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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA E PRODUÇÃO DE SENTIDO

Patrícia Corsino-UFRJ

Este texto apresenta parte dos resultados da pesquisa “Infância, linguagem e escola: das
políticas do livro e leitura ao letramento literária de crianças de escolas fluminenses”,
desenvolvida no Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação-
LEDUC, do PPGE-UFRJ. A pesquisa teve como fundamentação teórica os estudos da
linguagem (BAKHTIN, VIGOTSKI, BENJAMIN) e da literatura infantil (LAJOLO,
ZILBERMAN, YUNES, PAIVA, PAULINO); da antropologia (VELHO,
FERNANDES, GEERTZ) e da sociologia da infância (CORSARO, SARMENTO),
especialmente no que concerne à pesquisa com crianças; e das políticas de acesso ao
livro, à literatura e à leitura (CANDIDO, SOARES, entre outros). Este texto tem como
objetivo refletir sobre algumas formas das professoras e crianças lerem literatura na
escola. O artigo foi organizado em três momentos. Inicia trazendo formas de ler
literatura na escola, destacando a performance da professora como possiblidade de
unidade de sentido para adultos e crianças, depois traz as formas de ler das crianças em
diálogo com eventos de campo; finaliza com considerações para se pensar as práticas
pedagógicas.

Palavras-chave: literatura infantil; produção de sentido; leitura literária

Este texto apresenta parte dos resultados da pesquisa “Infância, linguagem e


escola: das políticas do livro e leitura ao letramento literária de crianças de escolas
fluminenses”, desenvolvida no Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e
Educação- LEDUC, do PPGE-UFRJ. Teve como objetivo principal conhecer e analisar
o lugar que a literatura ocupa na formação das crianças, da creche ao quinto ano do
Ensino Fundamental: relações, interações e apropriações das crianças a partir da leitura
literária. Para atingir este objetivo foram desenvolvidos doze estudos de casos
simultâneos- em escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro e em uma creche
comunitária- com a finalidade de englobar diferentes instituições, faixas etárias e
etapas/anos de escolaridade. Estes estudos exigiram dos pesquisadores uma imersão no
campo e a utilização de diversos procedimentos metodológicas tais como: i)
observações participantes e registro no caderno de campo; ii) entrevistas individuais e
coletivas- com professores, coordenadores e crianças; iii) registros fotográficos, em
áudio e/ou em vídeo das relações, mediações e interações das crianças e adultos com os
livros e a leitura literária e dos espaços destinados aos livros nas instituições.
A pesquisa teve como fundamentação teórica os estudos da linguagem
(BAKHTIN, VIGOTSKI, BENJAMIN) e da literatura infantil (LAJOLO,

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ZILBERMAN, YUNES, PAIVA, PAULINO); da antropologia (VELHO,


FERNANDES, GEERTZ) e da sociologia da infância (CORSARO, SARMENTO),
especialmente no que concerne à pesquisa com crianças; e das políticas de acesso ao
livro, à literatura e à leitura (CANDIDO, SOARES, entre outros).
Coube aos pesquisadores o exercício exotópico de buscar formas de captar a
perspectiva das crianças em diferentes momentos de interação com a literatura na
escola. Dos doze estudos, oito compuseram também campos empíricos de pesquisas de
teses e dissertações de mestrado, com seis delas concluídas (PIMENTEL, 2011; SILVA,
2011; QUEIROZ, 2012; BRANCO, 2012; SALLUTO, 2013; TRAVASSOS, 2013).
Este texto tem como objetivo refletir sobre algumas formas de as crianças lerem
literatura na escola. Buscou-se entender o que atravessa as análises dos estudos de caso
no que diz respeito à leitura. Como as professoras e as crianças dos diferentes campos
empíricos leem literatura numa situação escolar? Os materiais de pesquisa construídos
em cada campo foram organizados em eventos, entendidos com Bakhtin (2010) como
momentos constituídos pela ação de dois ou mais sujeitos que, em permanente processo
de constituição de si, respondem um ao outro do lugar que ocupam - são acontecimentos
situados, irrepetíveis e únicos. Os eventos se caracterizam por manterem a unidade
mínima enunciativa que permite a abertura para a leitura do outro. Eles foram
agrupados em coleções, conforme similaridade, sendo, assim, possível atribuir novos
sentidos a eles de forma a responder a questão proposta neste texto.
O artigo foi organizado em três momentos. Inicia trazendo formas de ler
literatura na escola, destacando a performance da professora como possiblidade de
unidade de sentido para adultos e crianças, depois traz as formas de ler das crianças em
diálogo com eventos de campo; finaliza com considerações para se pensar as práticas
pedagógicas.

Leitura e performance corpo e voz na produção de sentido


A pesquisa evidenciou que na escola, há o predomínio da leitura mediada pela
professora e para o coletivo da turma toda. Sentados no chão, ora em roda, ora mais
próximos da professora e do livro, as crianças ouvem histórias, geralmente, escolhidas
pelas professoras. Em turmas de Ensino Fundamental, muitas vezes, a leitura era feita
sem um arranjo diferenciado na sala de aula: as crianças continuavam sentadas nas
cadeiras e mesas e a professora lia em pé à frente do quadro. A postura mudava em
salas de leitura ou de literatura onde as crianças tinham mais liberdade de deslocamento

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e movimentação. Poucos foram os momentos observados em que as crianças assumiam


o lugar de leitores para o grupo. A leitura individual e em pequenos grupos esteve
presente, mas em menor frequência que a coletiva. Isto evidenciou o importante lugar
ocupado pela professora na escolha do que era lido, nos tempo e espaço de desenvolver
a atividade de leitura, na sua performance no ato de ler, nas provocações e
desdobramentos que propunha com e a partir do que havia sido lido. Entendemos que a
ocupação deste lugar exige reflexões, tais como: O que motiva as escolhas? Como
organizar o ambiente de leitura? Que indagações o livro escolhido suscita? O quê e
como perguntar às crianças? O que incluir no planejamento de atividades de leitura?
Que outras formas de ler são possíveis no espaço escola? Reflexões que não se fazem de
forma solitária, mas em articulação com a proposta pedagógica da escola.
Não é objetivo deste texto desenvolver cada um destes pontos, mas ao colocar a
lente nas crianças em processo de leitura, eles ressaltaram e nos permitiu afirmar que na
escola- na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental- a leitura das
crianças está em estreita relação com a leitura das professoras. Destacaremos, para a
análise, a performace do professor leitor e a mediação dialógica como elementos
importantes na produção de sentido.
O conceito de performance de Zunthor (2010) foi desenvolvido de forma mais
ampliada por Queiroz (2012) ao discutir a poesia na escola. Trazemos aqui para
evidenciar o quanto corpo e voz do professor dão materialidade ao texto e interferem na
leitura das crianças. Para Zunthor (2010, p.31), no aqui e agora do momento da leitura
“se redefinem os dois eixos da comunicação social: o que junta o locutor ao autor; e
aquele em que se unem a situação e a tradição”. O autor considera que nesse processo
há uma articulação “entre sujeito e objeto, entre Um e Outro, pois a voz, fio que conduz
o poema ao público, interpela o sujeito, o constitui e nele imprime a cifra de uma
alteridade” (p.15). Como afirma Queiroz (2012, p.74) “inserida no jogo poético está a
performance, ou seja, o ler/dizer poemas desdobra-se em evento/obra cênica que afeta e
atravessa quem aceita e entra no jogo poético – como leitor ou ouvinte”. Observamos
que as crianças aceitam rapidamente entrar no jogo e, quando a professora também se
envolve de corpo inteiro na obra cênica, algo acontece na turma. A voz do texto,
atualizada de corpo inteiro pela professora, captura os ouvintes. Tudo isso articulado às
imagens que saltam das páginas e sentam para conversar faz da leitura um momento de
afetação mútua, coesão do grupo e de produção de sentido. Entretanto, a pesquisa
também evidenciou que nem sempre os adultos se deixam afetar pelos textos que

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escolhem ler para as crianças. Ficam na posição de quem apenas lê para as crianças e
não com elas. Ler com significa, no momento da realização da leitura:
viver com as crianças o mergulho no literário e na alteridade provocada por essa
imersão. Ler com implica em o adulto entrar no texto, permitir ser provocado, estranhar,
elaborar, falar, conversar sobre o que viveu, com as crianças, por meio dessa imersão.
Ler com, convida o professor-leitor também a ler de corpo inteiro, entrar no texto e
deixar-se levar por ele; provoca-o deste modo, a partilhar e viver com as crianças a
leitura, se deixar entrar no ficcional, imaginar (SALUTTO, 2013,p.174).

Esta postura aposta na unidade entre ciência, arte e vida, anunciada por Bakhtin
(2003, p.9), “que só adquirem unidade no individuo que as incorpora à sua própria
unidade”. Numa inter-relação capaz de penetrar na unidade interna do sentido e
garantir o nexo interno entre os elementos. O mais comum na escola é a cisão entre
ciência, arte e vida ou mesmo uma relação mecânica entre estes campos da cultura
humana. Esta unidade interna de sentido é que refunde o sujeito. Nesta perspectiva, ler
literatura na escola é mais do que um adorno, passatempo ou entretenimento, que
diverte e acalma as crianças, é mais que um pretexto ou instrumento de ensino da língua
escrita ou de outros conteúdos. As funções da leitura literária na escola se ampliam e
ganham outros horizontes pela própria unidade de sentido que a literatura partilhada vai
provocando em cada criança do grupo. Nas ampliações provocadas pela literatura
encontram-se as possibilidades de conhecer a si mesmo, o outro e mais um pouco do
mundo para além do que já conhecemos, de organizar experiências, de imaginar e criar,
de pensar, de se emocionar, de apreciar a estética dos textos verbal e visual e suas inter-
relações. Como aponta Bakhtin (2003, p. 73-74), ”a arte me dá a possibilidade de
vivenciar, em vez de uma, várias vidas, e assim enriquecer a experiência de minha vida
real, comungar de dentro com outra vida em prol desta, em prol de sua significação
vital”.
No fluxo de uma performance que abraça livros e crianças, que abre à produção
de sentidos pelos acentos apreciativos, pausas, silêncios, gestos e tudo que acompanha a
palavra, observamos o terreno fértil da mediação dialógica. Mediação assim adjetivada
para evidenciar o conceito de dialogismo de Bakhtin que se apresenta como o próprio
princípio de constituição do sujeito e o seu principio de ação e como constitutivo da
concepção de linguagem do autor, que parte do pressuposto de que todos os enunciados
constituem-se a partir de outros enunciados. Para Bakhtin (2003, p. 413-414):
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto
dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). Mesmo os
sentidos passados, aqueles que nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca

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estão estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas). Sempre se modificarão
(renovando-se) no desenrolar do diálogo subseqüente, futuro... Não há nada morto de
maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento. O problema da
grande temporalidade.

No fluxo da comunicação verbal de uma leitura que amplia os contexto


dialógico do próprio texto, os sentidos se alargam e ganham a grande temporalidade.
Tecemos a seguir formas de ler das crianças.

As crianças e suas leituras


Na leitura dos eventos de leitura literária produzidos nos campos empíricos da
pesquisa, turmas de creche ao quinto ano do Ensino Fundamental (crianças de 1 a 6 m
até 13 anos ) as aproximações nos levaram as organizar as coleções que serão discutidas
a seguir.
Repetição, o fazer de novo, repetir o percurso – o movimento de repetição muito
próprio das crianças quando brincam é constante também em relação à leitura literária,
evidenciando o trânsito entre a imaginação e a realidade, o brincar e o ouvir histórias.
Seja pelo movimento da própria criança que abre e fecha o livro várias vezes, revê
ilustrações e repete trechos da história, seja quando a criança solicita ao outro o repetir
(crianças e adultos/ professor).
A imitação dos gestos dos adultos e/ou das outras crianças lendo – expressões
corporais, entonações-modulação de voz, acentos apreciativos, ritmo de leitura que
evidenciam a distinção que fazem entre a linguagem oral e escrita, ou melhor, a voz do
texto e as vozes de quem fala com ela no cotidiano. Para esta coleção trazemos o evento
a pesquisa de Salutto ( 2013, p.) :
Reinvenções de Miguel.
Após o café da manhã, Bárbara e Márcia dispõem livros de literatura infantil variados,
sobre uma das mesas, enquanto, em outra, organizam uma atividade de pintura. Um dos
livros dispostos foi socializado por Bárbara na roda de início do dia com a turma.
Enquanto ela mostrava as ilustrações para as crianças, cantava músicas, fazia perguntas
e brincava, foi acompanhada com animação pelas crianças. Assim que puseram os
livros sobre a mesa, as crianças imediatamente começam a manuseá-los, abrindo-os,
fechando-os, posicionando-os para a “leitura”. Algumas tentam pegar o livro umas das
mãos das outras. Miguel pega o livro sobre animais do zoológico, que havia sido lido
por Bárbara. Não é fácil para ele abrir o livro, que é cartonado e as páginas são bem
juntas umas às outras. Mariana, que está ao seu lado, atentamente observa seus
movimentos e investidas para abrir o livro, vez ou outra, tenta retirá-lo das mãos de
Miguel, que o protege entre as suas. Depois de virar o livro de um lado para o outro,
diversas vezes, Miguel finalmente consegue abri-lo e, ao fazê-lo, aponta para as
ilustrações, tentando pegá-las com as mãos, pois são em formato vazado, sendo possível
ver a mesma ilustração ao virar a página. Miguel observa página por página, apontando

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os animais da ilustração, ora em silencio, ora imitando os sons que correspondem a cada
um deles e, quando o faz, altera o tom de voz “.

Observamos uma articulação entre histórias e brincadeira, ampliação da


imaginação e criação com e a partir de histórias e poemas lidos. Para Benjamin (1992)
nada dá tanto prazer à criança como brincar outra vez. “Com efeito, toda experiência
profunda deseja, incansavelmente, até o fim das coisas, repetição e retorno, restauração
de uma situação original, que foi seu ponto de partida (…). Trata-se também de
saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos” (p. 253).
As crianças recriam suas experiências no brincar e o fazem também a partir da leitura
literária, acionando a imaginação e o corpo inteiro. Começam a história de novo, desde
o início. Mas a brincadeira na vida da criança, de acordo com os estudos de Vygotsky
(1991), é muito mais do que fonte de prazer. Ela preenche uma necessidade, entendida
pelo autor como tudo o que é motivo para a ação. Estas necessidades, por sua vez, vão
variando ao longo do desenvolvimento das crianças, mas nas ações, nas explorações de
objetos e situações, está presente o movimento de constituir significados. Na
brincadeira, a criança coloca-se ativamente na relação com a realidade, recriando-a,
construindo sentido sobre ela. A brincadeira é um espaço onde a criança pode agir por
conta própria, tomar decisões, transgredir, reverter a ordem e dar novo sentido às coisas.
Para o autor na brincadeira os objetos perdem sua força determinadora (p.110).
No evento a seguir a brincadeira constitui a “arte de produzir semelhanças”. E
neste sentido, não se limitam à imitação de pessoas, como também não se limitam à
reprodução. As crianças fazem uma leitura minética da história e usam o corpo todo
para expressar os sentidos construídos. O evento a seguir, observado por Silva ( 2011)
ocorreu numa turma de primeiro ano, com crianças de seis anos de idade.
Seu soninho cadê você?
A professora conta a história “Seu soninho, cadê você?” Nessa história, um jacaré que
não consegue dormir, acha que o Seu Soninho se esqueceu dele e sai a sua procura aos
berros pela floresta, atrapalhando o sono dos outros animais. Por fim, os animais da
floresta cantam uma canção de ninar para adormecer o jacaré que, ao dormir, ronca tão
alto que não deixa os outros dormirem.
Depois que a professora termina de contar a história, o Bruno e o Manuel começam a
cair em cima das crianças, como se estivessem querendo dormir. A professora pergunta
quem conhece uma cantiga de ninar e a Laura começa a cantar “nana neném”. O Felipe
canta outra versão dessa música e diz que a mãe dele canta assim. A professora
pergunta quem conhece a música do “boi da cara preta” e convida a turma para cantar
com ela. O Manuel e o Bruno agora roncam como se a música os fizesse adormecer
profundamente. Outras crianças também começam a roncar.

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Foi observado que as crianças percebem as diferentes formas de dizer,


relacionam forma e conteúdo, estabelecem interações entre verbal e visual. Apreciam e
vivenciam experiência estéticas nas interações com os textos verbal e visual desde
muito pequenas. Selecionamos a seguir um evento obervado no campo de Queiroz (
2012) com crianças do quinto ano de uma escola pública da rede municipal de ensino
do Rio de Janeiro:
Chapeuzinho Amarelo
Quando terminei a leitura de todo o livro “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque,
repetindo os trechos rimados solicitados por Roberto, com a mesma sagacidade de
mágico que usara para driblar a professora ao apanhar o livro da cesta antes dos outros
colegas, pegou-o da minha mão, correu até à professora e perguntou a ela se eu poderia
contá-lo para a turma toda. Como a professora concordou, ela mesma pediu à turma que
me ouvisse: “A professora Hélen vai contar uma história, fiquem quietos!”
.Surpreendeu-me o fato de aquela turma bastante agitada, especialmente naquele
momento, ter feito silêncio para me ouvir. Quando mostrei o livro que leria, Roberto
disse que tinha rimas, foi então que aproveitei para valorizá-las ainda mais durante
minha leitura:
Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada,
deitada, mas sem dormir
com medo de pesadelo.
Notei que durante minha leitura muitos riam, se divertiam com as rimas, especialmente
os mais agitados. Antônio , um dos mais velhos e altos da turma (na época tinha 13
anos) que passava a maior parte do tempo implicando com outros colegas, rindo de
tudo, derrubando mesas, ligando e desligando o ventilador, ficou extremamente
concentrado enquanto eu lia a história. Olhos atentos, sorriso aberto, felicidade que não
era clandestina. O texto capturou-o de tal forma fazendo-o me pedir: Tia, lê aquela
parte de novo, tia! Aquela que o lobo pode comer o caçador, a princesa e sete panelas
de arroz! Disse isso explodindo em uma gargalhada que contagiou a turma. Foi então
que repeti:
E Chapeuzinho Amarelo
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com o LOBO
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO
olhão de LOBO
jeitão de LOBO (...)
Dois alunos disseram que a história parecia música e passaram a fazer sons que os
rappers fazem enquanto cantam como se estivessem mixando o texto. Em poucos
segundos, a turma foi contagiada pelos sons dos colegas e a leitura foi ganhando um
ritmo novo e ecoou na sala como uma grande festa em que o corpo e a voz tornaram-se
coadjuvantes da literatura.

Outra coleção bastante presente nos campos empíricos da pesquisa foi a


negociação/produção de sentido- do texto como um todo e das palavras e seus efeitos

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de sentido no contexto enunciativo do texto e da narratividade das imagens. As crianças


estão atentas aos textos verbal e visual e , na relação com o outro, se posiciona, negocia,
se altera como pode ser observado nos dois eventos a seguir um da pesquisa de Silva (
2011), numa turma de primeiro ano, e outro na de Salutto (2013), numa turma de creche
(crianças de 18 meses).
Pode botar roupa no leão?
No evento a seguir, as crianças conversavam na roda sobre a roupa do leão, personagem
da história: “O que é que tem o meu cabelo?” que a professora acabara de ler.
Professora: Pode botar roupa no leão?
Manuel: Pode. Por que é que não pode?
Felipe: Só pode botar roupa no cachorro.
Leo: Pode botar roupa no cachorro porque ele pode ficar em casa.
Felipe: É, e o leão é selvagem.
Manuel: Mas o leão é grande e o cachorro é pequeno e por isso pode ficar em casa.
Professora: Mas tem animal pequeno que não pode ficar em casa.
Laura: É! Mico é pequeno e não pode ficar em casa.
Professora: Só os animais domésticos podem ficar em casa: gato, cachorro, jabuti. O
jabuti é terrestre.
Pedro: Terrestre! Extraterrestre?!

É cachorro ou não é?
Depois do café da manhã, as educadoras seguem com a turma B3 para o pátio lateral.
Após certo tempo em que já estamos nesse ambiente percebo que um pequeno grupo se
organiza e fica reunido num canto. Aproximo-me e vejo que o João está sentado no
centro do grupo, apontando para a ilustração de um livro (não consegui ver o título).
Aproximo-me um pouco mais e presencio a seguinte cena:
João aponta para a ilustração e diz: É cachorro!
Outro menino, o Antonio, balança a cabeça negativamente e afirma, também apontando
a ilustração em questão: Não é!
Repetem as afirmações várias vezes.
As outras crianças observam, alternando os olhares entre os dois meninos e a ilustração.
Consigo ver rapidamente que a ilustração refere-se a um polvo (o livro é em pop-up).
Num determinado momento do impasse um começa a puxar o livro da mão do outro e
um dos tentáculos do polvo é rasgado. João sai correndo e o grupo se dispersa.

Algumas considerações
Literatura infantil e escola desde suas origens estiveram interligadas. No livro de
literatura infantil o direcionamento explícito da obra ao leitor criança de faixas etárias
diversas e idades cada vez menores. Na escola, a presença dos livros como condição
básica de um ensino de qualidade. O direito à educação se relaciona ao direito à leitura
e, como um amalgama, escola e livro se fundem de diversas formas. Observamos nos
campos empíricos da pesquisa, escolas públicas e creche comunitária, a presença de
livros de diversos gêneros, muitos podem ser considerados de boa qualidade e em bom
estado de conservação. Programas como o PNBE e os que são implantados pela

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Secretaria Municipal do Rio de Janeiro com voucher para as escolas comprarem livros
no Salão do Livro e na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, têm possibilitado a
constituição de um bom acervo. Observa-se hoje um movimento significativo na
literatura infantil que considera a criança nas sua possibilidades criativas, um sujeito
que produz significados nas interações, que é capaz, tem voz, dialoga, opina, se altera.
Uma literatura que chega a escola com uma força criativa que pode abrir possibilidades
para as crianças em interação dilatar suas experiências como os eventos citados
evidenciaram.
Observou-se na pesquisa a força do texto verbal e também do visual uma
possibilidade de muitas entradas das crianças na busca de produção de sentido. As
crianças aprendem no coletivo e esta relação com o outro- colegas, professores,
personagens, situações reais e imaginárias- precisa ser valorizada para que a leitura
aconteça. As crianças leem de muitas formas e o processo de negociação e produção de
sentido que se faz na arena discursiva, precisa ser valorizada por mediações que
permitam o intenso processo dialógico. Assim, entendemos com Yunes (2009, p.53)
que “a trama da leitura envolve autor, leitor e texto. O drama da leitura envolve o
mediador, o aprendiz, os acervos. Sem mediadores, nem leitores, nem acervos
sobreviverão”

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Paul: Pedro e João,
2010.
BENJAMIN, Walter. Visão do livro infantil. In: Reflexões sobre a criança, o
brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2002.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense (1993).
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense
(1995).
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Ouro Sobre o Azul, 2011.
CORSINO, Patrícia. Literatura na educação infantil: possibilidades e ampliações. In:
Paiva, Aparecida (org.). Coleção explorando o ensino. Literatura: ensino fundamental.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de educação básica, 2010a, p. 183-204.
CORSINO, Patrícia. Infância e Linguagem em Walter Benjamin: reflexões para a
educação. In: KRAMER, Sonia; SOUZA, Solanje Jobim e (orgs.). Política, cidade,
educação: itinerários de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 119-
241.
NUNES, M. Fernanda; CORSINO, Patrícia e KRAMER, Sonia e. Crianças e adultos
em instituições de educação infantil: o contexto e a pesquisa. In: KRAMER, Sônia

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(org.). Retratos de um desafio: crianças e adultos na educação infantil. Rio de Janeiro:


Ática, 2009, p. 12-23.
SALUTTO, Maria Nazareth. Leitura literária na creche: o livro e o texto entre
imagens, olhares, corpo e voz. Dissertação de Mestrado em Educação. Rio de Janeiro:
Faculdade de Educação, PPGE- UFRJ, 2013.
QUEIROZ, Hélen Aparecida. O jogo literário: espaço, função e reverberação da
literatura na formação do leitor na infância. Dissertação de Mestrado em Educação. Rio
de Janeiro, PPGE-UFRJ, 2012.
SILVA, Rosita Mattos da. “As histórias da gente que cabem num livro”: Experiências
de leitura nas aulas de literatura do primeiro ano do ensino fundamental. Dissertação de
Mestrado em Educação. Rio de Janeiro, PPGE-UFRJ, 2011.
TRVASSOS, Sônia. Lobato, infância e leitura: A obra infantil de Monteiro Lobato
em diálogo com crianças na escola da atualidade. Dissertação de Mestrado. Rio de
Janeiro, Faculdade de Educação, UFRJ, 2013.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em Perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
VIGOTSKY, L. S.. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
VIGOTSKY, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para
professores. Apresentação e comentários Ana Luiza Smolka; tradução Zoia Prestes.
São Paulo: Ática, 2009.
YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará,
2009.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

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