1~ ll1

Quanto ao original gerere, meu dicionário o traduz como nada mais do que frases, escrevendo apenas aquelas frases através das quais as posturas poderlum
"prosseguir", o que, embora sugestivo, não parece particularmente definitivo ser reveladoras. A isso ele chama gestisch ou linguagem gestual, já qu '1'1 S 111

(também significa usar, suportar, alistar-se etc.) plesmente uma expressão dos gestos humanos. Essas frases podem ser mais 11 'Itl
O execício, entretanto, fica imediatamente esclarecido quando enten- lidas quando aqueles movimentos físicos especificos que lhes correspondcm 1\

demos que gestus é o operador de um efeito de estranhaÍnento no sentido completam. 18

próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de


cada um desses significados sobre os demais, mostrando-nos, por exem- Assim, a identidade entre o "estilizado" e o "natural" já é uma forma d ' ti I
plo, como um movimento involuntário da mão, em certas circunstâncias renciá-los, também não se sente, instintivamente, que o gestus determine ri
(quando executados por Luís XIV durante uma entrevista particularmente guma simplificação radical dos movimentos ou da ação - "aquela formidr v ,I
decisiva, mas também quando desempenhada por um insignificante lojista erosão de contornos" que, segundo Gide, Nietzsche teria recomendado - qu '

I durante as elaboradas e imperdoáveis


tar como um fatídico ato histórico, com consequências
negociações da vida citadina),
sérias e irreversíveis.
con- nem sempre é confiável: pode-se
uma ênfase decorativa igualmente
imaginar a complicação
calculada para prender a atenção e
excessiva mo
nvl
Proust combinou o alto estilo da crônica com o estilo comum do dia a dia dar a um exame mais minucioso. Mais adiante demonstrarei que tal exam '
quando, num elaborado símile, atribuiu os ciúmes despóticos da corte a sua encaminha-se, de uma forma ou de outra, para o alegórico.
tia -avó entrevada: é uma superposição e um estranhamento que não ape- Mas antes importa notar a relação muito peculiar e mesmo parad xnl
nas nos fazem entender o elemento narrativo específico sob uma luz nova e de tais conceitos narrativos com a abstração filosófica: uma relação que p 'r
transformada, como também muda nossas ideias sobre o que é um simples correrá um longo caminho para justificar a nossa dificuldade em defin ir o
gestus de uma forma firme e rápida, mesmo que ele possa ser imediatamenl

17 O livro de [ean Paulhan, La Preuve par létyrnologie (Paris: Minuit, 1953), explora justa-
mente essas questões formais, certamente considerando Heidegger. 18 B. Brecht, Werke, v. 18, pp. 78-79.

14
'
ti 11111, I lim d' d·\1 Itll I illl'd"tlh ext 1"'111,1
11111111,' ti I 11111Itlv I 1'lIq" 111111
cornpreensív I para O I 'i TO. Ant '8 m 'S1110 da s 'mlútll.I. 110(h d -ut ' foi I
I ti, OU, ti ' um outro 1I1\1111,11IIH'vll1v -l untropomorlismo qu; ,Ill' 1111 \
reinvenção dos arquétipos narrativos de North rop I'ryc .m 1111//tI/O/ll1t1 rllI
'ai gorias 011 rituais upur 'nt '11) 'nl ' mais abstratas apr 'S .ntum: Ali 111I.I I
crítica (1957) que renovou a teoria da narração de história das várias ror
I od ria l r vocado o inevit vel inve timcnto ide lógí o J11 1)lISSOIS 1l0~1I'
mas narrativas, juntamente com a tradução inglesa de Morfologia do onto
'v abulário mais científicos, concebendo limite, uunlu-ru
a ideologia, n
folclórico de Vladimir Propp, que oferece um modo um pouco diferente de
mo um processo narrativo, como sugere sua fórmula lacan ia na do R '1,1\.11
I
abstrair de fatos concretos a forma das funções narrativas. Mas em Propp,
imaginária do sujeito." Ou, se a perspectiva de alguma definitiva filosoft I II
assim como em Frye, deve-se observar certa irredutibilidade básica do con-
narrativa se mostrar muito restritiva, poderíamos simplesmenl r 'tOlll II \
teúdo narrativo: o arquétipo, por exemplo, em qualquer versão adotada, car-
noção que Marx e Engels têm do concreto e lembrar ao leitor br hlllllll 11
regará sempre uma espécie de proto-história, uma versão abstraída e simpli-
que ele ou ela já sabem perfeitamente bem, ou seja, que
ficada da história primeira - ou história-tipo, mas não obstante uma história
na qual necessariamente ainda se apoiarn vestígios da narrativa: o herói solar,
moralidade, religião, metafísica [ ] não têm história, não têm des nvolvlm '11111,
o pai vilão, a princesa na torre, Cristo, e assim por diante. Mesmo nesses
são os homens [... ] que alteram[ ] o produto de seu pensamento."
exemplos, continua claro que há uma espécie de equilíbrio entre a situa-
ção e o narrado r atuante (que Greimas mais tarde reduzirá com vantagens
As narrativas sobre mudança e desenvolvimento serão, portant ,prlm 11 I
à noção de actante, e que Propp designa como "função"):" isso quer dizer
mente e acima de tudo narrativas sobre pessoas - personagens, a tanto
que podemos identificar o "herói solar" de duas formas: ou a partir de seus
elas não são, ainda, nem mesmo as personificações em que seus pruduín ,
próprios feitos característicos numa situação em que sua presença se define
atos e instituições poderiam eventualmente ter sido transformados P'll',I I I1I
como a mítica do teste e do julgamento, a superação ritual de obstáculos e a
pósitos narrativos. Os problemas que tal obrigação narrativa apr s 'nt I 1'"11I
confirmação derradeira, ou podemos deduzir sua presença sob os farrapos
o ensino e a aprendizagem sobre a natureza do próprio capitalismo " qu,
e sob o ar despreocupado e comportamento subalterno de um jovem cam-
não se fazem sentir nem um pouco para Brecht como contador de hist: I ,I
ponês, isto é, pelas características da mesma situação que já identificamos
serão examinados depois.
como as que solicitam antes de mais nada o herói solar. Grande parte disso
Por ora é suficiente extrair as consequências para o gestus e admitir qUI
se aplica à Morfolagia de Propp, apesar de seus esforços por maior abstra-
não importa com que grau de abstração sejamos capazes de formular um
ção: pois mesmo termos como "adversário" ou "ajudante" já esboçam uma
exemplo dado dessa ordem, ele continuará sendo uma abstração narrutlv.t
protonarrativa à qual basta que se acrescente um pouco mais de material
e apresentando alguma indicação genérica e um toque da ação humana ,I
concreto. Isso equivale a dizer que, no mundo da narrativa - e por extensão
seu respeito, quer de natureza arquetípica, quer por outro lado, purarn nt·
também na análise de narrativas -, as funções de personagem e situação são
de senso comum: ou as pessoas sempre fazem coisas assim ou, ocultos no
praticamente inseparáveis. Portanto, em narratologia, é impossível comple-
tar o ato da abstração e reduzir qualquer uma dessas facetas gêmeas, que se
implicam mutuamente, a uma terminologia e a uma conceituação que é, ela 20 L. Althusser, Lenin and Philosophy. Month/y Review, Nova York: 1971, p. 162: "A ld '()IOIIII
própria, radicalmente não narrativa. Poder-se-ia prosseguir, desse ponto em é uma Representação da Relação Imaginária de indivíduos com suas condiçõe r 'ai ti"
existência"
21 Ver Prólogo, nota 39.
19 A. J. Greimas, "Le Récit", in Du Sens, parte III. Paris: Seuil, 1970.

1t1 \
142
incons i nte I tivo, .stão uns 1)(11
H': os lIos I rlm Ils '1111111111"I 10 lc li!.
fIHI",I.~, 'tÓI IS, I.Ilq~(l1 I 11111
IIIodo slll'ulill'llll'lIl' flllstl Ido d Ih~11I
tórias primordiais. Pareceria, p rtant , que cstarnos 010 .undo B,'(,' hl 'r) \.\0,110 qu li, 1111allS11 ia do '011 '110,vr rias nurrnt ivus IlgUIlI ISUllllpll ti
tre essas duas alternativas igualmente arnba " d di 'r nrcs
inaceitáveis, m .ru distintas limas das uíras.c outras, meras v rsc s liam 'SIIHI"isl('1I1I
maneiras, sugerem que a natureza humana é sempre fundamentalrn nt a St () invo adas para omcntar- e entre si, num pl' SSO ir ular 'I Ill"l lad I
mesma, ainda que uma nos limite prosaicamente à superfície de nossa vida nív J enriquece o anterior.
diária, enquanto a outra insinue que há mistérios mais profundos e sagrados Mas, a fim de apreender a complexidade dessa forma, pr ísumos dI.
atrás de nossas ações aparentemente comuns. A alternativa, de fato, é um tinguir algumas das tensões e oposições da teoria sobre Ia: uma vni (111
tanto quanto pré-capitalista, propondo a escolha entre a vida cotidiana dos noção de gestus à contradição; outra, que intersecta a linha de t ns 10. v \I
vilarejos e as coisas terrificantes escondidas nos santuários dos padres. Penso da parábola ao "caso" jurídico ou casus. Entretanto, essas opo içõ j_ Irn '111
que Brecht estava realmente interessado nessa alternativa, assim como nas uma oposição mais geral entre observação e julgamento, entre r' "si J'()

relações sociais pré-capitalistas que ela pressupõe, e tentarei mostrar depois de um fato ou situação e o alcance de alguma decisão ética ou polít i a li seu
como esse interesse coexiste com outros muito diversos. Por ora basta invo- respeito, entre realismo e algum outro modo literário - visão políü a. po,'
car o social e o histórico para que o quadro mude inteiramente: uma vez que exemplo, ou ficção científica, e talvez até mesmo certos modernismos ('111
o gestus esteja identificado como histórico, estamos evidentemente liberados que se torna possível imaginar situações radicalmente diferent ou p '10
não só de uma natureza humana eterna, mas também de arquétipos (ou pelo menos suas versões radicalmente modicadas, entre o empirismo o utó] II (I,
menos dos arquétipos do passado: talvez arquétipos utópicos, ainda-não- A viabilidade da conciliação entre as duas alternativas é ilust ru 1,1por
-existentes, provenientes do futuro, tenham mais cabimento). uma peça como A alma boa de Setsuan, na qual a dualidade da protn 'olli 1.1
O que ainda falta acrescentar é que gestus envolve claramente todo um registra a natureza empírica de uma sociedade decadente, qu Xigl' I V 1\
processo no qual um ato específico - na verdade, um fato particular, situado lência e a "hostilidade" e, assim, pressupõe, ao mesmo tempo, a pr s '11\ I 111111
no tempo e no espaço e vinculado a indivíduos concretos específicos - é nente ou utópica de uma outra que não o faz. Os próprios deuse imllot!I'III
assim identificado e renomeado, associado a um tipo mais amplo e mais abs- sua função de julgamento, como veremos mais tarde; pois, reduzindo l'S I
trato de ação em geral, e transformado em algo exemplar (mesmo porque a função ao meramente ético, eles demonstram sua ineficiência, a 111'SIlIO
palavra arquetípico não nos interessa mais)." O ponto de vista teórico que tempo que evocam um tipo diferente de julgamento em virtude de sua 'xis
o gestus requer é constituído, portanto, por muitos "níveis" distintos e depois tência como observadores externos e sua posição actancial como juízes '111
reassociados uns com os outros: esse é precisamente o processo que deseja- primeiro lugar. (De forma semelhante, a dualidade de Shen-te e seu prim
mos identificar como alegórico, na medida em que, diferentemente de outras "mau" retifica o mundo "realista" ou empírico no qual as pessoas são uma
coisa ou outra, e em que elas terão sucesso ou fracassarão.)
22 Quero estabelecer uma distinção entre essa terminologia nada brechtiana dos tipos e do Precisamos, portanto, retomar do início, não com o gestus enquanto tal,
típico e seu uso lukacsiano oficial: em Lukács o "típico" opera principalmente como uma
mas com o Grundgestus: "Cada acontecimento individual tem seu Grund-
categoria c1assificatória de personagens - uma restrição que claramente confina o grande
crítico húngaro a um realismo bastante tradicional com seus sujeitos estáveis e psiquês
gestus, seu gestus fundamental ou básico">' Os exemplos são predominante-
centradas. O que é "típico" no gestus brechtiano é a própria ação, e também, como já vimos
antes, os vários componentes ou elementos de construção da ação, irreconhecíveis daqui 23 B. Brecht, "Schríften 2. 1933-1942'; in Werke, v. 22, p. 92; Iohn Willett, Brecht on Theater.
por diante: aqui o sujeito estável e reconhecível sai de cena. Nova York: Hill & Wang, 1957, p. 200.

144
145
11111111
dll ho ("I(\llIlIdCltllhl·!tltllllt' r n vluvu dr- IIIVIIIIII").t'III""I,1 I 111I1.t. t holu
1111p '10 111III1Sd.1 11011 ti " minho de tornar-se uma fábula, ou
(),fltlllo,/,'gl 1l'1I111sido 1111111
do 1111\II'Wllllld"vldl lid Iltltlllt IIltl li, I 1I11\111 I \ do mutcrtul narrativo a dividir-se em dois e encaminhar-se
1111 01111111I\('U' \\(\III'llz,1I o C;11I1I(I.~t',III\, 1'lIqlr.llllo opmlo ,10 plOl'll1I 111.11111
.• lim' O 'S v .rbais ou semióticas diferentes - por um lado, na de uma
\,,' li". I' SI'II tII',1 'r paradoxal. AI 'l1111l1'ois 111I I\ill\a~ o pUI' d '~If'o 1i tlll 111
111fi.,I nurrauva, uma história na qual personagens humanas ou animais
IIVIIl.II l~tlIU,lOSalom ni a.o cortc do n g rdlo.a l: 'SI 'Indnidl'lI1 dudl 1\ IlImll'ada fazendo alguma coisa com determinados resultados ou des-
di 111o~los, 10 pr SSOqL1 e tus sh pl sn ntc id ntif 'nvl\ ti n,II\lll'111dll " I 1111; ',Oulr por uma formulação linguística relativamente mais abstrata,
1'llIpl () nlo, r 'v land o altruí mo como agr ividadc, por x .mplo, 11\0 .111 mhit de um dito ou provérbio, no qual uma espécie de lição abstrata
11\lIdo que li '111 ção privada é o ial e e onOI11i am ntc fun icnal, l' 1'111 "moral" para usar o termo técnico) é justaposta à narrativa precedente
(1111 e
I t l.tI I -vclnndo a ba e da psicologia individual em dinârni a so ia I, I' 1111 q1\I sentada como o significado ou "lição" da seguinte. Mas esse estatuto abs-
Itll 11111
Ii"l o mundo cotidiano dos sentimentos e reaçõ s pess ais, 111(ti 111110' cmiproverbial de maneira alguma tem o nível de abstração das Má-
1111101
I1I II~' .x cs ivamente familiar, tanto é estranhado como expl i ado por inms de La Rochefoucauld, por exemplo, sobre as quais já se observou que
1111111
11 iKlIillrncnte familiares, sociais, econômicos e coletivos, que at aqu I u.In uma poderia ser expandida em um romance em miniatura, ou talvez
1111I1,1
IIlhllll1l1:.1111
sido identificados neste contexto. I 111muitas versões da mesma (por exemplo: "Les vieillards aiment à donner
t\ I I ,'S s d smascaramentos satíricos não parecem ser de todo dn ti" bons préceptes, pour se consoler de netre plus en état de donner de mau-
unlcm
111111111 da contradição maior que, sob a forma de Grundgestus, stu pois exernples'Y." A posição da moral ao final de uma fábula, entretanto, não
",,11'\t' o pro 'rama da peça como um todo. De fato, eles parecem em grand ' IIOSincita a conceber outras instâncias ou versões narrativas do "significado"
1',1111'I umbinar duas espécies distintas de gestus, por exemplo, assassinar a rlcfinido por ela: provavelmente ela nem mesmo nos leve a voltar à história,
11111:\
' ortejar a noiva, sugerindo, de um lado, que num caso ou nooutro o para reescrevê-Ia e resumi-Ia de acordo com as sugestões e a direção pe-
I"IIHO equivocado e que o gestus tem pouco a ver, estrutural ou funcional I -mptoríamente dadas. Ela nos estimula a um tipo de produção: transformar
111nt " mo Grundgestus. Por outro lado, este último visa a enfatizar certa li material bruto que a precede - o texto narrativo - em um tipo diferente
Il'lIsao fundamental, contradição, antinomia insolúvel, na qual o primeir ti • objeto verbal; substituir o primeiro pelo segundo, que se transformaria
(ou s ja, o gestus) simplesmente subsume um dado particular num universal: '111algo mais portátil, fácil de carregar e de guardar. Sem dúvida esse objeto
11m at ob um título mais geral (persuasão ou galanteio: cortejando a viúva novo ainda é feito de palavras, como o primeiro; mas seu discurso é total-
d,l vitima). Ao mesmo tempo, a natureza do Grundgestus não se aplica à peça mente diferente, e, a título de consolo, resta o argumento de que tanto uma
~ 0111 um todo, mas também requer um trabalho verbal e poético mais evi- árvore quanto um naco de rosbife são formas da matéria. Porém, as legendas
d .nt - para encontrar a fórmula que de modo mais contundente aproxime no palco evidentemente são então espécies de objetos muito diferentes das
,\S duas partes irreconciliáveis da situação dramática -, levando-nos a uma canções ou das situações dramáticas que devem nomear e resumir.
d ir ção narratológica muito diferente.
em sombra de dúvida, essa natureza do Grundgestus imediatamente
I .mbra a grande estética da Trennung ou da separação radical, como a que
pr ide a construção da canção e das legendas das cenas e de outros ele-
m ntos e características deliberadamente heterogêneos do teatro musical
24 "Os velhos adoram dar bons conselhos como um consolo por não poderem mais dar maus
hrc htiano e / ou épico. Mas ela também faz recordar os procedimentos da exemplos:' La Rochefoucauld, Maximes. Paris: Folio, 1976,n. 93, p. 59.

147
Gestus fundamental purulldnd ,llI'( (11111I I til 111111"li' Illsl~\0 do ~ udalismo ao apltulisruo',
cronolo li tllHl'lI1l' 111.11 IH'II1 Pl'lIs:ldn 0010 uma strutura especifica em
Mas o Grundgestus brechtiano vem primeiro ou por último] (':1 r .surne S mtido próprio do ~11I '01110 111 ra sucessão cronológica." Pode-se até
algo ou, em vez disso, sugere parâmetros segundo os quais a encenação d v' l1J .smo sugerir que as vária interpretações da psicologia singularmente
ocorrer? No caso de grande parte das peças clássicas (ou da lenda adaptada moderna de Hamlet (de Goethe e Coleridge a Mallarmé e [oyce) são, elas
de O círculo de giz), ele faz ambas as coisas, pois resume a matéria-prima próprias, parte da peça e de seu assunto (assim como Lévi-Strauss sugeriu
clássica com o intuito de a retrabalhar de acordo com o que agora pode ser que a concepção de Freud do complexo de Édipo devia ser tomada como
chamado de tensão ou contradição fundamental. Mas, no sentido em que se mais uma versão do velho mito), pois naquele sentido elas correspondem
afirmou que tudo em Brecht, de uma forma ou de outra, é plágio, quer do às justificações ideológicas fornecidas por uma burguesia moderna emer-
passado quer do presente, de outros povos ou dos clássicos, o Grundgestus gente para uma situação objetiva de transição de uma espécie totalmente
sugere também a singularidade de um certo "modo de produção" brechtiano diferente, em que nenhuma das duas alternativas (a violência do barão feu-
no qual há sempre um material em estado bruto preexistente que requer dal, as negações do homem de negócios) apresenta qualquer dado positivo.
uma reelaboração baseada em uma interpretação. Nesse sentido, as leituras Mas o que as interpretações modernas fazem é transformar uma situação
que Brecht faz dos clássicos (nos chocantes sonetos chamados Studien, nas em uma psicologia, em um modo novo de subjetividade, realegorizado
novas produções de Coriolano e outras peças elisabetanas, ou ainda na in- como uma luta entre vários "valores" ou instâncias psíquicas. Brecht deseja,
terpretação de Hamlet a seguir) são paradigmáticas de sua "produção textual" entretanto, que sua (imaginária) produção ressalte o papel deterrninante '
como um todo. dos modos diferentes de produção nesse drama aparentemente individual:
Portanto, Hamlet" se transforma numa colcha de retalhos de tensões o fato de Hamlet reverter para a imagem ideal da "ação" feudal na heca-
entre os novos meios comerciais pacíficos (a solução para a disputa sobre tombe final, então, mal e mal constitui um julgamento final por parte de
direitos de pesca entre a Noruega e a Dinamarca, a "nova ciência" em Wit- qualquer um dos dois dramaturgos, muito menos uma posição ética sobre
tenberg) e a sobrevivência dos mais sangrentos hábitos arcaicos do feuda- as alternativas, mas, no lugar disso, um meio de enunciá-Ias em sua dife-
lismo. As famosas hesitações de Hamlet ("sicklied der by the pale caste of rença qualitativa.
thought'?") não devem ser atribuídas a alguma psicologia ou subjetividade Voltemos então ao próprio julgamento: o dramaturgo não se preocupa
elevada, "moderna" e individualista que emergiu da padronizante Idade em esboçar exatamente uma "moral" (ou, se ele o fizer, esse é o início do
Média, mas, ao contrário, à interferência desses dois padrões culturais, eles processo, quando ele deduz e explica o Grundgestus necessário ao ponto de
próprios os campos de força de dois modos distintos de produção. A peça vista e à perspectiva para a nova encenação da peça): "No empreendimento
é, portanto, o momento em que eles se superpõem e coexistem e sua tem- feudal ao qual ele retoma, (a nova concepção da Razão) simplesmente
o embaraça';"

25 Ver o "Kleines Organon" (Werke, v. 23, pp. 93-94), ou J. Willett, Brecht on Theater, op. cit.,
pp. 201-02; e também o soneto nos Studien, "Über Shakespeares Stück Hamlet" (Werke, v. 11,
P·269). 27 Sobre o conceito de "transição", ver a contribuição de Etienne Balibar em L. Althusser &
26 Parte final de "to be or not to be" Na tradução de Cunha Medeiros e Oscar Mendes: "se E. Balibar, Reading Capital, parte nr. Londres: Verso, 1970.
estiola na pálida sombra do pensamento" (Rio de Janeiro: Aguilar, 1969). [N. T.] 28 B. Brecht, "Schriften 2. 1933-1942': in Werke, v. 22, p. 94.

149
Portam , em última anr lis " BI" ht pl1I" . m IÍto !lI 'O up ,do '111 I 'Ixtll' sill '1',,,10 \lllI ,11I111111\11 11111.1, 11111 dI' ()uIL ou NIi, u 11I, d 'Odl Mil, " vi 111

esse processo aberto e em permitir que públi o l mha sua próprtn opintúo que em alguns dlllll'lll d"1I1 I' \I som muito próximo l puluvr \ I\I'IIII'/i 11111
e defina sua própria moral, tentando o tempo todo ug rir ort m mt in outro lado, a fi '1I1'1l.\1>~1,,\ dt'si muda vem de ua pe a in ompleta I 1'((lellll/1r1
sistir mesmo - que o público não pode deixar de fazê-lo. Ma talvez nã do go{sta lohan Fatz 'r sobre retorno de veterano d gu rra, UI1l' 'Spt 11'
tenhamos que fazer um julgamento enquanto tal - se de fato sempre en- de tentativa pós-Baal de ituar o niilismo na política e na hi l ria na iOIl,"
tendemos "julgamento" como um problema essencialmente ético em que (Pode-se considerar que Fatzer incorpora o lado de Brecht qu SI. 111 \I,
valores últimos de certo e errado são de alguma forma apresentados, e próximo ao seu discípulo Heiner Müller, que, de fato, "completou" c n .nou
os positivos e negativos distribuídos. Pedir-nos que "meramente" registre- esse drama fragmentário.)
mos a estrutura da própria situação histórica e que enunciemos os senti- De qualquer forma, Histórias do sr. Keuner é uma série de an d tas IlI'
mentos e atos da peça à luz de suas tensões mais "objetivas" - isso ainda é seriam parábolas, se pudéssemos ter alguma confiaça na autoridad cI s 'U
julgamento no sentido em que a tradição burguesa transmitiu o conceito? excêntrico herói: Brecht aqui dramatiza a si próprio de maneira in onsls
Ou talvez seja, em vez disso, algo mais próximo do assim chamado Grande tente, ainda que com um pouco mais de dignidade do que os velhos sujos
Método ou, em outras palavras, a própria dialética, como Marx e Engels a que Godard incorpora a seus filmes posteriores: ambos, entretanto, usam
desenvolveram no Manifesto: como antes de mais nada uma inseparabili- essas figuras como porta-vozes do que se pode mais adequadamenl 1111

dade do progresso e da violência, como a impossibilidade de separar um mar Absichten ou, em outras palavras (não muito exatas), opiniões - o qu '
positivo de um negativo, nenhum dos quais podemos, entretanto, identifi- Schlick se dispôs a comprar de Garga na cena de abertura de Na selva d(/~
car de uma maneira quase existencial? cidades. Não são, então, Meinungen ou Absichten aquilo que intel IUIII.
De fato, há um lugar no trabalho de Brecht em que todosesses tópicos se geralmente vendem - críticos em especial, que estão por aí precisam '111

apresentam, e as questões formais - a estrutura da forma da fábula ou pará- com essa finalidade? O longo debate entre opinião e conhecimenlo ou
bola, a função do Grundgestus - juntam-se às do conteúdo - a natureza da filosofia enquanto tal (que passa de forma decisiva por Hegel, mas qu
dialética, a substância didática e narrativa e a natureza dos julgamentos que com certeza ainda está presente nos dias de hoje) envolve, de um lad ,a
somos desafiados a fazer, se é que o somos. São naturalmente as parábolas organização pelo sujeito, em sua psicologia, dos pensamentos disper s
políticas, em grande parte reunidas na coleção Me-ti, ou o livro das revira- considerados opinião e que por isso mesmo devem ser classificados com
voltas, em que fatos políticos e figuras históricas são transpostos para uma variáveis ou particulares, não vinculantes em geral ou universalmente,
antiga China imaginária e recebem nomes chineses. mas apenas de interesse anedótico (porém as opiniões de Herr Keuner
Mas antes de darmos uma olhada nesses importantes textos, seria bom são dadas precisamente na forma de anedotas); e daquilo, seja lá o que
levar em consideração seus antecessores formais, escritos exatamente na for, que dê ao pensamento e à escrita dos filósofos validade impessoal ou
mesma época (no final dos anos 1920 e começo dos 1930 e novamente de- pelo menos suprapessoal - universalidade, talvez, ou abstração da situa-
pois da guerra), pois a evolução da forma - do oratório-cantata às peças ção, rigor lógico (mas então resta, evidentemente, o problema do ponto de
didáticas - é crucial para nós, que procuramos não apenas o que Brecht partida ou premissa), profundos insights metafísicos, ou até mesmo talvez
tentou representar, mas seus meios de fazê-lo, e como esses próprios meios
retroagiram e modificaram seu conteúdo ostensivo. A forma predecessora 29 Palavra grega que Ulisses usou como seu nome para se apresentar a Polifemo no Canto 9.
pode ser identificada nas histórias de Herr Keuner - o nome tem sido con- [N.T.]

150 151
"I I1 IIdl I!lH'lIlo" do, I 11"11' do
11111111111 I kll'ol P Ido "li 1111('" 111'111111 110111
11V,It' I dll I" 1111.11
t 1IIIIt1-\1 11 ou pulíti () táti 0, que evidentemente,
I ti I 111-111,111m".A I 'II:',!O 1'1111
t' ••11' do S polof! ,IIIH! ' ~I' 11\1' (,I 1I lf1111
I 'sl'llIpr', c: I. nln (l' qu -tumb m apar ce em Me-ti, personagem com
los no ln
IIIHIIII '~I,ldo 11111 10 du filosoli I, 1\1Indo S\" ,'all'S 11ll' 1'1Of IV.\ \ pr6prio, suas ti' .lara o se
11111111' onselhos). Entretanto,essa associação é
\1,,11 lttru a fim ti' xtrnir ti 'Ias o ouro puro d:\ ItI 'ia Plat nl li SI')pod,' 111I11<)l'lal1l',ntr tanto, na medida em que configura uma forma de con-
'1'1 idu P 'Ias d s b .rtas rn ti .rnas in . .paráv .ls da id '010 di 'do olho at aqui tradicional e fundamentalmente ética dirigida ao coletivo,
II\(ons i 111,qu ag ra t ndcm a 01 ar ai m m as rl .zas do I 0111 1111,m utras palavras, de tática militar e política. Ao f ndir dessa forma
1110ófi o 111dúvida e - pelo m n para os que têm inclinaçô . P I ulll, o li o e o político, Brecht talvez esteja reinventando o próprio espírito
I I' I I 'SI a h r os amantes da verdade para o campo da Meinung /I, no 11;,antiga prática chinesa de filosofar, assim como reinventou o espírito da
11\1il, P -I,ISr gra do bom-senso gramsciano ou do uso geral wittg nsll'1 po .sia clássica chinesa, segundo Tatlow.> Pois o prazer das anedotas chi-
111.11111S '111falar na consciência de classe propriamente dita ou na várln 11 'a é, pelo menos em parte, um prazer político que desde Maquiavel o
hu m \ dn se b doria popular -, uma espécie diferente de validade par" () idente separou, especializou e delegou a outras disciplinas, ao mesmo
1 IIIIH'~\1'" li 'r enunciada pelos neófitos. I .rnpo que criou o que é chamado de vida privada - um isolamento do
NII histórias de Herr Keuner, essas opiniões, que pareciam ter se apro qual até mesmo as formas limitadas dos preceitos gregos sobre a ação e a
1111
Ido mult da fronteira da ideologia, tendem agora a voltar-se ao ex m práxis foram gradualmente depuradas. Isso, sem dúvida, mais do que qual-
plill I' io recomendado, não necessariamente na direção do tratado filosó quer outra coisa, levou os críticos a ver nessa produção brechtiana aparen-
II 0,11 a na da figura dramática. Herr Keuner, de fato, apresenta ao mesmo I 'mente suplementar algo como a emergência de uma ética a partir de sua
I -mpo s traços do trapaceiro e do sábio, do militante e do "herói covard '': p Iítica, e a recomendação de um modo de vida de acordo com o Grande
e, C0l110se observou a respeito de outras personagens em Brecht, os prazer 's Método. Nesse caso, ela seria uma ocorrência relativamente singular na
ti sua representação também consistem no descentramento de sua subj I radição marxiana, na qual a ética é predominantemente tomada a outras
lividade, ou seja, na transformação da "personagem" enquanto tal, a qual ontes, e cuja originalidade sempre pareceu ser sua insistência em uma
I 'terminada pela relação entre suas características e situações mutáveis (na I gica coletiva distinta da espécie individual (juntamente com a disposi-
n ai r parte incompletas). Ideias abstratas, portanto, ao aparecerem sob a ão para classificar a maioria dos sistemas éticos tradicionais ou herdados
forma de opiniões, começam a atrair para seu próprio interior aquele qu omo mera ideologia de classe).
a enuncia, a ponto de se tornarem obscuras quando é a ideia que deve r É evidente que a forma dessas parábolas - anedotas curtas que sugerem
prezada em sua acepção própria ou quando, em vez disso, é a personagem ) indicam lições que o leitor deve deduzir - é muito característica da divi-
que dá um exemplo. são em episódios de fragmentação sistemática que atribuímos a Brecht (e
Chegamos finalmente à apresentação formal do próprio Me-ti, em qu ao moderno em geral): "fragmento" certamente é uma palavra errada para
a enunciação tende a envolver a autoridade do sábio - mesmo que seu sta esses parágrafos autossuficientes, que frequentente parecem desempenhar
tus como sábio também derive do valor da opinião, ambos acabam dando um pouco da função do diário ou comentar pontualmente um assunto que
início a uma inter-relação com aquela terceira coisa que as valida recipro chamou sua atenção. Mas acontece que Brecht também escreveu diários,
camente, ou seja, o Método - nesse caso, o Grande Método (ou a dialética). durante a maior parte de sua vida; e parábolas, por sua vez, também cons-
Mas a figura brechtiana fica a meio caminho entre as duas precedentes:
a do antigo sábio chinês que dá a essas anedotas sua tradicional forma 30 Ver Prólogo, nota 18.

153
tituern, evidentemente, UI1l trabalho de r 'fI'x 10 de : I'HIIIHlo 1I111i1, !l111 I
,,1111'11' 01111 I vh 110 ti i ruv 1111 \ 111101 1,1111\ IIl'II di, 1\10 \% 1'1\ I II11H'1 1I1

hesita em chamar de abstração já que se m v' mais n 1 dlr .~:o o!1osl I ,111
I li' I' ti
I '111:1. 11'1"'1" tu V 11 1111'11111.11111 du vldu. Mas 1.'1\1 1HllI'OH \ lI, 1/l, I

concreto e ao dramatizado. Entretanto, também aqui, p rsist 1I1l1l\ I'. 1I \I


.\lII'dol I, de I 1.'11111.'1'1'l'V 1'1 '1\\ OS)111 , \11\ .ntos do próprio I 'Ul1 'I', N 10 .11\\0

tura dual ou de duplo nível em que um ponto de partida cmplrt 0, oh. ('I
.11\11\ idos n" ostur" d ' 11 '1'1' I UI1 '1', assim 111 não pr isumos "oSl li' ti I,

vação ou Einfall é cancelado e suscitado em alguma forma mais vívl I I, 1\1\ I \I ILI 'rlsLI as d lib rada e osten ivarnentc de agradáveis ti' Bre ht , dgll

qual o gesto da demonstração se mantém. Na verdade, precisam sd lIllhl


111 IS vC'I, s vlsív is em sua própria persona, mas somos s li itados a 1)( )101' ()

palavra para esse gestus específico, em analogia a dêixis da lingufsti a I') 1i I


I \1'\1 'r paradoxal de seus pontos de vista, tão diferentes dos padronizado,
1\1 11 n5 necessariamente acrescentam nada a um dado sistema, pOI m 1\
o ato de apontar. A narrativa não é empírica: ela inclui, em si, o "vo '~I
vendo?" e o "você está entendendo agora?". Implicitamente ela corrige um I
própria excentricidade agressiva frisa o imperativo central da rev lu ~ o 'til

opinião equivocada, um equívoco de concepção completamente compr -u turnl, ou seja, que a transformação objetiva da instituição seja ac rnpanhnd I

sível: mas o que substitui este último não é mais exatamente uma opinií o , completada por mudanças radicais na subjetividade.

(precisamos voltar à função dessa palavra em Brecht, cuja terceira peça () Já vimos que Me-ti, ou o livro das reviravoltas, coleção posterior rn ls li •

meça, como vimos, com a disposição para a compra das "opiniões" do pro finitiva de anedotas e parábolas, destaca a relativa deficiência dos ensin 111 '11

10 éticos nos próprios clássicos (do marxismo): "Pouquíssimas indi .,\ ( 'S
tagonista). Se pudermos contar sua história ou narrativa em outras palavras,
isso vem a ser uma espécie de prova, e é melhor do que a opinião: a narra sobre o comportamento dos indivíduos"> Talvez essa própria dcf i, 11 '11

tiva enuncia a posição conceitual e assim prova que ela pode ter existência ixplique a audácia da sugestão complementar: "É melhor não só p '11:-;;1\1' dI'

histórica - é uma forma alternativa de argumento, em si m~sma tão válida acordo com o Grande Método, mas também viver em consonância 0111 1.'11":11

quanto a forma filosófica abstrata. No entanto, esse volume póstumo quando muito pareceria apr 'S '111 \1

Voltando à ética, por certo algumas dessas anedotas simplesmente dra- reflexões políticas e tópicas, cujos assuntos e objetos estão levem 'nt' II
matizam o modo como o militante revolucionário deveria viver, e não o farçados sob nomes chineses (Lênin é chamado Mi-en-leh, Stálin Nl eu ,

modo como todos o deveriam (sob o socialismo). Recomendar, como faz Marx é Ka-meh, e assim por diante): episódios curtos composto a urt I

Herr Keuner," que devemos verificar sempre o caminho para a fuga e as de 1934, cujo principal protagonista foi concebido em homenagem a Mo til,

várias portas dos fundos ao entrar em qualquer prédio é sem dúvida neces- um crítico do confucionismo do período clássico. A figura resultant ,. lIl1\O

sário em aviões e lugares públicos, e normalmente constitui parte das lições espécie de sábio, Me-ti, não compartilha como um Keuner as caracterí:sti as

úteis para moradores da "selva das cidades", mas contribui muito mais para da personalidade brechtiana; nesse ciclo é, ao contrário, o poeta Kin-jeh que

encenar a personalidade pitoresca de Keuner do que para alimentar a refle- desempenha esse papel (inclusive encenando várias passagens do caso amo

xão (nem seria adequada para se reescrever à maneira chinesa). Mas tam- roso de Brecht com Ruth Berlau, aqui chamada Lai-tu).

bém representa um estranhamento da proposta ética: um "você deveria' (ou Me-ti, ou o livro das reviravoltas, por muito tempo considerado o prin i

Sollen) que foi distanciado como se fosse a visão de um antropolólogo sobre pal trabalho de Brecht sobre a dialética, é também, mas não exclusivament "

um estranho modo de vida coletivo. E tematicamente, sem dúvida, ainda um conjunto de comentários políticos sobre a política de esquerda do p ,

32 Id., Werke, v. 18, p. 188.


31 B. Brecht, "Geschichten vom Herrn Keuner", in Werke, v. 18, p. 439. fedo bras.: Histórias do
33 Id., ibid., p. 192.
sr. Keuner, trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34,2006].

154 155
I 'Ido: \I I "ti Ih/1 I I" '11110 1\ d\' 111 '1"1 'li nllll\'lIl olu' o 111(\ I ()lI( 1Ip,i 1111 NII IIIdhOl' d,IS 111(1('111"I', ,1,11 poli' 'slimulara volta à história anterior da
dt' t'X I I' 1i l)lI!i () Sovl('1 I I I' os l'Il' 10 dl'SS I l'X si nclu dl'llll'l'l'llI nuruu ti "/'11'(\, n fim I' Il'I '1'11111101' S' também em seus estágios anteriores esse
h'ot!1\ IIIlll1< g 'I' 1i ti I (.'sll'll I1 pollí lcn, Isslm '01110 L'III "go ~OIllO 111111 "li modo d r fi xão n scmpr
111 foi provocado e exacerbado, ou mesmo inspi-
111 01111" do pró] rio partido da .strutura partidária, liss's IÓpl '06 tiOS qu lI. rndo, prc isarnente por tais contradições entre o particular e o geral que não
11I11Ih{'1l1 pnd 'mos afixar os nomes L nln c tálln r sp tivarn nt • pod rlun: pod 111 er manipuladas pelo pensamento analítico ou pela lógica aristoté-
11111' P .nsarncnt par cer de início sup rad • nUI11 111 111 nr m que II
'SI" li-a. Em especial o próprio período de Hegel, quando a contradição entre a
lllll. o Sovl li a d sapareceu no passado e a própria concepção de partido specificidade do capitalismo como forma histórica e os universalismos do
di v Ia (I ninista ou não) já não parece mais estar na ordem do dia.
1111-\":11' pensamento burguês parece ter recebido o estímulo que levou a dialética
1\111 I' .trosp cto, pode-se sugerir que muito da dialética de esquerda. d ' Limaprodutividade que alcançou o próprio marxismo.
11) I ('111 dlunt • foi provocado pelos dilemas conceituais postos precisament • Além disso, juntamente com os vários argumentos contra o anticornu-
(1\11 I' "011 flíto entre o particular e o universal, entre um fato histórico nismo (que incluem até mesmo algumas das "parábolas" do próprio Lênin -
I 1(1('1111o ou dado - a União Soviética, com seus pré-requisitos locais e na- principalmente aquela dos alpinistas que precisam constantemente retraçar
I 11111111 I' o universalismo de uma política de classes de esquerda que visa seus passos a fim de encontrar o caminho certo ao topo ),35 há reflexões me-
ti 1111 I I11 ' 11) 'SITlO a especificidade de classe e que reivindica uma validade tafísicas, particularmente sobre o eterno "fluxo das coisas".
, I'lld, P II'l\ além das fronteiras nacionais, (É uma tensão conceitual desta No geral, entretanto, pode-se dizer que a sabedoria transmitida por es-
(lI dl'II1, por exemplo, que Brecht ensaia em "Uber mõglíche Kriege" [Sobre sas fábulas é de natureza política em sentido amplo, algumas vezes estraté-
I (lossfv'l guerra],> quando ele acusa de pensamento não dialético aqueles gico e algumas vezes tático; como na história dos camponeses e dos barões,
lU' lamaram à revolta todos os movimentos nacionais de trabalhado-
'011 com sua premissa dialética introdutória: "O saque foi ao mesmo tempo uma
I'I'S entra as classes dominantes capitalistas: tais movimentos não deveriam defesa, e a defesa um saque"> A explicação consiste no fato de que as tro-
lld .rar a revolução em países aliados à União Soviética, pois o triunfo desta pas daquele senhor causam tanto dano aos camponenses individualmente
última seria a sua melhor garantia de desenvolvimento futuro.) A casuística quanto as do inimigo vizinho. O reconhecimento final dessa contradição é
clial tica - que desde então passou a fazer parte da cultura intelectual de ao mesmo tempo sua reversão e resolução. Os barões não apenas lutam en-
-squ rda em todo esse período, encontrou vasto material para engenhosos tre si, como saqueiam e promovem a devastação ("em geral" por sua própria
'X r feios, primeiro sobre o problema dos espetaculares processos em Mos- índole: e assim facultam aos camponenes, "que teriam errado em simples-
ou (como é o caso dos paradoxos éticos ensaiados por autores que vão de mente expulsar os próprios senhores, chegar a uma política de expulsão de
I e der a Merleau-Ponty) e, mais tarde, sobre a contradição entre o stali- todos eles").
nlsmo e a esquerda progressista ou os movimentos revolucionários apoiados A linguagem dessa fábula, entretanto, sugere que um quadro mais geral
P Ia União Soviética em todo o mundo - agora talvez deva ser separada da do Grande Método está presente durante todas as demonstrações. Ele tal-
história da própria dialética e encarada apenas como mais um de seus epi- vez possa ser mais bem abordado por meio de uma observação que Brecht
sódios cruciais. faz de passagem durante os ensaios de seu Coriolano. (Por acaso, temos o

35 Id., ibid., pp. 63-65.

'4 Id., ibid., pp. 85-86. 36 Id., ibid., p. 68.

156 157
registr des '5 .nsaios, \ -les dc ,1111
li 111I, 01110)1 101tIlIlI,qlll'O 111111111111 I\lhl I lI! ()Iviii" 11111111
11\111'111.
IIIOVItIl'11108sobr 'vivente de e querda).
teatral fundamental para ele era ai '0 du ord '11\ cJ ' lIl1!.11/1/1\/('1 1/11\\, 1111 o qu ' i~l'oo slHlIllll,1 l'llI Id,It,::I ) a Brc ht é que talvez estejamos
1v!.1!> erra-
qual cada detalhe é discutido no d talhe, ali .rnauvas suo proposll\. I' di dON em v 'I' S '11trubnlho 'sua t rnática como simplesmente pressupondo
batidas o tempo todo. Por isso, quando Ernst Bus h, horrc rizndo '0111I tIll I ld 'ia I minista d partido (as im como estávamos errados em pensar que
ração dos ensaios de Galileu, objetava dizendo que naquele passo I .vnr 1111 1,1\ pr .ssupunha qualquer avaliação dogmática de Stálin): de fato, o próprio
quatro anos para chegar à forma final, Brecht espertam nt r pli avn qlll fi /1' / i fi a bastante diferente se visto como um conjun o de argumentos pre-
um prazo de quatro anos não seria tão ruim assim; e, em g ral, obs 'I VII I minares e demonstrações sobre a necessidade de algo como um partido,
dores sempre notaram que o principal benefício do patrocínio estatal p \1 I mui do que sua simples defesa e apologia. Nesse caso, se preferirmos, seria
o teatro de Brecht era precisamente essa ausência de qualquer pr ssno di' possível dizer que o Grande Método constitui uma filosofia ou metafísica
tempo, esse ideal de completude em que nenhum problema é tão p qu '1111 do partido enquanto tal, na medida em que este último é agora entendido
que não precise ser discutido e nenhum gesto insignificante demais p'U,1 l 01110uma figura para a unificação e associação de particulares. É uma fi-
ser explicado e submetido à crítica ou autocrítica. De fato, o que diss 'n10 101' fia muito diferente do momento superficialmente análogo em Lukács,
anteriormente sobre a natureza analítica da estética brechtiana sug r' 1111', 110qual o "partido" acaba substituindo a própria classe: em Brecht, ao con-
de algum modo, o gesto individual provavelmente é mais significativo di I I rário, partido é para ser sinônimo da ascensão dos sindicatos e das orga-
que a forma e o geral. Também aqui o texto inclui todos os comentárln ulzações dos trabalhadores. No espírito do leninismo, o "sindicato" (em seu
sobre o texto: a ideia de estranhamento é maior do que qualquer si 1"11 ~.ntido mais amplo, de "soviet") deve constituir a síntese dessas duas coisas
nhamento individualmente realizado, e a performance final é também lllll I .lativamente distintas, cujas tensões e contradições uma crítica (não ape-
pretexto para todos os questionamentos teóricos que necessariamente ,I lia burguesa) do trabalhismo talvez reapareça para questionar e interrogar.
precedem na prática e portanto deveriam segui-Ia na teoria.) Mas em uma situação como a nossa, na qual partidos e sindicatos estão en-
De qualquer forma, nessa ocasião precisa (que se apoia na transformo Iraquecidos enquanto formas de organização social, a crítica talvez não seja
ção crucial da primeira cena de multidão de Coriolano em algo mais pdl mais imperiosa e urgente como no período stalinista.
ximo de uma conspiração revolucionária), os atores tecem suas observaçê .. De qualquer forma, é precisamente enquanto figura a favor da unificação
sobre o caráter e a determinação da ralé de Shakespeare (eles não pensanl '111si mesma e em abstrato que aqui se defende a especificidade do Grande
muito em suas decisões), ponto em que Brecht sutilmente se interpõe: "Nào Método (ou, em outras palavras, a própria dialética):
acho que você seja capaz de imaginar a dificuldade de um acordo (ou 1,1
unidade) entre os oprimidos"." O tom é surpreendentemente não triunfo Pode-se compreender melhor o Grande Método quando ele é pensado como
lista, além de ser um slogan excelente para uma situação histórica como doutrina sobre totalidades (Masservorgiinge). Ele nunca toma as coisas individu-
a nossa, na qual o próprio desaparecimento da ideia de partido devolve almente, mas antes as vê dentro de uma massa ou do amplo conjunto das outras
os problemas da unidade e da organização às suas origens (é verdade que coisas, semelhantes ou correlatas, bem como das coisas diferentes em espécie;
agora existem muitas técnicas mais especificamente capitalistas ou empre e então prossegue no sentido de dissolver esses grupos ou massas em outros
sariais para a criação de organizações ou instituições coletivas, muitas das conjuntos maiores."

37 Id., ibid., p. 387.. IR Id., ibid., p. 184.

159
Essa é naturalm int ' Lima roz () Illlp 'l'Ikl11lwlll quul I ('1 (I () prohk-nm do () InlO d . 111 u '1111 IIi II " 1I11·dllllllll'IlI' S' tornarem grupos sugere, 11-
casos individuais e mesmo d próprio indlvlduo - nt O • mlrul puru 1 dlul ~Ik I, 11'nunto, OUII' I cun ('qll II( 1.1: I dl' que, para esse pensamento, dinâmicas de
mas é preferível entender esse ponto em termos positivos a tomá-Io nc 'OtiVII ou grupo são as rol'llws por ex "1 n ia de relacionamento; a forma segundo a
particularmente. Assim, uma das tarefas centrais da dialética será uma bus o 11 qual tudo e tá padr nizad . Assim é que os átomos obedecem à lógica dos
mais "mínima unidade" - "die kleinste Binheit'» -, fórmula que emerge orno grupos sociais, mas também o fazem as obras de arte ou sistemas filosóficos
uma crítica da ênfase dada por Confúcio e outros sobre a família entendida XII quando são analisados e fragmentados em suas partes mínimas. Em outras
tamente como essa unidade coletiva fundamental. A discussão se transforma, d palavras, a ideia de que tais coisas têm "partes ínfimas" é em si um pressu-
modo característico, numa luta entre as boas velhas coisas e as más novas coisas: posto metafísico fundamentado na existência dos próprios grupos sociais e
a família, responde Me-ti, pode muito bem ter constituído tal unidade no pas- de suas dinâmicas. Esse é, então, um materialismo fundamentalmente social,
sado, em outro modo de produção. Atualmente a unidade mínima oposto ao físico (como o materialismo mecânico ao gosto da filosofia ilumi-
nista do século XVIII).

provém de todos os lugares onde as pessoas trabalhem ou procurem trabalho. Mas o que se aplica "sincronícamente", por assim dizer, precisa também
Essa unidade põe todas as experiências do mundo exterior no mesmo caldeirão. aplicar-se à diacronia ou ao fluxo das coisas no tempo. Já insistimos bastante
Ela é mais inteligente do que qualquer uma de suas partes." no valor supremo da mudança para Brecht, o que nos permite introduzir
neste ponto sua determinação básica: a dialética não pode ser reduzida a
E tais pequenos coletivos de trabalho serão eles próprios os componentes mero lamento e elegia a respeito da transitoriedade de todas as coisas. Tudo
da invenção de Mi -en -leh, o partido (aqui chamado de Verein ou sindicato). flui, o Tao, yin e yang, o curso do tempo, tudo são imagens em movimento,
Mas mesmo "unidades" existenciais, dois amantes, por exemplo, estão muito mas apenas em certas circunstâncias: mais do que tratar da efemeridade da
mais unidos por uma terceira coisa, que é trabalho ou o projeto comum." vida e as coisas deste mundo, o Grande Método "requer que também discu-
Uma vez que essa base "metafísíca' da dialética na dinâmica de totalida- tamos como certas coisas podem ser trazidas à efemeridade, podem ser leva-
des e dos coletivos tenha sido apreendida, suas outras características - his- das a desaparecer't" O efêmero - por exemplo Hitler - "ainda pode matar"44
toricismo e pragmatismo, o primado da situação e o papel da contradição - (de forma muito sábia, essa reflexão em particular é identificada como os
seguem-se logicamente. Contradição - no sentido filosófico mais amplo que "perigosos aspectos da noção de um escoar-se das coisas").
lhe atribuímos aqui - vem a ser o nome próprio da relação mesma que Portanto, é melhor apreender o vir a ser como uma mistura do velho e do
ocorre nos grupos, entre seus componentes, e entre os próprios grupos. novo, e a di ai ética como o entendimento de como esse novo pode emergir
do velho: "O novo é criado pelo velho'l-'
Uma parte da práxis de Mi-en-leh (Lênin) consiste na procura da contradição
nas aparências aparentemente unificadas."

39 Id., ibid., p. 79. 43 Id., Werke, v. 18, p. 83


40 Id., ibid., p. 79. 44 Id., ibid., p. 113.
41 Id., "Díe dritte Sache', in Werke, v. 18, p. 173. 45 No original, "Das Neue entsteht, indem das Alte umgewâltzt, fortgeführt, entwickelt wird"
42 Id., ibid., p. 100. B. Brecht, Werke, v. 18, p. 106.

160
E esse é pr isamct I o .ont \ to no qunl ul '1I1ll tlp., li' IV di '\ () 11111' l1lud III~ \ I' IlIlId 111\ 1 dll 1'111 111.11101 'N,lI S .pnra ao e a 'merg n ia de unidade,
rativa da situação torna-se indi pcnsáv 'I: d fat tudo d I .nde da 'xl 'IlS,I() ti mío 1lI10NN\lfI 11.1.1 dI' "l"~ ço 'S sem as suas respectivas, a unificação de opo-
das unidades narrativas nas quais uma dada coisa existe. si es ' -xclustvus.
l11u1LU1I1H.'1I1 rande Método torna possível reconhecer os
processos na olsa e utilizá-los. Ele nos ensina a fazer perguntas que tornam
Mestre Hu-jeh (Hegel) pensava que você pode dizer esta sentença ou uma al- possível a ação."
guma semelhante por tempo demais, ou seja, que você pode estar correto em
um dado momento e em uma situação específica com tal enunciado, mas, apó Mas essa é uma discussão que não se pode encerrar sem uma última pala-
algum tempo, e quando a situação tiver se alterado, pode então estar errado ou- vra sobre os intelectuais que entram aqui, como em qualquer outra obra de
tra vez." Brecht, por compartilharem certas opiniões (sobre a arte e os artistas, essas
observações são mais sumárias, predominando as agressivamente anties-
Eis por que Me-ti gostava de histórias de vilões: téticas, talvez porque o conjunto das reflexões positivas já tivesse migrado
para o interior da teoria dramatúrgica). Pensamentos, porém, são como
"Gosto da força e da esperteza. Quando se tem uma pátria em que força e es- grupos de pessoas:
perteza só podem ser exercitadas através de embustes e desonestidade, então é
preciso muito naturalmente defender o prazer que se tem no emprego da força Certos pensamentos, da espécie ordenadora, pensamentos que instauram a or-
e da esperteza nessas coisas." dem entre vários outros pensamentos, podem ser comparados a burocratas em
sua conduta e função. Originalmente criados como servos da generalidade, eles
Essa frase tem maior alcance: tanto para a avaliação e valorização das virtu- logo se tornam mestres desta. Eles teriam que possibilitar a produção e, em vez
des preferidas e cultivadas em um dado contexto nacional (como o alemão), disso, eles a dificultam."
onde são compensações para outros tipos de fracassos, como para o papel
mesmo das formas de energia antissocial na obra de Brecht em geral. Mas, E assim por diante: já se veem os tipos de desenvolvimento que Brecht ela-
acima de tudo, essa observação serve para trazer ao nosso contexto a lição borará com base nessa "observação". Ela é um estranhamento da atividade
básica do historicismo em Me-ti, a avaliação da situação especificamente si- intelectual (chamá-Ia "trabalho" intelectual já é em si estranhá-Ia de outra
tuada de tudo, que precisa necessariamente produzir mudança nos julgamen- forma) que se baseia na estrutura alegórica requerida pelo primado "dialé-
tos a seu respeito, assim como a própria situação é conduzi da à mudança. tico" de grupos sociais sobre outras espécies de fenômenos: portanto aqui,
Mas agora talvez possamos apreciar melhor a concentração da própria pensamentos individuais são também como certas espécies de camadas so-
definição lapidar de Brecht: ciais ou ligas profissionais.

o Grande Método é uma doutrina prática de alianças e de dissolução de alian-


ças, da exploração das mudanças e dependência da mudança, da provocação da

46 Id., ibid., p. 102. 48 Id., ibid., p. 104·


47 Id., ibid., p. 62. 49 Id., ibid., p. 71.
Casus ti ipurução da ultura d - -111 " l'lll P lrl por ausa d 111 do 01110 tl P' ópl'I,\
burguesia se encontra nas onvulsões da auto destruição ultural de -Iass "
Mas ainda não chegamos a nenhuma conclusão de tip formal sobr aqu leal à herança de seus predecessores, as classes superiores, e p rtanto '111

Ias anedotas, que parecem oscilar entre o "mostrar" da pedagogia ab m processo de perda de um modo de vida que antes de mais nada nun a 01
diferente operação de inferir uma moral da fábula ou parábola. De fato, a propriamente o seu; e em parte porque os meios de comunicação aceleraram
tensão agora parece situar-se entre mostrar e julgar: a "moral" mostrada esse processo e não o substituíram por nada além da comercialízação d i
por uma situação parabólica ou exemplar nos pede que elaboremos nosso próprios. Fica suficientemente claro, entretanto, que a recusa do julgamento
julgamento, sentemo-nos e consideremos reflexivamente como Brecht tão e da lei provém do fato de que as pessoas não sentem que criaram essas ins-
frequentemente gostava de descrever o seu teatro dos trabalhadores, ou ela tituições e portanto não se sentem leais a elas. Em um momento iluminista
simplesmente nos apresenta o julgamento pronto, e, na melhor das hipó- inicial da ascensão da cultura burguesa, Kant insistiu sobre a necessidad
teses, pede-nos que julguemos o julgamento, se ele foi o mais sábio ou o de o subalterno aprender a tratar as leis emergentes como se elas fossem
mais apropriado. produto de sua própria escolha e elaboração. 50 Mas aquela era uma situaçã
A questão do julgamento e da Lei é com certeza muito candente na fase de poder popular emergente, em que era possível esperar que as pessoas
atual, e desgostar de todas as espécies de julgamento, para não falar da pró- sentissem isso e acolhessem as suas próprias possibilidades de práxis; já em
pria punição, é uma questão política e de classe da qual não se pode esperar nosso caso, que se caracteriza pela perda do poder popular e pelo aument
que uma obra que inclui A decisão permaneça isenta. Essas questões são da incompreensão a respeito da qual a práxis deveria vir primeiro, não se,
parte, na verdade, de um conjunto maior de ataques à estrutura legal e in- pode esperar que se dê o mesmo, por mais que as instituições impostas ao
telectual do próprio sistema, que em grande parte transcendem aqueles as- grupos subalternos sejam adornadas por slogans democráticos e convites
suntos relativos ao poder, agora antiquados e supersimplificados, mas muito enfáticos à participação.
frequentes nos anos 1960. Certamente esses ataques podem assumir uma Mas não parece seguro que todo apelo ao julgamento necessariamente

ampla variedade de formas, e trataremos de outras depois: acima e além de ratifique a Lei enquanto tal: apelos a esta última tendem a ter um caráter
todos está a questão do julgamento enquanto tal, sobre a qual Deleuze tem estoico ou mesmo trágico, reconfirmando alguma inevitável falha do de-
sido o mais veemente, havendo também os ideais desta ou daquela norma sejo ou do utópico, uma aceitação de limites intransponíveis, a necessidade
(a análise de Derrida sobre Searle, por exemplo) e, finalmente, as várias no- de renúncia e uma submissão à ordem. É, então, o momento de lembrar
ções essencialistas, entre as quais a ideia de natureza, e em especial uma que Brecht operou uma mudança significativa quando decidiu, para substi-
natureza humana, assim como um significado natural ou lei, são as formas tuir a Grande Ordem de Me-ti, que deveria caracterizar o socialismo como
fortes e, pode-se dizer, a "base" - ela própria formalmente aberta a ataques oposto ao caos do capitalismo (a depressão, a selva das cidades, a própria
da mesma espécie. Esses ataques expressam uma democratização de tipo guerra), por um novo slogan que caracterizasse a construção do socialismo

crescentemente difundido, sem dúvida: porém já que esse termo político se


tornou propriedade privada de alguns retóricos americanos, parece prefe-
50 Ver, por exemplo, a seção E ("O direito de punição e ° direito de perdão") da Metafistcn
rível criar o neologismo mais brechtiano da plebeização para dar conta das dos costumes: "Todo mal imerecido que se faz a alguém entre ° povo é um mal feito a si
vozes de grupos até agora mantidos na subalternidade tanto legal como in- próprio': in Hans Reiss (org.), Kants Political Writings. Cambridge: Cambridge University
telectual; mas também tendo em vista um nivelamento que é o resultado da Press, 1970, p. 155·
n pó -gucrra, u seja, a Grand ' Produçuo, (R '11m '111•• jllll~lllll' o li 1IdOl
nünldudc 0111 a" tll'llÍlIllllI" l"Opl ,11111.11[' dita,'· ou 8 'jo, o aruurncntur '
de Baal como o glorificado!" da ord rn m si m '8111<1 ímu 111:11' nqu Ias
ntra-ar um ntar, a I '!lI '11lv I de .spc if ar, parti ularment qu t s le
vidas que, sem a conversão ou a renúncia de eu píritos jov 115, pod '111
gai spinhosas e assunto em julgamento. Iolles nos dá muitos exemplos,
perfeitamente ser descritas pela frase de Dante como "grande capitulações")
especialmente paradoxais e pitorescos, que chamam nossa atenção para a
E, entretanto, todas as grandes peças finais oferecem imagens de julga-
forma, mas não precisamos repeti-los aqui." Parece inicialmente claro que
mento: o processo da Igreja contra Galileu é duplicado por aquilo que vimos
o problema do casus expõe e exacerba um problema filosófico fundamen-
serem os complexos e ambíguos apelos ao público a passar para uma espécie
tal, ou seja, a relação entre o universal e o particular - em outras palavras,
diferente de julgamento sobre essa figura aparentemente aviltada (que em cer-
esse fato é um exemplo daquele conceito classificatório maior? Esse ato se
tas circunstâncias pode fazer pensar na expressão de Dante). No caso da Mãe
encaixa nesta categoria particular? Qual é o estatuto da singularidade exis-
Coragem, é a própria vida e a História que passam o julgamento e a abando-
tencial de uma ação dada e seu específico apelo à nossa misericórdia etc.?
nam à vã ocupação de uma velhice solitária. Mas em O círculo de giz e A alma
A literatura parece ter-se limitado ao domínio do individual e do concreto
boa, o ato de julgamento é posto no palco: na sabedoria ébria de Azdak e na
e questões relativas ao universal irrompem apenas como "questões filosó-
presumida credibilidade dos deuses que vêm à terra encontrar a "boa alma".
ficas" ou muito especificamente na condição de inúmeros "casos" identifi-
De qualquer modo tem-se notado com frequência que, da Oresteia em diante,
cáveis, mas em tempos recentes a análise ideológica deixa bem claro que
o teatro tem muito em comum com o tribunal, e que os atos e a atuação pare-
categorias abstratas e conceitos universais ocultos estão sempre em ação
cem demandar aquela resposta que chamamos julgar e julgamento.
sob a superfície de qualquer narrativa e podem ser mais bem examina-,
Uma saída para esse dilema pode ser encontrada no livro de André
dos principalmente quando eles parecem mais ausentes e mais escondidos.
Iolles, Formas simples, que oferece uma alternativa às tradições da narrato-
O julgamento de Shen-te (em A alma boa de Setsuan) mal pode ser con-
logia francesa, russa ou tcheca, assim como um caminho muito diferente
siderado, portanto, um caso especial de forma literária, mas estará prova-
do tomado por Frye." Pois entre suas "formas simples" - estas são guina-
velmente sendo objeto de exercício e inflexão sempre que identifiquemos
das de pensamento que iniciam formações verbais elementares, que pos-
personagens como heróis ou vilões, ou respondamos às avaliações que um
teriormente, em alguns casos mas não em todos, são elaboradas na forma
autor nos prepare e nos sugira.
de gêneros literários - ele inclui uma categoria quase jurídica para a qual
No entanto, no casus de Iolles, esses julgamentos são trazidos à superfície do
é melhor manter a palavra latina casus (que o alemão reproduz): a pala-
texto e tratados como se fossem autoconscientes, por uma certa tensão interna
vra inglesa "case" tem que ser explicitamente qualificada e restringida para
ou conflito entre vários aspectos e padrões que normalmente não são questio-
designar uma situação jurídica, e provavelmente, mesmo assim, não intei-
nados pelos exemplos habituais das atividades do tribunal, mas, nesses "casos"
ramente específica, perdendo por completo a capacidade de mostrar sua
especiais ou únicos, transformam-se em autênticos escândalos e impedimen-

52 Como o português não tem esses problemas e a palavra "caso" também comporta o sentido
51 Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. Sobre a análise da pará-
jurídico, quando necessário, traduziu-se "casus" por caso. [N. T.)
bola em geral, entretanto, ver também Louis Marin, Sémiotique de Ia passion (Paris: Aubier,
1 53 Por exemplo, o ladrão que dá a seu cúmplice o dinheiro roubado: se ele trocar e dividir
197 ), assim como seus ensaios fundamentais em Claude Chabrol (ed.), Le Récit biblique
primeiro as notas grandes, de acordo com a lei alemã o cúmplice não será culpado de
(Paris: Aubier Montaigne, 1974); ver ainda Paul Rícoeur, "Biblical Hermeneutío," Semeia,
n. 4, 1975, pp. 29-148. receptação de roubo. Pode-se também pensar aqui na literatura, e mais adiante quando a
virtual reelaboração que Kluge faz da Marquesa d' O, de Kleist, for reconstruída.

166
tos. N) lugur do. ' '1lIplo. dt' )11111 , 1IIIId 11111 1.11 1101, vel do 11'11111""11 tIt' II I' IIISHg'111 d' \111111 l'IIIt'II~ 1 11'1 'It'nl~ r umu dada norma, mas sim reli r ntc à
AI xandcr Klug , 'lu' pode Ilmh 111 lIuslror o que 'SS~ 'S '1'1101' 'X(I'lOl'dlll vulklnd 'das próprios IIlIrJ11IS, UI11I1Justaposta às outras:
rio foi capaz de herdar e transformar ti partlr ti ' Brc .bt m s .us 'OI1I()s ' 'P
sódios fílmicos frequentemente int r ambiáveis. Este cxt raíd d um íilm '. N casus a forma deriva de um padrão para as avaliações de vários tipos de
O poder das emoções= em que o poder que tem a ópera de nos orn ver Si: conduta, mas em sua consumação há também uma questão imanente, relativa ao
justaposto a uma variedade de episódios muito diferentes e em sua mai riu ri valor da norma em questão. A existência, validade e extensão de várias normas
minais, O assunto que nos interessa aqui diz respeito à história de uma jov rn deve ser considerada, mesma apreciação inclui a pergunta: de acordo com que
deprimida que decide suicidar-se e estaciona seu carro em um espaço públi o medida ou com que norma a avaliação deve ser feitai"
r lativamente isolado, ficando inconsciente após ingerir uma grande quantidad
ti ' pílulas. Eis que nesse ponto chega a repulsiva figura de um homem de meia É nesse sentido que o caso revolucionário brechtiano não reafirma a norma
klad respeitavelmente vestido à procura de aventura: o espetáculo da mulher ou a Lei, mas antes a questiona; de tal modo que a dramatização brechtiana
Inconsciente excita-o e, arrastando seu corpo até o bosque próximo, ele a estu- da contradição requer um julgamento que não consista na escolha entre duas
pro. A polícia nota dois carros estranhamente vazios e prende o estuprador, res- alternativas, e sim na sua substituição à luz de um novo e utópico julgamento:
gatundo, ao mesmo tempo, sua vítima, que o hospital consegue reanimar e salvar "Dê toda a atenção ao pensamento dos antigos, pois o que há nele deveria
da morte. A questão legal é, então, a seguinte: o homem em questão é um crimi- pertencer aos bons para ele"> Já se vê que o valor ético desse "bons" está, aqui,
nos ou um herói? Ele estuprou sua vítima; mas, sem sua iniciativa, ela nunca impregnado de um valor histórico: produção, que inclui a mudança e o Novo,
t ria sido salva. Ele deve ser punido por um crime sem ser recompensado pelo assim deslocando completamente os tipos mais antigos de ética.
outro ato, a boa ação da redenção ou salvação da moça? A anedota" (que KIuge Devemos mencionar também a conclusão de Iolles:
deixa sob a forma de pergunta) pode claramente ser lida como uma parábola
que envolve muitas forças e situações diferentes, mas é também um casus, por o que estam os acostumados a chamar psicologia na literatura dos séculos XVIII

sua estrutura, e isso não só porque duas espécies de leis estão em conflito aqui _ e XIX - o pesar e medir dos motivos de uma ação de acordo com normas inter-
uma, a da violência física, e outra, a da própria vida -, mas também, e esse é um nas e externas [... ] parece-me ter grande afinidade com a casuística na tradição
ponto fortemente enfatizado por Iolles, porque o julgamento é suspenso (pelo católica romana. 57
menos da narrativa de Kluge). Pois uma vez que um casus esteja resolvido e um
julgamento tenha sido emitido, o "caso" como que emerge da forma e passamos A ruptura com o psicológico, no moderno, devolve à superfície esses movi-
a ter, muito simplesmente, uma narrativa empírica. É a contradição que depõe a mentos internos de categorias e coloca os próprios atos de decisão e julga-
favor da singularidade dessa forma simples enquanto tal e mantém sua existên- mento no palco. Tal é, pelo menos, a sua estrutura narrativa; mas as tenta-
ia - pois o casus representa um julgamento sobre o próprio julgamento, e não doras designações fábula e parábola nos fazem lembrar de que precisamos
examinar também a sua designação vertical ou alegórica.

54 O filme de Kluge data de 1983; ver também a coleção de mesmo nome (Frankfurt: Zwei-
tausendeins, 1984), que entre outras coisas, inclui o roteiro da adaptação cinematográfica: 55 A. Iolles, op. cit., p. 166.
"Testemunha, a questão mais séria é esta: você não reage ao fato de que o acusado, que por 56 B. Brecht, Werke, v. 8, p. 85·
um lado a resgatou e por outro a violentou, estuprou-a?"
57 Id., ibid., p. 199.

168
Alegoria 110 111'SI1IO I II'1HIII 111'1111' 1.110 hlsl! I'i 'O pare , .nquudrar .sse 'rI' ulo '
'11 .rrur () P"Ol' O, 111-\('1lido qu " se a r pr cntação minimamente reprc-
A alegoria consiste em retirar de uma dada representação a sua autos uf t n- nta ai )UI11U outra oisa, isto , o evento histórico real, então tudo o que ela
cia de significação. Essa retirada pode se caracterizar por uma insuficiência significa é i o, nada mais deve ser acrescentado a título de interpretações
radical da própria representação: lacunas, emblemas enigmáticos e congê- suplementares. (Só uma antiga historiografia religiosa, por exemplo, reivin-
neres; mas, com mais frequência, particularmente nos tempos modernos, ela dicou que a história fosse também um livro - o de Deus - e que seus eventos,
toma a forma de uma pequena cunha ou janela em uma representação que portanto, tinham significados alegóricos próprios.)
pode continuar a ter seu próprio sentido e parecer coerente. O teatro é mais Por outro lado, deve-se também perguntar sobre a gratuidade de qual-
uma vez um espaço privilegiado para mecanismos alegóricos, visto que deve quer representação histórica: por que esta, por que agora, qual o propósito
sempre existir uma pergunta sobre a autos suficiência de suas representações: de exibir esse episódio histórico em particular entre tantos inumeráveis rela-
não importam a pompa e o encanto de suas aparências, não importa o grau tos do passado? É uma questão a que Brecht responde com presteza, e não só
em que aparentam autossuficiência, há sempre a sugestão e a desconfiança nas notas ao programa alemão oriental de Galileu Galilei, mas em sugestões
de operações mim éticas, a percepção reprovadora de que esses espetáculos e alusões do próprio texto; essa peça propõe questões sobre os cientistas e
também imitam, e, portanto, simbolizam alguma outra coisa. Mesmo que suas responsabilidades. Se nos reportarmos ao próprio Galileu, estão em
essa representação corresponda ao que geralmente se considera realista, uma causa Oppenheimer e a bomba atômica; a partir disso a peça impercepti-
distância alegórica, mesmo muito sutil, se abre no interior da obra: uma que- velmente se torna uma alegoria do movimento antinuclear (refratado nas
bra pela qual todos os tipos de significado podem progressivamente penetrar. várias campanhas de desarmamento, contra a Otan, no Leste Europeu e no
A alegoria é, portanto, uma ferida às avessas, uma ferida no texto; pode ser Ocidente), dispondo de rico material nas circunstâncias de guerra de inú-
estancada ou controlada (particularmente por uma vigilante estética rea- meras peças de Brecht - de fato, sua primeira e muito engenhosa produção
lista), mas jamais inteiramente eliminada como possibilidade. europeia do pós-guerra na Suíça, a Antígona, com Helene Weigel no papel-
Sou tentado a dizer que toda interpretação de um texto sempre é pro- -título, tinha condições de ser encenada como uma peça antibélica.
to alegórica e sempre deixa implícita que o texto é uma espécie de alegoria: Mas estamos apenas no começo de uma proliferação alegórica mais ge-
toda afirmação de sentido pressupõe que o texto é sobre alguma outra coisa ral: se o consentimento de Oppenheimer em fazer a bomba chega a ser
(Allegoreueien). Nesse caso (ampliando o sentido do fenômeno a um grau de sugerido na recusa de Galileu e em sua submissão ao poder da Igreja, cer-
universalidade que já pode fazê-lo parecer menos útil), a atenção será diri- tamente algumas outras analogias tópicas também podem ser encontradas:
gida à maneira como no texto se colocam controles que limitam esses signi- a mais óbvia (e entretanto a menos lembrada, sem dúvida por muito bons
ficados, que simplesmente restrinjam o seu número, que dirijam a atividade motivos, embora o próprio Brecht a mencione) é a capitulação de Bukharin
interpretativa que os permeia; que façam do alegórico um sinal específico nos processos de Stálin." O paralelo geral já fora estabelecido na cultura
que só entra em jogo quando interessa. de esquerda pelo uso que Dimitrov fizera da referência a Galileu em sua
A peça histórica é particularmente alegórica e antialegórica ao mesmo defesa no processo de Goering em 1934: isso torna muito mais escandalosa
tempo, pois evidentemente pressupõe uma realidade e um referente histó- a posterior "confissão':
rico fora dela mesma, dos quais ela se reivindica, com insistência mais ou
menos sutil, a iluminação e, por conseguinte, a representação interpretativa: 58 Ver Roy A. Medvedev, Let History Iudge. Nova York: Knopf, 1971, pp. 174-79.

170
Se, como diz Santo Ag stinh (numa d icluruçdo t suu 111011 'Ir I 11 O .Itlsfl t o f(sl a, um (1'1 ti 1.1 I. lutas p r id ias e te rias n o sao 'llpllZl.'S

desprovida de escândalo), uma col a p de lgnificar li Ia própria Ou seu ti - faz -10 n gligen iar suas r -, -I cs e seus interesses, como par ia a (1)

oposto," então temos aqui o mecanismo de significação da ai g ria, qu ' 1 r no período das descobertas do início de sua vida. Sem dúvida .ss
pode se aproveitar da Identidade e da Diferença indiferentemente, com a ntraste entre o jovem e o velho Galileu que o aspecto culinário expc '
expectativa de que essas se transformem em Oposição e finalmente Contra- (lembremos a conotação desdenhosa dada a essa palavra nos ensaios sobr '
dição. Esse mecanismo explica por que não precisamos decidir se Galileu o efeito-V) a fim de uma avaliação específica. Entretanto, é preciso mant r,
(ou Bukharin, em relação a esse assunto) tinha justificação; o que precisamos ambivalência dessa questão que parece instalar uma contradição e uma l n
fazer é notar o próprio assunto e debatê-lo: ou essa covardia deve ser com- são desesperadas entre corpo e alma, entre satisfação física e mental ou cx
putada entre as formas de "covardia heroica" sobre a qual já ouvimos tanta citação científica, de tal modo que uma ou a outra sempre está na iminên ia
coisa, ou ela é covardia pura e simples, e, nesta segunda alternativa, antes de de ser "recusada" ou sacrificada - em uma situação na qual a pessoa brech-
mais nada, como se torna "heróica"? É uma questão que avança até incluir tiana moderna não se dispõe mais a engolir o valor do "sacrifício" enquanto
o materialismo em seu âmbito: pois o heroico na sagacidade de Schweik ou tal porque as autoridades o impõem. Em nome do quê? Essa é a antiquíssima
dos trapaceiros era precisamente seu senso de responsabilidade para com o e subversiva questão que remonta à Realpolitik da Renascença na medida em
próprio corpo e a vida. que ela se rearticula nas várias recusas do existencialismo contemporâneo e
Hegel já o tinha visto na dialética do Senhor e do Escravo.= o Senhor se mais: qual é o valor da perda do presente, do aqui-e-agora, de uma imedia-
dispõe a sacrificar sua vida pela Honra (por um Reconhecimento que mais ticidade cujo incomparável valor - óbvio em si próprio - dificilmente pode'
tarde incluirá poder e privilégio material como uma recompensa e um su- ser sobrepujado por qualquer outra coisa que nos seja proposta?
plemento). É essa disposição para sacrificar a própria vida e õ corpo vivo que Nesse ínterim, é então no outro prato da balança do que deve ser sacrifi-
o distingue do Escravo, que reluta ao máximo em perder a boa vida que já cado que um correlato processo alegórico se estabelece. No momento prece-
tem. O Escravo é o materialista, o Senhor o idealista: o materialismo é então dente, o que estava topicamente alegorizado era o ato de submissão; agora, o
essa relutância máxima em abrir mão do próprio corpo, não importam quais que entra em foco é o que era traído, e aqui nem Oppenheimer nem Bukha-
sejam as promessas de recompensa (e, de qualquer forma, elas geralmente rin nos trazem, de imediato, grande ajuda, uma vez que esses dois exemplos
são pagas com retórica idealista na vazia linguagem da honra, muito menos pressupõem um valor - pesquisa científica ou revolução - que resta analisar
"materialista" no longo prazo do que os privilégios feudais do Senhor). e fundamentar. (De qualquer modo interessa reter, no que segue, este sis-
Nessa ligação com o aqui e agora do corpo há uma valorização de seus tema dual de níveis: ciência e política.)
prazeres: Brecht, que comia como um asceta, atribui aqui a Galileu uma ir- O que a peça torna claro, com energia e prazer abundantes, é que a ab-
refreável fixação em comida, particularmente na velhice: não se trata exa- negação fundamental de Galileu consiste em um pecado contra o próprio
tamente de gula, mas da afirmação de que nada é mais importante que a Novo, contra o Novum. Ainda não é a nova ciência propriamente dita, ainda
não é a "física" na forma de um método experimental, do uso mais novo da
Razão e do experimento, de Bacon e da dúvida sistemática e da pesquisa,
59 De doctrina christiana, livro III [ed. bras.: A doutrina cristã: Manual de exegese eformação
mas antes de algo mais amplo - significativamente expresso na própria fi-
cristã, trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002).
60 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito [1807), 6~ed., trad. Paulo Meneses. Petrópo!is: guração literal da revolução como uma volta da grande roda, uma poderosa
Vozes, 2011, capo 4, seção A. rotação no rio do tempo e aquele processo de mudança em todas as coisas

172 173
que é o alvor c r de uma nova 'ra. R '(1111\ '11[ ',11<10 h' nud, mais uuncl oso 111 111" 111 It'IIII \ I 11'1111 uI própria de uma
1111111 I i de aleg rização
do que a passagem da prosa a v r m dúvida de palavras a mús! n) 11'\ sul ordln Idi . 1'1111 11110,1 (I I1 ia, juntamente com o aprendizado, é assimi-
primeira grande cena dessa peça - uma mudança em nívei indi ad p Ia lada ao ato ti' brlncur ao pur prazer, à diversão propiciada pela manipu-
própria encenação e posta na boca de uma criança, quando alil 11 dá ao lação e p J experimento, ao deleite não apenas de mudar mas na própria
menino Andrea o volume impresso para ler e este declama os primeiros habilidade de provocar mudanças e fazer coisas novas acontecerem. No
versos deste grande poema: entanto, num sentido mais amplo, o Novo, como Galileu o encena de modo
único na obra de Brecht, claramente precisa ser acompanhado de sua pró-
Ó prazer de começar! Ó alvorada! pria referência alegórica múltipla, da qual parece evidente que precisamos
A primeira grama, quando parece esquecido articular pelo menos dois níveis. Um é a emergência de novas relações
O que é o verde! Ó primeira página do livro humanas, e a partir daí todo um novo tipo de sociedade; esse é o nível da
Tão esperado, surpreendente! Leia revolução social propriamente dita. A partir disso, identificar a revolução
Devagar, muito rápido científica da Renascença com as revoluções políticas do século xx inspira-
A parte não lida ficará pequena! E o primeiro jato d'água das pelo marxismo (daí se segue a noção de marxismo como ciência e, de
No rosto suado! A camisa fato, como a conhecida "ciência da sociedade", é uma mudança significativa
Fresca! Ó começo do amor! Olhar que desvia! secundária que também corrige e limita a si própria; isso quer dizer: sim, o
Ó começo do trabalho! Colocar óleo marxismo é realmente uma ciência naquele sentido figurado que acompa-.
Na máquina fria! Primeiro movimento e nha e teoriza o Novo).
Primeiro ruído do motor que pega! É uma operação alegórica que então libera imediatamente suas próprias
A primeira fumaça, enchendo os pulmões! determinações específicas e consequências, pois, nesse caso, precisamos tam-
E você, pensamento novo!" bém acrescentar que essa "revolução" renascentista teve vida curta, e que a
história de Galileu também ilustra um momento contrarrevolucionário no
Assim o poema generaliza todas as mudanças empíricas que Galileu acaba qual, em resposta, ela foi rapidamente contida e controlada, e seus primei-
de enumerar: na nova construção, os métodos de alavancar blocos de pedra, ros impulsos e estímulos foram sistematicamente dominados e frustrados:"
as novas regras de xadrez que abrem o movimento livre da torre pelo tabu- mesmo no espaço utópico de uma Holanda burguesa livre, o momento da
leiro, em uma nova concepção da linha reta estendendo-se ao infinito - a abertura em que Espinosa pode elaborar seus pensamentos materialistas e
reunião de todos esses exemplos nos dá a visão do próprio Novo, a excita-
ção incomparável do romper de uma nova aurora e o advento de um novo 62 Acredito que aqui deve ser traçado um paralelo com o breve momento de abertura de
tempo. Rabelais, segundo Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renasci-
mento: O contexto de François Rabelais [1968], trad. Yara Frateschi. São Paulo/Brasília: Hu-
Este será agora o veículo alegórico no segundo movimento interpreta-
citec/uNB, 1999. Para Bakhtin, Rabelais é uma tomada de ar entre as tradições e costumes
tivo da peça: aqui o foco não é mais a "ciência" enquanto tal, embora esta
restritivos da Idade Média e a imposição da nova e elaborada disciplina política e cultural
criada pela Contrarreforma barroca: a alegoria visa claramente a celebrar a grande revolu-
61 B. Brecht, "ó prazer de começar'; in Poemas 1913-1956, r ed., seleção e trad. Paulo César de ção cultural soviética como um processo que irrompeu entre o momento de um czarismo
Souza. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 258. quase medieval e as repressivas ortodoxias do stalinismo nascente no início dos anos 1930.

174 175
utópicos depois de alguns anos '11 • .rrado i substttuído por um I 101'1111 tlldo I, 0.1111 111"dl1 11111111.111I\IH' por outros soh"'.1 plOpl "
I' P'('SIIII

modificada de hierarquia e governo aristocrático.v Então sta lima r '11 ' !'adi .t1ld,Id' do III1VII I 11111
di' .1111.1\,10 'xplid Iam 'nl 'xi >ido I ,10 t 01 i.1
xão sobre a substituição do leninismo - e do grande mom nto da r volução ti" htiano, qu ' Ir~.101 I('H ' II,HI.II> no movim .nr-o aleg ri p r 'Ias uh '110,"1

cultural na exuberância dos anos 1920 soviéticos, com sua experimentaçã orno um art 'falO ai "ôri 0, 'ali/eu c nt m pelo meno duns m 'I1S,1

sem limites - seguida pela reimposição da disciplina e da ordem stalinista, g ns distinta ai m da "literal" (que é, se preferi rmos, a mensagem ai ' ri u
sobre a liquidação da inovação? E até que ponto não se pode detectar, se- da referência histórica enquanto tal): a da revolução política como um Iipu
guindo a referência a Oppenheimer, uma alusão alegórica à emergência da de nível anagógico, e a da revolução estética como um nível moral. Minhu
Guerra Fria no Ocidente, dadas as novas estruturas do pós-guerra e a extin- tendência é completar esses níveis com um quarto, referente à alegoria 111 '

ção sistemática do formidável as censo da esquerda ocidental (em especial a dieval, o "alegórico" propriamente dito, em quoe as referências tópicas 'SI t'
norte-americana) durante os anos 1930? Evidentemente, essas elaborações ciais mencionadas (Oppenheimer e Bukharin) atuam no sentido d innu
agora são secundárias a partir do primeiro nível alegórico: o Novo como o gurar o próprio processo alegórico. Assim os quatro níveis medievais d '
Novum revolucionário. significado são mantidos e ganham complexidade no novo esquema: cl 'S
Mas o próprio movimento dessas sugestões, da própria revolução política emergiram, como será lembrado, do nível literal, ou seja, do fato hist ri o
e do marxismo como uma forma de "ciência", à revolução cultural e ao flores- (digamos, do povo de Israel partindo do Egito), para o alegórico, de rtsto
cimento de um sem-número de novas formas culturais, sugere um segundo saindo de seu túmulo e voltando dos Infernos; e em seguida para os nív 'Is
momento do processo que é preciso explicitar. Pois se a revolução política de significação equivalente, do moral e do anagógico: a alma purificando li t

e social é um nível da estrutura alegórica deste Novum, então a estética é o do pecado em sua conversão e a humanidade posta diante da ressurr çuo
outro nível, e aqui as inovações de Galileu devem ser lidas como analogia coletiva no Julgamento Final.
com o que chamamos o modernismo propriamente dito. Na verdade - até Aqui podemos dizer que em Galileu e em sua situação histórica SI, o
onde a obra de Brecht também é modernista, porém, como já indicado, não primeiro nível literal ao qual corresponde toda a concepção do Nov 'ti I

simplesmente uma forma de modernismo entre outras, mas antes como a revolução; num nível propriamente alegórico, modulado no nível moral p 'Ia
forma forte, a única forma legítima da inovação modernista enquanto tal-, traição ao Novo, estão o desvio da nova física na Guerra Fria e a fabrica 50
aqui tocamos em outro exemplo ainda central de autorreferencialidade: as da bomba como a apropriação indébita por Stálin do bolchevismo e sua a
inovações científico-estéticas de Galileu estão implicitamente relacionadas ricatura (o literal extermínio) nos processos do s expurgos; enquanto em li m

à própria estética brechtiana. (E talvez, nessa medida, também algumas das


hesitações sobre o desenvolvimento da nova estética - a necessidade de fa-
64 Entretanto, outra alegoria póstuma, diversa e ainda assim relacionada, poderia então ser
zer concessões às convenções teatrais vigentes a fim de oferecer o consolo identificada ao equipararem-se as descobertas "modernistas" de Galileu e de Brecht com
de uma nova versão da estética do estranhamento com ênfase sobre o prazer as de Einstein, cuja relatividade excluiu a aceitação radical da indeterminação ("Deus
e o consumo - no Pequeno Organon do pós-guerra: a riqueza espetacular não joga dados com o universo"), e a cuja moderni dade, portanto, pode-se opor uma
pós-modernidade mais completa resultante da física recente. Nesse sentido, uma drama
das próprias chamadas "grandes peças"). Talvez seja necessário reconsiderar
turgia pós-brechtiana poderia acusar o mestre modernista de concessões (ao marxismo,
ao leninismo, ao Estado) e propor uma Holanda mais livre da estética descentrada e do
63 Ver o capítulo 1 de Antonio Negri, A anomalia selvagem: Poder e potência em Spinoza heterogêneo. Também nesse caso a parábola alegórica do próprio Brecht permanece "útll',
[1991], trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. ainda que eu mesmo prefira não a utilizar assim.

176 177
nível anagógí u I itivo, talv "" I 'mirando li ItI 'nllli I~I\O do I ':11m 0111
revolução cultural em geral, a evolução da Iara pu!" 'za das p .ças ti Idlll 'LI~
originais até os prazeres mais culinários deste espetacular Galiieu, ofcr \ ,
uma espécie de comentário sobre si mesma e um tipo ardilo o de aut rrcf
rencialidade em consonância com seu próprio estilo e compromissos.
Assim, a forma do casus está lá a fim de manter a questão em aberto,
por recurso interposto: as seguidas tentativas no nível literal assim como no
alegórico, de pedir à plateia uma postura de julgamento que evite os julga-
mentos mais "naturais" de primeira pessoa promovidos e encorajados pela
própria estrutura alegórica. Entretanto persiste uma tensão, em Brecht, en-
tre as instâncias judiciais e as pedagógicas. T. S. Eliot é mais consequente e
também dramaticamente mais impactante quando, no final de Assassinato
na catedral, obriga os assassinos a se voltarem diretamente ao público para
acusá-lo e declararem que eles próprios em última análise são responsáveis
pelo martírio de Thomas Beckett, enquanto cidadãos de uma sociedade se-
cular: "Se você tiver chegado agora a uma adequada submissão às preten-
sões da Igreja relativas ao bem-estar do Estado, lembre-se de que fomos nós
que tomamos a iniciativa'i" Trata-se, no mínimo, de uma reviravolta que só
poderia acontecer numa sociedade capitalista e diante de um público com-
prometido com o mercado e a propriedade privada. Entretanto, mesmo nos
trabalhos antinazistas, os ataques de Brecht à plateia alemã e a seu público
leitor são satíricos, procurando dar guarida à culpa e à vergonha e, por meio
delas, finalmente dar o primeiro passo para uma reeducação coletiva, que
eles precisam aprender a ensinar a si mesmos. Mas Galileu atravessa esse
dilema e essa tensão com extrema dificuldade, encontrando sua solução fi-
nal com o tempo e a própria mudança, na viagem do livro rumo ao futuro:
a mensagem na garrafa a ser aberta nas praias utópicas de outros mares e de
outros mundos.

65 T. S. Eliot, Complete Plays. Nova York: Harcourt Brace, 1967, p. 50.

178
l'rovérbíos e história camponesa

11Y a queLque chose de paysan dans l'histoire.


1l11.I.l?S
DELEUZE

Supõe-se que o provérbio seja a outra face da parábola e aquilo tlUt' t 0111III
Ira a sabedoria narrativa desta última em uma fórmula lapidar; é, lIllll \ 1'1
reza, uma sabedoria já conquistada, enquanto a fábula oferece urna snlll'd\ 111.1
nquistada, mesmo que esta também seja proveniente da e)(IH'II~IH 11\

previa de outra pessoa (ou da experiência da coletividade). A dift'ITII~ 1Idi


perspectiva sem dúvida é determinada pelo apagamento da nurnulvn 1'11
quanto tal, que persiste na fábula mas no provérbio é reduzido a um 11111111110
Hl'\lInnllcul. Como demonstramos acima, a conexão com O gesl us, li IHlllllllvll,
I 1'('PI'CIWIIIIlÇ50de eventos e algum Lipo de ação, abordada com '111111'1\111
~1'\111
dl' lIbSI rll~'\10, IHlnClI podt' sei' de lodo eltmlnnd«, Limo ve'!. qUic' 111('/1111\1
o dbulI'so 11I'OVI'I'hlllllt'1Il pOI' Oh)l'lo l'V('lIlos l' dt'SlllIos hlllll(\IIOS. MIIN I,d,
v,''!. li hlNII'lI 111 !l0NNII011'11'\1'1Ilqlll 1111\11
1111111°11111,
I' "11\ jll" tk ulnr o POdC'HINII
IIfllll11('\l11I d.' AI 111111
1hllllll,lH'l\lIlIdll1l '1\11"1'01 1III'IltlN qlll' 1111111'''101'11
I'IIII~U:I 1ltlllllllvcI (I,'ICIIIII~II'II, 1.'1111111111111
dt..), 1.'1.:"1:1I11'"~111'111
dlvlllvldllll

1/11
Provérbios e história camponesa

Il y a quelque chose de paysan dans /'histoire.


GILLES DELEUZE

Supõe-se que o provérbio seja a outra face da parábola e aquilo que concen-
tra a sabedoria narrativa desta última em uma fórmula lapidar; é, com cer-
teza, uma sabedoria já conquistada, enquanto a fábula oferece uma sabedoria
a ser conquistada, mesmo que esta também seja proveniente da experiência
prévia de outra pessoa (ou da experiência da coletividade). A diferença de
perspectiva sem dúvida é determinada pelo apagamento da narrativa en-
quanto tal, que persiste na fábula mas no provérbio é reduzida a um mínimo
gramatical. Como demonstramos acima, a conexão com o gestus, a narrativa,
a representação de eventos e algum tipo de ação, abordada com qualquer
grau de abstração, nunca pode ser de todo eliminada, uma vez que mesmo
o discurso proverbial tem por objeto eventos e destinos humanos. Mas tal-
vez a história possa oferecer aqui uma analogia, e em particular o poderoso
argumento de Arthur Danto, segundo o qual por menos que um texto possa
parecer narrativo (estatística, economia etc.), ele sempre será devolvido à
forma narrativa (d um tip up starn .ntc antiquado), 'I, SI'II\ill'I' portu I~()' ,(,)11111 HII Id.1 I"" 111111 I 11 "IIIV 'I !li " d IS ob lI>, Por"lIl, 1"10 1\11

dor da narrativa em seu âmago.' De forma muito semelham " as Mil ;11/1/$ dl' l't 11 'si IIH lI' 'I 1.11 111 1111111

La Rochefoucauld têm sido frequentemente caracterizadas om rornan S A r xllto 1/111' I 11 11 111 I ('lIlI,IIO 0111 substantiv s artigos ti '(jni 101>: '111
em miniatura, como a estrutura mínima de situações, conflitos e desfe hos rt s ntido, 'Ics illslsl 111 IlO "Jtl dito" e no "já abido" que, lU) vimos, (l

dramáticos a serem ainda engendrados. estranhament t m por vo ação mais profunda minar. Poi O art i io d '11

Certamente a estrutura proverbial do verso ou da enunciação em Brecht nido nomeia uma açã , vento ou experiência em particular: empr sta umu
tem sido observada com frequência (e algumas vezes atribuída, juntamente familiaridade antecipada, avant Ia lettre; podemos até mesmo dizer qu \ o
com a assim chamada "simplicidade" de sua linguagem, à Bíblia, da qual ele processo de nomear, inerente à própria categoria do artigo definid ) ()ns
era um ávido leitor na sua juventude)." "Primeiro a comida, depois os ser- trói seu objeto e cria as primeiras familiaridades, os primeiros reconh ' -i
mões!": literalmente, a frase em alemão diz: "Primeiro vem a comida - ou a mentos organizados à medida que eles se sedimentam na linguagem. Mas,
devo ração; a seguir vem a moralização, ou a moral': Em nossa língua é in- ao mesmo tempo, essa caracterização já torna claro a que grau qualqu 'r
traduzível a forma em si do provérbio e sua concisão; enquanto isso, o "dito" tentativa de apreender a natureza do artigo definido sempre abre alguma
designa a si próprio pelo acréscimo de sua "moral" no final à maneira de perspectiva de tipo primordial de um passado linguístico, do verbalment
uma genuína parábola ou de uma fábula. O proverbial é no mínimo o pres- arcaico, dos primórdios do tempo, a organização do mundo em nomes '
suposto de qualquer narrativa (e de muitas das brechtianas); mas sua resso- categorias familiares. E também parece de início projetar aquelas catego
nância ecoa em muitas outras dimensões, da ética e da política à psicologia e rias, e contra todas as ideologias da linguística contemporânea, na forma d '
à estética. Isto é para insistir no modo como a línguagem foi aqui organizada substantivos. É assim que o artigo estabelece o aristotelismo nos primeiro,
de forma a não ser completamente subsumida por nenhuma (ias categorias hábitos da própria linguagem, e não naquele movimento em processo qUI

discursivas genéricas ou cognitivas, mas sim para poder ser desenvolvida em dolorosamente a filosofia precisou descobrir após o longo reinado do s nso
qualquer uma delas: é a proposição que tentamos defender em nossa noção comum aristotélico. Comemos concretamente, muitas vezes, mas das Fr 55('"

de triangulação, a de que existiu uma postura brechtiana (Haltung) que não [a comida] passa a ser um tipo de essência, uma Ideia atemporal (qu pOI

era apenas doutrina, narrativa ou estilo, e sim os três simultaneamente, o que tabela novamente converte die Moral em uma atividade, ainda que d 11111

poderia ser mais bem designado, com as devidas precauções, por "método': tipo nomeado e familiar - aliás, excessivamente familiar).
A afirmação de que o proverbial pode ser um método talvez não seja uma Entretanto, essa reificação era muito precisamente a técnica propu I1
proposição particularmente ousada ou despropositada: pode-se dar ouvidos pelo efeito-V: não construir alguma experiência arcaica, mas destrui, I

tanto à experiência que se converte em provérbios (ou ao reconhecimento imagens ideológicas da experiência transmitida pelas classes dominauü
da persistência deles através da experiência), quanto permitir que nossas destinadas a minar desde o nascedouro de qualquer senso de história 011 d,
mudança, persuadindo as pessoas de que a vida sempre foi assim e qur ""
pre envolveu essas renúncias, esses sacrifícios proverbiais. O efeito- V, , 111 I,

propôs uma espécie de poética da reificação, na qual foram introduz dll ,


Arthur Danto, Narration and Knowledge. Nova York: Columbia University Press, 1985.
2 À pergunta "Que livro mais o marcou ao longo de sua vida?'; feita por um jornal em 1928,
cursos de reificação novos, um tanto quanto inadequados e impróprio ,I'"
Brecht respondeu: "Vocês vão rir: a Bfblia" Ver B. Brecht, "Schriften 1. 1914-1933'; in Werke, produzir esses estereótipos imemoriais: o insignificante evento ind Id" I
v. 21, p. 248. ou pessoal passa a ser tratado como uma ação histórica famosa, '(" til I I
de tod ; um m d ara tcrísrl o ti ' mportum nto p 's:;o 11 ou 11111111 1i " I I~ lu 11 11111 dI "" \ "11'" di ( II 11'" Mns 01110 11111\ (1111" H<, 10 11 \/H',ld I
renovado antropologiamente nos trajes e ritual 011 ials ti ' u mu I ribo prl nu nc 'slIl 11 1(',011111111 10lHI,' luldu du fórmulu, 'si. Il pnru se tunun li
mitiva. Mesmo que isso consista num método de tipo h m opáu , LI' usa inimi r "O pl'O IoS0 I, p" 'I c, 1() .voluir para alzuma lirn .nsuo '1111111,1
a reificação para desreificar, mudar e dar impulso novo a comportarnent S mente p IlU a. M .smo o mod ist alo de "aceitar eu quinhão" q I' nUIlI.,

habituais e a "valores" estereotipados, ele seria incongruente com qualqu r ituação de em rgcn ia p dcria implesmente significar a concordãn ia oiu
princípio estilístico "bíblico" ou proverbial, que procura criar entidades fa- a participação orgânica de todas as classes sociais - na verdade nã si mif .1
miliares e reificadas por meio do artigo definido: nenhuma promessa ou garantia para o futuro (erst muss es mõglich 11/) 011

promessa de adesão obediente à paz e à ordem social; realmente nin tu m


Que a gente pobre aprenda a simples arte pode saber por antecipação como se desenvolverá o processo em qu :t I I
De abocanhar do bolo a sua parte.' um vai cortar a própria fatia,
Recolocar Brecht entre as tendências da poesia moderna é, então, aprc '11
"A sua parte", com o artigo definido, assegura-nos de que a vida inteira co- der a originalidade estratégica de seu trabalho, pois o moderno em r 'r(ll
nhecemos esta ideia: a própria figura - salvo pelo magnífico verbo subsidiá- captou as linguagens da modernidade à medida que elas emergiam do In
rio que lhe serve de consequência: "cortar uma fatia" - é menos importante dustrial e se multiplicavam e amplificavam por meios não menos industrials,
como metáfora ou "linguagem poética" do que pelo seu efeito sobre a ideia sob a forma de degradações inautênticas de alguma forma anterior mais
de prosperidade social, sobre a ideia da assim chamada "riqueza das nações" pura de discurso. "Donner un sens plus pur aux mots de Ia triou.": O vários'
e aquilo que os economistas do mercado hoje em dia chamam a "cesta bá- estilos modernistas também foram, à sua maneira, efeitos de estranham 'Il!O,
sica", sobre a qual a expressão revela um grau zero de conhecimento: pri- que procuraram descartar a familiaridade do inautêntico e reinventar um I
meiro, que a produção de uma dada população é de alguma maneira uma espécie de frescor da linguagem que ao menos pudesse conotar a inaut 'nl
entidade unificada, um grande filão, e não os produtos esparsos de fazendas cidade, que servisse como um equivalente, um sinal ou um indicad r sim
individuais ou aldeias isoladas; e segundo, ressaltando que quando as outras bólico, em favor de uma verdadeira autenticidade que só pode ser pen a h
pessoas não mencionadas, ou seja, os ricos, cortam seu pedaço, sobra muito na própria vida social. Esse trabalho sobre a linguagem acontece sempr '
menos para os que vêm depois, a figura constrói uma forma de sabedoria onde quer que se realize a dimensão simbólica de toda poesia moderna, por
"proverbial" reconhecível que é portadora da luta de classes dentro de suas mais aparentemente hermética e apolítica que esta seja.
próprias operações internas: reconhecer, como recomenda a ação do artigo Reintroduzir Brecht nessa circunstância significa, então, reconstruir ti
definido, que somos todos dependentes do grande filão único, significa uni- incipiência e a escassez da fase inicial de seu trabalho: a insistência na to
ficar o "nós" em questão; significa tomar aqueles camponeses isolados (de nalidade desbotada das cores do mundo, do céu como fahl [pálido l, típica
quem Marx disse que são como batatas em uma saca) e fazer valer a solida- palavra de uso restrito e tática estilística brechtiana de primeira grandeza d
riedade deles, se não como atores ou sujeitos da história, pelo menos como insistir na percepção ao mesmo tempo que se nega a presença de qualquer
os pobres, as vítimas da história, ou como aquilo que a Teologia da Liber-

4 Na tradução de Augusto de Campos: "Um sentido mais puro às palavras da tribo". V I'

3 B. Brecht, "A ópera dos três vinténs': in Bertolt Brecht: Teatro completo, v. 3, trad. Wolfgang Stéphane Mallarmé, "Le tombeau d'Edgar Poe"/"A tumba de Edgar Poe" in Mallarmé,
Bader e Marcos Roma Santa. São Paulo: Paz e Terra, 1989, p. n. 3~ed., trad. Augusto de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2006, pp. 66-67- [N. T.)
coisa vívida a er p r bida: r .du < O 10 mundo .nquunt« ob] 'to, 111 'SlllO 11.1111 lhO! 11, hll'lIlI 1'.1 ,1.11 1.11,111, IIlodo; só ti sun lin "1' .m POdl' ~l'I()IIH"
nos poemas da fase final - das Elegias de Bu kow, p r 'x .mplo os I ou 'os alll iquudu (p,II\I 11 \11 I' '1IIJI'l VO em U111S mudo forte ou ai ivo):
e parcos detalhes: a árvore delgada ou a nuvem solitária n trabs lho d • sun
primeira fase intitulado "Memórias de Maria J\' - uma pobreza e singular! Naqu Ic dia o m '10 dia não era mais a hora de almoçar
dade de objetos que, como em Beckett, esvazia o palco e deixa os detalhes Naquele dia o meio-dia era a hora de morrer,"
sobreviventes prontos para receber seu respectivo artigo definido: a árvore,
a folha, a corda etc. Nem sempre pensamos em Brecht tendo em vista seu Mas essa quietude da morte, a retirada imperceptível dos guardas, a pru
minimalismo, pois ele se encaminha numa direção diferente e mais "leste dência da presciência, o vazio dos vestíbulos cerimoniais, o aband no (lIllO
asiática" nas peças didáticas (já que estas incluem o jovem camarada, o ne- prelúdio dos grandes golpes dinásticos - o assassinato de Agamenon, a ai 10

gociante, o aviador, e assim por diante). Mas, conforme o que atesta o gosto ximação dos exércitos inimigos, traição, conspiração, vãs advertências' pr 'li

de Adorno por Beckett e Alban Berg - tanto pelo empobrecimento radical ságios - tudo isso é a ação do Cantor: ele é o espaço de uma tradição a r '(1 i 'O
como pela riqueza impura e excesso -, minimalismo e excesso são traços que pensa e enuncia os mais antigos pensamentos acerca das coisas. li 101
dialeticamente correlatos do moderno. Em Brecht, entretanto, é a natureza vez as próprias coisas sejam arcaicas.
que é mínima, e a cidade, com sua selva e sua sombria profusão, é que ofere-
cerá uma riqueza antagônica, ainda que correlata. Quando cai a casade um grande senhor
O que acontece à linguagem poética é precisamente esse movimento do em- Muitos pobres são esmagados.
pobrecido em igual direção ao artigo definido e ao Asiático/tra~icional. Eviden- Os que não compartilharam a fortuna dos poderosos
temente, essa nova linguagem vai representar e figurar um autêntico antigo que Frequentemente compartilham seu fado. A queda da carroça
foi perdido; mas como entender essa substituição? Pois aprendemos, de qualquer Arrasta consigo os bois suados
forma, com os correntes sistemas temporais que, nesse sentido, o passado nunca Para o fundo do abismo."
sobrevive, que ele é uma reinvenção pelo presente (para usar o termo estratégico
com que Hobsbawm designa a persistência das "tradições"). Foi a resistência à O segundo verso dessa estrofe é uma espécie de ditado ou mesmo a constru
modernização por parte de formas mais antigas de vida que gerou durante algum ção artificial de um provérbio? Ele tem pelo menos a simetria e o ritmo dcst
tempo a miragem de alguma forma de persistência do passado, agora quase total- último, mas ainda assim não é suficientemente absoluto. "Às vezes" não pod '
mente dissipada por aquilo que chamamos pós-modernidade. Ora, Brecht nem substituir o artigo definido: viele [muitos] e oft [frequentemente] não são
poderia tocar, quanto mais ressuscitar, fontes do passado na linguagem alemã; muito claros, eles ainda designam simplesmente má sorte, e estão no lugar er
mais: se ele o tivesse feito, e sendo o próprio arcaísmo um dos recursos estereoti- rado; às suas realidades aplica-se, sem dúvida, o exemplo de um Spruch [pro
pados de uma desesperada renovação estilística modernista, seu trabalho, na me- vérbio] de Iolles - "o homem precisa ter sorte" 7 -, mas a linguagem de Bre hl
lhor das hipóteses, teria lugar garantido junto a todos os agora antiquados manei-
rismos. Pois nestes últimos, a palavra ou torneio frasal estranho e não familiar é
5 B. Brecht, Werke, v. 8, p. 29.
puro ornamento verbal acrescentado à estrutura da oração, que permanece como
6 Id., ibid., p. 21.
signo e conotação do passado. Em Brecht de alguma forma é pensamento em si.
7 André Iolles, Formas simples: Legenda, saga, mito, advinha, ditado, caso, memorável, COII/O,

Mas como o pensamento traz alguma coisa do passado? Pensamentos podem, chiste [1930], trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 134.

186
11111 I Ii () I ,1I1l1111 c SI IOI'nII, 1\ () Il'ligo ti '/tnldo np 11" 'C IlIl últlmu VCl'SO: 111 V OlHO 111, '11 111 '1IIIIh I '111,11 IS rrand s ategorías homogêneas. Pois,
,,"1\ I 111'0\ I {I 11 , I,1""1'''''1'
()~ } )111, o I nsmo, U mo rorma
r narrat I va, uma jlrblJ LI a, < OlHO )1) se ohs 'I VOIl, 'SHt' II 'IÍS slntáti os se cristalizaram e refinaram nos si-
1 I mplíc tu aqui, 0111 S 'lIS volt i s paradoxais: o próprio peso que faz os n ís de uma ixp 'I'i n 'Ia qu todos conhecem e reconhecem por antecipação,
hol 1111' m ' I fin o trabalh que eles têm a executar promove a sua des- em uma experiência coletiva tácita que não precisa ser explicada. O artigo defi-
1111 ~ <li 'rnpurrando-os para além do limite. Mas o que dá a essa linguagem, nido, portanto, pressupõe uma espécie de história camponesa, ou seja, a história
I í , I S \nl n a, sua autoridade? Os gerundivos adjetivantes com sua meia estagnada, paradoxalmente imutável e imemorial, que ainda não é a história
11111 I (.~/lIrz onde [queda], schwitzende [suado]) promovem um paralelo entre em nosso sentido moderno, e que Marx associou ao célebre "modo asiático
11 (' 10 'ob) to; a catástrofe vem primeiro - a carroça - e então seguem-se de produção" no Grundrisse. Na verdade, a descrição de Marx (e o próprio
\I I I '1'r!V ís onsequências, muito mais trágicas do que a perda da própria conceito que ele inventou para esse modo de produção em particular) foi es-
IIlIl~ I; mns a sequência temporal ainda permanece absorvida na sintaxe da tigmatizada por muitos desses aspectos: sua identificação com a noção de "des-
I IIII'"~ I; só 110climático mit [com] que a coisa acontece realmente, que o potismo oriental'; a maneira pela qual muitos coletivos camponeses são agru-
li III!,O do li ontecimento se separa do verso, como se acontecesse acima e pados numa única figura imperial ou sacra: a falta de desenvolvimento ("eles
,111'111111'1 ',S ' 11,O "na realidade", pelo menos então numa dimensão produzida vegetam independentemente lado a lado", diz Marx desdenhosamente); e, re-
111.1I jlll'ljll'ill Trennung. Porém, mesmo essa riqueza de eventos própria do ato lacionada a isso, a resistência deles à mudança ("a forma asiática sobrevive ne-
di' 11111'1'Ir histórias, que habilmente posiciona as partes do discurso em fun- cessariamente por mais tempo e com mais teimosia")." Tudo isso foi utilizado
\ III dl.' suu demonstração narrativa, ainda não é o que procuramos. Ela grava para demonstrar que Marx era eurocêntrico e denegriu as pessoas do "Oriente"
um randes golpes certeiros; até mesmo o próprio adjetivo - vt;rgonha e (suas sociedades não têm dinamismo próprio e por isso são incapazes de evo-
I'S ndalo para qualquer estilística modernista - é verbalizado e deixa de ser luir na direção do capitalismo como no Ocidente; têm afinidade com os tira-
mero recurso decorativo. Encontramo-nos novamente diante dos mistérios nos) e que suas sociedade agrárias (apesar das grandes civilizações clássicas da
do artigo definido - "os" bois, caso em que o artigo nem mesmo é catafórico China e da Índia) foram sujeitas à simples repetição. Em suma, a história delas
no s ntido recentemente descoberto da moderna gramática do texto, em que é não ter história: e as mudanças registradas em seus longos períodos de stasis
o lnornínado "ele" da primeira frase de um romance coloca-nos num desco- são meramente "dinásticas': afetam apenas as pessoas do topo da pirâmide, que
nh ido "meio das coisas': mas também produz um "hors champ", um mundo vêm e vão porque são banidas em golpes palacianos ou por incursões nômades,
pr xistente anterior àquele começo arbitrário, que esperamos afinal nos seja e que simplesmente se sucedem ao longo de diferentes dinastias com a mesma
mostrado e identificado. Esses bois em particular não têm história prévia, não dinâmica. Elas, portanto, não têm sequer a possibilidade da verdadeira revo-
h fazenda a descrever, não há propriedade de família ou vias de acesso ao lução, ou seja, de revolucionar um modo de produção e superá-lo por outro,
m rcado, precisamente porque eles não são em absoluto bois "em especial" e, porque seu sistema agrícola não é suscetível de um desenvolvimento do tipo
para começar, talvez nem mesmo sejam bois (visto que eles também são os que levou o feudalismo na Europa e no Japão a desenvolver-se em direção ao
"vtele Kleine", os seguidores insignificantes, os pequenos comerciantes e for- capitalismo. E finalmente, função destes dois últimos traços, elas não conhecem
n edores, na verdade os próprios camponeses).
Acho que é preciso enxergar por trás dessas personagens ostensivas, desses 8 K. Marx, Grundrisse, in K. Marx & F. Engels, Collected Works, v. 29. Nova York: Interna-
ixtras e comparsas da cena - que são seus protagonistas em virtude do pró- tional, 1987, pp. 401, 410 [ed. bras.: Grundrisse, trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São
prio fato de que são comparsas -, em vista da modalidade de pensamento que Paulo: Boitempo, 2011].

188
a verdadeira d m ra ia, n '111 111'S1110 II '11) I" 'nl " pr 'SlIll ivl'llll'nl' porqu maO{SIlI(), ('lI '!tI dI III I I 111 (Ipll H)'1t) ti 'S IW Ivc cs e "erro" teórico e o faz
não conhecem um individualismo g nuín . A l oria in rpora o d 'S t m li ad ntar o l 'li 'Iltl dtl ptll 11\\) propriarn nte dito. O entusiasmo pela revolu-
rocêntrico se partirmos do pressuposto de que para Marx individualismo' ção hinesa 'IHl'1 g '111 ,p I' um lado, um erro categorial da mesma ordem
o desenvolvimento rumo ao capitalismo são bons e desejávei . Ma ela mais daquele testemunhado pelo entusiasmo inicial de Lukács com a Revolução
complexa que isso, visto que sua dialética (sobretudo no Manifesto) pre upu Soviética, em que Lênin é visto como o último produto daquela Rússia ou
nha que eles eram tão ruins quanto desejáveis: perniciosos e ainda assim ne s da cultura mística eslava que florescia em Dostoiévski. Aqui, então, a Re-
sários para o desenvolvimento em direção ao socialismo. volução Maoísta é sentida (talvez com um pouco mais de justiça) como o
De qualquer forma, parece que essa visão da vida camponesa - cíclica, desenvolvimento final da cultura e da filosofia clássica chinesa que Brecht
repleta de catástrofes de todo tipo que nem por isso conduzem a verdadeiras tanto admirava. É enfim a verdade de uma cultura agrária, mais do que da
mudanças históricas - é também a de Brecht; mas ao mesmo tempo é uma capitalista: e entretanto esse erro naturalmente não é apenas de Brecht, mas
das muitas visões da História que coexistem em seu trabalho (sem dúvida, da realidade e também da história. Para Mao Tsé- Tung era uma revolução
nele mesmo e, quem sabe, em muitos de nós). Talvez fosse melhor dizer o camponesa, de um tipo imprevisto não só na teoria leninista da revolução
oposto e sugerir que é essa visão do campesinato que nos faculta certa visão como igualmente na análise marxiana dos modos de produção. Portanto,
crucial da História e um acesso à mesma (mas não a única). Pois nos traba- descrever o duplo padrão da visão brechtiana da história como poética não é
lhos camponeses e sobretudo em O Círculo de giz ao qual já nos referimos, o acusá-Ia de ser meramente poética; também exige o reconhecimento e a per-
tempo camponês é por excelência o tempo da opressão: na grande luta de cepção da ressonância histórica do "erro de representação". Isso não é feito '
classes da história humana como um todo, definida agora não pelos modos por aqueles que consideram Brecht stalinista por ter escolhido com paixão
específicos da produção, antes como a relação imernorial entre exploradores e e engajamento associar-se à construção do socialismo no Leste soviético: ele
explorados - mas antes como uma relação de puro poder e dominação, como não foi o único (tome-se o caso análogo de Althusser) a sentir que a nova
na tradição anarquista, e sim como uma relação econômica bastante genera- Revolução Maoísta das décadas de 1940 e 1950 oferecia uma volta à auten-
lizada entre aqueles que produzem e aqueles que desfrutam o resultado da ticidade revolucionária pós-stalinista e prometia uma redenção do espírito
produção -, nesta visão da história humana como Brecht a vê e é capaz de re- socialista no interior do sistema industrial socialista que era a "utilidade" de
presentar (ou como se julga capaz de representá-Ia), a vida agrária é o grande Stálin tê-lo construído.
veículo por meio do qual se pode representar a experiência dos explorados e A temporalidade da classe trabalhadora é, então, completamente dife-
dos oprimidos, enquanto a vida do capitalista é a forma por meio da qual se rente da do campesinato, como veremos: greves, desemprego, os percursos
pode melhor representar os exploradores (trataremos deles logo mais). frenéticos de bicicleta dos desempregados ao som da música de Eisler em
Esta é, portanto, uma visão da história baseada em um desencontro ou Kuhle Wampe, por oposição às inumeráveis revoltas palacianas que nada
em uma mistura de categorias socioeconômicas: é teoricamente incorreta e mudam e a gerações de camponeses passando pelos ritmos das estações;
enganosa, ao mesmo tempo que é poeticamente verdadeira." E com certeza o a avareza dos camponeses igualmente e a resistência à inovação, enquanto
opostas à inteligência dos construtores de máquinas. Entretanto, o grande
momento redentor se abre com uma visão da História a partir de uma pers-
9 Com muita pertinência Frigga Haug sugere que esse "erro categoria!" apresenta a mais
clássica incorporação do conceito ungleichzeitige Gleichtigkeit (não sincronicidade sincrô-
pectiva camponesa, que é muito diferente do ponto de vista das grandes de-
nica) de Ernst Bloch em Herança deste tempo [1963]. pressões e das guerras destrutivas em escala industrial e altamente mecani-

190 191
zadas da era capitalista: eis urna forma ti ' ai r' nd 'r li mudunç I. v u I \ 11\ vl: o dos 1'0111 uu- ttl 111111 t 111111"111 I\[O ujud ivum. 1':lI pl'l'l'llI 111

da mudança como uma forma d imensa sabedoria, não div .rsa da l '01'1:1.'\ III ltulur :\11" 1 1 11 \ ",111 gt'II"I'!t.:n que l\rnsl Blo ih I''/, do 1\/11" di'
ção que Bakhtin faz de Rabelais como um breve momento d liberdade entr Wagn 'r sun pl111HI 1.\ d\ 1I'1lt'llsur .ssas óperas, ujas asso ia~-I 'S coru 11

o período medieval escolástico e a ditadura do barroco contrarr volu ioná- P ríod nazistu li. 101'11 I 1:10 urnbival ntes e probl máti as quanto os 011

rio: uma alegoria da grande revolução cultural soviética da década de 1920, tos de fadas, reenfatízan 10 o elementos populares e utópicos, foi lórlu>.,
como vimos, perigosamente comprimida entre o czarismo e Stálin, (A ale- em detrimento dos racistas-nacionalistas." O conto de fada, ou, m ,111111

goria de que o próprio Brecht se valeu em um dos níveis do Galileu, como ainda, o intraduzível termo alemão Miirchen, "pequena história", aqui
foi dito.) É assim que agora a revolta dinástica, que Marx via como o único uma referência geral melhor, pois apesar de tudo o que ele in lui ti' SI'

evento dessa não história da história camponesa e asiática, e que então, bem melhante à fábula e de realização de desejos coletivos, que não ex lu '11\ li

ao espírito de Marx, encontra seu fim na restauração da dinastia reinante, e maligno, a má sorte, a opressão nem a morte, tudo isso é como que l-Ido
a volta da viúva do governador tentando resgatar a herança dessa revolta - a por uma varinha mágica que inclui a esperança entre todas essas oisns:
própria criança - da camponesa Grusha que a salvou -, essa revolta nada
mais é que o momento de Esperança na imemorialidade da vida camponesa: Agora, respeitável público, encontrar um final é tarefa para vocês:
"Ó vicissitudes do tempo, vós sois a esperança derradeira do pOVO!':lO Tem que haver um final feliz em algum lugar fora daqui, tem que haver, tem qu '
Esse é o momento da liberdade, o momento redentor em uma das haver, tem que haver! 12
temporalidades de Brecht, o momento de mudança provisória em que
Azdak pode aparecer, não importa se por pouco tempo, antes de desapa- O conto de fadas tampouco é irreal ou irrealista, contanto que nã s fiqlll'
recer novamente entre as brumas do tempo e da imemorialidade do tra- preso a oposições do tipo "real" e "falso': ou "realista' e "antírrealista" Pois I

balho agrário e da opressão. É o Kaírós da história camponesa de Brecht, mentalidade que redime o conto de fadas está de acordo com a mentalttc di'
uma temporalidade do pré-capitalismo mais comumente associada aos um mundo camponês: esse é o preço que devemos pagar por esse r dslro
traços "populistas" em Brecht e que determina as cronologias das grandes utópico especial (outros são também possíveis), e é por isso que precisa 1110

peças - a Guerra dos Trinta Anos em Mãe Coragem, uma Idade Média valorizá-lo e optar por ele. Nesse sentido, a inclusão que Brecht faz d uJ11l1

agrária sacudindo sua intemporalletargia ante a nova ciência de Galileu, dimensão da história camponesa não se constitui em bloqueio ideoló i li

o despotismo oriental do Círculo de giz (para não falar do cenário urbano ou limite de sua parte; pelo contrário, essa dimensão se mostrou necessário
mercantil pré-capitalista chinês de Alma boa), esta última sobrecarregada a fim de recuperar e representar a nota de Esperança que ela apena po
pela disputa entre as duas formas de campesinato industrial soviético na deria afiançar. De qualquer forma, o mundo camponês e a cultura chin su
estrutura da mesma peça ou fábula, Esses cenários sem dúvida são "irreais" também eram reais, e parte da história humana de algum modo ainda sló
no sentido de serem a-históricos: mas Brecht sempre nos preveniu, irri- ao nosso alcance.
tado diante de nossa inveterada incompreensão, de que, em decorrência
disso, estávamos na maioria das vezes pensando ainda no naturalismo
11 Ver seu magnífico ensaio "Paradoxa und Pastorale bei Wagner", in Verfremdungen 1. Frank
e nos seus ideais fotográficos de reprodução; e as referências aos cená- furt: Suhrkamp, 1962. O mesmo volume contém uma fina análise da canção de "[enny d08
Piratas", de Á ópera dos três vinténs.
10 B. Brecht, Werke, v. 8, p. 21. 12 B. Brecht, Werke, v. 6, p. 279.

192
IWI'II\ Il'llI 111 11111111111111111 011.1'11) outras palavras, prc isarnente aquela
I 'xlurn so I ti q\II' (I p,úpl'lo 1011 'S rx luiu desde o início. Mas ainda mais
Voll Illdo io prov rblo pelo últlma v z, d v mos notar qu a int .rpr 'Ia t () interessant " d ' nossn p .rspc tiva, é a forma em que o "provérbio" oferece
di' lolll's ' multo diferem : observando sua pr S nça em t das as class s um tipo de abstra ão contida - na verdade, uma resistência a precipitar-se
" p I~()S da vida, por meio dos resquícios de conteúdo provenientes de di- no próprio conceito:
VI'I, 01\ orr los e o upações, que vão da do ferreiro ("malhar em ferro frio")
I do fll~ .nd iro ("fechar a porta do estábulo depois que o cavalo escapou"), Podemos dizer que a palavra opõe-se aqui às generalizações do conceito e, exa-
plc' pl'Opl ' uma leitura mais metafísica da forma, ou seja, uma leitura que gerando um pouco, diríamos que ela só pode ser assim empregada nesse lugar e
1'"'. MIl! ( 'algum tipo mais atemporal e universal de experiência humana. nesse contexto."
NII VI'I dudc, .ssa experiência em nada se assemelha a algum fluxo de tipo
11c·1"II~llno ou bergsoniano: A mesma coisa é válida para os outros usos mais generalizados do conceito
abstrato como tal:
'il' • '111. -b .rmos o universo como uma multiplicidade de sensações e vivências,
" II , 'I m l vez apreendidas, ordenadas e reunidas, resultam em experiências que nesse universo [do provérbio], podemos rechaçar todas as consequências e con-
1IIIIIIIltltll' sendo uma multiplicidade de pormenores. Determinada experiên- clusões exaustivas que a experiência nos impõe, sempre que nos instiga a pensar
• lil II ornpr endida, de cada vez, independentemente das demais, e as conclusões por conceitos e pretende tornar-se conhecimento. 16

ti IIi várias experiências só podem ser imperativas e suscetíveis de avaliação nesse


universo e dessa maneira, se nos mantivermos nelas e partirmos delas." Esse é de fato o motivo pelo qual [olles conclui sua discussão do provérbio
com a figura peculiar de uma entidade material; um outro objeto menor,
À dinâmica do Spruch, ou provérbio, continua, portanto, a ser formal. Ela ainda que independente, é inserido no principal como uma espécie de or-
{Ir .unscreve um segmento do fluxo, estabelece um tipo momentâneo de namento, o que os antigos chamavam de emblema. O emblema, portanto,
onfinarnento naquilo que não pode nunca ser apaziguado ou aprisionado: explica-nos [olles,

Em nossa morfologia, a Locução [provérbio 1 é, pois, a forma literária que encerra não encarna o sentido de um todo como totalidade, mas destaca o fato de o sen-
lima experiência sem que deixe de ser, por isso, o elemento de pormenor no uni- tido de um todo não se entender senão como combinação de unidades dístintas"
verso do distinto. Ela é o vínculo aglutinador desse universo, sem que a coesão
assim obtida o arranque ao ernpírico." É precisamente nessa direção que agora propomos seguir, pois precisamos
reconciliar a miragem de uma linguagem camponesa simples e homogê-
1 e nossa perspectiva atual, essa visão nos devolve às condições da possibi- nea com as heterogeneidades e misturas impuras dos poemas citadinos de
lidade do "dizer" no próprio fluxo da experiência, ou seja, dos materiais que

15 Id., ibid., p. 139·


13 A. Iolles, op. cit., p. 132. 16 Id., ibid., p. 142.
14 Id., ibid., p. 133. 17 Id., ibid., p. 144·

194 195
Brecht, bem como com as várias utras SL LI as qu lrrudlurn LI• SlIlI obru ' 1',I\'S.III'l\lldoq\l IIVIIIIIIIIII "1\ 1"01'"01'\011111111' d. \1111111'11"

cuja simples justaposição a tais provérbios camponeses faz dei s P as "I 'o unhu : 11-\'1 11\Idll, It "1',1"" I 1IIIIIlII (' "pu '0" , omprovudo IH'IO pl'Ópl 011111

tórias de uma montagem, no lugar das serenas visões de um mundo pastoral. vim nto dON ver o, l'III IIIIIVllll '1110 mas parados '111seus I :11'\1 'IiSIllIIS:
I

Mas o próprio Iolles esclarecedoramente demonstra-nos como o provérbi en ena-sc uma 'slrnllh I dlnl "11 'a na qual esses op stos tamb 111 ~l' IIIIIIIl 1111.
falha até mesmo como sentença abstrata; ele de alguma forma é um obj to e a quietude prova ser mesmo que aquela mudança perpétua ou () IlIOV
de linguagem além da sintaxe normal." mento celebrado com tanta frequência em Brecht e teorizado amo () pOlllo
Em suma, uma ênfase sobre o confinamento dessa forma assemelhada a fundamental de sua dialética.
um objeto traz-nos imediatamente àquela "poética da citação" que é evidente, Isso também explica aqueles momentos de elevação em Br ht, '111 1"1'
não só na dramaturgia brechtiana e na construção do gestus, como também personagens - como [oe e Jenny - são separados de seu contexto ' 1II
no interior da própria linguagem. Mas o resultado desses flutuantes versos mesmo de suas personalidades específicas e elevados em uma longa 111 rtVl'I
citados - presume-se que eles "já sejam conhecidos", "já ouvidos", como ob- suspensão momentânea: "De fora de uma vida para dentro de outra", A 1110

jetos culturais flutuando na mente coletiva - não é sempre satírico como se mentânea abstração e transformação talvez sejam até mais impactant 'S n I,
poderia esperar. O lirismo brechtiano também se fundamenta em tal dis- cenas de amor da Ópera dos três vinténs nas quais Mac e Polly têm ont 'xlO,
sociação, como se a "sinceridade" estivesse deslocada no amor tanto quanto satíricos que precisam ser neutralizados, e até mesmo sua linguagem ("Y()L'
está na atuação, e como se citar os versos retirasse alguém do tempo com consegue sentir meu coração batendo") já foi apropriada pelos P a .hum '
mais eficácia do que todas as ideologias da paixão circunscritas pelo tempo. marcada como mero estereótipo da cultura de massa. A pressuposição lrli('
Daí decorre, juntamente com os provérbios "camponeses':um tipo diferente o amor é um estado e, enquanto tal, é independente da qualidade e da Illllll
de isolamento e atemporalidade verbal, que pode ser observadá na grande lírica, reza das pessoas que momentaneamente passam por ele: que há uma dlsl 'I
tal como o dueto dos grous em Mahagonny ("Vejaos grous no céu, em grande cia, em outras palavras, entre o elemento em si e seu conteúdo morn nl, 1ll'1I.
arcada!")", no qual nuvens (como em "Marie 1\') estão ao mesmo tempo em Mas ainda cabe à linguagem (e à sua música) desempenhar o ato d S 'plll I
movimento e em repouso em relação uma à outra. Aqui o Tao da mudança ção radical que elevará Mac e Polly a seu novo e transitório elemento. Isso '1
perpétua - "Embora ao nada sejam transportados" - se perpetua, ainda que feito por uma das formulações mais paradoxais em Brecht, em que o tipo dl'
inesperadamente ultrapassado. O vento os move, mas o duplo movimento (dos neutralização recíproca (destreza e imobilidade ao mesmo tempo) ocorre nu
graus entre si, e dos graus e nuvens: e da mesma forma na performance as duas própria enunciação, em seu aspecto positivo e negativo. Também se p d ti 1
vozes dos amantes, ora alternando-se, ora cantando em uníssono) também em- zer que aqui o alto estilo e a comédia neutralizam-se mutuamente, na medida
presta-lhes a sua intemporalidade, além de todas as mudanças: em que o eco etéreo tanto pode parecer tolice quanto a própria aniquila t ()
do amor, sobre o qual também parece afirmar-se que ele pode acabar no ml
E nunca se separem, enlaçados nuto seguinte sem que ninguém se importe:
No voo: um do outro companheiro.
o amor dura ou chega ao fim,

18 Id., ibid., pp. 139-41.


Neste ou noutro lugar,"
19 B. Brecht, "Ascensão e queda da cidade de Mahagonny', in Bertolt Brecht: Teatro completo,
v. 3, trad. Luis Antonio Martinez Corrêa e Wolfang Bader. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 139. 20 B. Brecht, ''A ópera dos três vinténs", in Bertolt Brecht: Teatro completo, v. 3, op. cit., p. li},·
I 01111 0, ,I" l' 1111
1\1"11111' 1111I , '1\\
1I O: 111111 "H'IIII 1111{
11011 1'111IIIH\1I11" M.I .11\°1111"\'\ 11111\11.ll'ld \111IIl' 'num .rar as distância internas ao
M 111 'SSI'S (.'/(:lIos li
1I1111111, O I' '1'llIlll pO/ls(vds S '111n III ,111dlsl 11 1111111'rI1(1 próprio l 'xlo: ,Ias SI I) .clpudas de forma bastante clara pela própria mú-
,1111
1\ sobr , a qual Já falnmns. A 111nos qu i o "nI110l''')'1 ru o
,Il' fundam '111:11 si a, a I'CSp.ito da qual bom lembrar que Brecht já havia insistido em que
.. Ilvcssc I' ai li ma ~ rma a alzun a distem ia ti s as p rs na ns, nã havc- ela devia colidir com as palavras, de modo que "música, palavras e cenário
11I !lI .canl m apropriad s para mpreend r ssa paração mai c rnpleta, precisam tornar-se independentes uns dos outros':" Essa Trennung, então, se
1111'S
S'IO pr isamcnte tais mecanismos que estão em questão nos momentos inscreve no próprio ator e em seu relacionamento com o conjunto:
upr '111 s místicos deste tipo, assim como no movimento verso a verso das
p '~lIS no tempo.
Quando um ator canta, há uma mudança em sua função. Nada é mais revoltante
LI 1'0 mostrar as transformações incessantes do amor em um exemplo que o ator fingindo não notar que deixou o nível do discurso simples e começou
\ .11.1I 'rÍ tico, o final do primeiro ato da Ópera dos três vinténs, em que Polly a cantar. Os três níveis - discurso simples, discurso elevado e canto - precisam
Ido of arnente enfrenta seus pais a propósito da questão do casamento - pe- sempre permanecer distintos, e o discurso eloquente não deve de forma alguma
dil 1f'li idade é pedir muito? Por que não posso simplesmente me casar com representar uma intensificação do discurso simples ou o canto, uma intensifica-
Mu, li mth, o homem que eu amo? O que se deve examinar aqui não é apenas o ção do discurso eloquente."
l'I no Vem si, uma vez que ele já decorre da elevação de uma necessidade do
xlo a uma questão metafísica. Para os Peachum, essa fuga inesperada síg-
1'111' Já sabemos como se produzem essas diferenciações através da citação, de
ulf a uma perda de renda (Polly como capital); para a peça, essa hostilidade forma tal que o discurso despojado seja citado a partir da personagem que
I 'vará, mais adiante, às intrigas contra Macheath que provocam sua derro- o ator está demonstrando, que o discurso eloquente seja citado dentro da-
cada; entretanto, para outro nível de atividade interpretativa, também significa quele discurso despojado, e que o canto seja citado como outro tipo, ainda,
uma reflexão "Sobre a incerteza das relações humanas" (legenda que é baixada de gesto ou expressão a ser antecipado e separado de qualquer contexto no
'111cena para anunciar esse número final). Mesmo esse foco interpretativo, no qual possa de alguma forma ser sentido como "natural". É nesse sentido que
manto, é enganador, pela simples razão de que Verhiiltnisse terá um signífi- o intercâmbio romântico de Polly e de Macheath, de alguma forma, é res-
.ado diferente no interior da própria canção. O título significa uma espécie gatado do opróbrio da prosa a partir da qual pode ser identificado como
ti mutabilídade nas relações humanas, o amor ou qualquer outra; a canção o kitsch estereotipado que representa no mundo real, pois, uma vez citada,
toma Verhiiltnisse - "Mas as coisas não funcionam assim' (literalmente: rela- ela assume sua semiautonomia que pode ser concretizada em uma música
/ circunstâncias / situações não são assim) - no sentido da própria vida, o kitsch em si, como na lua artificial tão admirada por sua própria artificiali-
m do como a vida é, o relacionamento dos seres humanos com o mundo e dade em "Lua de Alabama"?
() destino: o título, portanto, usa a palavra de uma forma impessoal, a canção
numa acepção metafísica. Mais do que isso, entretanto, não é a mutabilidade 21 B. Brecht, Werke, v. 24, p. 70; [ohn Willett, Breeht on Theater. Nova York: Hill & Wang, 1957,
qu a canção subestima, mas antes "o direito à felicidade na terra" e as razões P·38
p 'Ias quais não se deve esperar pela felicidade. E não porque seja algo "incerto", 22 Id., ibid., p. 65; id., ibid., p. 44.
23 Não se prestou a devida atenção aos prazeres e ao fascínio do "artificial", do falso, do poso
111.s sim por ser absolutamente certo e inevitável. Há, portanto, ainda uma
tíço, que chama a atenção para si em sua vulgaridade precisamente enquanto irreal (e o
ti lstâncía inicial entre o título da canção e seu conteúdo, para não falar da dis-
que, embora não analisado, leva o nome de "mera aparência" na "tradição filosófica"). Mas
t. n ia entre esse nível "filosófico" do novo texto e seu contexto. veja-se a análise que Sartre faz da paixão de Genet pelo kitseh ou le toe (o que mais tarde

199
A de rição f ita at aqui rrislI as ti 'S 'onlinuidad 'S til' • li II \, lI) por /tI
1111'111,1 () l "'111'1 1 ,I li 11 () 11I 1"Ir 11 -rru 'slm!" ti' P iachum. ' prc isarncntc
mesma produz, mas só explica seu conteúdo d modo purarn 'nl • I()I'I)) 11,
essa Wel/lIlIsd/(/ll/lIlg 1 '1lglosn ou m 'lansi a que primeiro amplia a estrutura
Portanto, precisamos de uma descrição suplementar para cxpli ar ti nntu
ou O ontcxt para ai rn da simples pergunta que Polly faz no plano do en-
reza desses efeitos, algo que tentaremos expressar por meio da ideia d uma
r 'do (por que não po so me casar com Macheath?), fazendo dela um tema
transcendência perpétua de registros, à medida que o texto passa de um tom
d discussão filosófica: "O direito do homem de ser feliz nesta terra". Mas já
a outro: esse processo de transcendência envolve uma mudança da estrutura
essa proposição, que contradiz as noções convencionais sobre o pecado ori-
~onceit~al nos versos, nas frases individuais e mesmo nas próprias palavras.
ginal, é transmitida com uma sombria reserva introspectiva que concentra
E um processo para o qual tendo a ressuscitar aquele gasto e mal empre-
esse "direito" em um verdadeiro tabernáculo interior, um princípio derradeiro
gado termo, o "sublime'; mas de forma bastante diversa daquela em que ele
que dificilmente poderia ser enunciado sem as mais elaboradas precauções
normalmente tem sido apropríado,« ou seja, como uma imensa liberação
religiosas: "Este é o direito do homem na terra, puro e simples".A reverência
do contexto, na medida em que passamos de um registro ao outro _ para
aqui é expressa gestualmente pela retirada da música para o interior de seus r-
estabelecer uma distinção fundamental com a ideia tradicional da libera-
mais intrínsecos mistérios: a voz é concentrada, sussurrada, talvez tanto pela
ção no sublime, que consiste no cancelamento de seus limites internos, seja
blasfêmia dos sentimentos como pelo mistério do próprio "direito" religioso.
por seu tamanho descomunal, seja por seu imenso poder. E embora Kant
Assim, numa das mudanças em questão, todo o registro muda, a música
reservasse esse termo para outra coisa, a ideia de uma "matemática sublime"
eclode novamente. Agora ela é enérgica e feroz, já que atesta o fracasso na
tampouco é irrelevante aqui, visto que pode sugerir a variabilidade do sen-
cobrança dessa dívida: "Infelizmente / lamentavelmente" ("leider"), nunca
tido e o conteúdo de uma equação que precisamente depende do conteúdo
ninguém observou que ninguém recebe o que devia ("que as pessoas re-
mutável dado às suas variáveis.
cebem aquilo aquilo a que têm direito"): "Quem não teria querido obter o
A música aqui (no trio que conclui o primeiro ato) nos permite lidar com
que lhe é de direito?", mas "as coisas não são assim" (die Verhiiltnisse). Há
essas sutilezas de uma forma relativamente tangível e acessível:sua solenidade
muito que observar sobre essa linguagem de direitos e desejos: esta última
("Quem não gostaria de ... ?") admite uma modulação para a intervenção
foi identificado por Susan Sontag como camp: ("Strange hell of beauty" in Saint Genet: mais maternal da sra. Peachum ("Como eu teria gostado de lhe dar o que
Comedian and Martyr. Nova York: Braziller, 1963, pp. 355-401 [ed. bras.: Saint Genet: Ator
você quer"), ainda antes de outra reviravolta até mais fundamental na me-
e mártir [1963], trad. Lucy Magalhães. Petrópolis: Vozes, 2002]. Nesse texto, a paixão pelo
artificial é entendida como sendo motivada por um ressentimento contra aquela "realidade"
diação do próprio Peachum: "Quem não gostaria de ser um bom homem?" -
a que a vulgaridade do artificial e da imitação já se dirige com o intuito de desacreditá-Ia: uma recorrência em que os mesmos timbres solenes de órgão da abertura
o falso corno urna arma agressiva contra o real. Ver também, para urna celebração corre- são repetidos, preparando ainda outra áspera eclosão na qual a réplica final
lata do falso em um clima mais positivo, G. Deleuze, "As potências do falso': in Cinema 2:
a essa esperança solitária é produzida: as coisas não são daquela forma por-
A imagem-tempo, trad. Eloisa de Araújo Ribeiro, rev. filosófica Renato Ianine Ribeiro. São
Paulo: Brasiliense, 2009, pp. 155-88.
que finalmente "o mundo é um lugar miserável, e as pessoas são impuras!"
24 Em Longino (e na tradição posterior), o sublime é sempre identificado com o movimento
É uma generalização que o espetáculo do próprio negócio de Peachum tende
de "elevação e amplificação" (Do sublime, trad. Filomena Hirata. São Paulo: Marfins Fon- a corroborar, juntamente com todas as circunstâncias da existência de Ma-
tes, 1996, seções xr e XII, pp. 62-64), ao passo que minha proposta sugere a possibilidade cheath, com a possível exceção do próprio homem da auto estrada, que exibe
simultânea de urna diminuição satírica ou um rebaixamento tão violento e prodigioso que, uma energia contagiante em meio a essa aridez verdadeiramente típica do
por sua vez, pode evocar a própria sublimidade.
século XVIII, uma energia que examinaremos em breve.
200
201
Mas ante dis uma palavrinha, um adv rl io upur '111'111'111' S '111 on II1 ',ti I )1111111111111
1"111" I \11I IpH,d , IIlO ()(. d "11111:11 11\11111110
IlIlhl li
sequências, deve nos deter: a palavra lelder [inf lizrncnt 'I qu op I'l1Il mu 'lira 'lIlll, 1'1111/111dl'll' ,Idlldos e , IlS st 'r
11'1111 'S 'si O S 'lido tOlllP 1I Idn I
dança da estrofe para a antístrofe, do silêncio da reverência à lesão d horn 'ns ti ' n "I ios, por um Indo, .nquant p r utro as on XOl'SSl'lll'll
uma lamentável e maligna celebração. Ela retoma no refrão, no qual P !ly c entr pr testantismo dinh ir são articulada. Ma tarnb 111vimos 1111"1
Peachum aceitam o diagnóstico: "Ele está certo, e infelizmente é muito ver- gama de outras expressões "genéricas" - um momento grotes o d amor 1111
dadeiro" - uma formulação na qual a palavra recht (verdadeiro, direito) volta ternal na canção da sra. Peachum, tons mais ferozes e sádico (r rninlsc cn
em estranho eco das primeiras reivindicações e direitos, como se o verso tes da canção imperialista dos canhões) na celebração que faz P a hUIII 111
estivesse demonstrando o quanto nosso "direito" à felicidade tem sido ridi- desumanidade do homem para com o homem, hinos de arrependi 111ruo, o
culamente reduzido à parca consolação de sermos "certos" afinal de contas drama da família burguesa, o conflito de "gerações", uma visão da ndlç \0
(em baixo registro, além disso).
humana do "epícíclo de Mercúrio" de Montaigne ("nesta estrela"): em SUIllI,
Toda a formulação será agora triunfantemente citada por Peachum em uma variedade de níveis tonais distintos, qualquer um deles capaz d I'i
sua réplica: Naturalmente eu estou "infelizmente correto'; na qual o advérbio, talizar-se naquilo a que chamamos gênero (particularmente se pensarmo,
em sua sutileza, opera toda a mudança para outro registro, separando a lin- em termos das "espécies" de poesia lírica ou canção). Além do mais, ,~,It()
guagem de Peachum da própria personagem (o leider pertence às mulheres, propriamente caracterizável como "sublime" deriva não desse movim ruo
não a ele) e retificando-o em algum nível "mais alto" em que o final mergu- genérico, mas do específico a partir do qual a estrutura e o foco da repr 'S~'11
lha em sua previsível conclusão ("Tudo isto é lixo").
tação subitamente aumentam para incluir o próprio mundo e o Ser. 1 o 111\(1
O resultado se relaciona a um fenômeno que em outro lugar 25 chamei transforma Brecht em um poeta "filosófico" (embora ele admirasse Lu d'llo
de "descontinuidades de gênero": em outras palavras, o deslizamento das e buscasse fazer algo similar em sua tentativa abortada de versificação p 111
estruturas, o modo como cada contexto temático é transcendido, também do Manifesto comunistaí," mas sublinha a disponibilidade da nota 111'til
constitui uma transgressão do limite de gênero. É o que nos facultam os física em meio à variação de suas vozes e modalidades tonais, assim 'Ullltl
momentos de elevação peculiares a essa ópera de mendigos e presentes já na novamente reconfirma o velho segredo e a maldita afinidade entre a ars I '
versão original de Gay, que compartilha as possibilidades metafísicas desen- o trágico (sobre a qual ouviu-se o próprio Sócrates começar uma dis lISSl0
volvidas nas sátiras de seus amigos e contemporâneos Pope e Swift, ou seja, a nas primeiras horas da manhã no encerramento do Banquete de Platão).
inesperada passagem da sátira tópica a uma evocação do Absoluto (mesmo Mas é exatamente a energia de Macheath que precisamos agora int rrn
quando, como em todos esses casos, se trata do negativo Absoluto de uma gar, tal como ela está registrada na antístrofe do final, na precipitada 011
visão de animalidade e degradação). Em Brecht (e Weill), o modo religioso firmação mundana que vigorosamente responde às sombrias previsõe II
da música se desenvolve imediatamente a partir da bem conhecida ênfase estrofe, repletas de religião e pecado. O que devemos perguntar é por qu ' n
música - as palavras e o canto, a gestualidade desse final - deveria assu m ir
25 Ou melhor, ele é o equivalente, no que diz respeito ao estilo, daquilo que as mudanças
tal satisfação jubilosa no desfecho, e como devemos interpretar esse júbilo
maiores deste último operaram no enredo ou na perspectiva narrativa: ver meu "Generic
Discontinuities in SF'; in Science-Fiction Studies, v. 1. Londres: Fal!, 1973, pp. 57-68. Em am-
feroz com a irremediável corrupção do mundo.
bos os casos, as transformações e mudanças inscrevem o ser como um fluxo de metamor-
foses; mas também clamam por um sentido simbólico a ser investido em cada mediação
entre qualidades específicas.
26 B. Brecht, Werke, v. 15, pp. 120-36.

202
2
A resposta Ol1sISI', ti 'r xllto, 11 1 r '11~l o de til" 'hl 0111 () prúprlu lpl A ll·Il'llI 1\lln dll .11'11 li, \'1\1 \) uniu I .stunllda lc jubilosa ujos truques
talismo, ou melhor, na relaçã de um .rto marxismo, im zcra]: ) ti isd 111 'mitos S,IO 111\ 11"l'llldos l' ti -monstrados diante de um público para o qual
direitista pelo comércio e pela cultura burguesa que o marxismo h rd u se e pera qu tais" roba ias sejam mais divertidas que uma luta de boxe

das primeiras críticas anticapitalistas do período romântico, embora per i ta ou alguma outra exibição esportiva de força ou destreza -, a celebração do

como uma tendência no marxismo posterior, torna-se ambíguo, para não capital, como dizíamos, é que está em questão aqui, desde as palavras da can-

dizer ambivalente, pela relação mais complexa do movimento da classe tra- ção até os obstáculos de todas as intrigas baseadas na História das grandes

balhadora com o desenvolvimento industrial que é seu próprio pressuposto fortunas americanas de Gustavus Meyers, de 1909: é o investimento de libido

fundamental, e que ela precisa, portanto, julgar tanto progressista quanto naquilo que se considera repulsivo (ou "negativamente investido")" e que

danoso e devastador. é encenado e tempestuosamente interpretado diante de nós. Uma estética

De qualquer forma, é precisamente um certo prazer em surpreender e marxista que não abra espaço para essa ambivalência fundamental, essa fas-

redramatizar os próprios mecanismos interiores e exteriores do capital, os cinação e entusiasmo por tudo o que é perverso e suspeito, impuro e vulgar,

esquemas dos homens de negócios (sem excluir nem mesmo o do próprio sobre o que é propriamente animal, sempre causará impacto nos que a veem

Peachum, que particularmente se expõe no Romance dos três vinténs), os de fora como inaceitavelmente puritana ou afetada ou excessivamente deco-

malabarismos do mercado, que, como a própria História, convulsivamente rosa, tão respulsiva quanto a respeitabilidade da própria burguesia. A aver-

convertem-se e reconvertem-se de positivo em negativo - é a fascinação são brechtiana à respeitabilidade em geral é amplamente documentada nos

com o capital e os negócios que encontramos em toda parte em Brecht, trabalhos do início de sua carreira, tendo Baal como sua alegoria virtual: a

evidentemente começando com a venda do elefante em Um homem é um manobra marxiana é, em função disso, capaz de dar vazão àquelas energias

homem (ou mesmo com a "compra" de opiniões em Na selva 'das cidades), "antissociaís" para um engajamento novo e mais produtivo com o negativo.

e alcançando uma espécie de clímax no mito fundamental do capitalismo


em Mahagonny, e outro na viagem de Santa [oana às profundezas na peça
que leva seu nome, escrita entre 1929 e 1932, a qual tem sido frequentemente Representabilidade do capitalismo
nsiderada como a mais abrangente iniciação de Brecht à análise marxiana.
Mas a perspectiva das últimas peças também não deve ser esquecida: Mãe Ainda precisamos examinar também a questão do ponto de vista dos pro-

oragem é ela própria uma negociante (como também o é a "alma boa" de blemas da representação que emergem para Brecht, na medida em que ele

S tsuan) e sua relação objetivamente ambivalente com o dinheiro não é luta com a encenação desta outra forma fundamental de temporalidade da

stranha à ambivalência que tantos leitores geralmente atribuíram a esse História: a do capitalismo industrial, muito diferente daquela do campesi-

drama "trágico': (Entretanto, essa ambivalência deveria ser especificada de nato e dos modos pré-capitalistas de produção. É um problema do qual ele

forma mais clara: não é o apelo do dinheiro em jogo no sacrifício de seus fi- se queixou seguidamente do final da década de 1920 em diante: primeiro

lho , mas seu terror de perder seu modesto capital - a carroça -, uma perda em relação à forma de compreensão do modo como o capital atua, o que na

que ela jamais poderá compensar: o dinheiro vem e vai, porém um capital pedagogia brechtiana é obviamente inseparável da demonstração de como

nunca pode ser restaurado - é essa distinção entre dinheiro e capital que se
encontra no cerne da teoria de Marx e que constitui o conflito, trágico ou 27 No original, o termo cathected [de cathesis] deixa mais claro que o autor está jogando tam-
não, dessa grande peça.) bém com o sentido psicanalítico de "investimento". [N. T.]

205
204
di 111\\ 1111 (Olllll'JiI, p 'd IHoglo brcchttunu)
I nlul.llilll '111110 IIll s ti' h, o !til 1\ 111'1111111111.1111'1'11 I IlIdllll ti' Mltch ·11'111 qu $'1' 1,0 frio proso! O
1-\"1'11101'1 'sil' pnuln, no quul os probl mos teatrais e os rcluílvos à n 'na uo quunlo po ,VI'I, ,\'111 quulquer romantismo. Os golpes do destino com casse-
1('VIIlII no à Icltura de Murx, importante compreender as tentações que se tct S, 11 ti '1'1'0 idu, tudo r Iratado com palavras apenas, tão chãs e esvaziadas
Ipl' S '11 Ili 111 be os sem aída da representação, de sentido e tão despoetizadas quanto moedas de ouro. E acima de tudo: catás-
O prlrn iro é o dinheiro, que apresenta problemas próprios de represen- trofes provocadas por dinheiro precisam ser absolutamente dessernelhantes das
III~ o qu já se coloca nas primeiras encruzilhadas da representação entre ocasionadas pela paixão guerreira ou pelo amor. Essas catástrofes ocorrem de
pobl' s e ricos, Pois, interessado como estava no trabalho produtivo ou in- forma muito mais inconsistente, fechada e estéril. O que precisa ser mostrado
dllslrlal enquanto tal, enquanto matéria-prima, para Brecht o dinheiro é um é exatamente esse poder invisível e destrutivo do dinheiro, que é tão assustador,
Ohllll\ ulo para o qual apenas o documentárío parece oferecer uma solução: particularmente quando falta informação."
"IIIS () lramaturgo não acredita naquele tipo de realismo fotográfico." O di-
uhelro aparece negativamente no momento do desemprego: não é o traba- Mas precisamente essa singularidade da natureza do dinheiro parece ex-
lho los trabalhadores que é representável, e sim sua pobreza, e finalmente o cluir qualquer representação possível, pois se for um objeto ou substância
p 111 O suicida de Kuhle Wampe, a depressão dos desempregados - as rodas valiosa - como o ouro para o avarento ou os dólares para a Irmã Carrie de
du bt 1 leta em direção aos empregos anunciados e então rapidamente ob- Dreiser - não será mais realmente um meio de troca; e se ele se tornar capital,
lidos,a pura fraqueza e exaustão das filas nas cozinhas (ver também La Vie assumirá um valor imaterial que só pode ser representado em seus efeitos.
(',\'/11 nous, de [ean Renoir, de 1936), Mas, no caso das pessoas que ganham Portanto, Brecht coloca-se entre duas espécies de representação, am-
dinheiro e enriquecem, o dinheiro é igualmente irrepresentável, pois se tor- bas já exploradas pelos romancistas naturalistas, de Zola a Frank Norris
nou capital. Portanto, na sua ausência para o pobre, e em sua presença para e Upton Sinclair: por um lado o "Schicksalsschlage" ["golpes do destino"]
() rico, o dinheiro como tal é especialmente inadequado enquanto ponto dos muito pobres, que migram com suas famílias de uma grande cidade a
ti partida (como se pode observar o próprio Marx descobrindo no início outra; por outro, os "malfeitores de grande fortuna', cuja ascensão e derro-
ti uas notas preparatórias para o Capital, publica das como os Grundrisse), cada também registram "os punhos do destino" de uma forma praticamente
Aqui está um esquema esclarecedor de Brecht sobre o assunto, de quando ele correlata ao primeiro grupo. Mas estes últimos estão nas grandes represen-
l ntou elaborar um primeiro drama "social" em [ae Pleischhacker in Chicago tações do capitalismo - particularmente nas duas obras brechtianas fun-
( 'se rito por volta de 1926): damentais' Santa [oana e O romance dos três vinténs - reduzidos à miséria
dickensiana, ao estatuto de lurnpensinato (os mendigos de Peachum) ou
H abem aqui as famosas observações sobre fotografia: "As coisas tornaram-se tão com- deseperados objetos de caridade. É como se na obra de Brecht aquela tem-
plexas que uma 'reprodução da realidade' tem menos do que nunca algo a dizer sobre poralidade radicalmente diferente da vida camponesa tivesse absorvido a
a própria realidade. Uma foto da fábrica Krupp ou do AEG não nos informa quase nada posição actancial do "proletariado", a posição do oprimido e explorado no
obre essas instituições" (B. Brecht, "Schriften 1. 1914-1933'; Werke, v. 21, 469). A tentação
capitalismo, da classe dominada. Os remanescentes nos trabalhos "capita-
é justapor as reflexões de Iean-Luc Godard sobre a capacidade do filme de representar
o trabalho: nas cenas da fábrica em Paixão, por exemplo, as tomadas são comparadas a
listas': então, convertem-se em objetos de caridade, dos quais provém uma
pornografia - em outras palavras, nem o trabalho nem o sexo são acessíveis de forma não nova espécie de posição actancial. O Exército de Salvação de Shaw ou a
mediada; para maiores detalhes a esse respeito, ver meu capítulo sobre Paixão em The
Geopolitical Aesthetic (Londres: BFI, 1993).
29 B. Brecht, Werke, v. 10, p. 279.

207
"loja dos m '11 li Y( s" I' 1" I hut11: a nutur 'za daJ1lanII'Opi.l lib -rnl 1'0 I' Sl'1 M I~, ,I 1,,1 \ 1111\1111111 I \I dll 111111,,-1111, o 1I1l'1 lIdo lil' 'I~Ul" I,IIIIh"llIl1 111 I 1

muito diferente n d is asos, ma a po ição narrativa é íd nLi a l ind ' o pllol P '11.111111" 11111,1111 1111111111, I' 1IH'1.lI\I '111 '\111'" 101'11'" cnt re 0111111. d,'I"II

converter-se na corrclata, que é a do próprio Partido, de forma mai entre I lar I 'rsolllft .u ,tlp,1I '1111 ,,' -sslvum 'I te ornpl .xo I ara s r r 'pll' '1IIIdll,

emA mãe. e não p nas pOl'qUl' -nvolvc tantas vida distinta


c p ntos de vlsl I, 111 I
Ficamos, portanto, com a temporalidade muito diversa dos capitalistas também um mundo de oisas - tanto processos té ni os 01110 111111('1 I
como tais, com cujas vidas Brecht brincou ao mostrá-Ias repetidas vezes -primas e produtos finais a serem vendidos e usados: os tr gral1 I 'S I' 111111 ,

(Dan Drew, [oe Fleischhacker e mesmo Mac Navalha). Mas essas vidas estão produção, distribuição e consumo, que mal se cruzam entr si, . solu 11
de tal forma sujeitas a reviravoltas catastróficas como as vidas dos pobres: é quais não pode haver um ponto de vista unificador. O filme qu Eis 'Il/llt'lll
o outro lado da grande roda da fortuna. Se as catástrofes do mundo campo- planejara sobre o Capital havia sido imaginado em duas alternativas \)1\10
nês podiam abrir uma breve era de ouro, aqui elas só podem levar ao desas- uma série de lições sobre a dialética ou como a desmistificação ( xploru, ,1(1)
tre, e mesmo o sucesso é o prelúdio do desastre. Então Brecht precisa antes das vidas simples de todo dia (o consumo da mulher, a produ 50 10 ho
aprender o segredo dessa temporalidade do que a psicologia dos que estão mem), em que presumivelmente as mercadorias seriam meram nt 'OIlV"
submetidos a ela. Eis o relato de seus esforços: tidas em suas matérias originais e transformadas em inúmeras na rratl vns, \I
Mas Eisenstein estava mais interessado na natureza da abstração dial ~tIl I1
Uma espécie de acidente de trabalho me ajudou. Para uma certa peça eu precisava do que Brecht, e entendia o filme como a suprema incorporação d SSa novo
do valor do trigo na bolsa de valores de Chicago como pano de fundo. Pensei espécie de abstração, assim como o veículo mais óbvio para a dem nst I'II~ :11I
que seria capaz de obter a informação necessária rapidamente fazendo algumas de sua estrutura. Penso que essa lição pareceria muito estática e a ad mil I
investigações entre especialistas e profissionais. Ocorreu o inverso.Ninguém, nem para Brecht mesmo desconsiderando a monumental diferença de m 'iol': n 111
escritores conhecidos das áreas de economia e negócios, nem homens de negó- se quer simplesmente dizer que Brecht era mais "humanisticarn nt ," 11111'
cios - viajei de Berlim a Viena atrás de um corretor que trabalhara toda a sua vida ressado em pessoas e situações concretas. A esse respeito, vale lembrar tl"l'
na bolsa de Chicago -, ninguém conseguia explicar adequadamente os processos tanto Brecht quanto Eisenstein eram atacados pelo frio intelectual i mo 'pUI
relativos à cotação do trigo para mim. Fiquei com a impressão de que estes pro- preferirem ideias às emoções. Em vez disso, parece mais adequado diz r 1I11('
cessos eram simplesmente inexplicáveis, isto é, que não eram para ser apreendidos a pedagogia de Brecht sempre envolveu a própria pedagogia, e qu Ia 'I' I
pela razão, ou seja, que eram ilógicos. De todo e qualquer ponto de vista, exceto tanto autorreferencial como referencial. Pode-se certamente dizer o n ,1110
aquele de meia dúzia de especuladores, esse mercado de cereais era um enorme sobre os escritos e a teorização de Eisenstein (e talvez seja melhor pro e lI!1

mistério. 3D insistindo no mesmo ponto como fizemos em relação ao próprio Brecht, ou


seja, que a teoria é parte da própria produção artística, Encouraçado PO/'íI/
kim ou Outubro incluindo todos os incansáveis e extensivos comentários
que Eisenstein fez de cada um deles etc.). Entretanto, a mediação da 111
30 Tradução citada a partir do excelente Brecht's America, de Patty Lee Parmalee (Miami / Ohio:
Ohio State University Press, 1981, pp. 139-40). O ponto central de Parmalee não é apenas
sobre o motivo da América em Brecht (por oposição à história de Lyon em sua experiência 31 Sergei Eisenstein, Notesfora Film ofCapital. October, n. 2, verão 1976, pp. 3-38. Ver tamb 111
americana), mas, precisamente, ssobre a relação dele com o marxismo como um repertório o comentário de Annette Michelson sobre o projeto, em três partes, in October n. 2, 11. \ ó'

tanto de representações como de dilemas relativos à representação. n.6.

208
qll 11\11'111 1\ ,1% lcln ( I 11\ '1'\) 1001lpll \ O qu ulro: 111111 11111111' VI'\' 'I\\OS 11111.'10. 111" 11111111 11111\ 111,11111 opo,~lnS: I sltuação, assim, turnb J11 parti ipa
II '11~llo I, Hr' ht '0111 as 111: quin IS(c '0111 a mo I -ru dild ')', '1'10111 'nl ' da lunll I,\tll- dIIW"III, II ,I 1\ /'cltrslii k.
'glllll 10 Pts olor, I linha rnuit int r ssc na in lu ã de s 'gm intos d ' fil Br ht v '10 li d seuvolv 'r muit bem esse tipo de enredo; minha impres-
111''. do um .ntários 111 sua pr duções. Projeto anteriores como Ruhrepo são é de qu ,a s r pito, ao longo da abertura de Arturo Ui está o que
(11) 7), qu ' 11, h gou a ser escrito." sugerem um flerte com a representação de melhor ele conseguiu escrever, porque, em vez de oferecer um resultado
d,l produ 5 m tal, e não apenas a invenção de histórias e narrativas que estéril, em que um negociante necessariamente vence o outro (ou em que
I m (1 produ ão como pano de fundo. o perdedor está em condições de se recuperar, como na situação de Mauler
I) • qualquer forma, os dois praticantes de uma dialética artística são su- em Santa [oana), ele apresenta uma situação dramática em que seremos ne-
lII '111 .m nte diferentes um do outro para permitir uma comparação (e di- cessariamente solicitados a interessar-nos pela psicologia do barão ladrão
11'1 '11 laç' o) mais ampla, que pode ser apresentada aqui. Basta observar que de que a peça trata (novamente, como no caso de Mauler) - aqui, em Ar-
11.1 obra I' ditada de Eisenstein, e para além desta ou daquela observação turo Ui, todo o mecanismo do agon entre homens de negócios e a agitação
I 1-1,'11,1li 'g rentes ou burocratas pré-revolucionários, só A linha geral ensaia da bolsa de valores é transcendida por algo muito mais monstruoso e que
111111 cornpleta representação da produção enquanto tal; e o que está esteti- não pertence mais àquela categoria, ou seja, Hitler. (Acho que o resto da
, UII '111' m questão aqui é a industrialização da agricultura no socialismo - peça, em que a história nazista é engenhosamente replicada no ambiente
11 '1lIIlII11 dos aspectos do capitalismo que Brecht tentou trazer à superfície. de gangsterismo de Chicago, é divertido, mas no fim das contas um tanto
I lodo modo, a justaposição torna claro que o mercado de ações oferece quanto enfadonho.)
"1' 'nas uma imagem possível do capitalismo e mal esgota a complexidade Quanto à representabilidade dessa instituição particular do capitalismo -
do f nômeno, mesmo no plano intelectual e analítico. Ela certamente oferece corretores rosnando como animais no pavimento térreo da Bolsa -, é extre-
ai 'umas personagens que são úteis de três formas para a representação. Pri- mamente familiar e povoada por um drama que pode facilmente tornar-se
111.iro, estão isoladas das personagens da classe trabalhadora de forma mais estereotípico, o que equivale a dizer visual. A grande cena de Antonioni em
ubs luta do que os gerentes de uma fábrica, digamos; e podem portanto ser Eclipse é apenas a mais vívida versão moderna; e o grande romance de Zola,
exibidas de maneira quase zoológica. Segundo, cada um é um veículo de um O dinheiro, o mais abrangente e entusiástico tratamento por um romance.
c .rto tipo de energia muito especializada - fazendo acordos, desenvolvendo Mas Zola, como Brecht, precisou refletir sobre a natureza e as possibilida-
, rnbínações, obtendo informação secreta, conquistando uma pequena van- des daquela representabilidade. "Dar espaço à sensação daquilo, sob o sol, a
tng m sobre um produto qualquer, e assim por diante; habilidades e ativida- própria palpitação de Paris, esta forja de grandes especulações, no próprio
li 's que não parecem ter nada a ver com produção, distribuição e consumo centro da agitação, no coração da vida interna, do movimento, do barulho
[ue também caracterizariam a modernidade industrial de um sistema socia- [... [Paris, de uma às três horas, lá:'JJ Altamente cinematográfica, já, dír-se-ía,
lista. E, terceiro, elas oferecem a perspectiva de duelos e lutas, do tipo a que exceto pelo fato de que, na versão final, é o vitalismo e seu sistema metafó-
Brccht adorava assistir e encenar, desde seus tempos de boxe e de projetos rico inerente que triunfam: "Este quarteirão de todas as febres, onde a Bolsa,
mo Na selva das cidades: o agon é afinal de contas o evento dramático fun- de uma às três da tarde bate como um enorme coração, bem no meio">
damental, e ao mesmo tempo nada pode tornar-se tão abstrato como esses
33 Émile Zola, Les Rougon-Macquart, v. 5. Paris: Pléiade, 1967, pp. 1293-94·
12 B. Brecht, "Schriften 1. 1914-1933': in Werke, v. 21, PP.205-o6. 34 Id., ibid., p. 23·

211
10
Esse destaque para a visualidad s us síst .mas d li llll\\Çl o ' 'riam '111 ' 18 comhlnnço 1111 I 1If1,lltllll .1., '1\) fr '11 tlcu lIgI1l1~' o, 1\ls pOI qll\' 11\ ti
não é calculado para servir a quaisquer fins d monstrativos ou p da Ó li os uma vez Lukr '1\ '/lI '110 11 SS' ontcxto, e as p rsonag 'I1S ti' 1\ li:!. 1 ,'11 ()
(mesmo que as extaordinárias preparações de Zola e a planificação torn m muito mais pr xlmus du I ráxis ocial do que os tip a ongcnhurlu lnuu 11111

o próprio projeto até certo ponto pedagógico); em última análise, nesse as- dos naturalismos: mas as personagens de Brecht no Romance dos três vluu //\
~ecto, finalmente, Brecht está tanto atrás como adiante de Zola, mais pró- e em Santa [oana são igualmente dotadas de um ímpeto incessant " dt' 111111

timo de Balzac, por um lado e, por outro, mais profundamente influenciado inteligência inquieta e de uma imaginação inexaurível para esqu mas, SI

por Norris e os posteriores "mercados futuros" naturalistas. das de situações difíceis e para estratagemas visando lograr o con 01"1"<.'111\' \'

Pois os mercados futuros - o famoso monopólio dos grãos, a fábrica obter a energia necessária para enfrentar uma luta que se estende p r 1" IH '
de carne enlatada de Mauler (suas jogadas no mercado de ações não têm toda uma vida.
equivalente, por exemplo, em A selva de Sinclair) - têm a vantagem de que Balzac ainda sugere uma outra característica das representações de Bre ht.
neles é possível dar às abstrações do dinheiro um conteúdo semelhante. Sim- Seu principal romance curto sobre o assunto, La Maison Nucingen, umn
mel mostrou-nos, na Filosofia do dinheiro, que o dinheiro tem uma relação frenética narrativa de intriga e duelo financeiro mortal contada por vc rio,
dialética específica com o valor de sua substância: se a substância é valiosa vagabundos parisienses, e o que ela trai, acima de tudo, é a suprema palxtío
demais em si mesma, a própria função do dinheiro desaparece; se o valor do balzaquiana da informação confidencial, do "know-how', de quem está pOI

dinheiro ficar abstrato demais, ele se torna um conjunto vazio de números. dentro dos segredos. Como romancista, Balzac é desses que sabem tudo "
A situação dos mercados futuros não resolve o problema dessa oscilação, que que são extremamente irritantes, constantemente detendo o leitor paru dlll
é estrutural, mas permite o triunfo momentâneo de um subterfúgio artístico, a informação que ninguém mais tem, mas que ele sabe ser verídica. Nt o 1111

permitindo que relances da produção real sejam vislumbrad~s e que o ato porta que ele nunca tenha sido pessoalmente capaz de tirar vantagem d ' t 0\ 11 I
de ganhar dinheiro se torne momentaneamente algo consumível, de que se esse conhecimento de bastidores: seus romances constituem uma tcníntlv I

pode sentir necessidade, como de salsicha ou pão. De outra forma, perma- de provar tudo ao leitor, de mostrar a mecânica interna, de demonstrar seu
nece apenas o libidinoso, o fetiche, como em Dreiser: "Dólares. Eles eram conhecimento do sistema. Balzac, assim, é favorável não apenas à repr s 'nt 1

suaves e silenciosos e ele pôs seus dedos em volta deles e amassou-os [... ] ção do dinheiro e dos negócios, mas à paixão de saber sobre eles, algo qu ' J
duas notas verdes, suaves e belas de dez dólares'.> na época de Zola é tarefa de especialistas e que requer não mais a barb 01'1 I

Balzac é fetichista em sentido diferente e pré-capitalista, com seu orgu- cheia de vapores ou os cochichos e explicações do pub da esquina, mas dI'
lho ingênuo em suas aquisições espúrias e sua mania de colecionar obje- preferência simplesmente o trabalho sério, para valer, visitas ao lugar, do LI

tos valiosos que também devem ser famosos. Por outro lado, a narrativa mentação, perguntas a este ou àquele especialista, e assim por diante... om
balzaquiana do dinheiro - tendo por pano de fundo vários protomercados Brecht, entretanto, voltamos à revelação de segredos (a viagem à Ãustrl I):
de ações, o Livre dor (títulos governamentais) etc., todos ainda rudimenta- como conhecer o segredo da Bolsa de Valores, como se, para começo d 01\

res demais para serem mapeados com a suprema autoridade de Zola - está versa, ela tivesse um segredo, e como se, caso se tornasse conhecido (estamos
muito mais próxima do agon brechtiano, a luta entre cifras maiores que a por ora na época de Lênin, afinal de contas), ele pudesse também ser usado
vida, cada uma das quais febrilmente se agita e se contorce na rede, tentando como arma revolucionária. Este é então o lugar da libidinosidade; é essa 'x
citação que Brecht associa à Cidade e ao capitalismo em geral, pelo menos
35 Theodore Dreiser, Sister Carrie. Nova York: Penguin, 1981, pp. 61-62. enquanto matéria-prima para a representação: esse é um lado de seu "mnr

212 21\
h.so ('VO \ \ IIf 111,\ dI r-. I 11I11 1,11111 ,\ 1I0S (1\lh,tillos d' \\1 ('( IIll 011\011'11,1\11
xi rn ",e, na verdade, um dos lados mais nl11bl\'111 'nl 'S, nino SlI 'I' '111 SlI IS
notas hesitantes e perplexas de 1930: d or] () IlIldlll d.\ I' 11l11lKI.\ do l ipltallsta, 0111 versos 'Ol'(III,\\IOS 0\1 1.111

tianos: "DUllS IhlHIS 11 1\111'\\11 111'li P 'iLO". PaLly Le Parrnalc ObSl'IVOll 1\1 ,ti,
A dificuldade maior e mais inevitável: determinar até que ponto o marxi mo de-
fato, "tai par dias na I 111 bjetivo de tornar os lássi s ridlc ulos, 11I,1~ d,
pende do próprio capitalismo. Quantos de seus métodos são capitalistas ou pelo
mostrar como formas outrora progressistas tornam-se uma ob .rturn li '\I

menos funcionam em condições capitalistas. Eles transformam o capitalismo por lógica para a reação'?" Brecht certamente estava interessado n trabalhos d,
meio de sua compreensão? A dialética explica-o ou liquida-o? A dialética, em
caridade de uma figura como Mauler: o discurso de abertura drarnatlzn ('\I

consequência, é capitalista em seu campo de aplicação? Ela emerge como epi- momentos de crise nervosa, de uma espécie de acesso de melan olia ou til'
fenômeno do capitalismo? Ela, antes de mais nada, dá sentido ao capítalísmo!"
pressão (ou luto, como diríamos hoje), que não pretendem ter sirnpl sm '111
o tom da farsa. Como saber que você não só faz as pessoas sofr r, mas q\It'
No contexto presente, essa questão (também formulada tanto por Lukács ainda mata bois? Como saber disso e prosseguir?
como por Gramsci, cada um à sua maneira) 37 também se refere à representa-
ção: em que grau será necessário representar o capitalismo do ponto de vista Lembra-te, ó Criddle, daquele vitelo

do socialismo ou, como prefiro dizer, em uma situação de construção socia- que virava o olho claro, grande e obtuso para o céu

lista. No grau em que Arturo Ui supera a Bolsa de Valores, pode-se supor que Enquanto entrava na faca? Senti como se fosse carne

considerações a respeito da guerra superarão as relativas ao dinheiro; e este, Da minha carne."


com certeza, é o caso das "campanhas" governamentais mais oficiais a que o
Berliner Ensemble estará associado (a pomba de Picasso por êxemplo). Mas Esse é, em realidade, em termos de dramaturgia, um problema sem '11111111
talvez a guerra não seja um assunto tão interessante e produtivo quando en- ao de Peachum: como falar a corações mais insensíveis? Mauler é f ito til' ('li
focada daquela forma: Mãe Coragem, por exemplo, toma-a como cenário e, comenda para o teatro aristotélico da simpatia e da compaixão, assim '0\110
I
em vez de guerra, dramatiza o desespero pequeno-burguês com a diferença para as estratégias "peachumescas" dos mendigos. Assim como Br ht, (·1•
entre capital e dinheiro. Nesse meio-tempo, Os negócios do senhor Júlio Cé- precisa renunciar àquela parte de si próprio e eliminar a fraqueza ("n6s qu '
I
I sar mostra-nos como a guerra toma outra feição quando se está em meio às
queríamos preparar o terreno para a amizade não pudemos, nós 111 smo ,
ser amigáveis"), mas desta vez a fim de fazer negócio. Hitler / Ui é um ti l'll
I várias disputas capitalistas na Bolsa e na guerra dos negócios. Mas "belico-
sidade" é uma questão psicológica, suscitando o problema do autoritarismo, rante sociopata; Mauler é um herói trágico, mas um herói trágico re S rltu
uma visão mais psicológica ou psicanalítica do nazismo como sadismo, e por Brecht.
Os homens de negócios são, portanto, uma categoria actancial sígnif 1
assim por diante - parece claro que Brecht nunca esteve interessado nesse
aspecto psicológico das coisas. tiva para Brecht, cujas representações do capitalismo são, em larga mcdld I,
como já vimos, organizadas em torno da especulação e do mercad a 'I,)

36 B. Brecht, "Schriften 1. 1914-1933': in Werke, v. 21, p. 407.


37 Quanto a Lukács ("O que é marxismo ortodoxo?"), ver Prólogo, nota 29. O texto de Gra- 38 P. L. Parmalee, op. cit., p. 162.
39 B. Brecht, "A Santa [oana dos matadouros': in Bertolt Brecht: Teatro completo, v. 4, trad. Ito
msci em que eu penso é "The Revolution against das Kapital', in Pre-Prison Writings, ed. R.
Bellamy, trad. V Coxo Cambridge: Cambridge University Press, 1949, pp. 29-42. berto Schwarz. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 15·

21 4
nário. A cat g ria d primidos 'xplorados .ntüo amplum 'IlL' PI'l' 'li I jll ' b.111111I11 "1' '\ 111dll~ P '1II'ondlll':, lI'
111'11111 'MIII ,,(\ \ UIII I V 11111I

chida pela figuração de um sistema compl lamente div rs , Ou s ja, o d01l 'ompll'xllli 11'011" di 111"11111)',111
("lIlill xlstus ocld '111ils'') tjUl' a, 111,1111111111111
camponeses: o que se acrescenta a essa categoria a partir do d mlnio da 'luis. Isso II( o sil'" I1 I qUl' os 'JIlÍs prc is irn s .rnprc '010 'ar se t\ 'sqlll'l d,l
modernidade industrial não é trabalho - embora as máquinas v nham a na verdad , 'I' ti .ha qu ' ti pr pria "revolução" nazi ta tarnb 11I um 1,1, U li •
ser um substituto significativo, como veremos abaixo -, mas, no lugar disso, Tuis, ou, em utra palavras, de intelectuais descont nt s, mar ados p ,10 lI'
os desempregados. Talvez, então, possamos sugerir que a consagrada cate- sentimento (a figura de Goebbels confere muita plausibilidad a 'ss \ Jl 'I
goria marxiana da pequena burguesia esteja em Brecht deslocada pela do pectiva) - "simplesmente a revolta dos Tuis de baixo - ou o mais in 011'11\'

habitante da cidade, como demonstra seu Lesebuch [ou Cartilha] jür Stãd- tentes - contra os de cima" 4'

tebewohner [para o citadino]. Mas há também a categoria de filantropia li- Antes de mais nada, o que precisa ser dito abertamente - fi Oli impl
beral, cujos representntes vão de Peachum à própria [oana, ou, em outras cito nas páginas precedentes - é que a concorrência feroz entre horn ns dI'
palavras, da filantropia como um ramo dos negócios à piedade institucional negócios (ou mesmo entre vendedores e compradores, lojistas [r YlI'M\,
e compadecimento (empatia) enquanto um espaço trágico para a pedagogia como vimos) é bem mais interessante e proporciona material dramr Li o
e para um enfoque do engajamento político, que, por internamente confli- muito mais rico para Brecht do que qualquer espécie de contradição 101 Ii

tuoso, terminava mal. Essas figuras então começam a aproximar-se daquela mente ideológica, que na melhor das hipóteses leva o drama às "duas tllilhl .•
outra categoria actancial básica em Brecht, a saber, os intelectuais, ou os as- de Mauler ou às escolhas existenciais de [oana. Entretanto, é preci am 111'

sim chamados Tuis ("Intellek-tuellen"), mais tarde identificada por ele com esse ímpeto na direção dos negócios e da conspiração - que, não LlSII' 11
a Escola de Frankfurt. Essa não é uma categoria de classe para Brecht, e este sistir, deveria ser extremamente atual numa era de transações r '1,1, I'

é o momento adequado para insistir que seus julgamentos políticos não fo- especulação financeira, mas ainda parece tão antiquada quanto Hitlci ti

ram nunca baseados em filiação de classe empírica e que ele frequentemente fordismo - que muitas vezes confere a Brecht a qualificação desdenhosa dI'
atacava o uso mecânico de tal informação sociológica e de família, na me- marxista vulgar, de dialético materialista ou marxista funcionalist (ti III(
dida em que repudiava aquela denúncia pueril que a esquerda faz a da arte nos, é claro, que para tais críticos todo o marxismo já esteja de saída inalH'
enquanto tal (como se observa na década de 1920, e depois, novamente, na lavelmente fadado ao funcionalismo).
década de 1960).40 Os artistas podem ser, mas certamente não necessária ou É uma caracterização que às vezes Brecht orgulhosamente endossava
inevitavelmente, Tuis, como testemunham as pessoas ligadas ao teatro que reivindicava para si próprio: o glorioso lema do plumpes Denken ("p ns I

participaram da construção do socialismo e cujo trabalho já é em si uma mento cruel")," por exemplo, deveria antes ser entendido como uma esp k
construção social simbólica. de imperativo, ou seja, pensar de modo vulgar. Não é má terapia, esp 1'11
Portanto, a fim de nos aproximarmos da determinação da natureza de mente para os Tuis; e eu mesmo estou convencido de que qualquer I11'H'

um Tui, será necessário examinar o que Brecht entende por ideologia. Quero xismo hiperintelectualista precisa ter essa espécie de Weltanschauung vul inI'
antecipar uma proposição que pode provocar escândalo, mas que não te- sempre presente, e vice-versa. Mas, então, naquele caso estamos diante I'
nho espaço para defender, ou seja, que na verdade o próprio Brecht evita um relativismo que se baseia na natureza da própria situação históri a,
tanto as teorias clássicas como as modernas da ideologia - de fato, para ele,
41 B. Brecht, Werke, v. 17,p. 34·
40 Ver parte I, nota 23. 42 Id., "Kãmpfe ringsum" in Werke, v. 16, p. 173·

216
ninguém insistia tanto como Brccht s brc arát r '11) últhna :111t\1 is , sltuu ponto \ 10111\1\ 11\1 111111111'1111\111' 1\0 IHIO I, 11)tis pururn 'nl' .ulturul 011 111

cional do pensamento." Entretanto, precisamos ir um pou mais lon ) , do l 'I' 'I uni, (, p 11li' I' plll (1,1" ti \ próprlu práxis: não pode mais, portunlo, 'I

que isso, e proponho que o que parece, à distância, um modelo marxista vul- d s rita no 1111 'li \ , '111 purum ntc superestrutural de "pensamento" 011 li \
gar de interesses restritos de classe em atuação juntamente com a ideologia, "arte". Br ht inv ntou uma espécie de tribuna improvisada para tal ullll 111

é na verdade um esquema mais sutil e negativo, em que a ideologia é essen- é a noção particularmente atraente de eingreifendes Denken ou "illll'l I 1\ \I t

cialmente avaliada com base nas consequências; ou, em alemão, seus Polgen, conceitual":" - um lema cujas ressonâncias revitalizadoras aind \ " t \11 1'"1

seus resultados, o desfecho em prática. Filosoficamente, é uma posição que ser exploradas em nosso próprio tempo e situação.
marcaria uma filiação de Brecht àquelas tradições de filosofia contemporâ- Quanto ao passado, entretanto, a coruja levantando vou 111 I 111 ,,01,

nea - pragmatismo americano, positivismo lógico vienense, materialismo provavelmente se encontraria, ainda, equipada com o m '0111 1111' 111I J, t"
empírico de Korsch - que só agora estão começando a ser filosoficamente dos julgamentos positivos e negativos, progressista e rea '11111111 11 t I
exploradas pelos estudiosos de Brecht.v' Mas é uma característica funda- ponto estamos de volta à visão, poderosa ainda que dif li, ti 1 til li ti

mental da sagacidade brechtiana, e, na verdade, daquilo que ousamos de- sentada pelo próprio Manifesto comunista. É nesse esplrho qu. , I

signar como o próprio "método" brechtiano, o fato de ele não nos oferecer solicita um julgamento particularmente atualizado dos \ I' ,111

uma teoria positiva das consequências e interesses em ação na ideologia, e mente progressistas das grandes ferrovias construídas 110 I 111

sim uma teoria negativa, na qual o termo crucial e leitmotiv (como já de- guindo Gustavus Meyers) pela iniciativa privada dos baror l uh
monstramos acima) é de fato a palavra-chave folgenlos, "sem conseqüências"
Portanto, o ideológico em uma obra de arte em particular ou em uma escola A iniciativa privada é boa ou má? Os grandes complexo
filosófica análoga é que ela não tenha consequências, que se destine a evitar construídos por pessoas ligadas à iniciativa privada. Portuulu I
consequências. uma vez estabelecidos esses grandes complexos, a ini IlIl VII" I

O ponto é que a específica unidade-da-teoria-e-prática torna impossível de ser necessária, e a coletiva era chamada a se livrar ti 'I"
para o marxismo - ou pelo menos para esse marxismo - ter uma versão sempre condenaram essas formas de propriedade privnd ••
positiva desse fenômeno que é totalmente negativo ou privativo: podemos resposta: no mesmo grau em que as dimensões positivas (d, 1,1

perceber quando alguma obra intelectual ou cultural não tem consequên- tornam visíveis, sua dimensão negativa ou má pode tarnlu 111 1"1

cias, mas é muito mais difícil dizer quando as tem, porque exatamente nesse tível e ser apontada. O que é bom neles portanto tamb 11\" I I

o que neles é mau."

43 Algum desavisado capaz de escrever entusiaticamente sobre Adorno e Brecht com certeza
não ficará surpreso com as pressões para escolher entre eles (o que eles têm em comum O que me ocorre em um caso como esse é que Folgen 0\1 " li"

é evidentemente o sarcasmo, o cinismo dialético sobre o presente; o que os separa é, por- ram substituídas como categoria de julgamento por suu \~ , I
tanto, o princípio da esperança). Em vez disso, recomendo a versão do próprio Brecht, a
parábola sobre o nó górdio: "Ah, o homem/Cuja mão o atou/Planejava desatá-Io, po-
rém / O seu tempo de vida, infelizmente / Foi bastante apenas para atar // Um segundo 45 O Historisch-kritisches Wiirterbuch des Marxismus (Berlim: A, flIIIIII 111

bastou / Para cortá-lo" (B. Brecht, "O nó górdío', in Poemas 1913-1956, 7~ed., seleção e trad. excelente verbete em "Eingreifendes Denken" de Karen Ruoíl I , ""
Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 28). como dois verbetes úteis e esclarecedores sobre a "Brecht-l.lnh I'

44 Ver Prólogo, nota 19· 46 B. Brecht, "Schríften 1. 1914-1933'; in Werke, v. 21, p. 521.

218
1"11 1111 \1 por II\IXO ti' 111 li ti 111~1I ou lcs involvim .nto hisl( ri o, issumlndu "do '"1111\1.11 ,d""IIII'IIIII) nus t.imb m ti qu pr t nde pret nd u,
II 1'"11 I di lullll1l irnu d ornpl .xidad dial ti a im .nsáv I n que 11' os do [uc poli ' ,~'I 1-iuhrudo 'do que "quase" foi no passado.
1\1111 I li 1111(11' ti' "marxi m vulgar"
1\ ltu I~'t0, 110 ntanto, também pode ser invertida e contraposta ao mo-
dl'lo ti 11'1 ferrovias, m que algo que é reacionário gradualmente revela suas "Por um triz" (quase)
d 11111\ li 'li produtivas ou progressistas. Podemos também, particularmente
1111 dOllllnio das superestruturas ou dos "clássicos" literários e culturais, de- Os advérbios marcam a dissolução do provérbio, na medida em que este
1111111.11 1101'1 om O caso oposto, em que algo inicialmente progressista torna- desce à terra em todas as inumeráveis empiricidades do agora. A canção de
11',1, illI1. rio. r to é, por exemplo, o que Tatlow consegue descrever em sua Peachum já inscreveu os mistérios da invisível guinada linguística na pro-
,li ,I I ,\1) 111111 i11 a da peça fragmentária sobre Confúcio, ou seja, que Brecht posição proverbial inicial: as relações imaginárias althusserianas transfor-
1111111 1111Ii\ no ti (como Parmalee sugere) dos modos como os clássicos ou- mando o que retoma a suas representações, posições do sujeito, opiniões,
11111 I 1111 1111 progressistas: "Brecht propõe um Confúcio bem-sucedido que julgamentos, lugares de enunciação gradualmente entrando em campo, ins-
1\ 1111.1 '111 ic itar, mas que finalmente aceita a perversão de suas intenções talam-se no arcaico e impessoal objeto verbal.
1\ 11111111. tus iniciais: ele acompanha essa perversão com má consciência"," "Infelizmente" compunha um julgamento subjetivo, com a citação secreta
I lil I11 ' ht, as reformas de Confúcio são idealistas, mas empreendidas de da posição de um outro sujeito, embora imprimindo um pessimismo defi-
IlIlIdo I rogr ista: ele deseja melhorar a sorte dos camponeses retomando nitivo na avaliação do mundo. Agora um tipo diferente de advérbio, mais
11111 conjunto de antigas práticas culturais. Fracassa no primeiro desses obje- otimista e mais hesitante em sua própria temporalidade, vem assinalar o
tivos, p r m é bem-sucedido no segundo. Nesse sentido, então, os clássicos próprio clímax de Círculo de giz. Depois que a janela de oportunidade foi
('111 , ral são progressistas, apesar de idealistas e sujeitos à apropriação er- explorada com sucesso e a fatalidade trágica da história de classe começa
I 11'a por parte dos governantes. Esse é também o sentido no qual a sátira novamente a instaurar-se entre os desafortunados habitantes de Grusínia, os
I", -chtiana em geral e a sátira aparente dos clássicos (escrever em forma de eventos que vimos são projetados com imensa força e claridade microcós-
v 'I'SO etc.) são muito diferentes da costumeira ridicularização por atacado; pica em um passado lendário. E diz-se (após o julgamento, quando Azdak
n s, Lira brechtiana deseja ensinar uma lição sobre o idealismo progressista, desaparece e nunca mais se ouve falar dele) que as pessoas "não o esque-
-lo prende a um certo "momento da verdade" (para usar a expressão de ceram e, por muito tempo ainda, seguiam os preceitos de sua arbitragem":
II 'g I) desses mesmos clássicos cuja ineficácia necessita ridicularizar. Ela "Quase como uma breve era de ouro da retidão ou talvez devêssemos dizer
I' ja preservar um exemplo utópico do passado, um breve relance, não só da justiça" 48

daquilo que poderia ter sido - visto que os outros clássicos, os do marxismo, Pensar em uma "era de ouro" é ensaiar uma espécie de estereótipo utó-
.nsinam que os seres humanos podem apenas formular questões que estão pico; as duas palavras formam uma expressão única, que pode, então, mas
'111 condição de responder, e que a revolução moderna e uma reconstrução não de forma de todo surpreendente, ser caracterizada como "breve" e en-
m derna da produção social não são apenas possíveis após o desenvolvi- tão especificada como uma era de "justiça" Mas o que ressalta na passagem,
111 nto completo e a exaustão do capitalismo (enquanto saturação do mer- e dá a essa interpretação o seu sabor, preserva seu vigor como discurso

'17 Antony Tatlow, The Maske af Evil. Bem: Peter Lang, 1977. p. 402. 48 B. Brecht, Werke, v. 8, p. 185.

20 221
e como brevidade duma intcrvcn ão n próprto l '111'0, 1 I nluvrtnhn
beinah [quase], que mantém todas as hesítaçõ c r alistas S rundas int '11
ções dos grusinianos sobre este bêbado imprestável que é Azdak, também
sobre o paradoxo de uma era de ouro que não pode perdurar, ao mesmo
tempo que expressa a pungência da perda e a dor aguda pela própria pas-
sagem do tempo. Mas é assim mesmo, como os grous e os amantes: o verso
permite um investimento de reações antitéticas ao tempo e à mudança, que
registramos a um só tempo em dois níveis - o da perda e do medo, e o da
permanência e da celebração. Beinah por um triz transforma a linguagem
em bobagem ininteligível (como no refrão romântico da Ópera dos três
vinténs, citado acima, faz ou não, aqui ou lá), porém se interrompe antes de
fazê-lo, de tal modo que podemos registrar a união dialética desses opos-
tos, sua identidade e sua não identidade, tudo ao mesmo tempo. Entretanto,
aquilo que faz "quase" hesitar não é a qualidade da justiça, é a duração do
tempo, e o lamento utópico que colore a contemplação de uma "era de ouro"
que não durou mais que uma estação.

222
Modernidade

Mas há outra temporalidade de que precisamos tratar antes da conclusüo, 11111'

é o aparente cancelamento disso tudo (que ainda se baseava na temporulkhuh-


feudal e da experiência camponesa): mesmo o capitalismo aqui podcrlu Nt',

uma mera atividade mercantil não de todo incompatível com a desoncstldu.h


da caravana e a indiferença de exércitos mercenários que vasculham em II HIt\
as direções a subserviência das populações rurais. O que produz outra 111111111

no próprio conceito do Novo - agora não apenas uma presença diante di'
sas reviravoltas dialéticas atemporais, mas a irrupção de algo radicalmente
diferente, que é a emergência do Novum após o qual nada pode voltar li St'l' (I

mesmo - é a modernidade da própria máquina, que Brecht também saúdu


celebra. Este é sem dúvida o Brecht que endossa as "más coisas novas, prcf(',
veis às boas coisas velhas": é o Brecht do voo de Líndbergh' e das peças I'lIdl(l

No original, o autor usou "O voo de Lindbergh" e Lindbergh. Nesta edição, adotnmu
como título da peça "O voo sobre o oceano", conforme a edição brasileira, mas I1lll"llvl

mos o nome da personagem como citado por Jameson. Para publicação dessa peça, 11\"('1 lit
determinou a substituição de Os Lindbergh por Os Aviadores. Ver "O voo sobre () OU'I""'"
fônicas, o Brecht das antatas c voz 's em unlssuno.quc 'I -hrmu as ollqulst IS I 1111'1 \ 11 11111' li" I I '1,,,11 I W IV 1\ \11 (q'H' IIHtI t "ti, t' 1011'" ,1111 11111111

da máquina como um coro grego cuj ígnifi ad hist ri o foi violentam '111 ' .um 111 ,111 1'111 I) 111111111'111 ,,!1st 11110, Um 110111 111, UIIII 111 \11111111 di' 111111,

alterado; pois esse coro, embora necessariamente presente n fra asso ' na pois [unlqu -r iuu III\( 11 Vl'J I Ilutunndo I11ml stum 111 ntre os ill Idlto 11

morte de indivíduos - Lindbergh não cairá, vítima da força do ' no, uma r s da história, d .sd 'o 111\ .uso onjunt d lustras ti mad ira, ohr .\~ qllll
força ainda maior que a da Neblina ou a da Neve? E como entender plena- um dos irmãos Wrighl deit li um dia, até o arn açad r b mburd ,110 011 11

mente a morte de aviadores acidentados (na Peça didática de Baden Baden avião de passageiros blindado e compacto dos ano 1930 1 4 ,O Sp itt 01
sobre o acordo) ou os sacrifícios de Aquele que diz sim ou o militante conde- St. Louis é perfeitamente proporcional ao corpo humano, com 111\11 '11111 I

nado de A decisão? É verdade que máquinas pouco aparecem na rigidez do proporção áurea da Renascença. De fato, seria possível dizer qu a (dl'l \ [111

teatro Nô dessas últimas e mais desenvolvidas peças didáticas: mas o que per- tônica daquele outro índice de modernidade contemporâneo a I', () 111111

manece da tecnologia modernista/ futurista aqui é a sua própria rigidez, que motorizado, pois este abriga o corpo e adota a sua velocidade, pairando I IIdll

provém da peça radiofônica, em que o rádio como meio representa a máquina como exemplar único no elemento indiferenciado de nuvens e nevo ilro, 11111

que as vozes desprovidas de corpo não podem expressar. A pureza delas en- meio-termo entre um automóvel e um rádio. Esse ser móvel então 01' inn '11

quanto não corporificadas é a pureza da própria máquina, só aparentemente todo um complexo de temas, tal como o cavalo na sociedade clássi a:
inumana: o rádio faz as vezes do avião; seus efeitos modernizados consistem
na abstração da pura voz. Ainda não temos o tipo de análise do momento A pré-história do deus Poseidon mostra que antes de reinar no mar, um 1'0

breve do rádio, que as pessoas tão apaixonadamente preteriram pelo cinema seidon equino, Hippos ou Hippios, associava, no espírito dos primeiros 11 ,I '1111
por um lado e pela televisão, por outro: mas o modernismo de Brecht - e o como entre outros povos indo-europeus, o tema do cavalo a todo um 'Olllp( ti

próprio modernismo do seu momento histórico em geral - liga-se ao rádio mítico: cavalo - elemento úmido, cavalo - águas subterrâneas, mundo 11111'111111,

e às exigências de reconhecimento de sua singularidade formal como meio, fecundidade; cavalo - vento, trovoada, nuvem, tempestade.'

de suas propriedades fundamentais como arte específica pela força de suas


próprias qualificações, uma forma em que a antítese entre palavras e música É esta a modernidade brechtiana: o voa de Lindbergh não é apenas novu,
não mais se aplica, porém se ensaia e realiza uma nova simbiose dessas duas algo nunca visto anteriormente; ele surpreende a vacuidade da pr prlu N.I
dimensões anteriormente separadas. Ao rádio pode então ligar-se urna nostal- tureza, o reino deserto da altitude transoceânica, como o mundo anterior \11

gia produtiva, que é uma forma historicista de compreensão de toda essa era
(como a empregada em obras tão variadas como o romance de Vargas Llosa
trad. Eloisa Araújo Ribeiro, rev. filosófica Renato [anine Ribeiro. São Paulo: Brasitll'lI c'.
Tia [úlia e o escrevinhador, ou em filmes como Quiz Show), em concordância
2009 p. 142.
também com o gênio de Welles (cuja queda, em A marca da maldade, acon- 3 Jean-Pierre Vernant, As origens do pensamento grego [1962], 2~ ed. rev., trad. Isis BorH' 11

tece por meio de uma interferência semelhante à radíofôníca),' e de gerações da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2010, p. 15. O cavalo, evidentemente, também d 011 II 11

nobre na Idade Média e favoreceu a emergência do poder feudal. Mas os anacronlsüu:


também são adequados na outra direção do tempo. É assim que essa relação simhíótlc n

trad. Fernando Peixoto in Bertolt Brecht: Teatro Completo, v. 3. São Paulo: Paz e Terra, 1988, do ser humano com a máquina tem deixado sua marca e sua idelogia em nosso tempo 1"11
p.184. [N.E.] meio da figura do cyborg: de um material que agora prolifera, o texto que ainda pcrman 'C c'
2 "É também um presente sonoro, a voz do recitante, a voz em off, que constitui um centro central é naturalmente de Donna Haroway, "AManifesto for Cyborgs', in Simia/'ls, Cy/lCIlg
radiofônico, cujo papel é essencial em Welles," G. Deleuze, Cinema 2: A imagem-tempo, and Women. Nova York: Routledge, 1991.

226 7
aparecimento da vida: é assim que N vo .iro se dlriuc ao .orpo istruuho 1\1111111111 , I 11'111 I " 111I"llId 'I ('IH'II 11 'I 11111111' 11 IIl1ltl, pOI 11111 11111

que o penetra: 11\ '1110 \I 1111 I, \' "IIIIIVIIlIl'1I111 ti I111 quluu 'si 11" Is 1111 '111(' '1111\1111111111

dudc om 1 ploll\l, 10, No lIo.\o/,re () oceano, cssn trunsfonu I~ o ti 1111111

Eu sou o nevoeiro,e devecontar comigo ria-prima I1nILlI'n\ c li ur ItI I 'OIllQ um ato da prri xls orno 1''i\llsn'l1dllllln

Todoaqueleque viajasobreas águas,


1000 anos e nunca se viu Portanto eu lutocontra a Naturezae
Quem pretendesseatravessaros ares! Contra mim mesmo,
Afinal,quem é VOCê?4 Sejalá o que eu for,acreditenas tolicesque acreditar,
Quando voa, eu sou
Mas não apenas os elementos externos vêm ao encontro de Lindbergh ma- Um verdadeiroateu,
ravilhados e hostis; mesmo um elemento interno, a grande força natural do Pois 10 mil anos,lá
próprio Sono desafia-o como personagem, fazendo dele próprio não alguma Onde as águasse tornavam escurasno céu,
subjetividade heroica, mas antes um elemento em si, um nome. Por isso é Entre a luz e o crepúsculo,incontido,surgia Deus.'
uma ironia que Brecht tenha sido obrigado a mudar esse nome - cuja an-
cestralidade alemã certamente aumentava seu interesse e apelo europeu, as- Mas a modernidade do voo de Lindbergh é agora a deliberada" xpul 10 di
sim como uma nação centro-europeia imensamente ampliada e difundida todo e qualquer deus / onde quer que / Ele surja'" Secularização h rol a, '111111,

pelo espaço extraordinário do Novo Mundo - quando o aviador redescobriu como a marca do projeto do Iluminismo e a reafirmação de uma I1(1V I 1III
suas próprias origens pelo caminho errado no período de Hitler. O próprio humana, No entanto, o plural não usual do título definitivo - Der nll~ tll'l I 1/
título alemão da autobiografia de Lindbergh, Wir zwei [Nós dois], entretanto, denberghs [O voo sobre o oceano] - sugere até mesmo uma grande 1l0V dllll\'
sublinha a diferença entre essa simbiose modernista e o androide pós-mo- no que se refere à concepção modernista do sujeito: não apenas a ap I tlllI"
derno ou a síntese biológico-máquina, igualmente distinta da relação tradi- de substituição desse ator por todos os outros, como no paradigmn I, 1\\I
cional com ferramentas, do fazendeiro que ara ou a do trabalhador manual. da Lehrstück, mas a pluralidade desse actante, cujas palavras devem n 0111 \'1
Porém, modernidade significa produção, e um problema crueial é suscitado declamadas por um coro de meninos e meninas, ao qual deve ser acr se '111,Itll
pela produção simbólica de tais emblemas modernistas que apresentam a nas produções encenadas ou nas que optarem pelo gênero oratório a dl'sll"l
própria mídia como o suporte tecnológico do transporte e da comunicação: ção do ator que faz o papel de Lindbergh como "O Ouvinte",uma r rinç o di'
a ferrovia, o motor a combustão, o navio a vapor, até mesmo o próprio rá- alguma situação originária do rádio em que a suposta passividade c r' '(lI vi
dio, na forma como se integra nessa peça radiofônica da narrativa do voo dade do auditório de rádio são radicalmente invertidas, e o ato de audlçuo d'l
de Lindbergh. Para resgatar esse momento singular - não ainda aquele da peça violentamente redefinido como a práxis exploratória do próprio nvltultu
dissolução humana no computador, apesar de este marcar uma reificação na medida em que este produz o Novo arriscando-se a penetrá-Io li lut \I
da força de trabalho e a emergência da máquina enquanto tal a partir de com ele. Também aqui o Novum não é algum objeto extraoridnário, OlHO \'111
formas mais antigas de instrumento de trabalho mais adaptados ao corpo
5 Id., ibid., p. 175·
4 B. Brecht, "O voo sobre o oceano'; in Bertolt Brecht: Teatro Completo, v. 3, op. cit, p. 170. 6 Id., ibid., p. 175.

228 I)
tanta con cpçõ s d vanguarda sobr ti mod '1'111:<1l\,
inova 11ll\~lodo um 'I',tlwl' eJI! 1111'1\111\111\
1111111111111111
\1111
I vI. ohh'lllt'lKIIII '1\t1VIII\l'II111111
novo mundo de relações, como o novo mund da físl a d alil u ou () mundo IHII'I ON~V III 1IIIIdllld,' 11111
IUI\lIll ult '11!'lllvll (lIlIl,! l,ll'd.! 111111.1
fo/f:I'lI/p '!lI

novo da construção socialista, no qual o escritor e o leitor preci am pcn etrar "s .m 'onSl'qu 1111I~" 110pl' '111.). I c qualquer forma, S' li dlnlé'lll I ulu 111I 11
por meio da exploração audaciosa e da apropriação. primado da sltuuçuo, 'nl.\o os arzurncnt qu ai tu m 'll r 's~,ll' sobl 1111\1
dança e sobr O m d de fctuá-Ia, a afirmação dela, ou ti sua iIWOIII!,I!II,1111
mesmo a demonstração de que ela já se encontra aqui, em andam .nto, ('111'1"'
Factibilidade o saibamos, só será dialética se os argumentos variarem e d s r 'v 'ITIl! 11111111
dimensão do elefante do provérbio. A objeção, por exemplo, ti que I 11,1'11111
Será que fomos capazes, nas páginas precedentes, de exemplificar o conteúdo gia paralisa a iniciativa humana e encoraja uma rendição passiva ou 101ti 11
inerente, não só ao "método" de Brecht, tal como o vimos atuar nos mínimos ao predeterminado com certeza é apropriada, mas não parti ul~1I'11l111'11,1,
detalhes, desde as construções de enredo até o microscópico trabalho do artí- vante numa era a priori passiva ou fatalista (de qualquer forma, o 11)I\I'X1\\11
fice de palavras, como também daquilo que faz parte da própria dialética, pra- tem, sistemática e estrategicamente, oscilado entre os polos d Iatolts 1110 , tllI
ticamente como aquilo que a define e que lhe dá sua especificidade em relação voluntarismo) .
a outros métodos filosóficos ou visões de mundo? Teria que ser uma defesa Por outro lado, a demonstração estrutural de Marx, no apito], ti 11'111I
profundamente relacionada à de Hegel no que ele chamou o "especulatívo', gência de uma nova sociedade e de uma nova economia no int 'rlOI' d I v'
ou seja, o modo como a própria ideia de conceito contém em si sua própria lha, de uma necessidade interna daquela emergência que é compl '\iIlÚ' 1111
energia utópica, projeta um mundo "igual" ao conceito em questão, ao mesmo distinta de uma ruptura fundamentada na moralidade ou ap nas no d,' I'

tempo que passa um juízo sobre os mundos que ainda não se elevaram àquele pero - esse tipo de demonstração ainda pode ser útil para nós I 1111111111
nível. A mudança em Brecht se qualificaria, então, como um conceito especula- uma concepção de socialismo muito diversa da atual.
tivo precisamente daquela espécie: uma noção puramente formal que implica Entretanto, a celebração da mudança em si - seja na f rrn I dll 'J' 111,
e projeta seu conteúdo por meio de sua forma única. Quero frisar que isso não seja em algum outro cronotopo - pode se abrir a muitas outras dllvld I

é exatamente teleologia, mesmo reconhecendo que esse aspecto dos sistemas e suspeitas, particularmente em uma sociedade cujos ritm s 11111111
em questão foi caricaturado e desacreditado sob o termo teleologia tanto por cos atuais perpetuam-se e prosperam com base na mudança p irrn \I "111
Hegel quanto no marxismo. O erro é sem dúvida em parte uma confusão en- acumulação de capital, investimento e lucro, a dissolução d 'mpl' I

tre cronologia e essências hegelianas ou formas aristotélicas: definir a vocação estáveis e de empregos num fluxo de entidades novas e pr vlsórl \,' I
do mundo em termos da vida social coletiva e da produtividade planejada, a pletas de desemprego estrutural, com sua infraestrutura ulí ur 11 11111
redução do trabalho individual e uma visão do controle humano sobre a his- prometida com a revolução permanente em voga e com o imp irutlvo d,
tória não é predizer qualquer sequência particular de acontecimentos, e certa- gerar novos tipos de mercadoria, quando não, em crises mais 1'1'011111111
,
mente não é afirmar a "inevitabilidade" do desfecho (a história também pode com a invenção e a exploração de tecnologias de prod ução to! li111
\('1111
"terminar'; como na famosa afirmação de Marx, na "ruína das forças em luta").' novas. De fato, foi precisamente esse endosso vibrante a s imp r 1i 11
modernistas da inovação e da novidade pelo capitalismo do plls gU"1 I 1
que acabou fazendo mais do que qualquer outra oi a para I 'S \ a'lI I \I
7 K. Marx & F. Engels, Manifesto comunista [1848], trad. Maria Lucia Cumo. São Paulo: Paz
e Terra, 1998, parte I. o movimento moderno.

\1
23°
o Tao,portanto, colo a-se em rta l ns; o diant 'do I Iludi 111111181 )rl 'O POli \11111, I 1111" 11 ti I II1I 1 1 111111 111sturn dl' 11101'11' • II'W'IH 11\1111,11

dos modos marxistas de produção, aos quais s6 p de ser ajustad d f rma prohl 1111 .111 11111 11111 11111 IIIH' ('I!lr .ntarnos s. O llul I Os, nu I I 1I11t1 Itll

localizada; num ajustamento, porém, que não pode mais depender de Br ht dos opo 10 ,11 'WlllvlIl' pll:-Itlvoj • s tamb m linguístl os, no '1111' I ,I 11
para ser produzido. Outras suspeitas, entretanto, sem dúvida haverão de ligar- à valida I ' 16 ti I das proposi e à exclusão mútua d s us S 'ilUdo, ; I' li
-se ao existencial, tanto quanto ao tempo histórico: é uma forma de atravessar também cstéu ' na medida em que um aspecto da vida ontlnuud \ d I 1,11 I
com tranquilidade a perspectiva das mortes individuais, além de navegar pela morta é a sua percepção como estranha (fremd) mesmo qu por um 1'111 11111
incerteza das gerações e enfrentar aquela coisa muito peculiar que os teólo- ser vivo, seu estranhamento de si próprio e daquele ser. Finalm nt " rnu III
gos chamam de Esperança. Brecht não se furtou a essa dimensão inevitável dade intervém e intersecta toda a vasta paisagem sublunar, pr v nn 10 I1 I
de qualquer ideologia da mudança, como demonstram seções interessantes próprias questões linguísticas e dialéticas.
do Me-ti: Brecht pretendia forçar a questão de forma até mais aguda, 01110 1111 "

gestão que faz ao dizer que, "embora a morte puramente bioJ gi 'I do 11

E eu vi que nada estava tão completamente morto, nem mesmo o que havia mor- divíduo seja desinteressante para a sociedade, morrer deveria, p r m, 'I

rido. As pedras mortas respiram. Elas modificam umas às outras e causam modi- ensinado': 9
ficações. Mesmo a Lua, supostamente morta, está em movimento. Ela emite luz _ É provavel que essa seja menos uma aspiração à Montaign do til!
por estranho que seja - sobre a Terra, determina a trajetória dos corpos cadentes expressão de temas que envolvem A decisão, desse mesmo perí do. 1)\ 'I' 111
e as marés alta e baixa. E mesmo que a Lua só perturbasse uma pessoa, que só social, por outro lado, certamente se relaciona às questões da te nol > d,1 1 di
houvesse uma pessoa para vê-Ia, ainda assim ela não estaria morta, mas viva. En- modernidade tratada na seção anterior.
tretanto, de alguma forma,vi que ela está morta afinal; pois quando alguém reúne Neste ponto, entretanto, parece mais adequado inverter a qu 'sl \0 1" 1
tudo o que nela pode ser considerado vivo, tudo ainda é muito pouco ou irrele- guntando não o que a posteridade de Brecht deveria ser, mas o qu ' ,111 11111
vante, e portanto como um todo devemos dizer que ela está morta. Pois se não o sido de fato, e desencavar sua agora subterrânea influência s br () 11 11 I

fizéssemos, se não a chamássemos de lua morta, perderíamos uma caracterização mento contemporâneo, uma influência que parece ter sido esqu 'idll, 1111
específica, a saber, a palavra morta e a possibilidade de a partir daí nomear algo que é certamente o melhor testemunho de sua contemporaneida 1'.111111111
que de fato nós vemos. Mas, visto que já constatamos que ela também não está tras palavras, enquadrar os sofismas e as razões pelas quais Brecht s ri I !llllll
morta, somos então obrigados a conceber as suas duas caracterizações, e a tratá- para nós hoje em dia e por que deveríamos voltar a ele nas circunsu 11 \
-Ia como uma coisa morta "não morta', o que fica mais do lado morto, e em certo atuais parece hipótese em contraste com a demonstração concreto d ' ti 111'
sentido uma coisa que morreu, de fato, nesse sentido é uma coisa que morreu de fato "voltamos a ele" e que seu pensamento está hoje present m lod I
completa e irreparavelmente, ainda que não em todos os sentidos." parte sem que se mencione seu nome e sem que estejamos conscient di. 11
Meu interesse é tratar disso no quadro do assim chamado antifund I
cionismo e no antiessencialismo, por meio de alguns dos grandes t mn: II1
pós-estruturalismo. A figura que faz a mediação aqui já foi mencionada: «
8 B. Brecht, Werke. Grof3e Kommentierte Beliner und Prankfurter Ausgabe [doravante Werke 1, Roland Barthes, cujo profundo brechtianismo nem sempre foi reconh du,
ed. Werner Hecht, [an Kopft, Werner Mittenzwei & Klaus-Detlef Müller. Frankfurt:
Aufbau/Suhrkamp, 1989-98, v. 18, pp. 73-74. 9 Id., "Schriften 1. 1914-1933'; in Werke, v. 21, p. 402.

232
II
:111111111\('1111
ti ti til 111\l lu u-v '111'1111.\ 1111\11'11
',I 1111111111111 111111)',1
11\
teorização sobre os objetos de e tranharncnto em l rrnos protcll ngll Isll
dl,lo k IH'( Idll ,di 111111111
y,i\ hum in I: I ora " I pl'l'lllI' I \)olld 1111-
(1'11
cos, que teve uma fértil influência sobre a evolução do assim hama 10
estruturalismo de base linguística. (A outra dimensão da obra do jov '1)1
'x 'r" li 101'1;I 1,1111\11111 \ I '1l(,I<,l\(l,que mfeltlçu :rushn "si I I 011(11I"

Barthes - que conserva um imenso significado histórico -, seu trabalh I 'v -Ia a faz I' ols.ls d ' Iorma t talm ntc ntrária a S li, própr o 1111
sobre a história literária, que encontrou expressão lapidar em O grau zero re e scguran a p S' aI. Ag ra o ideal d c p ra ã todo o I'

da escrita, é antes de origem sartriana.) tranho poder de atração que era atribuído ao víci : os inSlinlo 1'11

Porém, como já indiquei mais de uma vez, o método de Brecht era um parecem ter sido apenas momentaneamente reprimid s p 10 pro '" o I

método e não um sistema filosófico (daí a adequação de se extrapolar suas civilização, encontrando-se prontos para irromper ante O m nor I r '\' 111

consequências para a linguística, como fez Barthes, ao invés de para esta O reverso é ratificado, então, pela espetacular palavra chr kltcl! I1 I I
ou aquela espécie reificável e ontológica de teoria social). A relação com a vel], que designa o horror de tal impulso ou instinto, e seu quas ' sul 1 1\\

natureza permaneceu crítica, apresentando-se ao mesmo tempo com as impacto sobre os mortais aterrorizados que o presenciam e qu s t 11\111\

características de uma rua de mão dupla. Eis por que devo sempre acres- vítimas de seus poderes. Entretanto, pergunta-se: não é novarn nte n "I

centar, como exemplo supremo do efeito de estranhamento, precisamente dade e terror" de Aristóteles? Ou pelo menos um Umjunktioni nll/~, 111\\\

o grande momento do Círculo de giz caucasiano, que tanto eletrizou as reestruturação radical, em que é a piedade de Grusha que in pira 110 11

plateias parisienses, e em que Grusha hesita antes de assumir o encargo do terror? Porém é precisamente tal reestruturação que muda tudo, I ols 1\ \tI

bebê ameaçado (herdeiro do governador deposto e portanto um evidente sentimos mais pena de Grusha como numa tragédia aristotéli a, '1\0 11

alvo dos revolucionários). A maneira como o cantor-come~tador glosa próprio terror - longe de refletir nossa empatia pelo herói trá i () 1\1\

essa hesitação é suficiente, e constitui em si mesma todo um programa: titui-se num tipo de tentação por alguma nova espécie de bondad ',011 'j I,

"É odiosa a tentação da bondade!"." Pois em nossas visões tradicionais so- a da própria práxis.
bre a natureza humana, a noção de tentação (transmitida pelo cristianismo Este é Brecht em sua dimensão mais utópica e salvacionista, ,"111

e suas teologias) normalmente centra-se no mal: são os instintos pecadores cativo que isso devesse ocorrer precisamente no contexto de uma dl~I1\111

que têm poder e se movem contra nossa vontade. Isso significa que "bon- protofilosófica acerca da questão da natureza. O argumento entã n: o "Il d '

dade" - entendida aqui como os instintos de cooperação em geral, aqueles que um antifundacionalismo e um antiessencialismo emergem dir tum 11(1

com os quais ideologias marxistas ou rousseauístas sempre procuraram destas primeiras dramatizações brechtianas da naturalidade e d S 'lIS I) \

contar - implica, inequivocamente, um componente de nossa natureza re- radoxos, mas de que a obra de Brecht alimenta de forma central a orr '1111'

lativamente fraco: um componente em risco permanente de ser subvertido cultural que conduz à ampla aceitação de todas essas posições.

pelas forças superiores da autopreservação e do desejo, e cuja superficia- Mas, paralelamente à questão da natureza, devemos voltar n SS() olh 11
lidade foi percebida um tanto quanto tardiamente na tradição pela noção para outra direção, frisando que a questão da práxis, atualmente multo di

freudiana de que ela (a "bondade") é sobretudo o resultado da repressão e famada pelo epíteto do "prometeísmo", com o qual se pretende cara t 'r'/, li

do superego. tudo, desde a poesia da primeira fase de Marx até a industrializa • () Si ti I


nista e os processos de modernização antiecológicos. Por um instant ti
rigimos nossa atenção ao "modernismo" de Brecht, em função de LI l'1I111

11 B. Brecht, Werke. v. 8. 116.


siamo futurista pelas novas tecnologias. Agora precisamos acrescentar oull o
XIX e o colonialismo britânico d m ç d s ulo "), Mas nt O ('lllllIlI I, ti 1111111' 1111111111 \I IIlt'l I I,IIH IIt PI' "pOIIII'I 111' o (llllhh 111'

("como Marx já observou") ele admite: ~l' n UIlIII 1(' 01 111111111 111111'( (l'~'\u: li li Indo {OI1\P,IIllll1allHI, tu 011111 ':

diz ,I, o (11'0111"11111 t't, \11' , ' S ' :lS obras do passa 10 'si lv 'r -m \1 ndu ViVl1

É menos fácil explicar o efeito que tais poemas produzem em nós mesmos. Apa- para nó ; mo se trutn ti' ti' lu" hist ri a u fil s fi a).
rentemente emoções que acompanham o progresso social sobreviverão por O qu qucro sugerir é quc a "produtividade" é sentido mnis I I'()/tllldo
muito tempo na mente humana como emoções ligadas a interesses, e no caso de de progresso em Brecht e que ela tem a ver com a atividad mquuutu 1111

obras de arte o farão mais fortemente do que seria de esperar, considerando-se Essa associação de produção e produtividade com a própria ativldad ' I (\1" I

que nesse Ínterim interesses contrários terão surgido. Todo progresso anula o a maneira mais adequada de redimir uma palavra tão e tigmattzud 1'1" '
progresso precedente, na medida em que por definição ele se move para além do designa valores contemporâneos e que é coerente com a noçã que Mil
precedente, ou, em outras palavras, ele atravessa-o e deixa-o para trás; ao mesmo tem do "trabalho vivo': que, por sua vez, retrospectivamente, lan a 1111, Nohll'
tempo, de alguma forma, ele usa seu predecessor para que este último seja pre- "o modernismo" das tecnologias em que se encontra mais abundam '111 'Ilk
servado na consciência humana em forma de progresso, exatamente como so- armazenado, sob a forma daquilo que Marx designou como "trabalho 11101 to"
brevivem seus resultados na vida real. Temos aqui um processo de generalização ou que Heidegger caracteriza como uma "reserva permanente" (B SlIJl/tI),'
da mais interressante espécie, um processo de abstração em permanência. Sem- Em geral, a luta entre as ideologias modernista e pós-moderni ta pode ,'I
pre que as obras de arte que nos foram legadas nos permitem compartilhar emo- caracterizada como aquela que se apresenta entre uma fetíchização ti li' I"

ções de outras pessoas de épocas passadas e de outras classes sociais, precisamos servas visíveis de energia - máquinas cujo trabalho armazenad alndu i'

supor que ao fazê-lo estamos compartilhando interesses que são realmente hu- aparente e que podem ser explosivamente reativadas, como com o moüu "
manos no sentido universal. Os mortos representam aqui interesses de classe que combustão - e uma infindável transmissão de sinais eletrônicos cujo rd I~ \11
propiciaram progresso. 15 com a energia humana é problemática e que se oferece, em vez disso, WIIHI
um imenso elemento novo em que atores humanos podem mergulhar, A plll
(E ele o demonstra com o contraexemplo da arte fascista que não se pode messa de Brecht confere ao efeito-V a capacidade de revelar a produtlvkl Id,'
pretender dotada de tais efeitos.) O que se pode entender por "progresso" humana latente mesmo nesta segunda espécie de tecnologia cibern I1 1'111
nesse sentido, e como ele pode ser associado à forma especificamente his- informacional; para liberá-Ia, por sua vez, como uma forma de pr dll~ \0
tórica da emoção? O exemplo da lírica imperialista é menos paradoxal do que é ao mesmo tempo uma forma de atividade. E se fosse apresentad I \I
que poderia parecer, uma vez que há um longo debate interno ao marxismo objeção de que esse processo implica uma apropriação dos pós-mod mos,
(e não apenas ao marxismo europeu) sobre os aspectos progressivos do im- enredado pelas velhas ideologias do Novo, por suas traduções de volta a UI11I'
perialismo no Terceiro Mundo ou no contexto colonial: que as energias an- forma "nova" do próprio modernismo, então precisamos também lernbr li
tissociais de, digamos, a "Canção dos Canhões" (da Ópera dos três vinténs), -nos das diferenças assinaladas entre um modernismo brechtiano (s ' fOI
pudesse ser positivamente avaliada em outros contextos nós já o sabemos isso mesmo) e o tipo estetizador canônico. Nesse caso, essa evoluçã \l o
desde as reflexões de Me-ti. O modo como outras espécies de emoções his- seria regressiva, e seria, de qualquer modo, a lição mais oportuna de Brc'hl,
tóricas ultrapassadas poderiam ainda preservar seu "valor" fica menos claro
16 M. Heidegger, Gesamtausgabe, v. 79: Bremer und Freiburger Vortriige. Frankfurt: Klo

15 Id., ibid., pp. 658-59; id., ibid., pp. 146-47. terman, 1994, p. 28.

240
pois uma era que se tornou autclosa a r '1 da própria pul.ivrn "pl'O!,ll'ssist i"
não se deve limitar a uma evolução por estágios dir lona Ia li umn SO j'
dade melhor, mas invocá-Ia sempre que a produção e a produtívidad st jarn
em questão. É paradoxal que a era atual deva ser ideologicamente dividida
por estes dois termos: os retóricos do mercado celebrando a produtividade
(mesmo que seja a produtividade do capital financeiro), enquanto uma nova
ortodoxia pós-marxista sistematicamente denuncia o conceito de produção
como inadequado para uma era de informação e comunicação, e de qualquer
forma impregnado do produtivismo stalinista e da exaustão ecológica da na-
tureza. Tentei mostrar que a concepção brechtiana de atividade transforma
as duas versões do conceito e repõe um frescor que exige uma caracterização
nova. Certamente ela tem seus precursores: antes de Marx, podemos pensar
em Goethe - de preferência o não canônico, o herético, o Goethe da corte de
Weimar; o Goethe admirador e leitor do então inominável e ainda escanda-
loso Espinosa, que proclamava: "Eu odeio tudo o que não serve para aumentar
a minha atividade intelectual': "Intelectual" gradualmente vai se transformar
em "coletivo" e atividade vai assumir uma dimensão histórica: é neste ponto
que a produtividade brechtiana assume seu lugar como uma forma de práxis
exemplar e ainda efetiva.

242
índice onorn

Adorno, Theodor 8, 19, 6o, 73, 94n, 186, 218n Berg, Alban 186
Agostinho, Santo 172 Bergson, Henri 68, 72-73, 194
Alighieri, Dante 166 Berlau, Ruth 155
Althusser, Louis 36, 40, 40n, 143, 143n, Beuys, Ioseph 37
149, 191,221 Blake, William 21, 44
Antonioni, Michelangelo 211 Bloch, Ernst 190n, 193
Aristóteles 40, 59, 64, 78, 80n, 100, 136n, 237 Bôll, Heinrich 84
Artaud, Antonin 38 Booth, Wayne 41, 4m, 92, 9211
Auerbach, Erich 81, 8m Bourdieu, Pierre 48, 235
Braverman, Harry 73, 73n
Bacon, Francis 173 Brook, Peter 38
Bader, Wolfgang 8 Brueghel, Pieter 64
Bakhtin, Mikhail 87, 175n, 192 Bukharin, Nikolai Ivanovich 171-73,
Balzac, Honoré de 31,62,212-13 177
Barthes, Roland 9, 28, 39, 39n, 40, 62, 65, 67, Burke, Kenneth 29
78, 78n, 79-80, 80n, 81, 86n, 90, 100, 121, Busch, Ernst 158
233-36 Butler, [udith 12m
Baudelaire, Charles 100
Bauer, Bruno 68 Camus, Albert 87, 88n
Beauvoir, Simone de 88-89, 89n Chaplin, Charlie 22, 38, 87
Beckett, Samuel zç, 37,72, 93-94, 114-15, Chopin, Frédéric III
178,186 Cícero, Marco Túlio 16
Benjamin, Walter 16, 20, 6m, 62-63, 63n, 75, Coleridge, Samuel Taylor 149
75n, 76-80 Comte, Auguste 67
Confúcio 30, 43, 155,160, 220 Gide, André 21, 87,141 Killkll,1111111/11I11 (17,11110
11I I , 11111110
I\ I, I I I, I 11,I \, I ,
Crumb, Robert 22 Godard, Iean-Luc 18, 37, 77,151,2 11 I uni, 1Illlllllllllt'II ,MI, 1111,
IIJ, 11\" JIIII 1 7,17 7 1,17711,IH'I, 111'1,1111111,
)1)11I)
Goebbels, Ioseph 217 Khlébnlkov, V'I '1111111 2 4 6, .I. lHI1,l14, 1(, IH, JJII, \'1, \1111
Danto, Arthur 181,182n Goethe, [ohann Wolfgang von 21,42, 8 I, Kicrkcgaard. S111''11100 2 I 32,2 " 38,2.lHn, \I) 'I
Deleuze, Gilles 27, 27n, 78, 85, 87, 90, 90n, 149, 215,242 Kipling,)o cph Rudyurd 2 M arthy, los iph 4
116, 164, 181,200n, 226n Gold, Mike 37 Kleist, Heinrich von 20n, 129, 167n Melvill , H rman 1
Derrida, [acques 115,115n,164 Górki, Máximo 71, 94 Kluge, Alexander 37, 129, 129n, 167n, 168, Merleau-P nty, Mauri 'I (,
Descartes, René 72, 72n, 73, 100, 144 Gramsci, Antonio 16, 20, 53, 63n, 73, 122, 168n Meyers, Gustavus 32, 2 5, .1.11)
Diderot, Denis 86n, 134 152,214, 214n Koestler, Arthur 156 Mittenzwei, W rn r 2611
Dimitrov, G. 171 Greimas, Algirdas [ulius 142, 142n Korsch, Karl ji, jm, 43, 45, 57, 218 Moliere 37,92, 128
Dõblin, Alfred 69-70, 81 Grotowski, [erzy 38, 64, 87, 94 Krabiel, Klaus-Dieter 96n Montaigne, Michel d 2 , ,\ \
Dos Passos, [ohn 87-88 Montesquíeu 66
Dostoiévski, Fiódor 36, 100, 191 Haacke, Hans 37 La Rochefoucauld, François de 147, 147n, Mo-Tsé 30
Dreiser, Theodore 207, 212, 212n Habermas, Jürgen 67, 82, 82n 182 Mouffe, Chantal nç, 11 n
Dupré, Louis 68n Haug, Frigga 190n Lacan, Iacques 30, 34, 84, 143 Müller, Heiner 18, u5, 151
Haug, Wolfgang Fritz 20, 20n Laclau, Ernesto 119,119n Musil, Robert 44, 72
Eagleton, Terry 59n, 135,135n Havelock, Eric 65n Lan-Fan, Mei 93
Eichmann, Adolf 33, 33n Hegel, Georg W. F. 10, 17,45, 67-68, 116-17, Lao- Tsé 109, 119,137 Nietzsche, Friedrich 10,42,85,101, I 1I
Einstein, Albert 131,177n 117n, 120, 120n, 151,157,162, 172, 172n, Lawrence, D. H. 30, 44 Norris, Frank 207,212
Eisenstein, Sergei M. 21,27, 27n, 63-64, 86n, 220,230,239 Lefebvre, Henri 37
108, 209, 209n, 210 Heidegger, Martin 10, 30, 30n, 40, 40n, 85, Lehrnann, Hans- Thies 8 Olivier, Laurence (Iord) H6, 110 11
Eisler, Hanns 25, 94, 191 88, 140n, 241, 241n Leíbníz, Gottfried 31 Oppenheírner, J. Robcrt 6,1\1,171, I \,

Eliot, T. S. 41-43, 43n, 44, 44n, 45-46, 178, Heller, Erich 41 Lênin, Vladimir Ilyich 36, 58, 73-74, 89, 153, 176-77
178n Heráclito 18 155-57,159-60, 176, 177n, 191,213 Ortega y Gasset, José 21,2111
Engels, Friedrich 49n, 89, 143, 150, 189n, Hitler, Adolf 26n, 32-33, 36, 161,211,215, Lenya, Lotte 25, 97
230n 217,228 Lévi-Strauss, Claude 115,149, 235 Passos, [ohn dos 87-88
Espinosa, Baruch de 175, 242 Hjelmslev, Louis 79 Lewis, Wyndham 102 Peixoto, Fernando 8
Hobsbawm, Eric 186 Loyola, Santo lnácio de 64, 86, 86n Picasso, Pablo 36, 214
Fernandez, Ramon 87 Horkheimer, Max 60 Lucrécio Caro, Tito 203 Piscator, Erwin 28, 210
Flaubert, Gustave 23, 70, 88, 108, 135 Huillet, Daniele 84 Luís XIV 140 Pia tão 65n, 203
Ford, Henry 73-74, 217,238 Lukács, Georg 8, 31,36, 46, 46n, 60, 61, 74, Po chu-yi 3m
Freud, Sigmund 22, 22n, 60, ôin, 75, 82, lbsen, Henrik 92 144n, 159, 191,213-14 Pope,Alexander102,202
82n, 149, 236 lonesco, Eugênc 29 Lutero, Martinho 42 Pound, Ezra 29, 32, 43
Frye, Northrop 92, 142, 166 Propp, Vladirnir 142
Fuegi, [ohn 26, 26n James, Henry 43 Mallarmé, Stéphan 149, 185n Proust, Marcel 44, J on, 14 41
Jarry, Alfred 22 Man, Paul de 41
Gadamer, Hans-Georg 15 Iolles, André 51,166-69, 169n, 187,187n, 194, Mann, Thomas 41 Rabelaís, François 175n, 192-
Galilei, Galileu 36, 109, 119,128, 138, 166, 194n,195-96 Maquiavel, Nicolau 58, 153 Ranke, Leopold von 81
171-77,230 Ioyce, [ames 70, 133,149 Marx, Harpo 22 Renoir, )ean 2 6
Gay, Iohn 202 Iuvenal ioz Marx, Karl ç, 14, 19, 22,30, 30n, 31-32, 35, Richardson, Mi hu 'I 9
Genet, Iean 199n 38,45-49, 49n, 50, 53, 7-58, 6 , 63, 6311, Rilkc, Rain I' Mnrln ,10, IJIJ

fi
Rimbaud, Arthur 29, 239 Ulbrlcht, Wull'" 611

Robbe-Grillet, Alain 62, 62n


Rõhrig, Christine 8 Vargas Llosa, Mario 226
Roosevelt, Franklin Delano Roosevelt 13 Voltaire 66
Rousseau, [ean-Iacques 100, 134, 236
Rubinstein, Arthur 111 Wagner, Richard 79, 193
Waley, Arthur 30n-3m
Sarraute, Nathalie 70 Wallace, Henry A. 34, 44
Sartre, [ean-Paul ôz, 65, 65n, 70, 87-88, 88n, Weber, Max 10, 36, 73-74, 80, 101
89, 100n, 121,12m, 199, 234-36 Weigel, Helene 26n, 97n, 171
Schiller, Friedrich von 81 Weill, Kurt 24-25, 202 indic d bl
Schoenberg, Arthur 94 Welles, Orson 226, 226n
Schopenhauer, Arthur 68, 68n, 79 Wilde, Oscar 134, 134n
Searle, [ohn 164 Willett, [ohn 14n, 42n, 59n, 63n-65n, 86n,
Shakespeare, William 37, 130, 158, 193 9m, 105n, ioên-rion, 119n, 122n, 136n,
Shaw, George Bernard 128, 207 139, 145n, 148n, 199n, 239n
Simmel, Georg 212 Wilson, Robert 115
Sinclair, Upton 207, 212 Wright, Orville 227 Alma boa de Setzuan, A (Brecht) 66, 102, 145, Coriolano (Brecht) 36, 129, 148, 'S7 H
Smith, Adam 31 Wright, Wilbur 227 166-67, 192, 204 ,
Sócrates 46, 152,203 Wright, Elizabeth 9 Antígona (Sófodes) 171 Decadência do egoísta [ohan FlltZ1'1 (111 ('( li,
Sontag, Susan 200n Aquele que diz não (Brecht) 95 incompleto) 151
Stálin, [osef 13,13n, 26n, 33, 36, 38, 53, Veats, William Butler 21, Z9 Aquele que diz sim (Brecht) 94-95, 226 decisão, A (Brecht) 28, 64, 94-' 6, , \'1, (I,
95-96,155-56, 159, 171,175n, 176-77> "Arbeitsplatz, Der" (Brecht) 20n 233
191-92, 237, 242 Zola, Émile 207, 211,21m, 212-13 Arturo Ui (Brecht) ver A resistível ascensão Diálogos de refugiados (Brecht) 1\1\
Stanislávski, Konstantin S. 64, 83, 86n, de Arturo Ui dinheiro, O (Zola) 211
109-10 Ascensão e queda da cidade de Mahagonny Duncíada (Pope) 102
Stein, Gertrude 111,rnn (Brecht) 24, 67, 135-36, 196, 196n, 204, 239
Steinweg, Reiner 96, 96n, 98 Assassinato na catedral (Eliot) 178 Eclipse (Antonioni) 211
Stevens, Wallace 44 Elegias de Buckow (Brecht) 20, '116
Straub, [ean-Marie 84-85 8aal (Brecht) 22-23,151,166,205 Elegias de Hollywood (Brecht) 35
Suvin, Darko 27, 28n-29n, 51,95 "Bateau Ivre, Le" (Rimbaud) 239 Encouraçado Potemkim (Eisenst in)
Swíft, [onathan 202 Beggar's Opera, The (Gay) 202 209
Bilhar às nove e meia (Bõll) 84 estrangeiro, O (Camus) 87, 88n
Tarbell, Ida 32 Burguês fidalgo (Molíere) 128
Tatlow, Antony 29n, 30, 30n, 58, 58n, 137, Galileu (Brecht) ver vida de Galil '/I
153,220, 220n Cabeças redondas e os cabeças Cesta romanorum 140
Taylor, Frederick W 73 pontudas, Os (Brecht) 32-33
Tretiákov, Sergei 63 chinesa, A (Godard) 18 Hamlet (Brecht a partir de Shakcsp 'l\J'!')
Trótski, Leon 13 círculo de giz caucasiano, O (Brecht) 129, 137,148, 148n, 149
Tsé- Tung, Mao 13,18, 36, 191 51, 146, 148, 166, 190, 192, 221, 234, Hamlet (Shakespeare) 128
236,238 Henrique v (Shakespeare) 128
Histórias do sr. Keuner (Brecht) 150-52, 13311-3411,18411, 19 11, 197, ic 711,
154-55 198,222
homem é um homem, Um (Brecht) 113, Oresteia (Ésquilo) 166
132,2°4 Outubro (Eisenstein) 209

Jae Pleischhacker in Chicago (Brecht) Paixão (Godard) 206n


206 Peça didática de Baden Baden sobre o
acordo (Brecht) 226
Kuhle Wampe (Dudow) n 191,206 Pequeno Organon (Brecht) 59, 176
poder das emoções, O (Kluge) 168
Lesebuchjür Stiidtebewohner (Brecht) 216
linha geral, A (Eiseinstein) 210 Quiz Show (Redford) 226

Madame Bovary (Flaubert) 135 Resistível ascensão de Arturo Ui, A (Brecht)


Mãe Coragem e seus filhos (Brecht) 211,214
37,70-71, 85, 129-3°, 132,166, 192, 204, romance dos três vinténs, O (Brecht) 20n,
214,234 67, 102, 132, 2°4, 2°7, 213
mãe, A (Brecht) 35, 106, 208 Romance dos Tuis (Brecht) 10
mãe, A (Górki) 71, 94
Mahagonny (Brecht) ver Ascensão e queda Santa [oana dos matadouros, A (Brecht) 32,
da cidade de Mahagonny 66,103, 132,204, 207, 211,213,215n
Maison Nucingen, La (Balzac) 213 selva, A (Sinclair) 212 •
marca da maldade, A (Welles) 226 Sister Carrie (Dreiser) 207
Marathon Man (Schlesinger) 110
Marquesa d'O (Kleisx) 167n Tia lúlia e o escrevinhador (Vargas Llosa)
Máximas (La Rochefoucauld) 147, 182 226
"Menina afogada" (Brecht) 23 Terror e miséria do Terceiro Reich
"Memórias de Maria 1\' (Brecht) 186, 196 (Brecht) 28
Me-ti, ou o livro das reviravoltas
(Brecht) 10, 14, 14n, 20n, 53, 53n, 57, 57n, Ulisses (Joyce) 70
89, 89n, 150, 152-53,155,159-60, 162, 165,
232,240 Vapor Willie, O (filme) 23
"velha senhora índigna.A" (Brecht) 19n
Na selva das cidades (Brecht) 151,204, vida de Einstein, A (Brecht, fragmentos)
210 13°
não reconciliados, Os (Straub) 84 Vida de Galileu (Brecht) 109, 128, 130-31,
negócios do senhor Júlio César, Os (Brecht) 158,171,175,177-78,192
19n,214 Vie est à nous, La (Renoir) 206
voa sobre o oceano, O (Brecht) 94, 225n,
Ópera dos três vinténs, A (Brecht a partir 228-29
de Gay) 22,32,47, 47n, 83, 101, 113,132,

250

Você também pode gostar