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O SAGRADO SELVAGEM
ln: BASTIDE, Roger, Le Sacré Sauvage. Paris, Payot, 1975.
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desenfreada, mas caos que acaba por se "curandeiros" opõem ao empirismo dos
dar normas, como se houvesse uma médicos uma teoria terapêutica
lógica no excesso que não seria utilizando a linguagem dos fisicos:
possível não respeitar e que arrasta ondas, fluidos, átomos. Pode-se, desse
atrás dela, na liturgia e dogmática das modo, deixar guiar pela religião sem
novas seitas inventadas, abas inteiras da temor, já que essa religião se exprime,
memória coletiva, palavras de profetas, aparentemente, na linguagem mesma da
parábolas de Jesus, vide os apocalipses ciência.
proibidos. A heresia pode aparecer Este compromisso entre o
como uma contra-religião, mas inverter racionalismo todo poderoso e a
uma religião não é, ainda, segui-la? aspiração subjacente a uma experiência
Entretanto, através dessas crises, a "outra" só pode ser, entretanto, uma
instituição religiosa parece bem solução efêmera. Um momento virá
atingida; ela se enfraquece de vez em forçosamente - e parece que esse
quando, malgrado seus esforços para se momento chegou para nossa civilização
reformar, responder aos criticos, ocidental - onde a aspiração subjacente
exorcizar os pesadelos e encontrar um acaba por se desprender da "canga" da
novo equilíbrio com a sociedade em razão para inventar novos Deuses de
mudanças. Equilíbrio cada vez mais homens. Logo, a crise do instituído, ou
precário e que faz, como eu disse no seja, das Igrejas, não entranha em sua
começo, vaticinar a morte de Deus. continuação uma crise do instituinte,
A industrialização, quer dizer, da efervescência de corpos
desenvolvendo o pensamento e corações, da buscada experimentação
racionalista; a urbanização, quebrando da dinâmica do sagrado. Apenas, as
a solidariedade comunitária; a escola jovens gerações querem permanecer no
laica, colocando a religião entre fervor do instituinte sem ir até a
parênteses; a sociedade de consumo, constituição de novos instituídos, que o
enfim, apoiando-se na propaganda cristalizariam logo e o mineralizariam
insidiosa do mass media, canalizando em novas instituições de idéias
as aspirações dos homens para os bens sistematizadas, de gestos
materiais, retiram destas Igrejas estereotipados, de festa regulada e
rasgadas porções cada vez maiores de incessantemente recomeçada. Eis
fiéis. Mas a morte de Deus não é porque o sagrado de hoje se quer um
necessariamente a morte do Sagrado, Sagrado selvagem contra o Sagrado
se é verdade que a experiência do domesticado das Igrejas.
sagrado constitui u,ma dimensão Tal é o primeiro movimento que
necessária do homem. A medida que a conduz, a partir das instituições
Igreja perde seus fiéis, vê-se pulular, religiosas históricas, até a selvageria do
em particular nas grandes metrópoles, transe instituinte. Mas há,
as pequenas seitas esotéricas, os paralelamente, um segundo movimento
consultórios de astrólogos, clínicas de que nós devemos seguir, agora, que
novos "curadores". Espécies de nos fará igualmente "desfazer" a
compromisso entre o racionalismo, que necessidade de um novo Sagrado: é o
constitui o ideal de nossa nova movimento de natureza mais
sociedade planificadora, e a sociológica que resulta da anomia
necessidade de religião, porque o social, a qual, malgrado todos os
esoterismo se funda sobre sistemas de esforços dos governos, apesar de todas
idéias simbólicas bem ligadas; a as ideologias políticas que se
astrologia tem caráter matemático que ofereceram aos jovens no mercado de
afirma nosso pensamento; os idéias, nós não chegamos a produzir.
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(que quer permanecer no instituinte, sendo dado que todo rito, mesmo
não desembocando em nenhuma consciente, é comemoração dos gestos
possibilidade de instituição). dos deuses. Ora, nós encontramos
E isto nos permite, talvez, ir fenômenos análogos no transe
mais longe. O transe domesticado é selvagem de hoje. De Antonin Artaud,
funcional em relação à sociedade com seu teatro da crueldade, a Jerzy
global, no interior da qual ele está Grotowski, com seu teatro da tensão, a
inserido, seja porque lhe favorece uma possessão é moldada sobre chapas.
melhor complementaridade entre os Parte-se então da improvisação, mas à
sexos e os estatutos sociais, seja procura de um cenário; da
porque ele serve para atrair, de algum espontaneidade, mas à procura de um
modo mágico, a bênção das divindades novo ritual; do transe violento (ficar
descidas na comunidade aldeã. O nu, fazer amor, gritar, se debater,
sagrado é investido numa instituição dançar até o esgotamento ... ) e que se
que o gere em beneficio de todos. O desejaria contagioso, que desejaria
transe selvagem de hoje se quer, pelo entranhar finalmente o conjunto dos
contrário, desfuncional, ele não busca espectadores numa mesma comunidade
nenhum resultado positivo, nem mesmo extática, mas que permanece regulado
para o indivíduo que a ele se abandona, pelo diretor (a nudez é comandada, o
jà que ele pode até mesmo ser mais do amor é simulado, o grito é modulado, a
que uma técnica de suicídio. Ele quer violência é esteticamente representada,
ser pura experimentação de uma o espectador permanece geralmente em
alteridade que permanecerá confusa e sua poltrona). Pode-se muito bem falar,
difusa, ato gratuito, ou simples gestos então, de simulação, como certos
de revolta. Não demência, etnólogos o fazem a respeito dos
compensação, catarse, na violência e no transes que permanecem apenas
delírio, como pretendem os psiquiatras, representados e não vividos nas
porque então o transe se tomaria sociedades tradicionais. Mas um certo
funcional e perderia sua ponta número de observações são necessárias
revolucionária. Mas a contestação, por aqui: o que é representado, nas
sua vez, do social como sistema de sociedades tradicionais é o mito
regras, e do indivíduo como identidade fundador da ordem; o que é
pessoal - do social, abandonando-se ao representado no Living Theater, ou
interdito; do indivíduo, fazendo-o qualquer outra forma de teatro
levantar dos abismos interiores para a contemporâneo, é o transe
legião anárquica dos fantasmas desfuncional. A festa primitiva que
censurados. O selvagem é encontra sua culminação no transe é o
primeiramente, e antes de tudo, a lugar da comunicação, da solidariedade
decomposição, a desestruturação, a aldeã reconstruída, da unidade a um
contra-cultura que não pode, nem o tempo cósmica e sociológica, fundada
deseja, acabar em uma nova cultura. sobre isto que é a um tempo a base do
Aqueles que estudaram os cosmos e do social: o sagrado
cultos de possessão nas sociedades politeísta; a festa teatral de nossos dias
tradicionais muitas vezes se espantaram não é, numa sociedade anômica, senão
com seus aspectos espetaculares e seus pura provocação que não pode, apesar
caracteres de festas coletivas. Estes de sua vontade, acabar em comunhão.
aspectos são tais que às vezes o transe Mesmo entre os atores: nos Estados
é representado, mais do que vivido; Unidos os Africanos quiseram se
fala-se então de simulação, ainda que misturar às danças afro-americanas ou
não se trate propriamente de simulação, dos brancos "liberados", mas eles não
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