Você está na página 1de 43

•CCUPY

movimentos de protesto que tomaram as ruas

David Harvey • Edson Teles • Emir Sader • Giovanni


Alves • Henrique Soares Carneiro • Immanuel
Wallerstein • João Alexandre Peschanski • Mike
Davis • Slavoj Zizek • Tariq Ali • Vladimir Safatle

jCarta
fMalor E D I T O R I A L
Copyright desta edição © Boitempo Editorial, 2012

Coordenação editorial: Ivana Jinkings Sumário


Editora-adjunta: Bibiana Leme

Seleção dos textos: Ana Lotufo Valverde


K i m Doria

Assistência editorial: Livia Campos


Mônica Santos

Diagramação e produção: Ana Lotufo Valverde


capa sobre o póster "The Beginniiig is Near", de
Alexandra Clotfclter; p. 2 sobre o póster "Occupy May
Dav Tree , de Rich Black
11

Nota da editora 6
Apresentação - Rebeliões e ocupações de 2011 7
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
H e n r i q u e Soares Carneiro
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES D E LIVROS, RJ.

018
Occupy / [David Harvey... et ai.]; [tradução João Alexandre Peschanski... et al.]. - São Paulo:
O violento silêncio de u m novo começo „ 15
Boitempo : Carta Maior, 2012 Slavoj Z i z e k

ISBN 978-85-7559-216-8 Os "ocupas" e a desigualdade económica 27


João A l e x a n d r e Peschanski
1. Occupy Wall Street (Movimento). 2. Renda - Distribuição. 3. Movimentos de protesto.
4. Participação política. 5. Crises financeiras. I. Harvey, David, 1935-.
Ocupar Wall Street... e depois? „. 31
Giovanni Alves
12-1304 CDD 339.2
CDU 330.564 Chega de chiclete., 39
M i k e Davis

Amar uma ideia 45


V l a d i m i r Safatle

Este livro atende às normas do novo acordo Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street encontra sua nêmesis..,. 57
ortográfico em vigor desde janeiro de 2009.
David Harvey
Foram feitos todos os esforços para encontrar os autores das imagens,
mas em alguns casos isso nao foi possível. Se forem localizados, O espírito da época , 65
a editora se dispõe a creditá-los nas próximas edições. TariqAli

1" edição: março de 2012 A esquerda mundial após 2011 73


I m m a n u e l Wallerstein

Democracia, segurança pública e coragem para agir na política 77


E d s o n Teles

Crise capitalista e novo cenário no Oriente Médio 83


BOITEMPO EDITORIAL C A R T A MAIOR
E m i r Sader
Jinkings Editores Associados Ltda. Promoções, Publicações e Produções Ltda.
Rua Pereira Leite, 373 Av. Paulista, 726, 15" andar
05442-000 São Paulo SP Tel: (11) 3142-8837
Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 www.cartamaior.com.br Sobre os autores 87
ecUtor@boitempoeditorial.com.br Diretor geral
www.boitempoeditori nl.com.br Joaquim Ernesto Palhares
Nota da editora
E s t a coletânea foi idealizada - pela Boitempo E d i t o r i a l , c o m adesão imediata do p o r t a l
Carta Maior - c o m o objetivo de a m p l i a r o debate em torno dos movimentos populares
que t o m a r a m as ruas ao longo de 2011 em diversos países.
Apresentação
P a r a tornar o livro mais acessível, foram tomadas diversas medidas: autores
cederam gratuitamente seus textos, em sua m a i o r i a artigos que já h a v i a m c i r c u l a -
Rebeliões e ocupações de 2011
do n a mídia, no calor das discussões (com exceção da apresentação do historiador Henrique Soares Carneiro
H e n r i q u e Soares Carneiro e do texto de capa do jornalista e doutor em Ciências
Políticas L e o n a r d o Sakamoto, escritos especialmente para esta edição, e dos artigos de s

E d s o n Teles, E m i r Sader, Slavoj £izek e V l a d i m i r Safatle, reescritos ou reformulados


para este volume), tradutores não c o b r a r a m pela versão dos textos p a r a o português,
ilustradores e fotógrafos a b r i r a m mão de pagamento pelos direitos de suas imagens.

Infelizmente não nos foi possível incluir, como gostaríamos, o texto de N o a m No ano de 2011 ocorreu u m fenómeno que há muito não se via:
Chomsky " O c c u p y the F u t u r e " , adaptado de seu discurso aos manifestantes do uma eclosão simultânea e contagiosa de movimentos sociais de protes-
Occupy W a l l Street'e publicado no periódico In These Times em 1° de novembro de to com reivindicações peculiares em cada região, mas com formas de
2011. O autor manifestou simpatia pelo convite p a r a participar deste volume, mas por
luta muito assemelhadas e consciência de solidariedade mútua. Uma
questões burocráticas tivemos de negociar com seus agentes, os quais não a b r i r a m mão
onda de mobilizações e protestos sociais tomou a dimensão de u m mo-
de pagamento. Como isso contrariava a ideia da obra, dos movimentos de ocupação e,
em última análise, do próprio C h o m s k y e dos demais autores e colaboradores, optamos,
vimento global. Começou no norte da Africa, derrubando ditaduras
embora com pesar, por não aceitar a exigência, na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen; estendeu-se à Europa, com
Outros aspectos técnicos, como aproveitamento de papel e projeto gráfico, t a m - ocupações e greves na Espanha e Grécia e revolta nos subúrbios de
bém contribuíram para reduzir os custos, sem falar n a parceria com a Carta Maior, Londres; eclodiu no Chile e ocupou Wall Street, nos E U A , alcançando
essencial p a r a que esta seja u m a obra que possa alcançar o m a i o r número de pessoas,
no final do ano até mesmo a Rússia.
estimulando-as, quem sabe, a i r às ruas por mudanças. Não haverá lucros financeiros
p a r a os editores, n e m p a r a os autores, n e m p a r a n e n h u m dos envolvidos neste projeto. O suicídio por imolação de Mohamed Bouazizi, u m vendedor de
Mas haverá ganhos sociais, espera-se - e, neste caso, eles bastam. frutas que protestava contra a apreensão de suas mercadorias, na Tuní-
8 | Occupy Henrique Soares Carneiro | 9

sia, em 17 de dezembro de 2010, foi apenas u m dos muitos atos seme- O movimento estendeu-se de forma epidêmica, no sentido grego
lhantes ocorridos no norte da África que, além do desespero individual, original da palavra, que indica não só uma doença, mas algo que ocorre
simbolizaram o esgotamento psicológico de muitos povos em u m mes- com muita gente do povo, como a conversão religiosa dionisíaca, por
mo momento. Houve uma sincronia cosmopolita febril e virai de uma exemplo. Houve algo de dionisíaco nos acontecimentos de 2011: uma
sequência de rebeliões quase espontâneas surgidas na margem sul do onda de catarse política protagonizada especialmente pela nova geração,
Mediterrâneo e que logo se manifestaram na Espanha, com os Indigna- que sentiu esse processo como um.despertar coletivo propagado não só
dos da Puerta dei Sol, em Portugal, com a Geração à Rasca, e na Grécia, pela mídia tradicional da T V ou do rádio, mas por uma difusão nova,
com a ocupação da praça Syntagma. E m todos os países houve uma nas redes sociais da internet, em particular o Twitter, tomando uma for-
mesma forma de ação: ocupações de praças, uso de redes de comunicação ma de- disseminação virai, u m boca a boca eletrônico com mensagens
alternativas e articulações políticas que recusavam o espaço institucio- replicadas a milhares de outros emissores.
nal tradicional. Países como a China sentiram o risco e censuraram a O impacto das revoltas' em países já acostumados a décadas de
simples menção na internet à praça Tahrir, palco dos protestos egípcios. ditaduras e a euforia que isso despertou foram tão surpreendentes que
Comparações logo foram feitas com o ano de 1968 ou mesmo chegaram a ser estigmatizados como u m a alucinação coletiva q u i m i -
com convulsões ainda mais antigas, como a primavera dos povos de camente induzida. Três dias após o início do levante em Benghazi,
1848. A rebelião popular voltou à ordem do dia! O pano de fundo ob- o filho de Kadafi foi à T V (em 20 de fevereiro de 2011) e acusou os
jetivo é uma crise social, económica e financeira que se arrasta desde rebeldes de serem drogados por B i n Laden numa conspiração "aluci-
2008 e tem como consequências a carestia dos géneros alimentares e nógeno-fundamentalista".
o aumento do desemprego, mas o grande impasse que está presente As revoluções sempre foram consideradas u m a forma de em-
é a ausência de alternativas políticas organizadas. Os movimentos se briaguez. A. Academia de Medicina, logo após a derrota da Comuna
manifestam em rebeliões praticamente espontâneas contra as estru- de Paris, criou u m a comissão para diagnosticar as causas da irrupção
turas políticas partidárias e sindicais vigentes, mas sem forjar ainda revolucionária, n u m esforço de relacionar a dissidência a u m a doença.
uma nova articulação orgânica e representativa dos anseios de trans- A conclusão foi: "A Comuna se fez numa espécie de embriaguez per-
formação e ruptura. manente, u m a vasta erupção de alcoolismo" . Como sublinhou ainda 1

N a África do norte o movimento assumiu o caráter de revolução Yves L e q u i n , "o que é novo é que o inebriamento alcoólico deixa de
democrática, colocando fim a longas ditaduras. N a América Latina se ser u m a simples metáfora e que os médicos pretendem estabelecer [...]
expressou principalmente na reivindicação estudantil por educação pú- a filiação biológica da subversão" . Walter Benjamin havia se dado
2

blica e gratuita no Chile - que teve apoio de amplos setores, com greves conta dessa força da revolução como êxtase coletivo ao escrever so-
sindicais que geraram uma crise nacional, debilitando estruturalmente bre o surrealismo, que, "em todos os seus livros e empreendimentos,
o governo de Sebastian Pinera. Assumiu ainda feitio de marcada de- empenha-se em conquistar as forças do êxtase para a revolução", pois
núncia dos bancos e das corporações, sacudindo até mesmo os Estados
Unidos, onde a ocupação de Wall Street se espalhou para centenas de Yves L e q u i n , " A u péril de la raee", em Jean D e l u m e a u e Yves L e q u i n (orgs.), Les
cidades e chegou a realizar u m dia de greve geral em Oakland, parando Malheurs des Temps. Histoire des fleaux et des calamites em France (Paris, Larousse,
1987), p. 438,
u m dos maiores portos do país.
2 Ibidem, p. 439.
10 | Occupy Henrique Soares Carneiro | 11

seria uma "verdade, de nós conhecida, que em qualquer ato revolu- Outro ponto de concordância é que o capitalismo vive não apenas
cionário existe vivo u m componente extático" . • 3 uma crise cíclica de "destruição criadora", mas u m momento de declínio
Essa euforia inicial talvez já tenha se dissipado em meio aos milha- geral, que ameaça até mesmo, como ressalta Noam Chomsky*, a sobre-
res de mortos na Líbia e na Síria e aos cerca de oitocentos no Egito, mas vivência da espécie. Neste momento, opõe-se uma plutonomia, como ele
uma determinação ainda maior foi apreendida e é possível prever u m designa a economia conspícua de produtos de luxo em nichos globais, a
agravamento significativo da crise e do conflito social em 2012. u m proletariado cada vez mais preçarizado.
Nesta coletânea, muitos pensadores,críticos da situação contem- Se a democracia não é real, conforme expressa o nome de u m dos
porânea ensaiam análises e interpretações dos significados desse novo grupos organizadores do M15M - Democracia Real Ya (DRY) - , ela
momento da política global em que a voz das ruas passou a ocupar o se constitui como a principal ilusão sustentadora do sistema político e
cenário, deslocando velhos aparatos políticos e questionando a ordem ideológico, como lembra Slavoj Zizek, e sua superação depende não só
do capitalismo financeirizado, em textos escritos no calor dos aconteci- do rechaço ao sistema corrupto, midiocrático e a serviço dos bancos,
mentos e imbuídos não só da lucidez da crítica, mas também da paixão mas também da formulação de uma alternativa.
do engajamento e da esperança. Esse velho impasse dos movimentos de rebelião antissistêmica sal-
Alguns consensos podem ser encontrados nesses textos. Imma- ta de novo ao centro da discussão. Apesar de Taríq A l i dizer que saber
nuel Wallerstein, em u m otimismo que vai do moderado ao entusiás- contra quem se luta é u m importante começo, Zizek é bem categórico ao
tico, reconhece que 2011 foi u m bom ano para a esquerda, qualquer afirmar que não basta saber o que não se quer, é preciso saber o que se
que seja a definição dada a ela, mas ainda lamenta a ausência de uma quer. O povo, de acordo com ele, sempre tém a resposta, o problema é
unidade possível nesse polo. M i k e Davis, mais poético, vê no movi- não saber a pergunta.
mento Occupy Wall Street uma "criança com o sinal do arco-íris", u m U m movimento internacional de protesto sem u m programa coe-
anúncio quase redentor de uma nova solidariedade social. rente é insuficiente para o que Giovanni Alves aponta como central:
U m a segunda constatação unânime é quanto à falta de uma defi- a formação de uma plataforma mínima para u m novo movimento
nição estratégica, programática e teórica para esses novos movimentos de organização de classe que junte o proletariado e o precariado. A
de 2011. Mesmo sem ter os "óculos mágicos" do programa, das deman- identificação da desigualdade social, da riqueza e do poder de 1% da
das e da estratégia, citados por Davis em seu texto, os movimentos de população mundial contra os 9 9 % , como feito em Nova York, já está
indignados e por liberdades democráticas possuem em comum aqui- clara de acordo com João Alexandre Peschanski, mesmo que em ideias
lo que David Harvey chama de união dos corpos no espaço público, ainda vagas de igualitarismo democrático radical.
característica muito mais importante, para ele, do que os fluxos de N a Primavera Árabe analisadaporEmir Sader, anecessidade de or-
comunicação pela internet. Por isso, a ocupação transformou-se na se- ganizações políticas é ainda maior dada a presença dos movimentos fun-
nha para milhares de jovens erguerem acampamentos de protesto em damentalistas e de uma interferência militar direta da O T A N e dos EUA.
centenas de cidades.
C o m o explicado n a N o t a d a E d i t o r a , o discurso de N o a m C h o m s k y proferido em
Walter B e n j a m i n , " O Surrealismo, o mais recente instantâneo da inteligência euro- Boston, em 22 out. 2011, não pôde ser incluído nesta coletânea. A tradução está dis-
peia", em Textos escolhidos (2. ed., São Paulo, A b r i l C u l t u r a l , 1983, Coleção Os Pensa- ponível em •www.boitempoeditorial.wordpress.com/category/colaboracoes-especiais/
dores), p. 83. n o a m - c h o m s k y e w w w . c a r t a m a i o r . c o m . b r . ( N . E.)
12 | Occupy Henrique Soares Carneiro | 13

O caso brasileiro, abordado no texto de Edson Teles, ainda não teve política do P C , simbolizada por Camila Vallejo, ainda é decisiva, em-
movimentos da mesma magnitude que os de outros países, mas possui bora já tenha sido superada nas eleições estudantis por uma coalizão de
a peculiaridade de mobilizar setores da juventude e de excluídos so- tendências mais à esquerda.
ciais, alvos, em 2011, de uma sistemática repressão policial, desde as A tradição marxista teorizou a tomada de uma consciência polí-
marchas da maconha em São Paulo e da entrada de tropas de choque tica das classes exploradas como autorreflexividade crítica e prática na
na U S P até a expulsão dos moradores do Pinheirinho e dos projetos sua ação histórica que assim poderia romper política e ideologicamente
higienistas no centro das capitais. com a ordem dominante. A consciência crítica de uma época sobre si
O viés anarquista existente nos movimentos de 2011, mesmo própria se cristalizaria institucionalmente nas organizações sociais da
que não seja explicitado na teoria, choca-se com o programa m u i - classe trabalhadora, como os sindicatos e os partidos. Estes, entretanto,
tas vezes reformista e regulacionista do capitalismo, como se vê no após as ascensões e crises das internacionais operárias, tornaram-se,
manifesto dos Indignados espanhóis, Se em geral é verdade, como na história do século X X , a principal camisa de força burocrática de-
escreve V l a d i m i r Safatle, que "não dá pra confiar em partidos, sin- dicada a bloquear a luta social. A consciência política rebelde, órfã dos
dicatos, estruturas governamentais", sua conclusão é muito mais aparatos e desconfiada da política institucional, emerge atualmente em
controversa: " a época em que nos mobilizávamos tendo em vista a manifestações de rebelião, muitas vezes espontâneas, em que até tor-
estrutura partidária acabou". cidas organizadas, como no Egito, cumprem u m papel de vanguarda
A construção de u m movimento anticapitalista global não pode revolucionária.
simplesmente abdicar de partidos, eleições e sindicatos, sob pena de A perda de direitos sociais, políticos e sindicais e as caracterís-
esse espaço continuar a ser ocupado pelos partidos de direita, como ticas de inorganicidade das novas camadas do proletariado, especial-
ocorreu na Espanha, onde o Movimento dos Indignados foi forte e a mente na Europa, são marcadas pela presença de u m apartheid em
abstenção eleitoral, enorme. relação aos imigrantes ilegais e por uma maior exclusão dos direitos
O movimento sindical continua majoritariamente sob a influên- também nas novas gerações de trabalhadores. Precariado, termo que
cia dos partidos de esquerda mais tradicionais, tanto da social-demo- parece ter surgido como u m neologismo anglicizado no Japão, desig-
cracia - que, embora executora dos planos de ajuste n a Espanha e na na uma nova forma de proletariado informal e terceirizado, u m novo
Grécia, ainda busca manter sua imagem histórica ligada às origens tipo de trabalhador cujas habilidades intelectuais são exploradas por
operárias ao ponto de ainda se cantar a Internacional no congresso meio de precarização, desregulamentação e perda dos direitos sociais
do P S O E - quanto da esquerda alinhada com os partidos comunis- do welfare state das gerações anteriores do proletariado industrial.
tas, especialmente na Grécia e em Portugal, onde subsistem os dois Há uma desregulamentação global e perda de direitos sociais em
PCs mais fortes da Europa. Significativo é que num dos momentos nome da "flexibilização" que ampliou a nova camada social precariza-
mais importantes de 2011, durante a greve geral grega de 48 horas em da concentrada nos mais jovens. Esses jovens indignados da Europa,
19 e 20 de outubro, tenha ocorrido uma enorme batalha campal en- assim como os insurretos shabab ("jovens") do mundo árabe, são os
tre os setores anarquistas e o serviço de ordem do partido comunista que despertaram uma nova euforia política num mundo dominado pe-
( K K E ) e da central sindical P A M E , que se encarregaram de cercar e los ideais de individualismo, de perpétua continuidade do cotidiano e
defender o prédio do Parlamento. D a mesma forma, no Chile, a direção de carência de projetos coletivos para o futuro.
14 | Occupy

Passado u m ano do início da Primavera Árabe, dos indignados


anticapitalistas europeus, do movimento estudantil chileno e da ocu-
pação de Wall Street, a situação se agravou e foi momentaneamente de-
tida em alguns lugares por meio da repressão brutal, como no Bahrein,
na Síria e no próprio Egito, onde a ditadura da Junta Militar subsiste
e continua matando centenas de pessoas. Membros reciclados do velho
sistema e islamitas parecem ter se fortalecido no Egito, na Tunísia e na
Líbia, onde os bombardeios da Otan aparentemente não tiveram suces-
so na construção de uma força política a seu favor no país.
N a Europa, a crise se agrava. O Partido Popular (PP) ganhou
eleições na Espanha (apesar do crescimento da abstenção, da Izquier-
da Unida e do nacionalismo basco) e na Grécia a situação chega a u m
impasse que ameaça a unidade monetária do euro. No Chile e nos E s -
tados Unidos, a polícia reprimiu e prendeu sistematicamente milhares
de manifestantes, mas o ano de 2012 começou com demonstrações de
O violento silêncio de um novo começo*
que os movimentos ainda têm fôlego. N a Europa, o levante popular na Slavoj Zizek
Roménia anuncia uma reação aos recortes sociais.
A extrema-direita, que revelou em 2011 a sua face mais explíci-
ta, no massacre na Noruega, também cresce. A troika (União E u r o -
peia, F M I e Banco Europeu) dita ordens de mais austeridade e todos
O que fazer depois da ocupação de Wall Street, quando os protestos
os governos as seguem. Ao que tudo indica, o duro inverno do hemis-
que começaram longe (Oriente Médio, Grécia, Espanha, Reino Unido)
fério norte será seguido por uma primavera politicamente quente em
atingiram o centro e, agora, reforçados, espalham-se por todo o mun-
2012, colocando na ordem do dia o debate sobre a natureza e a evolu-
do? U m dos grandes perigos que enfrentam os manifestantes é o de se
ção dos novos movimentos políticos que floresceram em 2011. Poderá
apaixonar por si mejímoâ, pelo momento agradável que estão tendo nos
a indignação se tornar revolução?
lugares "ocupados" - nesse sentido, quando a ocupação de Wall Street
ecoou em São Francisco, em 16 de outubro de 2011, u m rapaz dirigiu-se
fevereiro de 2011
à multidão com u m convite para ela participar do ato como se fosse u m
acontecimento no estilo hippie dos anos 1960: "Estão nos perguntando

* Traduzido por Fernando Marcelino e Chrysantho Sholl a partir da versão ampliada pelo
autor, para esta edição, do discurso " T h e Violent Silence pf a New B e g h m i n g " , realizado
em Zuccotti Park, em 10 out. 2011. Disponível em: www.boitempoeditorial.wordpress.
com/2011/10/ll/a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movi
mento-occupy-wall-street. (N. E.)
16 [ Occupy Slavoj Zizek | 17

qual é o nosso programa. Não temos programa. Estamos aqui para cur- Os ataques conservadores diretos são fáceis de responder. Os protestos
tir o momento". Os carnavais saem barato - a verdadeira prova de seu são antiamericanos? Quando os conservadores fundamentalistas afirmam
valor é o que permanece no dia seguinte, o modo como o nosso cotidiano que a América é uma nação cristã, deveríamos recordar o que é o cristia-
se transforma. Os manifestantes deveriam se apaixonar pelo trabalho nismo: o Espírito Santo, a comunidade livre igualitária de fiéis unidos pelo
duro e paciente — eles são o começo, não o fim, então sua mensagem amor. São os manifestantes que encarnam o Espírito Santo enquanto em
básica é: o tabu foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, Wall Street são todos pagãos adorando falsos ídolos. Os manifestantes são
temos a permissão, a obrigação até, de pensar em alternativas. Numa es- violentos? É verdade que sua linguagem pode parecer violenta (ocupação e
pécie de tríade hegeliana, a esquerda ocidental fechou seu ciclo: depois de tudo mais), mas eles são violentos somente no sentido em que Mahatma
abandonar o chamado "essencialismo da luta de classes" pela plurali- Gandhi era violento. São violentos porque querem dar u m basta no modo
dade das lutas antirracistas, feministas etc, "o capitalismo" claramente como as coisas são feitas - mas o que é essa violência quando comparada
reaparece agora como o nome DO problema. Portanto, a primeira lição àquela necessária para sustentar o suave funcionamento do sistema ca-
a ser tomada é: não culpe as pessoas nem suas atitudes, pois o problema pitalista global?Eles são chamados de perdedores - mas não estariam os
não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos leva à corrupção. verdadeiros perdedores em Wall Street, e não teriam sido eles salvos por
A solução não é Main Street, not Wall Street"*, mas sim a mudança do
H
centenas de bilhões do nosso dinheiro? Os manifestantes são chamados
sistema em que a M a i n Street não funciona sem Wall Street. de socialistas - mas nos Estados Unidos já existe socialismo para os ricos.
Há uma longa estrada pela frente, e logo teremos de tratar das Eles são acusados de não respeitar a propriedade privada - mas as espe-
questões realmente difíceis - não aquelas relativas ao que não quere- culações de Wall Street que levaram à crise de 2008 acabaram com mais
mos, mas ao que, de fato, Q U E R E M O S . Que organização social pode propriedades privadas obtidas a duras penas do que se os manifestantes
substituir o capitalismo atual? De que tipo de novos líderes preci- estivessem aqui as destruindo dia e noite - é só pensar nos milhares de
samos? E de que órgãos, incluindo aqueles de controle e repressão? casas desapropriadas. Eles não são comunistas, se comunismo significar o
As alternativas do século X X obviamente não funcionaram, Embora sistema que entrou merecidamente em colapso em 1990 - e lembrem-se de
seja excitante desfrutar dos prazeres da "organização horizontal" das que os comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais
multidões em protesto com sua solidariedade igualitária e seus deba- implacável dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês
tes livres e abertos, devemos também nos lembrar do que escreveu liderado pelo comunismo é um sinal agourento de que o casamento entre
Gilbert Keith Chesterton: "Ter apenas a mente aberta não é nada; o o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. O único sentido
objetivo de abrir a mente, assim como o de abrir a boca, é fechá-la de em que os manifestantes são comunistas é o de se preocuparem com os
novo em algo consistente". Isso também vale para a política em tem- bens comuns - da natureza, do conhecimento - , ameaçados pelo sistema.
pos de incerteza: os debates abertos terão de fundir-se não somente Os manifestantes são descartados como sonhadores, mas os verdadeiros
em novos Significantes-Mestres, mas também em respostas concretas sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar indefinida-
à antiga questão leninista: "Que fazer?". mente como estão, com apenas algumas mudanças cosméticas. Eles não
são sonhadores, são o despertar de u m sonho que está se transformando
O lema manifesta preferência por u m a r u a de comércio local, de pequenos investidores
em pesadelo, Não estão destruindo nada, estão reagindo ao modo como o
( M a i n Street), em oposição à imensa concentração de grandes negócios e investimentos sistema gradualmente destrói a si próprio. Todos nós conhecemos a cena
simbolizada por W a l l Street. (N. E.)
18 | Occupy Slavoj Zizek | 19

clássica dos desenhos animados: o gato chega a um precipício e continua A arte da política também é insistir numa exigência particular que,
caminhando, ignorando o fato de não haver chão sob suas patas; ele apesar de radicalmente "realista", perturba o núcleo da ideologia hegemó-
só começa a cair quando olha para baixo e percebe o abismo. O que os nica, i. e., apesar de sem dúvida plausível e legítima, é de facto impossível
manifestantes estão fazendo é apenas lembrar os que estão no poder de (plano de saúde universal, por exemplo). Logo em seguida aos protestos de
olhar para baixo. • Wall Street, nós decididamente deveríamos mobilizar as pessoas por esse
Essa é a parte fácil. Os manifestantes devem ter cuidado não só tipo de demanda - entretanto, é igualmente importante que permaneça-
com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem apoiá-los mos ao mesmo tempo retirados do campo pragmático das negociações e
e trabalham duro para diluir o protesto. D a mesma forma que tomamos propostas "realistas". 0 que se deve ter em mente é que qualquer debate,
café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tenta- aqui e agora, necessariamente permanece como u m debate no território
rão transformar os protestos num gesto moralista inofensivo. No boxe, o do inimigo: é preciso tempo para posicionar o novo conteúdo. Tudo o que
clinch é o movimento de abraçar o corpo do oponente com u m ou dois bra- dissermos neste momento pode ser tomado (ou recuperado) de nós - exceto
ços para prevenir ou evitar socos. A reação de Bill Clinton aos protestos em o nosso silêncio. Tal silêncio, tal rejeição ao diálogo, a todas as formas de
Wall Street é u m exemplo perfeito de clinch político; Clinton acha que os clinch, são o nosso "terror", agourento e ameaçador como deve ser.
manifestantes são, "no final das contas, algo positivo", mas se diz preocu- Essa ameaça foi claramente percebida por Anne Applebaum. 0 sím-
pado com a nebulosidade da causa: "eles precisam apoiar algo específico, e bolo de Wall Street é a estátua de metal de u m touro em seu centro - e as
não somente ser contra, pois, se você é simplesmente contra, alguém acaba pessoas comuns estavam recebendo ultimamente u m bom punhado da
preenchendo o vazio que você criou", disse ele. Clinton sugeriu que os mani- merda que vinha dali*. Embora a reação padrão de Wall Street fossem os
festantes apoiassem o plano de empregos do presidente Obama, que, segun- disparates grosseiros esperados, Applebaum propôs no Washington Post
do ele, criará "milhões de empregos ao longo do próximo u m ano e meio". uma versão mais perfumada e sofisticada, chegando até a fazer referências
Nesta etapa, devemos resistir precisamente a uma tradução assim ao filme A vida de Brian, do Monty Python. Uma vez que sua versão nega-
apressada da energia das manifestações para um conjunto de demandas tiva do apelo de Clinton por propostas concretas se apresenta como ideolo-
pragmáticas "concretas". Sim, os protestos realmente criaram um v a z i o - u m gia em seu estado mais puro, ela merece ser citada em detalhe. A base de
vazio no campo da ideologia hegemónica - , e será necessário algum tempo seu argumento é a constatação de que os protestos ao redor do mundo são:
para preenchê-lo de maneira apropriada posto que se trata de um vazio que similares em sua falta de foco, em sua natureza incipiente e, acima de
carrega consigo um embrião, uma abertura para o verdadeiro Novo. A razão tudo, em sua recusa a participar das instituições democráticas existen-
de os manifestantes saírem às ruas é que estão fartos de um mundo onde re- tes. E m Nova York, os manifestantes cantaram "essa é a cara da de-
ciclar latinhas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar mocracia", mas na verdade essa não é a cara da democracia. E a cara
cappuccino da Starbucks com 1% da renda revertida para os problemas do da liberdade de expressão. Democracia soa um pouco mais chato. De-
Terceiro Mundo é o suficiente para se sentir bem. Após a terceirização do tra- mocracia requer instituições, eleições, partidos políticos, regras, leis,
balho e da tortura, após as agências matrimoniais começarem a terceirizar poder judiciário e muitas atividades nada glamorosas e que consomem
até nossos encontros, os manifestantes perceberam que por um longo tempo
permitiram que seus compromissos políticos também fossem terceirizados -
e querem-nos de volta. * No original, o autor faz u m jogo de palavras usando os termos buli (touro) e shit (mer-
da), que juntos geram a expressão bullshit (asneira, disparate). (N. E.)
20 | Occupy Slavoj Zizek | 21

o tempo. [...] Até agora, em certo sentido, o fracasso do movimento i n - A primeira coisa a notar é que Applebaum reduz os protestos da
ternacional Occupy em • produzir propostas legislativas consistentes praça Tahir a reivindicações pela democracia de estilo ocidental - feito
é compreensível: tanto as fontes da crise económica como sua solução isso, torna-se obviamente ridículo comparar os protestos de Wall Street
residem, por definição, fora da competência de políticos locais e nacio- com o evento egípcio: como podem os manifestantes daqui reivindicar
nais. [...] A emergência de um movimento internacional de protesto sem o que já têm, i. e., instituições democráticas? Portanto, o que se perde
um programa coerente não é, portanto, um acidente: reflete uma crise de vista é o descontentamento geral com o sistema global capitalista,
mais profunda, sem soluções óbvias. A democracia é baseada na regra que, é claro, adquire diferentes formas aqui e ali.
da lei; funciona somente dentro de fronteiras nítidas e entre pessoas que Mas a parte mais chocante da argumentação de Applebaum,
se sentem parte de uma mesma nação. Uma "comunidade global" não uma lacuna realmente estranha, ocorre no final. Depois de reconhecer
pode ser uma democracia nacional. E uma democracia nacional que as consequências económicas injustas do capitalismo financeiro glo-
não pode impor a submissão de um fundo de cobertura global [global bal, devido ao seu caráter internacional estão fora do controle dos me-
hedgefund] de bilhões de dólares com seus quartéis-generais num paraí- canismos democráticos, por definição limitados aos Estados-nação, ela
so fiscal e seus empregados espalhados ao redor do mundo. chega à conclusão necessária de que " a globalização claramente passou
Diferentemente dos egípcios na praça Tahrir, com quem os manifes- a minar a legitimidade das democracias ocidentais". Até aí tudo bem,
tantes de Londres e Nova York se comparam de maneira aberta (e poderíamos dizer: é precisamente para isto que os manifestantes estão
ridícula), nós temos instituições democráticas no mundo ocidental. chamando a atenção - para o fato de que o capitalismo global mina a de-
Elas são planejadas para refletir, pelo menos de forma grosseira, o mocracia. Mas em vez de tirar a única conclusão lógica, de que devemos
desejo de transformação política dentro de uma dada nação. Porém, começar a pensar em como expandir a democracia para além de sua for-
não podem resolver o desejo de transformação política global, tam- ma política estatal pluripartidária, o que obviamente não inclui as con-
pouco controlar o que acontece fora de suas fronteiras. Embora eu sequências destrutivas para a vida económica, ela realiza u m estranho
ainda acredite nos benefícios económicos e espirituais da globaliza- giro: transfere a culpa para os próprios manifestantes que começaram a
ção - com fronteiras abertas, liberdade de movimento e comércio - , levantar essas questões. Seu último parágrafo merece ser repetido:
a globalização claramente passou a minar a legitimidade das demo- Os ativistas "globais", se não forem cuidadosos, acelerarão seu declí-
cracias ocidentais. nio. Manifestantes em Londres gritam "Precisamos de um processo!"

Os ativistas "globais", se não forem cuidadosos, acelerarão seu declí- Bem, eles já têm um processo: chama-se sistema político britânico. E

nio. Manifestantes em Londres gritam "Precisamos de um processo!". se não souberem usá-lo, simplesmente o enfraquecerão.*

Bem, eles já têm um processo: chama-se sistema político britânico. E , U m a vez que a economia global está fora dos limites das polí-
se não souberem usá-lo, simplesmente o enfraquecerão.* ticas democráticas, qualquer tentativa de aproximá-la da democracia
apressará o declínio desta. Então, o que podemos fazer? Engajar-nos no
sistema político existente o qual, conforme a própria Applebaum, não
A n n e A p p l e b a u m , " W h a t the Occupy Protests Tell Us about the L i m i t s of D e m o - pode justamente cumprir essa tarefa...
cracy?", Washington Post, 17 out. 2011. Disponível em: www.washingtonpost.com/
opinions/what-the-occupy-protests-tell-us-about-the-limits-of-democracy/2011/10/17/
g I Q A a y 5 Y s L _ s t o r y . h t m l . Acesso em 8 fev. 2012. (N, T.)
* Idem. (N. T.)
22 | Occupy Slavoj Zizek | 23

Neste momento, deveríamos i r até o fim. Não faltam anticapitalis- Mudanças radicais nesse quesito deveriam ser realizadas fora da esfera
tas hoje, estamos até mesmo testemunhando uma abundância de críticas dos direitos "legais" etc: em tais procedimentos "democráticos" (que,
aos horrores do capitalismo: livros, investigações jornalísticas aprofun- é claro, podem ter u m papel positivo), não importa quão radical seja o
dadas e reportagens de T V repletos de empresas que poluem cruelmente nosso anticapitalismo, busca-se a solução na aplicação dos mecanismos
nosso meio ambiente, de banqueiros corruptos que continuam a receber democráticos - os quais, não podemos esquecer, são parte do aparato
recompensas gordas enquanto seus bancos têm de ser salvos com dinhei- estatal "burguês" que garante o tranquilo funcionamento da reprodu-
ro público, de fábricas clandestinas nas quais crianças fazem hora extra ção capitalista. Precisamente nesse sentido, Badiou está certo ao afirmar
etc, etc. Existe, entretanto, uma armadilha para toda essa abundância que hoje o nome do pior inimigo não é capitalismo, império, exploração
de críticas: uma regra não questionada delas, tão cruel quanto possa ou algo similar, mas democracia: é a "ilusão democrática", a aceitação dos
parecer, é a moldura liberal democrática da luta contra esses excessos. O mecanismos democráticos como a moldura fundamental de toda mudan-
objetivo (explícito ou implícito) é democratizar o capitalismo, estender o ça, que evita a transformação radical das relações capitalistas.
controle democrático para a economia por meio da pressão da mídia, i n - Os protestos de Wall Street estão apenas começando, e é assim
quéritos parlamentares, leis mais severas, investigações policiais hones-
que o início deve ser, com u m gesto formal de rejeição, mais importan-
tas etc, etc. Porém, jamais questionar a moldura institucional democrá-
te do que u m conteúdo positivo - somente u m gesto assim abre espaço
tica do Estado de direito (burguês). Isso continua sendo a vaca sagrada
para u m conteúdo novo. Portanto, não devemos ficar aterrorizados pela
na qual mesmo as formas mais radicais desse "anticapitalismo ético" (o
eterna questão: "Mas o que eles querem?". Recorde que esta é a questão
Fórum de Porto Alegre, o movimento de Seattle) não se atrevem a tocar.
arquetípica dirigida por u m mestre masculino a uma mulher histérica:
E aqui que o principal insight de Marx permanece válido, talvez "Todos esses seus lamentos e reclamações - você ao menos sabe o que
mais do que nunca: para ele, a questão da liberdade não deveria ser lo- realmente quer?". No sentido psicanalítico, os protestos são efetivamen-
calizada em particular na esfera política propriamente dita (o país tem te u m ato histérico, provocando o mestre, minando sua autoridade, e
eleições livres? os juízes são independentes? a imprensa é livre de pres- a questão "O que você quer?" procura exatamente impedir a resposta
sões escusas? os direitos humanos são respeitados?, e uma lista similar verdadeira. Seu ponto é: "Fale nos meus termos ou se cale!".
de diferentes questões que as instituições ocidentais "independentes" Isso, é claro, não significa que os manifestantes devam ser mimados
- e não tão independentes - aplicam quando querem pronunciar u m e adulados - hoje, se é que isso é possível, os intelectuais devem combinar
julgamento sobre determinado país). A chave para a verdadeira liber- o apoio integral aos manifestantes com uma distância analítica fria e não
dade, em vez disso, reside na rede "apolítica" de relações sociais, desde paternalista, começando por sondar a autodesignação dos manifestantes
o mercado até a família, em que a mudança necessária, se quisermos como os 99% contra o ganancioso 1%: quantos dos 99% estão prontos para
melhoria efetiva, não é a reforma política, mas a transformação nas aceitar os manifestantes como sua voz e até que ponto? Quantos realmen-
relações sociais "apolíticas" de produção. Não votamos em quem de- te? Deve-se evitar a tentação do narcisismo da Causa perdida, da admira-
veria ser o dono do quê, nas relações em uma fábrica etc, tudo isso é ção da beleza sublime dos levantes fadados ao fracasso. N a esquerda atual,
deixado para os processos de fora da esfera política, e é ilusório esperar o problema da "negação determinada" retorna como uma vingança: que
que se possa mudar as coisas "estendendo" a democracia para essa esfe-
nova ordem positiva deveria substituir a antiga, no dia seguinte, quando
ra, digamos, organizando bancos "democráticos" sob controle popular.
o entusiasmo sublime dos levantes tiver acabado? Se olharmos mais de-
24 | Occupy Slavoj Èizek | 25

tidamente o conhecido manifesto dos Indignados espanhóis (os furiosos), modo pensativo, apoiou a sua mão leal sobre o meu ombro. Nunca ele
teremos algumas surpresas. Embora toda a classe política, a direita e a balançara a cabeça tão levemente. Isso significava: absolutamente não!
esquerda, seja rejeitada como corrupta e dominada pelo desejo de poder, Pode-se apenas imaginar o que o velho camponês estava realmente
o manifesto ainda assim consiste numa série de demandas dirigidas - a pensando - é provável que soubesse a resposta que Heidegger queria e,
quem? Não às próprias pessoas: os indignados (ainda) não afirmam que educadamente, providenciou-a. Portanto, a sabedoria do homem comum
ninguém mais agirá além deles, que (parafraseando Gandhi) eles próprios não dirá aos manifestantes warum bleiben wir in Wall Street [por que
têm de ser a mudança que desejam ver. Parece que o comentário tão fácil permanecer em Wall Street]. Não há Sujeito que saiba, e as pessoas co-
e desdenhoso de Lacan sobre as manifestações de 1968 encontrou seu alvo muns ou os intelectuais não o são. Então não seria este u m impasse, u m
nos indignados: "Como revolucionários, vocês são histéricos que deman- cego guiando outro ou, mais precisamente, cada u m deles pressupondo
dam u m novo mestre. Vocês o terão"*. que o outro não é cego? Não, porque sua respectiva ignorância não é
Então, quem sabe? Cara a cara com as demandas dos manifes- simétrica: são as' pessoas que têm as respostas, elas só não conhecem as
tantes, os intelectuais definitivamente não estão na posição de Sujeito perguntas para as quais têm (ou melhor, são) a resposta. John Berger
Suposto Saber: não podem operacíonalizar tais demandas para traduzi- escreveu sobre as "multidões" daqueles que se encontram do lado errado
-las em propostas para medidas realistas precisas e detalhadas. Com a do Muro (que divide os que estão dentro dos que estão fora):
queda do comunismo do século X X , eles perderam para sempre o papel As multidões têm as respostas para questões que ainda não foram le-
da vanguarda que conhece as leis da história e pode guiar os inocentes vantadas e a capacidade de sobreviver aos muros. As questões ainda não
pelo seu caminho. 0 povo, entretanto, também não sabe - "povo" no sen- foram feitas porque isso requer palavras e conceitos que soem verdadei-
tido de uma nova figura de Sujeito Suposto Saber é u m mito do partido ros, e aqueles usados atualmente para nomear os fenómenos se tornaram
que diz agir em sua causa, desde a linha mestra de Mao, "aprender com insignificantes: democracia, liberdade, produtividade etc. Com novos
os camponeses", até o famoso apelo de Heidegger para seu velho amigo conceitos, as questões logo serão levantadas, pois a história envolve preci-
camponês no pequeno texto "Por que permanecemos na província?"**, de samente esse processo de questionamento. Logo? Em uma geração.
1934, u m mês após renunciar como decano da Universidade de Freiburg: Claude Lévi-Strauss escreveu que a proibição do incesto não é
Recentemente recebi um segundo convite para ensinar na Universidade uma questão, u m enigma, mas uma resposta a uma pergunta que não
de Berlim. Naquela ocasião deixei Freiburg e me retirei para minha conhecemos. Devemos tratar as reivindicações dos protestos de Wall
cabana. Escutei o que as montanhas, a floresta e os fazendeiros diziam Street de maneira semelhante: intelectuais não devem tomá-las inicial-
e fui ver um velho amigo meu, um camponês de 75 anos. Ele havia lido mente como reivindicações e questões para as quais precisam produzir
sobre o convite de Berlim nos jornais. 0 que ele diria? Devagar, ele fixou respostas claras e programas sobre o que fazer. Elas são respostas, e os
com segurança seus olhos claros sobre os meus e, sem abrir a boca, de intelectuais deveriam propor as questões para elas. A situação é como
a da psicanálise, em que o paciente sabe a resposta (seus sintomas),
mas não sabe a que ela responde, e o analista deve formular a questão.
Jacques L a c a n , 0 seminário. Livro XVII; o avesso da psicanálise (São Paulo, Z a h a r , Apenas por meio desse trabalho paciente surgirá u m programa.
1992). (N. T.)

M a r t i n Heidegger, " P o r que permanecemos na província?", Cultura Vozes, " H o m e n a -


gem a Heidegger", Petrópolis, ano 71, n. 4,1977. (N. T.)
THESEAREOURSTREETS
WE WILL OCCUPY THEM

O C C U P Y
w
STREET WALLS
Os "ocupas" e a desigualdade económica*
João Alexandre Peschanski

O movimento global dos "ocupas" - acampamentos de estudan-


tes e trabalhadores em áreas públicas de centenas de cidades em todo
o mundo - , iniciado no segundo semestre de 2011, tem entre suas
principais bandeiras a crítica à desigualdade económica.
De fato, a distribuição de renda e patrimônio em várias so-
ciedades é estarrecedoramente desigual: nos Estados Unidos, de
acordo com estudos do governo de 2 0 0 8 , 1% da população con-
trola quase 2 5 % da renda, 15 pontos percentuais a mais do que
controlava em 1980. No Brasil, onde se comemora estar próximo ao
nível de desigualdade estadunidense, a concentração de riqueza é
ainda maior.

Publicado originalmente nos jornais Juízes para a Democracia, n . 5 5 , set.-nov. 2011,


e Brasil de Fato, n . 457, 1 a 7 dez. 2011. (N. E.)
28 | Occupy João Alexandre Peschanski | 29

A crítica dos "ocupas" é especialmente apropriada num contexto que de fato gera mazelas sociais. índices de desigualdade podem indi-
global em que a taxa de desemprego é crescente e a parcela da popu- car uma maioria de pessoas em bons apartamentos e u m a minoria em
lação economicamente vulnerável aumenta: de acordo com a Organi- castelos, por exemplo. O u seja, a desigualdade económica é, na teoria,
zação Internacional do Trabalho, a taxa global de desemprego atin- compatível com uma sociedade sem carências materiais, e o que real-
giu níveis recordes nos últimos três anos. Os "ocupas" pelo mundo, em mente importa é dar u m mínimo para toda a população.
particular os de Wall Street, Nova York, onde os protestos começaram O primeiro argumento não tem fundamento teórico e compro-
em setembro e chegaram a reunir 15 m i l pessoas, definem-se como a vação empírica, Não leva em consideração o poder dos diferentes ato-
"mobilização dos 99%", isto é, a parcela da população negativamente res no mercado; é o mundo das fábulas dos manuais de economia, os
afetada pela desigualdade económica. mercados livres, em que ninguém exerce seu poder para enrique-
0 igualitarismo democrático radical, cerne da bandeira dos "ocu- cer às custas dos outros e do dinamismo económico. Mas indivíduos
pas", é u m princípio fundamental das tradições intelectuais e correntes e grupos com o poder de determinar investimentos comandam a base
políticas progressistas. De maneira ampla, pode ser visto como uma de- da sobrevivência da maioria da população - o acesso ao emprego -
fesa de que todas as pessoas tenham o mesmo acesso a recursos e a ca- e, abusando de seu poder, bloqueiam políticas de redistribuição. E m -
pacidade de participar das decisões da sociedade, especialmente das que piricamente, não há evidência de que o crescimento económico seja
as afetam. U m a discussão mais profunda desse princípio pode ser encon- acompanhado de redução da desigualdade económica, uma das
trada em. As utopias reais*, do pensador estadunidense E r i k Olin Wright. derivações desse argumento.
Dois argumentos são geralmente citados a favor da desigualda- Para rejeitar o segundo argumento, é preciso provar que a desi-
de económica. E m primeiro lugar, argumenta-se que, para o siste- gualdade económica tem u m efeito negativo independente na socieda-
ma económico se manter produtivo, é preciso gerar incentivos para as de e na economia, isto é, independente do acesso aos bens básicos de
pessoas trabalharem e investirem, sustentados na existência de desi- consumo. É isso que provam dois estudos recentes, o ensaio "Politics of
gualdades. Políticas de redistribuição económica com essa perspecti- Inequality" [A política da desigualdade], do sociólogo canadense David
va reduzem os incentivos ao trabalho, o que faz com que os pobres Calnitsky, e o livro The Spirit Levei: Why Greater Equality Makes So-
não se esforcem para melhorar sua condição de vida e com que se repro- cieties Stronger [0 nivelador: por que mais igualdade fortalece as socie-
duza uma ética do trabalho débil. Os ricos, seguindo essa lógica, têm dades], dos cientistas sociais ingleses Richard Wilkinson e Kate Pickett*.
menos incentivo para investir seus recursos se houver redistribuição, o Esses estudos mostram que, em países desenvolvidos, sociedades
que leva a uma estagnação da economia. A desigualdade económica, de desiguais tendem a ter taxas piores de expectativa de vida, mortalidade
acordo com esse primeiro argumento, mantém o dinamismo do sistema infantil, alfabetização, obesidade, gravidez precoce, transtorno men-
produtivo e, como estimula a criação de empregos e uma ética do tra- tal, uso de drogas, violência, mobilidade social, participação política e
balho forte, beneficia toda a população, ricos e pobres. autonomia económica das mulheres. Isso significa, por exemplo, que,
E m segundo, argumenta-se que a desigualdade de renda e pa- quanto mais desigual a sociedade, maior a proporção de pessoas com
trimônio não é necessariamente u m indicador de pobreza absoluta, o transtornos mentais.

São Paulo, A l a m e d a , no prelo. (N. E.) * N o v a York, Bloomsbury Press, 2010. (N. E.)
30 | Occupy

ESTVJI1 A N T E S

A desigualdade económica m i n a sistematicamente o funciona-


mento democrático. Isso ocorre devido a pelo menos dois mecanis-
mos. Primeiro, os ricos têm acesso mais fácil aos tomadores de decisão
e capacidade de influenciá-los, de modo legal ou ilegal. Segundo, há
u m viés nas arenas políticas para atender aos interesses da parcela
da população que controla os fluxos de investimento. Isso porque, se
não há investimentos, o mercado de trabalho se fragiliza, prejudican-
do os trabalhadores (menos emprego) e onerando o Estado (menos
arrecadação de impostos e mais repasses a políticas sociais). Mesmo
em sistemas.democráticos, propostas políticas que não atendem aos
|AP^EMDÍ£NP0JIEN5ENAND0.I|
interesses dos ricos são muitas vezes deixadas de lado, por mais que
gerem benefícios reais à sociedade.
Os "ocupas" põem na pauta política justamente a discussão de
alternativas aos regimes económicos desiguais e a experimentação do Ocupar Wall Street... e depois?*
igualitarismo democrático radical. E , com exceção dos ricos, que
de fato saem perdendo, participar dessa discussão é do interesse de
Giovanni Alves
toda a população.

O M12M, Movimento 12 de Março ou Geração à Rasca, em Portu-


gal, o M15M, Movimento 15 de Março ou Movimento dos Indignados, na
Espanha, e o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, surgem no bojo da
aguda crise financeira que atinge o núcleo orgânico do capitalismo glo-
bal desde 2008. O Occupy Wall Street foi inspirado nos movimentos so-
ciais europeus como o M15M, que por sua vez foram influenciados pelas
rebeliões de massa que impulsionaram a Primavera Árabe e derrubaram
governos na Tunísia e no Egito.
A profunda crise do subprime de 2008 afetou seriamente os paí-
ses norte-africanos, piorando os níveis de pobreza, e teve como esto-
pim a elevação do preço dos alimentos e de outros produtos básicos. A

* P u b l i c a d o originalmente no site da CartaMaior (www.cartamaior.com.br/templates/


materiaMostrar.cfm?materia_id=18687), em 13 out. 2011. ( N . E.)
32 | Occupy Giovanni Alves | 33

multidão árabe, composta em sua maioria por jovens com trabalhos radical capaz de mobilizar o conjunto da "multidão" de proletários que
precários ou desempregados, mobilizou-se por meio das redes sociais. se veem ultrajados em sua dignidade humana).
E m todos esses novos movimentos, o papel das redes sociais, como Terceiro, utilizam redes sociais, como Facebook e Twitter, am-
Facebook e Twitter, na organização das manifestações foi importante. pliando a área de intervenção territorial e a mobilização social. Produ-
N a verdade, o Occupy Wall Street, o Movimento dos Indignados e o mo- zem sinergias sociais em rede, tecendo estratégias de luta territorial num
vimento Geração à Rasca são exemplos candentes da verdadeira globali- cenário de crise social ampliada. Há tempos o M S T (Movimento dos Tra-
zação "dos de baixo", que hoje se contrapõe à globalização dos "de cima". balhadores Sem Terra), no Brasil, e o Zapatismo, no México, valem-se de
Podemos salientar algumas das características desses novos movi- estratégias de ocupação como tática de luta e visibilidade social. Eles nos
mentos sociais. Primeiro, constituem-se de densa e complexa diversida- ensinaram que, hoje, a luta contra o capital global que desterritorializa
de social, exprimindo a universalização da condição de proletariedade é a luta pela territorialização ampliada, difusa e descentrada (os novos
(os 99%). No caso europeu, muitos dos manifestantes são jovens empre- movimentos sociais não têm u m líder).
gados, operários precários, trabalhadores desempregados e estudantes Quarto, são movimentos sociais capazes de inovar e ter criativida-
de graduação subjugados pelo endividamento e inseguros quanto ao de política na disseminação de seus propósitos de contestação social. Por
seu futuro - eles constituem o denominado "precariado"; incluem-se exemplo, os manifestantes do Occupy Wall Street vestiram-se de zumbis
também, no caso do Occupy Wall Street, veteranos de guerra, sindi- corporativos para expor o caráter da ordem burguesa em sua etapa de cri-
calistas, pobres, profissionais liberais, anarquistas, hippies, juventude ' se estrutural, ou ainda, em virtude da proibição de utilizar megafones, a
desencantada, trabalhadores organizados etc. multidão mais próxima dos oradores repetia suas frases para que os mais
Entre milhares de pessoas, encontram-se, lado a lado, por exem- distantes pudessem ouvi-las e, por sua vez, repeti-las também. É o "micro-
plo, jovens anticapitalistas e enfermeiras em defesa do sistema de saúde. fone humano".
Há cartazes de protesto contra o racismo, o presidente Obama, os repu- Quinto, expõem, com notável capacidade de comunicação e visi-
blicanos, os democratas, a fome, as guerras no Iraque e no Afeganistão. bilidade, as misérias da ordem burguesa no polo mais desenvolvido do
E m contrapartida, defendem-se os direitos dos trabalhadores e sistema, apodrecido pela financeirização da riqueza capitalista. A luta
dos prisioneiros em greve de fome, a cobrança de mais impostos para social anticapitalista hoje é a luta para revelar as contradições candentes
os milionários e a reestruturação do sistema financeiro. No Movimento do sistema. No capitalismo manipulatório, a regra é a ocultação das m i -
dos Indignados, por exemplo, a "democracia real" também é defendi- sérias da ordem burguesa. Os indignados europeus e norte-americanos,
da. Enfim, trata-se do denso e vasto continente do novo (e precário) no entanto, expõem e criticam a concentração de riqueza (eles dizem
mundo do trabalho e da proletariedade extrema que emerge no bojo representar os 99% contra o 1%) e a precariedade do trabalho e da vida -
dos "trinta anos perversos" de capitalismo neoliberal. e, principalmente, desmitificam a democracia ocidental.
Segundo, são movimentos sociais pacíficos que recusam a adoção Sexto, os novos movimentos dos indignados, incluindo o Occupy
de táticas violentas e ilegais, evitando, desse modo, a criminalização. Os Wall Street, reivindicam a democratização radical contra a farsa demo-
manifestantes têm profunda consciência moral e senso de justiça social, crática dos países capitalistas centrais. Têm a intenção de ^agrietaf*
o que explica o uso do termo "indignados" (a crítica do capitalismo hoje
implica, no plano da consciência contingente, um vetor intelectual-moral * E m espanhol, rachar, abrir u m a fenda. ( N . E.)
34 | Occupy Giovanni Alves | 35

o capitalismo, isto é, fazer rachaduras no capitalismo global (expressão mesmo à crise social ocasionada pela ampliação do desemprego e da
utilizada por John Holloway em seu último livro"). Rachaduras que po- precariedade laboral no bojo da corrosão do Estado social europeu que,
dem dar visibilidade ao "inferno do Real". De certo modo, e sem o saber, diga-se de passagem, precede a crise financeira: a crise do nosso tempo
os indignados buscam "negar" o capitalismo no interior dele próprio. N a histórico é também, e principalmente, a crise política dos partidos da
medida em que ocorre a democratização radical da sociedade, desefetiva- ordem burguesa, partidos conservadores-liberais e social-democratas
-se o Estado político do capital. Entretanto, esses novos movimentos da ou socialistas que, nas últimas décadas, constituíram uma rede de i n -
proletariedade extrema são, como a esfinge da mitologia grega, uma i n - teresses promíscuos com a grande finança especulativo-parasitária, ilu-
cógnita social. Enfim, dizem eles: "decifra-me ou devoro-te". dindo, o tempo todo, seus eleitores incautos.
0 detalhe crucial que podemos salientar das características indica- Simultaneamente, vislumbramos a crise do pensamento crítico cor-
' das acima é que esses são movimentos democráticos de massa e ocorrem roído pelo pós-modernismo e neopositivismo. No caso do continente eu-
em países capitalistas sob o Estado de direito democrático - o que não era ropeu, berço do iluminismo ocidental, essa crise intelectual-moral é dra-
o caso, por exemplo, da Tunísia e do Egito. A ampliação do desemprego e mática. Na medida em que renunciou, em sua maioria, à crítica radical
da precariedade social no decorrer da década de 2000 nos E U A e na União do capitalismo a título da crença na possibilidade do "capitalismo ético"
Europeia, sobretudo a partir da crise financeira de 2008, impulsionou o capaz de articular bem-estar social com interesses de acumulação de valor,
radicalismo das massas de jovens (e velhos) precários e indignados com a inteligência europeia hoje, com honrosas exceções, encontra-se como os
governos social-democratas e conservadores, incapazes de deter o "moinho personagens divagantes do romance Ensaio sobre a cegueira, de José Sa-
satânico" do capitalismo global. Portanto, os novos movimentos sociais são ramago. Como disse Slavoj Zizek, "falta-lhes a tinta vermelha!"*. Ao mes-
reverberações radicais do capitalismo financeiro senil. mo tempo, no cenário político da crise europeia, o ilusionismo da esquerda
A crise financeira de 2008 expôs a mediocridade do governo demo- social-democrata ou socialista só é comparável ao cinismo dos conservado-
crata de Barak Obama, que frustrou muitos norte-americanos que acredi- res de direita na preservação incólume da ordem burguesa.
taram que ele deteria a hegemonia financeira na política do país. A crise Os novos movimentos sociais que ocorrem no bojo do capitalismo
da dívida soberana de 2010 e a crise financeira da zona do euro expuseram senil têm o sentido radical dos carecimentos vinculados à condição de
a venalidade dos partidos social-democratas e socialistas nos elos mais fra- proletariedade e à vida reduzida de amplos contingentes de jovens ór-
cos da União Europeia. Os partidos hegemónicos da esquerda europeia fãos de futuridade. Os jovens indignados nos obrigam a refletir sobre
aceitaram a política neoliberal de austeridade da troika (FMI, Comissão as formas e metamorfoses da consciência social. Eles representam u m
Europeia e Banco Central Europeu), aplicada com zelo e fervor pela direita cadinho complexo e rico de formas de consciência crítica que emergem
conservadora (o caso da Grécia e de Portugal é paradigmático!). no estado de barbárie social.
N a verdade, a crise do "núcleo orgânico" do sistema mundial do N u m primeiro momento, a presença da massa de jovens e velhos
capital diz respeito não apenas à crise financeira decorrente do estouro rebeldes nas ruas e praças nos fascina. Há o fervor em reconquistar de
da bolha imobiliária em 2008 e à crise da dívida soberana europeia em maneira coletiva e pacífica territórios urbanos, praças e largos, verda-
2010 em virtude da incontinência fiscal de alguns países europeus, ou

* Ver blog da Boitempo: www.boitempoeditorial.wordpress.oom/2011/10/ll/a-tinta-verme


Crack Capitalism (Londres, Pluto Press, 2010). (N. E.) Iha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/. (N. E.)
36 | Occupy Giovanni Alves | 37

deiros espaços públicos marginalizados pela lógica neoliberal privatis- pretéritas, presentes e futuras de emancipação social ainda não bem
ta que privilegiou não espaços de manifestação social, mas espaços de discernidas. Talvez eles representem o espectro indefinido e nebuloso
consumo e fruição intimista. O que assistimos hoje nos E U A e na E u r o - do comunismo, que, como o fantasma do pai de Hamlet, anuncia que
pa é quase uma catarse coletiva. Trata-se de individualidades pulsantes há algo de podre no Reino da Ordem Burguesa.
de indignação e rebeldia criativa, cada uma com- suas preocupações e Ora, como cientistas sociais (e não apenas ativistas), temos de analisar
dramas humanos singulares de homens e mulheres proletários; com os novos movimentos com objetividade e na perspectiva da lógica dialética
seus sonhos e pequenas utopias pessoais capazes de dar u m sentido à capaz de apreender a riqueza do movimento contraditório do real. Aviso aos
vida por meio da ressignificação do cotidiano como espaço de reivindi- navegantes pós-modernos: hoje, mais do que nunca, o método dialético tor-
cação coletiva de direitos usurpados. nou-se indispensável no exercício da crítica social. Passa a ser imprescindível
Os novos movimentos sociais, a princípio, não incorporam utopias apreender, no movimento do real, a dialética candente entre subjetividade
grandiosas de emancipação social que exijam clareza político-ideológica. e objetividade, alcances e limites, contingência e necessidade, barbárie e ci-
Pelo contrário, eles expressam, em sua diversidade e amplitude de expec- vilização. Não podemos ser apenas seduzidos pelo fascínio da contingência
tativas políticas, uma variedade de consciência social crítica capaz de di- indignada nas praças e ruas. Os novos movimentos sociais de indignados
zer "não" e mover-se contra o status quo. Possuem, em sua contingência compõem o quadro da barbárie que impregna a ordem burguesa do mundo,
irremediável de movimento social, u m profundo lastro moral do impulso abrindo u m campo de sinistras contradições sociais que dilaceram por den-
crítico. Como indignados, eles fazem, mas não o sabem (como diria Marx). tro a ordem do capital - mas são incapazes, em si e por si, de ir além.
No plano contingente, efetuam uma crítica radical do capitalismo como Nessas circunstâncias críticas, surgem interrogações candentes
modo de produção da vida social. Mas não podemos considerá-los, a rigor, que. nos afligem irremediavelmente:
movimentos sociais anticapitalistas. Na verdade, o que predomina entre os (1) Terão os movimentos sociais de indignados capacidade de
manifestantes é u m modo de consciência contingente capaz de expor, com elaborar em si e para si uma plataforma política mínima capaz
indignação moral, as misérias do sistema sociometabólico do capital, mas de exercitar a hegemonia social e cultural, preparando-se para uma
sem identificar suas causalidades histórico-estruturais (o que não significa longa "guerra de posição" e acumulando forças sociais e políticas sob o
que não haja os mais diversos espectros de ativistas anticapitalistas). cenário da barbárie social e do capitalismo manipulatório?
Os movimentos sociais agem no plano da cotidianidade insub- (2) Terão eles possibilidade de criar condições efetivas (político-ideo-
missa, rompendo com a pseudoconcreticidade paralisante da rotina lógicas) para o surgimento de novas organizações de classe, capazes de
sistémica, mas permanecendo no esteio da vida cotidiana. Talvez falte- traduzir, no plano da institucionalidade democrática, as medidas neces-
-lhes clareza do próximo passo ou do elo mais próximo da corrente de sárias para a realização dos anseios dos indignados, sob pena da frustra-
indignação coletiva que clama, por exemplo, pela democracia real. Por ção irremediável? (E importante lembrar, como nos alerta Boaventura de
isso nos interrogamos: Ocupar Wall Street... e depois? Sousa Santos, que o colapso de expectativas é o esteio do fascismo social.)
Entretanto, acreditamos que a função heurística magistral dos (3) Até que ponto movimentos sociais como o Occupy Wall Street
novos movimentos sociais é tão somente expor as misérias da ordem e o dos Indignados europeus terão a densidade histórica necessária para
burguesa senil. Mobilizam múltiplas expectativas, aspirações de con- derrubar ou pautar governos, refundar ou enterrar partidos, fortalecer
sumo e sonhos da boa vida, projetando no movimento coletivo fantasias ou descartar lideranças?
38 | Occupy

(4) Finalmente, até que ponto seriam eles efetivamente capazes


de fazer história numa perspectiva para além do capitalismo que, em si
e para si, é incapaz de incorporar as demandas sociais do precariado,
tendo em vista a nova fase do capitalismo histórico imerso em contra-
dições sociais intensas?
Estamos diante de impasses históricos inéditos. Por u m lado, o
aprofundamento da crise social na década de 2010 na Europa e nos
E U A e as perspectivas de guerra - desta vez contra o Irã - e de recessão
global, por outro, a falta de estratégia de poder e antipoder dos movi-
mentos sociais, o extremismo conservador e a hesitação (e mediocridade
política) de partidos políticos da esquerda social-democrata e socialista
colocam-nos diante de u m caldo ameaçador de fascismo político sob o
pano. de fundo da barbárie social.
Não podemos subestimar, n u m cenário desses, a capacidade de Chega de chiclete*
resposta reacionária do establishment. É ingenuidade política acredi-
Mike Davis
tar que o Estado burguês não utilizará mecanismos de administração
policial, no tempo certo, que visem isolar os novos movimentos sociais
conforme eles se ampliam, que não os tornará invisíveis, por meio da
mídia, caso se torne necessário (há u m a intensa batalha midiática
ocorrendo em todo o mundo!) ou então que não irá dissuadi-los e ab- Quem poderia prever o Occupy Wall Street e a sua repentina proli-
sorvê-los com concessões residuais capazes de preservar a ordem bur- feração, ao estilo de uma planta selvagem, em cidades grandes e peque-
guesa. No limite, pode simplesmente reprimi-los, a título de manter nas? John Garpenter previu. Há quase 25 anos (1988), o mestre do terror
a ordem pública, com o apoio da "classe média" perplexa e amedron- (Halloween, A Coisa etc.) escreveu e dirigiu Eles Vivem, retratando a
tada pela ameaça do terrorismo autoinduzido do estado de exceção. E r a Reagan como uma catastrófica invasão alienígena. O filme continua
A crise do capitalismo global colocará para a humanidade, sob sendo seu toar de force. Aliás, quem poderia esquecer as primeiras cenas
pena levá-la à ruína, a necessidade do controle social, capaz de respon- brilhantes em que uma grande periferia terceiro-mundista é refletida ao
der aos carecimentos radicais apontados pelos movimentos sociais que longo de uma autoestrada nos arranha-céus espelhados de Bunker H i l l ,
ocupam espaços públicos do mundo do capital e lutam contra o estado em Los Angeles? Ou da maneira como Carpenter retrata banqueiros m i -
de barbárie social do capitalismo global em sua fase senil. Como diria o lionários e midiocratas cruéis dominando a pulverizada classe trabalha-
velho barbudo: Hic Rhodus, hic saltar*
a

* Traduzido por Rogério Bettoni a partir de " N o More Bubbie G u m " , publicado original-
mente no Los Angeles Reoiew of Books (http://lareviewofbooks.org/post/11725867619/

" A q u i é Rodes, salta a q u i m e s m o l " Citação de Esopo modificada por M a r x em O 18 de no-more-bubble-gum), em 21 out. 2011. Disponível também em: www.boitempoeditorial.

brumário de buís Bonaparte (São Paulo, Boitempo, 2011), p, 30. (N. E.) wordpress.com/category/colaboracoes-especiais/mike-davis. (N. E.)
40 | Occupy Mike Davis | 41

dora dos Estados Unidos, que vive em barracas numa encosta cheia de Nossa ocupação há 46 anos foi u m a incursão de. guerrilheiros; a
entulhos e implora por trabalhos temporários? de agora é uma Wall Street sob o cerco dos liliputianos. Também é o
Partindo dessa igualdade negativa entre falta de moradia e deses- triunfo do princípio supostamente arcaico do cara a cara, da organiza-
perança, e graças aos óculos escuros mágicos encontrados pelo enigmá- ção dialógica. As mídias sociais são importantes, é claro, mas não oni-
tico Nada (personagem interpretado por Roddy Piper), o proletariado potentes. O sucesso da auto-organização dos ativistas - a cristalização
finalmente alcança a unidade inter-racial, não se deixa enganar pelas da vontade política a partir do livre debate - continua sendo melhor
fraudes subliminares do capitalismo e fica furioso. Extremamente fu- nos fóruns urbanos da realidade. Dito de outra forma, a maior parte
rioso. Sim, eu sei, estou adiantando as coisas. O movimento Occupy the das nossas conversas na internet equivale a ensinar a missa ao vigário;
World ainda procura seus óculos mágicos (programa, demandas, estraté- até mesmo megasites como o MoveOn.com são voltados para u m grupo
gia e assim por diante), e sua fúria permanece baixa, em estado gandhia- de já convertidos, ou pelo menos para seu provável grupo demográfico,
no. Mas, como previu Carpenter, basta arrancar u m número suficiente de As ocupações também são para-raios, acima de tudo, para as me-
cidadãos norte-americanos de suas casas e/ou carreiras (ou pelo menos nosprezadas e alienadas tropas dos democratas, mas, além disso, elas
atormentar dezenas de milhões com essa possibilidade) para que algo parecem estai' derrubando barreiras de geração, proporcionando as ba-
novo e de grandes proporções comece a se dirigir de modo lento e camba- ses comuns, por exemplo, para que os ameaçados professores de meia-
leante ao Goldman Sachs. E , ao contrário do Tea Party, até agora não há -idade que trabalham na educação básica troquem ideias com jovens
fios de marionete, U m dos fatos mais importantes sobre a revolta atual é graduados empobrecidos.
simplesmente que ela ocupou as ruas e criou uma identificação espiritual De maneira ainda mais radical, os acampamentos tornaram-se luga-
com os desabrigados. res simbólicos para reparar as divisões dentro da coalizão do New Deal i m -
Para ser franco, a minha geração, educada no movimento dos d i - postas nos anos do governo Nixon. Como observa Jon Wiener em seu sempre
reitos civis, teria pensado em ocupar primeiro os prédios e esperar que perspicaz blog TheNation.com, "operários e hippies — juntos, finalmente".
a polícia colocasse todos nós porta afora na base de cacetadas. (Hoje, De fato. Quem não se comoveu quando o presidente da AFL-CIO*, R i -
os policiais preferem gás de pimenta e "técnicas não letais".) E m 1965, chard Trumka - que trouxe mineiros de carvão para Wall Street em 1989
quando eu tinha apenas dezoito anos e participava da equipe nacional durante uma greve cruel, mas bem-sucedida, contra a Pittston Coal Com-
do movimento Students for a Democratic Society [Estudantes para uma pany - , convocou seus homens e mulheres robustos para "montai guarda" -

Sociedade Democrática], planejei uma ocupação do Chase Manhattan no Zuccotti Park, em vista do esperado ataque da polícia de Nova York?
Bank, considerado "parceiro do apartheid '' por conta de seu papel cen-
1
Ainda que velhos radicais como eu sejam propensos a declarar como
tral no financiamento da África do Sul depois do massacre de manifes- messias qualquer recém-nascido, essa criança tem o sinal do arco-íris.
tantes pacíficos. Foi o primeiro protesto em Wall Street em uma geração. Acredito que estamos vivenciando o renascimento das qualidades que de-
A i n d a acho que tomar o comando dos arranha-céus é uma ideia finiram de modo tão marcante as pessoas comuns da geração de meus pais
esplêndida, mas para u m estágio mais avançado da luta. Até o mo- (migrantes e grevistas da crise de 1929): uma compaixão e solidariedade
mento, a genialidade do Occupy Wall Street é o fato de ter libertado
alguns dos imóveis mais caros do mundo e transformado u m a praça
* A m e r i c a n Federation of L a b o r / C o n g r e s s of Industrial Organizations [Federação A m e -
privada em u m magnético e catalisador espaço público de protestos.
r i c a n a do Trabalho/Congresso de Organizações Industriais]. (N. E.)
42 | Occupy Mike Davis | 43

generosas e espontâneas baseadas em uma ética perigosamente igualitária. amarras e escalar os muros que separam o espaço não usado das neces-
Pare e dê carona a uma família. Jamais fure uma greve trabalhista, mesmo sidades humanas urgentes.
se sua família não puder pagar o aluguel. Compartilhe seu último cigarro Terceiro, fiquem atentos à verdadeira recompensa. A grande ques-
com um estranho. Roube leite quando não houver para seus filhos e dê tão não é subir os impostos dos ricos ou realizar uma melhor regula-
metade para as crianças do vizinho (isso foi o que minha própria mãe fez mentação dos bancos. Trata-se da democracia económica - o direito de
repetidas vezes em 1936). Ouça atentamente às pessoas sábias de verdade, as pessoas comuns tomarem macrodecisões sobre investimento social,
que perderam tudo menos a dignidade. Cultive a generosidade dó "nós". taxas de juros, fluxo de capital, criação de empregos, aquecimento global
O que quero dizer, suponho, é que me sinto extremamente impacta- e afins. Se o debate não for sobre o poder económico, ele é irrelevante.
do por aqueles que se juntaram para defender as ocupações apesar das d i - Quarto, o movimento deve sobreviver ao inverno para combater o
ferenças significativas de idade, classe social e raça. E , da mesma maneira, poder na próxima primavera. As ruas são frias em janeiro. Bloomberg e
adoro as crianças inquietas que estão prontas para encarar o próximo i n - todos os outros prefeitos e autoridades locais estão contando com um i n -
verno e passar frio nas ruas, assim como seus irmãos e irmãs desabrigados. verno rigoroso para acabar com os protestos. Por isso é muito importante
Mas voltemos à estratégia: qual o próximo elo na corrente (no sen- reforçar as ocupações durante as férias de Natal. Vistam seus casacos.
tido de Lenin) que precisa ser apreendido? Até que ponto é imperativo Por fim, precisamos nos acalmar - o itinerário do protesto atual é
para as plantas selvagens formar uma convenção, assumir demandas totalmente imprevisível. Mas, quando se ergue u m para-raios, não deve
programáticas e, dessa forma, colocar a si próprias no leilão das elei- causar surpresa que afinal caia u m relâmpago.
ções de 2012? Obama e os democratas vão certamente, e talvez deses- Banqueiros entrevistados recentemente pelo The New York Times
peradamente, precisar de sua energia e autenticidade. parecem considerar os protestos do Occupy pouco mais do que u m incómo-
Mas é improvável que os "ocupas" coloquem à venda a si mesmos do baseado, segundo eles, numa compreensão mdimentar do setor financei-
ou ao seu extraordinário processo de auto-organização. Pessoalmente, ro. Eles deveriam ser mais humildes. N a verdade, deveriam tremer diante
tendo para a posição anarquista e seus imperativos óbvios. da imagem da carreta de munições*. Quatro milhões e meio de empregos na
Primeiro, exponham a dor dos 99%, levem Wall Street a julgamento. área industrial foram perdidos nos Estados Unidos desde 2000, e uma ge-
Tragam Harrisburg, Laredo, Riverside, Camden, Flint, Gallup e Hooly ração inteira de recém-graduados encara agora a mais alta mobilidade des-
Springs para o centro financeiro de Nova York. Confrontem os predadores cendente da história do país. Desde 1987, afro-americanos perderam mais
com suas vítimas. U m tribunal nacional sobre o genocídio económico. da metade de seu patrimônio líquido; os latinos, inacreditáveis dois terços.
Segundo, continuem a democratizar e ocupar produtivamente o Arruinar o sonho americano e as pessoas comuns será extrema-
espaço público (isto é, reivindicar os bens comuns). O veterano historia- mente prejudicial para vocês. Ou, como Nada explica aos agressores
dor e ativista Mark Naison, do Bronx, propôs u m plano arrojado para imprudentes no excelente filme de Carpenter: " V i m aqui para mascar
transformar os espaços degradados e abandonados de Nova York em re- chiclete e quebrar tudo... e meus chicletes acabaram"**.
cursos de sobrevivência (jardins, áreas de acampamento, playgrounds)
para desabrigados e desempregados. Os manifestantes do Occupy em No original, tumbril, equivalente inglês à charrette francesa: carroça usada por c a m -
todo o país agora sabem como é ser u m desabrigado e não poder dormir poneses - durante as guerras, foi bastante utilizada p a r a transportar munições e, n a
Revolução Francesa, serviu também para conduzir os prisioneiros à g u i l h o t i n a . (N. E.)
em parques ou em uma barraca. Mais uma razão para arrebentar as
* Eles Vivem {TheyLiue), filme de 1988 dirigido por John Carpenter. ( N . E.)
Amar uma ideia 1

Vladimir Safatle

Que tempos são estes,/ em que uma conversa

é quase um crime,/por incluir/ o já explícito?

P a u l C e l a n , " U m a folha, desarvorada, p a r a Bertolt B r e c h t "

O espaço do universal

O q u e v o c ê s estão f a z e n d o a q u i ? E s s a m e p a r e c e u m a b o a m a -
n e i r a de começar. Até p o r q u e n ã o são p o u c o s os q u e d i z e m que v o -
Acampamento do movimento Occupy London na praça Finsbury,
cês n ã o s a b e m a r e s p o s t a . M a s , p a r a m i m , se h á a l g u é m q u e sabe
Londres, em novembro de 2011, Foto de Alan Denney.
o que f a z são v o c ê s . N a v e r d a d e , v o c ê s são p e ç a s d a e n g r e n a g e m

Transcrição de u m a conferência improvisada no Vale do Anhangabaú, em outubro de


2011, a pedido de estudantes que se mobilizaram através do movimento Ocupa Sampa.
O texto guarda seu caráter oral, acrescido em alguns pontos, para esta edição, de trechos
que escrevi sobre as manifestações de 2011.
46 | Occupy V l a d i m i r Safatle | 47

que se m o n t o u de m a n e i r a c o m p l e t a m e n t e i n e s p e r a d a e imprevisível E s t a é a força i m p r e s s i o n a n t e das ideias: elas e x p l o d e m contex-


e m várias p a r t e s do m u n d o . E x i s t e m certos m o m e n t o s n a história e m tos, dão novas configurações p a r a u m a relação r a d i c a l e f u n d a m e n t a l
que u m a c o n t e c i m e n t o aparentemente l o c a l i z a d o , r e g i o n a l , t e m a for- de i g u a l d a d e . M a s p o r que é interessante l e m b r a r disso agora? T a l v e z
ça de m o b i l i z a r u m a série de outros processos que se d e s e n c a d e i a m p o r q u e , de c e r t a m a n e i r a , seja o que vocês f a z e m a q u i . Vocês p r o c u r a m
e m diversas p a r t e s do m u n d o . O u seja, as ideias, q u a n d o c o m e ç a m a fazer c o m que u m a i d e i a que apareceu i n i c i a l m e n t e e m u m l u g a r deter-
c i r c u l a r , d e s c o n h e c e m as limitações do espaço, pois têm a força p a r a m i n a d o - m a i s precisamente, n a Tunísia, c o m suas manifestações p o -
c o n s t r u i r u m novo. E , de c e r t a f o r m a , vocês a q u i são peças de u m a pulares c o n t r a a d i t a d u r a B e n A l i , a n i m a d a s p o r slogans como " O povo
i d e i a que aos poucos constrói u m novo espaço p o r m e i o dessas m o b i - exige" - comece a c i r c u l a r de f o r m a t a l que possa m o b i l i z a r populações
lizações m u n d i a i s e m cidades c o m o N o v a Y o r k , C a i r o , Túnis, M a d r i , absolutamente dispersas e diferentes e m torno de u m a noção central.
R o m a , S a n t i a g o e a g o r a São P a u l o . A noção de que "nossa d e m o c r a c i a não existe a i n d a , nossa d e m o c r a c i a

L e m b r o - m e de u m exemplo que expõe claramente a m a n e i - a i n d a não chegou, nós a i n d a esperamos u m a d e m o c r a c i a p o r v i r " .

r a como u m a i d e i a pode i g n o r a r seu espaço o r i g i n a l . N o início do


século X I X , Napoleão e n v i o u tropas à colónia do H a i t i . 0 objetivo Democracia por vir
era r e t o m a r o poder d a m ã o de escravos rebelados comandados p o r
Toussaint L ' 0 u v e r t u r e e, c o m isso, r e i n s t a u r a r a escravidão. N u m e s t u - O r e g i m e que nos governa pode não ser u m a d i t a d u r a n e m u m
do clássico, C y r i l James c o n t a o m o m e n t o e m que os soldados franceses, sistema totalitário, m a s a i n d a não é u m a d e m o c r a c i a . E n e n h u m de
imbuídos dos ideais d a Revolução F r a n c e s a , o u v e m a " M a r s e l h e s a " ser nós quer v i v e r nesse l i m b o , no purgatório entre u m r e g i m e de absoluto
c a n t a d a por seus oponentes, os negros. Desnorteados, os franceses se a u t o r i t a r i s m o e u m a d e m o c r a c i a esperada. Não queremos u m a d e m o -
p e r g u n t a m como era possível o u v i r s u a própria voz v i n d a do outro l a d o c r a c i a e m processo contínuo, incessante, de degradação, que já nasce
d a b a t a l h a . A f i n a l , c o n t r a q u e m eles estavam l u t a n d o , a não ser c o n t r a v e l h a . P o r isso, q u a n d o as manifestações de ocupação i n s i s t e m que a i n -
seus próprios ideais?* d a f a l t a m u i t o p a r a alcançarmos a d e m o c r a c i a r e a l , elas c o l o c a m u m a
A q u e l a experiência foi decisiva p a r a quebrar-lhes o espírito de c o m - questão que até o momento não p o d i a ter direito de c i d a d a n i a , p o r q u e
bate. A derrota foi u m a consequência n a t u r a l . Esse pequeno fato histórico nos e n s i n a r a m que, se c r i t i c a r m o s a d e m o c r a c i a p a r l a m e n t a r t a l como
nos ensina o que acontece quando u m a ideia encontra seu próprio tempo ela f u n c i o n a hoje, estaremos, no f u n d o , fazendo a defesa de a l g u m a for-
e constrói u m novo espaço. E l a demonstra que estava presente em vários m a v e l a d a de a u t o r i t a r i s m o . Q u a n t o s não se c o m p r a z e m e m nos o l h a r e
lugares, à espera do melhor momento p a r a dizer claramente seu nome. dizer: o que vocês querem? Vocês não q u e r e m u m E s t a d o democrático
Q u a n d o os franceses ouvem sua própria música v i n d a do campo i n i m i g o , de direito? Então vocês q u e r e m o quê?
eles, no fundo, descobrem que não são seus verdadeiros autores. Q u e m a N o entanto, se há algo que a v e r d a d e i r a política democrática nos
compôs foi u m a ideia que usa os povos p a r a se expressar. Q u a n d o isso fica exige é só falar de democracia no tempo f u t u r o , só f a l a r de democracia
evidente, u m momento histórico se abre, impulsionado pela efetivação de como democracia p o r v i r . Q u a n d o se acredita que a democracia já está
exigências de universalidade. r e a l i z a d a no nosso ordenamento jurídico, já está r e a l i z a d a no nosso E s -
tado, n a situação social presente, então todas as imperfeições do presente
g a n h a m o peso d a eternidade, a p a r e n t a m ser eternas e impossíveis de
C. L . R. James, Os jacobinos negros (São Paulo, Boitempo, 2000). (N. E.)
48 | Occupy V l a d i m i r Safatle | 49

superar. N a verdade, parece ser c r i m i n o s o tentar superá-las sem respei- f i n a n c i a d a s p o r estes. G o m o disse o presidente islandês Ólafur R a g n a r
t a r os procedimentos jurídico-normativos criados, n a m a i o r i a das vezes, Grímsson: " A Islândia é u m a d e m o c r a c i a , não u m s i s t e m a f i n a n c e i r o " .
exatamente p a r a que n e n h u m a superação r e a l seja efetiva. O interessante é que, c o m isso, saiu-se dos impasses d a d e m o c r a c i a
É essa consciência de que as imperfeições do presente g a n h a r a m p a r l a m e n t a r p a r a d a r u m passo decisivo e m direção a u m a d e m o c r a -
o peso d a eternidade que levou manifestantes no Reino U n i d o , n a E s p a - c i a plebiscitária c a p a z de i n s t i t u c i o n a l i z a r a manifestação necessária
n h a e n a França a e x i g i r e m " d e m o c r a c i a r e a l " . Vocês p o d e m se p e r g u n - da soberania popular.
t a r o que há de fictício n a democracia de países que aprendemos a ver E t a l processo que nos s i t u a nas vias de u m a d e m o c r a c i a r e a l .
como exemplos de sistemas políticos consolidados. P o r que largas p a r - E l e é a condição p r i m e i r a p a r a sair d a crise, pois a v e r d a d e i r a questão
celas de sua população compreendem que há algo no jogo democrático que esta nos coloca é política: " Q u e r e g i m e político é esse que p e r m i t i u
aparentemente reduzido exatamente à condição de mero jogo? t a m a n h o descalabro n a c a l a d a d a noite?".
T a l v e z os m a n i f e s t a n t e s t e n h a m entendido que a d e m o c r a c i a
p a r l a m e n t a r é i n c a p a z de i m p o r l i m i t e s e r e s i s t i r aos interesses do sis- Pensar é a melhor maneira de agir
t e m a f i n a n c e i r o . E l a é i n c a p a z de defender as populações q u a n d o os
agentes f i n a n c e i r o s c o m e ç a m a operar, de m o d o cínico, c l a r o , a p a r t i r N o entanto, ao colocar questões dessa n a t u r e z a é necessário de
dos princípios de u m c a p i t a l i s m o de espoliação dos recursos públicos. fato estar disposto a d i s c u t i r . Esse é u m ponto extremamente interes-
Não é p o r o u t r a razão que se ouve, c a d a vez m a i s , a afirmação de sante, porque q u a n d o vocês a f i r m a m "nós queremos d i s c u t i r " , outros
que a alternância de p a r t i d o s no p o d e r não i m p l i c a m a i s a l t e r n a t i v a s logo respondem "eis a p r o v a de que eles não s a b e m o que querem". P o r
de modelos de compreensão dos conflitos e políticas sociais. P o r isso, exemplo, observem que interessante, q u e m passa p o r a q u i não vê n e -
o cansaço e m relação aos p a r t i d o s t r a d i c i o n a i s não é s i n a l do esgo- n h u m a p a l a v r a de o r d e m , n e n h u m a p r o p o s t a no sentido forte do t e r m o ,
t a m e n t o d a política. N a v e r d a d e , é o s i n t o m a m a i s evidente de u m a "nós queremos isso, isso e isso!". E m princípio, pode parecer u m p r o b l e -
d e m a n d a de política, de u m a d e m a n d a de politização d a e c o n o m i a . m a , mas eu d i r i a que se t r a t a de u m a grande v i r t u d e .
E m momentos assim, devemos l e m b r a r que a democracia p a r l a - A t u a l m e n t e , b o a p a r t e d a i m p r e n s a m u n d i a l gosta de transfor-
m e n t a r não é o último capítulo d a democracia efetiva. A Islândia t e m má-los e m c a r i c a t u r a s , e m sonhadores vazios sem a dimensão concreta
algo a nos ensinar sobre isso. U m dos primeiros países atingidos pela c r i - dos problemas. C o m o se esses arautos d a o r d e m tivessem a l g u m a i d e i a
se económica de 2 0 0 8 , a Islândia decidiu que o uso do d i n h e i r o público realmente sensata de como sair d a crise a t u a l . N a verdade, eles n e m
p a r a i n d e n i z a r os bancos seria objeto de plebiscito. M a n e i r a de recuperar sequer s a b e m quais são os verdadeiros problemas, já que preferem, p o r
u m conceito decisivo, mas b e m esquecido, d a democracia: a soberania exemplo, nos l e v a r a crer que a crise grega não é o resultado d a desre-
popular. O resultado foi o apoio massivo ao calote. gulamentação do sistema financeiro e de seus ataques especulativos,
M e s m o sabendo dos riscos de t a l decisão, o p o v o islandês p r e f e r i u mas d a corrupção e d a "gastança" pública. Nesse sentido, n a d a m a i s
r e a l i z a r u m princípio básico d a s o b e r a n i a p o p u l a r : q u e m p a g a a orques- inteligente do que u m a p a u t a que afirme: "Queremos d i s c u t i r " .
t r a escolhe a música. Se a c o n t a v a i p a r a a população, é ela q u e m deve T r a t a - s e de d i z e r que, após décadas de repetição c o m p u l s i v a de
d e c i d i r o que fazer, e não u m conjunto de tecnocratas que terão seu e m - esquemas l i b e r a i s de análise s o c i o e c o n ó m i c a , não sabemos m a i s p e n -
prego g a r a n t i d o nos bancos ou de p a r l a m e n t a r e s cujas c a m p a n h a s são sar e u s a r a r a d i c a l i d a d e do p e n s a m e n t o p a r a q u e s t i o n a r pressupôs-
V l a d i m i r Safatle | 51
50 I Occupy

tos, r e c o n s t r u i r p r o b l e m a s , r e c o l o c a r hipóteses n a m e s a . M a s , c o m o dizer que essa ação não é u m verdadeiro " a g i r " , pois é i n c a p a z de m u d a r
objetivo de e n c o n t r a r u m a v e r d a d e i r a saída, devemos p r i m e i r o des- ás possibilidades de escolha, previamente determinadas. E l a não p r o d u z
t r u i r as pseudocertezas que l i m i t a m a p r o d u t i v i d a d e do pensamento. seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas já postos à
Q u e m não p e n s a c o n t r a si n u n c a ultrapassará os p r o b l e m a s nos q u a i s mesa. P o r isso, essa ação não é livre.
se enredou. Q u a n d o realmente pensamos, conseguimos i r além dessa liberdade
Isso é o que alguns realmente temem: que vocês aprendam a força r e d u z i d a a u m simples livre-arbítrio, cujas escolhas são feitas no interior
da crítica. Quando p e r g u n t a m " a f i n a l , o que vocês querem?", é só p a r a de u m q u a d r o imposto, e não p r o d u z i d o p o r cada u m . P o r isso, o p e n -
dizer, após ouvir a resposta, "mas vocês estão loucos". Porém, toda grande samento, quando aparece, exige que t o d a ação não efetiva pare, c o m o
ideia apareceu, p a r a os que temem o futuro, como loucura. intuito de que o verdadeiro a g i r se manifeste, Nessas horas, entendemos
Se vocês m e p e r m i t e m , eu gostaria de fazer u m pequeno parêntese como, m u i t a s vezes, agimos p a r a não pensar. Pensar de verdade significa
e m direção à história d a filosofia. E m Carta sobre o humanismo*, Martin pensar e m sua r a d i c a l i d a d e , u t i l i z a r a força crítica e r a d i c a l do pensa-
Heidegger é confrontado c o m u m a p e r g u n t a a respeito d a relação entre mento. Q u a n d o a força crítica do pensamento começa a agir, todas as

pensamento e p r a x i s . M a r x já dissera que a função d a filosofia era t r a n s - respostas se t o r n a m possíveis e alternativas novas aparecem n a mesa.

f o r m a r o m u n d o , e não simplesmente interpretá-lo**. Heidegger faz u m Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse,

adendo de r a r a precisão: " O pensamento age quando pensa". pois p a r a que novas propostas apareçam é necessário que saibamos, a f i -

Esse a g i r próprio ao pensamento talvez seja o m a i s difícil e de- n a l de contas, quais são os verdadeiros problemas.

cisivo. Não se t r a t a d a v e l h a crença de o pensamento ser, no f u n d o ,


u m subterfúgio c o n t r a a ação, u m a compensação q u a n d o não somos O desencanto como afeto central do político
capazes de agir. Se podemos d i z e r que o pensamento age q u a n d o p e n -
sa é porque ele é a única atividade c o m a força de m o d i f i c a r nossa M a s p o r trás d a necessidade de discussão, de reconstrução do c a -
compreensão do que, de fato, é u m p r o b l e m a , de q u a l é o verdadeiro ráter r e a l d a d e m o c r a c i a , há u m afeto que vocês devem saber g u a r d a r
p r o b l e m a que temos d i a n t e de nós e que nos i m p u l s i o n a a agir. É o sempre, p o r q u e é o m o t o r de t o d a crítica. Trata-se do p r o f u n d o s e n t i -
pensamento que nos p e r m i t e compreender a existência de u m a série de mento de m a l - e s t a r e desencanto que todos vocês sentem e que os faz
ações que são, simplesmente, lances no i n t e r i o r de u m jogo cujo r e s u l - estar a q u i . E a angústia do desencanto que nos une, que faz c o m que o
tado já está decidido de antemão. mesmo sentimento apareça e m Túnis e São P a u l o , C a i r o e N o v a Y o r k .
A sociedade capitalista contemporânea p r o c u r a dar aos sujeitos a Esse é o sentimento m a i s verdadeiro que temos, aquele c o m m a i s
impressão de possibilidades i n f i n i t a s , de que eles p o d e m decidir sobre força p a r a nos colocar e m ação. N o entanto, vivemos n u m a sociedade e m
tudo a todo momento. U m pouco como as escolhas de consumo, cada vez que o desencanto e o m a l - e s t a r são vistos imediatamente como sintomas
m a i s " c u s t o m i z a d a s " e p a r t i c u l a r i z a d a s . N o entanto, talvez seja correio de a l g u m a doença que deve ser t r a t a d a o m a i s rápido possível, n e m que
seja preciso dopar todos c o m antidepressivos ou qualquer coisa dessa n a -
tureza. M a s é isso que vocês têm de m a i s concreto, de m a i s r e a l . Esse é o
* São Paulo, Centauro, 2005. (N. E.)
índice de que há algo errado, não c o m vocês como indivíduos, mas c o m a
** K a r l M a r x , 'Ad Feuerbach", em K a r l M a r x e Friedrich Engels, A ideologia alemã. (São
Paulo, Boitempo, 2007), p. 535. (N. E.) v i d a social d a q u a l f a z e m parte. Por essa razão, é m u i t o i m p o r t a n t e que
52 | Occupy V l a d i m i r Safatle | 53

vocês sejam capazes de se m o b i l i z a r p a r a dizer que esse mal-estar não A geração que quebrou o mundo
é u m p r o b l e m a i n d i v i d u a l , é u m problema d a sociedade, d a v i d a social.
Nesse sentido, eu d i r i a que cada época t e m u m afeto que a c a r a c - T e r m i n o l e m b r a n d o o seguinte: hoje, n e m acredito, estou chegando
t e r i z a . N o s anos 1 9 9 0 , foi a euforia, m a r c a de u m m u n d o supostamente aos q u a r e n t a anos. L e m b r o que n a idade de vocês, dezoito, dezenove,
sem fronteiras, pós-ideológico e a n i m a d o pelas promessas d a g l o b a l i - vinte anos, costumava o u v i r que não h a v i a m a i s l u t a política a ser feita,
zação c a p i t a l i s t a . N a p r i m e i r a década do século X X I , os ataques t e r r o - que o m u n d o estava globalizado e o que v a l i a era a eficácia, a c a p a c i -
ristas aos E U A c o n s e g u i r a m t r a n s f o r m a r o m e d o e m afeto c e n t r a l d a dade de a s s u m i r riscos, de ser criativo, inovador, de preferência em u m a
v i d a social. O discurso político reduziu-se a pregações, c a d a vez m a i s agência de publicidade ou no departamento de m a r k e t i n g de u m a g r a n -
paranóicas, sobre segurança, p e r d a de identidade e f i m necessário d a de empresa. Se assumíssemos essa n o v a realidade, entraríamos e m u m
solidariedade s o c i a l . f u t u r o r a d i a n t e onde só h a v e r i a vencedores e raves, onde os que ficassem
A g o r a , porém, vemos u m a mudança f u n d a m e n t a l n a dimensão p r a trás t e r i a m , no fundo, u m p r o b l e m a m o r a l , pois não h a v i a m tido a
afetiva: graças a vocês, novos laços sociais paulatinamente apareceram, coragem de a s s u m i r riscos, a necessidade de inovação e coisas do tipo.
levando em conta a força p r o d u t i v a do desencanto. Esse é u m dado novo. B e m , v e j a m que interessante. E x a t a m e n t e essas pessoas que o u v i -
Desde o final dos anos 1970, as sociedades capitalistas não t i n h a m m a i s r a m e a c r e d i t a r a m e m t a l discurso há v i n t e anos e que, como eu, estão
o direito de acreditar n a p r o d u t i v i d a d e do desencanto. Fomos ensinados hoje perto dos q u a r e n t a anos f o r a m t r a b a l h a r no sistema financeiro e
a ver nele u m afeto exclusivamente ligado aos fracassados, depressivos e c o n s e g u i r a m c r i a r u m a crise m a i o r que a de 1929, d a q u a l ni nguém
ressentidos; n u n c a aos produtores de novas formas. sabe sair. O u seja, eles simplesmente c o n s e g u i r a m q u e b r a r o m u n d o .
E m Suave ê a noite*, Scott F i t z g e r a l d apresenta u m de seus perso- P a r a essa geração, não era possível que o f u t u r o fosse diferente do
nagens dizendo que sua segurança i n t a c t a era a m a r c a de sua i n c o m p l e - presente. E l a não a c r e d i t a v a , em hipótese n e n h u m a , n a capacidade de
tude. T a l personagem n u n c a sentira a quebra de suas certezas, a d e s a r t i - transformação d a participação p o p u l a r , considerava isso chavão i d e o -
culação de seus valores, por isso continuava incompleto. E l e não t i n h a o lógico no l i m i t e do ridículo. C o m o a s s i m participação p o p u l a r ? Isso não
desencanto necessário p a r a explorai , s e m medo, a plasticidade do novo.
-
existe m a i s ! Manifestações, isso não existe! Vocês não d e v e r i a m exis-
Não temos m a i s esse p r o b l e m a , pois sabemos que todo v e r d a - tir. P o r isso, essa geração é a p r i m e i r a a d i z e r que vocês não s a b e m o
deiro m o v i m e n t o sempre c o m e ç a c o m a m e s m a frase: "Não acre- que f a z e m , que vocês são sonhadores que, no m á x i m o , p o d e m aparecer
d i t a m o s m a i s " . Não acreditamos m a i s nas promessas de desen- como f u n d o de u m c o m e r c i a l de jeans. P o i s , se vocês m o s t r a r e m que
v o l v i m e n t o s o c i a l , de resolução de conflitos dentro dos l i m i t e s d a a força crítica do pensamento é capaz de r e c o n s t r u i r nossas relações
d e m o c r a c i a p a r l a m e n t a r , de c o n s u m o p a r a todos. S e m p r e d e m o r a p a r a sociais, então eles se perguntarão: mas o que nós fizemos d u r a n t e todo
que t a l frase se t r a n s f o r m e e m u m : " A g o r a sabemos o que queremos". esse tempo? C o m o fomos capazes de a c r e d i t a r p i a m e n t e no que agora
T a l d e m o r a é o t e m p o que o desencanto exige p a r a m a t u r a r s u a p r o - desmorona?
d u t i v i d a d e . C o m o sempre, essa maturação a c a b a chegando quando A g o r a , v e j a m que coisa interessante. Se tivermos u m p o u c o de
menos esperamos. c u i d a d o , notaremos que as manifestações que o c o r r e r a m este ano t r o u -
x e r a m pautas extremamente precisas. S a n t i a g o do C h i l e colocou 4 0 0

* Rio de Janeiro, Best Bolso, 2008. (N. E.) m i l pessoas n a r u a p a r a p e d i r educação pública de q u a l i d a d e e g r a t u i t a
54 | Occupy V l a d i m i r Safatle | 55

p a r a todos. E s s e é u m belo exemplo. E i s u m a p r o p o s t a que parece ser Vocês são o p r i m e i r o passo de u m grande m o v i m e n t o que só co-
m u i t o r e g i o n a l , m a s que no f u n d o m o d i f i c a r a d i c a l m e n t e a e s t r u t u r a meçou agora. Esses processos são lentos. N o entanto, como d i z F r e u d ,
económica do país. P a r a g a r a n t i r a educação pública, o E s t a d o t e m de " a razão pode falar b a i x o , mas não se cala". A g o r a , percebemos algo
ter m a i s d i n h e i r o . E como ele faz isso? T a x a n d o m a i s dos ricos, que f u n d a m e n t a l : não dá m a i s p a r a confiar e m partidos, sindicatos, estru-

não p a g a m i m p o s t o s e m l u g a r n e n h u m d a América L a t i n a . N o f u n d o , turas governamentais que p o d e m ter suas funções e m certos momentos,

u m a p r o p o s t a como essa significa u m a redistribuição de r e n d a r a d i c a l mas não têm n e n h u m a capacidade de ressoar a verdadeira necessidade

p o r meio do uso democrático do E s t a d o como a p a r e l h o de consolidação de rupturas. V e j a m , por exemplo, o caso d a Grécia: q u a l p a r t i d o governa

de serviços públicos que m e l h o r e m a v i d a do cidadão. O u seja, u m a a Grécia? U m clássico p a r t i d o social-democrata ( M o v i m e n t o Socialista

p r o p o s t a e x t r e m a m e n t e precisa. Pan-Helênico, P a s o k n a sigla original), e m princípio de esquerda. Q u a l


p a r t i d o governa a E s p a n h a ? U m clássico p a r t i d o social-democrata (Par-
V e j a m , p o r exemplo, o que d i z e m os Indignados n a E s p a n h a : " N o s -
tido S o c i a l i s t a Operário E s p a n h o l , P S O E ) , dito de esquerda. C o m u m a
sa democracia p a r l a m e n t a r f a l i u junto c o m o sistema económico que ela
esquerda desse tipo, ninguém.precisa de direita. Todos j o g a m no mesmo
sustentava". P o r que a crise económica ficou desse t a m a n h o ? Que m a l d i -
t i m e . A única diferença é que u m faz isso c o m dor no coração, " O l h a v o u
to sistema político é esse que permite u m a crise tão grande, que não con-
ter de arrebentar seu salário, não gostaria disso!", enquanto o outro o faz
segue e n q u a d r a r a a l a m a i s terrorista do sistema financeiro? Façam esse
cantando "Você era u m funcionário público inútil", e por aí v a i .
exercício, acessem a internet e peguem os balanços dos bancos que esta-
v a m quebrados há três anos. H o j e , todos estão extremamente superavi- F o r a isso, a diferença é m í n i m a , retórica. Isso s i g n i f i c a simples-

tários. D e onde v e m esse dinheiro? V e m do E s t a d o ! Então devemos nos mente o quê? A época e m que nos mobilizávamos tendo e m v i s t a a

p e r g u n t a r que tipo de sistema político é esse que é i n c a p a z de colocar e s t r u t u r a partidária a c a b o u , a c a b o u r a d i c a l m e n t e . Pode ser que a i n d a

contra a parede q u e m destrói a v i d a , a propriedade. Fala-se e m defesa não saibamos o que v a i aparecer, o que não v a i acontecer, como as

d a propriedade p r i v a d a . C o m o b e m l e m b r o u Slavoj Èizek, esses bancos coisas se darão d a q u i p a r a a frente. P o d e m o s não saber o que v a i a c o n -

c o n s e g u i r a m destruir a propriedade p r i v a d a de u m número m a i o r de tecer no f u t u r o , que t i p o de n o v a organização política aparecerá, m a s

pessoas do que L e n i n t i n h a tentado fazer e m 1917. Alguém devia ter sabemos m u i t o b e m onde acontecimentos não ocorrerão, C o m certeza

colocado esse pessoal p a r a t r a b a l h a r p a r a nós. não nas dinâmicas partidárias. Você t e m u m a força de pressão e n -
q u a n t o está fora do jogo partidário. Q u a n d o e n t r a r m o s nele, t a l força
V e j a m b e m , as pautas são e x t r e m a m e n t e precisas e conscientes,
d i m i n u i . Então, conservem este espaço!
de u m a clareza e visão cirúrgica. E s t a é m a i s u m a demonstração de
q u a n d o o p e n s a m e n t o começa a agir: as pautas reais a p a r e c e m . D a q u i
a cinco anos vão se p e r g u n t a r " C o m o a c r e d i t a m o s d u r a n t e t a n t o t e m p o
que n e n h u m acontecimento r e a l pudesse o c o r r e r ? " D a q u i a cinco anos,
o nível de descontentamento e a insatisfação serão t a m a n h o s que vão
se p e r g u n t a r c o m o se acreditou d u r a n t e t a n t o t e m p o que a r o d a d a
história estava p a r a d a , que não h a v i a m u i t o m a i s a se esperar a não ser
u m a espécie de acerto gerencial de r o t a a p a r t i r dos princípios postos
pelo l i b e r a l i s m o económico.
Os rebeldes na rua: o Partido de Wall
Street encontra sua nêmesis*
David Harvey

O P a r t i d o de W a l l Street c o n t r o l o u os Estados U n i d o s sem d i f i c u l -


dades p o r tempo demais. D o m i n o u completamente (em oposição a p a r -
cialmente) as políticas dos presidentes p o r pelo menos q u a t r o décadas
( p a r a não d i z e r m a i s ) , independentemente de presidentes i n d i v i d u a i s
terem ou não sido seus agentes p o r vontade própria. C o r r o m p e u l e g a l -
mente o Congresso p o r meio d a dependência covarde dos políticos de
Centenas de manifestantes na Praça Tahrir, Egito a m b o s os p a r t i d o s e m relação ao poder do seu d i n h e i r o e ao acesso à
em fevereiro de 2011. Foto de Mona Sosh. mídia c o m e r c i a l que c o n t r o l a . Graças a nomeações feitas e aprovadas

Traduzido por João Alexandre Pesohanski a partir de "Rebels on the Street: The P a r -
ty of W a l l Street Meets its Nemesis", publicado originalmente no blog da Verso Books
(http://www.versobooks.com/blogs/777), em 28 out. 2011. Disponível também em www.
boitempoeditorial.wordpress.com/category/colaboracoes-especiais/david-harvey, (N. E.)
58 | Occupy D a v i d Harvey | 59

pelos presidentes e pelo Congresso, o P a r t i d o de W a l l Street d o m i n a alheio e desapropriar ao seu b e l - p r a z e r as pessoas de seus bens, a s s i m
m u i t o do aparato estatal, b e m c o m o o do Judiciário, e m p a r t i c u l a r a como n a l i b e r d a d e de s a q u e a r o m e i o a m b i e n t e p a r a seus benefícios

S u p r e m a C o r t e , cujas decisões partidárias estão crescentemente a favor i n d i v i d u a i s o u de classe.

dos interesses venais do d i n h e i r o , e m esferas tão diversas q u a n t o eleito- U m a vez no controle do aparato estatal, o P a r t i d o de W a l l Street
r a l , trabalhista, ambiental e comercial. c o s t u m a p r i v a t i z a r pequenas áreas promissoras c o m b a i x o valor de mer-
0 P a r t i d o de W a l l Street t e m u m princípio u n i v e r s a l de d o m i - cado p a r a a b r i r novas frentes p a r a a acumulação do capital. A r r a n j a es-
nação: não pode h a v e r n e n h u m adversário sério ao poder absoluto do quemas de subcontratação (o complexo m i l i t a r i n d u s t r i a l é u m exemplo

d i n h e i r o de d o m i n a r absolutamente. E esse poder t e m de ser exercido claro) e de tributação (subsídios ao agronegócio e baixos impostos sobre

c o m u m único' objetivo: seus detentores não devem apenas ter o privilé- os ganhos do capital) que lhe p e r m i t e m l i m p a r livremente os cofres pú-

gio de a c u m u l a r r i q u e z a sem f i m e à vontade, m a s t a m b é m o direito de blicos. E s t i m u l a de m a n e i r a deliberada sistemas regulatórios c o m p l i c a -

h e r d a r o p l a n e t a , c o m domínio direto o u i n d i r e t o d a t e r r a , de todos os dos e níveis surpreendentes de incompetência a d m i n i s t r a t i v a no resto do

seus recursos e das potencialidades p r o d u t i v a s que n e l a residem, b e m aparato estatal {vide a Agência de Proteção A m b i e n t a l sob R e a g a n , b e m

como de a s s u m i r o controle absoluto, d i r e t a o u i n d i r e t a m e n t e , sobre como a Agência Federal de Gestão de Emergências e o " b a i t a t r a b a l h o "

o t r a b a l h o e as potencialidades criativas de todos os outros que sejam de B r o w n sob Bush*), de m o d o a convencer u m público inerentemente
cético de que o E s t a d o não consegue ter u m papel construtivo ou de apoio
necessários. 0 resto d a h u m a n i d a d e se tornará supérfluo.
p a r a m e l h o r a r a v i d a c o t i d i a n a ou as perspectivas futuras das pessoas.
Esses princípios e práticas não s u r g e m de ganância i n d i v i d u a l ,
Por fim, u s a o monopólio d a violência, que todo E s t a d o soberano r e i v i n -
f a l t a de h o r i z o n t e o u abusos (por m a i s que todos esses o c o r r a m aos
d i c a , p a r a excluir o público do espaço público e p a r a atormentar, pôr
montes). E l e s f o r a m esculpidos no corpo político de nosso m u n d o p e l a
sob vigilância e, se necessário, c r i m i n a l i z a r e prender q u e m não aceitar
vontade coletiva de u m a classe c a p i t a l i s t a i n s t i g a d a pelas leis coercivas
amplamente suas ordens. E exímio nas práticas de tolerância repressiva
d a competição. Se m e u g r u p o de lobby gasta menos do que o seu, rece-
que p e r p e t u a m a ilusão de l i b e r d a d e de expressão, contanto que essa
berei menos favores. Se essa jurisdição gasta p a r a atender às necessida-
expressão não e x p o n h a implacavelmente a natureza verdadeira de seu
des das pessoas, ela será considerada menos competitiva.
projeto e o aparato repressivo sobre o q u a l repousa.
M u i t a s pessoas decentes estão presas a u m sistema que está c o m -
pletamente p o d r e . Se q u e r e m u m salário razoável, não têm o u t r a o p - O P a r t i d o de W a l l Street a r t i c u l a incessantemente a g u e r r a de

ção além de render-se à tentação do d i a b o : só estão " s e g u i n d o ordens", classes: " C l a r o que há u m a g u e r r a de classes", disse W a r r e n Buffett, "e

como n a f a m o s a frase de A d o l f E i c h m a n n , o u " f a z e n d o o que o sistema é m i n h a classe, a dos ricos, que a está fazendo, e nós estamos vencen-

pede", como se d i z hoje e m d i a , aceitando os princípios e práticas bár-


baros e i m o r a i s do P a r t i d o de W a l l Street. A s leis coercivas d a c o m p e - * N a gestão de Ronald Reagan (1981-1989), a Agência de Proteção Ambiental, respon-
sável pela proteção da natureza, manipulou decisões técnicas para favorecer empresas
tição forçam todos nós, e m diferentes níveis, a obedecer às regras desse poluentes. A Agência Federal de Gestão de Emergências, que monitora e responde por
sistema c r u e l e insensível. O p r o b l e m a é sistémico, não i n d i v i d u a l . situações críticas relacionadas a catástrofes naturais, foi incapaz de conter e minimizar os
danos humanos e materiais decorrentes do furacão K a t r i n a , em 2005, durante o governo
Os favorecidos ideais de l i b e r d a d e e a u t o n o m i a do p a r t i d o , g a r a n - de George W. Bush (2001-2009). Apesar do fracasso da agência em lidar com o furacão,
tidos pelos direitos à p r o p r i e d a d e p r i v a d a , ao l i v r e - m e r c a d o e ao l i v r e - que destruiu bairros inteiros de Nova Orleans e deixou u m saldo de quase 2 m i l pessoas
mortas e desaparecidas, Bush declarou que seu diretor, Michael Brown, havia feito um
-comércio, n a r e a l i d a d e se t r a d u z e m n o direito de explorar o t r a b a l h o "baita trabalho". (N. T.)
60 | Occupy David H a r v e y | 61

do". E m g r a n d e p a r t e , essa g u e r r a é a r t i c u l a d a e m segredo, atrás de der coletivo de corpos no espaço público c o n t i n u a sendo o i n s t r u m e n t o
u m a série de máscaras e obscurecimentos por meio dos quais os planos m a i s efetivo de oposição q u a n d o o acesso a todos os outros meios está
e objetivos do P a r t i d o de W a l l Street se disfarçam. bloqueado. A praça T a h r i r m o s t r o u ao m u n d o u m a verdade óbvia: são
O P a r t i d o de W a l l Street sabe m u i t o b e m que q u a n d o questões os corpos nas r u a s e praças, não o b a l b u c i o de sentimentos no T w i t t e r
políticas e económicas p r o f u n d a s se t r a n s f o r m a m e m assuntos c u l t u - ou F a c e b o o k , que r e a l m e n t e i m p o r t a m .
r a i s não h á c o m o respondê-las. G e r a l m e n t e ele a c i o n a u m a enorme O objetivo desse m o v i m e n t o nos E s t a d o s U n i d o s é simples. D i z :
v a r i e d a d e de opiniões de especialistas cativos, e m s u a m a i o r p a r t e "Nós, as pessoas, estamos d e t e r m i n a d a s a r e t o m a r nosso país dos p o d e -
empregados nos i n s t i t u t o s de p e s q u i s a e n a s u n i v e r s i d a d e s que ele res do d i n h e i r o que a t u a l m e n t e o c o n t r o l a m . Nosso i n t u i t o é p r o v a r que
financia e e s p a l h a d o s n a m í d i a que ele c o n t r o l a , p a r a c r i a r c o n t r o - W a r r e n Buffett está enganado. S u a classe, os ricos, não v a i m a i s gover-
vérsias sobre todo t i p o de assunto que de fato não i m p o r t a e sugerir n a r sem oposição e n e m h e r d a r a u t o m a t i c a m e n t e a t e r r a . S u a classe, a
soluções p a r a questões que não e x i s t e m . E m u m m o m e n t o , só f a l a d a dos ricos, não está d e s t i n a d a a sempre vencer",
austeridade necessária a todas as outras pessoas p a r a t r a t a r do déficit D i z : "Somos os 9 9 % , Somos a m a i o r i a e essa m a i o r i a pode, deve
e, e m o u t r o , p r o p õ e a redução de s u a própria tributação sem se i m - e v a i prevalecer. U m a vez que todos os outros canais de expressão estão
p o r t a r c o m o i m p a c t o que isso p o s s a ter sobre o déficit. A única c o i s a fechados p a r a nós pelo poder do d i n h e i r o , não temos o u t r a opção a não
que n u n c a p o d e ser d e b a t i d a o u d i s c u t i d a a b e r t a m e n t e é a v e r d a d e i r a ser ocupar os parques, praças e ruas de nossas cidades até que nossas
n a t u r e z a d a g u e r r a de classes que ele t e m m a n t i d o de m o d o tão i n - opiniões sejam ouvidas e nossas necessidades atendidas".
cessante e c r u e l . D e s c r e v e r algo c o m o " g u e r r a de classes" s i g n i f i c a , n o P a r a ter êxito, o m o v i m e n t o p r e c i s a alcançar os 9 9 % . Isso ele
c l i m a político a t u a l e no j u l g a m e n t o de seus especialistas, colocar-se p o d e e está fazendo passo a passo. P r i m e i r o , h á todas as pessoas j o -
f o r a do espectro de considerações sérias e até m e s m o ser t i d o c o m o gadas n a miséria pelo desemprego e aquelas cujas casas e bens f o r a m
i m b e c i l o u sedicioso, o u estão sendo r e t i r a d o s p e l a f a l a n g e de W a l l Street. D e v e m se f o r m a r
M a s a g o r a , p e l a p r i m e i r a vez, há u m m o v i m e n t o explícito que grandes coalizões entre estudantes, i m i g r a n t e s , s u b e m p r e g a d o s e t o -
enfrenta o P a r t i d o de W a l l Street e seu m a i s p u r o p o d e r do d i n h e i r o , dos os que estão sob ameaça das políticas de a u s t e r i d a d e , t o t a l m e n -
A "streef [rua] de W a l l Street está sendo o c u p a d a - ó, h o r r o r dos h o r - te desnecessárias e d r a c o n i a n a s , i m p o s t a s à nação e ao m u n d o p a r a
rores - p o r outros! E s p a l h a n d o - s e de cidade e m cidade, as táticas do atender ao P a r t i d o de W a l l Street, Deve-se f o c a r nos níveis e s t a r r e -
O c c u p y W a l l Street são t o m a r u m espaço público c e n t r a l , u m p a r q u e cedores de exploração nos l o c a i s de t r a b a l h o - desde os empregados
ou u m a praça, próximo à localização de m u i t o s dos bastiões do poder domésticos i m i g r a n t e s , explorados tão c r u e l m e n t e n a c a s a dos r i c o s ,
e, colocando corpos h u m a n o s a l i , convertê-lo e m u m espaço político de até os funcionários de restaurantes e s c r a v i z a d o s p o r q u a s e n a d a n a
i g u a i s , u m l u g a r de discussão a b e r t a e debate sobre o que esse poder c o z i n h a dos estabelecimentos nos q u a i s os ricos c o m e m tão f a r t a m e n -

está fazendo e as melhores formas de se opor ao seu alcance. E s s a tá- te - e deve u n i r os t r a b a l h a d o r e s c r i a t i v o s e a r t i s t a s cujos talentos

t i c a , m a i s conspicuamente r e a n i m a d a nas lutas nobres e e m curso d a são tantas vezes t r a n s f o r m a d o s e m p r o d u t o s c o m e r c i a i s pelo g r a n d e

praça T a h r i r , no C a i r o , alastrou-se p o r todo o m u n d o (praça do S o l , p o d e r do d i n h e i r o ,

e m M a d r i , praça S y n t a g m a , e m A t e n a s , e agora as escadarias de S a i n t O m o v i m e n t o deve, a c i m a de t u d o , a t i n g i r todos os alienados,


P a u l , e m L o n d r e s , além d a própria W a l l Street). E l a m o s t r a como o p o - insatisfeitos e descontentes, todos que r e c o n h e c e m e sentem nas e n t r a -
62 | Occupy
David Harvey | 63

nhãs que há algo de m u i t o errado, que o sistema criado pelo P a r t i d o


de eleições t e m de ser c o n s i d e r a d a i n c o n s t i t u c i o n a l . A privatização de
de W a l l Street não é só bárbaro, antiético e m o r a l m e n t e errado, mas
c o n h e c i m e n t o e c u l t u r a p r e c i s a ser p r o i b i d a . A l i b e r d a d e de e x p l o r a r
t a m b é m está f a l i d o .
e e s p o l i a r as pessoas t e m de ser c o n t r o l a d a e, no fim, t o r n a d a i l e g a l .
Tudo isso t e m de ser u n i d o de m a n e i r a democrática e m u m a opo-
Os estadunidenses a c r e d i t a m n a i g u a l d a d e . P e s q u i s a s de o p i -
sição coerente, que t a m b é m deve contemplar livremente o que aparenta
nião pública m o s t r a m (independentemente da filiação partidária)
ser u m a cidade a l t e r n a t i v a , u m sistema político alternativo e, por fim,
que, p a r a a p o p u l a ç ã o , os 2 0 % m a i s ricos p o d e m ter razão e m r e i v i n -
u m a f o r m a a l t e r n a t i v a de organizar a produção, a distribuição e o con-
d i c a r 3 0 % d a r i q u e z a t o t a l . Q u e os 2 0 % m a i s r i c o s d e t e n h a m 8 5 % d a
sumo p a r a o benefício do povo. D o contrário, o f u t u r o dos jovens, que r i q u e z a é inaceitável. Q u e a m a i o r p a r t e desse m o n t a n t e seja c o n t r o -
se e n c a m i n h a p a r a u m a crescente dívida p r i v a d a e austeridade pública l a d a pelo 1% m a i s r i c o é t o t a l m e n t e inaceitável. O que o m o v i m e n t o
p r o f u n d a e m benefício do 1%, não pode ser considerado u m futuro. O c c u p y W a l l Street p r o p õ e é que nós, o p o v o dos E s t a d o s U n i d o s , nos
E m resposta ao movimento Occupy W a l l Street, o Estado, apoiado c o m p r o m e t a m o s a reverter esse nível de d e s i g u a l d a d e , não só a r i q u e -
pelo poder d a classe capitalista, t e m u m argumento surpreendente: ele, e z a ou os salários, m a s , e a i n d a m a i s i m p o r t a n t e , o poder político que
só ele, t e m o direito exclusivo de regular o espaço público e dele dispor. 0 essa d i s p a r i d a d e gera. O povo estadunidense t e m o r g u l h o , c o m razão,
público não t e m o direito c o m u m ao espaço público 1 C o m que direito os de s u a d e m o c r a c i a , m a s ela sempre esteve à mercê do poder c o r r o m -
prefeitos, os chefes depolícia, os oficiais militares e as autoridades do E s t a - pedor do c a p i t a l . A g o r a que ela é d o m i n a d a p o r esse poder, o t e m p o
do d i z e m p a r a nós, o povo, que eles podem determinar o que é público, e m de fazer o u t r a Revolução A m e r i c a n a , como Jefferson s u g e r i u há m u i t o
"nosso" espaço público, b e m como q u e m pode ocupá-lo e quando? Q u a n - t e m p o ser necessário, está se a p r o x i m a n d o : que seja b a s e a d a e m j u s -
do é que eles presumem expulsar-nos, o povo, de qualquer espaço que nós, tiça s o c i a l , i g u a l d a d e e u m a aproximação c u i d a d o s a e consciente d a
o povo, decidimos coletiva e pacificamente ocupar? Eles d i z e m que agem relação c o m a n a t u r e z a .
de acordo c o m o interesse público (e u s a m as leis p a r a prová-lo), mas nós
A l u t a que se c r i o u - o P o v o c o n t r a o P a r t i d o de W a l l Street - ê
somos o povo! Onde está "nosso interesse" em tudo isso? E , aliás, não é
c r u c i a l p a r a o nosso f u t u r o coletivo. A l u t a é g l o b a l , m a s t a m b é m
"nosso" dinheiro que os bancos e financistas u s a m tão descaradamente l o c a l e m s u a n a t u r e z a . Reúne estudantes c h i l e n o s c o n f i n a d o s n u m a
p a r a a c u m u l a r "seus" bónus? l u t a de v i d a ou m o r t e c o n t r a o p o d e r político p a r a c r i a r u m s i s t e m a
D i a n t e do p o d e r o r g a n i z a d o do P a r t i d o de W a l l Street p a r a d i v i - de ed uca çã o g r a t u i t o e de q u a l i d a d e p a r a todos e, então, c o m e ç a r
d i r e c o n q u i s t a r , o m o v i m e n t o emergente t a m b é m deve ter c o m o u m a d e s m a n t e l a r o m o d e l o n e o l i b e r a l que P i n o c h e t i m p ô s tão b r u t a l -
de seus princípios f u n d a m e n t a i s não se d i v i d i r n e m se d e s v i a r de seu mente. E n g l o b a os a t i v i s t a s d a p r a ç a T a h r i r que r e c o n h e c e m que a
curso até .que o P a r t i d o de W a l l Street c a i a n a r e a l - p a r a ver que o q u e d a de M u b a r a k (assim c o m o o fim d a d i t a d u r a de P i n o c h e t ) foi
b e m c o m u m t e m de prevalecer sobre os estreitos interesses venais - ou apenas o p r i m e i r o passo de u m a l u t a p e l a e m a n c i p a ç ã o do poder
c a i a de joelhos. Os privilégios corporativos de p o s s u i r todos os d i r e i - do d i n h e i r o . I n c l u i os I n d i g n a d o s d a E s p a n h a , os t r a b a l h a d o r e s e m
tos dos indivíduos, m a s s e m as r e s p o n s a b i l i d a d e s de verdadeiros c i d a - greve n a Grécia, a op os i çã o m i l i t a n t e que surge e m t o d o o m u n d o ,
dãos, têm de ser e l i m i n a d o s . Os bens públicos, c o m o educação e saú- de L o n d r e s a D u r b a n , Buenos A i r e s , S h e n z h e n e M u m b a i . A do-
de, devem ser oferecidos g r a t u i t a m e n t e e de m a n e i r a acessível a todos. m i n a ç ã o b r u t a l do g r a n d e c a p i t a l e o p o d e r do d i n h e i r o estão n a
Os poderes m o n o p o l i s t a s n a m í d i a p r e c i s a m ser a b a l a d o s . A c o m p r a defensiva e m todos os l u g a r e s .
64 | Occupy

D e q u a l lado cada u m de nós, como indivíduo, v a i estar? Que r u a


vamos ocupar? Só o tempo dirá. M a s o que sabemos é que o tempo é
agora. O sistema não está só quebrado e exposto, mas também é incapaz
de qualquer outra resposta que não a repressão. A s s i m , nós, o povo, não
temos opção além de l u t a r pelo direito coletivo de decidir como o sistema
será reconstruído e c o m base e m q u a l modelo. O P a r t i d o de W a l l Street
teve sua chance e fracassou miseravelmente. C o n s t r u i r u m a alternativa em
suas ruínas é tanto u m a oportunidade inescapável quanto u m a obrigação
que n e n h u m de nós pode ou v a i querer evitar.

O espírito da época*
Tariq Ali

" U m m a p a do m u n d o que não i n c l u a U t o p i a não merece ser o l h a -


do", escreveu O s c a r W i l d e , " j á que d e i x a de fora o único país n o q u a l
a h u m a n i d a d e está sempre d e s e m b a r c a n d o . E q u a n d o a h u m a n i d a d e
chega a l i , o l h a p a r a o h o r i z o n t e e, ao v e r u m país m e l h o r , z a r p a e m s u a
busca. 0 progresso é a realização de U t o p i a s " .
0 espírito desse século X I X s o c i a l i s t a está v i v o entre a juventude
i d e a l i s t a que t e m protestado c o n t r a o t u r b i n a d o c a p i t a l i s m o g l o b a l que
d o m i n o u o m u n d o desde o colapso d a União Soviética.
Os m a n i f e s t a n t e s do m o v i m e n t o O c c u p y W a l l Street, que se i n s -
t a l a r a m no coração do d i s t r i t o financeiro de N o v a Y o r k , estão protes-

Traduzido por Lucas Morais para o Diário Liberdade. Publicado originalmente no


site CounterPunch, com o título " T h e Spirit of the Age", em 31 out. 2011 (http://www,
counterpunch.org/2011/10/31/the-spirit-of-the-age). (N. E.)
66 | Occupy T a r i q A l i | 67

t a n d o c o n t r a u m sistema de c a p i t a l financeiro despótico: u m v a m p i r o sa redução dos preços d a habitação pública i m p l i c a v a ser considerado
infectado p e l a ganância que sobrevive chupando o sangue de q u e m não u m a espécie de dinossauro "conservador". Todo m u n d o agora é cliente,
é r i c o . E l e s estão m o s t r a n d o seu desprezo e m relação aos b a n q u e i r o s , m a i s do que cidadão: os jovens, emergentes, académicos do N o v o T r a -
aos especuladores financeiros e seus mercenários d a mídia, que c o n t i - b a l h i s m o se r e f e r i a m t i m i d a m e n t e àqueles que se v i a m obrigados a ler
n u a m i n s i s t i n d o que não há a l t e r n a t i v a . Já que o sistema de W a l l Street seus l i v r o s como "clientes", querendo d i z e r que todos somos capitalistas
d o m i n a a E u r o p a , lá t a m b é m há versões locais desse modelo. ( E c u r i o - agora. A s elites do poder económico e s o c i a l r e f l e t i a m as novas r e a l i -
so que f o r a m os ocupantes de W a l l Street, e m vez de os Indignados d a dades. 0 mercado transformou-se no novo D e u s , preferível ao E s t a d o .
E s p a n h a o u os t r a b a l h a d o r e s e m greve n a Grécia, que t i v e r a m i m p a c t o M a s q u e m se d e i x o u l e v a r por essa l i n h a n u n c a se p e r g u n t o u :
n a Grã-Bretanha, revelando m a i s u m a vez que as afinidades reais desta como isso aconteceu? D e fato, o E s t a d o era necessário p a r a fazer a
são m a i s atlantistas que europeias). Pode ser que os jovens atingidos transição. A intervenção estatal p a r a c o n s o l i d a r o mercado e ajudar os
pelo gás de p i m e n t a d a polícia de N o v a Y o r k não t e n h a m definido b e m ricos foi algo estupendo. E u m a vez que n e n h u m p a r t i d o oferecia a l -
o que desejam, mas eles seguramente s a b e m c o n t r a q u e m estão e isso t e r n a t i v a , os cidadãos d a América do N o r t e e d a E u r o p a c o n f i a r a m e m
já é u m i m p o r t a n t e começo. seus políticos e m a r c h a r a m como sonâmbulos r u m o ao desastre.
Como chegamos aqui? Após o colapso do comunismo em 1991, a Os políticos de centro, intoxicados pelos t r i u n f o s . d o c a p i t a l i s m o ,
ideia de E d m u n d B u r k e de que, " e m todas as sociedades compostas de d i - não estavam preparados p a r a a crise de W a l l Street de 2 0 0 8 . P o r isso a
ferentes classes, algumas devem estar necessariamente por c i m a " e de que m a i o r i a dos cidadãos, l u d i b r i a d a por imensas c a m p a n h a s publicitárias
"os apóstolos da igualdade apenas m u d a m e pervertem a ordem n a t u r a l que ofereciam créditos fáceis e p o r meios de comunicação domestica-
das coisas" converteu-se n a sabedoria do senso c o m u m d a época. D i n h e i r o dos e acríticos, foi l e v a d a a a c r e d i t a r que tudo estava b e m . Seus d i r i -
corrompeu os políticos, muito dinheiro corrompeu tudo. Por todos os cen- gentes p o d i a m não ser carismáticos, m a s s a b i a m m a n e j a r o sistema.
tros do capital vimos surgir: republicanos e democratas nos Estados U n i - D e i x e m tudo c o m os políticos. O preço dessa a p a t i a g e n e r a l i z a d a está
dos, novos trabalhistas e tories [conservadores] no vassalo Estado d a Grã- sendo pago agora. ( P a r a ser justo, os irlandeses e franceses s e n t i r a m o
-Bretanha, socialistas e conservadores n a França, coalizões n a A l e m a n h a , desastre nos argumentos apresentados sobre a constituição d a União
centro-esquerda e centro-direita n a Escandinávia, e assim por diante. E m E u r o p e i a , que consagrava o n e o l i b e r a l i s m o , e v o t a r a m c o n t r a . F o r a m
quase todos os casos, u m sistema de dois partidos transformou-se e m u m ignorados.)
governo nacional efetivo. U m novo extremismo de mercado entrou e m jogo.
E n t r e t a n t o , p a r a muitos economistas foi óbvio que W a l l Street
A entrada do capital nos domínios mais santificados dos benefícios sociais
planejou deliberadamente a b o l h a imobiliária, gastando bilhões e m
foi considerada u m a "reforma" necessária. A s iniciativas financeiras p r i -
c a m p a n h a s publicitárias c o m o i n t u i t o de encorajar as pessoas a fazer
vadas que castigavam o setor público se converteram e m n o r m a , e países
u m a segunda h i p o t e c a e i n c r e m e n t a r as dívidas pessoais p a r a consu-
(como França e Alemanha) que não r u m a v a m rápido o bastante em d i r e -
m i r cegamente. A b o l h a t i n h a de estourar e, q u a n d o isso aconteceu, o
ção ao paraíso neoliberal eram denunciados frequentemente no Economist
sistema c a m b a l e o u até o E s t a d o resgatar os bancos do colapso t o t a l .
e no Financial Times,
É o socialismo p a r a os ricos. Q u a n d o a crise se estendeu p e l a E u r o p a ,
Q u e s t i o n a r essa situação, defender o setor público, a r g u m e n t a r a
o mercado único e as n o r m a s de competição f o r a m p o r água a b a i x o
favor d a propriedade estatal dos serviços piíblicos e desafiar a i n t e n -
enquanto a União E u r o p e i a m o n t a v a u m a operação de resgate. A s d i s -
68 | Occupy T a r i q A l i | 69

c i p l i n a s de mercado f o r a m esquecidas convenientemente. A e x t r e m a sor), v i u s u r g i r u m novo m o v i m e n t o de protestos que se espalhou p o r


d i r e i t a é p e q u e n a . A e x t r e m a esquerda praticamente não existe. E o todas às grandes cidades. A energia dos jovens ocupantes é admirável.
extremo centro que d o m i n a a v i d a s o c i a l e política. H á m u i t o tempo que a p r i m a v e r a h a v i a f u g i d o do coração político dos

E n q u a n t o a l g u n s países e n t r a v a m em colapso (Islândia, I r l a n d a , Estados U n i d o s . Os invernos gelados dos anos R e a g a n e B u s h não se

Grécia) e outros ( P o r t u g a l , E s p a n h a , Itália) e n c a r a v a m o abismo, a U E derreteram c o m C l i n t o n ou O b a m a : homens ocos que g o v e r n a m u m

[União E u r o p e i a ] (na realidade U B , União dos Banqueiros) interveio sistema oco e m que o d i n h e i r o d o m i n a tudo e o E s t a d o d i f a m a d o ser-

p a r a i m p o r austeridade e s a l v a r os sistemas bancários alemão, francês ve p r i n c i p a l m e n t e p a r a preservar o status quo financeiro e custear as

e britânico. A s tensões entre o mercado e a responsabilidade democrá- guerras do século X X I .

t i c a não p o d i a m m a i s ser m a s c a r a d a s . A elite grega foi chantageada A névoa d a confusão se d i s s i p o u a f i n a l e as pessoas estão b u s c a n -
até a submissão t o t a l , e as m e d i d a s de austeridade e m p u r r a d a s goela do alternativas, agora sem os p a r t i d o s políticos, já que praticamente
a b a i x o dos cidadãos l e v a r a m o país à b e i r a d a revolução. A Grécia é o todos eles são deficientes. A s ocupações e m cena a t u a l m e n t e e m N o v a
elo m a i s fraco n a cadeia do c a p i t a l i s m o europeu e há m u i t o tempo s u a Y o r k , L o n d r e s , G l a s g o w e outros lugares são m u i t o diferentes dos p r o -
d e m o c r a c i a está s u b m e r s a sob as ondas do c a p i t a l i s m o e m crise. A s testos do passado. São ações organizadas e m tempos de crescente de-
greves gerais e os protestos criativos d i f i c u l t a r a m e m grande m e d i d a semprego, e m que o f u t u r o parece s o m b r i o . A m a i o r i a dos jovens - não
a t a r e f a dos extremistas de centro. Observando as recentes imagens obstante os protestos histéricos dizendo o contrário - não conseguirá
que chegam de A t e n a s , onde a polícia u t i l i z o u a força p a r a i m p e d i r que u m a educação superior a menos que t i r e d a m a n g a imensas somas de
dezenas de m i l h a r e s de cidadãos entrassem no P a r l a m e n t o , é possível d i n h e i r o e logo, sem dúvida, será c o n f r o n t a d a p e l a divisão do sistema
sentir que os dirigentes do país não serão capazes de governar como de saúde e m público e p r i v a d o . A d e m o c r a c i a c a p i t a l i s t a de hoje pres-
antes p o r m u i t o tempo. supõe u m acordo f u n d a m e n t a l entre os p r i n c i p a i s p a r t i d o s represen-

N o início do ano, em Tessalônica, onde fiz u m a palestra e m u m tados no P a r l a m e n t o a fim de que suas contendas, l i m i t a d a s p o r s u a

festival literário, as p r i n c i p a i s preocupações d a audiência e r a m m a i s p o - moderação, tornem-se totalmente insignificantes. E m outras p a l a v r a s ,

líticas e económicas do que literárias. H a v i a alternativa? O que deveria os cidadãos já não p o d e m d e t e r m i n a r q u e m (e como) c o n t r o l a a r i q u e z a

ser feito? Inadimplência imediatamente, respondi. A b a n d o n a r a zona do de u m país, u m a r i q u e z a c r i a d a e m grande m e d i d a p o r eles próprios.

euro, r e i n t r o d u z i r a d r a c m a , i n s t i t u i r o planejamento social e económico Se questões c r u c i a i s c o m o a alocação de r e c u r s o s , as provisões de


em níveis l o c a l , regional e n a c i o n a l , envolver as pessoas nas discussões b e m - e s t a r s o c i a l e a distribuição d a r i q u e z a já não são m a i s t e m a
sobre como estabilizar o país sem ser às custas dos pobres. Os ricos deve- de debates reais nas assembleias r e p r e s e n t a t i v a s , p o r que a s u r p r e s a
r i a m ter de restituir (mediante impostos especiais) o d i n h e i r o a c u m u l a d o ante a alienação dos jovens e m relação à política d o m i n a n t e o u a
por meios fraudulentos n a última década. M a s os políticos sem visão no i m e n s a d ecep çã o c o m O b a m a e seus clones globais? É isso que t e m
centro do sistema estão longe de q u a l q u e r u m a dessas ideias. M u i t o s es- o b r i g a d o as pessoas a saírem às r u a s e m m a i s de n o v e n t a cidades.
tão n a f o l h a de pagamento do pequeno número de pessoas que possui e Os políticos se n e g a r a m a a c e i t a r que a crise de 2 0 0 8 t i n h a a ver
controla os recursos económicos de u m país. c o m as políticas n e o l i b e r a i s que v i n h a m p e r s e g u i n d o desde a d é c a -

Os endividados Estados U n i d o s , sob O b a m a (um presidente que, d a de 1 9 8 0 . P r e s u m i r a m que p o d e r i a m s e g u i r c o m o se n a d a tivesse

p a r a todos os propósitos práticos, manteve as políticas de seu predeces- acontecido, m a s os m o v i m e n t o s de b a i x o d e s a f i a r a m t a l suposição.


70 | Occupy T a r i q A l i | 71

A s ocupações e manifestações de r u a c o n t r a o c a p i t a l i s m o são de que estão 6'endo i m p u l s i o n a d a s p e l a liderança i s o l a d a do P a s o k ( M o v i -


1

a l g u m a m a n e i r a análogas às Jacqueries (revoltas) camponesas dos mento S o c i a l i s t a Pan-Helênico) e m A t e n a s . Pelo c a m i n h o e m que estão

séculos anteriores. Condições inaceitáveis p r o d u z e m insurreições, que i n d o , haverá m a i s privações, desempregos e desastres sociais. É neces-

geralmente são esmagadas o u a p l a c a m de l i v r e e espontânea vontade. O. sária u m a c o m p l e t a inversão p r e c e d i d a p e l a admissão pública de que

que i m p o r t a é que elas e m geral p r e c e d e m o que está p o r v i r se as c o n - o sistema de W a l l Street não p o d e r i a f u n c i o n a r e não f u n c i o n o u , p o r -
tanto t e m de ser a b a n d o n a d o . Seus seguidores britânicos, como todos
dições p e r m a n e c e r e m as mesmas. N e n h u m m o v i m e n t o pode sobreviver
os convertidos, f o r a m m a i s implacáveis e insensíveis n a aceitação do
ã menos que crie u m a e s t r u t u r a democrática p e r m a n e n t e que assegure
mercado como único árbitro, respaldados p o r u m a m a q u i n a r i a estatal
a c o n t i n u i d a d e política. Q u a n t o m a i o r for o apoio p o p u l a r a tais m o -
n e o l i b e r a l . C o n t i n u a r p o r esse c a m i n h o e x i g i r i a novos m e c a n i s m o s de
v i m e n t o s , m a i o r será a necessidade de a l g u m a f o r m a de organização.
dominação que r e d u z i r i a m a d e m o c r a c i a a pouco m a i s do que u m a
O exemplo das rebeliões s u l - a m e r i c a n a s c o n t r a o n e o l i b e r a l i s m o
c o n c h a v a z i a . Os " o c u p a s " estão i n s t i n t i v a m e n t e cientes disso, p o r essa
e suas instituições globais d i z m u i t o a esse respeito. A s enormes e b e m -
razão estão onde estão hoje. O mesmo não pode ser dito sobre os políti-
-sucedidas lutas c o n t r a o F M I n a Venezuela e c o n t r a a privatização d a
cos extremistas do centro.
água n a Bolívia e d a eletricidade no P e r u c r i a r a m a base de u m a n o v a
política que t r i u n f o u nas u r n a s nos dois p r i m e i r o s países, a s s i m como A d m i r o p r o f u n d a m e n t e todos os jovens que o c u p a m praças e

no E q u a d o r e no P a r a g u a i . U m a vez eleitos, os novos governos começa- r u a s e m diferentes p a r t e s do p l a n e t a . Estão desafiando nossos gover-

r a m a i m p l e m e n t a r as reformas sociais e económicas prometidas c o m nantes c o m h u m o r , b r i o e entusiasmo. M a s não ê fácil r e m o v e r os b a n -


queiros e políticos c a r r a n c u d o s que d o m i n a m o m u n d o . É necessária
v a r i a d o s graus de êxito. E m 1 9 5 8 , n a Grã-Bretanha, o t r a b a l h i s m o
u m a década de l u t a e organização p a r a alcançar p o u c a s vitórias. P o r
rechaçou o conselho que o professor H . D . D i c k i n s o n deu ao P a r t i d o
que não u n i r todos q u e p u d e r m o s p o r m e i o de u m a c a r t a de r e i v i n -
T r a b a l h i s t a no New Statesman; os dirigentes b o l i v a r i a n o s , entretanto,
dicações - u m " g r a n d i o s o p r o t e s t o " ao p a r l a m e n t o q u e r e p r e s e n t a os
aceitaram-no q u a r e n t a anos m a i s t a r d e , n a Venezuela:
interesses dos r i c o s - e m a r c h a r c o m u m m i l h ã o o u m a i s p a r a e n t r e -
Se for para o Estado de bem-estar social sobreviver, o Estado deve
g a r o protesto e m pessoa no p r ó x i m o outono? A l e i ( i m p o s t a após a
encontrar, por sua conta, u m a fonte de arrecadação, u m a fonte sobre
Restauração de 1666) proíbe as manifestações t u m u l t u o s a s f o r a do
a qual tenha mais direitos do que os receptores de benefícios. A única
p a r l a m e n t o , m a s nós p o d e m o s i n t e r p r e t a r " t u m u l t u o s a s " tão b e m
fonte que posso visualizar é a da propriedade produtiva. O Estado
como q u a l q u e r advogado.
deve passar a possuir, de u m a maneira ou de outra, grande parte da
terra e do capital do país. Essa pode não ser u m a política popular,
mas, se não for seguida, a política de melhoria dos serviços sociais,
que é popular, se tornará impossível. Não se pode socializar por muito
tempo os meios de consumo se os meios de produção não forem socia-
lizados primeiro.

Os governantes do m u n d o não conseguirão ver nessas p a l a v r a s


m u i t o m a i s do que u m a expressão d a u t o p i a , m a s estão enganados.
Essas são as reformas estruturais realmente necessárias, e não aquelas
O "O

A esquerda mundial após 2011*


Immanuel Wallerstein

Por qualquer ângulo, 2011 foi u m b o m ano p a r a a esquerda m u n -


d i a l - seja q u a l for a abrangência d a definição de cada u m sobre a esquer-
d a m u n d i a l , A razão f u n d a m e n t a l foi a condição económica negativa que
atingia a m a i o r parte do mundo, O desemprego, que era alto, cresceu a i n d a
mais. A m a i o r i a dos governos teve de enfrentar grandes dívidas e receita
r e d u z i d a e como resposta t e n t a r a m i m p o r medidas de austeridade contra
suas populações, ao mesmo tempo e m que tentavam proteger os bancos.
O resultado disso foi u m a revolta g l o b a l daqueles que o m o v i m e n -
to O c c u p y W a l l Street c h a m a de "os 9 9 % " . Os alvos e r a m a excessiva

Traduzido por Daniela Frabasile, para o site Outras Palavras (http;//www.outras


palavras.net/2012/01/03/a-esquerda-mundial-apos-2011/), a p a r t i r do original " T h e
World L e f t After 2011" (http://www.iwallerstein.com/world-left-2011), publicado em
1 jan. 2012. ( N . E.)
74 | Occupy Immanuel Wallerstein | 75

polarização d a r i q u e z a , õ's governos corruptos e a n a t u r e z a essencial- p a r t i d o s de centro-esquerda q u a n d o existe u m sistema multipartidário


mente antidemocrática desses governos - sejam eles de sistemas m u l t i - f u n c i o n a l , ou dentro do p a r t i d o único q u a n d o a alternância p a r l a m e n -
partidários o u não. t a r não ê p e r m i t i d a .
Não é que m o v i m e n t o s como o O c c u p y W a l l Street, a P r i m a v e - D e outro lado estão os que c o n d e n a m essa política de escolher
r a Ár abe e os Indignados t e n h a m alcançado tudo o que esperavam. o m a l menor. E l e s i n s i s t e m e m que não existe diferença s i g n i f i c a t i v a
M a s c o n s e g u i r a m a l t e r a r õ discurso m u n d i a l , levando-o p a r a longe dos entre os p r i n c i p a i s p a r t i d o s e são a favor de v o t a r e m u m a agremiação
m a n t r a s ideológicos do n e o l i b e r a l i s m o , p a r a temas como desigualdade, que esteja " g e n u i n a m e n t e " n a esquerda.
injustiça e descolonização. P e l a p r i m e i r a vez e m m u i t o tempo pessoas Todos estamos f a m i l i a r i z a d o s c o m esse debate e já ouvimos os
c o m u n s p a s s a r a m a d i s c u t i r a n a t u r e z a do sistema no q u a l v i v e m . Já argumentos várias vezes. N o entanto, está c l a r o , pelo menos p a r a m i m ,
não o v e e m c o m o inevitável. que se não houver a l g u m acordo entre esses três grupos e m relação às
A questão agora p a r a a esquerda m u n d i a l é como avançar e c o n - táticas eleitorais, a esquerda m u n d i a l terá ínfimas chances de prevale-
verter o sucesso do discurso i n i c i a l e m transformação política. 0 p r o - cer, tanto a c u r t o como a longo prazos.
b l e m a pode ser exposto de m a n e i r a m u i t o simples. A i n d a que exista, e m A c r e d i t o que exista u m a f o r m a de reconciliação que consiste e m
termos económicos, u m abismo claro e crescente entre u m g r u p o m u i t o fazer u m a distinção entre as táticas de curto p r a z o e as estratégias de
pequeno (o 1%) e outro m u i t o grande (os 9 9 % ) , a divisão política não longo prazo. Concordo totalmente c o m os argumentos de que a deten-
segue o mesmo padrão. E m todo o p l a n e t a , as forças de c e n t r o - d i r e i t a ção do poder estatal é irrelevante p a r a as transformações de longo
a i n d a c o m a n d a m a p r o x i m a d a m e n t e metade d a população m u n d i a l , ou p r a z o do sistema m u n d i a l e pode até comprometer a p o s s i b i l i d a d e de
pelo menos daqueles que são p o l i t i c a m e n t e ativos de a l g u m a f o r m a . realizá-las. C o m o u m a estratégia de transformação, t e m sido t e n t a d a
P o r t a n t o , p a r a t r a n s f o r m a r o m u n d o , a esquerda m u n d i a l p r e c i - diversas vezes e f a l h a d o .
sará de u m g r a u de u n i d a d e política que a i n d a não alcançou. H á p r o - Isso não s i g n i f i c a que p a r t i c i p a r de eleições seja u m a p e r d a de
fundos desacordos tanto sobre objetivos de longo p r a z o q u a n t o sobre tempo. É preciso c o n s i d e r a r que u m a g r a n d e p a r t e dos 9 9 % está so-
táticas a c u r t o prazo. Não é que esses problemas não estejam sendo frendo no c u r t o p r a z o . E esse s o f r i m e n t o é s u a p r e o c u p a ç ã o p r i n c i p a l .
debatidos. A o contrário, são discutidos acaloradamente e nota-se pouco T e n t a m sobreviver e a j u d a r suas famílias e a m i g o s a sobreviver. Se
progresso n a superação dessas cisões. p e n s a r m o s nos governos não c o m o p o t e n c i a i s agentes de t r a n s f o r m a -
T a i s discordâncias são a n t i g a s e isso não as t o r n a fáceis de r e - ção s o c i a l , m a s c o m o e s t r u t u r a s que p o d e m d i m i n u i r o s o f r i m e n t o
solver. E x i s t e m duas grandes divisões. A p r i m e i r a é e m relação às a c u r t o p r a z o p o r meio de decisões políticas i m e d i a t a s , então a es-
eleições. Não e x i s t e m d u a s , m a s três posições a respeito. H á u m g r u p o q u e r d a m u n d i a l estará o b r i g a d a a fazer o que p u d e r p a r a c o n q u i s t a r
que s u s p e i t a p r o f u n d a m e n t e das eleições, a r g u m e n t a n d o que p a r t i c i - m e d i d a s capazes de m i n i m i z a r essa dor.
p a r delas não é apenas p o l i t i c a m e n t e i n e f i c a z , m a s reforça a l e g i t i m i - A g i r p a r a m i n i m i z a r a dor exige participação eleitoral. E o que
dade do s i s t e m a m u n d i a l existente. dizer do debate entre os defensores do m a l menor e aqueles que a p o i a m
Outros a c r e d i t a m que é c r u c i a l p a r t i c i p a r de processos eleitorais os p a r t i d o s verdadeiramente de esquerda? Esse ponto torna-se u m a de-
e se d i v i d e m e m dois tipos. D e u m lado estão os que se a f i r m a m p r a g - cisão de tática l o c a l , que v a r i a enormemente de acordo c o m fatores d i -
máticos. E l e s q u e r e m t r a b a l h a r a p a r t i r de dentro - dentro dos maiores versos: o t a m a n h o do país, a e s t r u t u r a política f o r m a l , a demografia, a
76 | Occupy

posição geopolítica, a história política. Não há u m a resposta padrão. E


a solução p a r a 2 0 1 2 t a m b é m não será necessariamente a m e s m a p a r a
2 0 1 4 o u 2 0 1 6 . Não é, pelo menos p a r a m i m , u m debate de princípios.
D i z respeito, m u i t o m a i s , à situação tática de c a d a país.
O segundo debate f u n d a m e n t a l que consome a esquerda é entre
o desenvolvimentismo e o que pode ser c h a m a d o de p r i o r i d a d e n a m u -
dança d a civilização. Podemos observar esse debate e m m u i t a s partes
do m u n d o . E l e está presente n a América L a t i n a , nos embates f e r v o -
rosos entre os governos de esquerda e os m o v i m e n t o s indígenas - p o r
exemplo, n a Bolívia, no E q u a d o r , n a Venezuela. T a m b é m pode ser
a c o m p a n h a d o n a América do N o r t e e n a E u r o p a , n a s discussões entre
a m b i e n t a l i s t a s e sindicalistas que dão p r i o r i d a d e à manutenção e ex-
pansão dos empregos disponíveis.
P o r u m l a d o , a opção desenvolvimentista, a p o i a d a p o r governos
de esquerda e p o r m u i t o s sindicatos, sustenta que sem crescimento eco-
Democracia, segurança pública e
nómico não é possível enfrentar as desigualdades do m u n d o de hoje - coragem para agir na política*
tanto as existentes dentro de c a d a país q u a n t o as i n t e r n a c i o n a i s , Esse Edson Teles
g r u p o a c u s a o oponente de apoiar, d i r e t a o u i n d i r e t a m e n t e , os interes-
ses das forças de d i r e i t a .
Os defensores d a opção a n t i d e s e n v o l v i m e n t i s t a d i z e m que o foco
no crescimento económico está errado e m dois aspectos: é u m a política
que l e v a a d i a n t e as piores características do sistema c a p i t a l i s t a e que D e m o c r a c i a c o m violência do E s t a d o e especulação imobiliá-
causa danos irreparáveis - sociais e a m b i e n t a i s . r i a : u m a questão c r u c i a l que c h a m a a atenção nos recentes episódios

E s s a divisão parece a i n d a m a i s a p a i x o n a d a , se é que ê possível, de ação d a Polícia M i l i t a r do E s t a d o de São P a u l o , cujo objetivo era

que a divergência sobre a participação eleitoral. A única f o r m a de r e s o l - "restabelecer a o r d e m e a l e g a l i d a d e " , m a s que se c o n f i g u r a r a m c o m o

vê-la é c o m compromissos baseados e m c a d a caso específico. P a r a tor- violentos e s e m eficácia do p o n t o de v i s t a do interesse p ú b l i c o .

n a r isso viável, c a d a g r u p o p r e c i s a a c r e d i t a r n a boa-fé e nas credenciais A c h a m a d a C r a c o l â n d i a (nome a p a r e n t e m e n t e c u n h a d o p e l a


de esquerda do outro. Isso não será fácil. g r a n d e m í d i a q u e , de m o d o s i g n i f i c a n t e , remete a u m l u g a r de d i v e r -

Essas diferenças poderão ser superadas nos próximos cinco o u dez sões, n o estilo de Disneylândia) e o b a i r r o P i n h e i r i n h o , e m São José

anos? Não tenho certeza. Se não f o r e m , d u v i d o que a esquerda m u n d i a l


possa g a n h a r , nos próximos v i n t e o u q u a r e n t a anos, a b a t a l h a f u n d a - Publicado originalmente no Blog da Boitempo (http://boitempoeditorial.wordpress.
com/2012/02/01/democracia-seguranca-publica-e-a-coragem-para-agir-na-politica/),
m e n t a l . E n e l a se definirá que t i p o de sistema sucederá o c a p i t a l i s m o
1 fev. 2012. (N. E.)
q u a n d o este e n t r a r definitivamente e m colapso.
78 | Occupy Edson Teles | 79

dos C a m p o s , t ê m a l g o e m c o m u m além do fato de t e r e m sido p a l c o de u m a juíza de São José dos C a m p o s , c o n f i r m a d a p e l o T r i b u n a l de

das recentes violações de d i r e i t o s s o f r i d a s pela p a r c e l a da população Justiça de São P a u l o , d e t e r m i n o u o despejo desse e n o r m e c o n t i n g e n -

q u e p a r e c e n ã o t e r " d i r e i t o a t e r d i r e i t o s " (nas p a l a v r a s críticas de te de pessoas, n ã o l h e g a r a n t i u o d i r e i t o à m o r a d i a e a u t o r i z o u q u e

H a n n a l i A r e n d t ) . A m b o s os l o c a i s são áreas de forte especulação


1
fosse jogado n a i n c e r t e z a d a ausência de u m teto, i n c l u s i v e c o m o u s o

imobiliária. de cassetetes, b a l a s de b o r r a c h a e gás de p i m e n t a . A u t o r i z a d o p e l a s

Os usuários de c r a c k do c e n t r o de São P a u l o e s t a v a m n a região l e i s , o g o v e r n o o p t o u p e l a violência e m l u g a r d a discussão de u m a

e s c o l h i d a p e l o g o v e r n o p a r a a execução do projeto " N o v a L u z " , e m a l t e r n a t i v a de m o r a d i a o u m e s m o de p e r m a n ê n c i a n o l o c a l .

r e s p o s t a ao d i s c u r s o q u e a s s i n a l a a área c o m o decadente, r e p l e t a E m várias ocasiões n a história d a h u m a n i d a d e , pudemos ver ce-

de m a r g i n a i s , suja. E m t a l projeto h i g i e n i s t a , a P r e f e i t u r a pretende nas de pessoas a m o n t o a d a s , crianças, idosos, doentes, sem seus p e r t e n -

v e n d e r ao s i s t e m a p r i v a d o o d i r e i t o sobre desapropriações no b a i r r o , ces, n o r m a l m e n t e f r u t o de a l g u m t s u n a m i , de u m a catástrofe n a t u r a l

além de sobre o e s t a b e l e c i m e n t o de p r i o r i d a d e s nesse processo, s e m - ou mesmo de u m a guerra. E m P i n h e i r i n h o , a m e s m a c e n a foi v i s t a .

p r e de a c o r d o c o m interesses p a r t i c u l a r e s , e m d e t r i m e n t o do b e m C o n t u d o , dessa vez p r o v o c a d a pelo Judiciário e pelo governo do estado,

p ú b l i c o . A área, c l a s s i f i c a d a p e l o governo c o m o a b a n d o n a d a , s e d i a c o m o apoio do aparato repressivo d a Polícia M i l i t a r . É chocante!

u m dos m a i o r e s centros b r a s i l e i r o s de comércio de e q u i p a m e n t o s D e fato, o p o d e r p ú b l i c o , a l i a d o ao interesse p r i v a d o d a e s p e c u -

eletrônicos e de informática. Q u e m já f o i à r u a S a n t a Ifigênia, o u lação, posiciona-se de m a n e i r a favorável à i d e i a d a expansão i m o b i -

m e s m o à 2 5 de m a r ç o , p ô d e c o n s t a t a r a decadência d a presença do liária c o m o s i n a l de d e s e n v o l v i m e n t o . E histórico q u e , e m q u a l q u e r

p o d e r p ú b l i c o , c o m a f a l t a de serviços e s s e n c i a i s , c o m o os de saúde área u r b a n a , t a i s " r e f o r m a s " l e v e m a u m a valorização financeira do

p ú b l i c a e l i m p e z a das r u a s . A ação r e p r e s s i v a d a P M somente e s p a - m e t r o q u a d r a d o e l a n c e m a p o p u l a ç ã o p o b r e p a r a além dos l i m i t e s

l h o u os c h a m a d o s c r a q u e i r o s p a r a outros l o c a i s d a região c e n t r a l , das a t u a i s condições já precárias de m o r a d i a . P a r a que o projeto es-


p e c u l a t i v o se c o n c r e t i z e , é necessário l i m p a r as áreas d a presença dos
p a s s a n d o l o n g e de ser u m a solução, m a s a b r i n d o a p o s s i b i l i d a d e de
pobres. L e i a m p a r t e d a notícia p o s t a d a n a p á g i n a d a S e c r e t a r i a de
f o r m a l i z a r o " p r o g r e s s o " i m o b i l i á r i o e c o m e r c i a l d a região.
Segurança Pública do E s t a d o de São P a u l o :
N o b a i r r o P i n h e i r i n h o , o conhecido especulador financeiro
N a j i N a h a s detém, p o r m e i o de u m a e m p r e s a f a l i d a de s u a p r o p r i e - Após a limpeza, já era possível circular tanto a pé como de carro pelas
d a d e , a área e m q u e m o r a m q u a s e 1.600 famílias. P e r t e n c e n t e a u m alamedas Cleveland, Dino Bueno e Glete e a r u a Helvétia, que ficam no
c a s a l de alemães m o r t o s e m 1 9 6 9 , n ã o se sabe ao certo c o m o o t e r - entorno da praça Júlio Prestes. Locais que eram usados como esconde-
r e n o , n a posse do E s t a d o p o r f a l t a de h e r d e i r o s l e g a i s , a c a b o u c o m o rijos e moradia dos usuários de drogas foram desocupados e estabeleci-
p r o p r i e d a d e de N a h a s . S a b e - s e q u e o E s t a d o de d i r e i t o , v i a decisão mentos comerciais funcionavam normalmente. 2

S o b o d i s f a r c e de u m d i s c u r s o c o m v i s t a s a g a r a n t i r a s e g u -

1 Segundo H a n n a h Arendt, em Origens do totalitarismo, o surgimento do totalitaris- rança p ú b l i c a , o q u a l p e r m i t e a u t o r i z a r a h i g i e n i z a ç ã o das ameaças


mo tornou evidente a crise dos direitos humanos. Os apátridas, sujeitos desterrados do
pertencimento a u m coletivo político, colocaram em relevo a terrível condição de seres
humanos que, por não gozarem de direitos e não serem protegidos pelas leis de u m or-
" P M faz operação para sufocar tráfico na Cracolândia' . Secretaria de Segurança Pú-
denamento nacional, não eram nada além de meros seres viventes. Para a autora, há a
1

blica de São Paulo. Acesso em 3 jan. 2012. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/


necessidade de u m a comunidade política para que o sujeito tenha direitos, de u m a esfera
noticia/lenoticia.aspx?id=26531.
pública que valorize as opiniões e torne suas ações eficazes.
80 | Occupy Edson Teles | 81

à o r d e m e à m o r a l , b u s c a - s e u m remédio eficaz c o n t r a os " d e s a j u s - O b s e r v a m o s , nos casos d a Cracolândia e do P i n h e i r i n h o , b e m


t a d o s " . Estes p o d e m , a q u a l q u e r m o m e n t o , p a s s a r d a c o n d i ç ã o de c o m o e m t a n t o s o u t r o s , a c l a r a demonstração de u m projeto a u t o r i -
vítimas d a d e s i g u a l d a d e s o c i a l p a r a a c a t e g o r i a de i n i m i g o s . E m tário p a r a as relações entre o p o d e r p ú b l i c o (podemos ler, i n c l u s i v e , o
u m a s o c i e d a d e r e g u l a d a pelos interesses do m e r c a d o e do t r a b a l h o , E s t a d o de direito) e a população. A p e s a r de a Constituição b r a s i l e i r a
é p r e c i s o c r i a r u m l u g a r p a r a os s e m l u g a r (sem teto, s e m t e r r a , s e m t r a t a r o d i r e i t o à m o r a d i a c o m o absoluto e o d i r e i t o à p r o p r i e d a d e
t r a b a l h o , s e m d i r e i t o s ) . Nesse s e n t i d o , o B r a s i l r e a l i z a , ao menos c o m o r e l a t i v o a s u a f u n ç ã o s o c i a l , o E s t a d o , p o r m e i o de seus d i v e r -
desde os anos 1 9 9 0 , a c o n s t r u ç ã o de u m E s t a d o s o c i a l sob a i d e i a de
3 sos poderes, t e m a t u a d o e m favor do " d e s e n v o l v i m e n t o " e m caso de
q u e a d e m o c r a c i a se c o n s o l i d a c o m base no d i s c u r s o dos d i r e i t o s h u - conflitos. P a r a t a n t o , t e m feito uso sistemático, e s p e c i a l m e n t e e m São
m a n o s c o m b i n a d o c o m a l ó g i c a de m e r c a d o , o q u e l i m i t a a própria P a u l o , de u m a Polícia M i l i t a r c a d a vez m a i s v i o l e n t a ( n u n c a , n a ú l -
i d e i a de h u m a n o . O n o v o m o d o de a g i r , c o r r o b o r a d o pelo d i s c u r s o t i m a década, essa instituição m a t o u t a n t o q u a n t o n o ano de 2011) e
e m questão, v e m s u b s t i t u i n d o h á a l g u m a s décadas o m o v i m e n t o repressiva (espanca estudantes d a U S P d e n t r o do campus). S u a orga-
s o c i a l o r g a n i z a d o i n d e p e n d e n t e do o r d e n a m e n t o do E s t a d o de d i - nização e d i s c i p l i n a , s u b o r d i n a d a s ao r e g i m e n t o m i l i t a r do Exército,
reito. N o l u g a r d a ação política, os novos atores s o c i a i s são i n s t a d o s são regidas pelas m e s m a s regras i m p o s t a s p e l a Constituição o u t o r g a -
a f o m e n t a r , n o t e a t r o de f a b r i c a ç ã o dos r e s u l t a d o s , a governança d a p e l a d i t a d u r a e m 1969.
do s o f r i m e n t o p o r m e i o de m u d a n ç a s c o n t a b i l i z a d a s nos índices de C o m a mudança do r e g i m e de exceção p a r a a d e m o c r a c i a , não
desenvolvimento d a humanidade. houve revisão o u r e f o r m a das instituições ligadas à segurança n a c i o n a l
Desse modo, aparentemente se pretende a efetivação de ações de e pública, as quais m a n t i v e r a m u m a i d e o l o g i a agressiva c o n t r a a p o -
redução d a desigualdade, política de salários e promoção de o p o r t u n i - pulação não proprietária, g a r a n t i n d o a i m p u n i d a d e às violências p r a t i -
dades de crescimento. C o n t u d o , o indivíduo beneficiado deve possuir cadas p o r seus agentes. T a l situação evidencia o m o d e l o que os setores
qualidades que sejam-valorizadas no m u n d o d a produção. S e m a posse p a t r i m o n i a l i s t a s e d a elite b r a s i l e i r a , c o m a anuência d a classe m é d i a
de determinadas competências, a política social de inclusão é colocada de e o silêncio a m e d r o n t a d o de u m a p a r c e l a d a esquerda que p e r d e u seus
lado e aquele mesmo Estado tentará d i s s i m u l a r o u apagar a presença compromissos de classe, e s c o l h e r a m p a r a u m a d e m o c r a c i a l i m i t a d a ,
do "deslocado". A n ô m i c o , ele é levado gradativamente p a r a a periferia do m u i t a s vezes de f a c h a d a , c o m u m v e r n i z reluzente, outras vezes c o m
sistema, m a i s distante, m a i s empobrecido, m a i s sem direitos. É preciso características autoritárias.
questionar e m que m e d i d a se pode c o n s t r u i r u m a política de inclusão Não se t r a t a de u m a d i t a d u r a e m m e i o ao E s t a d o de d i r e i t o . É
social s u b m i s s a à lógica do mercado o u de u m a e c o n o m i a determinada u m a d e m o c r a c i a q u e p a r t i c i p a do consenso d a p o l í t i c a c o n t e m p o -
pelas elites do sistema financeiro, i n d u s t r i a l e d a terra. rânea, n o q u a l o d i s c u r s o s o c i a l e dos d i r e i t o s h u m a n o s l e g i t i m a ,
p a r a d o x a l m e n t e , t a n t o a resistência do indivíduo e dos m o v i m e n t o s

Refiro-me a u m processo de reformulação do Estado iniciado com a promulgação da


d i a n t e das violências s o f r i d a s q u a n t o a ação do E s t a d o , o m a i o r
Constituição, em 1988, quando a assistência social deixou de ser filantropia e passou v i o l a d o r de d i r e i t o s . D e s s a f o r m a , o m i l i t a n t e e o m i n i s t r o , o s e m
a configurar corno modo essencial para lidar com o sofrimento da população carente.
Foi nesse contexto que o governo do presidente José Sarney (1985-1990) adotou o lema:
teto e a Polícia M i l i t a r e o destituído e a g r a n d e m í d i a f a z e m uso d a
"Tudo pelo social' . A construção desse Estado intensificou-se com a chegada do P T , que,
1 i d e i a de defesa de d i r e i t o s s e m , c o m o v i m o s , n e c e s s a r i a m e n t e a g i r
em 2003, criou o Ministério da Assistência e Promoção Social e impulsionou o Programa
e m f a v o r do interesse p ú b l i c o .
Bolsa Família, entre outros.
82 | Occupy

A ação repressiva do E s t a d o , l e g i t i m a d a p e l a ideia de defesa dos


direitos, a l i m e n t a o sentimento de constante ameaça à propriedade, ao
emprego, ao salário, ao consumo e à ação política, gerando o medo p a r a -
lisante. É como se u m f a n t a s m a rondasse a sociedade, obrigando-nos, e m
momentos de transformação, a adotar u m a política do possível evitando
as r u p t u r a s . Vivemos u m momento grave de nossa v i d a social, em que
precisamos refletir sobre q u a l democracia queremos e, m a i s do que isso,
a g i r c o m r a d i c a l i d a d e p a r a denunciar u m modo autoritário e m a n i p u -
lador de se fazer política. .Conflitos como os vividos em São P a u l o de-
m a n d a m daqueles que se sentem ofendidos por t a m a n h a violência u m a .v
atitude corajosa de r u p t u r a c o m o modelo conciliatório d a democracia
" l e n t a , g r a d u a l e segura", sob o q u a l construímos o E s t a d o de direito.

Crise capitalista e novo cenário


no Oriente Médio*
Emir Sader

0 cenário geral que englobou todo o ano de 2011 foi o novo ciclo
d a crise geral do c a p i t a l i s m o , i n i c i a d o e m 2 0 0 8 . Pelo t i p o de m e d i d a s
tomadas naquele momento, era de se esperar que houvesse u m a n o v a
irrupção d a crise, mesmo sem ser possível i m a g i n a r u m a intensidade
tão forte como a que afeta especialmente a e c o n o m i a europeia.
A o s a l v a r os bancos — ação que detonou a crise e f o i seu e p i c e n -
t r o —, os governos a c r e d i t a v a m que s a l v a r i a m as e c o n o m i a s e os paí-
ses. Os bancos se r e c u p e r a r a m , m a s as economias e os países f i c a r a m
a b a n d o n a d o s . Isso p o r q u e os bancos têm a seu f a v o r os organismos

Versão reformulada pelo autor, para esta edição, a partir do original "2011: Crise capitalis-
ta e novo cenário no Oriente Médio", publicado no site Carta Maior (http://www.cartam.aior.
com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=l&post_id=848) em 26 dez. 2011. (N. E.)
84 | Occupy E m i r Sader | 85

financeiros i n t e r n a c i o n a i s e as agências de r i s c o , que a g e m de f o r m a estagnação e crescimento b a i x o , c o m os problemas sociais corresponden-


coerente e c o o r d e n a d a . tes e a i n s t a b i l i d a d e política de governos de t u r n o que pagarão o preço
P o r isso, a crise voltou como b u m e r a n g u e , tendo agora diretamente das políticas recessivas.
os governos como epicentro, pressionados pelo sistema bancário e pelos Se no primeiro ciclo d a crise capitalista, e m 2 0 0 8 , não houve grandes
organismos que expressam seus interesses: F M I e B a n c o C e n t r a l E u r o - mobilizações populares, em. 2011 s u r g i r a m novos protagonistas, entre eles
peu. P r i m e i r o , e m 2 0 0 8 , f a l i r a m bancos e outras instituições financeiras; os Indignados e os "ocupas". Os primeiros, nascidos n a E s p a n h a , onde tive-
depois f o r a m os países, tendo a Grécia como caso paradigmático e que r a m sua expressão mais significativa de protesto contra as elites políticas, o
estende sua s o m b r a sobre quase todos os Estados d a z o n a do euro. esvaziamento d a democracia l i b e r a l e a exportação d a crise p a r a o conjunto
A unificação monetária - essência d a unificação europeia, ao p o n - d a população. Os "ocupas", surgidos e m N o v a Y o r k , estenderam-se p a r a de-
to de os referendos p e r g u n t a r e m d i r e t a m e n t e se as pessoas q u e r i a m zenas de cidades norte-americanas, além de. Londres, e dirigiram-se mais
apenas a m o e d a única e não a E u r o p a u n i f i c a d a - revelou-se u m a a r - diretamente aos bancos, difundindo a versão d a oposição entre o 1% d o m i -
m a d i l h a t a n t o p a r a os países m a i s f r a g i l i z a d o s , que, n a ausência de nante e a grande m a i o r i a , os 9 9 % . A i n d a não são movimentos c o m grande
políticas monetárias n a c i o n a i s , não t i v e r a m como se defender m i n i - apoio popular, mas têm u m peso simbólico importante, que pode funcionar
m a m e n t e d a crise, como p a r a os países e m melhores condições, que como u m a chispa p a r a estender a resistência aos ajustes neoliberais.
t i v e r a m de acudi-los sob o r i s c o de desabamento de t o d a a a r q u i t e t u r a O m o v i m e n t o e s t u d a n t i l c h i l e n o c o n s e g u i u t r a n s f o r m a r suas r e i -
do euro, o que t a m b é m os l e v a r i a de roldão. vindicações específicas - l u t a c o n t r a a privatização d a educação - n u m
A s respostas se d e r a m no m a r c o das políticas neoliberais d o m i - t e m a n a c i o n a l que, j u n t a n d o - s e às reivindicações de outros setores,
nantes, combatendo centralmente os déficits públicos, e não os efeitos p r o m o v e u u m a crise política geral e u m desgaste aparentemente i r r e -
económicos e sociais dessas políticas: a recessão e o desemprego. C o m o é versível do governo P i n e r a .
típico do neoliberalismo, a centralidade está n a estabilidade monetária, N o outro plano estrutural - o d a hegemonia i m p e r i a l no m u n d o - ,
e não no desenvolvimento económico e n a geração de empregos. 2011 trouxe a guerra d a Líbia como nova modalidade de intervenção
C o m o resultado, a m a i o r n o v i d a d e de 2011 foi que a E u r o p a i n - i m p e r i a l . Tomadas de surpresa pelas rebeliões populares n a Tunísia e no
gressou e m cheio n u m a fase recessiva, que deve d e m o r a r pelo menos Egito, que d e r r u b a r a m alguns de seus aliados fundamentais n a região, as
u m a década. D r a m a t i c a m e n t e , essa situação t e m levado os países e u r o - potências ocidentais r e v i d a r a m c o m apoio maciço, especialmente m i l i t a r ,
peus a l i q u i d a r as políticas sociais e o E s t a d o de b e m - e s t a r s o c i a l , que contra a oposição n a Líbia. P a r a isso, c o n t a r a m c o m o beneplácito d a
os c a r a c t e r i z a v a m desde o pós-guerra. Os outros países do centro do O N U - c o m sua cínica decisão de "proteção das populações civis" - e a
c a p i t a l i s m o - E U A , I n g l a t e r r a , Japão - defendem-se m i n i m a m e n t e p o r intervenção m i l i t a r pesada d a O t a n , que bombardeou o país durante mais
meio de políticas monetárias n a c i o n a i s , m a s estão envolvidos n a m e s m a de seis meses, contando c o m o protagonismo d a Inglaterra, França e Itália
tendência que a b r a n g e a t o t a l i d a d e dos países capitalistas centrais. e o apoio logístico dos E U A , até obter o que buscava: a q u e d a do regime de

A consequência m a i s i m p o r t a n t e de 2011 é a projeção de u m a r e - K a d a f i e sua morte. Foi u m a nova modalidade de intervenção n u m a região

cessão p r o l o n g a d a no centro do capitalismo, a q u a l será o cenário eco- que passou a ter instabilidades políticas prolongadas. Renovou-se assim o

nómico i n t e r n a c i o n a l por t o d a a segunda década no novo século. Não arsenal de formas de intervenção das potências imperialistas, voltadas ago-

significa que não haverá oscilações, m a s elas serão sempre entre recessão, r a p a r a a Síria e o Irã, enquanto a saída das tropas dos E U A do Iraque não
••••• • • • .••>•

Sobre os autores
entté as fá&||^^S.fgriias, À violência sô â t p r t ó f i ^ l & m i . çemo no Afega-
nistão. C o m o sucesso d a derrubada do regime desses dois países, os E U A
David Harvey é professor d a Universidade da Cidade de N o v a York (Cuny).
conseguiram i m p o r u m a vitória m i l i t a r , mas não u m a vitória política.
E n t r e suas obras estão Condição pós-moderna ( L o y o l a , 1992), O enigma do capital
A P r i m a v e r a Árabe trouxe u m elemento novo à região: sua p a r -
(Boitempo, 2011) eA companion to Marx's C a p i t a l (Boitempo, no prelo).
ticipação p o p u l a r estava como que congelada e, de repente, multidões
Edson Teles é doutor em Filosofia Política pela U S P e professor de Ética e D i -
o c u p a r a m praças p a r a d e r r u b a r ditaduras. O m o v i m e n t o , i n i c i a d o e m
reitos H u m a n o s do curso de Pós-Graduação da U n i b a n . Coorganizador do l i v r o O
2 0 1 1 , a i n d a deve ter longos desdobramentos já que as ditaduras bloquea- que resta da ditadura (Boitempo, 2010).
r a m o surgimento de forças alternativas durante décadas e, nas eleições,
E m i r Sader é professor aposentado da F F L C H - U S P , coordenador do Laboratório
tendem a t r i u n f a r aquelas que t i n h a m espaço, mesmo restritas aos ve- de Políticas Públicas da Uerj e secretário-executivo do Clacso. Publicou, entre outros, os
lhos regimes: partidos e movimentos islâmicos. M a s os processos e m paí- livros A vingança da história (2003) a A nova toupeira (2009), ambos pela Boitempo.
ses como a Tunísia e o E g i t o estão longe de t e r m i n a r , como demonstra o Giovanni Alves é doutor em Ciências Sociais pela U n i c a m p , livre-docente em
novo ímpeto das mobilizações egípcias, agora diretamente contra o p a p e l Sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. E n t r e seus livros está Trabalho
que os m i l i t a r e s t e n t a m m a n t e r n a transição política. e subjetividade (Boitempo, 2011).
C o m o as d i t a d u r a s só p e r m i t i a m espaço p a r a forças islâmicas Henrique Soares Carneiro é professor de História Moderna da USP. Seu último
m o d e r a d a s , são estas que t e n d e m a g a n h a r as p r i m e i r a s eleições, sem livro, Bebida, abstinência e temperança na história antiga e moderna (Senac, 2010),
que as forças a l i n h a d a s aos setores m a i s jovens e laicos p o s s a m , p o r recebeu diversos prémios, entre eles o G o u r m a n d World Cookbook Awards 2010.

e n q u a n t o , conseguir expressão política própria. Immanuel Wallerstein é doutor em Sociologia pela Universidade C o l u m b i a

O ano de 2011 acentuou a natureza prolongada e p r o f u n d a da atual e u m a das principais referências dos movimentos antiglobalização. E pesquisador-

crise capitalista, porém os modelos alternativos ao neoliberalismo a i n d a -sênior da Universidade Yale e autor de O universalismo europeu (Boitempo, 2007).

têm existências regionais - como é o caso d a América L a t i n a e, de m a n e i r a João Alexandre Peschanski ê doutorando em Sociologia n a Universidade de
W i s c o n s i n - M a d i s o n e integra o comité de redação d a revista Margem Esquerda.
distinta, d a C h i n a . D a m e s m a f o r m a , as debilidades d a hegemonia i m p e -
O r g a n i z o u , c o m Ivana J i n k i n g s , As utopias de Mlchael Lówy (Boitempo, 2007).
r i a l norte-americana - que não consegue manter e g a n h a r duas guerras
M i k e Davis é distinguishedprofessor n a Universidade da Califórnia e integra
simultaneamente, por exemplo — não encontram a i n d a formas m u l t i p o l a -
o conselho editorial d a New Left Review. Autor de vários livros, entre, eles Cidade
res c o m capacidade suficiente p a r a superar o m u n d o u n i p o l a r existente.
de Quartzo, Apologia dos bárbaros e Planeta Favela, publicados pela Boitempo.
A s s i m , o período de instabilidades e turbulências introduzidas pela crise
Slavoj ÍMzek é filósofo e psicanalista. Professor da E u r o p e a n Graduate School
do neoliberalismo e do i m p e r i a l i s m o se prolongará até que forças c o m c a -
e u m dos diretores do centro de humanidades da Universidade de Londres. Dele, a
pacidade de superação possam se afirmar. T ê m sido dados alguns passos,
Boitempo publicou Em defesa das causas perdidas (2011), entre outros.
e a própria capacidade de resistência do S u l do m u n d o - em especial d a
Tariq A l i é jornalista, escritor, historiador, cineasta e ativista político. E especialis-
América L a t i n a e d a C h i n a — à recessão no centro do capitalismo demons-
ta em política internacional e tem se destacado com análises sobre o Oriente Médio e a
t r a isso. M a s a disputa hegemónica a i n d a tende a s e prolongar por u m t e m - América L a t i n a . Autor, entre outros, do livro O poder das barricadas (Boitempo, 2008).
po longo. O certo é que o m u n d o sairá distinto desta segunda década do
V l a d i m i r Safatle é professor do Departamento de Filosofia d a U S P . A u t o r de
século X X I - melhor ou pior - , mas distinto, porque os sintomas de esgota- Cinismo e falência da crítica e coorganizador de O que resta da ditadura, ambos
mento dos seus esquemas económicos e políticos dominantes são evidentes. pela Boitempo.

Você também pode gostar