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TRADUÇÃO

O SAGRADO SELVAGEM
ln: BASTIDE, Roger, Le Sacré Sauvage. Paris, Payot, 1975.

Tradução de Rita de Cássia Amaral


É verdade que Nietzsche novamente conta da existência de um
proclamou a morte dos deuses; no vazio espiritual a preencher e
entanto, Foucault proclama a morte do constatassem, a partir desse sentimento
homem (o que é lógico, o homem não de vazio, que uma personalidade que
se constitui como tal senão em sua não se enraizasse em algum tipo de
relação com os deuses). É verdade entusiasmo sagrado não seria, em
também que o cristianismo e, em certa definitivo, senão uma personalidade
medida, o Islão entraram em crise. castrada disto que constitui uma
Enfim, é verdade que os sociólogos nos dimensão antropológica universal e
martelam os ouvidos, há algumas constante para todo homem vivo: a
décadas, com seus processos de dimensão religiosa?
"secularização" (sem se dar conta de Porém, este sagrado que
que eles só fazem retomar Hubert reaparece na cultura e na sociedade de
Spencer e seus processos de hoje, se quer um sagrado selvagem. Ele
diferenciação social: o religioso tende a procura, por vezes, seus modelos nos
se purificar de toda contaminação com transes coletivos das populações ditas
aquilo que não é ele mesmo). primitivas, nos cultos de possessão que
Mas a morte dos deuses o cinema, a televisão e o teatro negro
instituídos implica no desaparecimento popularizaram. Não para copiá-las,
da experiência instituinte do Sagrado à certamente, já que por definição um
procura de novas formas onde se sagrado selvagem é criação pura e não
encarnar? Mas a crise das organizações repetição - ele se situa no domínio da
religiosas não provém de uma não- imaginação, não no da memória - mas
adequação, cruelmente sentida, entre as para extrair, absorver mesmo, isto que
exigências da experiência religiosa nós podemos chamar de uma
pessoal e os quadros institucionais nos pedagogia da selvageria. André Gide,
quais se quis moldá-la visando, muitas cansado de nossa civilização mecânica,
vezes, retirar a sua potência explosiva, artificial e racional, pedia já há alguns
considerada como perigosa para a anos, em suas preces, uma nova
ordem social? Mas, enfim, não se invasão dos Bárbaros 1 que destruísse
assiste hoje a uma nova busca nosso mundo e lhe desse uma chance
apaixonada do sagrado entre os jovens de alteridade; estes Bárbaros não
- como se nossos contemporâneos, vieram. Então, os jovens os recriaram,
após um longo período de
desenvolvimento do ateísmo ou apenas 1- O uso de maiúsculas em algumas palavras
de abandono à indiferença, se dessem corresponde ao seu uso no texto original
(N.T.).
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mas se inspirando mesmo nos cultos desconfiam da linguagem do corpo. O


extáticos, violentos e sangrentos como seu cristianismo mais ou menos
se definiam aos olhos de alguns maniqueísta os impele a identificar os
historiadores. Aqui estão os dois pilares Deuses e os demônios e a ver,
desta conferência: o sagrado selvagem conseqüentemente, nos cultos de
das sociedades tradicionais e o sagrado possessão, um fenômeno análogo
selvagem de nossa civilização àquele dos possessos da Idade Média
ocidental. Dois pilares que nos pela legião de Satã - com uma
permitirão colocar não propriamente o educação médica que lhes havia feito
problema das relações entre a natureza conhecer apenas crises de histeria e
e a cultura, nem aquele que lhe é que, desse modo, só podiam pensar o
vizinho, as relações entre a psicanálise transe através da única categoria que a
e a sociologia, mas aquele - puramente clínica lhes havia revelado na Europa
sociológico - da domesticação do ou nos Estados Unidos.
sagrado; as sociedades tradicionais se Ora, o transe dos assim ditos
"dedicam", como tentaremos· "primitivos" é o contrário mesmo do
demonstrar, a passar do sagrado desprendimento corporal, do abandono
selvagem ao sagrado domesticado; às pulsõ~s inconscientes, da crise
nossa sociedade, ao contrário, a histérica. E um jogo litúrgico - que se
desagregar o sagrado domesticado para aproxima mais, no fundo, da
fazer brotar, ou baixar, o sagrado representação teatral que das grandes
selvagem em toda a sua fúria. crises de nossos asilos psiquiátricos.
Durkheim, ao mostrar a origem Porque ele é, do começo ao fim,
da religião dos estados de efervescência controlado pela sociedade; porque ele
coletiva, é em parte responsável pelo preenche uma função social, a de
erro que se comete quando se define os estabelecer entre os Deuses e os
transes primitivos como pura homens uma comunicação que permite
efervescência. Mas basta reler As a estes Deuses descer novamente à
formas elementares da vida religiosa terra para o bem da comunidade;
para perceber que os exemplos que dá porque ele constitui, para um número
em favor de sua tese se voltam contra muito grande de religiões, um
ele, porque o transe só aparece em fenômeno normal, culturalmente
certos indivíduos, ele começa e termina instituído e dirigido, como posso dizer?
em hora fixa, ele se desenrola segundo normal, obrigatório e sancionado. O
um cenário dado de antemão e que não que sempre me \mpressionou,
muda de uma cerimônia para outra, ele pessoalmente, tanto na Africa quanto
só faz representar na terra o que se nas Américas negras, é justamente este
passou outrora no mundo do sonho; conjunto de regras e de controles. E
quando há orgia, o que é raro, a orgia nós só daremos aqui alguns exemplos:
obedece a regras estritas. quando uma mulher está de luto, ou
Entretanto, mais que Durkheim, menstruada, ou mesmo se teve um
certamente são os exploradores, os pouco antes relações sexuais, por mais
viajantes e os missionários responsáveis que ela tenha sido dedicada a uma
por esta imagem de selvageria no divindade e assista à cerimônia, ela não
encontro extático dos homens e dos cai em transe Quando os tambores que
Deuses - sobretudo quando estes ritimam a cerimônia não "comeram",
viajantes eram médicos ou ainda mais, ou seja, receberam o sangue sacrificial,
psiquiatras, porque eles chegaram de que lhes permite chamar os Deuses, as
um mundo "outro" com seus danças podem continuar por horas a fio
preconceitos de ocidentais, que que o fenômeno da possessão não se

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produz. Longe de dar uma imagem de descrições provenha da confusão entre


caos, de violência ou de distúrbio estes dois conceitos. Mas o transe
muscular, o transe toma selvagem existe ainda assim porque é
freqüentemente uma forma calma, tão preciso passar por ele para que se
calma que eu desafio qualquer possa, em seguida, domesticá-lo. Com
observador não habituado a afirmar que efeito, para entrar numa confraria de
uma das dançantes está "possuída". possuídos existem dois casos a
Entretanto, os Yoruba da Nigéria considerar. Ou seja, ou alguém é uma
reconhecem num tremor imperceptível pessoa normal, mas que é chamada,
de ombros, nas pálpebras que se devido ao seu pertencimento a um clã
fecham, que um deus desceu e param ou família determinada, a se tornar uma
imediatamente a cerimônia, porque sacerdotisa. Nesse caso é preciso
basta que o Deus esteja presente (a primeiro "quebrar" seu eu para torná-la
mulher ficará neste transe doce uma acessível ao transe. Isso se consegue
semana) para poder abençoar as com um banho de folhas, ou seja,
colheitas e os habitantes da aldeia, para droga-se a candidata e se incutem nela
fazer cair a chuva ou acabar com uma reflexos condicionados, permitindo-lhe
epidemia; é inútil fazer vir outros e cair em transe à audição de alguns
multiplicar o êxtase. leitmotivs musicais, o tempo que dure o
Eu consagrei muitos livros ou efeito destas drogas. Ou se trata de
artigos a este controle para precisar uma pessoa que já apresentou
insistir nisso hoje, onde nós só perturbações psicóticas ou
queremos falar do transe selvagem. O psicossomáticas, a primeira crise é de
que nos interessa é mostrar que o natureza puramente fisiológica. Ela é
transe selvagem existe tanto entre os considerada pela coletividade como o
Africanos como Afro-Americanos de sinal de um chamado divino; a pessoa é
hoje, mas que ele, assim que se dita justamente possuída por um Deus
manifesta, é reinserido na sociedade "selvagem" e o ritual da iniciação, ao
para ser domesticado por ela e utilizado qual ela será submetida imediatamente
em seu proveito. após, consiste, segundo a expressão
Antes, porém, existe uma bem significativa dos Afro-Americanos,
confusão a evitar; aquela entre o transe em "batizar" o Deus selvagem - o que
selvagem propriamente dito e o transe quer dizer, sociologicamente falando,
violento. Uma vez que a possessão domesticá-lo.
consiste em ser habitado por uma O que definirá, portanto, as
divindade e em representar esta sociedades tradicionais em relação à
divindade - ou seja, consiste numa nossa sociedade ocidental, não será
mudança de personalidade (os tanto a não-existência do sagrado
Africanos dizem que uma parte de selvagem, quanto o esforço para
nossa alma é então expulsa para ser submetê-lo a um controle da
substituída pelo Deus)-, é evidente que coletividade desde que este se
quando se é possuído por um Deus manifeste; a necessidade deste controle
guerreiro ou mau, a crise que se responde a todo um conjunto de razões
exprime será violenta e com que são tanto de ordem social quanto
desencadeamento muscular, enquanto religiosa.
que quando se é possuído por um Deus A primeira, é que este sagrado
do amor, da água doce ou da chuva selvagem não é interpretado como uma
benfazeja, a crise que se exprime será, crise de loucura, mas como um
pelo contrário, calma. A violência não é chamado divino. Ora, é inútil insistir
selvageria e talvez o erro de certa sobre esse ponto bem conhecido: todo

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ritual é comemoração de um mito. É o pertence a uma classe aristocrática; não


mito que o funda, que o estrutura e que é de bom tom, para uma mulher em
o explica. Como diz Van der Leeuw: crise, se despir, ela deve, mesmo no
"A vida primitiva é uma vida mais profundo de seu transe, respeitar
representativa. Agir de modo primitivo, as regras do pudor; não é de bom tom
é reexecutar o ato original. .. Enquanto cometer excentricidades e não
o homem moderno pensa que pode se representar, seguindo
arvorar, mais ou menos, em criador escrupulosamente o mito, o papel que
criando o mundo, o homem primitivo lhe é devido; existe em toda cerimônia -
sabe que não pode senão repetir". A mesmo a mais frenética (aos olhos dos
iniciação tem justamente por mote brancos) - indivíduos que não podem
manipular a tendência ao transe do entrar em transe, como os músicos,
candidato para "construir" no seu porque isto introduziria a desordem na
corpo um certo número de gestos harmonia das danças extáticas. No
estereotipados, que são ditados pelos Brasil, é uma impolidez, quando se
mitos e que aparecerão cada vez que visita um candomblé ao qual você não
este indivíduo for "montado" por seu pertence, cair em transe quando se
Deus. Será muito longo insistir sobre o executam as cantigas do seu Deus. E se
conjunto de seqüências que vão isto acontece, é extremamente mal
condicionar esta futura representação visto e objeto de reprovações
de papel. Digamos apenas que os manifestas. No Brasil igualmente,
sacerdotes que dirigem a iniciação são quando no curso de uma cerimônia - o
sensíveis aos perigos que ameaçam o que acontece às vezes - um Deus não
equilíbrio psicológico do indivíduo e chamado se manifesta, o que arrisca a
que temem, muito mais do que eles perturbar a seqüência obrigatória dos
suspeitam, a aparição de crises gestos rituais, o Babalorixá ou a
selvagens incontroláveis. Desse modo, lyalorixá intervém imediatamente para
desde o banho de folhas, se as plantas expulsar o intruso. Logo, o
do tipo alucinógeno se revelarem muito comportamento de transe, como todos
fortes para a constituição de uma os outros comportamentos, segue as
determinada pessoa, eles lhe temperam leis das boas maneiras. A crise
logo o efeito pelo recurso às plantas selvagem não é aceita, porque ela não
calmantes. Desse modo, ainda no curso pode, por definição, obedecer a este
da iniciação existe uma cerimônia dita código superior do permitido e não
"dar de comer à cabeça", que tem por permitido, ao qual as sociedades
finalidade fortificar a cabeça do tradicionais atentam particularmente
candidato e impedir que a futura pois toda ordem social é constituída
descida de uma divindade nela sobre o respeito a esse código.
provoque, porque sua cabeça seria Portanto, a sociedade e a
muito fraca para suportá-la, uma crise religião jogam, igualmente, visando
muito violenta. transformar o espontâneo em
A segunda razão é a institucional. Mas, naturalmente, e é
importância do sentimento de vergonha este o ponto que nos interessa aqui,
nas sociedades não cristianizadas (o cada vez que o controle da coletividade
cristianismo substitui o sentimento de relaxar, por uma razão ou outra, aquilo
culpabilidade, que é interior, o que pode haver de selvageria latente no
sentimento da vergonha, que é uma transe fará rachar sua túnica
resposta so,ciológica ao olhar do institucional. E já que nós distinguimos
outro). Na Africa, não é de bom tom dois modos de controle (que se juntam,
ter transes violentos, sobretudo se se além disso), aquele da instituição

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religiosa e o do código de boas completamente. Porque devemos fazer


maneiras, distinguiremos, da mesma uma primeira distinção: a possessão
forma, dois fatores de retomo ao pelo espírito de Velhos AfricJ!.nos e a
sagrado selvagem; um que tenderá a possessão pelos espíritos dos Indios. A
um enfraquecimento da instituição violência só aparece na segunda e se ela
religiosa tradicional e outro que tenderá apenas aparece na segunda, é que as
à passagem de uma sociedade orgânica representações que o Brasileiro faz do
(para empregar o jargão dos negro e do Indio regulam ainda
sociólogos) a uma sociedade anômica. inconscientemente o desenrolar do
O Brasil nos oferece excelentes transe. O Brasileiro, efetivamente,
ilustrações desse duplo processo de considera o negro como
regressão. fundamentalmente bom; ele concebeu,
A religião africana, centrada no no tempo da escravidão, uma ideologia
transe, se reconstituiu, efetivamente, do negro da mesma natureza daquela
entre os escravos e entre seus que deu, nos Estados Unidos, a
descendentes, mas esta religião africana imagem do Tio Tom; ele jogou no
ficou submissa à pressão da sociedade esquecimento coletivo o negro mulato
global, às forças de secularização que ou rebelde para só guardar o negro
caracterizam a vida urbana e a submisso, respeitoso, amando seu
industrialização. Entretanto, ela Senhor e se devotando a ele como um
resistiu, mas nas grandes metrópoles velho cão, muitas vezes surrado,
como Rio de Janeiro ela se deixou sempre contente. A possessão por
aculturar pelo catolicismo ou Espíritos Africanos reflete. a
espiritismo dos brancos; ela se ligou, na persistência desse estereótipo. O Indio,
defesa de classes marginalizadas, com ao contrário, não aceitou a escravidão
µma outra religião popular, a dos (pelo menos diz-se, porque houve uma
Indios, para dar nascimento a um culto escravidão índia e das mais
sincrético: a macumba. Ora, a força de importantes, mas não é o que realmente
controle e domesticação de uma se passou que nos interessa, são as
religião sincrética é evidentemente idéias que se faz disso}, ele lutou contra
menor que a de uma religião não o branco, ele foi vencido, sem dúvida,
sincrética, porque esta é partilhada mas guardou . toda sua altivez de
entre muitas postulações diferentes, homem livre. E esta altivez de homem
muitas vezes mesmo contraditórias. livre, guerreiro, valo~oso, que o transe
Através dessas fissuras do controle, por espíritos de Indios reflete: a
outras motivações aparecem e um violência não é portanto, o ponto de
outro Desejo se inscreve no transe, que partida, expressão da selvageria, mas
não é forçosamente religioso, mas que expressão de um estereótipo étnico. A
utiliza os símbolos religiosos para selvageria vai utilizar o estereótipo para
mascarar outras preocupações. Na melhor fluir. Como no sonho, tal como
macumba, nós vemos o transe Freud o analisa, as pulsões do "aqui"
domesticado do candomblé, sustentado (ou do "eu") se disfarçam para poder
pelo ritmo dos tambores e terminando passar impunemente pela censura, na
em beleza, tornar-se mais e mais macumba o transe selvagelfl reprimido
violento até tomar, muitas vezes, utiliza a barbárie do Indio para
formas histeróides: rolar na terra, exprimir, contra a cultura branca, uma
gritar, debater-se furiosamente - e o contra-cultura em formação ou uma
espasmo substituir o gesto anti-sociedade.
estereotipado. Tem mais. Entre os Deuses
O controle relaxou. Não cessou africanos que descem na macumba, um

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toma importância considerável: Exu. Portanto, duas sequencias de transes


Exu é uma divindade (ou quase violentos para uma apenas de transe
divindade) Yoruba, mas entre os doce. Quer dizer que o declínio que nós
Yoruba da África como nos podemos seguir na evolução e
candomblés do nordeste do Brasil, Exu transformações das religiões africanas
é antes de tudo portador dos pedidos no Brasil é o declínio que vai do
dos homens aos Deuses, como o sagrado domesticado para um sagrado
portador do <jiscurso dos Deuses aos mais e mais selvagem. Por quê? E aqui
homens. E uma divindade que outros fatores intervêm e que nós
intermediária, mensageiro divino e não devemos juntar o enfraquecimento do
se pode defini-lo melhor que controle religioso, pela lenta perda dos
comparando-o a Mercúrio na mitologia mitos originais e a mistura de religiões,
grega. E, como não há transe de Exu, ao· enfraquecimento do controle da
se Exu tem vontade (o que pode sociedade global, pela seqüência de
acontecer, se bem que a coisa me profundas mudanças desta sociedade
pareça muito rara) de possuir uma com a passagem de uma sociedade
pessoa, ele não pode fazê-lo senão por rural e pré-industrial a uma sociedade
uma divindade interposta, por Ogum urbana e industrializada.
que é seu irmão, e não diretamente. A abolição do trabalho servil
Mas Exu apresenta também um outro não foi precedida por uma educação
caráter, como também Mercúrio prévia da liberdade para escravos; estes
criança: ele é "trickster"; ele adora refluíram das plantações para as
pregar peças nos humanos, é vingativo, cidades onde se chocavam, no mercado
ele pune secretamente quem não lhe de trabalho, seja com mulatos libertos
rende homenagem; tem-se, portanto, que já ocupavam o estrato do pequeno
medo dele. São estes dois traços que artesanato, seja com os migrantes
fazem com que no sincretismo católico- europeus, que forneceram os primeiros
africano Exu seja às vezes identificado elementos do novo proletariado
com São Pedro, que tem a chave do industrial. Também, se fizermos
Paraíso, ou seja, que é intermediário exceção das mulheres que puderam
entre o reino celeste e o reino terrestre encontrar trabalho na domesticidade, os
- ou com o Diabo, que define então seu negros se encontraram marginalizados
aspecto "trickster" e vingativo. na sociedade de classes em formação.
Na macumba, Exu é antes Marginalizados profissionalmente,
considerado como o chefe dos porque foram finalmente jogados nas
Demônios e não como o mensageiro ocupações mais duras e menos pagas,
divino; é seu aspecto sombrio que em particular na construção, ou no
domina; em segundo lugar, semi-desemprego (ou sub-emprego);
contrariamente à ortodoxia africana, ele marginalizados ecologicamente, porque
desce no corpo dos homens para eles foram viver nos "subúrbios"
provocar transe entre eles. Estes (favelas do Rio de Janeiro, casebres e
transes tomam um caráter demoníaco. porões úmidos de São Paulo);
Ora, nós vimos, desde a época em que marginalizados enfim socialmente,
Arthur Ramos estudou as primeiras porque muitos entre eles não
macumbas até hoje, o lugar destes encontraram outra solução para
transes demoniacos se tornar mais e sobreviver que os pequenos furtos, o
mais preponderante. Toda cerimônia proxenetismo de baixa categoria, a
comporta pelo menos 3 partes: o apelo vagabundagem com seu
aos Exus, o apelo aos Pretos-Velhos, o acompanhamento, a mendicância e, nas
chamado aos Espíritos ameríndios. horas de grande aflição, a bebedeira.

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Neste estado de anomia, as confrarias às religiões afro-brasileiras uma função


religiosas afro-americanas puderam lhes catártica. Mas elas têm também uma
servir de ponto de segurança, mas nelas outra função, aquela que Balandier bem
entretanto, eles deviam forçosamente demonstrou para os messianismos
introduzir suas ansiedades e suas africanos de época colonial: quando a
frustrações, o que determinaria, revolta política é impossível, ela
finalmente, a explosão desses cultos assume, para exprimir-se, um caráter
enquanto institucionalização do religioso. O religioso torna-se, então, o
sagrado. símbolo de uma contestação. E talvez o
A situação melhorou depois. E que acontece também na macumba e no
a esta melhora corresponde a passagem transe violento, que constitui o centro
da macumba a uma nova forma de sua cerimônia. O transe com efeito é
religiosa: o espiritismo de Umbanda. um meio de extrair da sociedade
Eu já contei em outro lugar esta presente "outra" que pode ser o
história. Mas a situação não melhorou a contraponto desta sociedade presente.
ponto de fazer desaparecer Ele pode sem dúvida não o ser sempre,
inteiramente o sub-proletariado dos porque os caminhos do imaginário são
subúrbios, o capitalismo brasileiro múltiplos. A sociedade "outra" dos
necessitando, para ser concorrencial, de candomblés tradicionais é uma
uma reserva permanente de sub- sociedade onde humildes vendedoras
empregados. Ao contrário, esta ambulantes e domésticas de grandes
melhora só podia fazer nascer, neste casas representam o papel de Deuses e
sub-proletariado, novas aspirações, Heróis. Nós estamos, agora, no nível
impossíveis de realizar - o sonho de dos "Bonnes" de Genet, onde o
uma vida melhor, que permanecia assassinato da senhora branca só se
utópica. Isso só fazia, efetua oniricamente. Mas a macumba
conseqüentemente, multiplicar as privilegiando, em detrin;iento das
frustrações, as tensões psicológicas, as divindades africanas, os Indios que
revoltas abortadas. A macumba souberam guardar sua liberdade
continuou, portanto, a existir ao lado lutando contra aqueles que os queriam
do Espiritismo de Umbanda e, dominar e explorar, e entre as
enquanto este último tendia a exprimir divindades africanas privilegiando Exu,
valores de uma pequena classe média transformando a significação de Deus
em formação, a macumba regressava intermediador em um anjo da rebelião,
paralela e simultaneamente da religião permitiria à revolta do sub-proletariado
para a magia negra, do sagrado descobrir uma via onde o desejo e uma
domesticado ao sagrado enlouquecido, sociedade "outra", impossível de
ou ao sagrado-rebelião. Ao sagrado realizar politicamente porque não
enlouquecido primeiro, porque quando estruturada e não pensada
as tensões são muito fortes e a conceitualmente, poderiam assim
sociedade não pode lhes fornecer uma mesmo se exprimir, senão em um
saída, elas não podem encontrar outras discurso coerente e construtivo, ao
soluções senão a explosão selvagem menos em gritos desarticulados, em
que extravasa a energia numa breve gestos sem significação, logo em puro
crise de quase loucura. O transe desencadeamento de selvageria.
religioso oferece, assim, às frustrações Se nós insistimos nestes
tornadas insuportáveis, o lugar de sua fenômenos de des-domesticação do
superação. E o aspecto que os transe, no interior dos cultos afro-
psiquiatras ou os antropólogos brasileiros (e nós teríamos podido dar
brasileiros melhor expressaram, dando outros exemplos, no período da

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colonização africana, o filme de Jean excelentemente Henri Desroche e todos


Rouch, "Os Deuses loucos", poderia estes delírios místicos que abalam a
aqui nos servir de ponto de partida), é intervalos regulares o equilíbrio das
que nós iremos justamente encontrar no Igrejas. Por que Deus, que já falou
sagrado selvagem de nossa civilização outrora aos homens, teria se tornado
ocidental, as mesmas causas em jogo: a subitamente mudo e não teria mais
crise das instituições religiosas e a mensagens a transmitir à humanidade
anomia social. sofredora? Os católicos sonham, com e
Quer aceitemos ou não o ponto após Joachim de Flore, com um reino
de vista de Durkheim sobre os estados do Espírito-Santo que substituiria
de efervescência social, dos quais aqueles da lei e da graça, que fizeram
surgiria a religião, um fato é certo: é seu tempo. Os protestantes, com o
que estes estados de efervescência não pentecostalismo, substituem a religião
são duráveis - eles são esgotáveis, do livro pela de inspiração divina. Os
escreve Durkheim. Há, portanto, em revolucionários tentam ler, nas
seguida, uma recaída do fervor mudanças da sociedade, o discurso
sociológico; a religião se desenvolve a ininterrupto do Senhor da história. E
partir dessa "recaída" como instituição certamente, estes despertares, que
de gestão da experiência do sagrado. podem acabar em danças, estes
Esta "administração" do sagrado pela messianismos que podem acabar em
Igreja tem certamente um valor transes, estes pentecostalismos que
positivo: ela permite sua continuação inventam novas línguas extáticas, não
sob forma de uma comemoração e rompem inteiramente com o passado;
como uma lembrança ensurdecida - trata-se de uma descontinuidade
mas, por outro lado, a instituição se contínua mais que de ruptura
volta contra o vivido para aprisioná-lo propriamente falando. Entretanto, com
atrás das grades de seus dogmas ou de o advento desses novos Deuses
sua liturgia burocratizada, de modo que sonhados, nós já estamos muito
ele não desperte mais em inovações próximos da busca desse sagrado
perigosas, um outro discurso além do selvagem que vai fazer, nós veremos,
único discurso aceito pela ortodoxia, sua repentina irrupção hoje, após todos
ou não se exalte desmedidamente. esse sagrados revoltados ou todos estes
Toda Igreja constituída tem, sem sagrados oníricos.
dúvida, seus místicos, mas ela Porque estes sagrados
desconfia deles, ela lhes delega seus revoltados desembocam em utopias, em
confessores e seus diretores para construções da razão, em programas
dirigir, canalizar, controlar seus estados planificados de transformação da
extáticos, quando ela não os prende em sociedade: o Novo cristianismo de São
algum convento que seus gritos de Simão em uma República de
amor perdido não possam perfurar. Produtores - a religião harmoniosa de
Mas a sociedade em torno desse bloco, Charles Fourier em um Novo Mundo
que quer manter um passado revolto, industrial - o verdadeiro cristianismo de
muda. Donde os despertares, os Etiénne Cabet em um comunismo
movimentos de reformas, as heresias, messiânico. Porque, igualmente, todos
os messianismos e os milenarismos, esses sagrados oníricos no fim das
para tentar lutar contra o descolamento contas acabaram em heresias, ou seja,
crescente entre as infra-estruturas em Igrejas paralelas, portanto em
móveis e as superestruturas instituições; caos, sem dúvida, na
conservadoras. Donde todos esses origem de sentidos desregrados,
"Deuses sonhados" de que fala sentimentos liberados, imaginação

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desenfreada, mas caos que acaba por se "curandeiros" opõem ao empirismo dos
dar normas, como se houvesse uma médicos uma teoria terapêutica
lógica no excesso que não seria utilizando a linguagem dos fisicos:
possível não respeitar e que arrasta ondas, fluidos, átomos. Pode-se, desse
atrás dela, na liturgia e dogmática das modo, deixar guiar pela religião sem
novas seitas inventadas, abas inteiras da temor, já que essa religião se exprime,
memória coletiva, palavras de profetas, aparentemente, na linguagem mesma da
parábolas de Jesus, vide os apocalipses ciência.
proibidos. A heresia pode aparecer Este compromisso entre o
como uma contra-religião, mas inverter racionalismo todo poderoso e a
uma religião não é, ainda, segui-la? aspiração subjacente a uma experiência
Entretanto, através dessas crises, a "outra" só pode ser, entretanto, uma
instituição religiosa parece bem solução efêmera. Um momento virá
atingida; ela se enfraquece de vez em forçosamente - e parece que esse
quando, malgrado seus esforços para se momento chegou para nossa civilização
reformar, responder aos criticos, ocidental - onde a aspiração subjacente
exorcizar os pesadelos e encontrar um acaba por se desprender da "canga" da
novo equilíbrio com a sociedade em razão para inventar novos Deuses de
mudanças. Equilíbrio cada vez mais homens. Logo, a crise do instituído, ou
precário e que faz, como eu disse no seja, das Igrejas, não entranha em sua
começo, vaticinar a morte de Deus. continuação uma crise do instituinte,
A industrialização, quer dizer, da efervescência de corpos
desenvolvendo o pensamento e corações, da buscada experimentação
racionalista; a urbanização, quebrando da dinâmica do sagrado. Apenas, as
a solidariedade comunitária; a escola jovens gerações querem permanecer no
laica, colocando a religião entre fervor do instituinte sem ir até a
parênteses; a sociedade de consumo, constituição de novos instituídos, que o
enfim, apoiando-se na propaganda cristalizariam logo e o mineralizariam
insidiosa do mass media, canalizando em novas instituições de idéias
as aspirações dos homens para os bens sistematizadas, de gestos
materiais, retiram destas Igrejas estereotipados, de festa regulada e
rasgadas porções cada vez maiores de incessantemente recomeçada. Eis
fiéis. Mas a morte de Deus não é porque o sagrado de hoje se quer um
necessariamente a morte do Sagrado, Sagrado selvagem contra o Sagrado
se é verdade que a experiência do domesticado das Igrejas.
sagrado constitui u,ma dimensão Tal é o primeiro movimento que
necessária do homem. A medida que a conduz, a partir das instituições
Igreja perde seus fiéis, vê-se pulular, religiosas históricas, até a selvageria do
em particular nas grandes metrópoles, transe instituinte. Mas há,
as pequenas seitas esotéricas, os paralelamente, um segundo movimento
consultórios de astrólogos, clínicas de que nós devemos seguir, agora, que
novos "curadores". Espécies de nos fará igualmente "desfazer" a
compromisso entre o racionalismo, que necessidade de um novo Sagrado: é o
constitui o ideal de nossa nova movimento de natureza mais
sociedade planificadora, e a sociológica que resulta da anomia
necessidade de religião, porque o social, a qual, malgrado todos os
esoterismo se funda sobre sistemas de esforços dos governos, apesar de todas
idéias simbólicas bem ligadas; a as ideologias políticas que se
astrologia tem caráter matemático que ofereceram aos jovens no mercado de
afirma nosso pensamento; os idéias, nós não chegamos a produzir.

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Cadernos de Campo trad11ção - Bastide

Porque a solução dos problemas da aglomerações, a evasão das férias com


anomia só pode ser encontrada para seu fluxo massivo de machos
além das idéias, a menos, bem transpirantes e fêmeas nervosas,
entendido, que o político, o que é termina nos cenários organizados, nas
freqüente hoje, seja só uma simples festas planejadas, o casamento do
máscara que esconda por baixo o rosto homem com o céu, a água, as plantas,
coberto de um messianismo sem nome; os pássaros não é mais possível; é
apenas na medida em que seja assim, preciso se contentar com relações
nós encontramos até na política o frágeis, no nível dos momentos, em
fervor do Sagrado instituinte. A qualquer hotel de passagem, dito de
imaginação no poder, gritava-se em campanha. Enfim, como Max Weber
maio de 1968, e não a razão no poder. demonstrou, toda nossa cultura é uma
A imaginação, quer dizer, o fervor cultura da razão, da ciência, do
instituinte. E não a razão, ou seja, progresso que não deixa nenhum
novos sistemas de leis como remédio à domínio de nossa vida fora de seu
anomia, a recusa de todo instituído. campo, nenhuma gratuidade possível.
Simples variação, vê-se, sobre o tema Ora, as regras da razão, se são
desta conferência e que um imperativas, postulam a adesão prévia
estruturalismo do tipo de Lévi-Strauss do espírito que se submete a um certo
poderia facilmente inserir num mesmo números de valores que as justificam a
grupo de transformações, que eu nossos olhos; e estes valores podem ser
chamaria aquele da "selvageria". contestados se as regras que se extraem
Nós não temos que refazer um deles não podem, mas se elas são
quadro da anomia, tantas vezes contestadas, a lei social aparece
apresentado, mas que sublinhar apenas somente, então, como um instrumento
os fatores que puderam agir sobre os de opressão, como um constrangimento
indivíduos para impelí-los a novas arbitrário, ou, se se prefere: como a
formas de transe. Há, primeiramente, a última ameaça de castração dos filhos
passagem da comunidade, com seus por aqueles que detêm o poder, em
caracteres mais igualitários, sua nome do Pai.
solidariedade mais íntima, a Não é impunemente que o
homogeneidade relativa de suas crenças despertar do Sagrado selvagem foi
e seus valores, à sociedade que historicamente precedido pelo triunfo
distende as ligações, aprofunda os da filosofia do absurdo, que só fazia
vazios, a solidão dos homens, perdidos traduzir, numa linguagem sábia, estes
na massa indiferente. A família nuclear, traços da anomia que eu acabo de
que ajudou durante muito tempo o enumerar; a solidão que faz o homem
homem a levar mais facilmente este buscar uma "alteridade" nova, capaz de
fardo de isolamento, sofre uma crise saciar uma sede que ele não pode
onde a concorrência entre os sexos extinguir; a ruptura com a natureza
substitui sua complementaridade, não viva, que vai despertar no fundo de seu
tanto (como se repetiu) porque os ser a nostalgia de uma experiência
jovens se revoltaram contra seus mais cósmica; o triunfo da Razão, que só
velhos, mas antes porque eles se pode forjar novas cadeias, sejam elas
sentiam abandonados por seus Pais. douradas, onde vai aprisionar sua
Há, em seguida, a ruptura do mundo jovem Liberdade, apenas nascida com a
mecânico, artificial, de máquinas e crise da adolescência.
casas de concreto armado e do mundo A revolta contra o instituído
vivo; as árvores mesmo são social ressalta, desse modo, os mesmos
domesticadas nas grandes fenômenos coletivos que a revolta

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Cadernos de Campo tradução - Bastide

contra o instituído religioso; é preciso na base de certas iniciações religiosas;


criar um social in statu nascendi, como o ponto de partida é o mesmo nos dois
é preciso, sempre, criar uma religião a casos; trata-se de estilhaçar a
partir da experiência instituinte do personalidade antiga, aquela que foi
sagrado, vivida no interior do transe modelada pela sociedade, mas nos
original. Nestes dois casos, é o mesmo rituais de iniciação dedica-se, logo
recurso ao "selvagem" entendido como após, a criar, montando todo um
o "anti-domesticado". Mas pode haver conjunto de reflexos coordenados, a
muitos tipos de transe e não construir uma nova personalidade que
retomamos, por um outro caminho, ao substituirá a antiga cada vez que, a
mesmo Sagrado selvagem que aquele chamado dos tambores sagrados, o
onde nós sempre chegamos, seguindo a cavalo dos Deuses cair em crise; é isto
história das Igrejas? Pessoalmente, eu que nós chamamos a domesticação do
acredito nisso. Em todo o caso, as duas transe. Os jovens de hoje que querem
buscas se fundem sempre, porque o permanecer no selvagem original não
Sagrado selvagem dos religiosos procuram, naturalmente, o
ultrapassa o exotismo dos sonhos do desdobramento da personalidade -
imaginário ou expressões corporais ainda que se encontre traços dele, às
desencadeados para se tornar um vezes, nas mudanças de nomes que
combate político - porque de seu lado acompanham a entrada numa
social vivido in statu nascendi nas comunidade de drogados: Gros
diversas experiências comunitárias que Oswald, Jacques Le Thibetain,
se multiplicam em nossos dias, Savonette. Todavia, esta mudança não
transcende rápido o retorno à grande significa o rompimento com os pais, o
família camponesa, à economia de que é simbolizado pela recusa em usar
auto-subsistência, ou à promiscuidade o nome de sua família, quanto a
sexual, para buscar, além, um aquisição de uma nova identidade;
fundamento espiritual que enraíze, ele porque a mitologia da droga é aquela
também por sua vez, o sagrado da "viagem", viagem no imaginário,
instituinte. "Nem Marx nem Jesus", "pegar a estrada"; que permite todas as
proclamavam eles. O slogan é aventuras oníricas, "decolar" da
significativo dessa ligação, ou desta realidade para poder "planar" num
confusão de domínios. espaço sobrenatural (estes são os
É preciso analisar este sagrado termos próprios do jargão dos
selvag<;m, tal como ele se manifesta drogados) e sabe-se que esta viagem é
hoje. E curioso notar que ele busca muitas vezes acompanhada de uma
muitas vezes, para instituir-se, os outra viagem, no espaço geográfico,
modelos das sociedades arcaicas. Por aquela que leva a Katmandou. Esta
exemplo nos cultos de possessão, mas mudança de mitologia, quando passa
onde não se seria possuído, ou nos das cerimônias tradicionais da iniciação
quais não se saberia por quem se é (aquisição de uma nova personalidade)
possuído já que o Deus imaginado que para os rituais contemporâneos da
se agita em seu ser não tem nome. Os droga (ir até o início da viagem no
haitianos que trouxeram o Vodu a Paris desconhecido, do qual não se sabe o
viram bem os espectadores parisienses, que ele lhe reserva, talvez a morte, mas
durante o curso de suas cerimônias tanto pior: "é preciso saber fundir a
tomados por "saltos" selvagens que os campa em beleza"), é significativa
faziam cair no chão. Sabe-se a justamente de tudo isto que separa o
importância tomada pelas drogas na transe tradicional (controlado e,
juventude de hoje, como elas estavam portanto, instituído) do novo transe

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Cadernos de Campo traduçrio - Bastide

(que quer permanecer no instituinte, sendo dado que todo rito, mesmo
não desembocando em nenhuma consciente, é comemoração dos gestos
possibilidade de instituição). dos deuses. Ora, nós encontramos
E isto nos permite, talvez, ir fenômenos análogos no transe
mais longe. O transe domesticado é selvagem de hoje. De Antonin Artaud,
funcional em relação à sociedade com seu teatro da crueldade, a Jerzy
global, no interior da qual ele está Grotowski, com seu teatro da tensão, a
inserido, seja porque lhe favorece uma possessão é moldada sobre chapas.
melhor complementaridade entre os Parte-se então da improvisação, mas à
sexos e os estatutos sociais, seja procura de um cenário; da
porque ele serve para atrair, de algum espontaneidade, mas à procura de um
modo mágico, a bênção das divindades novo ritual; do transe violento (ficar
descidas na comunidade aldeã. O nu, fazer amor, gritar, se debater,
sagrado é investido numa instituição dançar até o esgotamento ... ) e que se
que o gere em beneficio de todos. O desejaria contagioso, que desejaria
transe selvagem de hoje se quer, pelo entranhar finalmente o conjunto dos
contrário, desfuncional, ele não busca espectadores numa mesma comunidade
nenhum resultado positivo, nem mesmo extática, mas que permanece regulado
para o indivíduo que a ele se abandona, pelo diretor (a nudez é comandada, o
jà que ele pode até mesmo ser mais do amor é simulado, o grito é modulado, a
que uma técnica de suicídio. Ele quer violência é esteticamente representada,
ser pura experimentação de uma o espectador permanece geralmente em
alteridade que permanecerá confusa e sua poltrona). Pode-se muito bem falar,
difusa, ato gratuito, ou simples gestos então, de simulação, como certos
de revolta. Não demência, etnólogos o fazem a respeito dos
compensação, catarse, na violência e no transes que permanecem apenas
delírio, como pretendem os psiquiatras, representados e não vividos nas
porque então o transe se tomaria sociedades tradicionais. Mas um certo
funcional e perderia sua ponta número de observações são necessárias
revolucionária. Mas a contestação, por aqui: o que é representado, nas
sua vez, do social como sistema de sociedades tradicionais é o mito
regras, e do indivíduo como identidade fundador da ordem; o que é
pessoal - do social, abandonando-se ao representado no Living Theater, ou
interdito; do indivíduo, fazendo-o qualquer outra forma de teatro
levantar dos abismos interiores para a contemporâneo, é o transe
legião anárquica dos fantasmas desfuncional. A festa primitiva que
censurados. O selvagem é encontra sua culminação no transe é o
primeiramente, e antes de tudo, a lugar da comunicação, da solidariedade
decomposição, a desestruturação, a aldeã reconstruída, da unidade a um
contra-cultura que não pode, nem o tempo cósmica e sociológica, fundada
deseja, acabar em uma nova cultura. sobre isto que é a um tempo a base do
Aqueles que estudaram os cosmos e do social: o sagrado
cultos de possessão nas sociedades politeísta; a festa teatral de nossos dias
tradicionais muitas vezes se espantaram não é, numa sociedade anômica, senão
com seus aspectos espetaculares e seus pura provocação que não pode, apesar
caracteres de festas coletivas. Estes de sua vontade, acabar em comunhão.
aspectos são tais que às vezes o transe Mesmo entre os atores: nos Estados
é representado, mais do que vivido; Unidos os Africanos quiseram se
fala-se então de simulação, ainda que misturar às danças afro-americanas ou
não se trate propriamente de simulação, dos brancos "liberados", mas eles não

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chegaram a entrar no jogo porque os sociedades in statu nascendi, é preciso


ritmos corporais dos africanos não são que haja, para que se possa falar de
os ritmos corporais dos afro- comunidade (a despeito da regulação},
americanos, ainda menos dos brancos. um mínimo de trocas interindividuais;
Quer se queira ou não, a sociedade age apenas estas trocas se situam no nível
até sobre o psicológico para modelá-lo, do discurso. Mas a palavra não é o
e o somático é ele também, como o vivido congelado? O instituinte, na
psíquico, socializado; é o que faz com medida em que é continuamente falado,
que a dança selvagem que desejaria não se arrisca a se constituir
entranhar numa mesma roda extenuante imediatamente em novos instituídos. O
os homens de culturas e sub-culturas sagrado selvagem não seria mais,
diferentes, se paralise na então, senão uma usina de fabricar
impossibilidade de qualquer deuses ou inventar mitos, ou seja, de
intercomunicação dos seres. Aqui, fazer o instituído.
ainda, como no nosso parágrafo Tal é o nó do problema
precedente, as diferenças prevalecem colocado pelo sagrado selvagem. A
sobre as semelhanças; o transe Bíblia nos propõe toda uma série de
selvagem simulado não é da mesma ilustrações impressionantes destas
natureza que o transe domesticado metamorfoses do sagrado selvagem em
simulado; e ele não quer sê-lo, porque sagrado domesticado, como se o
o transe domesticado é aquele das selvagem não pudesse sobreviver senão
comunidades homogêneas; o transe com a condição de se domesticar. O
selvagem, aquele das sociedades encontro de Moisés com Deus sobre o
heterogêneas. Monte Sinai, entre as tempestades e
E é bem aqui, talvez, que se nuvens permeadas de relâmpagos, se
separe mais nitidamente o Sagrad9 prolonga pela chegada da Lei ao povo
selvagem do Sagrado domesticado. E de Israel. A mata ardente que queima
que o sagrado domesticado é um no deserto de mistério torna-se símbolo
sagrado coletivo, mesmo se um único decifrável; a luta noturna de Jacó com
dos dançantes é possuído por seu Deus. o Anjo deixa sua cicatriz indelével no
Nas comunidades hippies ou outras, corpo extenuado do combate... Os
mesmo quando os corpos alongados se inovadores de hoje, sociais como
misturam uns aos outros, na religiosos, se dão conta dessa
inconsciência dos gestos, cada um necessidade; eles devem elaborar, a
permanece sozinho. Não há trocas de partir de suas experiências-piloto,
experiência, nem dons nem contra- outros modos de viver ou de adorar em
dons, mas coexistência e paralelismo de conjunto: as festas coletivas se
experiências que permanecem, para arrefecem em liturgias repetidas; o
cada um, de um domínio estritamente fascinante do sagrado se traduz em
pessoal. Não há coletividade possível planos de utopias, em reformas de
senão pela e na regulação, o que obriga Igrejas ou em contra-Igrejas
a um salto fora da selvageria, a fim de luciferianas. Mas não vê que neste
entrar no domínio da lei. Ora, por esforço para passar do instituinte a
definição, o selvagem é aquilo que está novos instituídos, para substituir os
fora de toda lei, quando ele não se instituídos antigos, que faliram, a
deseja ainda mais, contestação de uma imaginação é obrigada a apoiar-se na
Regra qualquer. E entretanto ... memória coletiva. A psicologia o
entretanto, já que nós estamos nas demostrou: a imaginação criadora se
comunidades, e que nós definimos as apóia sempre, nesses processos
comunidades de Jovens como inovadores, sobre o material que lhe

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Cadernos de Campo trad11çiio - Bastide

fornece a imaginação reprodutiva. O manifestação de um arquétipo inscrito


sagrado selvagem_ não é, de algum modo, seja na natureza
definitivamente, senao o sagrado humana, como quer Jung, seja na
difuso, que não pode se precisar, a não história da humanidade, como quer
ser pela utilização de formas arcaicas Eliade. O sagrado selvagem, com efeito
significativas. Eis porque o sagrado - e que permanece selvagem - se quer
selvagem, que acredita inventar novos experiência vinda do caos, da explosão
Deuses, é mais freqüentemente o de toda ordem cósmica ou psíquica, do
momento da ressurreição (para embargo de um Deus que flutua, ovo
empregar a expressão de Halbwachs) não aberto, sobre um mar de trevas
de antigos Deuses que se acreditava agitadas. E se situa, portanto, numa
mortos. categoria arquetípica "a priori" que lhe
A filosofia dos hippies já deu dita a lei obrigatória da desordem e do
lugar, sobretudo nos Estados Unidos, a desfuncionamento, categoria que se
artigos ou livros interessantes. Ora, encontra em todas !IS mitologias dos
percebe-se, lendo-os, que esta filosofia povos, desde a Asia suméria ou
é apenas um bric-à-brac de velhas hebraica, até aquelas das ilhas perdidas
religiões, orientais e cristãs, leituras mal nos arquipélagos oceânianos. Eu acabei
digeridas ou apreendidas na telinha da de empregar a expressão "categoria a
televisão. G. Balandier empregou a priori" que lembra a filosofia de Kant e
expressão "mercado de pulgas" que dá com efeito, aqui como no mundo
bem a impressão destes instituídos kantiano, é impossível ao indivíduo
recuperados mais que inventados. Os atingir os números (nós diríamos o
Deuses sonhados são apenas múmias Sagrado no estado puro, em sua
das antigas Divindades, das quais se transcendência absoluta}, ele se molda
desenrola a bandagem para ver se elas com aquilo que nós o impressionamos,
não podem servir outra vez ... seja através do corpo, seja através do
Entretanto, além dessas religiões que espírito, nas formas arquetípicas que
falharam, ou dessas propostas nos são constitutivas; não pode
deliberadas de voltar a formas portanto existir para o homem
esquecidas por nossa civilização instituinte senão já - e desde o principio
ocidental, os cultos de possessão - instituído.
africanos ou as igrejas primitivas do Pouco importa, porque nós
cristianismo nascente, com seus saímos de um período - aquele que os
carismas explosivos, o dom das línguas, sociólogos chamam de a
o dom de profecia - estes cultos e estas "secularização" - onde a religião não
igrejas primitivas cristãs, consideradas estava morta, é certo, mas se escondia
com efeito por aqueles que as aceitam sob os substitutos emprestados ao
como coquetéis molotov capazes de mundo profano; o culto ás vedetes
incendiar nossa civilização condenada, substituiu o dos santos, as novas
não podem encontrar, ao menos numa mitologias dos mass media substituindo
pequena elite, um sagrado selvagem as das antigas Igrejas (Karl Marx já
puramente instituinte, desejado como havia tomado consciência disso quando
tal, que não crie nenhum instituído, que só existia ainda, entretanto, em sua
escape para sempre das recaídas época o mundo dos jornais) ou ainda
sociológicas? sob a valoriz,ação de heróis sacrílegos
Talvez. Mas a questão se (Prometeu, I<:<aro, Axion e, com a
coloca, então, de saber se este psicanálise, Edipo ), mas não há
Instituinte não é ainda um Instituído. propriamente sacrilégio sem postular
Na medida em que ele não é senão a ao mesmo tempo um sagrado contra o

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Cademoo do campo tradu.ç/JQ .. Bastide

qual se luta. Mas hoje Ulcios OllllllS


substitutos da rdigião, ofer,...r.pe&a
sociedade de c;onsuiao· , ou... pela
psicoterapia analgésica, 1r.io .objo«os, de
uma . contesução cr~º·"J Jiedo,; j;

deixem.me,~ nestas ~4o ! ,

~ sei'>'.~ ..........
ajnda . 4es1Veitadat, ,., !1Mtt.84e . ele
retomar 0, geatp de MQMés ~'"li<> do
bat.u sua ·,...... - .!llllSJ1l0
psicanali•
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.vêJem ,nela soae'*' llQJB
V#B.-tiliCA ,... llQ l!Ole:. ffllSCclldo -
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