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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MATHEUS HENRIQUE VOSGERAU

A RELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA NO ESTADO MODERNO E O PROCESSO DE


CONSTITUIÇÃO DA CONSCIÊNCIA: ANÁLISE DAS CONTRIBUIÇÕES DO
MARXISMO E DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

CURITIBA
2017
MATHEUS HENRIQUE VOSGERAU

A RELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA NO ESTADO MODERNO E O PROCESSO DE


CONSTITUIÇÃO DA CONSCIÊNCIA: ANÁLISE DAS CONTRIBUIÇÕES DO
MARXISMO E DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

Monografia apresentada como requisito parcial para a


conclusão do Curso de Psicologia, do Departamento de
Psicologia, Setor de Ciências Humanas da Universidade
Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Graziela Lucchesi Rosa da Silva

CURITIBA
2017
A todos que se empenham na construção
de uma vida melhor para todos
trabalhadores
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Prof.ª Graziela Lucchesi Rosa da Silva, pela incrível dedicação,
disponibilidade e suporte durante toda a construção dessa monografia e desse ano. Sua
orientação foi decisiva no processo de uma produção com um norte crítico, visando a
emancipação humana, e sempre será fundamental nos passos que trilharei futuramente;

Ao Prof. Me. Tiago Morales Calve, que aceitou prontamente compor minha banca, pela
supervisão, orientação e amizade despendidas esse ano, a humildade e o afeto com que me
auxiliou durante esse percurso serão sempre aspectos ímpares em minha formação que levarei
comigo;

Ao Prof. Dr. Vilson da Mata, pela orientação na construção de meu projeto de monografia,
pelos conhecimentos dispensados nesse ano no NUPEMARX, e pela honra de compor minha
banca;

A meus pais, Ciro e Séris, pelo amor com que me criaram, por todo apoio na construção de
minha vida e por nunca permitirem que eu deixasse de acreditar em mim mesmo. Obrigada por
todo esforço, paciência e carinho que sempre dedicaram a mim e a meu futuro;

À minha irmã, Larissa, que mesmo sendo minha irmã mais nova, é meu grande exemplo e
orgulho. Obrigada por toda cumplicidade e compreensão nessa etapa de minha vida;

À minha família, que, direta ou indiretamente, nunca deixou de me apoiar desde minha infância;
pelo amor e alegria com que preencheu minha história, obrigada;

Às amizades eternizadas no curso de Psicologia, Ari, Stefany, Helo e Leo, o honesto afeto e
companheirismo que construímos durante nossa formação me permitiu chegar até aqui e ter
condições de seguir em frente, cada dia ao redor de vocês foi fundamental;

Às companheiras e companheiros de estágio nesse ano, em meio ao peso da carga acadêmica,


a presença de vocês tornou mais leve nossas atribuições;

Aos companheiros de aluguel, Miguel, Rui e Bea, que na cotidianidade da vida adulta me
apoiaram com sua paciência, apoio e carinho, permitindo-me encarar sempre um dia após o
outro;

A todas e todos que, de alguma forma, cederam seu tempo, sorrisos, e aprendizados para minha
formação, obrigada honestamente;

À minha companheira, Sofia, por me ensinar as sutilezas da construção de uma vida juntos, a
cumplicidade em uma trajetória sem igual, pelo apoio nos momentos mais difíceis e a partilha
dos mais alegres e tudo mais que jamais poderei expressar. A ternura e amor com que envolveu
nosso companheirismo está presente em cada uma de minhas palavras, obrigada.
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas alucinações e
[espera.

O tempo pobre, o poeta pobre


fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.


Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.


Quarento anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres, mas levam jornas
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?


Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belo, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.


Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvem maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em
[pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
[ódio.

Carlos Drummond de Andrade (A flor e a náusea)


RESUMO

O presente trabalho objetivou analisar os aspectos da dimensão política na constituição da


consciência, em sua perspectiva contemporânea sob a égide do Estado moderno no modo
produção capitalista. Compreendendo a dimensão política como essencial à atividade humana
e inerente ao ser social, resgatou-se a construção do pensamento teórico basilar ao fundamento
do Estado moderno, como expressão ideal do desenvolvimento das forças produtivas da
sociedade e das relações sociais erigidas em seu entorno, por meio da análise dos principais
aspectos das teorias produzidas por três pensadores jusnaturalistas centrais a esse movimento:
Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau; contrapondo-os às principais categorias
da obra de Aristóteles sobre a política. A crítica marxiana – e de marxistas que atualizaram esse
constructo – é, então, resgatada como a apreensão da questão da política e do Estado moderno
sob um viés crítico do materialismo histórico dialético. Apreendendo uma perspectiva de
antagonismo de classes, a questão da propriedade, do pauperismo e da emancipação política e
humana é analisada dentro da dimensão política em seus limites e potencialidade no Estado
moderno. Por meio da teoria da Psicologia Histórico-Cultural, depreendeu-se desse movimento
as características fundamentais para a constituição da consciência social e individual,
analisando como a dimensão política e o papel do Estado moderno se implicam nesse processo,
concebendo-os em suas limitações, por meio do processo de alienação e da ideologia
dominante, e em suas possibilidades, como instrumentos de uma mudança efetiva na ordem
social alçada à emancipação humana.

Palavras-chave: Política; Estado; Marx; Psicologia Histórico-Cultural; Consciência


ABSTRACT

The present work had as objective to carry out a bibliographical analysis of the theoretical
archive available about the political dimension aspects on the conscience constitution, on its
contemporary perspective under the aegis of modern State on the capitalist production mode.
Understanding the political dimension as essential to the human activity and inherent to the
social being, it recovered the construction of the fundamental theoretical thought of the
foundation of the modern State, as the ideal expression of the development of the societary
productive forces and of the social relations constructed on its surrounding, by the analysis of
the main aspects of the natural law central thinkers’ theories: Thomas Hobbes; John Locke;
Jean-Jacques Rousseau; counterpointing them to the key categories on Aristotle’s work on
politics. The Marxian – and other Marxists that updated this construct – critique is, then,
recovered as the apprehension of the politics’ and modern State’s question under the critical
bias of the historical dialectical materialism. Grasping a perspective of classes’ antagonism, the
question of property, pauperism, and political and human emancipation is analyzed inside de
political dimension on its limits and potentialities on the modern State. With the Historical-
Cultural Psychology’s theory, it perceived from this movement the fundamental characteristics
for the social and individual consciousness constitution, analyzing the implication of the
political dimension and the modern State’s role on this process, understanding them on their
limitations, by the alienation’s process and dominant ideology, and on their possibilities, as
instruments of effective change on social order aiming human emancipation.

Keywords: Politics; State; Marx; Historical-Cultural Psychology; Consciousness


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9
1 O PENSAMENTO POLÍTICO E A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO ......... 15
1.1 Linha histórica do pensamento político à formação do Estado burguês .............. 18
1.2 Pólis grega e o modelo aristotélico ............................................................................ 20
1.3 Jusnaturalismo e Hobbes, a necessidade do Estado ................................................ 23
1.4 O liberalismo proposto universal em Locke ............................................................ 29
1.5 Rousseau e o princípio de crítica à emancipação política burguesa ...................... 32
2 A CONCEPÇÃO DE POLÍTICA EM MARX E A EMANCIPAÇÃO HUMANA
................................................................................................................................................. 37
2.1 Política como práxis social ......................................................................................... 38
2.2 Sociedade civil e Estado, o pauperismo como fenômeno do regime do capital
............................................................................................................................................. 43
2.3 Apoliticismo e participação política ilusória ............................................................ 50
2.4 Os limites da emancipação política, a parcialidade da liberdade .......................... 57
2.5 Duplo aspecto da atividade política em Marx, emancipação política e humana
............................................................................................................................................. 62
3 A POLÍTICA E A CONSCIÊNCIA, COTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL .................................................................................................. 66
3.1 A consciência como processo social .......................................................................... 66
3.2 A ideologia como parcialidade da consciência – consciência de classe ................. 74
3.3 A política como processo na consciência .................................................................. 81
3.4 O que fazer? O papel da política dentro de uma práxis emancipatória ............... 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 88
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................91
9

INTRODUÇÃO

A política é uma dimensão essencial da atividade humana (KONDER, 1965), posto que,
“(...) com ou sem vontade de fazê-lo, os homens vivem em sociedade, dependem da sociedade
para nascer e sobreviver (...)” (p. 145). Sendo a atividade humana compreendida aqui como
atividade prática vital para produção e manutenção de sua existência, aquilo que produz e
reproduz sua vida: o trabalho (ALMEIDA et al., 2011).
Assim, ressalta-se a impossibilidade de não se considerar a política nas discussões sobre
a constituição da consciência, pois, seguindo a argumentação de Da Mata (2014), “A política,
(...), não pode ser ignorada, enquanto elemento constituinte da própria sociedade e como
elemento de formação do indivíduo” (p. 70). A política, segundo o autor, possui caráter de
práxis social e, nessa definição, expressa a importância de ressituá-la para além dos seus limites
presentes nas instâncias de decisão burocrática e ideologicamente comprometidas com o
sistema de produção do capital.
Traz-se inicialmente essa concepção de política como intrinsecamente presente na
atividade humana de maneira a explicitar sua importância na constituição da consciência,
porquanto “A produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio
diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens,
linguagem da vida real” (MARX & ENGELS, 2009, p. 31). Sendo necessário a compreensão
do modo como está organizada a produção da existência humana (destacando-se, aqui, sua
dimensão política) para que seja possível a apreciação de uma teoria acerca da constituição da
consciência do trabalhador. Conforme Marx & Engels (2009), “A consciência [das Bewustein]
nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente [das bewuste Sein], e o ser dos homens é o
seu processo real de vida” (p. 31).
Almeida et al. (2011) refere-se a esse processo real de vida como a produção dos seres
humanos de sua existência real que também, portanto, por meio de sua atividade vital prática –
das relações que estabelecem entre si e com a natureza – produzem simultaneamente
determinada consciência social, compreendida pelos autores como “(...) os modos de pensar,
sentir e agir dominantes em uma dada sociedade (...)” (p. 552). Leontiev (1978) reitera, sob
enfoque da construção de uma Psicologia crítica, a concepção de que o desenvolvimento do
psiquismo ocorre como um processo de transformações qualitativas, posto que as condições
sociais de existências se desenvolvem por meio de modificações qualitativas. Para o autor, o
intuito de desvelar a constituição da consciência humana deve encontrar seu objetivo na
compreensão das relações vitais nas quais está inserido o homem.
10

A política situa-se precisamente como dimensão constituinte das relações vitais


supracitadas, pois é compreendida como práxis social e, assim, é componente do processo de
constituição da consciência do trabalhador. Conforme Leontiev (1978): “O reflexo psíquico não
pode aparecer fora da vida, fora da atividade do sujeito. Depende da actividade do sujeito,
obedece às relações vitais que ela realiza, não pode não ser parcial, como parciais são as
próprias relações” (p.93).
Conquanto seja determinada pelas relações sociais historicamente situadas, a
consciência individual, segundo Almeida et al. (2011), constitui-se por meio da apropriação e
internalização da consciência social – determinada pelo modo de produção social – a partir da
mediação de um sistema de conceitos, sócio-historicamente situados. Destarte, a consciência
individual consiste na expressão e como parte constitutiva da consciência social, havendo em
ambos polos implicações passíveis de serem destrinchados em sua dimensão política.
Todavia, “Em uma sociedade de classes com interesses antagônicos, como é a sociedade
capitalista, a consciência social ganha a forma de ideologia, constituindo-se como reflexo das
relações sociais dominantes, ou ainda, das relações de dominação produzidas nessa sociedade”
(MARX & ENGELS apud ALMEIDA et al., 2011, p. 533). Em um contexto de produção da
existência humana em que há duas classes antagônicas e em que uma possui exclusividade na
detenção dos meios de produção dessa existência, observa-se que suas ideias, seu modelo de
valores possui vigência na consciência social – constantemente em movimento – e fomentam
uma concepção engessada de naturalidade à suas características. Em síntese, conforme Marx &
Engels (2009): “As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das
relações materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, das
relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio”
(p. 67).
Historicamente, a divisão da sociedade em classes (o surgimento da propriedade privada
e a divisão social do trabalho – três aspectos de um único processo), ainda que tenha
oportunizado um desenvolvimento sem igual na produção da existência humana, dilacerou o
sujeito, fracionando a humanidade, rompendo com a comunidade espontâneo que outrora
imperava na organização social (KONDER, 1965). Ainda segundo o autor, a cisão da sociedade
em classes repercutirá, necessariamente, em cada indivíduo, em cada consciência individual –
apropriada da consciência social dominante sob a forma de ideologia. A pertinência a diferentes
classes, esvaziou as relações entre os indivíduos de seu sentido real. A separação entre o
trabalho intelectual e o trabalho manual cava um abismo entre teoria e prática e um abismo
entre as diferentes classes, instaurando formas de atividade, nas quais, a práxis humana é
11

requerida a banir um de seus polos constitutivos. Assim, “A consciência divorciada da prática


marca, no homem, a alienação” (KONDER, 1965, p. 45)
O processo de alienação, segundo Almeida et al. (2011), serve de base material para
relação conflituosa entre as classes antagônicas como ocorre na sociedade capitalista. Embora
se expresse na consciência, a alienação possui origem na atividade material cindida humana; as
contradições da realidade social e histórica da produção capitalista – em sua manifestação entre
capital e trabalho – terão seu reflexo na constituição da consciência social e consciência
individual constantemente em movimento. Mészáros (2006) conceitua a alienação da atividade
humana no desvio, historicamente situado, da função da atividade vital humana de mediar a
relação entre ser humano e natureza; como o autor expressa: “A atividade produtiva é, então,
atividade alienada quando se desvia da função que lhe e própria, a saber, de mediar
humanamente a relação sujeito-objeto entre ser humano e natureza, e, em vez disso, tende a
fazer com que o indivíduo isolado e reificado seja reabsorvido pela ‘natureza’” (p. 81).
Marx sistematiza o processo de alienação e suas vicissitudes à consciência do ser
humano em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (2015). Para o pensador alemão
– reiterado nas obras de Konder (1965) e Mészáros (2006) – o processo de alienação do
trabalhador em sua atividade vital, cindida da natureza de seus produtos, desemboca em quatro
aspectos fundamentais à compreensão do processo de constituição do psiquismo, sendo elas: a
alienação do ser humano da natureza; alienação de si mesmo (de sua própria atividade);
alienação de seu ser genérico – como membro do gênero humano; e alienação dos demais seres
humanos. Esse processo há de se incorporar – ainda que de maneira invertida – tanto no
processo constitutivo da classe não-proprietária como da classe proprietária, expressando-se
como atividade de alienação e condição de alienação, respectivamente.
Não obstante, já em Marx (2015) está didaticamente exposto que, embora encontre
condições materiais para sua existência na dimensão econômica – ou seja, na esfera da produção
–, a alienação não possui expressão apenas nessa dimensão, sendo impreterível ressaltar a
cautela do autor de não reduzir todo trabalho humano ao trabalho imediatamente engajado na
produção econômica. De acordo com a síntese de Konder (1965): “A pluridimensionalidade é
fundamental na alienação, tal como o fenômeno é visto pelos marxistas” (p. 28). Com efeito, a
alienação possuirá sua expressão nas mais diversas áreas de atuação de ser humano, e, ao se
considerar a política como inerente à produção social, é necessário considerar suas implicações
nessa dimensão, na qual a alienação expressa-se sob a categoria do apoliticismo.
O apoliticismo, como expressão da alienação em sua dimensão política, possui seu
aspecto fundamental de eternizar e naturalizar as sociais vigentes, conferindo a elas um caráter
12

ahistórico, imutável (DA MATA, 2014; KONDER, 1965). Na sociedade capitalista


contemporânea, cujo contexto situa esse objeto de estudo, o apoliticismo vale-se do processo
de alienação para, apoiado na divisão e especialização crescente do trabalho, imprimir às
atividades individuais uma ilusão de serem desprovidas de caráter político, ainda que essas o
mantenham em sua essência social. O apoliticismo, portanto, fomenta a negação do trabalhador
da participação política em seus dois aspectos, destituindo suas ações de significado político e
conferindo ao modelo institucionalizado de regulação caráter ahistórico, negando a
conscientização do trabalhador de suas potencialidades nessa dimensão. Consoante com o
explicitado por Konder (1965):

O sentido original do apoliticismo é êste: impedir que as classes e


camadas da população excluídas do exercício do poder tomem
consciência das suas potencialidades políticas, e queiram participar do
contrôle da vida social. A ilusão contida na idéia de uma atividade
apolítica serve para escamotear ao exame da inteligência dos
governados uma série de problemas de cuja efetiva compreensão podem
advir dificuldades para os governantes (p. 147 – grifos do autor).

Da Mata (2014) reitera que o princípio de regulação política pertence à classe


proprietária em nossa sociedade capitalista, e a consciência social é composta por esse
princípio, posto que em uma sociedade de classes antagônicas, as ideias dominantes assumem
papel de ideologia (Almeida et al., 2011). A ideologia dissimula a prática do poder de regulação
exercido pela classe dominante, estabelecendo legitimidade e caráter ahistórico às práticas
sociais existentes.
Destarte, a prática política como concebida na contemporaneidade é permeada de
relações sociais de exploração e requer a sua retomada em seu caráter inerentemente social,
histórico e material. Todavia, como criticamente apontado por Marx (2009; 2011), Boron
(2007), Da Mata (2014), a possibilidade de emancipação humana não pode se encerrar em seus
limites políticos, requerendo que as relações estruturais de produção da existência humana
sejam repensadas de maneira a incluir os indivíduos no processo político, e também os
permitam realizar suas atividades práticas vitais eximidos da expropriação daquilo que
produzem e suas consciências para o processo de constituição da consciência.
Dessa forma, a Psicologia Histórico-Cultural, sob enfoque do método materialista
histórico dialético, possui em seu arcabouço teórico os instrumentos que permitam a análise da
constituição da consciência do trabalhador criticamente, situando-se de maneira ativa contra a
subserviência à ideologia dominante de controle do trabalhador e sua produção teórica
13

correlacionaria. Situando historicamente a construção da dimensão política contemporânea em


sua expressão no modelo de Estado moderno (BOBBIO, 1994), é possível apreender as causas
e consequências do fenômeno político e verificar em suas contradições as possibilidades de sua
superação, sem cair no engodo de encerrar a atividade política unicamente em si mesma. Como
alerta Boron (2007),

Porque para o marxismo nenhum aspecto ou dimensão da realidade


social pode teorizar-se à margem –ou com independência– da totalidade
na qual aquele se constitui. É impossível teorizar sobre “a política”,
como o fazem a ciência política e o saber convencional das ciências
sociais, assumindo que aquela existe em uma espécie de limbo posto a
salvo das prosaicas realidades da vida econômica. A “sociedade”, por
sua vez, é uma enganosa abstração sem ter em conta o fundamento
material sobre o qual se apóia. A “cultura” entendida como a ideologia,
o discurso, a linguagem, as tradições e mentalidades, os valores e o
“sentido comum” somente pode sustentar-se graças a sua complexa
articulação com a sociedade, a economia e a política (p. 196).

O estudo da constituição da consciência do trabalhador a partir de sua relação com a


dimensão política exige o rigor de a situar em caráter histórico, sob as relações sociais materiais
existentes, rigor esse constantemente ressaltado na Psicologia Histórico-Cultural, a fim de
compreender sua formação concreta e não sua existência universal, ilusoriamente imutável.
Pois,

Sob o reino da propriedade privada, qualquer que seja o traço histórico


concreto do psiquismo humano que nós consideremos (quer ele se
relacione com o pensamento, com os interesses ou os sentimentos), ele
comporta forçosamente a marca desta estrutura da consciência e só
pode ser correctamente compreendido em função das características
desta estrutura. Razão por que ao deixarmos de lado estas
particularidades de estrutura da consciência humana, ao pô-las entre
parêntesis na investigação psicológica, privamos a psicologia do seu
concreto histórico e fazemos dela uma ciência do psiquismo do homem
abstracto, do “homem em geral” (LEONTIEV, 1978, p. 125)

Ainda sobre a importância de um método rigoroso capaz de ir além da superficialidade


de um fenômeno, Pasqualini & Martins (2015), ao explicitar a importância das categorias
lukácsianas universal-particular-singular e sua relação ao pensamento de Vigotski, ressaltam
que a Psicologia deve ir além da singularidade imediatamente disponível de um objeto de
pesquisa para que não se incorra ao erro da fetichização de uma individualidade singular,
compreendendo o indivíduo como uma mônada, na concepção liberal de homem, localizando
sua essência exclusivamente nele mesmo.
14

Por fim, pretende-se com este trabalho utilizar as categorias da dimensão política
disponíveis no arcabouço marxista para, em consenso com a teoria da Psicologia Histórico-
Cultural, retomar uma análise da dimensão política que, concomitantemente não se encerre em
si mesma, mas que também não encerre sua concepção no homem em si mesmo e, sim, permita
a pesquisa de suas intercorrências para formação da consciência do trabalhador de acordo com
os pressupostos da dialética e do materialismo marxiano.
Dessa maneira, pretendemos contemplar nosso objetivo geral que é analisar as
implicações da dimensão política ao processo de constituição da consciência social e individual
na modernidade, segundo os preceitos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural. Tendo como
objetivos específicos nesse processo: realizar uma síntese dos principais aspectos do
pensamento político filosófico em sua relevância à construção do Estado moderno; recobrar a
crítica marxiana – por meio de seus trabalhos e de comentadores marxistas – ao Estado moderno
e à emancipação política, sob vigência de propriedade privada; analisar o arcabouço teórico-
conceitual da Psicologia Histórico-Cultural sobre o processo de constituição da consciência e
sintetizar sua relação com a dimensão política, principalmente no Estado moderno.
Para isso, optamos por percorrer o caminho de, no primeiro capítulo, voltar nosso olhar
ao pensamento jusnaturalista, recuperado aqui como expressão ideal de categorias teóricas
centrais à construção do Estado moderno. Para assim, no segundo capítulo, verificar nos textos
marxianos – principalmente no período compreendido em sua juventude –, e de autores
marxistas que desenvolveram o assunto, a crítica ao Estado moderno e à ilusão da emancipação
política sob a égide da propriedade privada. Por fim, no terceiro capítulo, retomaremos alguns
conceitos centrais da Psicologia Histórico-Cultural no processo de constituição da consciência,
verificando como ocorre esse processo e como a política pode ser compreendida dentro dele,
apontando ao final alguns limites e possibilidades para essa temática.
15

1 O PENSAMENTO POLÍTICO E A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO

Todo conjunto de ideias historicamente situadas consiste na representação ideal das


relações materiais vigentes, como demonstraremos no percurso selecionado para o presente
trabalho. A investigação da dimensão política do ser social sob o Estado moderno, então, requer
que possuamos um método capaz de subsidiar a análise do fenômeno selecionado, extraindo
dele suas categorias centrais – sem as pressupor – para podermos apreender a dinâmica própria
de seu movimento e chegarmos mais próximos de sua essência. Pois, segundo Vigotski (apud
ASBAHR, 2011), o método de conhecimento utilizado, determinará o objetivo da pesquisa, seu
caráter e natureza.
Dessa maneira, faremos inicialmente uma breve retomada dos componentes principais
do método materialista histórico dialético – de acordo com o postulado nas obras de Marx e
Engels – que servirá de base a toda pesquisa realizada para então iniciar nossa investigação
nesse capítulo pelo pensamento teórico que serviu como base e expressão do processo que
culminou na instituição do Estado moderno, conforme compreendemos atualmente.
O materialismo histórico dialético pode, ainda que de maneira parcial, ser compreendido
pela decomposição dos três conceitos chave com os quais se auto denomina.
O pressuposto materialista aborda a questão incontornável sobre a autenticidade da
realidade analisada, ou seja, de acordo com Martins (2008), dita-nos que os fenômenos que
ocorrem e são passíveis de investigação são materiais, existindo objetivamente e independente
de nossa consciência sobre eles. Os objetos não emergiriam da consciência em si, mas da
realidade posta, cabendo a nós apreendê-los e os tornar cognoscíveis. Como na longa ressalva
realizada por Marx e Engels sobre a materialidade dos fenômenos no início de sua obra A
Ideologia Alemã (2009), já antecipando, em parte, a análise que faremos sobre a política e o
Estado:

A estrutura social e o Estado decorrem constantemente do processo de vida de


determinados indivíduos; mas, desses indivíduos, não como eles poderão parecer na
sua própria representação ou na de outros, mas como eles são realmente, ou seja, como
agem como produzem material realmente, como atuam [tätig], portanto, em
determinados limites, premissas e condições materiais que não dependem da sua
vontade. (p. 30 – grifos dos autores)

O materialismo, como corrente filosófica do marxismo, é sintetizado por Germer (s/d)


na compreensão de que as ideias existem antes e independentemente da consciência,
16

constituindo o reflexo do mundo material na mente humana. Outro exemplo da necessidade de


assegurar a compreensão da materialidade do real pode ser encontrada em Marx (2015):

Quando o homem real, corpóreo, de pé sobre a terra bem redonda e firme, expirando
e inspirando todas as forças da natureza, põe, pela sua exteriorização, as suas forças
essenciais objetivas, reais, como objetos alienados, o pôr não é sujeito; é a
subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja ação tem por isso de ser também
uma ação objetiva. O ser objetivo opera objetivamente, e operaria objetivamente se o
objetivo não residisse na sua determinação essencial. Ele só cria, põe objetos, porque
é posto por objetos, porque é, à partida [von Haus aus], natureza. Portanto, no ato do
pôr, ele não cai da sua “atividade pura” num criar do objeto, mas o seu produto
objetivo apenas confirma a sua atividade objetiva, a sua atividade como a atividade de
um ser natural objetivo. (pp. 374-375)

A historicidade consiste em uma consequência necessária à materialidade do real. Se


apreendemos o pressuposto materialista – como base filosófica do marxismo (GERMER, s/d)
– como a objetividade anterior a própria consciência humana, podemos reconhecer nela um
movimento e dinamismo próprio, do qual nos apropriamos e sob o qual estamos submetidos,
invariavelmente.
A historicidade postulada diz respeito ao fato de que a realidade material descrita,
segundo Martins (2008), “(...) não é estática e idêntica a si mesma, pelo contrário, ela é uma
miríade de fenômenos que resultam da matéria em movimento, (...), do que se conclui: a
realidade objetiva é a história de suas mudanças” (p. 42). Para compreender as implicações
necessárias da historicidade na análise de um objeto, possuímos aporte também de Vigotski
(apud ASBAHR, 2011): “Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta
é a exigência do método dialético” (p. 97).
A lógica dialética, por sua vez, determina a forma de apreendermos essa movimentação
do real, como interpretá-la mais acuradamente, sendo considerada sinônimo da lógica do
movimento.

A dialética materialista reflete, deste modo, as leis do movimento dos objetos e


processos do mundo objetivo, incluindo o homem e a sociedade, que atuam como
princípios e formas de atividade do pensamento. E neste sentido a dialética marxista
desempenha, em nova base filosófica, as funções quer de ontologia, quer de
gnosiologia, lógica e antropologia filosófica, sem reduzir-se a qualquer uma delas
separadamente ou a soma de todas. (KOPNIN, 1978, p. 65)

A lógica do movimento – lógica dialética – diferencia-se da lógica formal1 que rege


nossa concepção coloquial da realidade, incorporando-a e a superando. Segundo Mandel

1
Pela brevidade de nosso trabalho, não nos será possível explanar detalhadamente o contexto histórico do
surgimento da lógica formal e sua relação com a lógica dialética. Cabe aqui destacar, utilizando como base o
17

(1978), podemos tornar mais didático a compreensão da lógica dialética, sintetizando-a em três
principais leis do movimento:
a) A unidade e a luta de contrários – Compreender movimento implica na
compreensão de contradição, na totalidade há elementos contraditórios entre si
que estão constantemente buscando a decomposição desse conjunto, desse par,
buscando sua superação. Se não estivéssemos inseridos em um contexto dessa
luta entre elementos contrários, não estaríamos em movimentos, não haveria
nada para apreender para além da estaticidade.
b) Mudanças qualitativas e quantitativas –
“O movimento toma a forma de mudanças mantendo a estrutura (ou a qualidade) dos
fenômenos: falamos nesse caso de uma mudança quantitativa, freqüentemente
imperceptível. A partir desse ‘limiar’, a mudança quantitativa transforma-se em
mudança qualitativa. A partir desse limiar, a mudança, em vez de ser gradual, efetua-
se por um ‘salto’, dando lugar a uma nova qualidade.” (MANDEL, 1978, p. 20)

c) Negação e ultrapassagem – Todo movimento traz consigo a possiblidade de


negar seus fenômenos próprios, levando-os muitas vezes a seus contrários.
Entretanto, ao considerarmos essa negação no movimento, não devemos pensar
em negação ‘pura”, mas, sim, uma negação da negação, uma superação
qualitativa, mantendo as qualidades do fenômeno superado adicionando a
superação à sua estrutura.

Portanto, compreendendo a importância e a relação do método à pesquisa acadêmica,


voltaremos nosso olhar à política – principalmente em sua expressão sob o Estado moderno –
tendo os pressupostos do método materialista histórico-dialético como alicerces em nosso
objetivo de assimilar o movimento histórico dessa construção social. Não obstante,
reconstruiremos – sumariamente – as bases do pensamento da filosofia política fundamentais à
edificação do Estado na modernidade, apreendendo-as como expressão de um movimento de
relações materiais e históricas, correlatas ao desenvolvimento das forças sociais de produção.

trabalho de Mandel (1978), que a lógica formal pode ser também compreendida como lógica estática e é regida,
sinteticamente, por três principais leis: lei da identidade (A igual A); lei da contradição (A é diferente de não-A,
jamais se tornando iguais); e a lei do terceiro excluído (considerando A e não-A, nenhum objeto pode estar fora
desse espectro).
18

1.1 Linha histórica do pensamento político à formação do Estado burguês

A escolha das teorias do pensamento político aqui referenciadas será baseada em sua
relevância ao pensamento político moderno, sua influência na construção do modelo de Estado
institucionalizado historicamente a partir da Revolução Francesa (1789)2, sua necessidade de
exposição para o diálogo da crítica marxiana e marxista com a Psicologia Histórico-Cultural e,
por fim, sua importância sob o crivo da história que podemos observar contemporaneamente.
Destarte, optaremos pela síntese do pensamento de Aristóteles em inaugurar tratados
especificamente sobre a organização política da sociedade, relacionando-o com os principais
teóricos do jusnaturalismo contratualista moderno, Hobbes (1588-1679), Locke (1632-1704)
e Rousseau (1712-1778), posto que seu pensamento jusnaturalista ofereceu as contribuições
políticas de vital importância para a Revolução Francesa e podem fundamentar as discussões
acerca do modelo estatal que possuímos até a contemporaneidade. Para essa escolha,
principalmente, mas não somente, baseamo-nos nas asserções de Bobbio (1994) e Hobsbawm
(1996) e na seleção argumentativa própria para este trabalho.
Segundo Bobbio (1994),

A crítica antijusnaturalista do historicismo atingia sobretudo a teoria política que a


doutrina do direito natural criara e divulgara. Como já dissemos, no âmbito da escola
do direito natural foram compreendidos alguns dos maiores escritores políticos dos
séculos XVII e XVIII, de Hobbes a Rousseau. A história da filosofia política daqueles
dois séculos coincide em grande parte com a história do jusnaturalismo: ninguém pode
escrever a história das idéias políticas da época que intercorre entre o Renascimento
e o Romantismo sem levar em conta, além dos escritos políticos estritamente
entendidos, também os grandes tratados de direito natural (...) (p. 34)

O tratamento racional acerca do problema do Estado e a inauguração do jusnaturalismo


político promovido por Hobbes permite-nos o salto cronológico de Aristóteles a ele, pois

2
A Revolução Francesa não poderá ser abordada de maneira mais detalhada pelas limitações do presente trabalho.
Destacamos, porém, a fundamentalidade de sua compreensão para história moderna, de acordo com Hobsbawn
(1996), em três aspectos que a diferenciaram das demais crises dos regimes políticos vigentes: 1) a Revolução
Francesa ocorreu no país mais populoso e poderoso na Europa – com exceção da Rússia – em 1789; 2)
diferentemente das revoluções que a antecederam e a seguiram, foi uma revolução social de massa,
incomensuravelmente mais radical; 3) entre todas as revoluções da história moderna, a Revolução Francesa foi a
única – da fato – ecumênica. Para maior compreensão do processo histórico da ascensão da burguesia ao posto de
classe dominante, sua superação do regime aristocrata e monárquico e o caráter da emancipação política alcançada
por essa classe, sugerimos a leitura completa de Hobsbawn (1996) que percorre esse processo com todos seus
detalhes. Trazemos aqui apenas introdução do autor: “A Revolução Francesa é, assim, a revolução do seu tempo,
e não apenas uma revolução, embora a mais proeminente de sua espécie. E suas origens devem, portanto, ser
procuradas não meramente nas condições gerais da Europa, mas na situação específica da França. (...). Ela era a
mais poderosa e, sob vários aspectos, a mais típica das velhas aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em
outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial com os interesses estabelecidos pelo Antigo Regime e as novas
forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes do mundo” (p. 13 – grifos do autor).
19

Os tratados da filosofia política anteriores a Hobbes se apoiavam monotamente sobre


dois pilares, a ponto de aparecerem frequentemente como nada mais que uma
repetição do já dito: a Política de Aristóteles e o direito romano, ou, mais
precisamente, aquelas passagens do Codex referentes à fonte do poder imperial e que,
a partir dos glosadores, haviam sido interpretadas de variados modos. (BOBBIO,
1994, p. 36)

Conforme será melhor explicitado no decorrer desse capítulo, o pensamento hobbesiano


de estado natural do ser humano como inerentemente de guerra de todos contra todos rasga a
autoridade indisputada que o pensamento grego possuía no campo da filosofia política com seu
estado natural social.
Hobbes, inaugurando a filosofia política divergente da aristotélica, apresenta campo
teórico a ser construído para além do hegemônico modelo que havia predominado por séculos
no pensamento político e, assim como os demais autores selecionados aqui, pode ser
considerado influência ao molde da Revolução Francesa e da emancipação política almejada (e
alcançada) pela emergente burguesia de então.
Conforme Hobsbawm (1996),

A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento


organizado, no sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a
cabo um programa estruturado. (...) Entretanto um surpreendente consenso de idéias
gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma
unidade efetiva. O grupo era a “burguesia”; suas idéias eram as do liberalismo
clássico, conforme formuladas pelos “filósofos” e “economistas”, e difundidas pela
maçonaria e associações informais. Até esse ponto, os “filósofos” podem ser, com
justiça, considerados responsáveis pela Revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas
eles, provavelmente, constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho
regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo. (p. 19 – grifo nosso)

Assim defendemos a trajetória teórica aqui selecionada, traremos uma síntese do


pensamento político aristotélico, sua continuidade (como rompimento ou como atualização) em
Hobbes, Locke e Rousseau como principais exponentes filosóficos 3 de base à Revolução
Francesa; então poderemos compreender como se situa a política e o Estado moderno na
sociedade capitalista. Apesar de nos ser impossível retomar completamente o contexto histórico

3
Apesar da centralidade do pensamento desses três filósofos, é, para nós, claro que seus nomes não são os únicos
influenciadores na construção do Estado moderno, nem mesmo na filosofia jusnaturalista. Bobbio (1994) concede
a esses nomes a importância devida, porém também destaca: Pufendorf (como precursor do rompimento com o
pensamento aristotélico e grande influenciador de Locke); Spinoza (seus tratados sobre a ética teve impacto
imediato – como base ou como obstáculo – durante todo o trajeto jusnaturalista); Leibniz (como grande pensador
da jurisprudência); Montesquieu (principalmente no concernente à sua teoria do despotismo); Kant (grande crítico
da moral e do direito, caracterizou suas posições de maneira liberal progressista, porém creditando à razão a
necessidade de um regime monarquista, com irrevogável necessidade de obediência às leis).
20

que tais teorias surgiram, faz-se necessário sublinhar – como descrito em nossa metodologia –
que essas teorias são expressão da organização das forças produtivas sociais e, portanto,
revelam, como abstrações, o desenvolvimento material da ascensão da burguesia à classe
dominante e sua subsequente assunção do Estado como instrumento de dominação. Sendo
ímpar perceber o contraste das propostas de Hobbes e Locke (principalmente) com as de
Aristóteles, “A particular importância desse contraste se revela no fato de ser a ele que se refere
principalmente a interpretação corrente que faz do modelo jusnaturalista o reflexo teórico e, ao
mesmo tempo, o projeto político da sociedade burguesa em formação” (BOBBIO, 1994, p. 45).

1.2 Pólis grega e o modelo aristotélico

De acordo com o trajeto proposto por Da Mata (2014), para alcançarmos profundidade
teórica suficiente para apreender a política como dimensão da atividade humana historicamente
localizada na sociedade burguesa contemporânea, iremos retomar o sentido original do termo
“política” como encetada por Aristóteles, em seu sentido grego, de necessária relação com a
Pólis.
O termo política em sua concepção mais radical é definido como

Derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo o que se refere
à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e
social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles,
intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza,
funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação
mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com
intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente
discrimináveis, sobre as coisas da cidade. (BOBBIO, 1998, p. 954)

A Pólis grega, apesar de não ser sua única expressão, é o exemplo de Cidade-Estado
que temos historicamente; é uma cidade autônoma e soberana, responsável apenas por si mesma
e por sua autossuficiência (BONINI, 1998, p. 949). A política surge, então, “(...) como a prática
da Polis sobre si mesma, capaz de estabelecer seus fundamentos e necessidades. Ela permitiu
que surgissem sujeitos históricos capazes de agir sobre essa história de modo a interferir na
construção da Polis e pensar a vida política, o que ela poderia ser e o que ela deveria ser”
(OLIVEIRA, 2007, p. 3).
Além de ter sido – e ainda ser – um dos principais pilares do pensamento político na
sociedade ocidental por ter inaugurado um pensamento exclusivo às questões políticas
(BOBBIO, 1998; OLIVEIRA, 2007), a importância do pensamento aristotélico também é
21

devido sua capacidade de fundamentar sua teoria social não apenas como exclusivamente
“racional” (como se abstraída das condições históricas e concretas em que vivia), mas também
como reconstrução histórica da fundação da Pólis e seus possíveis encaminhamentos. Como
nos é explicitado por Bobbio (1994):

Desde as primeiras páginas da Política, Aristóteles explica a origem do Estado


enquanto polis ou cidade, valendo-se não de uma construção racional, mas de uma
reconstrução histórica das etapas através das quais a humanidade teria passado das
formas primitivas às formas mais evoluídas de sociedade, até chegar à sociedade
perfeita que é o Estado.” (p. 40)

A questão central em sua filosofia política que traremos aqui será sua concepção de
estado natural e estado civil, categorias que – por tratarmos de autores jusnaturalista – serão
utilizadas de comparação entre suas teorias, sendo imperativas para compreensão de suas
diferenças e influências no pensamento político moderno, bem como as suas críticas e
possibilidades de utilização como fundamentos de sua própria superação, na concepção
dialética do termo supracitada em nossa metodologia.
Aristóteles coloca o estado natural do homem como previamente social, havendo apenas
uma transformação cronológica e quantitativa em sua passagem para o estado civil. Conforme
Bobbio (1994), no modelo aristotélico:

(...) entre a sociedade primitiva e originária e a sociedade última e perfeita que é o


Estado, há uma relação de continuidade ou de evolução ou de progressão, no sentido
de que, do estado de família ao estado civil, o homem passou através de fases
intermediárias que fazem do Estado, não a antítese do estado pré-político, mas o
desaguadouro natural, o ponto de chegada necessário, a conclusão de certo modo
quase predeterminada de uma série mais ou menos longa de etapas obrigatórias. (p.
43)

A importância de demarcamos a progressão cronológica da passagem do estado natural


ao civil em Aristóteles está situada muito menos em seu próprio argumento, mas, sim, na
possibilidade de vislumbrarmos desde esse primeiro momento da filosofia política, seu diálogo
com o pensamento rousseauniano, e posteriormente marxiano, em não colocar os dois estados
como antíteses, mas como complementares, ainda que nesse primeiro momento nos apareça
apenas de maneira ruidosa.
No modelo aristotélico, “Não pode haver a noção de indivíduo anterior à noção de uma
associação, uma vez que naturalmente os homens, sendo políticos, tendem a formar uma
associação cuja função é tornar esse homem um indivíduo inserido em uma sociedade capaz de
realizar suas necessidades” (OLIVEIRA, 2007, p. 13-14). Destarte, é natural – segundo o
22

pensador grego – do homem, como sua própria teleologia, buscar associar-se, como projeto
político ontológico. Não haveria uma necessidade de emancipação política, posto que a
passagem do homem natural ao político (civil) estaria mediada apenas pela cronologia natural
do desenvolvimento humano. “Nesse quadro, o princípio de legitimação da sociedade política
não é mais o consenso, porém o estado de necessidade, ou, mais simplesmente, a própria
natureza social do homem.” (BOBBIO, 1994, p. 44)
Válido retomar que, na democracia grega,

O indivíduo encontra sua plena realização humana na subsunção ao Estado. Nenhum


grego acreditava ser possível a vida civilizada fora da Pólis, que não é apenas uma
cidade murada que protege contra os bárbaros incivilizados, ela é o conceito do qual
emana toda noção de humanidade e civilidade do homem antigo. Pode-se dizer que a
sociedade civil é uma extensão do indivíduo, e que o Estado é o próprio braço político
do corpo social. (DA MATA, 2014, p. 72)

O estado de natureza do homem em Aristóteles não corresponde a um estado antitético


do estado civil, pois sua natureza, então, estaria em se realizar socialmente, faltando-lhe
incialmente apenas a possibilidade de se realizar desse modo, fato ocorrerá naturalmente na
busca natural (política) de se associar. “Portanto, seguindo a definição da natureza do homem,
este não poder ser fora da comunidade, e mais, ele só é nela e por ela. Na comunidade política
o homem atinge o ser plenamente, pois ela basta a si mesma e permite ao homem alcançar esta
autarquia” (OLIVEIRA, 2007, p. 14).
A cidade (Cidade-Estado autárquica de Aristóteles) seria, para Oliveira (2007), o fim de
um projeto histórico engendrado pelo próprio estado natural proposto, a realização das
potencialidades do homem. A justificativa disso nos é sintetizada pelo próprio autor quando
nos coloca que

Eis porque a cidade é seu próprio fim, pois ela confunde sua natureza com sua própria
existência, e desse modo, faz com que os homens realizem o projeto histórico de sua
natureza e de sua existência.
Percebe-se uma teleologia política em Aristóteles condicionada ontologicamente.
Existem seres cujo fim da existência é a autarquia e o meio para alcançar é a cidade
que desse modo se torna também o fim dessa natureza, posto que ela permite a
realização dessa natureza fazendo com que a existência dos homens se dirija para a
realização desse fim. Se associar em comunidades é natural aos homens. Essas
associações desembocam na construção histórica de uma cidade decorrente dessa
natureza humana política. (p. 13)

Dessa maneira, o legado do modelo aristotélico de organização política, que exerceu sua
hegemonia sobre os filósofos até o rompimento alcançado pelos jusnaturalistas supracitados,
incumbiu ao pensamento político a tarefa única de fornecer condições para o desenvolvimento
23

da natureza própria do homem, alcançando o Estado autárquico proposto. Ainda que as


condições históricas e o desenvolvimento das relações produtivas tomassem caminhos vários –
que aquele idealizado na democracia grega –, o pensamento de Aristóteles manteve-se como
leitura obrigatória para a organização do Estado; entretanto, ao alterarem seu argumento
fundamental, os pensadores jusnaturalistas expressaram divergências incompatíveis com as
teorias clássicas de Estado, sendo compelidos a criar um sistema estrutural que desse base (e
expressasse, simultaneamente) as mudança concretas que viviam em suas épocas, sendo o
primeiro e principal nesse rompimento, Thomas Hobbes.

1.3 Jusnaturalismo e Hobbes, a necessidade do Estado

Conforme exposto, anteriormente a Hobbes, a filosofia política apoiava-se


simplesmente nos pilares erigidos pelo pensamento clássico de Aristóteles e o Codex romano,
sendo que o último consistia principalmente das jurisdições ao regime imperial romano e suas
possíveis interpretações renovadas apenas em sua forma, mas não em seu conteúdo (BOBBIO,
1994). É com o pensamento jusnaturalista moderno de Hobbes que questões epistemológicas e
ontológicas do ser humano passam a ser alteradas de maneira radical. A definição dessa linha
teórica realizada por Fassò (1998) é de: “(...) uma doutrina segundo a qual existe e pode ser
conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta
intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito
positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em
caso de conflito, é ele que deve prevalecer” (p. 655-656).
A opção de pormenorizar o jusnaturalismo do século XVIII como corrente teórica é uma
opção didática para a compreensão do desenvolvimento do pensamento político ao Estado
moderno que, apesar de não se restringir aos três pensadores selecionados – Hobbes, Locke e
Rousseau – para a exposição, possui nessa corrente um método comum que questiona as bases
deixadas por Aristóteles e inicia o percurso teórico que – enquanto movimento real –
fundamenta e é baseado pelo início da ascensão da burguesia ao posto de classe dominante.
Posto que “Todos os contratualistas vêem assim no contrato um instrumento de emancipação
do homem, emancipação política apenas, que deixa inalterada e até garante a estrutura social,
baseada precisamente na família e na propriedade privada, mantendo uma clara distinção entre
o poder político e o poder social, entre o Governo e a sociedade civil” (MATTEUCCI, 1998, p.
274).
Vale-nos ressaltar que,
24

Embora a idéia do direito natural remonte à época clássica, e não tenha cessado de
viver durante a Idade Média, a verdade é que quando se fala de “doutrina” ou de
“escola” do direito natural, sem outra qualificação, ou, mais brevemente, com um
termo mais recente e não ainda acolhido em todas as línguas europeias, de
“jusnaturalismo”, a intenção é referir-se à revivescência, ao desenvolvimento e à
difusão que a antiga e recorrente idéia do direito natural teve durante a idade moderna,
no período que intercorre entre o início do século XVIII e o fim do XVIII. (BOBBIO,
1994, p. 13)

Os autores aqui selecionados – e os demais que podem ser compreendidos nessa corrente
do pensamento – enveredam em um projeto de desenvolver uma conduta universal ao homem,
capaz de fundamentar quaisquer posteriores organizações econômica-sociais, ou seja, buscam
retornar aos pressupostos ontológicos do ser humano para sintetizar uma unidade ética capaz
de nortear a sociedade. Como nos diz Bobbio (1994), esses pensadores objetivavam: “(...) a
construção de uma ética racional, separada definitivamente da teologia e capaz por si mesma,
precisamente porque fundada finalmente numa análise e numa crítica racional dos
fundamentos, de garantir – bem mais do que a teologia, envolvida em contrastes de opiniões
insolúveis – a universalidade dos princípios da conduta humana” (p. 17).
Almejando esse novo tipo de construção acerca da ética e da conduta humana, esses
pensadores tiveram que atuar nos pressupostos políticos em vigor e, ao realizarem suas
investigações metodológicas, adequar-se às mudanças concretas no processo de
desenvolvimento das relações de produção.

Com efeito, para os principais pensadores do período histórico que se inicia com o
Renascimento e vai até o século XVIII, a sociedade aparece não como um pressuposto
– como fora o caso na concepção aristotélica do zoon politikon e como voltará a sê-lo
em Hegel e em Marx –, mas como um resultado, ou seja, como fruto de um processo
que tem como ponto de partida e fundamento permanente a existência de indivíduos
ontologicamente isolados. (COUTINHO, 1996, p. 7)

Entretanto, como iremos salientar durante todo esse trabalho, a ascensão à hegemonia
de um pensamento que coloca o indivíduo ontologicamente isolado – com interesses e
propriedades privadas a defender – como pressuposto de sua construção teórica não ocorre de
maneira separada do movimento real do desenvolvimento material da sociedade – centralmente
europeia nesse caso. A sociedade concreta na qual esses pensadores desenvolvem seu trabalho
é, historicamente, aquela que inicia o processo de mercantilização de sua produção e “(...) que
pode ser definida (...) como uma sociedade capitalista, ou, mais precisamente, como o estágio
dessa sociedade no qual a rápida e intensa generalização das relações mercantis ia impondo, de
modo cada vez mais abrangente, a dominação do capital” (COUTINHO, 1996, p. 16).
25

Ao analisarmos a trajetória do desenvolvimento social que forneceu base à Revolução


Francesa, observamos que

Não é assim casual que essa concepção do homem como um ser orientado
“naturalmente” pelos seus interesses singulares e egoístas (como um ser que, nas
palavras de Hobbes, quer “poder e mais poder”) esteja na origem da concepção liberal
de sociedade, uma concepção que – malgrado o absolutismo político defendido pelo
autor do Leviatã – forma a essência da teoria da sociedade tanto nele como em Locke.
Seres possessivos e autocentrados, os indivíduos se organizariam em sociedade
apenas para melhor garantirem sua segurança pessoal e suas propriedades, ameaçadas
no “estado de natureza”; o Estado ou o governo, ao “regulamentar” os conflitos,
forneceria o quadro no qual os indivíduos poderiam explicitar do melhor modo
possível essa sua “possessividade” natural. Mesmo vivendo em sociedade, portanto,
os indivíduos não perderiam os atributos que tinham em “estado de natureza”.
(COUTINHO, 1996, p.8)

Assim, Hobbes inaugura uma corrente de pensamento que altera os argumentos


fundamentais acerca da natureza do ser humano, adjetivando-o de uma possessividade e
belicosidade inerentes, as quais teriam de ser controladas pela passagem do estado de natureza
ao estado civil (político), cabendo a contratação comum por todos de um Estado forte o
suficiente para assegurar que essa natureza adversativa ontologicamente situada seja “contida”,
a ponto de nos deixar afastados da pura barbárie. Separando, portanto, pontualmente e
antiteticamente, os dois momentos pré e pós político do homem, de acordo com Bobbio (1994):
“Enquanto o modelo hobbesiano é dicotômico e fechado (ou o estado de natureza ou o estado
civil), o modelo aristotélico é plural e aberto (do primeiro ao último grau, os graus
intermediários podem variar de número)” (p. 43).
Antes de iniciarmos a destrinchar o pensamento de Hobbes, faz-se necessário a ressalva
de que, ainda que pautados pelas condições concretas em desenvolvimento em suas épocas, as
propostas dos autores jusnaturalistas que aqui traremos jamais chegou a ocorrer – efetivamente
– em nenhum momento na história da construção do Estado moderno, conforme a prescrição
desses autores.

Falando de “modelo”, quero fazer entender imediatamente que, na realidade histórica,


um processo de formação da sociedade civil, tal como idealizado pelos jusnaturalistas,
jamais teve lugar: na evolução das instituições de onde nasceu o Estado moderno,
ocorreu a passagem do Estado feudal para o Estado de estamentos, do Estado de
estamentos para a monarquia absoluta, da monarquia absoluta para o Estado
representativo; mas o Estado como produto da vontade racional, como é o caso
daquele que se referem Hobbes e seus seguidores, é pura idéia do intelecto.
(BOBBIO, 1994, p. 38)

Com isso, poderemos adentrar mais detalhadamente no pensamento hobbesiano. Seu


modelo proposto – assim como em variado grau é o modelo dos demais autores que trazemos
26

aqui – baseia-se fundamentalmente na antítese entre dois estados (ou sociedades): de natureza
e civil (BOBBIO, 1994). “Entre os dois estados, há uma relação de contraposição: o estado
natural é o estado não político, e o estado político é o estado não natural. Em outras palavras, o
estado político surge como antítese do estado natural, do qual tem função de eliminar os
defeitos, e o estado natural ressurge como antítese do estado político, quando esse deixa de
cumprir a finalidade para a qual foi instituído” (BOBBIO, 1994, p. 38-39).
O estado natural em Hobbes é a condição na qual todos os homens se encontram,
possuindo todos o mesmo direito, já que estão sendo guiados basicamente pelas paixões – por
seu desejo ininterrupto de poder e mais poder –, guiando-se exclusivamente por instintos de
sobrevivência. “Na realidade nessa condição o homem está em situação de ‘guerra de todos
contra todos’, ‘o homem é lobo do homem’. Assim, seguindo Hobbes podemos dizer que no
Estado de natureza a utilidade é a medida do direito. Nessa perspectiva, a inclinação geral do
ser humano é constituída por um ininterrupto desejo de poder e de mais poder que só tem cabo
com a morte” (LOPES, 2012, p. 171).
Não obstante, a proposição do estado natural de guerra em que se encontram os homens
pré-políticos feita por Hobbes é ressaltada pelo autor como uma hipótese da razão, portanto,
lógica e não histórica. O autor denota dessa maneira mais uma diferença com o pensamento
aristotélico, no qual o estado natural era historicamente situado e gradativamente passível de
alcançar o nível de estado político.

O que em Hobbes é uma pura hipótese da razão é o estado de natureza universal, ou


seja, aquela condição na qual os homens teriam vivido ou seriam destinados a viver
todos juntos e ao mesmo tempo em estado de natureza, e da qual derivaria como
consequência (uma consequência lógica e não histórica) o bellum omnium contra
omnes. O estado de natureza universal jamais existiu e não existirá jamais (sua
existência prolongada no tempo teria levado ou levaria à extinção da humanidade). O
que existiu e continua a existir de fato é um estado de natureza não universal mas
parcial, circunscrito a certas relações entre homens ou entre grupos em certas
circunstâncias de tempo e de lugar. (BOBBIO, 1994, p. 49-50)

Hobbes, então, constrói uma teoria política contratualista, como modo de superar,
simultaneamente, o estado de natureza universal essencialmente abstrato da humanidade e a
turbulência concreta que observava em sua realidade. Pois “(...) o autor parte da premissa de
um Estado de Natureza pertencente a todos os homens. Nesse sentido, todos os homens são
iguais e, assim, cada um tem o direito de utilizar seu poder e força para resguardar seus
interesses particulares. Dessa forma, paira uma espécie de luta para de todos contra todos para
defender os direitos próprios” (LOPES, 2012, p. 173). No pensamento hobbesiano, todos os
homens partem da igualdade em seu estado de natureza, porém precisam de uma organização
27

capaz de os refrear em sua defesa dos direitos próprios, porque o desejo é a categoria ontológica
mais fundamental da constituição humana, sendo a força propulsora que os move (LOPES,
2012). Revela-nos, dessa forma, a mudança da posição teórica da filosofia com o início da
mercantilização da produção e a, subsequente, mudança no regime de organização política e
produção humana.
Portanto,

Nessa perspectiva, percebe-se a extrema necessidade de se ausentar do estado de


natureza, a fim de ter uma vida mais satisfatória. Para tal é mister sair da situação de
guerra do estado de natureza. Esta é a razão pela qual se faz necessário a instauração
do Estado civil, e este, com um poder da espada, capaz de obrigar os homens, súditos,
a cumprirem os pactos e, assim, assegurar a segurança e a paz aos indivíduos que
pactuaram. (LOPES, 2012, p. 178)

Ainda que postulado como se fazendo valer de um poder de espada, a criação do Estado,
para Hobbes – e para os demais autores aqui citados –, requer uma pactuação consensual, posto
que “O princípio de legitimação das sociedades políticas é exclusivamente o consenso”
(BOBBIO, 1994, p. 61). Conforme nos alerta Lopes (2012), o Estado é produto da razão
humana e não é consolidado por obrigação, sendo imprescindível que seja consolidado pela
livre vontade das pessoas, ao menos dentro das teorias jusnaturalistas.

Vale relevar que o Estado não é estabelecido por obrigação, o mesmo é efetivado pela
vontade livre dos homens. Visto que os mesmos estão com medo da morte violenta e
querem garantir paz e segurança. É imbuído desse sentimento que os homens,
voluntariamente, celebram entre si um pacto de cada um para com todos os outros,
escolhendo, na melhor das hipóteses, um soberano, que não participa do pacto, mas
está acima dele, e transferem a este o direito de governá-los, outorgando
assertivamente todas as atitudes do soberano. (LOPES, 2012, p. 179)

Entretanto, o Estado a ser criado sob o contrato social terá poder absoluto, a fim de
tornar os cidadãos políticos seguros (BOBBIO, 1994). A proposta de Hobbes não é de caráter
metafísico ou transcendental, trata-se de uma monarquia absoluta por uma lógica pragmática
para alcançar a segurança de todos, saindo do estado de natureza, no qual imperava o caos
(LOPES, 2012). Mas ainda que as pessoas desejem a segurança – segundo Hobbes – a ponto
de abdicar de todos seus poderes a um soberano capaz de manter a harmonia, um direito
mantém-se como primordial, como fundamento e consequência da realização desse contrato: o
direito à vida. Posto que “Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura
enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los.
Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser
28

abandonado através de pacto algum” (HOBBES apud BOBBIO, 1994, p. 82). Como nos diz
Bobbio (1994):

Embora tradicionalmente considerado como teórico do absolutismo, Hobbes não


defende a tese da renúncia total. Para ingressar na sociedade civil, o homem – segundo
Hobbes – renuncia a tudo o que torna indesejável o estado de natureza; mais
precisamente, renuncia à igualdade de fato que torna precária a existência até mesmo
dos mais fortes; ao direito à liberdade natural, ou seja, ao direito de agir seguindo não
a razão mas as paixões; ao direito sobre todas as coisas, isto é, à posse efetiva de todos
os bens de que tem força para se apropriar. A finalidade em função do qual o homem
considera útil renunciar a todos esses bens é a salvaguarda do bem mais precioso, a
vida, que no estado de natureza tornou-se insegura por causa da ausência de um poder
comum. Entende-se que o único direito ao qual o homem não renuncia, ao instituir o
estado civil, é o direito à vida. No momento em que o Estado não é capaz de assegurar
a vida de seus cidadãos por inépcia, ou em que ele mesmo a ameaça por excesso de
crueldade, o pacto é violado e o indivíduo retoma sua própria liberdade de se defender
como acreditar melhor. (p.72)

Destarte, o Estado em Hobbes não deve ser compreendido como um fim ontológico, ou
como um fim em si mesmo – de acordo com Lopes (2012) –, mas, sim, como um Estado
fundado de acordo com uma razão pragmática com o objetivo que o ser humano seja capaz de
alcançar seus objetivos tendo sua segurança assegurada. Ainda segundo o autor, em Hobbes,
observamos que a justificativa para o poder armado do monarca soberano está situada,
logicamente, na potência do desejo de mais poder e mais propriedade inerente à natureza
humana. Assim, compreendemos que a emancipação política não extingue as características do
estado de natureza nos indivíduos, mas, por estarem situados como estados antitéticos, a
passagem de um estágio de natureza inicial ao estado civil (político) pode ser analisada como
uma superação dialética, de acordo com explicação supracitada dessa lógica.
Sem embargo, a concepção hobbesiana de passagem de estado natural ao estado civil,
revela-se necessária para o autor justamente por situar uma característica historicamente
localizada – como o egoísmo – de maneira universal e necessariamente ontológica ao ser
humano. Veremos, a seguir, que Hobbes não fora o único autor a realizar esse movimento em
seu contexto histórico, embora sua solução apresentada difira de seus correlatos na corrente
jusnaturalista. Enquanto o egoísmo e individualismo, como características, são postuladas como
negativas moralmente na humanidade por Hobbes, em Locke, observamos um viés diferente,
com caráter muito mais utilitário dessas características humanas supostamente universais.
29

1.4 O liberalismo proposto universal em Locke

Dentro dos autores jusnaturalistas aqui selecionados – e de todos os autores que podem
ser compreendidos dentro dessa corrente do pensamento –, pouco são capazes de um diálogo
tão próximo com a contemporaneidade quanto John Locke. Enquanto a teoria hobbesiana
abordada pode ser considerada a pedra fundamental do contratualismo moderno e o ponto de
ruptura com o modelo aristotélico (MORRESI, 2006), observamos em Locke os fundamentos
que assentam, desde a publicação de sua obra, os princípios fundamentais do liberalismo, que,
a partir dessa base, irão se desenvolver e alcançar patamares cada vez mais dinâmicos e
específicos na sociedade moderna.
O autor inglês, em seu argumento liberal profundamente enraizado na propriedade
privada – como iremos desenvolver a seguir –, é considerado um dos principais autores
contratualistas modernos, pois, em sua obra, define com extrema precisão que o princípio da
legitimação das sociedades políticas é exclusivamente o consenso (BOBBIO, 1994). E esse
consenso, extremamente basilar na teoria lockeana, é expresso (ou tomado como tácito) por
meio do contrato social, de maneira a assegurar a governabilidade do Estado erigido. Conforme
Bobbio (1994),

De resto, também para Locke o contrato serve principalmente como instrumento


necessário à finalidade de permitir a afirmação de um certo princípio de legitimação
(a legitimação baseada no consenso) contra outros princípios. Se aqueles sobre quem
esse poder se exerce, na origem da sociedade civil deve ter existido um pacto, se não
expresso, pelo menos tácito, entre os que deram vida a tal sociedade. (p. 64)

Todavia, ao contrário da teoria hobbesiana, para Locke, o estado de natureza a ser


superado pelo contrato social não é caracterizado pela guerra de todos contra todos, mas, sim
de “perfeita liberdade” (LOCKE apud MORRESI, 2006), assentado na perfeita racionalidade e
moralidade dos homens iguais entre si, no qual as únicas leis em vigência são as da razão –
também contrariamente a Hobbes. Como sintetiza Morresi (2006), “(...) o estado de natureza é
aquele no qual os homens gozam dos seus direitos naturais em forma direta e estão obrigados
unicamente à lei da razão” (p. 379). Cabe-nos destacar desde esse momento que, enquanto nos
demais autores jusnaturalistas – enquanto base e expressão do movimento de ascensão burguesa
ao posto de classe dominante – a propriedade privada é colocada como ponto basilar de maneira
implícita, em Locke os “direitos naturais” supracitados (os quais podem ser interpretados como
conceito central de seu sistema teórico) são explicitamente situados como a propriedade pessoal
e privada do indivíduo.
30

Morresis (2006) explicita que, em Locke, o estado de natureza, e sua passagem para um
estado político, fundamenta-se nos direitos naturais vistos pelo autor inglês como o direito à
propriedade. Apenas aqueles que tenham trabalhado – ou trabalhem – para possuir, podem ser
creditados de uma racionalidade capaz de coexistir na “perfeita liberdade”. Com efeito, apenas
os “proprietários” estarão aptos à interpretação da lei natural do homem e julgar quando suas
propriedades estão sendo violadas e é necessário uma ação para corrigir a situação. Locke toma
como propriedade não apenas tudo que pertence ao homem em conjunto, naturalizando assim
o sentido amplo do conceito de propriedade, coloca no mesmo arcabouço categorial a
propriedade de bens e a propriedade da própria vida, entretanto não permite a cisão dessas
posses ao considerar o cidadão digno de ser racional.
Uma questão, porém, subsiste ao conteúdo desenvolvido. Se o estado natural
corresponde a uma “perfeita liberdade”, no qual os indivíduos são guiados por sua racionalidade
e são capazes de interpretar a lei natural, de acordo com uma moral, e salvaguardar suas
propriedades, qual motivo os levaria partir desse estado para um estado político? Ou, colocado
de maneira mais sucinta, qual a necessidade de alterar um estado de “perfeita liberdade”?
A resposta lockeana é, deveras, também sucinta. Pouco, efetivamente, falta para a
perfeição social no estado de natureza, posto que cada um é capaz de agir de acordo com a razão
e usar (legitimamente) a força apenas na defesa de suas propriedades. Mas é justamente esse
predicado que compõe o cerne do problema para o autor já que, dentro da razão e da
possibilidade do uso da força, cada um teria que julgar a violação de suas propriedades por
outros, podendo engendrar uma transição a um estado de guerra – caracterizado pelo conflito,
pela luta brutalidade e decadência (LOCKE apud MORRESIS, 2006). Bobbio (1994) também
aborda a questão:

Na concepção de Locke, a transferência dos direitos naturais é parcialíssima. O que


falta ao estado de natureza para ser um estado perfeito é, sobretudo, a presença de um
juiz imparcial, ou seja, de uma pessoa que possa julgar sobre a razão e o erro sem ser
parte envolvida. Ingressando no estado civil, os indivíduos renunciam
substancialmente a um único direito, ao direito de fazer justiça por si mesmos, e
conservam todos os outros, in primis o direito de propriedade, que já nasce perfeito
no estado de natureza, pois não depende do reconhecimento de outros mas
unicamente de um ato pessoal e natural, como é o caso do trabalho. Aliás, a finalidade
em função da qual os indivíduos instituem o estado civil é principalmente a tutela da
propriedade (...)” (p. 73 – grifos nossos)

Observamos, portanto, que, para o pensador inglês, o objetivo essencial de um pacto de


governo consiste na salvaguarda da propriedade; sendo um governo fundado e com objetivo
bastante esclarecido na propriedade privada. Tal fato, segundo Morresi (2006), aborda apenas
31

uma distinção analítica entre propriedade e governo, justificando a interpretação – já majoritária


na interpretação dos textos de Locke – de haver apenas um pacto a ser realizado, inevitável de
acordo com a sustentação lockeana. Pois, “(...) enquanto se cria a propriedade, funda-se um
governo para zelar por ela” (MORRESI, 2006, pp. 384-385).
Destarte, para proteger o fundamento de toda a humanidade – a propriedade –, os
cidadãos racionais abdicam de suas habilidades de julgamento a um juiz imparcial para que
esse, e somente essa figura, possa julgar e castigar de acordo com a lei da natureza. Aqui cabe
o destaque para o desenvolvimento criterioso de Locke ao explicitar que essa figura capaz de
julgar não precisa, necessariamente, consistir de apenas uma pessoa, podendo ser melhor
caracterizado como corpo político de acordo com o autor inglês (MORRESI, 2006).
Outra característica importante à nossa análise é a maneira explícita como o sistema
lockeano coloca a propriedade e os interesses individuais como seus argumentos basilares,
como supracitado. Nas palavras do autor: “Por poder político, entendo o direito de fazer leis
com penalidade de morte e, por conseguinte, com toda penalidade menor, para o fim de
regulamentar e conservar a propriedade” (LOCKE apud BOBBIO, 1994, p. 74). Coutinho
(1996), ao comparar o sistema teórico rousseauniano com de Hobbes e Locke, explicita como
nos últimos é assentado o indivíduo natural como com traços claramente do indivíduo burguês.
Assim, como situa Bobbio (1994) a sociedade civil fundada no pacto consensual
defendido por Locke possui caráter utilitário (ainda que essa utilidade seja para uma classe
específica, tornada universal), posto que o estado de natureza explicitado pelo autor inglês não
é, necessariamente, prejudicial ao homem e apresenta apenas a possibilidade de incorrer em um
estado de guerra. Morresi (2006) realiza uma síntese dos estágios fundamentais postulados por
Locke:

Recapitulando o exposto, distinguem-se, no modelo lockeano, os seguintes quatro


estágios: 1) o estado de natureza: caracteriza-se pela vigência da lei natural (que
manda proteger a propriedade em sentido amplo) como única norma, e pela ausência
de um juiz suprapartes que dirima e sancione em função da mesma; 2) o estado de
guerra: inicia-se pelo uso injusto da força e se auto-define; 3) o estado de paz: é
autodefinido e se caracteriza por ser aquele no qual não há um uso injusto da força; 4)
o Estado, sociedade política ou Commonwealth: caracteriza-se pela presença de um
juiz suprapartes com o poder de fazer cumprir as sentenças, que interpreta a lei natural,
positivisando-a e transformando-a, assim, em lei civil. (p.381)

Morresi (2006) destaca que a liberdade postulada pelo pacto lockeano, por meio da
renúncia a um único direito – de julgamento –, possui em sua estrutura a salvaguarda do
fundamento central para o autor que é a propriedade; pois, ao eleger um representante (ou
alguns representantes) para o asseguramento do funcionamento da sociedade civil, o autor
32

garante que, mesmo em caso de caos e rebelião, o máximo que se alcance é a alteração do modo
de julgamento ou da figura de julgamento que sintetizará o Estado, mantendo intocada a ordem
social que legitima a propriedade. Com efeito, o autor apregoa a liberdade (o consenso) como
um dos pilares de toda ordem política, todavia, naturaliza uma liberdade historicamente
específica, a liberdade mercantil, que marcará a discussão política constantemente a partir de
então.
Pois, como situa Morresi (2006), enquanto a política tem seu foco nas lutas pelos
diversos interesses e necessidades, o pacto – em especial a nós, o pacto jusnaturalista – concede
legitimidade aparente a um acordo entre partes. Entretanto, a legitimidade concedida por um
pacto não implica necessariamente a negação superadora de um conflito, apenas naturaliza o
triunfo de interesses específicos, relegando a grupo discordante a um local de marginalidade.
Porém, ainda que o pensamento não alcance o status revolucionário na forma de
alteração real da organização social preconizada, observamos que o caminho teórico do
jusnaturalismo é alterado radicalmente se for incluída a dimensão processual da história como
fundamento ontológico do indivíduo político, ao invés da naturalização de características
especificamente datadas e covalentes com a ordem social em ascensão. Esse exemplo pode ser
observado, de certa maneira, em Rousseau, que abordaremos a seguir.

1.5 Rousseau e o princípio de crítica à emancipação política burguesa

Conforme situamos anteriormente, Rousseau é, historicamente, incluído no grupo de


autores denominados de jusnaturalistas, posto que seu pensamento de fato situa um estado de
natureza humano e direitos imanentes à sua existência. Entretanto, demonstraremos aqui como
o pensador busca em seu trabalho criticar as concepções filosófico políticas de seus
predecessores como Hobbes e Locke, iniciando a fundamentação de um trabalho teórico que o
aproximará muito da crítica marxiana da parcialidade da emancipação política. Segundo
Coutinho (1996), a base da formação social presente em Hobbes e Locke – uma ordem
mercantil e ontologicamente individualista – é diferente daquela defendida por Rousseau, o
qual demonstra em sua análise a presença de uma relação necessária entre o regime político e a
base econômica-social existente.
As diferenças do pensamento rousseauniano em comparação aos outros dois autores
jusnaturalistas aqui explicitados revelam-se – como mostraremos a seguir – maiores do que
coloquialmente se atribui, e uma das principais razões para essa diferença situa-se na concepção
de indivíduo que esse autor preconiza. Sendo assim,
33

Em Rousseau, (...), a concepção do indivíduo é distinta: para ele, as determinações


essenciais do homem enquanto homem (inclusive o pensamento racional, a linguagem
articulada e o sentimento moral) não são atributos naturais, pré-sociais, mas – como
logo veremos – resultam precisamente do processo de socialização. Além disso, para
Jean-Jacques, a estipulação do contrato social não tem como meta a conservação de
um mundo de indivíduos privados garantido por uma esfera pública “especializada” e
“separada”, como em Hobbes e Locke; ao contrário, é algo que reorganiza a própria
forma de articulação entre o público e o privado, de modo a que a sociabilidade se
torne um elemento constitutivo imanente ao próprio indivíduo: a vontade geral e o
interesse comum não se impõem ao indivíduo como algo externo, mas são uma
emanação de sua própria individualidade. (COUTINHO, 1996, p. 7)

Apresentado como um estado histórico por Rousseau (BOBBIO, 1994), o estado de


natureza do ser humano é mais complexo que dos autores anteriores, posto que em seu
constructo teórico não temos apenas uma dicotomia antitética (estado de natureza e estado
civil), mas, sim, uma concepção triádica (estado de natureza, sociedade civil e república), na
qual apenas o estado de sociedade civil, como era percebido pelo autor, teria um caráter
“negativo”.

O estado originário do homem era um estado feliz e pacífico, já que o homem – não
tendo outros carecimentos além daqueles que podia satisfazer em contato com a
natureza – não se via no dever nem de se unir nem de combater os próprios
semelhantes. Mas era um estado que não podia durar; por uma série de inovações, a
principal das quais foi a instituição da propriedade privada, ele degenerou na
sociedade civil (entenda-se civilizada), onde ocorre o que Hobbes imaginara ocorrer
no estado de natureza, ou seja, a conflagração de conflitos contínuos e destrutivos pela
posse dos bens que o progresso técnico e a divisão do trabalho haviam aumentado
enormemente. (BOBBIO, 1994, p. 56)

Conforme nos alerta Coutinho (1996), o estado belicoso da sociedade civil de Rousseau
– que seria similar ao estado de natureza para Hobbes – deve ser compreendido não como algo
rígido e de aversão à socialização do “sujeito primitivo”, mas, sim, como uma crítica das
condições de socialização (em particular, das condições concretas do sistema de produção),
demonstrando que, sob um regime desigual, o que ocorre é a institucionalização da
desigualdade, conforme veremos a seguir.
Ainda que apresente críticas contundentes aos seus antecessores, o pensamento
rousseauniano ainda estabelece atributos naturais ao ser humano, justificando sua inclusão no
pensamento jusnaturalista moderno. Entretanto, o estado de natureza em sua construção teórica
possui determinada complexidade, pois – eliminadas todas as características advindas do
processo de socialização – o “sujeito natural” é dotado de dois princípios anteriores a razão: um
de assegurar o bem-estar e conservação e outro de repugnância ao sofrimento alheio, o qual
poderíamos traduzir como empatia.
34

Rousseau nos fala assim de um instinto de conservação, através do qual o indivíduo


se refere a si mesmo; mas também nos fala de um sentimento que designa como
“piedade” ou “compaixão” (“pitié”), que pode ser considerado como uma forma
primordial de expressão do humano-genérico no indivíduo. Desse modo, já em sua
estrutura instintual (ou, se preferirmos, pulsional), o indivíduo natural rousseuniano
se abre – através da pitié – para a sociabilidade, para a participação (...) no gênero
humano. Além do mais, nem mesmo o “instinto de conservação” pode ser definido ao
modo de Hobbes; para Rousseau, esse “instinto” não conduz necessariamente ao
egoísmo, a uma luta de todos contra todos. (COUTINHO, 1996, p. 9)

A construção triádica de estados da sociedade em Rousseau, portanto, revela-se como


consequência de sua concepção de indivíduo, pois, ainda que coloque o estado de sociedade
civil como negativo, o autor revela a potencialidade humana, ao creditar à passagem do estado
de natureza à sociedade civil como fator de atualização de sua essência, adicionando –
ineditamente – a categoria da historicidade na questão contratualista (COUTINHO, 1996).
Segundo Matteucci (1998), o estado de natureza rousseauniano refere-se ao ser livre,
que se satisfaz facilmente em suas poucas necessidades elementares, desejando apenas viver no
ócio. O autor ainda contribui com nossa análise dizendo ser necessário compreender que a
diferença entre Hobbes e Rousseau situa-se mais na apreciação desse estado de natureza do que
em sua descrição; ou seja, trata-se de uma diferença na concepção desse sujeito, não se tratando
de um mesmo objeto de estudo descrito de maneiras diferentes.
Concebendo como insustentável que o ser humano permaneça em seu estado de natureza
– ainda que esse lhe seja livre e agradável, não é capaz de fornecer as condições para sua
evolução social –, Rousseau nos fala da socialização como uma etapa ainda prévia ao estado
político emancipado, o estado da sociedade civil; entretanto o faz introduzindo categorias que
revelam a profundidade de sua análise. Como podemos observar em Coutinho (1996):

Embora Jean-Jacques pareça deplorar o processo histórico de socialização, é inegável


que lhe atribui um decisivo papel ontológico-genético na construção do ser humano,
tanto no nível individual como no plano da espécie: pondo fim ao isolamento do
indivíduo natural, multiplicando as necessidades humanas e gerando ao mesmo tempo
a faculdade de satisfazê-las, ampliando a produtividade do trabalho por meio de sua
crescente divisão e especialização, o processo de socialização é a causa material e
eficiente que faz o homem passar de potência ao ato. (p. 11)

Segundo Bobbio (1998), a sociedade civil em Rousseau aproxima-se do estado de


natureza de Hobbes, posto que se apresenta como um estado de guerra permanente, onde impera
as usurpações dos ricos e o banditismo dos pobres, aparentemente colocando paradoxalmente
os avanços da razão humana com a deterioração de sua condição. Destarte, outra diferença
35

notável no pensamento rousseauniano é a possibilidade da existência de uma sociedade


civilizada, mas que não alcançou sua emancipação política, ou seja, enquanto nos outros autores
aqui referenciados, a civilização é necessariamente política, para Rousseau os dois não são
simultâneos.

O paradoxo se dissolve se compreendermos que não estamos diante de uma


contradição lógica do pensamento de Rousseau, mas sim da elevação a conceito de
uma contradição objetiva (histórico-ontológica) do processo de socialização por ele
examinado.
Uma análise da resposta que Rousseau buscou dar àquela questão, sobretudo na
segunda parte do Discurso, mostra que a sua demolidora crítica não incide – ao
contrário do que supõe uma opinião predominante de sua época – sobre a sociedade
em geral: ela se dirige a uma sociedade concreta, ao que ele chama de “sociedade
civil” que é na verdade a ordem social mercantil-burguesa de seu tempo.
(COUTINHO, 1996, p. 13)

Assim Rousseau caracteriza o estado de sociedade civil que observa em sua análise, um
estado de caos, porém com avanços da socialização. O autor explicita dessa maneira que há
mais aspectos demandantes de consideração para a possibilidade de emancipação política ao
ser humana. A dimensão fundamental que exige atenção, segundo Rousseau, é a dimensão
econômica-social, sintetizada por ele na categoria da propriedade privada: origem e fundamento
da desigualdade entre os homens. O que Rousseau crítica no estado de sociedade civil, portanto,
“(...) não é tanto o fato de que os homens dependam uns dos outros para satisfazer seus
carecimentos, mas sim o modo peculiar pelo qual se dá essa dependência, ou seja, nos quadros
da propriedade privada e da divisão do trabalho” (COUTINHO, 1996, p. 15).
Ou seja, a crítica rousseauniana incide não no produto final das relações sociais
observadas pelo autor – em parte, como fazem os demais autores jusnaturalistas –, mas
principalmente no modo, na mediação utilizada para a realização dessa transição do estado de
natureza ao estado civil. É por meio da propriedade privada e divisão social do trabalho que o
autor apreende os argumentos centrais para a desigualdade entre os homens, revelando uma
diferença fundamental em Rousseau: a compreensão histórica de características humanas.
Enquanto os demais autores aqui abordados possuíam como fator universal em seu argumento
basilar a desigualdade entre os homens (e as características advindas dessa desigualdade), o
autor suíço reconhece o processo de formação dessas desigualdades – ainda que com suas
limitações – e, para se contrapor a esse modelo, propõe um terceiro estado possível à
organização humana: a República.
O terceiro modelo proposto por Rousseau, de acordo com Coutinho (1996), diferencia-
se já desde o princípio pelo modelo de pacto que exige. Enquanto os demais pactos tendem a
36

sancionar uma situação de desigualdade, para alcançar uma república verdadeiramente


igualitária, o autor estabelece dois pressupostos fundamentais: relativa igualdade de riquezas –
consequentemente, de propriedade – e assegurar o predomínio da vontade geral. O contrato
legítimo, dessa maneira, implicaria necessariamente a subordinação da propriedade privada ao
interesse comum; passagem que revela que, para Rousseau, a propriedade não é um direito
natural inalienável como em Hobbes e Locke. Ao diferenciar o contrato legítimo (originador da
República) do contrato iníquo (originador da sociedade civil), o pensamento rousseauniano traz
a crítica inicial do modelo de política que viria a se estabelecer sob a égide da burguesia como
classe dominante, já demonstra uma diferenciação incipiente da emancipação política da
emancipação humana (que abordaremos segundo as elaborações de Marx no segundo capítulo
desse trabalho). Segundo o autor:

O pacto fundamental [legítimo], ao invés de destruir a igualdade natural, substitui por


uma igualdade moral e legitima aquilo que a natureza poderia comportar de
desigualdade física entre os homens, os quais, podendo ser desiguais na força ou no
gênio, tornam-se todos iguais por convenção e direito [...]. Sob os maus governos [ os
resultante do contrato iníquo], essa igualdade é somente aparente e ilusória; serve
apenas para manter o pobre em sua miséria e o rico em sua usurpação. Na realidade,
as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm, donde se
segue que o estado social só é vantajoso quando todos têm alguma coisa e nenhum
tem demais. (ROUSSEAU apud COUTINHO, 1996, p. 25)

Observamos, portanto, que Rousseau, ao invés de naturalizar a propriedade como traço


inerente à sociedade humana, compreende-a em seu aspecto social e reconhece, inclusive, a
problemática que sua naturalização pode engendrar. Como aspecto central para a análise da
edificação do Estado moderno e suas consequências, a questão da propriedade e da
emancipação permeará toda a análise subsequente que realizaremos.
Tendo trazido sucintamente o arcabouço teórico dos autores jusnaturalistas, suas diferenças
e semelhanças, poderemos agora ampliar o desenvolvimento de nosso texto para a crítica
marxiana do Estado moderno, mantendo claro o caráter histórico e processual que a construção
desse modelo político assumiu dentro das relações sociais de produção. A crítica rousseauniana
nos serve como um indício inicial, tanto teórico quanto histórico, da necessidade de situarmos
a questão da propriedade e da emancipação dentro de um contexto mais complexo e total das
relações sociais humanas para, posteriormente, podermos analisar suas implicações para a
constituição da consciência humana, em suas limitações e potencialidades.
37

2 A CONCEPÇÃO DE POLÍTICA EM MARX E A EMANCIPAÇÃO HUMANA

Havendo construído uma base sintética do pensamento e construção do Estado - e


subsequentemente da concepção de política - na modernidade, podemos, agora, partir à crítica
marxiana e de autores marxistas acerca do pensamento político moderno, em particular, sob a
concepção liberal-burguesa presente nos autores jusnaturalistas destacados anteriormente. Tal
esforço, de elucidar a crítica já existente ao modelo liberal de homem e de sua política, serve-
nos como passo basilar à compreensão da relação de limitações e potencialidades observadas
contemporaneamente na política com o arcabouço teórico da Psicologia Histórico-Cultural, a
qual será detalhada no seguinte capítulo do presente trabalho.
Destarte, demonstrar-se-á no presente capítulo que as necessárias críticas realizadas por
Marx4 à teoria do Estado moderno – e, assim, ao pensamento político moderno – não se
encontram historicamente datadas como se esgotadas ao seu contexto de formulação, mas, sim,
possuem ainda presente importância para compreensão dos anacronismos sobre os quais
repousa o Estado sob a égide do modo de produção capitalista. Com efeito, a retomada do
pensamento político marxiano – aliada a textos de comentadores - que realizaremos, além de
estar situada no fundamento de nossa investigação, também enseja salientar a importância de
suas contribuições à filosofia política, ainda que não possam jamais ser reduzidas unicamente
à “dimensão política”. Conforme nos explicita Boron (2007):

Porque para o marxismo nenhum aspecto ou dimensão da realidade social pode


teorizar-se à margem –ou com independência– da totalidade na qual aquele se
constitui. É impossível teorizar sobre “a política”, como o fazem a ciência política e
o saber convencional das ciências sociais, assumindo que aquela existe em uma
espécie de limbo posto a salvo das prosaicas realidades da vida econômica. A
“sociedade”, por sua vez, é uma enganosa abstração sem ter em conta o fundamento
material sobre o qual se apóia. A “cultura” entendida como a ideologia, o discurso, a
linguagem, as tradições e mentalidades, os valores e o “sentido comum” somente pode
sustentar-se graças a sua complexa articulação com a sociedade, a economia e a
política. (p. 196)

Optaremos, em vista disso, por iniciar a trajetória do presente capítulo pela concepção
de política segundo enfoque de autores marxistas norteados pela metodologia do materialismo
histórico-dialético, i. e., autores que, baseados pela teoria marxiana, retomaram, atualizaram e

4
A crítica de Marx, iniciada em sua juventude, advém inicialmente do contexto histórico no qual estava inserido
na Alemanha, atrasada na formação de seu “Estado-Nação” e ainda fortemente guiada pelas ideias hegelianas.
Bensaïd (2010) sintetiza que a trajetória do pensamento marxiano acerca da questão do Estado marca sua transição
do liberalismo renano à luta de classes e à revolução permanente, nas seguintes publicações: Crítica da filosofia
do direito de Hegel (1844), Sobre a questão judaica (1844), “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”
(1844) e A sagrada família (1845) – datas de publicação original.
38

desenvolveram o constructo teórico presente em Marx, permitindo-nos o avanço acerca da


compreensão da totalidade de nosso objeto selecionado. Posteriormente, sob novo nível de
suporte teórico, retornaremos à crítica política em Marx, para demonstrarmos a necessidade de
uma visão classista na apreensão da problemática do Estado moderno.

2.1 Política como práxis social

Embora compreendamos a política como conceito também anterior à divisão da


sociedade em classes5 – como fator ontológico do ser social, posto que a produção coletiva da
vida verdadeiramente humana esteve sempre subordinada a um projeto teleológico mesmo em
suas formas mais rudimentares –, nosso trabalho terá seu foco na política dentro do contexto de
luta entre classes por compreender que este momento é inaugurado como primeiro momento de
tensão na sociedade e, também, pois acreditamos que politicamente é mais relevante para nossa
pesquisa a análise desse modelo que regeu a sociedade majoritariamente em sua “pré-história”
social.
Enveredar na discussão da função conceitual da política – sob os fundamentos do
materialismo histórico dialético – requer que compreendamos sua função primordial de
regulação da produção – e, assim, existência – humana, em um contexto histórico no qual haja
mais de uma classe, cindindo as propostas de melhor encaminhamento da sociedade. Segundo
Da Mata (2014), é

Importante frisar que o primeiro ponto de tensão da sociedade é a propriedade privada.


O surgimento da propriedade privada separa trabalho teórico e trabalho material,
produzindo a separação entre teoria e prática pela divisão do trabalho. O pensar,
organizar, administrar e desenvolver teorias explicativas da sociedade se torna
atividade própria das classes possuidoras dos meios de produção. Uma das
consequências da propriedade privada é a repressão, uma vez que ela cria um grupo
proprietário (de meios de produção, de cultura, de serviços e bens de consumo) e um
grupo não proprietário, expropriado não só da propriedade material, mas do tempo
livre para a produção teórica. A classe não proprietária é expropriada também da

5
Apesar de não podermos empreender uma análise maior da categoria de classes sociais, cabe-nos o destaque que
Lima (2005) contempla a trajetória desse conceito dentro do marxismo, suas divergências e convergências. Vale
nesse momento salientar que, segundo o autor: “(...) o conceito de classe social em Marx surge com um duplo
significado. De um lado, como categoria analítica, indica um movimento, uma relação social, expressando o
conteúdo genérico-abstrato das determinações comuns e gerais sob as quais, nas sucessivas épocas históricas, o
trabalhador produtor de valor foi realizado sob a égide da dominação política e exploração econômica. De outro,
como categoria histórica particular, indica uma estrutura social e sujeito localizados no interior da produção
capitalista expressando o sentido específico-particular pelo qual a demonização e exploração dessa época histórica
opõem-se àquelas próprias das sociedades estamentais e de castas e delas se distingue. Com esse último sentido,
Marx utiliza o termo em diferentes passagens d’O Capital, referindo-se às forças motrizes da sociedade.
Posteriormente Lênin insistirá nesse sentido do conceito, esclarecendo como para o marxismo, a constituição de
uma classe é definida a partir de suas relações com os meios de produção (...)” (LIMA, 2005, pp. 2-3).
39

cultura e da elaboração teórica. Por isso, quando há conflito de interesses no


encaminhamento da sociedade, fundamentalmente é em relação à propriedade
privada. Quando, a partir desse ponto de tensão, fica inviabilizado um projeto coletivo
de sociedade, os poderes para sua organização concentram-se nos possuidores dos
meios de produção. (p. 73)

Destarte, com a divisão social do trabalho, observamos a existência de duas classes com
projetos diferentes no concernente à produção e à manutenção de sua sobrevivência. Ainda
segundo o autor, a existência de uma classe proprietária e outra não-proprietária carrega consigo
a necessidade do poder de regulação como poder também propriamente material, inaugurando
a manifestação da política como dominação do homem pelo homem. Entretanto

Quando duas classes estão em oposição, podem chegar à destruição do modo de


produção. Por isso, ainda que se oponham, possuem interesses comuns: ambas querem
que todos vivam porque se necessitam. Para conviverem e viverem, é necessária a
regulação. Estabelecem-se, então, regras, leis, que organizam o modo como se produz
e reproduz a existência e sua correlação de forças num dado momento histórico. O
princípio regulador, contudo, é o da classe proprietária. (DA MATA, 2014, p. 73)

A divisão social do trabalho resgatada pelo autor anteriormente como base para o
primeiro ponto de tensão na sociedade é desenvolvida com maior detalhamento em Marx &
Engels (2009), destrinchando três momentos fundamentais para a existência histórica do
homem: produção de meios para a satisfação das necessidades (a produção da própria vida
material como primeiro ato histórico); a satisfação de necessidades conduzindo a novas
necessidades diversas das primeiras; e a reprodução dos próprios indivíduos. De acordo com os
autores, “A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge
uma divisão do trabalho material e espiritual [geistigen]. A partir desse momento, a consciência
pode realmente dar-se à fantasia de ser algo diferente da consciência da práxis existente (...)”
(MARX & ENGELS, 2009, p. 45 – grifos dos autores). Divisão do trabalho e propriedade
privada aqui, são expressões sinônimas, respectivamente, da atividade e de seus produtos
desigualmente divididos.
Seguindo adiante no desenvolvimento do pensamento teórico dos autores, observamos
a indicação que a divisão social do trabalho implica, concomitantemente, na contradição entre
os interesses particulares e comunitários, ambos interesses não sendo meras representações
imaginárias, mas, sim, exigências existentes concretamente na dependência mútua dos
indivíduos e suas características singulares. “E é precisamente por essa contradição do interesse
particular e do interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma organização
[Gestaltung] autônoma como Estado (...)” (MARX & ENGELS, 2009, p. 47). A organização
do Estado e suas implicações serão abordadas futuramente nesse capítulo; nesse momento,
40

cabe-nos o destaque da contradição entre interesses que a divisão social do trabalho produz,
exigindo algum processo regulatório que o torne sustentável à existência social.
Ainda que apenas apontando um norte para a sustentabilidade da reprodução humana,
Mészáros (2015) vem ao nosso encontro quanto à possibilidade – e necessidade – regulatória
exercida pela política:

(...) o funcionamento saudável da sociedade depende, por um lado, da natureza das


ações produtivas materiais, de acordo com as condições históricas específicas que
definem e moldam seu caráter, e, por outro lado, da modalidade de processo geral de
tomada de decisão política que complementa o processo sociometabólico, tal qual
ativado na multiplicidade das unidades reprodutivas particulares, ajudando-as a coerir
em um todo sustentável. (p. 93 – grifos do autor)

As ações produtivas materiais supracitadas tornam-se, então, base para a compreensão


da organização social e, consequentemente, sua formação e efetividade política. Pois “Não é a
consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência.” (MARX & ENGELS,
2009, p. 32), recobrando a materialidade dos fenômenos sociais. Tornando necessário que
destaquemos aqui não apenas o conceito de política como abstração destacada de sua existência
concreta no cotidiano da humanidade, mas, também, que apreendamos seu desenvolvimento
quanto modo de regulação a partir do desenvolvimento real humano, em seus diferentes modos
de produção e a necessidade de sua mediação entre as classes. Segundo Almeida (2008):

(...) os fenômenos sociais não são determinados, como diria a tese idealista, por
projetos de um indivíduo ou grupo social, mas que tais projetos expressam um
movimento do real, baseado na contradição entre as relações sociais de produção e as
forças produtivas, o que dá origem à contradição entre as classes que representam
cada um desses pólos. (p. 78)

A política como fenômeno social não é, e não poderá jamais ser, determinada
idealisticamente como modelo externo pressuposto na organização humana, será,
necessariamente, relacionada diretamente, como objeto do movimento dialético, do modo de
produção concreto humano. A política, compreendida aqui como produção não-material
humana, estaria situada então “Como dimensão da atividade humana e como instância de
direção e controle da sociedade baseada na propriedade privada” (DA MATA, 2014, p.72)
Ao considerarmos a divisão social do trabalho e a propriedade privada como primeiro
ponto de tensão entre projetos de organização da sociedade, cindindo os interesses particulares
dos comunitários, fundando a possibilidade de classes sem acesso à propriedade dos meios de
produção e, portanto, a utilização da política como veículo de dominação do homem pelo
41

homem; precisamos adentrar brevemente o caráter histórico da organização social humana para
compreender o desenvolvimento da política, sua concepção e expressão contemporânea.
A passagem do modo de produção feudal ao capitalista engendrou um novo panorama
na organização humana, ainda que mantivesse a concepção acima destacada da cisão entre duas
classes, proprietários e não-proprietários. Seu principal movimento corolário foi no pensamento
teórico acerca do Estado e suas funções, bem como o exacerbamento de sua separação da
sociedade civil como instrumento de asserção de representação e regulação política. O que será
melhor detalhado no próximo tópico desse capítulo.
Ainda que seu viés regulatório se encontre, atualmente, deformado sob condições da
ideologia dominante, a política está presente no cotidiano de cada indivíduo singular, posto que
a condição básica ontológica do ser humano é ser social e, portanto, ser político. Ao
considerarmos que no panorama histórico geral a política venha sendo mascarada e extraída do
contato imediato do trabalhador, observamos como no sentido coloquial essa categoria ganha
caráter caricato, deformado de sua existência real, como exposto por Da Mata (2014):

Tal como entendida na atualidade, a política representa, exprime e indica a ideia de


engodo, de dominação do homem pelo homem, de um mal social que, quando tem
repercussões na vida cotidiana, são, no mais das vezes, perversas. Porém, a despeito
desta concepção, também permanece o entendimento comum de que, pela via política,
problemas sociais podem ser resolvidos. A vontade política é apresentada como a
instância a partir da qual a pobreza pode ser erradicada, as desigualdades sociais
superadas, a educação revigorada. A política, embora entendida como mal social, é
também apreendida como panaceia. (p. 70)

Apesar dessa concepção estranhada das potencialidades e condições elementares da


política, ela está necessariamente presente no cotidiano de todo ser social. Conforme Konder
(1965): “A política é uma dimensão da atividade humana. Desde que, com ou sem vontade de
fazê-lo, os homens vivem em sociedade, dependem da sociedade para nascer e sobreviver, não
há como ignorar a significação política que os comportamentos individuais inevitavelmente
assumem.” (p. 145).
Ou seja, observamos inicialmente aqui, a dupla percepção possível acerca da dimensão
política na atividade do sujeito em seu estado mais imediato: extraída dele em sua aparência
pelos mecanismos de controle da classe dominante, ao mesmo tempo que é condição essencial
de sua existência social. Konder (1965) nos exemplifica as minuciosidades que a política possui
na vida singular, tanto nas ações como omissões do sujeito, em seus silêncios e em suas ordens,
em seus projetos para sociedade, todas suas ações contribuem politicamente para a organização
social. Compreendendo a realidade humana como histórica e processual, em movimento, as
42

ações do indivíduo, agora compreendidas também em sua dimensão política, respondem a uma
questão que permeia toda sociedade de classes: suas ações visam a manutenção da estrutura
estabelecida (seus projetos políticos sobre a regulação da produção ensejam manter a atual
distribuição realizada) ou visam modificar a estrutura socioeconômica presente (contribuem
para a subversão do que é estabelecido e a construção de uma alternativa)?
Desejamos demonstrar a concepção de política – e posteriormente de Estado – de acordo
com autores marxistas, posto que, conforme explicitado no capítulo anterior, a construção de
sua concepção subordinada ao projeto político da sociedade burguesa, possui seu contexto
histórico de ascensão da burguesia como classe social dominante e, concomitantemente como
causa e consequência, a mercantilização da produção humana. Ademais, a tese jusnaturalista
apresentada de acordo com os autores selecionados, aparece como uma construção que
simultaneamente expressa o reflexo teórico do desenvolvimento histórico concreto da
sociedade ocidental e os moldes ao projeto político da sociedade burguesa em formação
(BOBBIO, 1994). Com efeito, o que aspiramos ressaltar, é o caráter material e histórico de
dada concepção política e também de sujeito.
A concepção aristotélica – e, de certa maneira, rousseauniana – de política e de sujeito
não encontra local para sua hegemonia no pensamento burguês tornado ecumênico no
desenvolvimento da Revolução Francesa. O modelo político de existência social requerida
pelas condições concretas de produção passou a pressupor o sujeito liberal com interesses
exclusivamente privados descrito por Hobbes e Locke, pronto à guerra contra todos e ao
julgamento soberano de todos, respectivamente, nos quais a tese dos direitos naturais
inalienáveis de cada pessoa pressupunha seus interesses e propriedades privadas.
Sobre a importância de compreendermos o contexto das ideias jusnaturalistas no
pensamento moderno, lembra-nos Coutinho (1999):

Esse conceito de "direito natural" - de direitos que pertencem aos indivíduos


independentemente do status que ocupam na sociedade em que vivem - teve um
importante papel revolucionário em dado momento da história, na medida em que
afirmava a liberdade individual contra as pretensões despóticas do absolutismo e em
que negava a desigualdade de direitos sancionada pela organização hierárquica e
estamental própria do feudalismo. Contudo, nessa versão liberal, o jusnaturalismo
terminou por constituir a ideologia da classe burguesa, sobretudo porque Locke e seus
seguidores consideravam como direito natural básico o de propriedade (que implicava
também o direito do proprietário aos bens produzidos pelo trabalhador assalariado), o
que terminou por recriar uma nova forma de desigualdade entre os homens. (p. 44)

Retomamos, portanto, o exemplo supracitado por Konder (1965) acerca das


minuciosidades da política na vida cotidiana para, também, ressaltarmos o caráter de práxis
43

social imanente à concepção defendida aqui de política. De acordo com Da Mata (2014):
“Konder não a apresenta como instância de decisões burocráticas e ideologicamente
comprometidas, mas como um dos aspectos da vida prática dos seres humanos. Não ser político,
nessa perspectiva, é estar alienado (estranhado) do fazer humano, é estranhamento do ser
humano em relação a si mesmo” (p. 71).
Ainda segundo Da Mata (2014):

O caráter de mal social, ou de panaceia, se institui com a cisão entre a esfera da vida
pública e a vida privada, transformando a política em elemento externo e estranho à
sociedade civil, contraposta ao indivíduo e abstratamente atrelada à ação do cidadão.
Trata-se do apoliticismo que, na análise de Konder, eterniza e naturaliza as relações
sociais existentes, tornando-as ahistóricas. Isto se dá pela suposição de que as
desigualdades historicamente engendradas sejam desigualdades naturais, relegando as
possibilidades de desenvolvimento a uma parcela diminuta dos seres humanos.

Destarte, a compreensão – presentemente julgada como equivocada – da política como


elemento externo à vida dos indivíduos privados, em sua cisão com a vida pública, revela
determinada construção histórica e teórica que destacamos anteriormente, em sua expressão nos
autores jusnaturalistas. Em síntese, e caminhando em direção oposta ao pensamento exposto
no capítulo anterior, desejamos trazer a contraposição do pensamento contratualista moderno,
no qual o Estado – e a política – situar-se-ia externamente à vida prática dos indivíduos, sendo
meramente uma instância de regulação pública de uma população com uma miríade de
interesses singulares.
As contribuições marxianas acerca da dimensão material, histórica e dialética da política
podem ser melhor compreendidas ao analisarmos a relação que o autor estabelece entre Estado
e sociedade civil, assim, traremos o aporte produzido por Marx nessa questão como uma das
bases do argumento que desejamos esclarecer ao longo do presente capítulo.

2.2 Sociedade civil e Estado, o pauperismo como fenômeno do regime do capital

Permeando a obra marxiana, principalmente ao que se relaciona à problemática política,


observamos uma fundamentada e constantemente renovada crítica às concepções filosóficas
incapazes de apreender o movimento histórico e material da realidade. No caso do conceito de
sociedade civil, temos a apreciação de Marx em diversas de suas obras, que, de certa maneira,
apesar do amadurecimento de seu pensamento, possuem uma base comum: a importância de se
assegurar na teoria a compreensão da totalidade abarcada pela sociedade civil diante de suas
derivações. Conforme observamos em Marx & Engels (2009):
44

A forma de intercâmbio requerida [bedingte] pelas forças de produção existente em


todos os estágios históricos até os nossos dias, e que por sua vez as requer, é a
sociedade civil [bürguerliche Gesellschaft] (...). Já por aqui se revela que esta
sociedade civil é o verdadeiro lar e teatro de toda a história, e que é absurda a
concepção da história, até hoje defendida, que despreza as relações reais ao confinar-
se às ações altissonantes de chefes e de Estados. (pp. 52-53)

Portanto, para Tonet (2004), Marx situa nessa passagem um pressuposto fundamental a
toda sua obra concernente ao Estado e à sociedade civil, a materialidade como matriz ontológica
do todo social. A partir de tal pressuposto, todas as categorias que serão analisadas serão
compreendidas como momentos – de especificidade e lógica própria – de uma totalidade
material e, dessa forma, jamais poderão estar situados como condição fundante das relações
matérias de existência. Como explicita o autor:

Para o que nos interessa aqui, que é a política, isto significa que o princípio de sua
inteligibilidade não se encontra no interior dela mesma, mas fora dela, o que, em
absoluto, não lhe suprime a especificidade nem a importância e nem a reduza a mero
efeito da economia, mas proíbe pensa-la, porque efetivamente não o é, como uma
esfera autônoma, cujos relacionamentos com outras esferas seriam externos e
fortuitos. Assim, nem o estado, nem a política, nem o poder seriam inteligíveis sem
as relações materiais das quais são a expressão e para cuja reprodução contribuem.
(TONET, 2004, p. 25)

A importância dessa contribuição reclama destaque dado que, ao iniciar a formulação


de sua concepção de política, Marx necessita romper com o pensamento hegeliano hegemônico
em sua juventude. Assim, quando o pensador compreende que “A anatomia da sociedade civil,
então, não se revela na constituição do Estado, mas na totalidade das relações produtivas que
se dão no seu interior” (DA MATA, 2014, p. 82), está realizando a necessária crítica à
concepção de Hegel de Estado. À guisa de realizarmos uma síntese, Marx demonstra que Hegel
acertou em sua crítica às teses jusnaturalistas e contratualistas, entretanto inverteu a ordem de
determinação na relação entre Estado e sociedade civil: não seria o primeiro a determinar a
última, mas, sim, o inverso (DA MATA, 2014). Ainda segundo o autor:

A partir desta crítica ao desenvolvimento especulativo do pensamento hegeliano,


Marx depreende que o Estado não diferencia nem determina sua atividade segundo
sua natureza específica que é, na verdade, apenas o fenômeno da atividade do Estado.
O movimento da sociedade civil, da esfera da produção, é que determina, em última
instância, a atividade do Estado. O modo como esta sociedade civil se organiza, como
produz e reproduz a si mesma, é o ponto de partida para a compreensão da própria
sociedade. Há em Marx clareza de que só se pode entender o Estado a partir da
sociedade civil. Se esta é regida pela expropriação, pela injustiça, pelos desequilíbrios
sociais, pelo individualismo da iniciativa privada capitalista e pela propriedade
privada dos meios de produção, então o Estado surge como instância que confirma e
45

expressa esse mesmo processo, uma instância legitimadora de uma comunidade


ilegítima e injusta. (p.83)

Podemos destacar aqui a diferença da concepção marxiana de Estado se comparado aos


autores jusnaturalistas supracitados, o pensador alemão pôde – a partir da utilização do método
do materialismo histórico dialético – apreender que a natureza do Estado não advinha de um
pacto social realizado para retirar a humanidade de seu estado de natureza bárbaro, mas, sim,
surgia como instrumento para regulação – e confirmação - da ordem social vigente. Se essa
ordem se pautava pelo egoísmo do homem liberal, proprietário da propriedade privada, logo, o
Estado se organizaria para assegurar os direitos privados de seus cidadãos. Destarte, podemos
observar, ainda que inicialmente, que a compreensão de Hobbes e Locke acerca do homem pré-
político (o qual viveria em puro caos na necessidade de proteger-se contra todos e sobreviver)
situa-se mais próximo ao cidadão político de Marx. Entretanto, sempre se faz necessário
destacar, embora essa descrição se assemelhe, os pressupostos que as enveredam são
extremamente distintas; Marx verifica o ignóbil modo de agir dos proprietários do meio de
produção de acordo com a construção histórica que desembocou em sua situação, não propõe,
assim, uma abstração apenas como base argumentativa para seu raciocínio, mas descreve o
objeto que estuda de modo a desvelar suas facetas passíveis de análise em suas condições
concretas.
Se o modo de organização da sociedade civil determina o modo como será organizado
o Estado, podemos aceitar a proposição de que há uma função desempenhada pelo Estado na
reprodução e manutenção do sistema capitalista de produção. Conforme Mészáros (2015):

Com efeito, os Estados do sistema do capital não são de forma alguma inteligíveis em
e por si mesmos, mas apenas como a complementariedade corretiva necessária para
os defeitos estruturais de outras formas incontroláveis de seu modo orientado para a
expansão da reprodução sociometabólica. E esse imperativo estrutural de expansão
pode ser impulsionado pelo bem-sucedido processo de acumulação apenas durante o
tempo em que ele puder prevalecer em seus termos materiais de referência
confrontando a natureza sem destruir a própria humanidade. (p. 18)

Assim, segundo o autor, os Estados modernos – do sistema do capital – não existem


como justificativas em si mesmo, não exercem uma função ahistórica, mas, sim, existem como
complementação corretiva dos efeitos destrutores inerentes ao modo de produção capitalista;
de modo a assegurar, concomitante e contraditoriamente, a continuação de um sistema
destrutivo e da humanidade que se encontra sob sua lógica.
Posto que realizamos o detalhamento da construção teórica que, no processo histórico,
desembocou na fundação do Estado moderno tal como trazemos no presente trabalho e
46

trazemos aqui a crítica avassaladora de Marx a essa formação estatal, vale-nos destacar que a
concepção de direito natural que serviu de base e foi baseada na ascensão ao modo de produção
capitalista serviu como um arcabouço teórico de cunho progressista e revolucionário, pois
objetivava a mudança da ordem societal hegemônica do feudalismo. Ensejamos, dessa maneira,
demonstrar que o caráter histórico do desenvolvimento da organização social não permite uma
simplificação unicamente maquiavélica dos pensadores jusnaturalistas, já que esses serviram
como expressão e como base a um movimento revolucionário progressista. A crítica que
trazemos e que está situada no pensamento marxiano trata de uma forma mais acurada de
compreender os limites intrínsecos à lógica inerente ao Estado moderno. Coutinho (1999)
realiza uma crítica síntese desse movimento histórico:

Esse conceito de “direito natural” – de direitos que pertencem aos indivíduos


independentemente do status que ocupam na sociedade em que vivem – teve um
importante papel revolucionários em dado momento da história, na medida em que
afirmava a liberdade individual contra as pretensões despóticas do absolutismo e em
que negava a desigualdade de direitos sancionada pela organização hierárquica e
estamental própria do feudalismo. Contudo, nessa versão liberal o jusnaturalismo
terminou por constituir a ideologia da classe burguesa, sobretudo porque Locke e seus
seguidores consideravam como direito natural básico o de propriedade (que implicava
também o direito do proprietário aos bens produzidos pelo trabalhador assalariado), o
que terminou por recriar uma nova forma de desigualdade entre os homens. (p. 44)

Realizado o devido esclarecimento sobre a importância de compreensão do caráter


histórico dos desvelamentos da organização humana, sem lhe atribuir unicamente valor moral,
retornaremos à crítica marxiana ao modelo de Estado moderno. Consideramos aqui, conforme
explicitado que, “Pra Marx, é o Estado que se constitui em produto do movimento histórico da
sociedade civil” (DA MATA, 2014). Destarte, se há uma lógica presente na sociedade civil que
serve não como consequência, mas como base para a formação estatal, devemos apreender que
a última – sob seu papel de reguladora política da produção – apresenta-se na modernidade
como justificadora das desigualdades estruturais e, justamente por ser consequência, é incapaz
de solucionar os problemas situados na totalidade das relações expressa na sociedade civil6.

6
Ainda que seja defendido por Coutinho (1999) que a crescente “socialização política”, observada no intercorrer
da história moderna até a contemporaneidade, ocasionou a mudança de mecanismo de funcionamento do Estado
para a passagem da simples coerção à manutenção dos interesses dos representantes do capital ao consentimento
dos governados, reconhecendo a ampliação dos direitos de cidadania política e social; pontuamos que a crítica
marxiana ao Estado trabalha como base para evitar que se mude a inflexão da relação entre os pólos
Estado/sociedade civil. Conquanto há de se reconhecer os frutos da constante luta dos trabalhadores organizados
visando melhores condições de vida, o que expomos até o momento já nos serve inicialmente para demonstrar
uma questão que será melhor detalhado com o decorrer do presente capítulo: não há possibilidade de superação
das mazelas do capitalismo na humanização do Estado. Por isso, não é possível seguir o raciocínio de Coutinho
(1999) em Cidadania e Modernidade; se o autor atribui a conquista de direitos pelos trabalhadores como limitados
ao Estado, aqueles que não alcançaram tais direitos e vivem na precariedade teriam de se organizar para conseguir
47

Pois, “Se a organização das forças produtivas é uma condição indispensável ao ser humano,
também é verdadeiro que a regulação política que justifica a desigualdade social é favorável
aos desequilíbrios do capital e incapaz de fazer a análise de seu próprio movimento” (DA
MATA, 2014, p. 84).
Ao responder ao artigo de Arnold Ruge em 1844 (“O Rei da Prússia e a reforma social,
por um prussiano”), Marx fundamenta sua crítica contra teses de que a as mazelas sociais
estariam unicamente relacionadas a condições políticas, burocráticas e administrativas situadas
no Estado ou a sua falta. Não seria, pois, para Marx, em seu artigo “Glosas Críticas Marginais
ao artigo ‘O Rei da Prússia e a Reforma Social. Por um Prussiano’ (1844/2011)” o excesso
ou a falta de desenvolvimento político de uma nação que acarretaria nos problemas de
desigualdade social, mas, sim, a contradição fundamental da sociedade civil burguesa entre
capital e trabalho humano. Como nos diz Chagas (2014):

Marx mostra que a política, assim como o Estado, enquanto instâncias de dominação,
não têm fins próprios, seus fins não são universais, pois eles atendem aos fins da
sociedade civil burguesa. Contra Ruge, Marx deixa claro que o Estado, além de ser
limitado e não ter fins próprios, não é livre, independente, mas órgão privado,
particular, instrumento de classe para assegurar a propriedade privada e a exploração
do trabalho alheio a serviço do capital, e, por isto, ele e sua administração são
impotentes para resolver os males sociais gerados pela sociedade civil burguesa,
baseada na contradição entre capital e trabalho. (p. 74)

Portanto, a vontade política unicamente não é capaz de, exclusivamente, solucionar as


mazelas sociais, dado que o Estado enquanto dimensão de representação política está
necessariamente atrelado ao modo de funcionamento da reprodução social da sociedade civil.
Não obstante seja possível e imprescindível a luta por melhores condições de vida dentro da
representação estatal política, sua redução a essa esfera as impõe um caráter ilusório, como
explicitado por Marx & Engels (2009): “Daqui resulta que todas as lutas no seio do Estado, a
luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito ao voto etc. etc. não
são mais do que as formas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes classes
entre si” (p. 47). Ademais,

A relação geral entre política e males sociais não pode ser uma questão de vontade
política. As circunstâncias objetivadas historicamente impedem que a vontade política
se efetive, oferecendo um conjunto de soluções bastante limitado para enfrentar os
problemas sociais. Não é o atraso político da Alemanha, mas a própria estrutura do
Estado, que impede a superação dos problemas sociais. Também não se pode aceitar

consentimento de seus direitos no Estado e não teriam de preocupar-se com a alteração da sociedade civil e sua
lógica capitalista de produção.
48

a tese de que a pobreza e a miséria sejam males próprios de países não desenvolvidos.
Quando o Estado está fundado sobre as bases da propriedade privada, da exploração
do trabalho, da geração de lucro, o pauperismo é sua conseqüência necessária, não
importando o quão desenvolvido é o país. (DA MATA, 2014, pp. 86-87)

Para desenvolvermos nosso pensamento, faz-se necessário que tragamos o significado


do pauperismo como conceito e a razão de seu emprego crescente na descrição da condição de
miséria a qual foi submetida classe trabalhadora a partir do processo de industrialização na
Inglaterra, a partir do berço do capitalismo. Segundo Larizza (1998),

O termo Pauperismo, derivado do vocábulo latino pauper, apareceu na Inglaterra e


entrou rapidamente em uso nos alvores do século XIX, sendo empregado para
designar o fenômeno de generalização, recrudescimento e progressiva estabilização
da indigência que assinalou, de forma dramática, as primeiras fases da Revolução
Industrial. Se o surgimento do termo no contexto particular de uma sociedade invadida
pelo processo de transformação capitalista serve para situar historicamente o
fenômeno por ele indicado, será, contudo, necessário observar que esse quadro
histórico foi ultrapassado pela prática lingüística que se valeu do vocábulo para
designar não só a chaga da miséria aberta com a Revolução Industrial, como também,
mais genericamente, o problema da pobreza em sua dimensão social, surgida como
tal com o nascimento do capitalismo moderno. (p. 909)

Observamos aqui que a popularização do uso do termo pauperismo possui íntima


relação com o processo de industrialização inglesa sob a égide do capital – e, como precisamos
relembrar, permanecerá nessa relação até a contemporaneidade – e representa como conceito o
malogro social a que está submetida a população miserável. O evento do termo ter se
popularizado nas primeiras fases da Revolução Industrial inglesa não é coincidente com a justa
crítica empregada por Marx a Ruge acerca da possibilidade de superação política da miséria em
seu artigo (1844/2011), ao tomar a Inglaterra como exemplo de seu contraponto. Chagas (2014)
nos revela como “Marx mostra contra Ruge que a Inglaterra é um país eminentemente político,
politicamente avançado, e, apesar disto, é o país do pauperismo, e aqui, a miséria dos
trabalhadores não é parcial, local, senão universal, não se restringe aos distritos industriais, mas
se estende ainda às regiões rurais” (p. 75). Pois, como nos é explicitado por Da Mata (2014):
“Até mesmo nos países mais desenvolvidos econômica e politicamente, o pauperismo é um
problema inevitável que nenhuma vontade política é capaz de suprimir” (p. 87).
Assim, o pauperismo, central na crítica marxiana a Ruge, serve como objeto de
expressão a uma condição muito mais fundamental da relação entre Estado e sociedade civil: a
impossibilidade da resolução das mazelas do último pela reforma das propostas presentes no
primeiro. O pauperismo, ao exigir uma resposta de assistência social do Estado, também revela
49

mais uma faceta distorcida da concepção política limitada em si mesma, a exigência da caridade
do Estado contra mazelas que estão para além de sua esfera de ação.

A tese de que a política seja a instância da resolução das misérias sociais é parcial,
insuficiente e equivocada. Não importa o nível de avanço do Estado, o único modo de
justificar a permanência do pauperismo é justamente considerá-lo como falha
administrativa ou de assistência. É a legislação que institui a assistência do Estado
pela via administrativa. Legislar sobre a pobreza, a fim de fornecer assistência aos
mais necessitados é uma medida paliativa porque não ataca o fundamento da miséria
(propriedade privada, exploração do trabalho), não tem a menor possibilidade de
eliminar a pobreza.
A caridade do Estado é o meio legal contra o mal social, mas incapaz de combatê-lo
e exterminá-lo porque a política burguesa não extermina as causas objetivas da
pobreza e nem abala as estruturas da própria sociedade capitalista, ela só ataca
efetivamente a expressão mais imediata do problema. (DA MATA, 2014, p. 88)

O pauperismo como mazela da sociedade moderna sob o regime do capital, apesar de


ser utilizado como exemplo por Marx (1844/2011), não está limitado ao modelo inglês de
gestão do Estado, mas, antes, é traço constitutivo do modelo de organização social da sociedade
civil cindida em classes proprietárias e não-proprietárias. Segundo Chagas (2014), na análise
marxiana, todos os Estados buscam a causa de seus males sociais em sua própria estrutura
administrativa e recorrem a medidas paliativa no intuito de remediar aquilo, na verdade, está
em seu fundamento. Portanto, o Estado não poderá resolver as condições de miséria de sua
população sem terminar por eliminar a si mesmo, posto que é a expressão de uma organização
social que repousa sobre a contradição da bonança de alguns em detrimento do trabalho de
muitos. Como expressa Marx (2011):

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da


administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a
si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a
contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais
e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade
formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu
trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente à conseqüências que brotam da natureza
a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria,
dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas conseqüências, a
impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia,
esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apoia o Estado
moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se
apoiava o Estado antigo. (...) Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência
da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse
eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como
antítese dela. (pp. 148-149)

Impossibilitado de solucionar a problemática do pauperismo por meio de medidas


assistenciais ou administrativas, o Estado revela a faceta mais perversa da mentalidade política,
50

segundo Da Mata (2014): a responsabilização do trabalhador pela miséria a qual é obrigado a


se submeter. Por meio dessa culpabilização, está justificado o exercício de violenta repressão,
sob intuito da disciplinarização das camadas miseráveis da sociedade civil, sempre que se torna
demasiadamente visível o pauperismo a que estão submetidas. Dessa maneira, assegura-se a
estabilidade contra a revolta dos miseráveis quanto à sua condição sub-humana e quanto ao
escancaramento das consequências concretas do regime de produção capitalista. Segundo Marx
(1844/2011): “Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de uma falta de assistência, agora se faz
derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos
pobres e, deste modo, neles punida” (p. 146).
Ainda que esteja longe de esgotado em sua explicação teórica, o fenômeno do
pauperismo foi pormenorizado aqui, posto que se revela ímpar à compreensão da problemática
do pensamento político moderno. A dimensão política da totalidade humana, ainda que permita
– e exija – construção teórica própria não pode ser compreendida como uma dimensão em si,
cindida do todo social que compõe a sociedade moderna, e um crasso exemplo dessa questão
revela-se sob a expressão do pauperismo trabalhada acima.
Entretanto, enquanto destacamos nesse ponto a impossibilidade de redução de
problemas sociais unicamente à esfera política do Estado, o estabelecimento da modernidade,
sob a lógica liberal, fundou uma concepção de sociedade civil que esvaziou-se e, conforme
expresso pelo lógica dos fundamentos teóricos expostos no primeiro capítulo deste trabalho,
colocou o sujeito sob uma lógica individual, na qual, sua autodeterminação tornou-se, em
aparência, apolítica.

2.3 Apoliticismo e participação política ilusória

Conforme exposto, em Konder (1965), revela-se que a dimensão política está para além
de uma prática externa ao indivíduo, limitada ao voto periódico na eleição de seus
representantes – no caso de uma democracia representativa, como ilustração. A dimensão
política encontra-se tanto nas ações quanto omissões dos sujeitos, nas minuciosidades de sua
prática cotidiana e, também, na manutenção ou transformação da ordem social vigente. Ao
sustentarmos anteriormente o caráter imanentemente formativo da política, compreendendo-a
como práxis social, desejávamos tecer a base da contraposição ao argumento do sujeito liberal
– visto como mônada – construído na ascensão do Estado moderno jusnaturalista, no qual a
individualidade singular imediata é tomada como universal e justificada na construção do
pensamento científico historicamente situado, incorrendo em uma fetichização do fenômeno
51

em sua aparência (PASQUALINI & MARTINS, 2015); gerando graves implicações para a
Psicologia, como abordaremos no próximo capítulo.
Tal contraposição é necessária, pois a política adquiriu um duplo caráter na
contemporaneidade enquanto aparentemente alheia ao indivíduo, ao mesmo tempo que é
tomada como seu principal instrumento de mudança da estrutura social, e em ambos casos não
consegue fugir de sua imediaticidade, de sua aparência. Da Mata (2014) explicita: “O caráter
de mal social, ou de panaceia, se institui com a cisão entre a esfera da vida pública e a vida
privada, transformando a política em elemento externo e estranho à sociedade civil, contraposta
ao indivíduo e abstratamente atrelada à ação do cidadão” (p. 71). Trata-se, por excelência, do
apoliticismo, como descrito por Konder (1965):

O sentido original do apoliticismo é êste: impedir que as classes e camadas da


população excluídas do exercício do poder tomem consciência das suas
potencialidades políticas, e queiram participar do contrôle da vida social. A ilusão
contida na idéia de uma atividade apolítica serve para escamotear ao exame da
inteligência dos governados uma série de problemas de cuja efetiva compreensão
podem advir dificuldades para os governantes (p. 147 – grifos do autor).

A ilusão de uma atividade privada apolítica serve, pois, para auxiliar na manutenção da
estrutura social vigente, gestando uma das características centrais do apoliticismo: naturalizar
e eternizar relações sociais historicamente construídas, conferindo-as caráter ahistórico
(KONDER, 1965; DA MATA, 2014). A divisão social do trabalho, supracitada, criara uma
situação na qual níveis diversos de influência política foram atribuídos a diferentes integrantes
de uma mesma comunidade, e a ilusão do apoliticismo permitiu – e permite – a manutenção
dessa cisão da política.
Isso se remonta a toda construção histórica da sociedade de classes, entretanto,
considerando o contexto de nosso objeto de estudo, cabe-nos destacar que, ainda nas sociedades
capitalistas mais desenvolvidas, a imensa maioria dos trabalhadores está alijada do poder de
decisão, aprofundando as desigualdades sociais já existentes (DA MATA, 2014). “As duras
condições de luta pela vida impostas aos trabalhadores excluem-nos, via de regra, da
participação no aparelho do Estado, como técnicos, administradores (KONDER, 1965, p. 147).
A sociedade civil – majoritariamente formada pelo trabalhador assalariado – não é
capaz, efetivamente, de tomar as rédeas do sistema de regulação política, o Estado, posto que a
superestrutura de produção capitalista retira do proletário sua potencialidade de influir no
processo decisório de seus destinos, mantendo-o constantemente na “luta pela vida”
(KONDER, 1965). Consoante com a arguição de Da Mata (2014):
52

O problema é que a imensa maioria dos trabalhadores está alijada do poder de decisão
na sociedade capitalista, agudizando as desigualdades sociais. Para os trabalhadores,
participar dos eventos políticos conforme eles se apresentam na forma democrático
burguesa é uma barreira invencível, posto que imensas desigualdades inviabilizem
uma participação efetiva tanto do ponto de vista econômico quanto cultural. Em
relação ao aspecto econômico, todo trabalhador pode votar e ser votado, mas não pode
competir com o representante burguês porque não dispõe dos meios econômicos para
lidar com a grande imprensa (normalmente empresas capitalistas) a fim de difundir a
propaganda necessária, por exemplo (p. 71).

Não sendo concedida ao trabalhador a possibilidade de, verdadeiramente, ingressar no


aparelho estatal para colocar em pauta seus interesses de classe, resta o exercício de uma
cidadania abstrata, na participação política democrática ilusória por meio do voto para escolher
seus representantes. Todavia, como explicitado em Mészáros (2015), na lógica utilitarista
liberal – como a que rege o modelo de voto na democracia burguesa7 - a realidade dos
antagonismos de classe (os quais determinam tanto a produção quanto a distribuição da
materialidade real da sociedade) é totalmente ofuscada, seja tanto pelo caráter do apoliticismo
supracitado, quanto pelas produções teóricas que buscam subsidiar o modelo hegemônico atual,
que buscam marcar uma orientação individualista da política, na qual a soma da vontade de
todos equivalerá ao melhor destino à comunidade. Como nos indica o autor: “Aqui, mais uma
vez, nos é oferecida uma grande suposição e distorção, agravada pela postura fetichista e
afirmação de quantificação mecânica. Pois não estão visíveis as considerações qualitativas
vitais necessárias para a compreensão da relação entre os indivíduos e suas comunidades” (p.
70).
Com efeito, observamos a dupla exclusão – pertencentes ao mesmo processo – que se
desenvolve no interior da lógica do apoliticismo sobre o trabalhador: desprovido da percepção
da política no seu cotidiano e de suas potencialidades próprias, concomitantemente que, na
prática, não pode participar efetivamente da democracia na qual está inserido. O poder do
Estado é contemplado pela sociedade civil como algo inalterável e ahistórico, servindo como
instrumento de dominação para a classe hegemônica:

7
O termo “Democracia Burguesa” é utilizado aqui de acordo com a proposição de Coutinho (1980), ao retomar a
polêmica de Lênin com Kautsky. Nas palavras do autor: “Quando, em polêmica com Kautsky, Lênin afirmou que
não existia ‘democracia pura’, que a democracia era sempre ou burguesa ou proletária, ele não punha em discussão
o que Berlinguer chama hoje de valor universal da democracia política. O que Lênin tinha em vista, contra o
formalismo oportunista de Kautsky, não era negar a validade do substantivo democracia, mas lembrar que – no
plano do conteúdo concreto – ele aparece sempre adjetivado. Em outras palavras: fiel ao ensinamento de Marx e
Engels, Lênin afirmava não poder existir – salvo em breves períodos de transição – regime estatal sem conteúdo
de classe determinado sem que uma classe fundamental no modo de produção determinante exerça através desse
regime (não importa por meio de quantas mediações) sua dominação sobre o conjunto da sociedade” (p. 35).
53

O poder executivo passa assim a ser encarnado por um grupo de burocratas que se
subtrai ao controle público e, com isso, transforma o Estado num corpo separado e
posto “acima” da sociedade. (...) o que a burocracia ligada ao Executivo faz, na
realidade, é “harmonizar” os interesses do capital em seu conjunto, pondo-se acima
das “paixões” individuais dos capitalistas singulares, e operar ao mesmo tempo no
sentido de que tais interesses se imponham “automaticamente” sobre o conjunto da
sociedade (COTUINHO, 1980, p. 39).

A ilusão do apoliticismo, embora possua reflexos na vida prática do trabalhador,


representa apenas uma das dimensões possíveis do processo de alienação. Segundo Konder
(1965):

Cindindo a atividade humana em duas esferas aparentemente autônomas e


frequentemente contraditórias – a esfera da vida pública e a esfera da vida privada –
a alienação possibilitou o aparecimento desta ilusão segundo a qual a atividade do
indivíduo na esfera da sua vida particular permitiria um abandono das suas
responsabilidades como cidadão (p. 145).

Konder (1965), assim como Marx (2015), explicita a necessidade que compreendamos
o processo da alienação como pluridimensional, ainda que possua – em nossa organização
social – sua principal expressão na dimensão econômica, de produção e manutenção da
sociedade. Na dimensão política, que constitui nosso foco, expressa e revela seus meandros de
desenvolvimento; sendo, porém, necessário reiterar como Almeida et al. (2011) que: “Assim,
embora se expressa na consciência, a alienação não tem origem na consciência, mas na
atividade material humana, fonte da consciência” (p. 553).
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx (2015) construiu seu primeiro
sistema abrangente de ideias (MÉSZÁROS, 2006), sendo que cada ponto particular abordado
na obra corresponde a um ponto anterior em seu sistema conceitual, bem como fundamentará
futuras construções do autor. Mészáros (2006) denomina essa obra de um sistema in status
nascendi, pois, é nesse primeiro sistema abrangente que Marx explora sistematicamente as
implicações de variados alcances na atividade humana do conceito-chave que o autor alcançou
em suas investigações: a alienação do trabalho8.
Segundo Mészáros (2006), a convergência dos pontos heterogêneos da alienação
situados anteriormente aos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 tanto na obra marxiana
quanto na de outros filósofos se deu sob o conceito de trabalho empregado por Marx. Nos
Manuscritos de 1844, o trabalho é contemplado tanto em sua universalidade como

8
Uma exposição minimamente suficiente fugiria tanto de nossa possibilidade teórica com o arcabouço conceitual
aqui levantado, quanto prática nas limitações do presente trabalho. Ressaltaremos aqui algumas questões essenciais
sobre o processo de alienação para que essa categoria possa ser empregada adequadamente em nossa pesquisa
acerca da dimensão política. Para maior detalhamento ver: Mészáros (2006)
54

determinação ontológica fundamental do ser social humano, quanto em sua particularidade na


forma da divisão do trabalho no capitalismo; é, notadamente, sob o último aspecto, que Marx
realiza sua investigação. O pensador alemão situa:

Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente.


O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a
sua produção cresce em poder e volume. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto
mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das coisas,
cresce a desvalorização do mundo dos homens em proporção direta. O trabalho não
produz apenas mercadorias; produz-se a si próprio e o trabalhador como uma
mercadoria, e, a saber, na mesma proporção em que produz mercadorias em geral.
Esse fato exprime apenas que: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, enfrenta-
o como um ser alienado [ein fremdes Wesen], como um poder independente do
produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se coisificou,
ele é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A realização do trabalho é
sua objetivação. Essa realização (Verwirklichung) do trabalho aparece na situação
nacional-econômica como desrealização (Entwirklichung) do trabalhador, a
objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como alienação
[Entfremdung], como exteriorização [Entäusserung] (MARX, 2015, pp. 304-305).

Mészáros (2006) situa a atividade como alienada “(...) quando se desvia da função que
lhe é própria, a saber, a de mediar humanamente a relação sujeito-objeto entre ser humano e
natureza, e, em vez disso, tende a fazer com que o indivíduo isolado e reificado seja reabsorvido
pela ‘natureza’” (p. 81 – grifo do autor). O filósofo húngaro explicita um sistema conceitual
como forma de compreensão do conceito de alienação nos Manuscritos Econômico-Filosóficos
a partir das categorias de mediação de primeira e segunda ordem. A relação do ser humano com
a natureza seria, segundo autor, “automediadora”, posto que consiste como aspecto ontológico
da atividade propriamente humana. A problemática da alienação, conforme abordada por Marx
(2015), situaria-se nas mediações de segunda ordem (divisão do trabalho, propriedade privada
e troca historicamente situadas no capitalismo) que rompem com a atividade automediadora
ontológica e a subordinam a seu produto, impedindo o trabalhador de compreender-se naquilo
que produz.
Conforme Marx (2015):

O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida


em que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas também
operativamente (werktätig), realmente, e contemplam-se por isso num mundo criado
por ele. Por isso, na medida em que arranca ao homem o objeto da sua produção, o
trabalho alienado arranca-lhe a sua vida genérica, a sua real objetividade genérica, e
transforma sua vantagem sobre o animal na desvantagem de lhe ser retirado o seu
corpo inorgânico, a natureza (p. 313)
55

Destarte, as mediações de segunda ordem, ao romperem a diretividade da relação


sujeito-objeto entre ser humano e natureza mediada ontologicamente pelo trabalho, cindem
diversas dimensões da totalidade da existência humana de suas possibilidades genéricas por
meio de quatro aspectos fundamentais situados por Marx (2015), retomados em Konder (1965)
e Mészáros (2006), que são9: a) Alienação do ser humano da natureza; b) Alienação do ser
humano de si mesmo – de sua própria atividade; c) Alienação do ser humano de seu ser
genérico; d) Alienação do ser humano dos demais seres humanos.
Esses aspectos da alienação elaborados em Marx (2015) revelam-se como mecanismos
para compreendermos como esse processo se articula nas diversas dimensões da condição de
ser social propriamente humana. Seguindo sua lógica, observamos que, na sociedade capitalista
– na qual as mercadorias alienadas do homem tornam-se mais relevantes que ele próprio – as
existências singulares perdem seu protagonismo frente a sua atividade, sua produção, seu
gênero e seus iguais; sendo governadas pela lógica mercantil de características reificadas.

Dêste modo, verifica-se que todo o esforço que o homem vinha desenvolvendo até o
capitalismo para dominar a natureza, para plasmar o mundo natural à sua feição, para
dar uma feição humana aos objetos naturais, é invertido e negado pelo
estabelecimento das relações capitalistas de produção. Dentro do todo constituído por
estas relações de produção, o homem é assimilado a um mundo de coisas (de vez que
as próprias relações inter-humanas, no plano geral da sociedade, assumem a feição de
coisas). E as coisas a cujo mundo o homem é assimilado, ao se tornarem diretoras do
movimento da história e da atividade humanas, se desindividualizam e perdem as suas
qualidades concretas ante os olhos dos homens, compondo um mundo desprovido de
existências singulares, um mundo indiferenciado, um mundo desumano, onde o
humano – especìficamente humano – se vê triturar e inapelàvelmente diluir
(KONDER, 1965, p. 112 – grifos do autor)

É, pois, nesse processo de perda de qualidades singulares, de desindividualização do ser


humano que podemos iniciar a compreensão da expressão da alienação na dimensão política,
sob a forma do apoliticismo. Conforme Konder (1965), o apoliticismo vale-se da situação criada
pela alienação para surtir seus efeitos; com a divisão do trabalho humano em especializações
cada vez mais específicas – e limitadas – cria-se uma virtualidade do atrelamento real dos seres
humanos, retirando a aparência da condição histórica da sociabilidade humana, levando a crer
que as práticas dos indivíduos não possuem consequências políticas.
Os efeitos na constituição da consciência de classe e da consciência individual que o
apoliticismo – e a alienação, de maneira – caracteriza serão abordados de maneira mais rigorosa

9
Pela limitação do presente trabalho, optaremos por não destrinchar a manifestação e a construção lógica dos
aspectos citados, sugerimos para isso a leitura dos autores que nos embasam. Cabe-nos aqui somente ressaltar que
tais aspectos se implicam mutuamente, fazendo parte de um processo uno de alienação.
56

no próximo capítulo do presente trabalho, por hora, vale-nos ressaltar o expresso por Konder
(1965): “A subestimação das possibilidades da atividade política do homem e a descrença
quanto a uma reorganização da sociedade e a uma superação da divisão social do trabalho
marcam, na consciência acumpliciada com a alienação, o seu conteúdo de classe” (p. 148).
A ascensão do modelo político burguês retomado anteriormente e influenciado pelos
filósofos jusnaturalistas (no presente trabalho: Hobbes, Locke e Rousseau) foi causa e
consequência – na concepção materialista dialética – de uma visão ahistórica individualista do
indivíduo e, juntamente com a alienação específica do modo de produção capitalista,
possibilitou que a ilusão do apoliticismo estabelece-se como regra, legando ao processo
decisório de nossa sociedade a impossibilidade de ser um processo realmente coletivo de
política. O indivíduo na concepção liberal estaria caracterizado pela simples união política
formal para garantia de sua sobrevivência e, assim, como descrito na definição do apoliticismo
e da alienação, não veria a si mesmo em seus semelhantes, bem como não poderia ver a si em
sua atividade, sua produção e seu contato com o gênero humano.
Embora atentemos aqui para a materialidade do processo de alienação para a
compreensão de seus efeitos na constituição da consciência, centrando na esfera econômica a
raiz do conceito geral de alienação, ressaltamos a impossibilidade de reduzir o processo de
alienação unicamente a um pilar central econômico, de acordo com a construção teórica
marxiana dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (2015). A superação da alienação
econômica é, seguramente, fator imprescindível à emancipação do trabalhador, todavia, para
análise da dimensão política da constituição da consciência – como abordaremos
especificamente no próximo capítulo –, devemos apreender a pluridimensionalidade do
processo da alienação e sua possível superação em suas diversas dimensões. Conforme
explicitado por Konder (1965):

Marx estava seguro de ter encontrado na alienação econômica a raiz do fenômeno


global da alienação. Êle sabia que, antes de poder fazer política, ciência, religião, etc.,
os homens precisam comer, beber, vestir e ter um teto para morar. Sabia que, antes do
trabalho intelectual típico, o homem tem de realizar o trabalho material de que
depende sua subsistência.
Jamais lhe ocorreu, porém, reduzir o fenômeno da alienação, nas suas múltiplas
formas, aspectos e dimensões, à alienação econômica, tal como jamais lhe ocorreu de
reduzir todo o trabalho humano ao trabalho diretamente empenhado na produção
econômica.
A pluridimensionalidade é fundamenta na alienação, tal como o fenômeno é visto
pelos marxistas (p. 28)

Assim, a superação da alienação em sua expressão política não é possível sem a


superação da estrutura de produção econômica do capital, entretanto, ainda possui as suas
57

minuciosidades e pautas próprias necessárias de serem tipificadas e analisadas em um escopo


teórico crítico. “A superação da alienação econômica é condição necessária mas não suficiente
para a realização do humanismo socialista: essa realização implica também a superação da
alienação política” (COUTINHO, 1980, p. 38).
O duplo aspecto do apoliticismo como expressão do processo da alienação em sua
dimensão política deve ser superada em seu duplo aspecto de exclusão do trabalhador de suas
potencialidades políticas, seja na retirada do caráter político das ações cotidianos dos
indivíduos, seja na sua efetiva exclusão do aparelho estatal, burocraticamente engessado. Como
sintetiza Da Mata (2014) ao analisar o caráter do Estado moderno:

A esfera do Estado é dependente da esfera privatista da iniciativa particular e, por isto,


a participação política torna-se duplamente isolada: primeiro, porque expressa
exclusivamente o interesse privado, fragmentário, pois é incapaz de entender
universalmente a sociedade; segundo, a política isolou-se da sociedade civil, tornou-
se apolítica, amorfa e atomística. Refugiou-se nas engrenagens burocráticas do Estado
e, tal qual engrenagens mesmo, realiza o movimento simples, contínuo e repetitivo da
administração e da assistência.

Para que seja possível o discernimento acerca do processo de emancipação do


trabalhador do apoliticismo legado a ele pelo modelo de produção capitalista e seu processo de
constituição da consciência, devemos, asseguradamente, atentar às contribuições marxianas e
marxistas à crítica da emancipação política como solução das mazelas sociais existentes sob a
égide do capital.

2.4 Os limites da emancipação política, a parcialidade da liberdade

Anteriormente, demonstramos em nossa arguição como, já em Marx, é possível


compreender que o Estado moderno não é capaz de solucionar as mazelas sociais essenciais ao
modelo de produção do capital, posto que sua existência repousa fundamentalmente na
contradição entre sua função e seus meios e possibilidades. No entanto, existindo concretamente
na vida do trabalhador, o pauperismo e a alienação pedem respostas emancipatórias, exigem
caminhos de sua superação para uma vida mais digna da classe trabalhadora. Assim, devemos
investigar outro aspecto da dimensão política conforme é compreendida a partir da
modernidade: as possibilidades emancipatórias da sociedade por uma via unicamente política,
ou, a possibilidade do trabalhador se tornar livre por via política formal.
Para compreendermos tal questão, voltaremos o foco para a obra Sobre a Questão
Judaica de Marx (2009), escrita em 1843 e publicada em 1844 no número único e duplo dos
58

Anais Franco-Alemães em resposta ao texto A Questão Judaica de Bruno Bauer. A obra


marxiana em destaque traz a deliberação do autor acerca das possibilidades emancipatórias
humanas dentro de um modelo de emancipação política – especificamente, nesse caso, ao
analisar o pleito dos judeus ao Estado alemão (oficialmente cristão) pelo reconhecimento de
seus direitos.
O cerne da questão da emancipação política dos judeus abordada na obra consiste no
desdobramento da relação acima exposta entre Estado e sociedade civil. Para Bensaïd (2010),
Marx repensa nessa obra a relação acima exposta, compreendendo os avanços alcançados pela
emancipação política alcançada na época em países como França, Inglaterra e EUA, porém
delimitando a cisão causada no indivíduo que se depara em jogo de papel duplo enquanto
membro do Estado e enquanto membro da sociedade civil, entre a aparência de sua existência
social política e o desdobramento de seus interesses privados na sociedade civil.
Marx (2009) sintetiza a solução proposta por Bauer como vendo no antagonismo
religioso entre o judeu e o cristão um antagonismo que precisa se tornar impossível, i.e., Bauer
propõe que judeus e cristãos reconheçam em suas religiões apenas estágios distintos do
desenvolvimento do espírito humano. Dessa forma, ao compreenderem a suposta hierarquia do
desenvolvimento espiritual humano, judeus e cristão poderiam a encarar seu antagonismo como
uma questão científica, passível de resolução dentro de sua própria dimensão. Marx (2009)
elabora sua argumentação retomando a materialidade da questão da emancipação, pois, na
Alemanha – onde não existia um Estado político moderno formado – a emancipação requerida
pelos judeus possuiria caráter apenas teológico, não cabendo uma crítica política sobre a
questão. Somente onde o Estado político existe em sua forma plenamente desenvolvida,
explicita o autor, a questão da emancipação do homem judeu – ou do homem religioso em geral
– deixa seu limite teológico e adquire, realmente, seu caráter político. “A crítica a essa relação
deixa de ser uma crítica teológica no momento em que o Estado deixa de comportar-se
teologicamente para com a religião, no momento em que ele se comporta como Estado, isto é,
politicamente, para com a religião. A crítica transforma-se, então, em crítica ao Estado político”
(MARX, 2009, p. 37).
Destarte, para o autor, a emancipação política do cidadão religioso, nada mais é que a
emancipação do Estado em relação à religião, que o Estado não professe nenhuma religião,
mas, sim, professe-se Estado, em sua essência. No entanto, tal solução política não elimina as
contradições reais que enfrenta o homem religioso, ainda o Estado considere-se livre, isso não
quer dizer na automática liberdade do cidadão.
59

Disso decorre que o homem se liberta de uma limitação de maneira abstrata e


limitada, ou seja, ele se liberta politicamente, colocando-se em contradição consigo
mesmo, alteando-se acima dessa limitação de maneira abstrata e limitada, ou seja, de
maneira parcial. Decorre, ademais, que o homem, ao se libertar politicamente, liberta-
se através de um desvio, isto é, de um meio, ainda que se trate de um meio necessário.
(MARX, 2009, p. 39 – grifos do autor)

A passagem acima nos oferece uma síntese sobre a parcialidade da emancipação política
alcançada com a formação do Estado moderno conforme expusemos anteriormente. Ainda que
seja uma etapa necessária – um desvio necessário, de acordo com Marx (2009) – não é capaz
de libertar o cidadão de suas contradições reais vividas como sociedade civil. O autor nos
oferece ainda a explicitação que tal elevação política não está limitada ao fenômeno religioso,
mas, sim, a qualquer dimensão da elevação política. A propriedade privada, tomada como
exemplo na obra, não está abolida caso seja abolida sua expressão política por meio do voto
democrático universal, está, no entanto, pressuposta pelo Estado. “No entanto, a anulação
política da propriedade privada não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até
mesmo a pressupõe” (MARX, 2009, p. 39).
Desvela-se, assim, o caráter parcial da emancipação política que, enquanto professada
pelo Estado não é capaz de inferir uma mudança total na vida da sociedade civil. Tal caráter
parcial é fundamental para compreendermos como a sociedade burguesa fundada pela
Revolução Francesa e Revolução Industrial não será superada unicamente pelo trâmite das
reformas estatais, posto que, suas ações contrárias a fenômenos crassos do capital – o
pauperismo, como exemplo – superam o fenômeno apenas abstratamente, sem tocar
necessariamente nas mudanças requeridas pela sociedade civil.
Não desejamos aqui desconsiderar o avanço histórico alcançado por meio da
emancipação política por meio da formação do Estado moderno, apenas ressaltar a parcialidade
da emancipação real do trabalhador nesses termos. Como nos diz Marx (2009): “A
emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma
definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação
humana dentro da ordem mundial vigente até aqui” (p. 41 – grifos do autor).
Da Mata (2014) expõe, apoiado nas observações marxianas, como o Estado moderno,
como criação da sociedade civil burguesa, possui função de protegê-la até mesmo de suas
contradições basilares, sendo que a cisão entre a esfera privada pública – representada no Estado
– e a esfera privada – representada na liberdade abstrata da sociedade civil – é uma expressão
tanto do Estado moderno quanto da emancipação política que o funda. Ainda que destacando o
fenômeno da religião, Marx (2009) reitera que a cisão do homem em público e privado, no bojo
60

da sociedade burguesa, não constitui um estágio da emancipação política ainda em andamento,


mas, sim, sua realização plena.
O caráter parcial e abstrato da emancipação política revela-se fundamental em nossa
análise, posto que a liberdade ilusória obtida pela emancipação política fomenta o mesmo
fenômeno caracterizado anteriormente no apoliticismo, a manutenção e naturalização das
relações sociais burguesas, representadas como única forma política possível à sociedade civil.
A emancipação política alcançada na Revolução Francesa, sintetizada nos Direito do Homem
e do Cidadão, postulou a liberdade do indivíduo dentro do modelo jusnaturalista liberal
supracitado, ou seja, a liberdade contida no princípio de não prejudicar outrem dentro desse
modelo estatal moderno. Conforme Marx (2009): “Trata-se da liberdade do homem como
mônada isolada recolhida dentro de si mesma” (p. 49).
Dessa forma, vemos que o modelo de liberdade conferida politicamente pelo Estado
moderno, contrariamente ao modelo dominantemente instituído propõe, na verdade, pressupõe
e justifica o apoliticismo, justifica a impossibilidade de um projeto efetivamente coletivo de
político, pois, está pautado no indivíduo burguês em formação, baseado nos sistemas políticos
postulados por Hobbes e Locke. Marx (2009) ressalta que o direito à liberdade alcançado não
corresponde ao direito à vinculação política efetiva com os demais cidadãos, mas, na verdade,
trata-se do direto à separação, o direito a ser livre enquanto limitado a si mesmo. “Aquela
liberdade individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da sociedade
burguesa. Ela faz com que cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao
contrário, a restrição de sua liberdade” (MARX, 2009, p. 49).
O sujeito liberal, restrito à sua liberdade em si mesmo, é pressuposto como o indivíduo
político, como o cidadão do Estado moderno. Revela-se, assim, que a emancipação política
nunca almejou a emancipação total humana, posto que baseou-se na propriedade privada para
sua fundamentações basilares. A vida política revela-se, assim, segundo Marx (2009), não o
fim, o objetivo emancipatório da Revolução Burguesa, mas, sim, o meio cujo fim é a vida da
própria sociedade burguesa, i.e., a vida de uma sociedade cindida em classes.
Ao se assegurar que o homem burguês é pressuposto como o cidadão do Estado moderno
por excelência, afere-se um caráter apolítico natural aos indivíduos, esvaziando-os de suas
potencialidades políticas e moldados à venda de sua força de trabalho como mercadoria para
sua sobrevivência. Como nos diz Da Mata (2014):

Naturalizadas as relações sociais, a sociedade civil burguesa passa a ser apresentada


como sendo a única sociedade possível e o Estado moderno sua expressão máxima. O
homem verdadeiro torna-se o homem burguês, membro da sociedade civil. O egoísmo
61

é entendido como sua essência atemporal na busca pela satisfação dos interesses
particulares no mundo das necessidades, na exploração do trabalho, no lucro, na
competição. É a assim chamada natureza humana egoísta que impede a perfeição da
eticidade do Estado Moderno, não as contradições impetradas pela sociedade civil
burguesa. Sendo livre, é responsabilidade do indivíduo a satisfação de suas
necessidades. Enquanto, por um lado, o Estado é liberto das limitações à liberdade,
podendo conduzir-se livremente na garantia e conservação das relações sociais
burguesas, o indivíduo, tomado como mônada isolada, tem sua liberdade limitada (p.
101).

A universalidade ilusória garantida politicamente da liberdade das relações burguesas,


do sujeito embasado na propriedade privada individual, assegura, a saber, direitos apenas
formais, posto que justifica uma ordem social de exclusão injustificável – o domínio dos meios
de produção por uma classe, burguesa –, impassível de caminhar à concretização de direitos
humanos realmente emancipatórios. Da Mata (2014) ressalta que na crítica marxiana desses
direitos fica evidente sua existência formal no contexto da política democrática-burguesa e sua
impossibilidade de realização efetiva no contexto capitalista, como sintetiza:

Por isso os direitos do homem só podem ser concebidos, na sociedade burguesa, como
direitos políticos (parciais). A abolição política dos limites históricos sobre os quais
avançam os direitos do homem não acaba com tais limites, mas, antes, os pressupõem
e os conservam ocultos na estrutura política que sobre eles se ergueu. Os direitos do
homem na verdade presumem e conservam exatamente aquilo que pretendem superar
(p. 105).

Destarte, os direitos políticos assegurados no Estado moderno não podem alcançar uma
emancipação real da classe trabalhadora, posto que alteram, em seu alcance, a base estrutural
societária que engendra a desigualdade. Enquanto pressupõe o direito à propriedade, não
poderão assegurar uma liberdade efetiva, ao contrário, asseguram apenas a liberdade da
continuidade da exploração por meio do assalariamento. Da Mata (2014) explicita que a
igualdade dos direitos pregados pelo Estado moderno consiste em uma idealização não política
e não histórica, pois fornece um véu emancipatório a uma situação real de opressão ao
desconsiderar a constituição da propriedade privada dos meios de produção e o isolamento
egoísta do indivíduo que acentua as desigualdades na competição com demais membros da
comunidade. Não obstante, a proposta dos pensadores jusnaturalistas, ao se realizar em
determinado grau no Estado moderno não traz a segurança e harmonia que o creditavam os
autores, dado que partiam e pressupunham o indivíduo como mônada a ser protegida de seus
semelhantes; em sua concretização, observamos que o caminho emancipatório proposto
encerrou em si uma contradição que não pode ser superada politicamente, mas, sim, apenas
com alteração as bases do sistema de produção do capital. O Estado burguês, a democracia
62

burguesa, não pode emancipar o trabalhador sem, com isso, emancipar o trabalhador de si
mesma. Conforme Da Mata (2014):

O princípio regulador da política que justifica e naturaliza as relações sociais que


restringem a liberdade humana não podem resolver a questão das desigualdades
sociais por não serem capazes de possibilitar o desenvolvimento pleno das
capacidades humanas, portanto, o Estado político burguês não pode ser emancipador
(p. 94).

Ou como ressalta Marx (2009), a emancipação política é parcial e não deve ser
confundida com a emancipação humana plenamente realizada, a primeira nos diz respeito a
uma liberdade ilusória conferida pelo estado moderno na manutenção de uma ordem sócio-
econômica desigual, enquanto a última trata da recuperação para o trabalhador da cidadania
abstrata que possui, quando esse reconhecer em suas forças vitais a expressão de si no gênero
humano, tornando-se, então, não apenas em aparência, mas também em essência, o ser político
para com o mundo em seu entorno e para com seus semelhantes.

A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade


burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.
Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem
individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico
na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual,
nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas
“forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais
separa de si mesmo a força social na forma da força política (MARX, 2009, p. 54 –
grifos do autor)

2.5 Duplo aspecto da atividade política em Marx, emancipação política e humana

Havendo recobrado, ainda que brevemente devido às limitações de nosso presente


trabalho, a base da compreensão das vicissitudes da formação do Estado moderno burguês sob
a égide do capital, cabe-nos, agora, a síntese do pensamento marxiano em relação à dimensão
política em seu duplo aspecto, ou seja, em seus aspectos limitadores e emancipatórios para a
classe trabalhadora. Ressaltando, ainda, como Boron (2007), a importância do pensamento
marxiano acerca da política que, embora não possa ser reduzida unicamente à dimensão de
“teoria política” possui contribuições ímpares para a investigação da totalidade do ser social,
justamente por não se limitar, a saber, a uma esfera do saber cindida das demais. Como reitera
o autor, há uma diferença epistemológica fundamental no marxismo de não reduzir a totalidade
do ser social em categorias deconexas com a totalidade, com efeito, o que possuímos em nosso
arcabouço é “(...) uma ‘teoria marxista’ –isto é, totalizante e integradora– da política, que
63

integra em seu seio uma diversidade de fatores explicativos que transcendem as fronteiras da
política e que combina uma ampla variedade de elementos procedentes de todas as esferas
analiticamente distinguíveis da vida social” (BORON, 2007, p. 200).
Cabe-nos o destaque também da importância metodológica de tal concepção para a
investigação de fenômenos – em nosso caso, políticos – para além de sua aparência ou seus
próprios limites, enveredando em um processo teórico-conceitual que permita o desvelamento
da universalidade essencial de algo, a partir de sua singularidade ou particularidade, como
reiteram Pasqualini & Martins (2015):

Assim, podemos perceber que captar a essência da realidade natural e social implica
abstrair momentaneamente – ou suspender – as formas fenomênicas e decodificar as
leis explicativas que regem o desenvolvimento do fenômeno. Isso significa que todo
fenômeno singular contém em si determinações universais. A tarefa do pesquisador é
desvelar como a universalidade se expressa e se concretiza na singularidade, ou mais
que isso, como a universalidade se expressa e se concretiza na diversidade de
expressões singulares do fenômeno (...) (p. 364).

Na dimensão política, fenômenos como o apoliticismo, pauperismo, a questão


emancipatória, convergem à síntese da compreensão de que, nas análises marxianas, há um
duplo aspecto no que concerne à política. Em seu aspecto negativo, remete a parcialidade que
o pensamento político concebe a problemática do trabalhador na contemporaneidade, legando
a ele uma emancipação parcial tomada, ilusoriamente, como total; conferindo ao pensamento
político a impossibilidade de superação de si mesmo e, assim, limitando as opções de mudança
a uma via formal que não possui caráter realmente emancipatório à sociedade civil. Como nos
diz Da Mata (2014): “O limite fundamental do pensamento político é, exatamente, ser
pensamento político, pois só pensa dentro dos limites da política” (p. 110).
Em seu aspecto positivo, todavia, Marx credita à política a imprescindibilidade de ser
utilizada como instrumentos de mudanças necessárias, desde que ponderada à finalidade de
oposição ao modelo de Estado burguês, como denúncia do formalismo político e
conscientização da classe trabalho acerca das condições concretas de sua vida, de alienação e
exploração de seu trabalho (DA MATA, 2014, p. 116). Marx (2015) explicita que a
emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão – emancipação de fato –
exprime-se sob a forma política da emancipação dos trabalhadores, posto que em sua
emancipação está contida toda a servidão humana – na relação do trabalhador com a produção
do capital –, ou seja, a política está como expressão da emancipação que alcança os níveis
realmente cerceadores da liberdade humana e, não, como dimensão única e final da
emancipação humana.
64

Retomemos, porém, o aspecto negativo da política para Marx. Seu problema consiste
nas limitações – frequentemente negadas ou ignoradas – que a política democrática burguesa
possui no interior da sociabilidade do capital (CHAGAS, 2014). A instância política assentada
no Estado moderno assegura a existência de uma comunidade ilusória entre seus cidadãos, posto
que pressupõe o indivíduo egoísta requerido – e produzido, concomitantemente – para a
sociabilidade do capital, na qual a liberdade é garantida formalmente, mas existe, de fato,
apenas para a parcela detentora do poder econômico – a classe burguesa.

O isolamento do trabalhador é uma decorrência da comunidade falsa preconizada


pela política e pelo Estado, que só podem garantir uma comunidade formal em que
igualdade e liberdade não se efetivam, mas, ao contrário, distanciam-se do
trabalhador. E não se efetivam porque onde uma classe detém o poder político e
econômico, lança mão de tais poderes a fim de perpetuar a exploração. Com isto, o
trabalhador explorado encontra-se estranhado de sua essência, que é o próprio
trabalho. Em uma sociedade classista, aquilo que é produzido pela classe trabalhadora
é apropriado por aqueles que detêm o poder político e econômico e as potências
criadas pelo trabalhador são o gozo do proprietário privado dos meios de produção e
voltam-se contra o próprio trabalhador como forças hostis e estranhas. O próprio
produto do trabalho impõe-se ante o trabalhador como algo estranho e independente
dele. Ao não se reconhecer naquilo que é sua atividade vital, o trabalhador não se
reconhece em relação ao mundo, nem em relação aos demais indivíduos, nem em
relação a si mesmo (DA MATA, 2014, pp. 113-114).

Por conseguinte, o caráter negativo da política, expressa aqui pelo Estado moderno,
opera de forma a naturalizar uma estrutura social que, via de regra, exclui a classe trabalhadora
de um real processo decisório, pautado sob a liberdade humana. A contradição entre capital e
trabalho - enquanto estrutura fundamental da sociedade civil burguesa - consiste em um
obstáculo à real liberdade humana e, portanto, não pode efetivamente emancipar o trabalhador
dentro de seus próprios limites, pode – e efetua, com efeito – acentuar a miséria, a exploração,
a dissolução da consciência vital do trabalhador com a natureza e com os demais trabalhadores
(DA MATA, 2014), legitimando uma cisão e oposição do indivíduo com seu corpo genérico
em seus moldes formais. Considerando os exemplos supracitados, observamos no apoliticismo,
como descrito por Konder (1965), a expressão dessa contradição em sua dimensão política: o
trabalhador não reconhece em suas atitudes seu caráter político, bem como, é alijado da
participação efetiva no processo formal de decisão da democracia burguesa.
Como denota Chagas (2014): “Marx mostra que a política, assim como o Estado,
enquanto instâncias de dominação, não têm fins próprios, seus fins não são universais, pois eles
atendem aos fins da sociedade civil burguesa” (p. 74). Deve-se, então, buscar um processo
emancipatório que atenda a fins universais, como supracitado em Marx (2015) da emancipação
humana por meio da emancipação do trabalhador de seu processo de servidão.
65

Todavia, Marx atenta para a complexidade da totalidade da emancipação do ser social


e não descarta a política como, unicamente, esfera de dominação burguesa do trabalhador. O
pensador alemão compreende a política como instrumento, como uma ferramenta para uma
revolução humano-social; (...) ou seja, o fim dela não é a emancipação política, exercida por
uns em nome dos outros, como na democracia formal representativo-burguesa, mas a
emancipação humana, que compreende a extinção do Estado capitalista” (CHAGAS, 2014, p
79).
Deve-se compreender a política como meio para fins emancipatórios dentro da
complexa da totalidade da sociedade. Dessa forma, é imprescindível a compreensão de que não
se deve postular uma alternativa contra a miséria do proletariado unicamente por via da política
formal burguesa, mas, também, não se deve negar a política como coloquialmente se observa,
recaindo em uma expressão do apoliticismo explicitado anteriormente. Na síntese de Da Mata
(2014):

Nem a parcialidade da insurreição política, que postula a substituição de uma forma


do Estado por outra e, se promove uma emancipação parcial, não toca os fundamentos
daquilo que se opõe à liberdade efetiva do ser humano. Tampouco a revolta social
contra as instituições da sociedade existente que, se expressam a real desigualdade
social, sem o fundamento teórico se transformam em instrumentos para justificar a
violência oficial como meio para resguardar a ordem social. A revolução é a
dissolução da totalidade da sociedade burguesa, portanto, não só da política burguesa,
mas também e fundamentalmente, de sua sociabilidade.

A política, assim, conforme Chagas (2014), ao ser considerada no âmbito das


contradições da sociedade burguesa, deve ser considerada como mediação para a progressiva
supressão do aparato estatal dos moldes do Estado moderno e a instauração de um Estado
provisório e transitório, como condição prévia à realização de uma comunidade plenamente
humana, de indivíduos efetivamente livres – não apenas parcialmente – e voltada à auto-
edificação do “novo sujeito”.
Para que seja possível a análise dos efeitos da concepção marxiana de política
embarcada em nosso presente trabalho até o momento na constituição da consciência de classe
e individual do trabalhador, devemos apreender o arcabouço teórico existente da Psicologia
Histórico-Cultural referente à constituição da consciência. O caminho proposto será
evidenciado com o decorrer do próximo capítulo para que, buscando a síntese entre a concepção
política marxiana e a teoria da Psicologia Histórico-Cultural, possamos verificar efetivamente
o papel da dimensão política na subjetividade do trabalhador e apontar futuras perspectivas.
66

3 A POLÍTICA E A CONSCIÊNCIA, COTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA


HISTÓRICO-CULTURAL

Conforme o desenvolvido até aqui, reconstruímos a base do pensamento político


moderno e sua contraparte na precisa crítica marxiana, principalmente ao analisar a figura do
Estado moderno e sua expressão dentro da totalidade das relações sociais historicamente
desenvolvidas. A “mônada” liberal ascendida ao posto de expressão máxima do cidadão social
teve seu fundamento e desenvolvimento historicamente situados e, ao contrário da expressão
alienada engendrada pelo capitalismo, não se consolidou como única e definitiva na miríade de
possibilidade humanas.
Consideramos o principal movimento teórico que subsidiou a fundação do Estado
moderno com os pensadores jusnaturalistas, para que possamos expor – como a crítica
marxiana – as principais contradições gestadas nesse movimento da política moderna no seu
reflexo na constituição da consciência dos sujeitos submetidos essas condições materiais.
Verificaremos, nesse capítulo, o processo social de constituição da consciência de acordo com
o rico aporte teórico da Psicologia Histórico-Cultural para, dessa forma, articularmos as
implicações do processo político supracitado no indivíduo, destacando o papel da ideologia
nesse contexto. Por fim, utilizaremos a teoria disponível para mostrar a relação da consciência
social com a consciência de classe e, assim, apontar possíveis encaminhamentos necessários e
possíveis para a pesquisa e para a práxis humana diante das condições matérias que
caracterizam a vida política contemporânea do trabalhador.

3.1 A consciência como processo social

Assentar um método como pressuposto na exposição de um constructo teórico assegura


– ou expressa – uma concepção de realidade, de indivíduo e do próprio saber que se constrói.
Quando ressaltamos no início de nosso trabalho a importância do materialismo histórico
dialético como método para apreensão de nosso objeto, estávamos situando os pressupostos que
norteariam toda a produção subsequente. Destarte, buscar a compreensão de um objeto por esse
método implica observá-lo em movimento constante, histórica e materialmente situado. O
mesmo processo ocorreu e deve ocorrer com o estudo da constituição da consciência, em
qualquer que seja realizada sua análise. Como nos remete Leontiev (1978), a consciência
humana – como objeto situado dentro da lógica do método materialista histórico dialético – não
67

é imutável, sendo necessário sempre a considerar em seu devir, em seu movimento, e em sua
constante relação com as relações sociais que a engendram.
Para situar o aspecto necessariamente material que o estudo da consciência exige,
Leontiev (1978) estabelece como pressuposto de sua análise sobre o desenvolvimento histórico
da consciência a seguinte passagem:

A consciência humana não é uma coisa imutável. Alguns dos seus traços
característicos são, em dadas condições históricas concretas, progressivos com
perspectivas de desenvolvimento, outros são sobrevivências condenadas a
desaparecer. Portanto, devemos considerar a consciência (o psiquismo) no seu devir
e no seu desenvolvimento, na sua dependência essencial do modo de vida, que é
determinado pelas relações sociais existentes e pelo lugar que o indivíduo considerado
ocupa nestas relações. Assim, devemos considerar o desenvolvimento do psiquismo
humano como um processo de transformações qualitativas. Com efeito, visto que as
condições sociais da existência dos homens se desenvolvem por modificações
qualitativas e não apenas quantitativas, o psiquismo humano, a consciência humana
transforma-se igualmente de maneira qualitativa no decurso do desenvolvimento
histórico e social. (p. 89)

Para o autor, torna-se necessário detalhar a imutabilidade da consciência humana, dada


o contexto histórico da Psicologia (burguesa) de sua época que propunha uma teoria a-histórica
sobre esse objeto, dessa forma naturalizando um contexto de luta de classes à toda história
humana e sem qualidades específicas. Retomando esse caráter material da consciência humana,
Leontiev (1978) reitera a importância da compreensão do psiquismo humano atrelado à sua
atividade material. Tal consideração, ainda que não no âmbito específico da Psicologia, está
situada também em Marx & Engels (2009) quando explicitam:

A produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio


diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos
homens, linguagem da vida real. (...) A consciência [das Bewusstsein] nunca pode ser
outra coisa senão o ser consciente [das bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu
processo real de vida. (p. 31)

A consciência, portanto, não está dada como uma estrutura anterior à atividade humana,
mas, sim, encontra seu fundamento na realidade material das relações sociais que a cercam,
mediadas pela atividade vital humana. O fundamento para a constituição da consciência
assenta-se, portanto, na própria atividade que garante a existência do indivíduo enquanto
humano: o trabalho. Segundo Martins (2008), não sendo sinônimo de emprego, o trabalho, na
acepção marxiana, representa a atividade vital do homem, enquanto processo pelo qual ele se
relaciona com a natureza e outros homens, criando condições para produção e reprodução da
humanidade. Almeida (2008) situa conceitua o trabalho como “(...) uma atividade social, na
68

qual os homens agem sobre a natureza com o objetivo de produzir os meios capazes de suprir
suas necessidades”. A autora ressalta que o conceito de social empregado não consiste apenas
no fato de que os indivíduos vivem conjuntamente, mas, sim, que a produção da vida ocorre de
maneira social.
Mészáros (2006) ao abordar a teoria da alienação em Marx remete-nos ao trabalho como
fator ontológico absoluto da humanidade enquanto atividade produtiva como tal. O trabalho
constituiria, dessa forma, a mediação de primeira ordem entre homem e Natureza, enquanto
processo de produção a fim de satisfação de necessidades a priori físicas que, no decorrer de
sua satisfação, cria necessariamente uma complexa hierarquia de necessidades não físicas que,
subsequentemente, tornar-se-ão condições necessárias para a satisfação das próprias
necessidades físicas originais. Sendo de importância fundamental a compreensão da radical
diferença dessa atividade vital como fato ontológico absoluto com a sua forma historicamente
específica situada na produção capitalista.
Como base e em consonância aos excertos acima, Marx (2013) categoriza:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este


em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controle seu metabolismo
com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência
natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para
sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua
corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa
e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o
jogo de suas forças a seu próprio domínio. (...). Pressupomos o trabalho numa forma
em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações
semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura
de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la
com a cera. (pp. 255-256)

O trabalho pressuposto como forma unicamente humana supracitado refere-se a


possibilidade do homem de tomar a realidade idealmente e, por meio de operações mentais,
intencionar suas ações na realidade a um determinado fim planejado, sendo dessa maneira que
o arquiteto de Marx tem a colmeia em sua mente antes de a construir. Leontiev (1978) inicia
sua argumentação sobre a constituição da consciência explicitando que o reflexo psíquico da
realidade – a estabilidade objetiva de suas propriedades, sua autonomia – é a tomada de
consciência propriamente dita. A realidade estaria, portanto, presente ao homem em sua
consciência. No entanto, “O reflexo psíquico não pode aparecer fora da vida, fora da actividade
do sujeito. Depende da actividade do sujeito, obedece às relações vitais que ela realiza, não
pode não ser parcial como parciais são as próprias relações” (LEONTIEV, 1978, p. 93)
69

A parcialidade do reflexo psíquico, então, está determinada pelas relações de produção


social construídas ao redor de sua atividade vital. Como ressalta Almeida (2008):

A consciência é, antes de qualquer coisa, um produto social e desenvolve-se baseada


na complexidade da produção material humana. A forma como os homens produzem
sua existência – a partir das relações que estabelecem entre si e com a natureza – é o
que dá a base material para a produção de determinadas formas de consciência social.”
(p. 23)

Em Almeida et al. (2011), podemos compreender a consciência social – determinada e


determinante do ser social – como os modos de pensar, sentir e agir dominantes em uma dada
sociedade. Estando diretamente atrelada ao trabalho, a consciência social “(...) desenvolve-se
baseada na complexidade da produção material humana, no grau de desenvolvimento das forças
produtivas e nas relações sociais de uma dada sociedade” (p. 552).
Todavia, para se introduzir nas relações de produção – e, concomitantemente na
consciência social – o indivíduo terá de se apropriar da produção existente humana, ainda que
em níveis diversos de acordo com suas possibilidades reais. Esse processo é de crescente
apropriação da produção existente e utilização em sua atividade social é denominado de
humanização. Conforme Duarte (apud ALMEIDA, 2008): “(...) o processo de humanização
caracteriza-se pela dinâmica da apropriação-objetivação, em que ao apropriar-se da natureza
para inserí-la em sua atividade social e satisfazer suas necessidades, o homem a transforma e
objetiva-se nessa transformação’ (p. 25). É, essencialmente, por no e pelo trabalho que esse
processo ocorre.
Característico do movimento dialético, o processo de objetivação e apropriação –
fundamental à constituição da consciência – possui sua fundamentação nas contribuições
marxianas e pode ser sintetizado como em Martins (2008):

Todo trabalho implica objetivações, isto é, a objetivação é a fixação do trabalho em


objeto. O processo de objetivação do trabalho parte dos homens, expressa capacidades
humanas que ao se materializarem sob a forma de objeto já não são mais elas mesmas,
tornam-se objetivadas. As objetivações, por sua vez, colocam-se como conteúdo das
apropriações para o atendimento dos carecimentos humanos. (pp. 48-49)

Conforme exposto anteriormente, Mészáros (2006) explicita que nos moldes


historicamente situados da produção capitalista, o produto objetivado pelo trabalhador não se
constitui como objeto para sua apropriação, segunda a lógica das mediações de segunda ordem,
e lhe aparece como estranho, constituindo o cerne da alienação entre o trabalhador e o produto
de seu trabalho.
70

Porém, ao considerarmos o trabalho apenas em seu caráter ontológico essencial,


verificamos que nesse processo, objetos da natureza apropriados pelo sujeito, ganham
significado social ao serem objetos, ao serem materializados, cristalizando a atividade humana
no instrumento10 produzido. Esse processo de apropriação e objetivação gera na consciência
humana novas necessidades, forças, capacidades, de caráter social, engendrando a necessidade
de novas apropriações e objetivações. Dessa forma, pode-se concluir que dentro de seu aspecto
social – por meio do trabalho – as capacidades e faculdades humanas podem ser ampliadas
ilimitadamente – por meio de um movimento de acumulação e superação, de acordo com a
lógica dialética; de acordo com Almeida (2008).
Esse processo do trabalho de apropriação e objetivação, que podemos compreender
como o acúmulo histórico da humanidade, é transmitido por gerações, apropriado e ampliado
ou mantido, processualmente. Posto que, conforme explica Marx (2011):

(...) na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações,


necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a
uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A
totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a
base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual
correspondem determinadas formas da consciência social. (2007, on-line)

Para Almeida (2008), a inserção do indivíduo nessas relações de produção


historicamente situadas pressupõe a conquista de aspectos sociais produzidos para a
individualidade, denominando esse processo de humanização. Destarte, a apropriação da
produção social consiste no desenvolvimento da individualidade dentro do arcabouço social
disponível.
De maneira análoga, ao focarmos nosso olhar sobre a constituição da consciência,
constatamos como em Almeida et al. (2011), que “(...) a consciência individual se constitui pela
apropriação e internalização da consciência social, por meio da mediação de um sistema de
conceitos, na forma de modos de pensar, agir e sentir” (p. 552).
Assim como na apropriação pelo indivíduo dos instrumentos que encontram
socialmente produzidos, objetivados historicamente pela humanidade, ao analisarmos a
consciência social, observamos que os modos de pensar, sentir e agir de uma determinada
sociedade encontram-se – a princípio – prontos à apropriação do sujeito a ser inserido nesse
contexto. Leontiev (1978) explicita que esse reflexo da realidade, para além do seu aspecto

10
“O instrumento é um objeto transformado para servir a determinadas finalidades no interior da atividade humana,
ganhando um novo significado criado pelo próprio homem” (ALMEIDA, 2008, p. 19).
71

propriamente singular, é formado pela significação. Para o autor, portanto, “O homem encontra
um sistema de significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como se
apropria de um instrumento, esse percursor material da significação” (p. 96).
Para o autor, podemos conceituar significação como “(...) a generalização da realidade
que é cristalizada e fixada num vetor sensível, ordinariamente a palavra ou a locução” (p. 94).
Consiste naquilo que em um objeto ou fenômeno encontra-se em um sistema de ligações,
interações e relações objetivas; sendo fixada na linguagem, tem sua sua estabilidade garantida.
As significações linguísticas são o cerne constituinte da consciência social que, ao adentrarem
a consciência do indivíduo por meio da apropriação, objetivam nele a consciência real, como
denotada por Leontiev (1978).
Recorrendo ao exemplo da falsidade do argumento robsoniano, como o faz Marx em
seus escritos11, Leontiev (1978) explicita que o homem não conhece o mundo simplesmente
por meio de suas próprias descobertas, mas, ao contrário, “No decurso de sua vida, o homem
assimila a experiência das gerações precedentes; este processo realiza-se precisamente sob a
forma da aquisição das significações e na medida desta aquisição. A significação é, portanto, a
forma sob a qual um homem assimila a experiência humana generalizada e reflectida” (p. 94).
Nesse sentido, Toassa (2006) – ao analisar o conceito de consciência em Vigotski –
explicita que a atividade cerebral não existe apenas para reprodução de um reflexo exato da
realidade a partir dos órgãos sensoriais, mas, sim, o contínuo processo de humanização assegura
que as percepções sejam, também, sociais. Conforme segue:

Este processo desenvolve-se graças à mediação da experiência acumulada e


sintetizada na linguagem: é com a apropriação dos sistemas de significações
historicamente desenvolvidos que as pessoas são capazes de ir além das sensações,
generalizando a experiência nas palavras. Os signos são estímulos artificialmente
criados para a representação dos estímulos-objeto (coisas, pessoas) e para a
acumulação de experiências acerca do meio: o caminho da criança à coisa, e da coisa
à criança passa por outra pessoa. (TOASSA, 2006, p. 78)

Sendo necessário recobrar que, as significações, ainda que existam como produto
histórico da humanidade, não existem “fora” da humanidade, sendo nos indivíduos que essas

11
Marx recorre diversas vezes durante sua obra ao termo “robinsonadas” para a crítica aos diversos argumentos
de autores da Economia Política, que tomavam como pressuposto o indivíduo isolado da sociedade e construíam
suas teorias a partir desse fundamento errôneo. Como explicita Augusto (2016): “Na introdução do Para a crítica
da Economia Política e em O capital, Marx se refere às “robinsonadas” da Economia Política. Com isso, o autor
observa que a Economia Política toma como ponto de partida o indivíduo isolado e sem determinações sociais, o
indivíduo tal como é supostamente posto pela natureza, representado na imagem de Robinson Crusoé em sua ilha.
Trata-se aqui de uma referência ao romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, cuja primeira edição data de 1719”
(p. 302).
72

se realizam e podem encontrar sua existência, ainda que se individualizem a serem apropriadas.
Essas determinadas significações permearão as impressões sensíveis e cognoscíveis do
indivíduo acerca de sua realidade, assegurando o caráter social que adquirem também os
sentidos físicos humanos. Podemos encontrar a base desse argumento em Marx (2015):

O olho tornou-se olho humano, tal como o seu objeto se tornou um objeto social,
humano, proveniente do homem para o homem. Por isso, os sentidos tornaram-se
teóricos (Theoretiker) imediatamente na sua prática. Comportam-se para com a coisa
por causa da coisa, mas a própria coisa é um comportamento humano objetivo para
consigo própria e para com o homem – e inversamente. Eu só posso praticamente
comportar-me para com a coisa humanamente. A necessidade ou a fruição perderem
assim a sua natureza egoísta e a natureza perdeu a sua mera utilidade (Nützlichkeit)
na medida em que a utilização (Nutzen) se tornou um utilização (Nutzen) humana. (p.
350 – grifos do autor)

Destarte, a apropriação pelo indivíduo da significação historicamente construída


assegura o caráter propriamente humano – e, portanto, social – de sua realidade circundante. A
singularidade dessa apropriação no processo da consciência – e em seu funcionamento
subsequente – é centralizado na argumentação de Leontiev (2005) por meio do conceito de
sentido. Conforme o autor, o sentido consciente traduz a relação do motivo12 com o fim de uma
atividade, de uma ação humana; ou seja, “Com efeito, o sentido pessoal traduz precisamente a
relação do sujeito com os fenómenos objectivos conscientizados” (LEONTIEV, 1978, p. 98 –
grifos do autor).
Ainda que estejam em relação próxima, sentido e significado devem ser compreendidos
separadamente, posto que são expressões de diferentes aspectos da consciência. O sentido
exprime-se nas significações (como o motivo nos fins), como o singular manifesta-se, por meio
da mediação do particular, a partir daquilo que é universal, como denotamos anteriormente.
Para Leontiev (1978), juntos com o conteúdo sensível (sensações, imagens perceptivas e
representações), significado e sentido podem ser apreendidos como os principais componentes
da estrutura interna da consciência.
Esse processo fundamental à humanização, de apropriação da produção histórica da
humanidade pelo indivíduo demonstra-nos como a consciência individual constitui-se a partir
da consciência social dominantes de uma determinada época em uma determinada sociedade.
Com efeito, a consciência individual constitui-se não apenas como uma internalização
do próprio mundo, mas, de fato, como a internalização de uma determinada concepção de

12
“Devemos apenas sublinhar que não utilizamos o termo ‘motivo’ para designar o sentimento de uma
necessidade; ele designa aquilo em que a necessidade se concretiza de objectivo nas condições consideradas e para
as quais a actividade se orienta, o que a estimula” (LEONTIEV, 1978, p. 97)
73

mundo, historicamente dada e necessariamente em correspondência com as relações de


produção da vida vigentes; permitindo-nos, ainda que de maneira superficial, argumentar acerca
da parcialidade da consciência constituída. Esse processo de apropriação, mediado pelo outro
através da linguagem, passa a incorporar as objetivações do indivíduo que, a partir de sua
atividade social, poderá reproduzir ou alterar as formas cristalizadas historicamente de sua
época, como explicita Almeida (2008).
A internalização, a valer, é definida como processo resultante da reconstrução interna
das operações desenvolvidas externamente, consiste na incorporação pelo sujeito de atividades
socialmente enraizadas e historicamente construídas, segundo Almeida (2008); sendo, então,
diretamente relacionada com a atividade desenvolvida pelos indivíduos, no contexto das
relações sociais, que ocorre a internalização. Cabe-nos aqui destacar que o processo de
internalização - de acordo com Vigotski (apud ALMEIDA, 2008) – constitui a base do salto
qualitativo que discerne a atividade humana da atividade animal, pois é a partir da
internalização que as funções psicológicas elementares podem ser superada pelas funções
psicológicas superiores13.
Todo o processo de desenvolvimento da consciência individual, orientado pela
linguagem que permeia as relações sociais do indivíduo, possui como importante momento
também a conquista do autodomínio da conduta como resultado do processo de internalização
e do desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Com o exposto, devemos sublinhar que o processo de constituição da consciência só é
possível com as condições de existência da linguagem a lhe subsidiar, sendo ambos processos
necessariamente ligados ao trabalho como atividade vital humana. Leontiev (1978) ressalta que
a consciência do homem é a forma histórica concreta de seu psiquismo, possuindo
especificidades de acordo com as condições materiais históricas às quais está submetida,
dependendo, portanto, do desenvolvimento das relações sociais econômicas – compreendidas
como as relações de produção da vida – e sendo manifestação singular da consciência social.
Dessa maneira, segundo o autor: “(...) a consciência individual do homem só pode existir nas
condições em que existe a consciência social. A consciência é o reflexo da realidade, refractada
através do prisma das significações e dos conceitos lingüísticos, elaborados socialmente” (p.
88).

13
“Entenderemos como funções elementares aquelas consideradas naturais, herdadas pelos indivíduos da espécie
a que pertencem e determinadas fundamentalmente por peculiaridades biológicas. E como funções superiores, as
que nascem ou transformam-se com o desenvolvimento histórico-social do homem e reorientam toda a conduta
humana” (ALMEIDA, 2008, p. 42).
74

Tendo estabelecido como as relações sociais vigentes são elementares à formação da


consciência, tanto social quanto individual, somos requeridos a analisar como ocorre essa
constituição em um contexto societário no qual há antagonismo entre duas classes sociais, sendo
uma delas detentora dos meios de produção da vida, enquanto a outra possui a força do trabalho
para essa produção. Como se dá esse processo se o sujeito que se objetiva em sua produção
vital não pode subsequentemente se apropriar de seu produto, ou seja, quando o funcionamento
da produção ontológica humana – por meio do trabalho – não ocorre de acordo como forma de
humanização do sujeito. Para além dessas questões centrais, de acordo com o objeto de nosso
presente estudo, torna-se necessário analisar as implicações da e para política desse cenário,
compreendendo que a ascensão da burguesia à classe dominante, com a fundação do Estado
moderno, engendra uma ordem societária diversa na história humana e que, estando vigente até
a contemporaneidade, estamos ainda englobados por seu movimento e impelidos a desvendar
seus meandros, aqui sob seu aspecto político. Para esse objetivo, optamos pela análise do
desenvolvimento da consciência social em uma sociedade marcada pelo antagonismo de
classes, quando é transformada em ideologia dominante, como forma de justificar e naturalizar
as relações desiguais vigentes.

3.2 A ideologia como parcialidade da consciência – consciência de classe

Baseando-nos em uma concepção materialista da história, alcançaremos a acurada


percepção de que os produtos ideais de determinada sociedade – ideias, pensamentos, modos
de agir – serão determinados conforme expressão das relações materiais que encontrarem-se
vigentes nesse contexto, sendo inconcebível em nossa pressuposição de método que essas
noções ideais sejam concebidas sem qualquer relação com a materialidade do mundo que as
engendrou.
Conforme a concepção materialista, possuímos o excerto de Marx & Engels (2009) que
traz a síntese da relação entre as ideias e as relações materiais de produção:

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja,


a que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder
espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção
material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo
que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem
faltam os meis para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que
a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações matérias
dominante concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam
dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. (p. 67)
75

A compreensão da consciência social tornada ideologia encontra seus fundamentos em


vários parágrafos expostos anteriormente em nossa análise da crítica marxista acerca da
política. Observamos, pois, que uma das principais consequências da ilusão do apoliticismo
consiste no auxílio da manutenção da organização social vigente ao naturalizar e eternizar
relações sociais que, na verdade, são historicamente construídas. A ideologia caminha na
mesma direção trazendo conceitos historicamente localizados como ideais universais e eternos
(MARX & ENGELS, 2009). A emancipação política analisada no segundo capítulo nos mostra
como a passagem da burguesia à classe dominante fez com que seus ideais e concepção de
cidadão alcançassem categoria de universais, ilusoriamente dotando a emancipação política
alcançada de um caráter de emancipação humana total.
Esses dois exemplos estão intimamente ligados com a ideologia, posto que revelam a
necessidade de recobrarmos a centralidade das relações materiais vigentes para compreensão
de qualquer fenômeno que analisarmos e com o processo de alienação imanente à produção sob
o regime capitalista. A alienação – sinteticamente abordada previamente – não apenas se
manifesta no apoliticismo como em uma de suas dimensões, mas, também, revela-se aqui como
“(...) a base para a ideologia naturalizar determinada forma de pensar como a única; para
universalizar e estabelecer uma visão parcial e distorcida da realidade, mas que corresponde às
relações de dominação” (ALMEIDA et al., 2011, p. 554 – grifo nosso).
Se desejamos compreender como a parcialidade da realidade humana alcança a
constituição da consciência dos indivíduos, devemos apreender como a consciência social
torna-se ideologia e, de maneira mais precisa, conceituar essa categoria de modo que possa
sustentar a argumentação que aqui construímos.
Para Almeida (2008), por mais que a ideologia seja produzida de forma não intencional
pelo processo metabólico da reprodução do capital e distorça a realidade, ela possui função de
conhecer e explicar o real, todavia, da posição e ponto de vista da classe que detém os meios
para a produção da vida – ou seja, a classe dominante. Para a autora, em uma sociedade de
classes, a consciência social converte-se em ideologia de modo a naturalizar e justificar a ordem
estabelecida, de modo a tolher a percepção das contradições sociais inerentes ao processo
dialético de desenvolvimento histórico.
Na sociedade capitalista, as relações sociais – de indivíduos com outros indivíduos –
aparecem como relações apenas entre possuidores de mercadorias; em uma relação reificada14,

14
De acordo com a tradução de “O Capital: crítica da economia política. Livro 1” (MARX, 2013), o termo é
empregado aqui apenas em seu sentido de “relativo a coisa”. Há uma profunda discussão no campo marxista acerca
76

as mercadorias se personificam e ganham autonomia, enquanto o sujeito se coisifica. Sobre esse


caráter fetichista do mundo das mercadorias, Marx (2013) refere-se:

Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados


realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados
constitui o trabalho social total. Como os produtores só travam contato social
mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais
de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro
modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total
por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio
destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus
trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações
diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações
reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas. (p. 148)

A consciência social da classe dominante, tornada ideologia, cristaliza nessa relação


reificada um caráter natural e eterno, limitando sua aparência a não revelar mais que a origem
das mercadorias – da produção humana em geral – está localizada essencialmente no trabalho
humano. Almeida (2008) ressalta que essa naturalização se reproduz no sistema de significação
humano e, dessa maneira, “(...) o signo aparece como monovalente (com uma significação
rígida), de acordo com a ideologia” (p. 85). As consequências disso, segundo autora, fazem
com que a produção dos ideários liberais de individualismo, (falsa) autossuficiência e
competitividade predominem como significados sociais, passando a mediar as atividades e o
sistema de conceitos dos indivíduos de acordo com essa visão parcial.
Ainda que a consciência individual, formada a partir da consciência social, possua em
si o caráter ideológico, posto que os signos produzidos por uma sociedade de classes
apresentarão essa parcialidade, a realidade – como movimento dialético – segue apresentando
contradições que podem não sucumbir à ilusão da ideologia. Sobre isso, Almeida (2008) nos
remete a compreender que “A ideologia é, portanto, permeável a contradições e também revela
aspectos do real, ainda que de forma invertida” (p. 86). Dessa forma, podemos situar que a
ideologia não se sobrepõe de maneira absoluta às consciências individuais, ainda que se
compreenda como essa sendo uma de suas fundamentais funções, sendo necessário o
reconhecimento de que as contradições do real podem cumprir seu papel e alcançar a
consciência dos indivíduos, chocando-se com a visão ideológica internalizada.
Apesar da breve síntese realizada até o momento, precisamos assentar no que consiste
o conceito de ideologia, tendo vista sua importância não apenas para o presente trabalho, mas,

do emprego desse termo e seus significados, todavia, pela limitação de nosso trabalho, furtar-nos-emos a adentrar
nesse debate.
77

também, para a teoria marxista de maneira geral. O crítico literário Eagleton (apud SILVA,
2015), ao organizar uma introdução ao estudo da ideologia reuniu 16 definições diversas acerca
do conceito de ideologia, dentro e fora do marxismo. Silva (2015) destaca que do agrupamento
inicial, torna-se necessário destacar duas principais conceituações, posto que essas compõem
um cenário disputado por duas grandes correntes intelectuais do marxismo. Destarte, nessas
correntes, observamos em uma a ideologia como mistificação – falseabilidade – da realidade,
com interesses políticos escusos; em outra, compreende-se o conceito como o pensamento
socialmente determinado, ou seja, como as ideias advindas da vida social.
Essas duas correntes, embora sustentem um grande debate no campo marxista, possuem
sua fundamentação no método materialista histórico dialético e, como tal, apreendem que uma
alteração na ideologia não é possível sem se analisar as estruturas prático-sociais que a
engendra. Vale destacar que esse é precisamente um dos principais pontos de Marx & Engels
(2009) ao se contrapor ao idealismo dos “neohegelianos”, ao analisar o surgimento e
desenvolvimento da consciência e da ideologia em uma perspectiva materialista da história.
Como destaca Silva (2015):

A ideologia é de natureza prático-social, é uma característica das sociedades de classes


onde opera a divisão do trabalho, de modo que tomá-la em termos cognitivos supondo
que sua superação seja relegada somente à esfera do ideal é atentar-se a uma parte da
ideologia sem conectá-la com seu correspondente material. Uma ideia pode ser
tomada como verdadeira em uma época histórica e explicar a sociedade e o homem
através de uma cosmovisão válida, conforme a instituição que a prega, sem que os
alicerces que a sustentam sejam questionados. Assim, concepções que se mostraram
equivocadas no futuro, exerceram importante função social ideologicamente, no
tempo que correspondeu à explicação com a dominação material e política. Um
conhecimento útil para uma sociedade não precisa ser necessariamente verdadeiro,
quanto à sua validade epistemológica. (p. 30)

Portanto, devemos apreender a ideologia não como uma falsidade absoluta – aqui,
destacando sua conceituação para a dimensão política –, mas, sim como um conjunto de ideias
que exprimem o ponto de vista dominante dentro do seu contexto prático-social, passíveis de
“falsear” a realidade, posta que são falseadas as relações materiais dos indivíduos. Todavia, sua
correção não ocorre – e jamais ocorrerá – pelo fornecimento de descrições verdadeiras aos
indivíduos em lugar de falsa, não sendo a ideologia um simples equívoco; sua superação terá,
necessariamente, que se situar no campo da práxis humana.
Aqui torna-se visível em nosso horizonte que a crítica as concepções liberais dos
autores jusnaturalistas e sua implicação para a concepção geral do Estado e da política não
poderá tomar a estrutura rasa da escusa apologia a uma verdade absoluta frente às suas
concepções que – em nossa visão política contemporânea – propagaram ideais que serviram a
78

uma subsequente retirada aparente da política da vida do trabalhador. Tal movimento seria não
apenas errôneo com o método que nos propomos a seguir e com a pesquisa que desenvolvemos,
mas, seria também, incidir em erro e retrocesso à discussão proposta. A relação da visão liberal
do homem que colocou a visão hobbesiana de todos contra todos com sua ascensão ao conceito
de ideologia dominante deve ter seu foco, primeiramente, no processo histórico material se
deseja ser compreendido e, então, combatido. “Neste sentido, personalidade, alienação e
consciência são uma tríade conceitual inseparável da discussão sobre ideologia no campo do
materialismo histórico e dialético, especialmente quando se trata de superar as aparentes
constatações como a consciência autogerada e a concepção do indivíduo isolado (MÉSZÁROS
apud SILVA, 2015).
Tendo estabelecido isso, podemos partir agora para uma concepção de ideologia sem
maiores ressalvas e compreender sua relação com a política, especialmente na expressão do
apoliticismo, e a consciência humana. Como vimos,

A ideologia, portanto, é “naturalizante” e a-histórica. Neste sentido, oculta aspectos


da realidade social e visa, via discurso e ideias, eternizar as condições presentes (como
a propriedade privada, por exemplo). Uma visão de classe determinada, tal como a
burguesia que proclama como interesses de todos os seres humanos, os seus interesses
enquanto classe, mas cujo projeto de emancipação é obstaculizado pelas condições de
trabalho que ela mesma esteve no leme de seu engendramento. (SILVA, 2015, p. 41)

O autor explicado em sua pesquisa que o processo de retirada da historicidade da ordem


social vigente, ou seja, das relações sociais estabelecidas, encontra seu fundamento
intimamente ligado com o processo de alienação e reificação. Pois, ao retomar a apreensão de
Marx que, em certas condições sociais, os produtos humanos escapam a seu controle,
assumindo existência aparentemente autônoma, é passível de compreensão que as relações
sociais – frutos também da produção humana – sejam tomadas como dotadas de existência
autônoma e eterna, o que facilitaria a sua distorção e retirada de sua historicidade.
Destarte, observamos de maneira mais didática como a alienação serve como base para
a naturalização de uma forma de pensar como única pela ideologia, como supracitado por
Almeida et al. (2011). Essa naturalização, além de fundamentar um caráter estático a
construções mutáveis, permite a justificativa do alijamento do indivíduo das produções do
gênero humano, sendo que esse processo, ao ser estabelecido como ideologia vigente –
consciência social dominante – corresponde a uma estrutura psicológica de tipo definido
segundo Vigotski (apud ALMEIDA, 2008), na acepção da assimilação subjetiva da ideologia
e construção de camadas, estratos e funções da personalidade.
79

Ao considerarmos, então, as decorrências da ideologia sob a consciência, considerada


em seu caráter necessariamente objetivo, em relação à organização social capitalista, abarcamos
aqui o excerto de Almeida (2008) para essa síntese:

A realidade converte-se em concepção de mundo fixada na consciência na forma de


linguagem, o que lhe confere certa estabilidade. Essa concepção pode ser naturalizada
ou ainda mecanizada, fossilizada (em analogia ao mecanismo psicológico do
comportamento fossilizado) com base na alienação. Pensamos, com isso, que a
alienação e a ideologia oferecem obstáculos ao avanço para novos limiares da
consciência, já que dão uma aparência de ausência de movimento, quando a realidade
é movimento contínuo. No entanto, a ideologia não pode impedir o movimento do
real, pode no máximo lhe dar uma aparência estática.
Sob as relações sociais capitalistas, os limiares da consciência são determinados pela
atividade alienada e pela consciência fragmentada da totalidade. Ou seja, são
determinados pelas relações materiais dominantes e suas correspondentes idéias de
dominação. Não apenas todos e cada um se inserem em algum ponto das relações
capitalistas, como a consciência social universalizada é a consciência liberal
burguesa. (p. 99 – grifo nosso)

Além disso, como destaca Silva (2015), se a atividade vital circunscreve a constituição
da consciência do indivíduo dentro de uma perspectiva de antagonismo de classes sociais,
quanto mais afastado o sujeito estiver da produção espiritual – conforme a divisão social do
trabalho abordada anteriormente – mais vulnerável ele estará a concepções da classe que
domina, justificando – em parte – a constituição do ideário burguês mesmo na classe proletária.
A consciência da classe, com efeito, está intimamente conectada com a problemática da
alienação, porquanto a autoconsciência da classe a que pertence, permite ao sujeito saber sua
relação com outra classe, suas possiblidades e necessidades para superação da ordem social
cristalizada na ideologia. Para tal contexto, Almeida (2008) demonstra como podemos,
sucintamente, considerar a consciência de classe como um processo em constante movimento
que pode, ou não, reconhecer a si mesma, caracterizando, respectivamente a consciência de
classe em si e a consciência de classe para si.
A consciência de classe em si pode ser compreendida, de acordo com Almeida (2008),
como a consciência advinda da união de um grupo em busca da reivindicação de uma
necessidade ou um desejo que não está de acordo com estrutura dada para aquele grupo, de
modo a produzir um salto qualitativo na consciência. Ou seja, “(...) constitui-se como classe na
relação com outra classe, mas sem uma ação autoconsciente não rompe com aquilo que lhe
coloca na condição de explorada, buscando apenas melhorias na realidade imediata e não uma
transformação das relações sociais que produzem a condição de exploração” (ALMEIDA,
2008, p. 103).
80

A consciência de classe para si, não obstante, surge da emergência da classe como
sujeito, e compreende a consciência de classe que emerge quando o proletariado se percebe em
relação com uma outra classe na ordem social e se coloca em movimento para superação das
condições que o exploram como coletivo. O desenvolvimento da consciência de classe, em si e
para si – processualmente –, rompe com a ideologia vigente ao conseguir realizar uma produção
teórica propriamente classista, desvelando as contradições do real de acordo com o ponto de
vista de sua classe, em nossa perspectiva, proletária (ALMEIDA, 2008).
Cabe o destaque, dado o caráter histórico materialista do método que pressupomos para
o presente trabalho de afirmação de Löwy (apud ALMEIDA, 2008) de que “(...) à cada época
é a classe revolucionária que represente o máximo de consciência possível (...)” (p. 107). Sendo
que essa condição outrora na história fora representada por diversas classes para além da classe
trabalhador, inclusive tendo representação na burguesia revolucionária na época dos autores
jusnaturalistas que abordamos anteriormente.
Assim, intentamos revelar a relação que consciência, ideologia e alienação possuem
quando se aborda essa problemática e, para a compreensão da dinâmica da política e suas
implicações na constituição da consciência humana não poderia ser subtraída de nossa análise.
Conforme ressalta Silva (2015):

A relação entre consciência, alienação e ideologia entrelaça-se em uma mesma


problemática. Trata-se dos limites objetivos da consciência humana e de formas de
concebê-la, bem como seus modos de constituição e ação que se baseiam nestes
mesmos limites, através de recursos como a universalização, a parcialização e o
ahistoricismo, em prol de uma harmonia ou ordem inexistente, idealmente insuflada.
A teoria torna-se etapa necessária da superação da ideologia, é o sustentáculo da
“crítica prática” mas não deve limitar-se em ser um outro momento ideal tomado
apartado da realidade social, ao contrário trata-se da produção de um conhecimento
que revele os determinantes sociais da consciência, capazes de superar as concepções
minadas pela ideologia e que, entre outras instâncias, entenda a consciência como um
processo, aliada com o projeto de revolucionar o estado de coisas presentes, para que
a consciência esteja em outro patamar qualitativamente diferenciado, compreender a
consciência é mais portanto que descrevê-la como se apresenta no presente. (p. 58)

Tendo estabelecido a dinâmica do caráter processual da consciência em sua relação com


a ideologia vigente, poderemos agora, enfim, abordar as implicações que o sistema teórico
jusnaturalistas construído para e durante a ascensão da classe burguesa ao posto de dominância,
a consequente fundação do Estado moderno e suas contradições conforme observamos
historicamente e a concepção marxista de política no processo de constituição da consciência e
social, possuindo o aporte teórico sistematizado até o momento como mediação para tal
argumentação.
81

3.3 A política como processo na consciência

Conforme o desenvolvido até esse momento, depreendemos que a consciência se


constitui a partir da atividade vital do indivíduo, inserido em relações sociais historicamente
contextualizadas, dentro dos modos de pensar, agir, sentir característicos da consciência social
de uma determinada sociedade que, sob regime de antagonismo de classes, torna-se a ideologia
dominante e dominadora em um período histórico. Com efeito, a produção espiritual de uma
sociedade não estará jamais separada do movimento processual da produção da vida
propriamente dita e suas especificidades, constantemente se atualizando de acordo com esses
dois polos unos da realidade concreta. A política, conforme compreendida no presente trabalho,
está – forçosamente – situada dentro desse contexto, sendo imprescindível sua apreciação em
relação à consciência social se almejamos apreender os meandros de sua implicação à
constituição da consciência individual.
Leontiev (1978), como abordamos, revela-nos como a realidade aparece ao homem em
sua significação, de maneira particular, ao mediatizar o reflexo do mundo pelo homem. As
significações são produzidas socialmente em um contexto de determinadas relações sociais que
caracterizarão a consciência social específica da sociedade (Almeida, 2008). A política
coloquialmente apresentada como engodo, mal social e, ao mesmo tempo, como principal
instrumento de transformação da realidade, sendo vulgarizada nesse aspecto, como denota Da
Mata (2014), subsume seu significado mais profundo à vulgaridade de repetições imediatistas
e permanece assim cristalizada na consciência social em sua significação “vulgar”.
A ideologia, ao naturalizar as relações vigentes e a ordem estabelecida, torna, então, o
signo monovalente, destacando-lhe de seu caráter processual, e pode ser compreendida
inicialmente em sua interação com a dimensão política da atividade humana dessa maneira. Ao
cristalizar no conceito de política esse duplo aspecto alienado imediatista, a ideologia
dominante assegura, espiritualmente, a manutenção da ordem estabelecida, posto que, em seu
caráter imediato supracitado, a potencialidade política do trabalhador está alijada por não
conseguir alcançar os níveis reais para a transformação de sua realidade concreta.
Como observamos no fenômeno do apoliticismo, de acordo com Konder (1965), a
alienação em sua expressão na dimensão política da totalidade humana, a retirada, espiritual e
material, do trabalhador de sua dimensão política real, beneficia a classe que o domina, em um
contexto de luta de classes. Como o autor referencia:
82

Tal perspectiva tende sempre a excluir, a priori, a possibilidade concreta de uma


superação do trabalho parcelarizado, fragmentado, com a conquista do homem total,
quer dizer, de indivíduos livres, dotados de qualidade humanas harmônicas,
multiformes e desenvolvidas.
A subestimação das possiblidades da atividade política do homem e a descrença
quanto a uma reorganização da sociedade e a uma superação da divisão social do
trabalho marcam, na consciência acumpliciada com a alienação, o seu conteúdo de
classe. (KONDER, 1965, p. 148 – grifos do autor)

Em vista disso, devemos destacar que a política apreendida como modo de regular as
condições de produção da vida, como práxis social, produzida como uma determinada
consciência social também possuirá sua especificidade com as características próprias da
produção material da sociedade, sendo, assim, um produto em movimento a ser apropriado pelo
sujeito em seu processo de humanização e constituição de sua consciência individual. A
política será apropriada pelo indivíduo da classe trabalhadora como processo de regulação
daquilo a humanidade produz, ainda que da perspectiva da classe que apenas é proprietária dos
instrumentos de produção e não a efetiva produtora da realidade. Pois, “A prática do poder de
regulação é dissimulada pelo poder da ideologia. Da mesma maneira, é através da ideologia que
o princípio regulador (política) estabelece legitimidade para as práticas sociais existentes” (DA
MATA, 2014, p. 73).
O desenvolvimento da produção material humana é, dessa maneira, acompanhado com
o desenvolvimento das produções espirituais que são produto e base para a sua apreensão.
Quando voltamos nosso olhar ao desenvolvimento histórico do capitalismo, da ascensão da
burguesia à classe dominante e a fundação do Estado moderno como instrumento de regulação
da produção mercantil, observamos que a própria concepção do conceito de política é
transmutado de acordo com esse desenvolvimento. Não obstante, demonstramos no primeiro
capítulo a grande cisão no pensamento político realizada por Hobbes – enquanto pensador do
jusnaturalismo – em relação ao arcabouço teórico produzido por Aristóteles. Com a passagem
à produção capitalista, torna-se necessário que as concepções ideais – que fundamentaram a
consciência social e individual – fornecessem suporte às condições materiais de exploração que
eram engendradas.
Destacamos, pois, a concepção liberal lockeana de estado de natureza e estado político
explicitado no primeiro capítulo do presente trabalho. O filósofo jusnaturalistas não é o único
representante dessa corrente do pensamento, todavia, demonstra como as ideias espirituais que
se tornam naturalizadas pela ideologia, como consciência social dominante, possuem seu
correlato no desenvolvimento material que as engendrou. Quando o autor inglês assenta uma
concepção universal e universalizante de direito natural à propriedade – e gozo de seus produtos
83

–, relegando a um Estado contratual o papel singelo de juiz imparcial na regulação dessa


propriedade, revela-nos – com o crivo da história que se desvelou – uma determinada concepção
de homem e de política que é base e consequência da ascensão do modo de produção necessária
para o capital.
Assim, a própria política é naturalizada como monovalente e desfigurada de suas reais
potencialidades dentro do campo da totalidade ação humana e essa distorção é constantemente
atualizada na consciência social, tornada ideologia, tendo como base a alienação do trabalhador
– de origem material. Em concordância com o que expusemos sobre a parcialidade da
emancipação política alcançada pela revolução burguesa no segundo capítulo de acordo com
Marx (2009), a emancipação pelo Estado (política, religiosa e da propriedade) não é capaz de
emancipar a sociedade civil desses aspectos, mas, ao contrário, torna-os pressupostos em seus
postulados. Da mesma forma, a emancipação política – ou emancipação do estado de natureza
– em Locke pressupõe explicitamente a propriedade como fundamento de cidadania e, sendo
base teórica do movimento que se desvelou no ascenso da burguesia, observamos que os
direitos conquistados no Estado moderno estão precisamente subordinados à propriedade.
Como Chagas (2014) remonta de sua análise dos textos marxianos:

No Estado político, são declarados os direitos do homem, como a liberdade, a


propriedade, a igualdade e a segurança. Essa liberdade, contudo, concebida como
direito do homem, não se objetiva nas relações sociais, senão no direito do indivíduo
segregado, fechado em si mesmo. A objetivação prática desse direito constitui, por
isso, o direito à propriedade privada. O direito humano à propriedade privada é, por
sua vez, o direito de usufruir dos bens e rendimentos, sem conceder a devida atenção
aos outros homens. Desse modo, o direito à igualdade torna-se meramente uma
subscrição dos dois anteriores mencionados, quer dizer, a igualdade política não tem
correspondência na igualdade social. Por fim, o direito à segurança consiste na
garantia outorgada pela sociedade a cada um de seus membros para a preservação de
sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade. Assim, nenhum desses supostos
direitos do homem transcende a propriedade privada, o egoísmo individual; pelo
contrário, eles estão estritamente determinados e fundamentados nos interesses
pessoais, mesquinhos dos indivíduos da sociabilidade capitalista. (p. 71)

A emancipação política preconizada pelos autores jusnaturalistas e alcançada na


revolução burguesa é universalizada como a emancipação total humana e, portanto, relega à
política um caráter de manutenção – ou reforma – de um sistema já finalizado e, com a
subsequente ação progressiva da alienação e ideologia, é tornada universal e natural. A
consciência social, como expressão das relações materiais vigentes, passa a cristalizar nas suas
significações esse caráter estático e reformista da própria política, o que nos auxilia na
compreensão do duplo aspecto vulgar observado no conceito de político como abordado por
Da Mata (2014): concomitantemente mal social e panaceia.
84

Entretanto é necessário que destaquemos que a análise aqui empreendida do movimento


do esvaziamento da política de seu caráter realmente humano não recai – e não enseja recair –
em apenas uma crítica de dicotomia moral. À medida que desenvolvemos a análise do processo
de constituição da consciência da classe trabalhadora, precisamos problematizar quais são os
obstáculos à sua emancipação verdadeira, que recaem necessariamente sobre a ideologia
tornada dominante da burguesia por meio do processo histórico ocorrido. A ressalva que
realizamos situa-se apenas para demonstrar como, podendo compreender nosso objeto
historicamente, constatamos que a própria produção espiritual burguesa não estava
universalmente situada como dominante, representando, inclusive, o arcabouço teórico
revolucionário outrora. A problemática, abordada no segundo capítulo do presente trabalho,
consiste no desenvolvimento das relações sociais ao ponto que esse arcabouço – outrora
revolucionário – tornou-se dominante, universalizou e progressivamente fora naturalizado
como imutável e quais as implicações para a política e para a constituição da consciência do
trabalhador a partir dessa lógica. Como acuradamente sintetiza Coutinho (1999):

Esse conceito de “direito natural” – de direitos que pertencem aos indivíduos


independentemente do status que ocupam na sociedade em que vivem – teve um
importante papel revolucionário em dado momento da história, na medida em que
afirmava a liberdade individual contra as pretensões despóticas do absolutismo e em
que negava a desigualdade de direitos sancionada pela organização hierárquica e
estamental própria do feudalismo. Contudo, nessa versão liberal, o jusnaturalismo
terminou por constituir a ideologia da classe burguesa, sobretudo porque Locke e seus
seguidores consideram como direito natural básico o de propriedade (que implicava
também o direito do proprietário aos bens produzidos pelo trabalhador assalariado), o
que terminou por recriar uma nova forma de desigualdade entre os homens. (p. 44)

Desse modo, desejamos demonstra o caráter historicamente processual que a política


possui e que tais determinações serão representadas na consciência social, disponível à
apropriação pelo trabalhador em sua consciência individual. Todavia, compreendendo a
totalidade da organização social humana, observamos que não é possível reduzir todos os
aspectos da ação humana a sua dimensão política, ainda que seja um dos pilares fundamentais
a sua estrutura. Mesmo em seus aspectos de desrealização do processo de humanização do
trabalhador, apoliticismo, como abordamos, não se pode limitar a política unicamente a si
mesma, compreendendo-a dentro de uma totalidade social. Pois, como exposto anteriormente,
o limite essencial do pensamento político é limitar-se a pensar exclusivamente dentro da
dimensão política.
Constatamos, então, que, enquanto dimensão social humana localizada dentro de um
contexto de luta de classe, a política não permeia o reflexo psíquico do trabalhador em seus
85

aspectos mais fundamentais. Entretanto, ainda que seja necessário compreendê-la dentro de um
contexto mais amplo e complexo, podemos sobrelevar nas próprias características modernas da
política, possibilidades de sua superação e de sua realização em seu sentido mais profundo e
essencial; denotando, dentro desse contexto, as sendas possíveis para, além da emancipação
política, alçarmo-nos à emancipação humana.

3.4 O que fazer? O papel da política dentro de uma práxis emancipatória

Por seu caráter processual, a ordem social humana não deve ser apreendida como
imutável ou unicamente como se seguisse um caminho natural em alguma direção pré-
estabelecida; justamente por ser caracterizada como social, ela deve corresponder ao processo
de desenvolvimento dos nexos entre os indivíduos e a organização da produção da vida, com
explicitado anteriormente. A lógica da contradição situada pela dialética, permite-nos
reconhecer que o movimento da realidade é caracterizado pela constante luta entre elementos
contrários, buscando a superação de sua negação, e que as contradições que permitem essa
superação a níveis qualitativamente superiores podem estar mais ou menos evidentes, de acordo
com suas condições objetivas e a, subsequente, apropriação humana dos fenômenos. A política
– como fenômeno social – possui em sua constituição essa mesma dinâmica e, portanto, não
apresentará eternamente apenas sua expressão alienada e ideologicamente comprometida com
a classe dominante contemporânea; mesmo sob vigência do regime de produção capitalista, há
processos ocorrendo que contém o germe da superação a níveis qualitativamente superiores e
mais próximos de sua essência verdadeiramente social, para além de suas especificidades
acumpliciadas ao capital.
Ainda que a consciência individual se constitua a partir da consciência social – da
ideologia dominante, então –, não temos, em sua aparência estática conferida, a cessação de
todo seu movimento próprio, posto que compõe parte da realidade e “A realidade não é linear,
tampouco será linear a consciência dessa realidade. A ideologia é, portanto, permeável a
contradições e também revela aspectos do real, ainda que de forma invertida” (ALMEIDA,
2008, p. 86). Pelo ideário dominante a política pode estar subordinada à propriedade, como seu
ponto basilar, todavia, isso não significa que esteja necessariamente impermeável a mudanças
e a seu próprio movimento. Se alcançarmos a admissão desse aspecto da realidade, podemos
seguir nosso questionamento para a possibilidade de um real papel emancipatório constituinte
da política, a despeito da consciência social dominante. Sendo imprescindível reconhecer a tese
materialista nesse cenário, para denotar que “(...) as condições materiais para a superação já
86

estão dadas ou estão pelo menos em gestação na realidade. É isso que torna possível o
surgimento de uma teoria revolucionária” (ALMEIDA, 2008, p. 87).
Para além da possibilidade da superação de forma qualitativa sendo engendrada no
movimento do natural do fenômeno, como destacamos no segundo capítulo, Marx considera a
política imprescindível como instrumento se for apropriada de maneira a superar a crítica
formal de um modelo de Estado, atuando no sentido de alterar as condições de opressão do
trabalhador na ordem social vigente, conscientizando a classe trabalhadora sobre suas
condições concretas de alienação e exploração do trabalho. Entretanto, mesmo que seja
necessário apreender a política como instrumento de mudança, é imperioso que não se limite a
mudança à dimensão política, posto que

Por ser parcial, limitada, a emancipação política não liberta o ser humano
efetivamente, mas o faz cativo, prisioneiro do próprio egoísmo. A própria estrutura
que, no início da sociedade moderna, pretendia a liberdade do homem, tornou-se o
calabouço da liberdade, não aboliu seus entraves, mas os aprofundou. O entendimento
ahistórico de que a propriedade privada seja eterna, natural e independente das
relações sociais construídas pelos próprios seres humanos é um empecilho para a
realização da emancipação humana. (DA MATA, 2014, p. 116)

Destarte, o pensamento que emancipou o trabalhador politicamente na modernidade é o


mesmo que encerrou suas possibilidades no sistema do capital, retirando a liberdade verdadeira
de seu campo de possibilidades e instaurando a liberdade ilusória da propriedade privada. Com
o desvelamento do desenvolvimento das relações de produção, esse pensamento tornou-se
síntese dessas relações de dominação, pois, ainda que de maneira diversa, a cisão da sociedade
em classes nunca cessou – e nem poderia ter cessado naquele momento histórico, de acordo
com Marx (2015).
A possibilidade de uma liberdade efetiva que inclua, mas não se encerre em, a dimensão
política está situada, historicamente, a partir da superação do sistema de produção capitalista,
considerando que é apenas sob esse modelo de produção que se gesta uma classe não-
proprietária capaz de se tornar revolucionária e, ao universalizar sua perspectiva de classe, é
capaz de universalizar a produção humana de maneira integral. Como explicita Konder (1965):

A superação ao mesmo tempo do empirismo e do utopismo, bem como a possibilidade


de alcançar um ponto de vista universalmente válido, estavam reservadas para uma
classe que pudesse vir a se libertar do particularismo da sua perspectiva de classe,
identificando-se, na prática, com a humanidade com um todo. Seria preciso que a
evolução social humana e o desenvolvimento das fôrças produtivas dominadas pelo
homem permitisse o aparecimento de uma classe que só pudesse se libertar da
exploração da propriedade particular suprimindo o próprio sistema da propriedade
particular. Seria preciso que se formasse um movimento social destinado a abolir as
87

classes; que, pela primeira vez na história, uma classe de não-proprietários pudesse
dirigir uma revolução. E o capitalismo se encarregou de criar as condições necessárias
para isso, através do extraordinário desenvolvimento das fôrças sociais produtivas,
através da concentração industrial, através da montagem de um sistema de produção
que se estende à sociedade inteira, através da socialização técnica do modo de
produzir da sociedade e através, sobretudo, da criação do proletariado moderno. Com
o proletariado moderno, no dizer de Marx e Engels, o capitalismo engendrara os
coveiros que o haveriam de enterrar. (p. 150)

Compreendendo a consciência de classe para si do proletariado, como supracitado,


observamos que a apropriação da concepção de política em seu duplo aspecto é um momento
fundamental ao proletariado para possibilidade de superação da ordem social vigente e efetiva
emancipação humana. Se a consciência social, engendrada pelo caráter material das relações
estabelecidas na sociedade, partir de um ponto de vista universal e universalizante, sem recair
em um utopismo aparente, seria possível vislumbrar a existência de uma política efetiva, onde
cada indivíduo é dono de suas potencialidades e está como um todo para o gênero humano.
Afinal, “A emancipação humana é a restituição do mundo ao próprio homem (...)” (DA MATA,
2014, p. 120).
Como Almeida (2008) denota, olhando para diferentes momentos históricos, observa-
se, porém, que a consciência de classe do trabalhador não é espontaneamente definida pela
posição revolucionária frente ao capital, mas, sim, localiza-se em movimento dentro de um
contínuo que possui como polos o amoldamento à ordem social capitalista e a posição
revolucionária frente essa ordem desumana e desumanizadora.
O retorno das potencialidades políticas do indivíduo, como parte de um todo social, é
passo insubstituível para a construção de uma ordem social essencialmente universal. Sem uma
proposição ingênua de retorno a uma época pré-moderna ou aristotélica, mas, sim, de caráter
de superação da ordem contemporânea a partir dos acúmulos históricos humanos da totalidade
social. Como destacamos, contudo, sem cindir a política de sua relação forçosamente material
com as relações de produção vigentes, a emancipação humana situa-se na possibilidade
apropriação total por cada indivíduo de cada dimensão humana, tornadas, em essência,
universais.
88

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto, a construção do Estado moderno e a concepção política engendrada


por esse processo possuíram como expressão ideal o pensamento dos autores jusnaturalistas
que, inseridos no contexto histórico de inicial mercantilização da produção humana, tiveram
em suas obras a marca da individualização do homem e uma crescente impermeabilidade do
singular frente ao processo coletivo decisório da política. Bobbio (1994), em suas contribuições,
remete-nos ao fato de que, apesar de apontar para caminhos distintos de projetos políticos à
sociedade, os autores jusnaturalistas possuíam em comum não apenas o aspecto da atribuição
de uma lei natural a priori na humanidade, mas também a incumbência do pacto político de ser
capaz de mediar essa relação.
O contexto histórico que engendrou esse processo culminou em adotar essa perspectiva
como as ideias da classe que ascendeu ao posto de classe dominante, a burguesia. De acordo
com Silva (2015), ao compreender esse movimento dentro de uma lógica submetida à
propriedade privada, as ideias da classe dominante que passam a justificar a ordem social e
naturalizar suas principais características assumem o papel de ideologia e não devem ser
compreendidas como a simples “ilusão” da realidade, que poderia ser libertada por meio de
uma verdade – como pregado pele tese dos intelectuais idealistas. Ao contrário, observamos
que é a mudança nas próprias relações materiais que engendram essa ideologia que devem ser
colocadas a teste para uma mudança efetiva no pensamento dominante.
Sob a dimensão política, a ideologia – que possui como base a alienação supracitada –
encontra seu principal exponente no apoliticismo naturalizado nas relações sociais. Konder
(1965) explicitou como a alienação, sob sua expressão no apoliticismo, possui como
consequência preponderante a naturalização da ordem social dominante e o esvaziamento das
potencialidades dos indivíduos em se empenhar em uma efetiva mudança dessa realidade. O
apoliticismo abordado por Konder (1965) e Da Mata (2014) no presente trabalho revela-se
como a manifestação das particularidades do regime de produção sob a propriedade privada em
sua dimensão política, seja em seu aspecto mais imediato da impossibilidade de inclusão efetiva
do trabalhador no controle do Estado ou pela limitação de suas potencialidades políticas nas
minuciosidades de seu cotidiano.
Compreendendo a consciência social como os modos de agir, pensar e sentir de uma
determinada sociedade em um contexto histórico, como abordado por Almeida (2008) e
Almeida et al. (2011), apreendemos que o apoliticismo e a marca individualizante da
propriedade assumem papel fundamental na constituição da consciência individual, posto que
89

a última se forma a partir da consciência social, encontrando nos conceitos da linguagem –


socialmente estabelecidos - sua estabilidade e mediação para a realidade que continuamente
irá se apropriar. Dessa maneira, o traço da exclusão do trabalhador da política como abordamos
encontro seu reflexo na consciência de cada sujeito inserido no contexto de produção do capital.
Todavia, como precisamente postulado por Almeida (2008), as contradições do real, de
acordo com a lógica do movimento – dialética –, também terão reflexo no psiquismo e nas
expressões ideias produzidas sob a ordem material vigente. A ideologia e o apoliticismo
estariam submetidos também às contradições de seu próprio movimento e do movimento da
realidade, não constituindo exclusivamente, portanto, um aspecto universal e imutável da
sociabilidade humana como incialmente se apresentam.
A crítica do Estado moderno e da democracia burguesa disponível pelo marxismo
abordada aqui, pelas contribuições de Marx (2009; 2010; 2011 e 2015); Marx & Engels (2009);
Konder (1965) e Da Mata (2014) – principalmente, mas não unicamente –, elucida os aspectos
contraditórios das concepções políticas dominantes em fenômenos particulares do capitalismo
e do Estado como instrumento de dominação, como observamos no pauperismo e na limitação
da emancipação política.
O pensamento de Hobbes, Locke e Rousseau reverberam até a contemporaneidade,
posto que incorporam e são incorporados pela perspectiva universalizante da classe burguesa,
ainda que não de forma total. Porém tais constructos teóricos estão passíveis de revelar suas
próprias contradições ao serem historicamente situados e analisados correlatamente com as
críticas disponíveis, em um movimento próprio da história.
Dessa maneira, o pensamento dominante – a consciência social tornada ideologia – que
servirá de base à constituição consciência individual não é – e não pode ser – considerado como
imutável e sua expressão na dimensão política também não o poderá. De acordo com Da Mata
(2014), Marx nos aponta para dois aspectos necessários de serem analisados para recobrar a
importância da política como aspecto fundamental da atividade humana – como explicito por
Konder (1965) –, a impossibilidade de uma mudança efetiva nas relações sociais por meio da
reforma do Estado (e, assim, da política) e a imprescindibilidade da retomada da política como
instrumento a ser apropriado pelos indivíduos para um horizonte emancipatório.
À guisa de conclusão, podemos apontar esses dois aspectos de síntese no pensamento
marxiano como diretamente correlatos ao processo de manutenção e alteração,
respectivamente, dos moldes da consciência social em sua expressão política dispostos à
internalização pela consciência individual do indivíduo. O conceito de consciência de classe
em-si e para-si abordado, portanto, revela-se como central para futuras investigações sobre o
90

tema, bem como o desvelar das condições históricas de opressão do trabalhador, em sua
materialidade e nas várias dimensões da atividade humana a que determina.
Observamos, por fim, que a realidade que engendra a consciência acumpliciada com o
apoliticismo – e a alienação de maneira geral, em suas diversas expressões – carrega em si o
germe de sua própria superação; retomando a importância da política como essencial ao ser
humano para esse processo. Conforme nos assegura Marx (2015):

2) Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada, segue-se ainda que a


emancipação da sociedade da propriedade privada, etc., da servidão, se exprime na
forma política da emancipação dos trabalhadores não como se se tratasse apenas da
emancipação deles, mas antes porque na sua emancipação está contido todo o humano
(allgemein menschliche) – este, todavia, está aí contido porque toda a servidão
humana está envolvida na relação do trabalhador com a produção e todas as relações
de servidão são apenas modificações e consequências dessa relação. (pp. 318-319)
91

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