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TETO E AFETO

SOBRE AS PESSOAS, AS COISAS E A


ARQUEOLOGIA NA AMAZÔNIA
MARCIA BEZERRA
TETO E AFETO
SOBRE AS PESSOAS, AS COISAS E A
ARQUEOLOGIA NA AMAZÔNIA
TETO E AFETO
SOBRE AS PESSOAS, AS COISAS E A
ARQUEOLOGIA NA AMAZÔNIA

MARCIA BEZERRA

Belém, Pará
GKNORONHA
2017
Teto e Afeto
Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia
Marcia Bezerra

Revisão
Vânia Lacerda

Fotos
Antonio Garcia, Marcia Bezerra, Flávio Silveira, Guilherme K. Noronha, Luis Ravagnani,
Leandro Cascon, Monica Lopes, Rafael Lobo e Alex Silva.

Projeto Gráfico, diagramação e capa


Guilherme K. Noronha e Emanoela Farias
gknoronha.com

Financiamento

Bezerra, Marcia, 1963 –


Teto e Afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia
na Amazônia/Marcia Bezerra – 1ª ed. – Belém: PA:
GKNoronha, 2017.
108p.
ISBN: 978-85-62913-29-7
1. Arqueologia – 2. Amazônia – 3. Cultura
Material – 4. Afeto – 5. Passado
Para Garcia
Que podríamos aprender mutuamente? Como começamos uma
conversación acerca de las cosas que sabes y las cosas que sé?

Shepherd e Haber 2011:20

Ora, se exigirmos da prática arqueológica também espaço para a


criatividade do outro, permitindo que outras explicações apare-
çam, as pedras moles podem ser entendidas como uma prática de
sentido, uma leitura do mundo. Experimentar a ideia de reversibi-
lidade na arqueologia [...] abre a possibilidade do choque cultural
tornar-se produtivo, e não constrangedor. Ao invés de um con-
senso, o que proponho é que essa relação permita comparações,
e a partir delas, que seja possível traduzir estes conhecimentos,
ativando diálogos.

Cabral 2014: 6

An archaeology which will be open to and appreciative of the


other; an archaeology which will be ready to be “moved” and “tou-
ched” by the affective (and emotive) import of the world. That is,
an enquiry on and engagement of life”

Hamilakis 2013:15
PREFÁCIO

Por uma arqueologia com pessoas


Acompanho a trajetória acadêmica de Marcia Bezerra desde
2004, quando a conheci no Instituto Goiano de Pré-História e Antro-
pologia (IGPA/PUC-Goiás), durante uma fala que realizei naquela ins-
tituição sobre a minha tese de doutorado a convite de nosso amigo co-
mum, Manuel Ferreira Lima Filho. Recordo que ao nos conhecermos a
nossa empatia foi recíproca e imediata, senti que entre nós havia uma
série de pontos em comum, portanto, de convergências muito sutis que
nos aproximavam em termos afetivos e intelectuais, aspectos que se sedi-
mentariam ao longo do tempo efetivando-se tanto numa grande amizade
quanto numa parceria intelectual que dura mais de 10 anos.
Foi com alegria e admiração que passei a tê-la como colega junto ao
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará
(IFCH/UFPA) e, desde então, temos convivido academicamente de ma-
neira a construirmos juntos possibilidades de diálogos profícuos que apro-
ximam Arqueologia e Antropologia. Foram GTs que coordenamos e/ou
participamos, projetos que colaboramos, artigos que escrevemos, orienta-
ções que compartilhamos, bancas que estivemos juntos, enfim, um esforço
comum de construirmos conhecimento na Amazônia Paraense.
Tenho clareza que a sua perspectiva inquieta em relação às coisas
referentes ao humano, bem como a forma como pensa e desenvolve o seu

6 Teto e Afeto Ir: Sumário


trabalho em Arqueologia, tem influenciado, em muito, o meu exercício
como antropólogo. E é assim que vejo este livro instigante que ela traz
à tona e nos oferta, a partir da experiência de longa data que acumu-
la como arqueóloga que se distingue por seus interesses voltados a uma
arqueologia que insere/envolve pessoas e suas agências no trato com os
artefatos-objetos-coisas.
A Arqueologia que Marcia pratica está interessada nos sujeitos em
ação que lidam com as coisas do passado na vida vivida. Arqueologia
etnográfica ou etnografia arqueológica; arqueologia para além de jargões,
desconstruindo o que se entende por pública, ou àquela afeita à educação
patrimonial, ambas não raro redutoras e “conscientizadoras do Outro.
Trata-se de uma arqueologia sensível que mais do que revolver
substratos evoca memórias que pulsam para além do objeto coisificado
por um patrimonialismo obtuso, e que emerge desde o seu esforço de
pensar os sentidos que as coisas possuem, agenciam, projetam, evocam,
em paralelo aos agenciamentos, embaralhamentos de sentidos e ressig-
nificações que experimentam pela complexidade criativa inerente à vida
vivida das pessoas que praticam os lugares, como bem ensinou Certeau
(1994). Sim, implica ressonâncias, como diriam alguns, mas neste caso
relativas a um campo rico e pouco explorado que tende a transfigurar o
lugar canônico do patrimônio.
O livro que você tem em mãos é um exercício epistemológico que,
no meu ponto de vista, atravessa fronteiras acadêmicas e toma para si a
tarefa de traçar um rumo diverso e, por isso, mais humano para as coisas:
preocupada que está com a potência imaginária das coisas no cotidiano
das pessoas, a autora busca mediante reflexões em torno do que chamaria
aqui de uma arqueologia da memória, reconsiderar o “lugar da memó-
ria” pela memória do lugar – dimensões que também tenho buscado em
meus estudos, e é neste sentido, que encontramos afinidades intelectuais
entre nossos trabalhos.
Finalmente, é preciso dizer que a arqueóloga com longa experiên-
cia e com uma trajetória consolidada na Arqueologia brasileira, enquanto
pessoa simples e ética que é – o que se reflete em sua escrita clara e de boa
leitura, com a evidente preocupação com a alteridade – apresenta-nos
sob a forma de livro uma parcela da riqueza de seu trabalho. Espero, sin-

7 Teto e Afeto Ir: Sumário


ceramente, que em breve ela nos presenteie com outras obras que, como
esta, sejam capazes de continuar mostrando uma Arqueologia afeita as
questões humanas, vividas no cotidiano das inúmeras comunidades que
lidam com artefatos-coisas, ou que vivem no entorno de sítios arqueoló-
gicos, como uma forma de produzir conhecimento que evidencie o res-
peito tanto às populações do passado quanto àquelas do presente, consi-
derando os seus entrelaçamentos no espaço e no tempo.
A todos uma boa leitura!

Flávio Leonel Abreu da Silveira


Antropólogo (UFPA)

8 Teto e Afeto Ir: Sumário


Agradecimentos

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-


gico – CNPq. Programa de Pós-Graduação em Antropologia/PPGA, da
Universidade Federal do Pará. Moradores de Joanes/Marajó, São José e
Água Azul/Rurópolis, Campo Verde/Itaituba, Primavera e Serra Pelada/
Curionópolis, no estado do Pará, que me acolheram e que, paciente-
mente, contaram suas inspiradoras histórias com as coisas. Denise Pahl
Schaan, pelos convites de trabalho, que me levaram a tantos (en)cantos
na Amazônia. Flávio Silveira, amigo e brilhante interlocutor, com quem
tenho aprendido muito sobre as paisagens amazônicas. Mariana Cabral,
amiga e colega de trabalho, por me incentivar a escrever sobre essas coi-
sas e por partilhar a paixão por outras arqueologias. Eduardo Neves e
João Saldanha, pelas estimulantes provocações sobre essas outras arqueo-
logias. Anne Pyburn, pelo constante e incansável apoio e com quem divi-
do a coordenação do grupo de pesquisa Arqueologia no Contemporâneo,
junto ao CNPq. Suzana Hirooka, pelo convite de trabalho, que me levou
à Primavera, na região do Salgado, Pará. Durante as pesquisas de campo
tratadas neste livro contei com a companhia de vários colegas e alunos,
a quem sou muito grata: Fernando Marques, Leandro Cascon, Caroline
Caromano, Luzia Ferreira, Alex Silva, Irislane Moraes, Angelo Lima, Mo-
nica Lopes, Luis Ravagnani, Vera Portal, Hannah Fernandes, Carolina
Silva, Maíra Airoza e Raquel Ramos. Meus alunos e meus orientandos,

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que com suas ideias e inquietações têm me ajudado a pensar sobre as
relações entre as pessoas e as coisas na Amazônia. Vania Lacerda, pela
revisão e pela solidariedade. Guilherme Noronha, editor deste livro, pela
inestimável paciência com o meu tempo.

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Sumário

Agradecimentos 13

Apresentação 17

O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas


e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó,
Amazônia, Brasil. 21

Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia:


os objetos do passado como memorabilia das pessoas
no presente. 49

As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada,


Amazônia. 75

Ensaio Fotográfico
Armadilhas no Tempo: A Pesca em Joanes, Ilha do Marajó 89

Sobre a Autora 105

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Apresentação

Nos últimos quinze anos, tenho me dedicado a mapear e refletir


sobre as relações entre as pessoas e o patrimônio arqueológico. Trabalhei
em várias partes do Brasil, observando as formas pelas quais as pessoas
se engajam com as coisas do passado. No início estava preocupada com
as representações sociais da arqueologia, depois passei a considerar os
“benefícios” da educação patrimonial na “conscientização” das pessoas
sobre a importância da preservação. Anos depois concluí que a educação
patrimonial domesticava as pessoas e que a Arqueologia Pública era o ca-
minho para reconhecer as diversas percepções sobre o passado. Recente-
mente, coloquei em dúvida a própria existência da Arqueologia Pública1,
mas isso é outra discussão e não será desenvolvida neste pequeno livro.
Essas frutíferas frustrações começaram a se delinear em 2008, quan-
do fui trabalhar na Amazônia. Os encontros que tive com diversos coletivos
no estado do Pará revelaram nuances das relações das pessoas com objetos
e sítios arqueológicos que desafiaram as minhas perspectivas sobre o esta-
tuto do patrimônio na vida delas. Inicialmente, percebi que as pessoas sem-
pre demonstravam algum tipo de relação com as coisas do passado, ainda
que fosse uma “não relação”. Isso refutava o discurso criado pelo Estado, e
repetido por muitos de nós, de que “o patrimônio local não é valorizado”,

1 Projeto de Bolsa de Produtividade CNPq – “Os Caminhos da Arqueologia Pública


no Brasil” (2015-2018).

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“a comunidade não reconhece o valor”, “não dá importância”. O discurso
autorizado do patrimônio2, preocupado principalmente com a preservação
das narrativas por ele legitimadas, não problematiza as relações entre as
pessoas e as coisas do passado, prefere normatizá-las. A patrimonialização
conservadora dessas relações esvazia a sua carga simbólica. Os sentidos
que constituem essas (i)materialidades fora dos cânones preservacionistas
são tidos como ilegítimos. Assim, ricas narrativas que descrevem fenôme-
nos – eventos ou coisas – relacionados de forma direta com objetos e sítios
arqueológicos são desqualificadas.
Ouvi histórias de assombrações que circundam os sítios; da “terra
falsa” que esconde um tesouro e uma maldição; dos objetos que caem do
céu, como os machados polidos; das coisas que nascem na terra, como
cacos de cerâmica; das moedas que eram dos índios. Essas e outras inter-
pretações se repetiam em vários lugares, o que indicava certa ressonância
do imaginário amazônico, que é povoado por seres e tesouros encanta-
dos. Constatei que os moradores com os quais trabalhava, assim como
eu, observavam, descreviam e interpretavam os objetos e os lugares ar-
queológicos. Isso me fez reconhecer a complexidade e a potência dessas
outras epistemologias sobre a cultura material arqueológica.
Percebi que muitos moradores das localidades nas quais desenvolvi
pesquisas guardavam objetos arqueológicos entre seus pertences pessoais.
Crianças coletavam moedas, adultos reuniam fragmentos de louça, cacos
de cerâmica e lâminas de machado polidas. Aos poucos, fui tomando ciên-
cia de algo que estava o tempo todo na minha frente: o afeto que as pessoas
tinham por vários objetos ou lugares, independentemente de sua relação
com o passado histórico e/ou arqueológico. Moedas organizadas em caixas
e separadas dos brinquedos do dia a dia, louça guardada com as fotos de
família, lâminas de machado que contavam sobre a infância dos filhos, ru-
ínas que testemunharam namoros, camboas que reuniam famílias felizes.

2 Authorized Heritage Discourse (AHD) Surge na Europa no Século XIX e se refere


ao discurso de constituição e legitimação de noção de patrimônio que sublinha a
sua materialidade, assume a sua importância inata e, portanto, tem como foco a sua
‘preservação para o futuro’. Smith, L. 2011 El ´espejo patrimonial´ ¿ Ilusión narcisista
o reflexiones múltiples? Antípoda, 12: 39-63. (p.43)

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Mas também reconheci que em alguns contextos o patrimônio ar-
queológico autorizado não tem lugar na vida de pessoas que, por outro
lado, constroem outras paisagens e narrativas memoriais e nas quais as
coisas do passado recente assumem a centralidade.
Todos esses contextos têm se mostrado bons para pensar sobre os
intrincados, singulares e complexos arranjos que emaranham a biografia
das pessoas e das coisas na Amazônia. Emprego o termo “coisa” no sen-
tido dado por Miller3, que está menos preocupado em definições e mais
interessado em reforçar a ideia de que os “trecos, troços e coisas” nos
constroem. Para Miller a ideia de “coisa” é de algo que seja o mais abran-
gente possível e que possa abarcar uma diversidade de “trecos que não
são necessariamente coisas que podemos segurar ou tocar”. O exercício
de olhar para o que convencionamos chamar de “objeto, artefato e patri-
mônio arqueológicos”, sob a perspectiva de Miller, nos permite mundani-
zar essas (i)materialidades e, assim, compreender outros usos, sentidos e
momentos de suas trajetórias de vida, vividas com as pessoas.
Entendo que, assim, podemos expandir este fenômeno chamado
“arqueologia” para a compreensão de outras relações construídas pelas
pessoas no presente com as coisas do passado. Podemos pensar em uma
arqueologia da memória e do afeto das pessoas vivas na Amazônia, esta-
belecendo a configuração de um espaço de diálogo entre todos os envolvi-
dos nos processos de explicar o mundo e permitindo que nossas histórias
transbordem umas sobre as outras, em algum ponto além da arqueologia.
Reuni quatro ensaios, um deles fotográfico, que trazem elementos
para essas discussões, que se situam nos interstícios da Arqueologia e da
Antropologia. As ideias apresentadas são resultantes de pesquisas ainda
em gestação, portanto, os “fios soltos” não foram evitados, mas mantidos
como possibilidades de reflexão sobre essas coisas do passado e sua agên-
cia na vida das pessoas no presente.

3 Miller, D. 1987 Material Culture and Mass Consumption. Basil Blackwell.


Miller, D. (Ed.) 1998 Material Cultures: why things matter. University of Chicago Press.
Miller, D. 2013 Trecos, Troços e Coisas: estudos antropológicos sobre a cultura ma-
terial. Rio de Janeiro: Zahar. (Trad. de “Stuff ” por Renato Aguiar), p. 19.

14 Teto e Afeto Ir: Sumário


O pescador Joelson em uma das camboas da Praia Grande em Joanes.
O Pegador de Peixe: os pescadores, as
camboas e a arqueologia na Vila de Joanes,
Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil.

Os estudos voltados para a compreensão das percepções sobre


o patrimônio arqueológico, embora crescentemente numerosos no Brasil
(Barreto 2013; Bezerra 2011, 2012b; Cabral 2014; Carneiro 2014; Fernan-
des, 2014; Gomes, Costa e Santos 2014; Leite 2014; Machado 2014; Mo-
raes 2012; Moraes e Bezerra 2012; Najjar 2001; Rocha; Beletti, Py-Daniel,
Moraes e Oliveira 2014; Schaan e Marques 2012; Silva 2002; Silva, Bes-
palez e Stucchi 2011; Troufflard 2012) e no exterior (Ayala 2007; Ebbitt
2010; Duin, Toinaik, Alupki e Opoya 2014; Ferreira, Ferreira e Rotman
2011; Gnecco e Ayala 2010; Londoño 2003; Okamura e Matsuda 2011;
Pyburn 2009), ainda são tímidos com relação aos usos cotidianos dessas
materialidades no presente. Refiro-me à ideia de pensar não apenas nas
hermenêuticas dessas materialidades, mas também no emprego da sua
própria substância material em atividades ordinárias contemporâneas.
As reflexões sobre essas ações que implicam a fruição táctil direta com
a coisa em si (Bezerra 2013) e a inevitabilidade do desgaste físico da ma-
téria têm sido evitadas nos círculos acadêmicos. Em sua maioria as pes-
quisas sobre os usos do [das coisas do] passado voltam-se para o uso de
estruturas abandonadas por populações no passado (Stanton e Magnoni
2008); para a utilização contínua de estruturas arqueológicas por comu-
nidades de descendentes (v. Colwel-Chanthaphonh e Ferguson 2008); e

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para a ressignificação de objetos e sítios arqueológicos por distintos gru-
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

pos contemporâneos (Cabral e Saldanha 2009b; Gnecco e Hernandez


2008; Wallis e Blain 2003).
Apesar disso, muitos estudos destacam o tema da preservação do
passado, mais especificamente da conservação de sua dimensão material
como um desafio contemporâneo e, inegavelmente, necessário. Ou seja,
as apropriações locais de sítios e artefatos arqueológicos seriam “boas
para pensar” sobre as relações entre pessoas no presente e coisas do pas-
sado, mas não seriam benéficas para os discursos preservacionistas. Fica
entendido que tais usos destroem o patrimônio arqueológico e impedem
a preservação do passado para as futuras gerações. No entanto, as obser-
vações e relatos informais de pesquisadores sobre outros usos do patrimô-
nio arqueológico indicam que ainda há um vasto e interessante campo de
reflexões a ser explorado, principalmente se o paradigma da preservação
for problematizado (Holtorf 2005, 2012).
É nessa perspectiva que discuto as apropriações locais de antigas ar-
madilhas de pesca – camboas – na Vila de Joanes, Ilha do Marajó. Baseada
em pesquisa conduzida com um grupo de pescadores, considero o seu es-
tatuto como coisa viva, presente nas suas narrativas memoriais, e proponho
que os processos de arruinamento e uso das estruturas fazem parte da tra-
jetória de vida das camboas e dos próprios pescadores. Concluo que pensar
sobre a vida social e cotidiana desses objetos a partir da lógica preservacio-
nista, interdita as sensibilidades contemporâneas sobre eles e nos impede de
perceber que as coisas do passado contam sobre a vida das pessoas no presente.

Dos Patrimônios em Joanes


A Vila de Joanes situa-se na região Nordeste da Ilha de Marajó,
na mesorregião do arquipélago de mesmo nome, e é um dos cinco dis-
tritos do município de Salvaterra, cuja sede dista 17 km. Localizado em
área rural, o município, tem na cultura do abacaxi a sua principal fonte
de economia, seguida pelo plantio da mandioca. As roças de milho, arroz
e feijão se destinam apenas à subsistência familiar.

17 Teto e Afeto Ir: Sumário


Vista da Praia Grande de Joanes.
Camboa em Panaquatira, Maranhão.

Praça central de Joanes com ruínas ao fundo.


Joanes é uma comunidade de pequena escala, com 1800 moradores1,
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

na qual os laços de parentesco e as “relações face a face” (Feldman-Bian-


co, 2010: 30) unem parte expressiva da população. A pesca, a agricultura
de subsistência e o turismo – atividade que vem se intensificando nos
últimos anos (Bezerra 2014) - constituem a base econômica da vila, que
recebe significativo fluxo de turistas brasileiros e estrangeiros atraídos
por suas praias.
Um dos pontos turísticos da vila é o sítio arqueológico Joanes (PA-
-JO-46), formado por remanescentes de ocupações pré-coloniais e histó-
ricas. As ruínas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário – provavelmente
erigida no século XVIII - estão assentadas sobre antigo aldeamento indí-
gena (Lopes 1999; Schaan e Marques 2006; Marques e Bezerra 2009). A
poucos metros das ruínas, nas Praias do Porto e do Pescador, há rema-
nescentes de várias camboas.
A aldeia de Joanes era uma das aldeias constituídas na, então de-
nominada, Ilha Grande de Joanes (hoje Ilha do Marajó), a partir de 1653.
Ao ser elevada à categoria de vila, Joanes, passou a se chamar Vila de
Monforte (Silva, A. 2012). Com o fim do Diretório dos Índios, em 1798, a
vila voltou a receber o nome de Joanes, que se mantém até os dias de hoje.
Por dois séculos, a aldeia de Joanes e, posteriormente, Vila de Monforte
foi importante centro comercial e militar da Ilha Grande de Joanes, um
contexto que reunia europeus, missionários e indígenas (Silva, A. 2012;
Schaan 2009).
Os moradores têm relações complexas com o sítio: ora ele é
considerado como elemento fundamental para o desenvolvimento do
turismo na vila, ora ele é tido como obstáculo à construção de esta-
cionamento e estruturas de lazer na praça. As crianças coletam e cole-
cionam objetos – especialmente moedas – que são encontrados pelas
ruas e quintais de casas da vila (Bezerra 2011, 2012a; Ravagnani 2011),
enquanto os adultos têm recordações sobre momentos da infância e
da juventude passados no entorno das ruínas. Assim como as crianças
hoje, eles também brincavam com objetos encontrados de forma fortui-

1 Dados da Unidade de Saúde da Família Manoel Frazão situada na vila de Joanes


(2012).

20 Teto e Afeto Ir: Sumário


ta: como moedas e miçangas. Os pescadores lembram-se da antiga sede
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

de sua associação nas proximidades das ruínas.


Hoje, a igreja “nova”2, construída em 1905, a escola e a praça – ou
seja, os espaços de socialização e de sociabilidade de Joanes - compõem
o entorno das ruínas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que inclui
outros “patrimônios” moldados pelos sentidos a eles atribuídos pelos
moradores. Nessa categoria se inserem: os poços (Matos Junior e Bezer-
ra 2011), o farol (Ravagnani 2011) e as camboas (C. Silva, 2012). Esses
três elementos constituem, de forma direta ou indireta, as narrativas
dos moradores sobre a sua vida, incluindo as experiências fantásticas,
aqui entendidas como parte da dimensão cotidiana (Silveira e Bezerra
2012). O espaço entre as ruínas da “igreja velha” e a “igreja nova” faz
parte da paisagem fantástica construída por essas sensibilidades. O rio e
a praia - os locais da pesca - são povoados por seres fantásticos (Silveira
e Bezerra 2012), e o farol do Século XX, além de ser uma referência
constante, é a estrutura responsável pela diminuição das aparições, uma
vez que a luz impede que os seres encantados sejam vistos. Segundo os
moradores, havia mais “visages” quando não havia luz na Vila. Assim, é
frequente observar a presença desses três ícones nas elaborações extra-
ordinárias sobre o passado, mas também sobre o presente.
Imagens das ruínas, das praias e da pesca são impressas em
cuias, camisetas, marcadores de livros e outros produtos artesanais
confeccionados pela associação de artesãos local, a AERAJ – Asso-
ciação Educativa Rural e Artesanal da Vila de Joanes. Esses ícones,
sobretudo as ruínas e a pesca, têm papel fundamental na constituição
da identidade da Vila, chamada por alguns moradores como “a vila
das ruínas”, em oposição a outras localidades do arquipélago do Ma-
rajó. Essa percepção levou a diretoria da AERAJ a escolher a imagem
das ruínas como identidade visual da associação, tema já discutido em
trabalhos anteriores (Bezerra 2014).
As camboas, por sua vez, não são inseridas na mesma categoria
das ruínas, poços e dos objetos arqueológicos encontrados e coleciona-

2 Uma parede lateral da igreja antiga foi aproveitada na construção da igreja nova.

21 Teto e Afeto Ir: Sumário


O pescador Joelson em uma das camboas da Praia Grande, Joanes.
Camboa da Praia do Porto reconstruída pelos pescadores em Joanes.

Camboa da Praia Grande em Joanes.


dos pelos moradores. As percepções dos moradores sugerem que elas
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

não têm a mesma profundidade temporal dos demais remanescentes do


período colonial na vila. Não é o tempo histórico que constitui as nar-
rativas sobre as armadilhas, mas o tempo memorial e a sua relação com
as paisagens da pesca em Joanes, como veremos em seguida.

O ‘Pegador de Peixe’3
“Pegador de peixe” é a categoria usada por Dona Maria, uma das
moradoras mais antigas de Joanes, para designar as camboas. As camboas
- ou gamboas - são armadilhas de pesca do tipo bloqueio e constituem, ba-
sicamente, a construção de uma barragem na zona de oscilação das marés.
Os peixes nadam para dentro das armadilhas durante a maré alta, sendo
capturados pelas paredes das estruturas quando o nível da água abaixa,
tornando fácil a sua apreensão. Estratégias de pesca por bloqueio são utili-
zadas em ambientes marinhos e ribeirinhos no Brasil (Fidellis 2013; Furta-
do 2002; Giglio e Freitas 2013; Maneschy 1993; Noelli, Mota e Silva 1995;
Piorski et al 2009) e em outras partes do mundo (Bannerman e Jones 1999;
Dawson 2004; Gribble 2006; Magalhães e Baptista 2007).
A denominação “camboa” é comumente utilizada nos relatos de
viajantes (D´Abeville 1632; Daniel 1722-1776), mas há diversas outras
denominações relativas à “armadilha do tipo tapagem com função de
bloqueio”, tais como: pari, cacuri, cercada (IBAMA 2010) e ainda gambo-
as, barragens e currais de pedra, entre outros. Noelli, Mota e Silva (1995)
mencionam paris construídos e utilizados por grupos indígenas históri-
cos no sul do Brasil. Os autores basearam suas pesquisas em relatos de
cronistas dos séculos XV e XVI e localizaram sete paris no Posto Indígena
de Apucarana, no estado do Paraná. No estudo realizado nos anos 1990,
os autores indicavam a importância de pesquisas sobre as armadilhas de
pesca e ressaltavam a lacuna de informações arqueológicas e históricas

3 Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq: O ´Pegador de Peixe´: Um projeto de


Arqueologia Etnográfica em uma Vila de Pescadores na Ilha do Marajó, Amazônia,
Brasil. (2011-2013)

24 Teto e Afeto Ir: Sumário


sobre tais ocorrências. Mesmo após duas décadas, não é possível afirmar
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

que houve mudanças nesse panorama.


No contexto amazônico, as pesquisas arqueológicas sobre o manejo
ecológico de sociedades complexas no Marajó, desenvolvidas por Scha-
an (2009), descrevem a escavação de lagos artificiais para barrar a saída
dos peixes na maré baixa. Segundo a pesquisadora, as populações atuais
também constroem barragens, currais, fecham os rios com redes e cercas e
envenenam a água com “timbó” (Serjania fuscifolia) (Schaan 2009:51). De
fato, esse tipo de armadilha ainda é utilizado na região Norte. Há diver-
sas pesquisas sobre a produtividade e eficiência da pesca de curral no Pará
(Maneschy 1993; Fidellis 2013) e no Maranhão (Piorski et al 2009).
As estratégias de atração de peixes têm sido objeto de estudo de di-
versos pesquisadores. Lévêque (1999) desenvolveu pesquisas na Bolívia, Ja-
pão e África, sobre distintos métodos de pesca, com auxílio de anzóis, assim
como outras estratégias de captura de peixes. Kanawabe (1999), por sua vez,
discutiu sobre diversas técnicas de pesca adotadas entre os séculos XVII e
XIX no Japão, considerando barragens construídas com madeira e redes, e
ainda revela a existência de vestígios dessas estruturas que remontam a 2000
a.C. As armadilhas feitas principalmente de pedras, tais como as camboas de
Joanes, também são mencionadas na literatura especializada. Gribble (2006)
cita o caso das camboas (fish-traps) situadas na costa sudoeste de Cape Town,
África do Sul. Pela descrição do autor, as armadilhas são formadas por pedras
alinhadas em forma de círculos, cujas faces interiores são dispostas de forma
vertical, visando à impossibilidade de saída dos peixes capturados. Gribble
(2006: 31) lamenta que as camboas não sejam mais utilizadas na atualidade,
não obstante o seu bom estado de preservação. O autor discute a apropriação
dessas estruturas pelo turismo, a sua utilização como instrumento educativo
em favor da preservação e a preocupação com sua integridade física.
Com esse mesmo pensamento, Magalhães e Baptista (2007) mos-
tram os resultados positivos de um projeto sobre o patrimônio aquático
do litoral do Minho. Por meio de pesquisas em arquivos históricos de
Portugal, assim como iconografias e fotografias antigas, os pesquisado-
res afirmam que as camboas remontam ao século XIII e que até os anos
1940 elas eram consideradas como propriedade imobiliária no país. A
partir daí foram destruídas em função da legislação de pesca, que passou

25 Teto e Afeto Ir: Sumário


Rede de pesca fixada em área próxima das ruínas em Joanes.
Camboa no caminho entre Joanes e Água Bôa.

Preparação da pesca na área interna das camboas em Joanes.


a considerá-las ilegais, já que ao impedir a pesca seletiva4, colocava várias
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

espécies de peixes em perigo de extinção.


Há 15 camboas cadastradas no município de São José Ribamar,
no Maranhão (IPHAN 2014), dentre elas as da Praia de Panaquatira5,
que são similares as de Joanes e formam grande conjunto com variados
tamanhos. Assim como em Joanes, as paredes das camboas de Panaqua-
tira são aproveitadas como barreiras naturais para a pesca realizada nos
currais feitos de madeira. Na Ilha de Mosqueiro, junto à cidade de Belém,
também é possível observar uma grande camboa localizada na Praia de
Maraú, na qual se evidencia um conjunto de amoladores/polidores fixos
(Silveira, Bezerra, Marques e Oliveira 2012).
As camboas existentes na zona de oscilação da maré nas praias da
vila de Joanes foram integrantes do sistema ligado ao Pesqueiro Real, que
abastecia a cidade de Belém com a pesca da tainha, durante o período co-
lonial (Lopes 1999: 115; Silva, A. 2012). A documentação histórica indica
que o volume de tainhas6, principal pescado da época, poderia chegar a
19.000 unidades7 (Silva, A. 2012.), e na pesquisa desenvolvida por Lopes
(1999) o autor afirma que eram enviadas, por mês, para Belém, cerca de
30.000/40.000 tainhas.
As fontes históricas8 pesquisadas por A. Silva (2012) indicam “que
nas praias desta vila há várias camboas donde este povo apanha o seu

4 Giglio e Freitas (2013) discutem os problemas da “pesca com rede de camboa” que é
proibida na RESEX de Cassurubá, em Santa Catarina, por provocar a diminuição da
população jovem de diversas espécies na região. A denominação desse tipo de pesca
não se refere à camboa aqui tratada – armadilhas de pedra -, mas a um tipo de pesca
com malha de rede que tem o mesmo princípio: prender os peixes que se encontram
nas raízes da vegetação de manguezais.
5 A visita ao local foi realizada em companhia do arqueólogo Arkley Bandeira.
6 Gênero Mugil sp
7 Códice 71 – Monforte – Documento 22. Correspondência de André Bernardes Ga-
vinho para o Governador Fernando da Costa Ataíde, datada de 13 de setembro de
1767.
8 O levantamento de fontes históricas foi realizado por Alexandre Silva, participante
dos projetos de pesquisa que desenvolvi em Joanes, para a sua pesquisa de mestrado
(ver A. Silva 2012).

28 Teto e Afeto Ir: Sumário


peixe para a sua sustentação e remédio de sua necessidade”9. No ano de
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

1763, a Câmara aprova:

“ser muito justo se concertarem as referidas camboas (...) pois es-


tavam caídas e por este respeito padecia o povo (...)” por não ha-
ver em Monforte “igarapés, ou rio por donde possam mariscar”10
(...) “Serve esta de por na presença de V. Exª que nas praias desta
vila há várias camboas (...) camboas me asseverão estão levantadas
quase desde o princípio desta vila (...). “Estimarei que V. Exª se
digne dar por bem feita esta resolução e concerto de camboa, para
cuidar por bem todo trabalho empregado e fatiga que tenho tido.
E hei de ter a lhe se finalizarem de consertar toda”

João Daniel (1722-1776: 113-114), ao tratar das camboas na Ama-


zônia, indica diferenças nos materiais construtivos utilizados e descreve
o seu formato e ambiente de localização:

“Alguns moradores que vivem ao pé das praias do salgado usam de


camboas, que é outro modo mui fácil de pescar, e cada uma é para
os seus donos um morgado, sem a precisão de mais pescadores
ou redes. São as camboas umas tapagens de pedra lançada como
a montão nas praias com o feitio de meio arco, ou de meia-lua,
cujas pontas vêm a rematar em terra. Enchem-se de água na en-
chente, e de peixe; e como este fica enganado té que já a água lhe
vai retirar para o mar, já a pedraria fica sobre a água e topando
com ela não tem mais remédio que morrer em seco; e então vão,
ou mandam os donos ajuntar o peixe que acham, que às vezes é
tanto, que são necessários muitos homens para o carregarem, por-
que são camboas mui extensas; e nelas fica toda a casta de peixe;
e para o colherem vivo, ordinariamente as fazem de sorte que nas
vazantes sempre lhes fique alguma água. Outro modo de camboas

9 Correspondência de Diversos com o Governo. Códice 130, doc. 37.


10 Idem.

29 Teto e Afeto Ir: Sumário


Camboas de Joanes
Ruínas pintadas em cabaça produzida pela AERAJ, Joanes.

Camboa de Joanes
usam outros nos rios de lodo, porque aqueles só usam nas praias
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

de areia; nas praias de lodo, e rios, em lugar dos montões de pe-


dras usam de estacas a pique de troncos de palmeiras rachado, e
feitos em tiras com o mesmo feitio de meia-lua na distância que
querem; ficam estas estacas debaixo da água nas enchentes, e por
isso entra o peixe para dentro, mas se não sai antes que a vazante
chegue às estacas, depois que estas ficam descobertas já não pode
sair e na total vazante fica totalmente em seco. Há ocasiões em
que fica muito peixe, sem mais trabalho do que ir a buscá-lo, e de
quando em quando vigiar a camboa, que se não danifique faltando
alguma estaca. Estes dois modos de camboas só se usam nos rios,
e praias, onde alteiam e abaixam as marés; e sendo uma obra mui-
to fácil, e de muita conveniência para seus donos, são poucos os
curiosos que as tenham, a respeito dos muitos que as podiam ter
como são todos os moradores do salgado, e ainda muitos nos rios
doces, por subirem por elas às marés alteando, e abaixando. Quase
semelhante a este é o cubo, de que usam muitos”

Apesar da antiguidade registrada nas fontes históricas, as camboas,


não são inseridas pelos pescadores na mesma categoria das ruínas, poços
e dos objetos arqueológicos encontrados e coletados pelas ruas da peque-
na vila (Bezerra 2011, 2012; Ravagnani 2011). Em suas narrativas, subjaz
a ideia de que elas não têm a mesma profundidade temporal dos demais
remanescentes do período colonial na vila. No caso das armadilhas, o que
está em jogo não é o tempo histórico, mas a dimensão memorial e o seu
lugar na paisagem do trabalho em Joanes, ou seja: a pesca. Apesar disso,
o trabalho da pesca tem uma história de longa duração na vila.
Com base em suas recordações de infância, afirmam que as arma-
dilhas deveriam ter cerca de um metro de altura. Joelson, um dos pesca-
dores que acompanhei durante a pesquisa, afirma, como os demais, que
as camboas não são mais usadas porque estão quebradas ou “estão rasas”,
numa alusão à destruição de suas paredes. No entanto, observei em vá-
rios momentos pescadores armando os seus currais de pesca de madeira
ou as suas redes (malhas) dentro da área das camboas, aproveitando o

32 Teto e Afeto Ir: Sumário


que ainda resta de suas paredes como barreira para os peixes. Ao fazerem
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

isso, sobrepõem duas paisagens de trabalho no tempo: as armadilhas de


ontem e dentro delas, por cima delas, as armadilhas de hoje.
Joelson, ao descrever a maneira como as camboas são utilizadas,
diz que elas têm o formato de “semilua”, mas que com o curral armado em
uma de suas extremidades, fica “assim como se fosse um coração”. Ele se
refere ao desenho formado pelas paredes da camboa e ao que se denomi-
na por “salão”, o local onde os peixes ficam presos. A memória afetiva de
familiares dos pescadores mais velhos também é ativada pelas camboas.
Durante a pesquisa de A.C. Silva (2012: 33) eles recordaram as idas à
noite para as camboas. A viúva de um pescador, nostálgica, diz que houve
uma época em que “a camboa era feliz”, numa referência ao passado de
abundância na pesca. Ela explica:

“Feliz porque dava peixe né. Ai! Dava muito peixe, a gente ia com
o terçado e o paneiro, quando enchia a gente botava na costa e vi-
nha embora com o peixe, era tão bom, tempo bom não volta mais,
minha filha, te digo”.

Dona Maria também se lembra com saudades da época em que ha-


via muito peixe, pois, segundo ela, o que dá “movimento na Vila” é, ainda
hoje, o peixe. Ela relata que as camboas eram muito visitadas e usadas, até
mesmo por quem não era pescador. De acordo com as suas lembranças,
as camboas eram muito altas e quem “estava de fora não via o que estava
de dentro”. Sua estimativa é a de que as paredes das camboas teriam de
dois a três metros. Dona Maria diz: “à noite eles desciam na praia com
os “faroizinhos” acesos, iam embora pescar nas camboas”, referindo-se a
uma prática antiga na Vila (Silva, A.C. 2012).
Os pescadores relatam as brincadeiras de criança com pequenos
barcos nas águas represadas pelas camboas. Alguns afirmam ter conhe-
cido os antigos proprietários e construtores das camboas, sendo que
apenas três delas são mencionadas como de propriedade privada de
pessoas já falecidas e cujos nomes e ligação com as camboas são sempre
referidos nas conversas. Joelson também relata que o Seu Frazão era
dono de camboa na Praia do Porto, que leva esse nome por ter abrigado

33 Teto e Afeto Ir: Sumário


Tela produzida pela AERAJ, Joanes.
Identidade visual da AERAJ em camiseta, Joanes. Ruínas pintadas em produto da AERAJ, Joanes.

Marcadores de livro produzidos pela AERAJ, Joanes.


um porto no passado. Diz ele que ali “chegava muita coisa”. As que não
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

se enquadram nessa categoria são consideradas, por muitos pescadores,


como sendo de origem natural, pois “sempre estiveram lá”. A.C. Silva
(2012), durante o seu trabalho de campo, observou que as referências
às camboas feitas pelos pescadores da Vila não variam muito em conte-
údo. Na maior parte das narrativas, os pescadores afirmam que as cam-
boas foram feitas pelos “antigos”, que as construíam e usavam. Segundo
A.C. Silva (2012: 33):

“as camboas sempre estiveram inseridas dentro do contexto da


pesca (...) não havendo durante os relatos nenhuma referência a
um passado indígena ou colonial. Esse espaço é naturalizado se
fazendo presente como um constructo local e não relacionado di-
retamente ao patrimônio arqueológico, não sendo parte ou tendo
ligação com o passado colonial da Vila, certamente isso se deve
ao fato das camboas não serem consideradas tão antigas ou mais
antigas do que as ruínas da Vila”.

Creio que o fato das camboas se situarem na zona de oscilação


das marés, de serem artefatos constituídos não apenas por pedras, mas
pela areia e pela água, faz com que elas se mimetizem na paisagem de tal
forma que parecem ter “estado sempre lá”. Para o olhar leigo, as cambo-
as são facilmente confundidas com as dezenas de alinhamentos naturais
de pedra ao longo das praias da vila. Elas não se impõem na paisagem,
como as ruínas da igreja ou os dois poços. Isso me remete às discussões
de Miller (2013: 78-79) sobre a “humildade das coisas” e sobre a “capaci-
dade algo inesperada que os objetos têm de sair do foco (...) e ainda assim
determinar o nosso comportamento e nossa identidade (...)”. Para ele as
coisas são importantes, muitas vezes porque não as vemos, porque estão
invisíveis. As camboas não estão no foco dos pescadores, mas estão lá, e
eles sabem disso.
O que essas narrativas indicam é que as camboas não são referen-
tes do passado histórico da vila, mas sim do passado de cada um, da vida
vivida (Certeau 1994) pelos moradores. O fato de ainda serem utilizadas
e de fazerem parte das histórias de vida dos pescadores e suas famílias

36 Teto e Afeto Ir: Sumário


revela uma biografia de longa duração dessas estruturas.
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil

Holtorf (2012: 156 e 153) argumenta que as paisagens “têm vidas


durante as quais experienciam muitos episódios diferentes11” e que a
“obsessão da nossa época com a preservação12” “pode destruir memó-
rias vivas”13. A história de vida das camboas de Joanes é contada pelas
fontes históricas e por seus pescadores. Seu processo de construção, ar-
ruinamento e reconstrução remonta ao século XVIII. Esses movimentos
de construção e destruição, como lembra Holtorf, são interdependentes,
pois constituem momentos na biografia desses sítios e das pessoas que
os experienciam. Assim, me arrisco a dizer que os pescadores em Joanes
estão construindo patrimônios, seja pela “criação de sentidos” (Smith
2011:44) sobre as camboas, seja pelo seu uso propriamente dito. Subme-
tê-las ao discurso autorizado do patrimônio14 impediria esse fluxo de prá-
ticas e significados.
Uma situação ocorrida no final da pesquisa é um epítome dessas
reflexões e servirá para encerrar este texto. O dia mal havia nascido quan-
do eu, acompanhando Veio no caminho de volta do seu curral de pedras,
avistei, num emaranhado de camboas, algumas que haviam escapado ao
meu levantamento. Decidi dividir a frustração com Veio, que me con-
fortou, dizendo que eu não as tinha visto antes porque elas não estavam
assim. Em seguida ele se ajoelhou sobre as pedras e me mostrou o que
eu não tinha visto até então: ele estava “reformando”, construindo outras
camboas, patrimônios do futuro.

11 Tradução minha.
12 Idem.
13 Idem. A esse respeito ver também discussões de Jeudy (2005)
14 Discurso Autorizado do Patrimônio - Authorized Heritage Discourse (AHD) Surge
na Europa no Século XIX e se refere ao discurso de constituição e legitimação de
noção de patrimônio que sublinha a sua materialidade, assume a sua importância
inata e, portanto, tem como foco a sua ‘preservação para o futuro’ (Smith 2011: 43).

37 Teto e Afeto Ir: Sumário


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42 Teto e Afeto Ir: Sumário


Lâmina de Machado proveniente da região de Serra Leste, Pará. Acervo UFPA.
Sobre o Corisco e Outras Coisas na
Amazônia: os objetos do passado como
memorabilia das pessoas no presente.

Inicio a presente reflexão com uma narrativa muito conhecida


pelos arqueólogos: a história do “corisco”, “pedra de corisco” ou “pedra
de raio”, que são as categorias nativas criadas para descrever lâminas de
machado. Essa história é contada por diversos moradores que habitam o
entorno de sítios arqueológicos, apresentando pequenas variações locais.
As lâminas de machado são artefatos líticos – polidos ou picoteados – am-
plamente encontrados em sítios arqueológicos (Prous et al 2002). Há uma
diversidade de machados com forma, função e matéria-prima diferentes na
Amazônia (Silva 2012). O que eles têm em comum, além da sua grande re-
corrência, é, no meu ponto de vista, a perspectiva local sobre a sua origem,
ou seja, os sentidos que assumem no contexto onde são utilizados, manipu-
lados e ressignificados diante dos agenciamentos nativos que consideram a
sua gênese, portanto, a partir de perspectivas locais muito próprias.
As diferentes versões das narrativas sobre os machados indicam a
complexidade do fenômeno e incluem, inevitavelmente, alguns elemen-
tos ordenados da seguinte forma:
1. A ocorrência de um episódio envolvendo a queda/existência
de um raio;
2. A queda misteriosa de um objeto;
3. O seu afundamento no corpo terrestre;

44 Teto e Afeto Ir: Sumário


4. Uma referência numérica, neste caso evocando a mística do
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

número sete;
5. O afloramento do objeto das entranhas da terra.

Os machados polidos são tornados “coriscos” a partir de percep-


ções e de narrativas construídas por reelaborações da matriz semântica
composta por esses cinco elementos que parecem dar coerência à expli-
cação de tal fenômeno, ou seja, a experiência da descoberta fortuita de
um objeto envolto numa aura de mistérios e de sutilezas.
Esse objeto, que no campo arqueológico convencionamos chamar
de lâmina de machado, é incorporado ao repertório material de comuni-
dades que vivem próximas aos sítios arqueológicos, com outros signifi-
cados que variam de acordo com o contexto em que surgem como coisas,
evocando, assim, outros sentidos na vida vivida. A incorporação, nesses
termos, se dá pela intensa fruição cotidiana com o objeto. Nesse processo,
o machado é tornado familiar por meio de narrativas, como essa do Co-
risco, que informam sobre aquele elemento estranho e lhe dão um lugar
no mundo material.
Essas narrativas, de certa forma, “domesticam” a potência imagi-
nária do mistério e transformam “o exótico [em] uma experiência fami-
liar” (DaMatta 1981) de caráter sensível. A coisa-estranhada é assimilada
e acomodada na vida cotidiana. Aqui, a noção de “família de objetos”,
desenvolvida por van Velthem (2007) ao tratar da cultura material ligada
ao sistema agrícola no Acre, pode ser estendida para essas coisas-estra-
nhadas que vão sendo inseridas em “famílias de coisas”, reunidas a partir
de critérios de natureza prática-funcional, afetiva e estética, para formar
a tralha doméstica/memorabilia.
A partir desse tipo de situação vivida pelas pessoas em seu meio,
vemos que as construções nativas sobre as coisas do passado operam em
outra lógica – com sentidos próprios, ressonâncias outras de como o obje-
to-coisa toca a sensibilidade humana (Silveira 2011) – e, por isso mesmo,
o conhecimento produzido pela ciência ocidental sobre esses objetos não
é, necessariamente, invocado e sequer faz sentido para essas populações,
quando se trata de praticar e viver o lugar. O fato de não reconhecerem a
perspectiva arqueológica sobre os machados, por exemplo, não deslegi-

45 Teto e Afeto Ir: Sumário


tima a configuração dessas elaborações. As construções nativas não têm
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

uma natureza relacional com a ciência, com a arqueologia, mas com a


vida vivida das pessoas.
Cabem aqui as reflexões de Silveira (2004, 2011) sobre as Missões
e os camponeses/miguelinos para quem, segundo o autor, tudo tem uma
ciência implicando o estar ciente de algo, ou seja, do mundo no qual atua/
agencia seu existir com os Outros. Quero dizer que o entendimento de
que as comunidades locais “não conhecem, não sabem, não valorizam” a
materialidade que convencionamos denominar patrimônio arqueológico
constitui uma análise míope dessas situações, sendo um forte indicador
das assimetrias existentes nas relações entre nós, arqueólogos, e “o outro”.
As elaborações locais sobre o repertório material arqueológico
na Amazônia têm revelado um acervo de imagens que são construídas
de forma empírica e tratadas num plano simbólico. Portanto, assumem,
como sugere Silveira (2004), um “caráter simbólico-prático” relevante nas
agências cotidianas das pessoas situadas no seu lugar. Esse acervo consti-
tui, por assim dizer, outra epistemologia da cultura material1, uma expe-
riência nativa de lidar com a diferença, ou com o desconhecido, a partir
de visões de mundo não hegemônicas, descentradas e abertas ao sensível,
de forma a significar o mundo, a dar sentido às coisas do e no mundo
vivido (Cabral 2014; Silveira 2011).
As informações da arqueologia, ainda que reconhecíveis ou reco-
nhecidas pelos moradores do entorno de sítios arqueológicos na Ama-
zônia, não substituem nem invalidam essas narrativas locais. Elas po-
dem até ser parcialmente incorporadas aos relatos, mas não dissolvem a
matriz da narrativa (Bezerra 2015). Assim, o que menos importa aqui é
o conhecimento produzido pela arqueologia, enquanto disciplina, para
constituir como elementos heurísticos esses e outros artefatos arqueo-
lógicos. Portanto, o que provocou essas minhas, ainda iniciais, reflexões
não foi necessariamente o emaranhado, para usar um termo em voga na
disciplina, das pessoas com a cultura material arqueológica.
Na verdade, sugiro um “desemaranhamento” do conhecimento

1 Para uma discussão sobre epistemologias ameríndias da cultura material ver Santos-
-Granero (2009).

46 Teto e Afeto Ir: Sumário


acadêmico que permita (re)conhecer outra dimensão aurática - ou outras
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

dimensões auráticas - que prescinda da explicação da arqueologia sobre


aquela materialidade. Um esforço desafiador de olhar não para um artefa-
to construído pela ciência, mas para as coisas resultantes do encontro das
pessoas com o mundo presente; uma arqueologia do sensível (Cabral 2014;
Pellini e Zarankin 2013; Reis 2007). Nesse sentido, advogo certa munda-
nização do uso desses “objetos arqueológicos” e sua despatrimonialização
como bem do Estado, tal como sugerido por Londoño (2010). Isso vai ao
encontro do que Miller chama de “humildade das coisas”, na qual considera
que as coisas muitas vezes “são importantes (...) porque não as vemos”, por-
que são “invisíveis (...) familiares e tidas como dadas” (Miller 2013: 78-79).
Essas outras perspectivas sobre os objetos arqueológicos permitem obser-
var, como afirma van Velthem (2007:625), “as complexas ações transforma-
tivas requeridas de pessoas e de coisas (...)” no seu fazer cotidiano.
Nesse sentido, o objetivo desta proposição é tentar compreender
a vida social dessas coisas no cotidiano de comunidades amazônicas, re-
fletindo não somente sobre o que as pessoas contam sobre o passado a
partir dessas coisas, mas sobre como essas coisas servem para falar de
suas vidas no presente.

Os Usos das Coisas


É sabido que na Amazônia, em diversas comunidades dispersas
na vasta área geográfica que ela constitui, as casas frequentemente se
assentam sobre sítios arqueológicos. Nelas, as urnas funerárias armaze-
nam água ou farinha; as crianças brincam com moedas antigas; e inú-
meras roças são construídas em sítios de Terra Preta Arqueológica. Há
um crescente número de trabalhos que trazem exemplos de distintas
relações que moradores do entorno de sítios arqueológicos têm com a
materialidade arqueológica. As reflexões podem ser dividas em quatro
tipos2: 1) as protocolares, que apenas registram, como algo anedótico ao

2 Para uma visão ampla sobre a produção que trata dessas relações, com distintas pers-
pectivas, ver a coleção da Revista Arqueologia Pública, da UNICAMP. Disponível

47 Teto e Afeto Ir: Sumário


Adriana, Breno e Rayla.
texto científico, as relações de moradores com artefatos e sítios; 2) as nor-
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

mativas, que operam com a perspectiva do Estado para mostrar que as


relações, sobretudo táteis, com os objetos, são danosas para a sua preser-
vação (frequentemente confundida com conservação de sua materialida-
de; 3) as instrumentais, que utilizam a chamada Educação Patrimonial
para “conscientizar” moradores sobre os “valores” do patrimônio; e 4) as
críticas, que problematizam essas relações, considerando as construções
nativas sobre as coisas.
Este trabalho se insere nessa última perspectiva que, não obs-
tante a criticidade de suas proposições, tem tido, em muitos dos casos,
a tendência de ressaltar preocupações em relação aos aspectos con-
siderados talvez “menos profanos” nas relações entre as pessoas e os
objetos arqueológicos (Barreto 2013; Bezerra 2012; Cabral 2014; Car-
neiro 2014; Gomes, Costa e Santos 2014; Leite 2014; Machado 2014;
Moraes 2012; Moraes e Bezerra 2012; Rocha; Beletti, Py-Daniel, Mo-
raes e Oliveira 2014; Schaan e Marques 2012; Silva 2002; Silva, Bes-
palez e Stucchi 2011; Troufflard 2012). De forma geral, há certo tabu
em tratar os objetos arqueológicos como coisas mundanas e, conse-
quentemente, o seu uso profano no cotidiano. Soma-se a isso a crítica
já feita por van Velthem (2007) sobre a pouca atenção dada à cul-
tura material associada a outros coletivos na Amazônia, como agri-
cultores, pescadores artesanais e ribeirinhos, sobretudo se comparada
à vasta produção bibliográfica sobre a materialidade produzida por
sociedades indígenas da região (a esse respeito ver Santos-Granero
2009, entre outros). O que me leva a pensar que, de forma geral, com
exceções como o trabalho de van Velthem aqui citado, estamos tra-
tando, em certo sentido, de uma história indígena encapsulada, pelo
menos no que se refere à dimensão senso-material, já que se ignora o
lugar/papel dos objetos indígenas, produzidos hoje ou no passado, na
vida cotidiana desses outros segmentos sociais na Amazônia. É como
se a história indígena de longa duração não transbordasse para essas

em http://www.lapvirtual.org/revista-de-arqueologia-p-blica.html

49 Teto e Afeto Ir: Sumário


outras histórias que são afetadas por ela em vários aspectos, incluindo
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

a fruição com esses objetos.


Lemonnier (2012: 15), ao discutir o que “(...) os artefatos fazem
nas relações sociais, nos sistemas de pensamento e nas práticas (...)”
cotidianas, propõe direcionar o foco de análise para aqueles objetos
mundanos. Sua “ordinariedade” reside no fato de que não “seriam con-
siderados num primeiro momento, por nós, como sendo “rituais”, “ar-
tísticos”, ou “marcadores” de identidade, nem se reconheceria que eles
contêm poderes incorporados e encapsulados”. Proponho aqui estender
essa ideia não para os objetos em si, mas para as distintas relações que
os constituem. O foco, assim, não estaria no objeto, mas na dimensão
relacional que ele aciona.
Lemmonier trata da ideia de repertório material que, segundo ele,
não mereceria a nossa atenção por não estar inserido num sistema de
objetos percebidos/construídos pela ciência, aqueles que consideramos
como prenhes de uma gênese essencialmente arqueológica, a priori. Ou
seja, não os vemos além desses contornos.
Os estudos sobre os significados desses objetos para os outros se
dão sempre numa perspectiva que os considera a partir das categorias na-
tivas, confrontando-os com a interpretação arqueológica. Esse processo,
em geral, tem como objetivo demonstrar como as pessoas se relacionam
com a nossa categoria “objetos arqueológicos” e, a partir daí, que diferen-
tes “interpretações” dão a ela, porque, simplesmente, eles continuam a ser
“objetos arqueológicos”, “objeto[s] da arqueologia”.
Não estaríamos, então, evitando reconhecer a condição de coisa des-
ses artefatos e a mundanidade de seus usos pelas pessoas? Não estaríamos,
a todo custo e em nome da ciência e da ética preservacionista, deixando de
observar outras relações associadas a sentidos diversos, vinculadas a outras
epistemologias? Será que é possível despossuir esses objetos e essas relações
dos constructos da arqueologia? Será que não podemos analisá-los como
coisas, como qualquer coisa, como tralha doméstica, tal como uma foto-
grafia, um documento, um móvel, um brinquedo, por exemplo? Isso nos
tornaria menos arqueólogos ou comprometeria a ética patrimonial? Ou,
ainda, deslegitimaria a nossa “autoridade científica”? Será que é por isso

50 Teto e Afeto Ir: Sumário


Cerâmica e lâminas de machado encontradas por moradores ao longo da Transamazônica, Pará.
que acabamos por descrever e analisar apenas os usos que consideramos
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

“sagrados”, que não “profanam” a aura arqueológica?


Hollowel (2006:79), ao citar a pesquisa de Crowel no Alaska3, des-
taca a fala de um dos moradores locais sobre o uso de matéria-prima:

“Nossos ancestrais usaram marfim para fazer instrumentos que


eles precisavam para sobrevivência. Nós temos um uso diferente
para o marfim hoje, mas isso não é menos importante para a
nossa sobrevivência.”

Isso me faz pensar na biografia de longa duração dessas coisas, tor-


nadas objetos arqueológicos por nós, pelo nosso saber. A sua continuida-
de no tempo é, como lembra Shanks (1998:16)4, marcada por pontos, por
datas, por momentos distintos, como a “sua produção, a sua incorpora-
ção ao registro arqueológico e o seu achado” no presente. Será que nesse
ponto o seu ciclo de vida pode tomar outra direção? Seu achado por não
arqueólogos pode ser reconhecido como ato/momento legítimo na sua
trajetória? O que quero questionar é: será que ele pode se transformar em
memorabilia, ao invés de artefato arqueológico per se e, como tal, ainda
ser de interesse para uma pesquisa no âmbito da arqueologia? Essas são
algumas das perguntas que tenho me feito e que norteiam minhas refle-
xões, a partir da observação dessas relações em distintos contextos no
estado do Pará, como veremos em seguida.

Teto e Afeto
Objetos arqueológicos são encontrados em lugares distintos na
Amazônia. Além dos sítios arqueológicos e das coleções sob a guarda de
instituições de pesquisa e de museus, é possível vê-los ocupando espaços

3 Crowell, A. 1985 Archaeological Survey and Site Condition Assessment of St.


Lawrence Island, Alaska, 1984: Washington D.C.: Smithsonian Institution and Sivu-
qaq Native Corporation, p. 25.
4 A esse respeito ver também Holtorf 2002.

52 Teto e Afeto Ir: Sumário


e funções em contextos outros, para os quais o discurso autorizado do
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

patrimônio (Smith 2011)5 interditaria não apenas os usos, mas também


os sentidos que eles evocam.
Os exemplos são inúmeros: uma urna marajoara usada na deco-
ração de um restaurante situado em área turística ou aproveitada como
recipiente para armazenar farinha, água ou, simplesmente, como guar-
da-trecos em casas ribeirinhas; cacos de cerâmicas utilizados para reter a
umidade em vasos de plantas, adotados como brinquedos por crianças,
ou até empregados para decorar a fachada de casas.
Esse último modo de usar os fragmentos de cerâmica foi docu-
mentado por Almeida e Sprandel (2006) no município de Santa Cruz do
Arari, no Marajó. Segundo os dois antropólogos, diversos fragmentos de
cerâmica, incluindo adornos antropomórficos, zoomórficos e pequenas
estatuetas, decoram as casas de pescadores. As peças são pintadas com
tinta a óleo, em cores fortes que, ainda segundo os autores, sugeririam a
intenção de apagar as marcas da antiguidade para conferir a eles um “ar
recente e mais esplendoroso” que aperfeiçoaria o trabalho dos antigos ar-
tesãos. Os autores reconhecem que essa “releitura”, como denominaram,
“talvez causasse estranhamento à pesquisa arqueológica convencional”,
mas entendem que ela “revela uma reapropriação simbólica legítima” que
contribui para a afirmação de identidades, não havendo nada de “bizarro
nessas práticas artísticas que redefinem obras seculares de artesanato in-
dígena” (Almeida e Sprandel 2006: 43). Os pesquisadores ainda relatam
que “O orgulho coletivo dessas obras do passado é grande (...)”.6
Elaborações criativas sobre sítios e objetos arqueológicos são
muito comuns no Marajó. A abundância de material arqueológico, so-

5 Discurso Autorizado do Patrimônio - Authorized Heritage Discourse (AHD) Surge


na Europa no Século XIX e se refere ao discurso de constituição e legitimação de
noção de patrimônio que sublinha a sua materialidade, assume a sua importância
inata e, portanto, tem como foco a sua ‘preservação para o futuro’ (Smith 2011: 43).
6 Schaan, Martins e Portal (2010: 78) relatam a existência de duas coleções particulares
nessa localidade, compostas por vasilhames cerâmicos inteiros, com decoração plás-
tica e pintada. Já Martins, Schaan e Silva (2010: 118) mencionam coleção particular
de fragmentos de cerâmica com representações antropomorfas e zoomorfas, sob a
guarda de Jean Mary Royer, em Gurupá.

53 Teto e Afeto Ir: Sumário


bretudo cerâmico, provoca uma fruição intensa com um universo que
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

precisa ser explicado entendido/(re)significado e, por isso, tornado fa-


miliar para os moradores. Assim, é frequente a associação entre os sítios
e o movimento da Cabanagem, ocorrido no Pará entre 1835 e 1840. Os
violentos conflitos e o alto índice de mortes ressoam no imaginário des-
sas populações transformando lugares - como os sítios arqueológicos
– em paisagens de dor, medo e assombro. Visagens são vistas, ouvidas,
sentidas e associadas seja aos cabanos, seja aos indígenas. Martins, Silva
e Portal (2010: 140) relatam que moradores de Santa Cruz do Arari cos-
tumavam avisá-los, durante as pesquisas de campo, sobre os cuidados
com “esses lugares antigos com cacos velhos [que] fazem visagens”. Os
“cacos velhos” também são responsabilizados pelos infortúnios da vida,
que só se resolvem quando os cacos são descartados (Martins, Silva e
Portal 2010: 141).
O material recuperado em sítios históricos também é encontrado
em coleções formadas por adultos ou crianças no Marajó. Nos municí-
pios de Portel e Melgaço, por exemplo, Martins, Schaan e Silva (2010:
126) documentaram coleções particulares compostas por moedas de
bronze e cobre, cachimbos de cerâmica, medalhas, garrafas de vidro e
grés, espingarda, fragmentos de louça e artefatos líticos. Em trabalhos
anteriores também tratei das coleções de moedas e fragmentos de louça
acumulados por moradores da Vila de Joanes, Município de Salvaterra,
também no Marajó (Bezerra 2012; Ravagnani 2011). Pelo que tudo indi-
ca, em Joanes, o hábito de colecionar moedas entre as crianças tem duas
características principais: é um ato solitário e competitivo. Na verdade,
mostra-se como uma experiência solitária, segundo Belk (1995:68), por-
que é uma atividade competitiva entre as crianças que buscam colecionar
os objetos. O autor menciona que o trabalho de Witty e Lehman (1933)7
atesta que as crianças, nos Estados Unidos, raramente coletam em gru-
po. O mesmo ocorreu em pesquisa realizada por Katriel (1988/89)8, em

7 Witty, P. e Harvey C. Lehman – Further Studies of Children´s Interest in Collecting.


Journal of Educational Psychology 21: 112-127, 1930.
8 Katriel, T. – Haxlàfot: Rules and Strategies in Children´s Swapping Exchanges. Rese-
arch on Language and Social Interaction 22: 157-178, 1988/89.

54 Teto e Afeto Ir: Sumário


Israel, onde os grupos de coletores infantis se formam, mas tendem a se
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

desfazer rapidamente. Belk chama a atenção para o fato de que a compe-


tição pode ser “autoimposta”, funcionando como mecanismo para alcan-
çar certo padrão de excelência.
Isso pode ser observado no comportamento de Breno, uma das
crianças joanenses colecionadoras, cujos achados ocorrem quando está
sozinho, que demonstra grande orgulho pelas moedas reunidas. Assim
como os demais, dificilmente revela às outras crianças onde foram en-
contradas as peças que coleciona com apreço. A mãe de Caynã diz que
os objetos que o filho pega quando “a chuva traz” são lavados, secados e
guardados em uma caixa de manteiga para mostrar aos amigos.
Os adultos joanenses, por sua vez, falam de suas descobertas e in-
dicam os locais dos achados. Dona Vera, professora aposentada da escola
local, tem uma coleção de fragmentos de louça, encontrados durante a rea-
lização de obras no quintal da sua casa. A “obra” mencionada refere-se, na
verdade, a várias etapas ocorridas ao longo de anos. A professora, orgulho-
sa e zelosa de seus achados, mostrou, com cuidado, a sua coleção guardada
em duas caixas de sapatos, pois, segundo ela, há “tipos diferentes”: uma
caixa reúne a louça, a outra, a cerâmica. Em meio a esses objetos, encontra-
-se um botão de plástico que a deixou com dúvidas com relação à sua clas-
sificação e ao seu pertencimento àquele conjunto. Embora tenha percebido
que os atributos do botão eram de natureza distinta da louça, da cerâmica
e das moedas, ele foi encontrado no mesmo local, levando-a a inseri-lo na
coleção, ainda que não se encaixe nos tipos pré-determinados por ela.
A conversa sobre a coleção encorajou-a a buscar outras coisas
guardadas com o mesmo esmero, como fotografias de família e a carteira
de trabalho do pai já falecido. Embora afirme não saber o motivo que a
leva a guardar o material arqueológico, Dona Vera, em outro momento
da conversa, admite que esteja esperando a construção de um museu na
vila para doar as peças. Entendo que, de forma intuitiva, a professora está
construindo o seu próprio museu, que não está contido no museu imagi-
nário/imaginado da vila, mas, ao contrário, contém sua biografia mate-
rial que inclui as louças, as fotografias, os cacos de cerâmica e a carteira de
trabalho, reunidos no canto da casa que guarda objetos afetivos.
Os objetos arqueológicos ligam-se aos demais guardados da pro-

55 Teto e Afeto Ir: Sumário


fessora. Como pontos na sua trajetória de vida, traçam uma linha do tem-
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

po marcada por eventos e relações afetivas. A carteira de trabalho do pai


ativa as suas reminiscências de infância, ao mesmo tempo em que atesta
a condição de trabalhador assalariado – um status importante em uma
comunidade com significativa taxa de desemprego; as antigas fotografias
exibem e reconstituem, como dizem Eckert e Mylius (2004), “as trajetó-
rias [de sua] linhagem e seus entrecruzamentos”; as louças e os cacos de
cerâmica falam da construção da casa da família e da relação de afeto
com a netinha, que a auxilia na limpeza e na reconstrução dos objetos
encontrados no seu quintal. Se os objetos arqueológicos serão, em algum
dia, doados ou não, assumindo outro papel, pouco importa para essas re-
flexões. O que me seduz é a relação que a senhora estabelece com as coi-
sas, das coisas entre si e de como formam “famílias” porque, retomando
van Velthem (2007: 619), são “conjuntos que (...) [vivem] sob o mesmo
teto”, sob o afeto humano que os transforma em memorabilia.
Não apenas o teto e o afeto demonstram a relação sensível de mo-
radores do entorno de sítios arqueológicos com os objetos encontrados,
a sua descrição também revela a afeição que têm por eles. O seu exame
minucioso funde observação e imaginação, acionando uma bricolagem
de experiências, memórias e imagens que explora, verifica e compara
atributos físicos e estéticos, construindo um conhecimento para expli-
car a coisa-estranhada. Os objetos são descritos a partir de olhares aten-
tos, concisos, sensíveis e qualificados por palavras como “machadinho”,
“panelinha”, “bonitinho”, “riscadinho”, “fundim”, “caquim”, “estreitim”. O
uso do diminutivo atenua a estranheza, a potência do desconhecido, do
assombro, trazendo o objeto para perto de si e mundanizando-o numa
perspectiva do afeto.
Observei o uso dessas construções nas narrativas de mulheres
agricultoras, moradoras de vilas ao longo da Transamazônica; de crianças
dessas mesmas vilas; de moradores de Primavera, no noroeste do Pará;
entre outros. Seus relatos se referem a fragmentos de cerâmica e lâminas
de machado, os “coriscos” ou “pedras de raio”. Alguns deles colecionam
os machados, como o professor Valtinho, de Primavera, que mantém vá-
rias coleções (moedas, notas de dinheiro, latinhas de cerveja, figurinhas,
etc.), ou um padre que, ao contrário da maior parte dos moradores com

56 Teto e Afeto Ir: Sumário


Quintal de casa em Rurópolis.
quem convivi em diversas localidades, reuniu sua coleção de machados
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

por meio de pequenas escavações. Os machados também são usados


como pesos de porta por moradores da região.
Em Primavera eles também são utilizados como pesos de papel e
para “alisar a cerâmica”9, como diz Dona Nazaré. Seu Lauro, agricultor lo-
cal, lembra que os coriscos eram levados para casa a fim de que fossem
mostrados às mulheres, que, segundo ele, “não tinham como ver”10. Os
coriscos eram encontrados durante o trabalho na roça, onde as mulheres
e as crianças menores não iam. Eram também utilizados para “contar his-
tória pros meninos, pros filhos, quando [eram] pequenos”, a história que,
segundo ele, foi contada pelos seus pais. Isso mostra a circularidade desses
objetos e de suas histórias, passadas de pai pra filho. Dona Erondina, mora-
dora de outra localidade em Primavera, diz que as pessoas herdavam esses
objetos, que “ficava de lembrança”. Eles são parte da herança familiar.
Seu Lauro narra que apenas os filhos “aí pra trás”, referindo-se aos
mais velhos, viram os coriscos. Os filhos mais novos, como ele fez ques-
tão de frisar, “já estudavam muito (...), se dedicavam mais no estudo”, ou
seja, não trabalharam na roça com o pai, rompendo uma prática social
que costumava reunir pais e filhos para que estes últimos aprendessem o
ofício desde cedo e perpetuassem a atividade de subsistência da família.
Cabe destacar que Seu Lauro era, na ocasião, o presidente da cooperativa
de agricultores locais. Talvez por isso tenha dado tanta ênfase à intensida-
de da relação com os filhos no trabalho ao dizer que “trabalharam muito
comigo mesmo”.
Ao mudar para a casa nova, os coriscos ficaram perdidos, explica
Seu Lauro: “É aquele caso que meu pai sempre dizia: ‘Meu filho, o que
não presta a gente guarda sete anos, com sete anos, se não precisar, joga

9 Sobre as ceramistas do litoral do Salgado ver Hirooka e Jares 2014.


10 As entrevistas com Seu Lauro, Dona Nazaré, Seu Zuza e Prof. Valtinho foram trans-
critas por Carolina Silva e Luís R. Ravagnani participantes das ações de Educação
Patrimonial desenvolvidas pela autora no âmbito do “Projeto Primavera - Prospec-
ção Arqueológica e Educação Patrimonial na Área de Implantação da Fábrica de
Cimento da Votorantim - Município de Primavera/PA Votorantim/Archaeo”, sob a
coordenação geral de Suzana Hirooka (Bezerra 2011). Ver também Hirooka, S. e
Jares, S. 2014.

58 Teto e Afeto Ir: Sumário


Casa sobre sítio de terra preta arqueológica (TPA) em Rio dos Cacos.
fora’!” A motivação para o seu descarte inclui dois elementos curiosos:
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

a indicação de que a coisa em si “não presta” e a referência ao número


sete. Isso sugere que apesar de o corisco fazer parte da história de vida da
família de Seu Lauro, da memória familiar, os referentes coletivos desse
objeto – falo dos elementos fantásticos que o constituem - entraram em
jogo na tomada de decisão de descartá-los. É possível também pensar que
a abundância desses objetos encontrados na região acentue a percepção
de sua condição ordinária. Quero dizer, é possível descartar porque é fácil
encontrar outros, o que não exclui a possibilidade anterior.
Martins, Silva e Portal (2010:141) relatam que no Município de
Bagre, no Marajó, moradores confirmam a ocorrência de muita “pedra
de raio”, mas que, por desconhecerem sua importância, jogavam-nas no
rio, tirando-as do caminho. A noção de importância é bastante subjetiva,
e decerto os autores se referem ao valor dado pela arqueologia. Entendo
que os moradores não estavam apenas atirando as pedras no rio, mas
sim “limpando o caminho” do seu encanto. Em Primavera, um grupo
de amigos afirmou que se alguém levasse o corisco para casa apareceria
uma visagem para buscá-lo de volta, assombrando os vivos. As narrativas
informam sobre o objeto e, ao mesmo tempo, o classificam como ativador
das sutilezas do imaginário amazônico, no caso a ocorrência de visagens
em torno de sítios arqueológicos.
Maria de Jesus, Agda e Lourdes, participantes do Movimento das
Mulheres do Campo e da Cidade (Moraes 2009, 2010)11, moram na bei-
ra da Transamazônica e, como outras agricultoras da região, conhecem
várias histórias sobre corisco. Maria de Jesus lembra que o avô dizia que
os índios moravam em lugares onde suas coisas não acabavam nunca,
“ficava enterrado na terra e num acabava”. O corisco, segundo ela ouviu,
“é dos relâmpagos”, que “cai numa palmeira e mata ela (...)”. Agda afirma
não ter encontrado nenhum corisco, mas que viu o “fogo do raio”, que a

11 Entrevistas realizadas por Irislane P. de Moraes (2009, 2010) no âmbito das ações de
educação patrimonial desenvolvidas pela autora no âmbito do “Programa de Arque-
ologia Preventiva Rodovia BR-163 (Trecho Guarantã do Norte ao Entroncamento da
BR-230) e Rodovia BR-230 (Trecho Miritituba-Rurópolis) DNITT/Universidade Fe-
deral do Pará, sob a coordenação geral de Denise Pahl Schaan. Ver também Schaan,
D.P. (2012).

60 Teto e Afeto Ir: Sumário


“machadinha” entra “dentro do chão”. Mas, como não “pegou na mão”,
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

mostra-se incerta quanto a sua gênese. Ela se pergunta: “ou é que produz
na terra mesmo, né? num sei... o fogo eu vi”. Lourdes, por sua vez, diz ter
encontrado muitos “machadim”, que ela classifica em dois grupos: estrei-
tinhos e largos, para os quais estabelece relações de gênero: eles seriam
“o machado e a machada”. Assim como Agda, também pondera sobre a
origem dos coriscos e conclui que o “céu tem armazenado essas coisas”. A
ideia de que os objetos arqueológicos são coisas da natureza, criadas por
Deus, é bastante frequente entre os moradores. Mencionei, anteriormen-
te, que a mãe de uma das crianças de Joanes diz que o filho pega as coisas
que “a chuva traz”. Seu Zuza, agricultor de Primavera, fala do “jabuti”,
nome que deu a um almofariz como algo que ele acredita “ser da terra
mesmo”. Sua mulher confirma, dizendo que o objeto é “gerado pela terra”,
e ambos concluem que “são coisas de Deus”.
As camboas12, tratadas aqui neste livro, também são consideradas,
por alguns pescadores em Joanes, como “coisas de Deus” porque estão lá,
como diz Joelson, pescador local “desde que ele se entende”. Essas estruturas
remontam ao período colonial, estão documentadas em fontes históricas e
faziam parte do sistema que operava o Pesqueiro Real, que abastecia Belém
com grandes quantidades de peixe. Embora tenham perdido parte signifi-
cativa das pedras que constituíam as suas paredes e não sejam mais usadas
como armadilhas, como afirmam os pescadores, a área das camboas é uti-
lizada para a armação de currais de pesca, visando ao aproveitamento dos
limites impostos pelas paredes restantes. Por essa razão, eles “consertam as
camboas”, como dizem, referindo-se à recolocação das pedras que formam
sua estrutura. Os pescadores mais velhos, ou suas famílias, lembram-se das
camboas como referência dos bons tempos da pesca na vila, quando havia
muito peixe. As famílias desciam para a praia e ficavam reunidas ao lado
das camboas, enquanto os peixes presos na armadilha eram coletados pelos
homens. Os pescadores mais jovens recordam-se das brincadeiras de criança
dentro da área das camboas. Dona Enedina, viúva de um pescador, diz ter
saudades da época em que “a camboa era feliz” (A.C. Silva, 2012) A asso-

12 Armadilhas de pesca feitas com pedras na zona de oscilação das marés.

61 Teto e Afeto Ir: Sumário


ciação desse tipo de emoção – saudades – a um “lugar do passado” sugere a
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

importância de seu papel na vida dessas pessoas, sobretudo na vida familiar,


já que a pesca nas camboas era uma atividade que permitia a participação
da mulher e dos filhos, o que dificilmente ocorre hoje. A lembrança não é
do “patrimônio histórico da vila”, mas da vida farta, da vida feliz em família.
O sentimento de felicidade e, de certa forma, de saudades é a razão
pela qual Dona Lilian13, moradora da vila de São José, na Transamazônica,
guarda como parte de seus objetos de família, uma lâmina de machado
polida. Ela veio para a região nos anos 1970, durante o Governo Médici, em
busca das promessas alardeadas em torno do projeto da rodovia. O “capi-
talismo selvagem”, que caracterizou a ação governamental na área, resultou
na avassaladora destruição do meio ambiente e no processo de desenraiza-
mento dessas populações que migraram para a Amazônia (Fausto 2003). As
narrativas dos moradores sobre a sua chegada à região revelam o medo, a
surpresa, a decepção e a solidão a que estiveram sujeitos. A terra - sua posse
e uso - é a protagonista das histórias permeadas pelas dificuldades. Em seus
relatos descrevem a “terra de índio boa para plantar”14 na qual foram “jo-
gados”. D. Lilian conta que algumas famílias ganharam terras melhores que
a dela, e o que indicava as boas condições da terra eram os machados. Diz
ela: “Era melhor. Tinha machado”, referindo-se às propriedades onde se lo-
calizam os sítios de terra preta. Em seguida, ela fala de seu machado “bem
grande”, que foi encontrado pelo filho quando estava no mato, com os pri-
mos, pescando e caçando passarinho. Eles teriam encontrado um “pedaço
de pote muito antigo, já todo molinho, se desmanchando”, que ela guardou,
até que “estragaram”. O machado, ainda preservado, está guardado com as
lembranças de família, especialmente da infância do filho. Assim como o

13 Entrevista transcrita por Vera L. M. Portal (2009) no âmbito das ações de educação
patrimonial desenvovidas pela autora no âmbito do “Programa de Arqueologia Pre-
ventiva Rodovia BR-163 (Trecho Guarantã do Norte ao Entroncamento da BR-230) e
Rodovia BR-230 (Trecho Miritituba-Rurópolis) DNITT/Universidade Federal do Pará,
sob a coordenação geral de Denise Pahl Schaan. Ver também Schaan, D.P. (2012).
14 Trata-se, provavelmente, dos sítios de terra preta arqueológica (TPA), resultantes de
ação antrópica no passado, e cujos sedimentos são potencialmente férteis e, portanto,
muito procurados por pequenos agricultores. Ver Kern, D.C., D’Aquino, G., Rodri-
gues, T.E. et al 2003.

62 Teto e Afeto Ir: Sumário


Seu Lauro, de Primavera, ela diz que mantém o machado para “(...) mostrar
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

para os (...) netos, que estão todos grandes, que nem [estão] aqui, [estão]
todos morando lá [no sul]” e continua dizendo que o machado é para o
filho, hoje com 42 anos, mostrar para os filhos, assim como os ossos de um
animal que ele matou e que estariam “na sala” de sua casa. Sua narrativa re-
vela a emoção de lembrar-se do filho pequeno, misturada ao sentimento de
orgulho pela bravura do menino representada pela entrada no mato e pela
morte do cabrito - atos associados ao machado, chamado afetuosamente de
“machadozinho dos índios”. Destaco o emprego do diminutivo que sugere
a relação de proximidade, de familiaridade, de afeto.

Conclusões
O que pretendi mostrar a partir desses casos é que há uma po-
tência simbólica nesses objetos, que precisa ser mais bem explorada. Pen-
so que seja um caminho fértil compreender as relações cotidianas entre
as pessoas, hoje, e a materialidade estudada pela arqueologia, refletindo
sobre os outros papéis que os objetos assumem, principalmente aqueles
que evitamos tratar como legítimos, seja porque não os consideramos
importantes, seja porque só vemos neles a aura arqueológica que interdi-
ta outros sentidos e significações além dos autorizados por nós.
Os exemplos apresentados falam da circularidade desses objetos-
-coisas e das elaborações sobre eles. Em muitos casos eles são guarda-
dos, passados de pai para filho, tornam-se parte de sua herança e agem
como objetos biográficos, evocando memórias daquele grupo familiar.
Em outros casos eles são usados ordinariamente, como os pesos de porta
e de papel, entre outros, que também sugerem uma aproximação distinta,
uma forma de aproximar a coisa estranhada, de domesticá-la até poder
descartá-la da tralha doméstica. Há os casos em que não é a presença
física da coisa, mas a coisa imaginada que tem agência sobre as pessoas,
como nas narrativas sobre o corisco, muitas vezes não conhecido pelas
mãos, como dito por uma narradora, mas reconhecido no imaginário.
O imaginário amazônico é povoado por formas sensíveis de agen-
ciamento de pessoas e coisas (Leite 2014; Silveira e Bezerra 2012: 142), e

63 Teto e Afeto Ir: Sumário


lâminas de machado, cacos de cerâmica e urnas funerárias fazem parte
Sobre o Corisco e Outras Coisas na Amazônia: os objetos do passado como memorabilia das pessoas no presente.

do sistema de objetos que opera essas narrativas, fazendo parte da dimen-


são sensível da vida na região. Romances clássicos amazônicos, como os
de Dalcídio Jurandir, da década de 1940, falam de tesouros de padres e
cabanos, de encantos, cemitérios, ossadas, mostram a agência dessa ma-
terialidade sobre a vida de pessoas e suas relações: de competição por
status, por amor ou por dinheiro (Jurandir [1947] 2008), indicando prá-
ticas longínquas de incorporação de objetos arqueológicos ao repertório
material cotidiano na Amazônia paraense.
Os coriscos e outras coisas são construídos por essas formas de
conhecer o mundo, que independem dos constructos da ciência arque-
ológica sobre objetos do passado. Cabe ressaltar que não estou incen-
tivando saques e coletas, nem sou contra a conservação e preservação
desses objetos para a compreensão do passado. Minhas reflexões tiveram
somente a intenção de chamar a atenção para a importância de “abrirmos
nossos sentidos” e pensarmos na vida social e cotidiana desses objetos
vivos como algo de interesse para uma outra arqueologia... Uma arqueo-
logia da memória na Amazônia.

64 Teto e Afeto Ir: Sumário


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68 Teto e Afeto Ir: Sumário


Sr. Ivan Almeida, garimpeiro e artesão, Serra Pelada.
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra
Pelada, Amazônia.

Nos capítulos anteriores, tratei das relações entre as pessoas e


os objetos e sítios arqueológicos, discutindo sobre a dimensão sensível
dessas relações e de como elas ressignificam as coisas do passado. Pro-
curei refletir sobre o estatuto dessas coisas na vida cotidiana de crianças,
velhos, agricultores, pescadores e artesãos. E propus olharmos para as
biografias desses “trecos” (Miller 2013) e compreender as formas pelas
quais se (con)fundem com as biografias das pessoas. Com isso, pretendi
demonstrar que os “troços” (Miller 2013) do passado falam das pessoas
no/do presente. Neste texto, trato do estatuto das coisas do garimpo a
partir das narrativas de um grupo de garimpeiros da vila de Serra de Pe-
lada, no sudeste do estado do Pará.
Em 2010 fui convidada pela arqueóloga Denise Pahl Schaan, da
Universidade Federal do Pará, a desenvolver ações de Educação Patri-
monial financiadas pela mineradora Vale, na Serra Leste, mais especi-
ficamente no município de Curionópolis1. Aceitei o convite e na minha
primeira viagem à região decidi conhecer Serra Pelada, um distrito que

1 Programa de Prospecções e Educação Patrimonial em Serra Leste, Curionópolis/PA.


Coord: Denise Pahl Schaan, UFPA. Ver Schaan, Santos e Oliveira 2011 e Schaan, D.
P. e A. P. Lima, 2011.

70 Teto e Afeto Ir: Sumário


fica a 48 km da sede do município. A curta visita ao local2 foi muito im-
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

pactante e, ao mesmo tempo, estimulante. Já nessa primeira incursão ao


campo conversei com moradores de distintos segmentos da vila e entrei
em contato com o rico acervo de histórias de vida ligadas ao garimpo.
A população da Vila de Serra Pelada é composta, em sua maio-
ria, por garimpeiros e suas famílias. A exploração do ouro causou uma
explosão demográfica na região, nos anos 1980, quando o garimpo de
Serra Pelada, controlado pela ditadura militar, ficou conhecido como
“formigueiro-humano”3, numa alusão aos milhares de homens que, dia-
riamente, se amontoavam nos barrancos e subiam escadas precárias,
carregando pesados sacos de sedimento na cabeça e arriscando suas
vidas na busca pelo ouro. Esse episódio da história do Brasil é marcado
por conflitos, injustiças e atos de violência sob o comando do regime
militar, que decretou, em 18/05/1980, a intervenção do SNI – Serviço
Nacional de Inteligência sobre o garimpo, justificando a ação com ar-
gumentos sobre a instabilidade social e os problemas de saúde da popu-
lação (Ab´Saber 1996).
O potencial aurífero da região foi, inicialmente, descoberto por
geólogos da Docegeo, subsidiária da mineradora Vale, na época denomi-
nada Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)4, durante prospecções reali-
zadas para identificar jazidas de cobre na Serra das Andorinhas. Segundo
Ab´Saber (1996:265), a notícia “vazou em Brasília (...) sem consequên-
cias”. Em 1977, a empresa precisou contratar trabalhadores para atuar nas
jazidas e foi aí que a notícia da “mina de ouro” se espalhou, levando mi-
lhares de homens, vindos de várias partes do Brasil, sobretudo dos esta-

2 Nessa primeira viagem fui acompanhada pelo arqueólogo Wesley Charles de Oliveira.
3 Para ver imagens do garimpo: http://www.amazonasimages.com/travaux-main-hom-
me; ver também Salgado (1996).
4 A Rio Doce Geologia e Mineração S/A foi fundada em julho de 1971 pela Compa-
nhia Vale do Rio Doce – CVRD para realizar pesquisas minerais. Era subsidiária
integral da CVRD e tinha autorização do governo federal para comercializar, com
exclusividade, o ouro do garimpo de Serra Pelada. A CVRD - empresa de capital
misto - foi criada pelo presidente Getúlio Vargas, em 1942, por meio de Decreto-Lei
Nº 4.352. A companhia foi privatizada em 1997. Em novembro de 2007, a CVRD
passou a se chamar Vale (VALE, 2012).

71 Teto e Afeto Ir: Sumário


dos vizinhos, a largarem suas vidas na esperança de enriquecer à custa do
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

ouro. Segundo estimativas, em 1983 havia 80.000 homens trabalhando


no garimpo de Serra Pelada, instalado em área cuja concessão de direito
de exploração de lavra de minério pertencia à CVRD.
Entre os anos de 1980 e 1992, o garimpo, que foi fechado definiti-
vamente em 1992, produziu cerca de quarenta toneladas de ouro (Mathis,
Brito e Brüseke 1997). A disputa pelo controle da exploração do garimpo
tem uma longa história que ainda não acabou. Um dos episódios que
determinou a reordenação da exploração e da estrutura de trabalho dos
garimpeiros foi a promulgação da Lei nº 7805, de 18/07/1989, que “Altera
o Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967, cria o regime de per-
missão de lavra garimpeira, extingue o regime de matrícula, e dá outras
providências”5. Como bem analisou Ribeiro (2013: 163):

“Claramente uma resposta às atividades informais de explora-


ção da Serra Pelada, na Amazônia, esta lei deslegitima e atropela
violentamente a história e a organização social do trabalho no
garimpo.”

O decreto alterado, 227, de 28 de fevereiro de 1967, previa em seu


Art. 9º: “Far-se-á pelo regime de matrícula o aproveitamento definido e
caracterizado como garimpagem, faiscação ou cata6.” Garimpagem, fais-
cação e cata constituem modos de mineração de pequena escala. Eles são
praticados no Brasil, pelo menos desde o século XIX (Ribeiro 2013), por
indivíduos solitários ou em grupos familiares. São estratégias de extração
consideradas “rudimentares” pela legislação. A histórica desqualificação
tecnológica do trabalho dos mineradores (Ribeiro 2013) é utilizada como
elemento fundante da “identidade garimpeira” engendrada e legitimada
pelo Estado no artigo 71 do decreto 227/1967. O decreto define que:

5 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7805.htm e
6 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0318.
htm#alteração6

72 Teto e Afeto Ir: Sumário


Sr. Francisco da Rocha “Cearazão”. Sr. José Mariano dos Santos, “Índio” .

Sra. Raimunda M.C. da Silva, garimpeira, Sr. Pedro Salzar Jr, garimpeiro e alfaiate em
e sua bateia. Serra Pelada.

Coleção de objetos da época do garimpo.

Vestígios da época do garimpo de Serra Pelada.


“Art. 71. Ao trabalhador que extrai substâncias minerais úteis,
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

por processo rudimentar e individual de mineração, garimpagem,


faiscação ou cata, denomina-se genericamente, garimpeiro.”

Nessa categoria inseriam-se os garimpeiros que chegaram à Serra


Pelada nos anos 1980. Com a alteração da lei em 1989 e o fechamento do
garimpo em 1992, os contornos do mundo do trabalho e a própria iden-
tidade, moldada a partir dele, foram drasticamente afetados.
Em pesquisa realizada com uma comunidade de mineiros de carvão
na França, Eckert (2012:19) observou que “Hoje, sem a mina, foi a profis-
são que desapareceu, e com ela valores de referência de um grupo, de uma
prática social e um modo de vida”. Essa ruptura tem implicações estreitas
com a construção da identidade de “ser garimpeiro”, com a coesão de sua
comunidade de trabalho (Eckert 2012: 19) e com a perda de seus direitos.
Antes de chegarem a Serra Pelada, parte significativa dos garimpeiros ti-
nha outras profissões e atividades: agricultores, médicos, alfaiates, cami-
nhoneiros, professores, empresários, entre outros. É comum ouvir afirma-
ções como “Tinha até padre aqui”. Uma nova identidade profissional foi
construída. Em que pese o fato de que as identidades, como lembra Santos
(1994: 31), “São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de
identificação”, “ser garimpeiro” era a priori uma identidade com prazo de
validade determinado pelo resultado exitoso da própria atividade.
Sr Ivan Almeida, que veio de Mato Grosso em 1980, diz “A gente
não tá à toa não, a gente tá numa temporada aqui. Eu vim pra garimpar,
não pra me empregar”. Assim como inúmeros garimpeiros, Seu Ivan foi
atrás do seu El Dorado, pensando no triunfo do retorno ao lugar de ori-
gem. A eficácia da narrativa do El Dorado se alicerça no desejo pela ri-
queza e por mostrar-se transformado por ela. Por isso a idílica volta para
casa é lembrada, pelos garimpeiros, a todo o momento. Ramos (2012:18),
ao refletir sobre a persistência das narrativas sobre o El Dorado, lembra a
corrida do ouro, no século XX, e diz que ela

“(...) tomou conta da Amazônia não como um empreendimento


capitalista ou estatal, mas como uma euforia hiperbólica que pro-
vocou um imenso desperdício social e econômico (grifo meu)”.

74 Teto e Afeto Ir: Sumário


Serra Pelada é hiperbólica. Ab´Saber (1996: 257) chamou-a de um
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

“explosivo aglomerado humano”, em alusão aos milhares de homens que


se aglutinavam num imenso arraial, com precária infraestrutura e pés-
simas condições de trabalho. O gigantismo fazia parte do cotidiano dos
garimpeiros. Sr. Raimundo dos Santos conta: “A gente tinha tanto em
fila que, pra encurtar a razão, até pra ir na privada tinha fila. A gente até
hoje se acostumou com fila”. A corrutela - lugar que reúne garimpeiros e
equipamentos necessários para o trabalho de mineração – era tão grande
que uma simples ida ao banheiro poderia se transformar numa aventura:
era comum se perder no caminho de volta para o barraco, e quando isso
acontecia o jeito era dormir em outro lugar para, no dia seguinte, reen-
contrar os companheiros de trabalho e moradia com a ajuda da rádio
local (Bezerra e Ravagnani 2012).
As imagens feitas por inúmeros fotógrafos, cinegrafistas e jorna-
listas ao longo da história do garimpo falam por si só (ver Cowell 1990;
Lopes 2013; Salgado 1996) dessa monumentalidade, que também aparece
nas falas dos garimpeiros, como, por exemplo, a de Seu José Sobrinho:
“Na Bíblia diz que a fé remove montanha, então ali foi assim: o garim-
peiro removeu a montanha e fez um buraco, nas costas...”. Eles fizeram
outra montanha com os rejeitos resultantes da garimpagem, um local de-
nominado por “montoeira”. Ali, em meio a toneladas de sedimento, en-
contram-se vestígios do “tempo do garimpo”, como denominam. Ferreira
(2013:76 -77), em sua pesquisa com antigos trabalhadores de uma fábri-
ca de tecidos fechada nos anos 1960, na cidade de Rio Grande, no Rio
Grande do Sul, percebeu que a menção ao “tempo da fábrica” era uma
forma de negar o presente. O “tempo” ali se referia, segundo a autora, à
“imagem de uma fábrica idealizada, na qual os conflitos e as divergências
ficam secundarizados (...)”.
Em Serra Pelada, as recordações sobre o passado são, da mesma
forma, “coloridas” (Pollak 1989:8) pela necessidade de contrapor os dra-
mas vividos no presente. O passado selecionado para essa matização
muitas vezes se refere ao período que antecede a chegada ao garimpo. A
narrativa de Sr. Pedro Salazar, 73 anos, que veio do Maranhão em 1983,
mais do que avivar e suavizar o cotidiano do garimpo intencionava reafir-
mar a sua origem e identidade profissional distinta e distante da sua vida

75 Teto e Afeto Ir: Sumário


em Serra Pelada: “Eu era alfaiate”, diz ele, sentado, de forma elegante, em
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

sua máquina de costura colocada estrategicamente na parte da frente de


seu pequeno estabelecimento comercial situado na rua principal. Dali ele
acompanha o movimento da vila e exibe um instrumento de trabalho – a
máquina – que em nada lembra a rudeza do equipamento utilizado na
garimpagem.
Miller (2005, 2013) propõe que as coisas que construímos e usa-
mos não têm apenas agência sobre nós, elas nos criam. A máquina de
costura constrói o [Pedro] alfaiate e traz à tona o seu passado glorioso.
Diz ele: “Eu era o príncipe da minha terra”. Seu sonho é voltar para casa,
mas ele afirma ter vergonha de retornar “vencido”, sentimento comparti-
lhado por todos os garimpeiros com quem conversei durante o trabalho.
Tristeza, vergonha, solidão e raiva estão entre os sentimentos que mais
são expressos pelos garimpeiros. Carvalho (2013: 395) conta que entre
os balateiros7 da região de Monte Alegre, sudoeste do estado do Pará,
cresceu “(...) a sensação de esquecimento, silenciamento, invisibilidade”
depois do declínio de sua atividade profissional. O esquecimento entre os
garimpeiros muitas vezes se refere às famílias deixadas para trás. Vários
deles estão há trinta anos na vila, esperando por uma parcela dos recur-
sos referentes à venda das sobras de ouro na época do garimpo, que não
teria sido repassada para eles. A esperança de receber esse dinheiro, so-
mada à desativação do garimpo, deixa o passado na superfície do tempo
presente. É como se o presente estivesse em suspensão, imobilizado pela
potência do passado. A esse respeito, Sr. Francisco da Rocha,“Cearazão”,
diz: “Eu tenho uma realidade que não foi concluída”. Todos eles sonham
em ganhar esse dinheiro e sair de Serra Pelada, muitos ainda querem vol-
tar para casa.
Essa longa espera aumenta a amargura (Pollak 1989: 9) e o sen-
timento de incerteza sobre o futuro. Mas, ao mesmo tempo, são esses
sentimentos que os unem e reanimam o sentido de comunidade abalado
pelo fechamento do garimpo. O que os unia como uma “irmandade” no
passado (Lopes 2013), eram o ouro, o trabalho e o sonho; hoje não há

7 Balata é um látex extraído na região norte e utilizado para confeccionar objetos arte-
sanais, entre outros.

76 Teto e Afeto Ir: Sumário


mais trabalho e os sonhos desvaneceram, mas a agência do ouro sobre
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

eles continua, talvez até mais forte do que no passado, pois hoje é a po-
tência simbólica da imagem do mineral, e não mais ele, que age no seu
cotidiano.
O ouro, hoje, continua sendo o seu devaneio (Bachelard 1988) e
protagonista das conversas e das histórias sobre lugares da vila. Relatos
recorrentes contam das “enormes” quantidades de ouro que ainda repou-
sam no fundo do lago em que se transformou a cava do garimpo. É fre-
quente ouvir sobre a existência de toneladas de ouro ainda por serem ex-
traídas. Cada um deles afirma ter a sua parte no bolo da cava. Isso me faz
lembrar as histórias, ou causos, sobre o enterro de ouro e de tesouros que
povoam o imaginário de diversas comunidades no Brasil, como no sul
do país, na área missioneira pesquisada por Silveira (2011), e também na
Amazônia (Leite 2014, entre outros). As histórias sobre barrancos cheios
de ouro seriam os seus “causos de dinheiro-ouro” (Silveira 2011). Eles
não estão enterrados como os do sul, mas estão submersos; não são mais
vistos, apenas imaginados. A paisagem do trabalho está submersa.
O intervalo de tempo que os distancia da vida de trabalho no ga-
rimpo de ouro provoca a criação de histórias e memórias que têm como
função “possibilitar a continuidade da existência no presente” (Ferreira
2013: 89) e manter a coesão social (Halbwachs 2004). Mas a imaginação
também é acionada quando estão na presença das coisas associadas ao
passado do garimpo. Durante caminhadas, com Seu Ivan e Seu Cearazão,
pela montoeira e por outros locais da vila, o achado de objetos como ca-
bos de pás, picaretas, pedaços de cordas, sacos rasgados, kichutes8, tiras
de sandálias de dedo, talheres, embalagens de biscoitos, farinhas, entre
outros, ativava memórias do cotidiano no garimpo, que muitas vezes não
haviam surgido durante as conversas realizadas em outros lugares. Ou
emergiam com uma potência narrativa tão intensa, que contar não era

8 O Kichute era uma combinação de tênis e chuteira criada pela Alpargatas em 1970
e que teve grande aceitação no mercado. Segundo a empresa era o “calçado perfeito
para as peladas de futebol”. Foi adotado pelos garimpeiros por ser resistente, “o ki-
chute topa tudo”, por ter travas na sola, o que dava maior segurança nas descidas e
subidas nos barrancos e porque era barato. Ver http://www.alpargatas.com.br

77 Teto e Afeto Ir: Sumário


Lago da cava, Serra Pelada.

Artesanato produzido pelo Sr. Ivan Almei- O “Pau da Mentira” em frente ao restaurante Vitória,
da, Serra Pelada. Serra Pelda.

Vista da rua principal da Vila de Serra Pelada.


suficiente, era preciso encenar o ato narrado, como ocorreu em dois epi-
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

sódios distintos com Dona Raimunda, garimpeira, e com Seu Cearazão


e Seu Ivan.
Dona Raimunda, ao narrar o dia a dia do garimpo e mostrar, em
um tanque no quintal de sua casa, o uso da bateia, incorporou a sua “(...)
narrativa devaneante e aniquiladora do tempo e instauradora de uma pai-
sagem [de] retorno à quadra, ao barranco e à cava do garimpo” (Bezerra e
Ravagnani 2013). Dona Raimunda, assim como os demais, também espe-
ra pelo dinheiro prometido. Sua preocupação é provar que é garimpeira
e ser beneficiada. Diz ela “Se eu não tiver a minha bateia, quem vai dizer
que eu sou garimpeira?” A bateia, sem uso no seu cotidiano, é guardada
juntamente com as suas roupas. Quando perguntei se poderia tirar uma
fotografia, ela pediu que eu esperasse para que ela pudesse se arrumar
e posar com a bateia. O instrumento é, ao mesmo tempo, evocador das
memórias sobre o garimpo, constituidor de sua identidade de garimpeira
e objeto do seu afeto.
Afeto que Seu Cearazão demonstra pela “família de objetos” (van
Velthem 2007) do “tempo do garimpo”. Ele guarda pás, picaretas, balde,
corda, parte de uma escada que ele afirma ser uma das que ficava na cava,
roupa, kichute, além da própria casa, que era um barracão dividido entre
ele e outros garimpeiros. Os objetos foram sendo trazidos aos poucos,
alinhavando as suas narrativas. Ele se referia aos objetos como entes que-
ridos: “[Essa escada pequena] é uma filha de escada”, “Esse [picareta] é
filho desse”. Somente depois de alguns contatos é que ele mostrou o seu
“museu” localizado no seu quarto e organizado como uma espécie de
altar. Ao sentar-se no banco localizado em seu quintal e, segundo ele, do
“tempo do garimpo”, ele não apenas narra o dia a dia depois da chegada
ao barracão, mas encena um diálogo com os colegas imaginados e com
quem outrora dividiu a moradia.
Seu Ivan também guarda várias coisas do garimpo: fotografias, do-
cumentos, picareta quebrada, diz que gosta de antiguidades e se ressente:
“Tem solado de kichute lá [na montoeira], eu esqueci de trazer pra pen-
durar, é relíquia”, se referindo a nossa ida à montoeira. Durante visita a
outro local, onde havia vestígios da vida cotidiana no garimpo, ele toca
nos objetos (sandálias femininas, embalagens de comida, entre outros) e

79 Teto e Afeto Ir: Sumário


solta gargalhadas ao lembrar-se das histórias vividas no lugar e as quais
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

narra se movimentando pelo lugar, como se estivesse caminhando pela


corrutela. A narrativa não tem a intenção de buscar o “puro em si” (Ben-
jamin 1994: 205), mas mistura-se a outro sentimento, as de saudades da
juventude, o que faz com que os problemas enfrentados no “tempo do
garimpo” não encontrem lugar em suas narrativas. A emoção de “tocar o
passado” por meio das coisas faz com que ele matize e selecione as lem-
branças, que surgem como imagens sensíveis e plenas de momentos de
solidariedade, companheirismo e felicidade.
Contudo, a lembrança que guarda e mostra com o maior orgulho
e cuidado é a “amarelinha”, o seu certificado de matrícula expedido pelo
Ministério da Fazenda, de acordo com o previsto no Decreto-Lei nº 227,
de 28 de fevereiro de 1967, posteriormente alterado pela Lei nº 7805, de
18/07/1989:

“Art. 73. § 3º - Ao garimpeiro matriculado será fornecido um Cer-


tificado de Matrícula, do qual constará seu retrato, nome, nacio-
nalidade, endereço, e será o documento oficial para o exercício da
atividade dentro da zona nele especificada”.

Para Seu Ivan a “amarelinha” é a “prova” da identidade garimpeira,


que hoje transborda sobre a sua outra identidade profissional: artesão.
Seu Ivan confecciona esculturas de metal com temas do garimpo, bancos,
cadeiras e vasos de planta, aproveitando a borracha de velhos pneus de
caminhão. A característica de seu artesanato é a cor dourada. Por inúme-
ras vezes encontrei Seu Ivan banhado de ouro, uma imagem carregada
pela potência do imaginário (ver Silveira 2011) sobre o ouro, sobre o El
Dorado (ver Ramos 2012).
Sr. José Mariano dos Santos , o “Índio”, por sua vez, um dos maio-
res “bamburrados”9 do garimpo de Serra Pelada, extraiu a quarta maior
quantidade de ouro da cava, perdeu tudo o que tinha, mas não se ressente.

9 Garimpeiro que ganhou muito dinheiro com a extração de ouro. Seu Índio faleceu
em 2015.

80 Teto e Afeto Ir: Sumário


Diz que é o garimpeiro mais famoso da vila e que sua história está conta-
As Pessoas e as Coisas no Garimpo de Serra Pelada, Amazônia.

da por muitos, em muitos lugares. De fato, durante a pesquisa, a TV Zero


(Lopes 2013) realizava documentário sobre Serra Pelada e ele era um dos
principais narradores. Seu sonho era estudar Geologia e se aprofundar no
conhecimento sobre o solo, talvez para empregar na prospecção do quintal
de sua casa, onde ele e sua esposa, Dona Raimunda, insistiam em dizer que
tinha ouro. As histórias que contam sobre suas aventuras de milionário
são desmentidas, em parte, por ele, mas aceitas com bom humor e com o
orgulho de ser um dos personagens mais famosos da história do garimpo
de Serra Pelada.
Essas e outras histórias são contadas e recontadas por eles mes-
mos e pelos meios de comunicação. Na vila elas são contadas, desde o
fechamento do garimpo, debaixo de uma árvore frondosa, localizada em
frente a um dos restaurantes mais conhecidos do local. Quando ficaram
sem trabalho, os garimpeiros, sem ter outra ocupação, passavam horas,
contando e amplificando as suas histórias, o que fez com que batizassem
o local de “Pau da Mentira”, muito embora todas as histórias “tenham
acontecido mesmo”.
A ênfase dada aos detalhes dos “fatos reais” tem relação com a
própria natureza e dinâmica de construção das memórias, mas sobre-
tudo com a sua importância na reafirmação da identidade garimpeira.
As coisas do garimpo - atores não-humanos (Latour 2005) presentes nas
narrativas memoriais-, são matéria fundante no processo de constitui-
ção da identidade dos garimpeiros. As ferramentas ativam a memória da
comunidade de trabalho, ao mesmo tempo em que tornam substantiva
a condição de “ser garimpeiro”. As carteiras amareladas, os pedaços das
escadas dos barrancos, as solas de kichutes, os fragmentos de picaretas
e as bateias fazem parte de coleções biográficas mantidas pelo que nelas
há de individual, de vida vivida (Certeau 1994) de cada um e de coletivo,
porque atuam como amálgama de histórias narradas por um sentimento
de nostalgia. Nesse processo, as biografias - das coisas e das pessoas - se
(con)fundem e revelam a agência da memorabilia do passado do garimpo
sobre as pessoas no presente.

81 Teto e Afeto Ir: Sumário


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83 Teto e Afeto Ir: Sumário


Ensaio Fotográfico
Armadilhas no Tempo: A Pesca em Joanes,
Ilha do Marajó10

As armadilhas de pedra – as camboas – estão ali “desde que eu me


entendo”, diz Joelson. Ele usa o corpo como referência para falar do ta-
manho que suas paredes tinham, quando era pequeno. Com a ajuda das
mãos, tenta “medir” a memória que tem da camboa. Mas o olhar titubean-
te sugere que, entre a recordação da infância e a experiência de pescador,
há uma desproporção. Como a casa onírica de Bachelard11, aquelas “aonde
os nossos sonhos nos levam (...)” e que “são avessas a qualquer descrição”,
assim é a “camboa da infância”. Josimar e Fábio contam que brincavam de
barquinho na camboa porque “lá nunca ficava sem água”. Essas brincadei-
ras fazem parte de um aprendizado sensível sobre a pesca. Sautchuk12 diz
que as brincadeiras das crianças, na Vila do Sucuriju, no Amapá, estão “(...)
exercitando antecipadamente o tipo de relação em que estarão envolvidas
no futuro”. Os jovens, em Joanes, dizem que o desejo de se tornar pescador
vem da infância, porque “era divertido”. Uma lembrança diferente da de

10 Texto: Marcia Bezerra; Fotos: Antonio Garcia.


11 Bachelard, G. 1989 A Poética do Espaço. São Paulo: Editora Martins Fontes, p. 2015.
12 Sautchuk, C.E. 2013 Pesca e Aprendizagem: gestação e metamorfoses no estuário do
Amazonas. Amazônica, 5(2): 502-519), p.513.

84 Teto e Afeto Ir: Sumário


Véio: “A infância não tem muita coisa pra ter saudade, era trabalho o tempo
todo”. Talvez se refira ao aprendizado constante, desde cedo, quando os li-
mites entre a brincadeira e o trabalho são tênues. Assim como são tênues as
percepções entre o passado e o presente da pesca na vila, e o engajamento
com as paisagens de trabalho da pesca é intenso. Diversos tipos de arma-
dilhas: camboas antigas, camboas “novas”, currais de madeira, redes, linhas
de anzol e matapis aprisionam peixes e crustáceos, mas também capturam
o olhar para essa coleção de imagens que fusiona o passado e o presente das
pessoas e das coisas em Joanes.

85 Teto e Afeto Ir: Sumário


Praia Grande com camboa ao fundo, Joanes.
Camboa em Joanes.
Joelson armando rede de pesca em área próxima das camboas, Joanes.
Vestígios de curral na área interna das camboas, Joanes.
Joelson mostrando vestígios de curral na área interna das camboas, Joanes.
Camboa em Joanes.
Curral de pesca na Praia do Pescador, Joanes.
Curral de pesca na Praia do Pescador.
Barco de pesca, Joanes.
Lançamento da rede de pesca, Joanes.
Joelson com matapi no Igarapé do Limão, Joanes.
Veio na Praia do Porto, Joanes.
Camboa do Veio, Joanes.
Sobre a Autora

Marcia Bezerra nasceu no Rio de Janeiro, em 1963, e atua como


arqueóloga há 30 anos. É bacharel em Arqueologia pelas Faculdades Inte-
gradas Estácio de Sá/Rio de Janeiro, Mestre em História Antiga e Medieval
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutora em Arqueologia
pela Universidade de São Paulo. É docente do Programa de Pós-Gradu-
ação em Antropologia da Universidade Federal do Pará e associada ao
Departamento de Antropologia da Indiana University (EUA). Foi Secre-
tária Geral (2005-2009), Vice-Presidente (2011-2013) e Presidente (2013
– 2015) da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Desde 2001 dedica-se ao
estudo das relações entre arqueologia, arqueólogos e comunidades locais.
Em 2008 passou a direcionar suas pesquisas para o mapeamento do es-
tatuto das coisas do passado na vida das pessoas no presente, com ênfase
na Amazônia paraense. É bolsista de produtividade do CNPq e coordena,
com K. Anne Pyburn/IU, o Grupo de Pesquisa Arqueologia no Contem-
porâneo/CNPq. E-mail: marciabezerra@pq.cnpq.br

99 Teto e Afeto Ir: Sumário


O livro que você tem em mãos é um exercício
epistemológico que, no meu ponto de vista,
atravessa fronteiras acadêmicas e toma para si
a tarefa de traçar um rumo diverso e, por isso,
mais humano para as coisas: preocupada que
está com a potência imaginária das coisas no
cotidiano das pessoas, a autora busca, mediante
reflexões em torno do que chamaria aqui de
uma arqueologia da memória, reconsiderar o
“lugar da memória” pela memória do lugar...
Flávio Silveira
Universidade Federal do Pará

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