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Duas objeções à teoria de Rawls

Objeção 1: Incentivos
O argumento de Rawls a favor do princípio da diferença suscita duas grandes objeções. Em primeiro lugar,
quais são os incentivos? Se as pessoas talentosas só podem beneficiar dos seus talentos em
circunstâncias que ajudem os menos favorecidos, então e se elas decidirem trabalhar menos ou não
desenvolver as suas aptidões? Se os impostos forem elevados ou as diferenças de remuneração pequenas,
será que as pessoas talentosas que podiam ter sido cirurgiões não irão optar por áreas de trabalho menos
exigentes? Será que Michael Jordan não irá treinar menos o seu arremesso ou retirar-se mais cedo do que
seria de prever?
A resposta de Rawls é que o princípio da diferença permite desigualdades de rendimento por causa dos
incentivos, desde que os incentivos sejam necessários para beneficiar o grosso dos menos favorecidos.
Não basta pagar mais aos presidentes das empresas ou baixar os impostos sobre os ricos apenas para
aumentar o produto interno bruto. Mas se os incentivos gerarem crescimento económico que beneficie
mais os mais desfavorecidos do que se tivessem um acordo mais igualitário, então o princípio da diferença
permite-os.
É importante referir que permitir diferenças de salário por causa dos incentivos não é o mesmo que
afirmar que as pessoas bem-sucedidas têm um direito moral privilegiado aos frutos do seu trabalho. Se
Rawls tiver razão, as desigualdades de rendimento existem apenas na medida em que suscitem esforços
que, em última análise, ajudem os desfavorecidos, não porque os presidentes das empresas ou as estrelas
do desporto mereçam ganhar mais dinheiro que os operários fabris.

Objeção 2: Esforço
Isto leva-nos a uma segunda objeção mais polémica à teoria de justiça de Rawls: e o esforço? Rawls
rejeita a teoria de justiça meritocrática devido ao facto de os talentos naturais das pessoas não
dependerem de si. Mas então e o trabalho árduo que as pessoas dedicam a cultivar os seus talentos? Bill
Gates trabalhou árdua e intensamente para desenvolver a Microsoft. Michael Jordan dedicou muitas horas
a aperfeiçoar as suas aptidões basquetebolísticas. Não obstante os seus talentos e dotes, será que não
merecem as recompensas que os seus esforços produzem?
Rawls responde que até o esforço pode ser o produto de uma educação propícia. «Mesmo a vontade de
fazer um esforço, de tentar, e, consequentemente, ser merecedor no sentido comum depende de
circunstâncias familiares e sociais felizes.» A semelhança de outros fatores do nosso sucesso, o esforço é
influenciado por contingências pelas quais não podemos reclamar qualquer mérito. «Parece claro que o
esforço que uma pessoa está disposta a fazer é influenciado pelas suas capacidades e talentos naturais e
pelas alternativas de que dispõe. Em circunstâncias iguais, parece haver maior probabilidade de as
pessoas mais bem dotadas se esforçarem conscienciosamente...»
Quando os meus alunos tomam conhecimento do argumento de Rawls em relação ao esforço, muitos
opõem-se tenazmente. Afirmam que as suas conquistas, incluindo a admissão em Harvard, são reflexo do
seu trabalho árduo e não fatores moralmente arbitrários fora do seu controlo. Muitos desconfiam de
qualquer teoria de justiça que insinue que não merecemos moralmente as recompensas produzidas pelos
nossos esforços.
Depois de discutirmos o pressuposto de Rawls em relação ao esforço, realizo um inquérito não científico.
Refiro que os psicólogos afirmam que a ordem de nascimento tem influência no esforço e no empenho —
tal como o esforço que os alunos associam à entrada em Harvard. O primeiro filho tem, alegadamente,
uma ética de trabalho mais forte, ganha mais dinheiro e obtém mais sucesso em termos convencionais
que os irmãos mais novos. Estes estudos são controversos e não sei se as suas conclusões são
verdadeiras. Mas, por brincadeira, pergunto aos meus alunos quantos deles nasceram primeiro. Entre 75 e
80 por cento levantam a mão. O resultado foi o mesmo sempre que fiz o inquérito.

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Ninguém alega que o facto de ter sido o primeiro a nascer tenha sido obra sua. Se algo tão moralmente
arbitrário como a ordem de nascimento consegue influenciar a nossa tendência para trabalharmos
arduamente e esforçarmo-nos conscienciosamente, então Rawls talvez tenha razão. Nem mesmo o
esforço pode constituir o fundamento do mérito moral.
O pressuposto de que as pessoas merecem as recompensas resultantes do esforço e do trabalho árduo é
questionável por outra razão: embora os defensores da meritocracia invoquem frequentemente as
virtudes do esforço, não consideram realmente que só o esforço deva estar na base do rendimento e da
riqueza. Considere dois operários da construção. Um é forte e musculoso e consegue erguer quatro
paredes num dia sem grande esforço. O outro é fraco e magricela e não consegue arcar com mais de dois
tijolos de cada vez. Embora trabalhe muito, leva uma semana para fazer o que o seu colega musculado
faz, mais ou menos sem esforço, num dia. Nenhum defensor da meritocracia diria que o operário fraco,
porém esforçado, merece receber mais que o forte, em virtude do seu esforço superior.
Ou considere o caso de Michael Jordan. É verdade que praticou muito. Mas alguns basquetebolistas menos
bons ainda praticam mais. Ninguém diria que merecem um contrato melhor que Jordan como recompensa
pelas horas que dedicam. Portanto, apesar do que se diz sobre o esforço, na verdade é o contributo ou as
conquistas feitas que o meritocrata considera digno de recompensa. Quer a nossa ética de trabalho
dependa ou não de nós, o nosso contributo depende, pelo menos em parte, dos talentos naturais pelos
quais não podemos reclamar qualquer mérito.

M. J. Sandel, Justiça – fazemos o que devemos?, Presença, 2011, pp. 167-169.

1. Caracterize as duas objeções apresentadas à teoria da justiça de John Rawls.


2. De acordo com o texto, explique por que razão Michael Jordan deve ser recompensado.

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