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QUANDO SE É O OUTRO

reflexões sobre o conceito de diferença sociológica em Frankenstein

Considerado o primeiro clássico de terror, lançado em 1813 aos vinte e um anos por
Mary Wollstonecraft, sobrenome de sua mãe, filósofa e educadora feminista Mary
Wollstonecraft, mas por questões matrimoniais ou de prestigio social aderiu ao sobrenome
do marido Shelley. A obra quando lançada as luzes da nossa contemporaneidade não é mais
um conto de terror, soa como um grito de desespero, de luta por reconhecimento de um
sujeito, produto de um jogo de interesses, jogado sozinho em mundo de completa
desigualdade. Contudo, apesar de monstruoso, o desejo inicial do monstro, no lugar de
outro​, não era o de ser a antítese do homem, a maldade em si próprio por ser criado
artificialmente, ainda que ele seja um mecanismo ou organismo artificial, é dotado de
sentimentalismo e racionalidade.
Neste ensaio, pretendo a partir da visão de Walter Benjamin de ​zivisilizationkritik ​do
mundo romântico(1) refletir sobre as relações sociais da ciência e da tecnologia a partir do
conceito de ​différance utilizado na sociologia contemporânea para apresentar os processos
de sujeitação sofridos pelo personagem, no sentido de ser e sentir-se o outro. Este “outro”
que tratarei aqui está denotado no sentido de diferença ​dos corpos individuais, ou seja, ele
excede de sentido que não foi, nem pode ser significado e representado nas diferenciações
binárias que regem o mundo tal como as massas estão acostumadas, ele não se enquadra
no projeto social da nova anatomia política do Estado Moderno.
Será possível ser Frankenstein um ponta pé inicial na discussão sobre corpos técnicos? Em qual
medida essa narrativa sugere que é possível reproduzir em laboratórios novos seres? A discussão não é
nova na literatura científica (HARAWAY, LUNNA, KIM HOU, et al) e mesmo na literatura de ficção
(HOUXLEY, OWNWELL, LOYOLA BRANDÃO). Entretanto, se faz importante este ensaio pois, é
possível observar em obras literárias como ​elementos materialistas históricos (MARX), em grande
parte indispensáveis à análise, fazem do culto a ciência uma de suas contradições
tornando-a a força mágico-religiosas do capitalismo, do desenvolvimento e do progresso.

1.1 – Do criador a Criação.


Em sua chegada na Universidade de Ingolstad ao relatar seus conhecimentos
alquímicos Victor foi severamente repreendido em nome da ciência por um de seus novos
mestres, pois os antigos pensadores, alquimistas e empiristas “prometiam tudo, mas nada
realizavam. Os mestres modernos prometem muito pouco[...], mas esses sábios – ​os
cientistas – têm conseguidos milagres. Eles penetram os recessos da natureza e mostram
como ela funciona nos lugares mais ocultos” (p. 52. grifo meu). Esta imersão no universo da
ciência, para Benjamin seria a condução da humanidade para a “casa do desespero”, ou
seja, o processo de secularização e desencantamento do mundo, já descritos por Weber
transfeririam as normas de regime religioso ou monástico ao regime civil científico, e as
pessoas ao regime secular, leigo. Isso nos indica a “ideia de que a vida cotidiana na
sociedade moderna é 'produto de um mecanismo artificial asqueroso' [...]” (Löwy. p.13), ou
seja, o desenvolvimento científico no poder da burguesia inventou novos dispositivos de
diferenciação: concepções de mundo, teorias raciais, metáforas políticas, humanas e
filosóficas” (Benjamin ​apud​ Löwy. p. 15).
A parte inicial da obra (capítulos I - X) apresenta em tom cético o pensamento utópico,
reforçando a universidade como um dispositivo de progresso, os indícios de uma tecnologia
moderna de controle biológico do corpo se mostrava promissora à Victor levando-o a investir
nesse empreendimento que, para ele “constituíra a preocupação e o desejo dos homens
mais sábios, desde a criação do mundo” (p. 57), ou seja, era a possibilidade de refutar a
ideia de que somente deus pode dar a vida e socializar um primeiro objeto que foi o corpo.
Mas um outro corpo, diferente. Diz ele:
Quando me vi com aquele poder tão espantoso em minhas mãos […], quando
pensava no progresso que todos os dias se faz nas ciências e na mecânica
[…] iniciei a criação de um ser humano […] mas contrariamente à minha
primeira intenção, faz o ser de uma estatura gigantesca, isto é, com cerca de
2,40 metros de altura e proporcionalmente largo” (p. 59)

Composto por restos mortais de corpos putrefatos e técnicas que a ciência atual talvez
ignore por questões éticas e morais, em uma noite de novembro, e aqui chegamos ao
primeiro ponto que separar as naturezas do personagem dos demais humanos. Ele é um
projeto que comprova que é possível gerar vida completamente desvinculada reprodução
sexuada, esse ponto é a primeira circunstância que o separa anatomicamente da
humanidade. Seu modo peculiar de vir ao mundo é mediada por uma ciência que não mede
fronteiras entre natural e artificial, sendo uma ilusão de ótica a maior barreira para diminuição
de preconceitos e racismos.
Assim como muitos recém nascidos, também é abandonado por seu criador,
Frankenstein completamente assustado e foge chocado com seu feito, e consequentemente,
entra em um estado de auto mutilação mental. Mas, por que tanto horror ao ver o próprio
desejo concretizado, a obra realizada e escupida em sua (im)perfeição? Seria um “produto
de um mecanismo artificial asqueroso, cujo núcleo é governado por Satanás” (Benjamin ​apud
Löwy. p. 13)?

1.2 - “​Not it, is He”


Entre os capítulos XI ao XVI, o monstro apresenta sua trajetória que não o diferencia
de muitos outros indivíduos modernos no sistema mundo vigente (modernidade): perdido,
desregulado e deslocado. Mary Shelley, nesta parte da narrativa, insere personagens
coadjuvantes, que servirão de apoio ao outro compreender a vida. Estes outros personagens
convivem ​com um estilo de vida que inclui valores morais e religiosos, higiene pessoal e a
forma de preparar os alimentos, condutas corporais, expressões como o riso e o
aborrecimento, o controle dos fluídos corporais, ou seja, conforme descrito por Elias (2013),
em um processo civilizador, ou seja, reproduzindo de forma automata os aspectos de uma
sociedade “cortês” e disciplinada à “boas maneiras”. Essas características rapidamente se
tornam aspectos essenciais para qualquer pessoas que estivesse disposta a negociar e
socializar com os outros​, mas a exclusão dele desse meio, de imediato o transforma naquele
outro.
Os vegetais nos jardins, o leite e os queijos que eu via dispostos nas janelas
de algumas dessas casas despertaram o meu apetite. Penetrei numa das
melhores, porém mal havia transposto a porta quando as crianças gritaram, e
uma mulher desmaiou. Toda a aldeia se levantou; algumas pessoas fugiam,
outras me atacavam, até que, seriamente ferido por algumas pedras e outros
objetos, fugi para o descampado. (p. 116)
A modernidade e a internalização dos costumes reguladores e generalizantes como o
medo urbano, associados a sujeira, à morte e a contaminação recorrentes de todo um
processo disciplinar devido à reestruturação do lugares de viver por causa da peste
bubônica. O personagem em sua natureza está impedido de participar da cultura (ainda em
transformação do antigo para o novo regime). Sua imagem gera tanta repugnância entre os
corpos dóceis que lhe resta apenas o isolamento e solidão.
Rousseau ​em seu fundamental “discurso sobre a origem da desigualdade” ao
apresentar o paradoxo entre o ‘Ser e o Parecer’ aponta o conhecimento como um “jogo de
representações”, no qual a “humanidade” passou por uma longa trajetória em busca da
liberdade e da independência. Na criação de Frankenstein esse paradoxo também está
posto, pois a criatura parece ser algo que não é e é algo que “nem de longe” aparenta ser
A frase grifada pode ser Descobri também outro meio de ajudá-los em seus trabalhos. Vi que o rapaz
escrita de uma forma passava grande parte do dia ocupado em apanhar lenha para a lareira e
mais coesa
assim, durante a noite, muitas vezes, eu pegava suas ferramentas, cujo uso
eu aprendera rapidamente, e trazia para casa combustível suficiente para
vários dias. (p. 121)

Na passagem acima o personagem demonstra destreza aos trabalhos brutos e ao


mesmo tempo empatia pelos camponeses e ainda mais, pode trabalhar a noite, carregar
peso sem esforçar-se muito para ajudar os demais, pode-se pressupor que seu tempo é
diferente do tempo dos outros organismos. Para Rousseau o ser em sua essência tem como
qualidade a transparência e o parecer, que é movido pela mecânica das paixões, obscurece
as disposições do coração, ou do ser enquanto em si mesmo. O personagem não possuí um
ser, pois não se parece com os demais e seu parecer é diametralmente oposto às
consideradas perigosas disposições das emoções. Ele é racionalmente iluminado, pois aos
poucos, desenvolve aptidões completamente humanas, como observar e aprender.
Oh, que coisa estranha é o conhecimento! Uma vez que alcançou o cérebro,
agarra-se a ele como o líquen numa rocha. Às vezes, queria esquecer tudo e
nada mais sentir, mas aprendi que só havia um meio de vencer a sensação da
dor – a morte - , um estado que eu temia embora não o compreendesse.
Admirava a virtude e os bons sentimentos e amava os modos gentis e as
qualidades delicadas dos meus companheiros daquela casa, mas estava
impedido de manter quaisquer relações com eles, exceto furtivamente, quando
não era visto nem conhecido, o que em vez de me satisfazer, aumentava o
meu desejo de me tornar um dos seus. (p. 130-131)

A reprodução comum, do dia a dia, dos costumes, o ​modus vivendi​, das tradições e
das constituições parecem estar impregnadas nos indivíduos e, mais que isso, são invisíveis,
assim como os fatos sociais explicados por Èmile Durkheim, externos, coercitivos e
generalizantes. Neste trecho, podemos observar que ele foi afetado pelo estilo de vida, que
lhe parecia natural, não contudo a ele.

1.3 – Humanismo x Racionalidade


O personagem é a representação total de seu poder criador – Frankenstein – e ainda
que seja um monstro é mais ​humano que seu criador. A descrição de sua vivência, o sentir
dos primeiros fenômenos naturais como fome, frio, medo, dor, etc e a percepção dos efeitos
sociais como estigmatização, preconceito, não reconhecimento e afastamento da civilização
não impediram o personagem de ser menos humano, conforme relata sua trajetória até o
momento de encontro com seu criador. “Maldito, Maldito Criador! Por que eu vivi? Por que
não extingui eu, naquele instante, a centelha de vida que você tão desumanamente me
concedeu?. Não sei”. (p.146). Reclama da injustiça de não ser aceito, de não ter com quem
compartilhar momentos.
Minha hipótese é de que a racionalidade levou Victor a triunfar sobre seu estudo e
morrer de desgosto por isto. E de que a humanidade levou o monstro a tornar-se “bom”,
entretanto, a diferença dele dos demais o impediu de levar essa ideia a adiante. ​O
humanismo ocidental foi um grande movimento cultural intelectual da renascença, registrado
na literatura, esculturas, dramaturgia e em tantas outras fontes, estruturou toda a
subjetividade do indivíduo histórico e seus processos sociais como o afastamento da
natureza e o início do amor próprio e do orgulho. Em sua própria perspectiva, o personagem
racionaliza empiricamente depois de ter sido estigmatizado/ classificado como uma criatura
subversiva por seu próprio criador.
As palavras levaram-me a olhar para mim mesmo. Aprendi que os mais bens
estimados pelos seus semelhantes eram uma alta e imaculada linhagem,
unida à riqueza. Uma só dessas condições era capaz de fazer um homem
respeitado, mas sem nenhum ele era considerado, com raríssimas excessões,
um vagabundo e um escravo destinado a gastar suas energias em proveito de
uns poucos privilegiados! E que era eu? (p.130)
Uma vez que encontrará gênese, era necessário alguém com quem compartilhar o
tempo, ainda que o tempo dele fosse diferente

Em Conclusões filosóficas, cabalísticas e teológicas de Giovanni Pico della Mirandola:


"... A natureza dos outros seres, uma vez definida, é constrangida entre os
limites prescritos pela nossa lei. Tu porém não és constrangido por nenhum
limite, a fim de que através de teu livre arbítrio, nas mãos do qual te pus, tu
mesmo o definas. Coloquei-te no centro do mundo, para que possas observar
mais facilmente tudo o que existe no universo. Nem celeste nem terreno, nem
mortal nem imortal te criamos, a fim de que possas, como um livre e
extraordinário escultor de ti mesmo, plasmar a tua própria forma tal como a
preferires. Poderás degenerar-te nas formas inferiores, que são animalescas;
poderás, segundo a tua decisão, regenerar-te nas formas superiores, que são
divinas”.
Para mim ficou claro o pq dessa citação dentro do texto, ela me ajudou a concluir o pensamento que você construiu nesta
parte do texto, mas acho que ela pode ser colocada aqui de maneira mais orgânica.

Conclusão – O Multifacetado de Frankenstein

Algo multifacetado é relativo à alguém que possuí características peculiares e


variadas, assim como o personagem carrega na narrativa. Você já não se sentiu essa
criatura? Pois, me parece que muitos já se sentiram como ele por que muito que o
personagem "sofre" por causa de ser diferente é sofrido por muitos de nós em diversas
situações. Quando um negro é fortemente abordado pela polícia em um bairro nobre, em um
jantar não saber usar os talheres ou falar sobre vinhos saborosos. Victor era de uma família
muito bem estabelecida, ele foi preparado para o que lhe esperava na universidade ainda
que isso fosse a causa de seu infortúnio, contudo, do começo ao fim ele sempre foi o mesmo
Victor, da família Frankenstein. Sua criação, contudo, devido ao rápido processo de
racionalização e humanização e experiência multicultural aprendeu como ser por meio de
costumes comuns e práticos, logo, isso não o tornava preparado para o mundo dos
negócios. Isso o torna multifacetado, com no mínimo duas, uma a que ele tem, horrenda e
assustadora e outra que a voz, por onde, se ele fosse ouvido, hoje, teríamos que parar para
ouvir.
“Complexo de Frankenstein” é nos romances de Isacc Assimov o medo de seres
humanos artificiais. Victor sofre desse mal, o monstro, contudo não, sofre pela falta de
humanidade da própria humanidade. O monstro não tem nome porque ele é multifacetado e
a partir dele é possível produzir uma abordagem sistêmica em torno da questão da
diversidade.
Mas muitos professores ainda não aceitam pobres na universidade. Não me digam
que alguns professores não sentem nojo de alguns alunos. Fenômenos de reprovação em
massa, altos índices de transtornos psicológicos e mentais, os alunos sabem os que os
professores falam pelos corredores e até mesmo em salas de aula e posso garantir que não
nada agradável. Ainda que a ação afirmativa consista na “outorga aos grupos
marginalizados,de maneira equitativa e rigorosamente proporcional, daquilo que eles
normalmente obteriam caso seus direitos e pretensões não tivessem esbarrado no obstáculo
intransponível da discriminação” (Gomes, 2001. p. 67-68)
As políticas de ações afirmativas são um primeiro e importante meio para todos os
estudantes com pouco capital cultural se equalizem, ainda que hegemonicamente, de forma
intelectual, sem perder suas raízes. Esse capital cultural de que falo é exigido intra
subjetivamente pela instituição que dificilmente reconhece que toda a história das
desigualdades no Brasil. Uma das afirmativas é de que a universidade está mais colorida, e
mais multicultural, com indivíduos plurais e com diferentes trajetórias.
Neste sentido, teriam nossos professores um tipo de complexo de Frankenstein em
virtude de alunos multifacetados?

As redes sociais dispõe de mais de diversas opções de gêneros performativos, a


regulação de gêneros está cada dia mais em debates e cada dia as pessoas se atentam para
como vão performar seu eu coletivo. Esse, eu na tela todos, é também um dispositivo
normalizador, que tem includo centenas de pessoas obesas, negros, mulheres, deficientes
físicos e grupos minoritários a pensar a seu lugar e sua questão no mundo das ideias e
contribuir com avanços sociais tão necessários.

1 Para Benjamim o romantismo não é apenas uma escola literária ou reação contrária a
revolução francesa, mas é uma forma de sensibilidade que cerca todos os campos da cultura
de Rousseau até hoje, “um cometa cujo 'núcleo' incandescente é a revolta contra a
civilização capitalista industrial moderna”
3 - tal como fez Harold Bloom texto disponível no posfácio na edição de 2013 do romance
impressa pela L&PM Pocket, destinado à alunos de quinto ano do governo do Estado de São
Paulo,
Bibliografia
Andreia de Oliveira (2015). ​«Conheça os robôs da Literatura»​. ​Editora Escala​. Conhecimento
Prático Literatura (60)
Há uma bibliografia pendente aqui eu imagino.

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