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Bezerra M. Teto e Afeto Sobre As Pessoas
Bezerra M. Teto e Afeto Sobre As Pessoas
MARCIA BEZERRA
Belém, Pará
GKNORONHA
2017
Teto e Afeto
Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia
Marcia Bezerra
Revisão
Vânia Lacerda
Fotos
Antonio Garcia, Marcia Bezerra, Flávio Silveira, Guilherme K. Noronha, Luis Ravagnani,
Leandro Cascon, Monica Lopes, Rafael Lobo e Alex Silva.
Financiamento
Cabral 2014: 6
Hamilakis 2013:15
PREFÁCIO
Agradecimentos 13
Apresentação 17
Ensaio Fotográfico
Armadilhas no Tempo: A Pesca em Joanes, Ilha do Marajó 89
2 Uma parede lateral da igreja antiga foi aproveitada na construção da igreja nova.
O ‘Pegador de Peixe’3
“Pegador de peixe” é a categoria usada por Dona Maria, uma das
moradoras mais antigas de Joanes, para designar as camboas. As camboas
- ou gamboas - são armadilhas de pesca do tipo bloqueio e constituem, ba-
sicamente, a construção de uma barragem na zona de oscilação das marés.
Os peixes nadam para dentro das armadilhas durante a maré alta, sendo
capturados pelas paredes das estruturas quando o nível da água abaixa,
tornando fácil a sua apreensão. Estratégias de pesca por bloqueio são utili-
zadas em ambientes marinhos e ribeirinhos no Brasil (Fidellis 2013; Furta-
do 2002; Giglio e Freitas 2013; Maneschy 1993; Noelli, Mota e Silva 1995;
Piorski et al 2009) e em outras partes do mundo (Bannerman e Jones 1999;
Dawson 2004; Gribble 2006; Magalhães e Baptista 2007).
A denominação “camboa” é comumente utilizada nos relatos de
viajantes (D´Abeville 1632; Daniel 1722-1776), mas há diversas outras
denominações relativas à “armadilha do tipo tapagem com função de
bloqueio”, tais como: pari, cacuri, cercada (IBAMA 2010) e ainda gambo-
as, barragens e currais de pedra, entre outros. Noelli, Mota e Silva (1995)
mencionam paris construídos e utilizados por grupos indígenas históri-
cos no sul do Brasil. Os autores basearam suas pesquisas em relatos de
cronistas dos séculos XV e XVI e localizaram sete paris no Posto Indígena
de Apucarana, no estado do Paraná. No estudo realizado nos anos 1990,
os autores indicavam a importância de pesquisas sobre as armadilhas de
pesca e ressaltavam a lacuna de informações arqueológicas e históricas
4 Giglio e Freitas (2013) discutem os problemas da “pesca com rede de camboa” que é
proibida na RESEX de Cassurubá, em Santa Catarina, por provocar a diminuição da
população jovem de diversas espécies na região. A denominação desse tipo de pesca
não se refere à camboa aqui tratada – armadilhas de pedra -, mas a um tipo de pesca
com malha de rede que tem o mesmo princípio: prender os peixes que se encontram
nas raízes da vegetação de manguezais.
5 A visita ao local foi realizada em companhia do arqueólogo Arkley Bandeira.
6 Gênero Mugil sp
7 Códice 71 – Monforte – Documento 22. Correspondência de André Bernardes Ga-
vinho para o Governador Fernando da Costa Ataíde, datada de 13 de setembro de
1767.
8 O levantamento de fontes históricas foi realizado por Alexandre Silva, participante
dos projetos de pesquisa que desenvolvi em Joanes, para a sua pesquisa de mestrado
(ver A. Silva 2012).
Camboa de Joanes
usam outros nos rios de lodo, porque aqueles só usam nas praias
O Pegador de Peixe: os pescadores, as camboas e a arqueologia na Vila de Joanes, Ilha do Marajó, Amazônia, Brasil
“Feliz porque dava peixe né. Ai! Dava muito peixe, a gente ia com
o terçado e o paneiro, quando enchia a gente botava na costa e vi-
nha embora com o peixe, era tão bom, tempo bom não volta mais,
minha filha, te digo”.
11 Tradução minha.
12 Idem.
13 Idem. A esse respeito ver também discussões de Jeudy (2005)
14 Discurso Autorizado do Patrimônio - Authorized Heritage Discourse (AHD) Surge
na Europa no Século XIX e se refere ao discurso de constituição e legitimação de
noção de patrimônio que sublinha a sua materialidade, assume a sua importância
inata e, portanto, tem como foco a sua ‘preservação para o futuro’ (Smith 2011: 43).
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número sete;
5. O afloramento do objeto das entranhas da terra.
1 Para uma discussão sobre epistemologias ameríndias da cultura material ver Santos-
-Granero (2009).
2 Para uma visão ampla sobre a produção que trata dessas relações, com distintas pers-
pectivas, ver a coleção da Revista Arqueologia Pública, da UNICAMP. Disponível
em http://www.lapvirtual.org/revista-de-arqueologia-p-blica.html
Teto e Afeto
Objetos arqueológicos são encontrados em lugares distintos na
Amazônia. Além dos sítios arqueológicos e das coleções sob a guarda de
instituições de pesquisa e de museus, é possível vê-los ocupando espaços
11 Entrevistas realizadas por Irislane P. de Moraes (2009, 2010) no âmbito das ações de
educação patrimonial desenvolvidas pela autora no âmbito do “Programa de Arque-
ologia Preventiva Rodovia BR-163 (Trecho Guarantã do Norte ao Entroncamento da
BR-230) e Rodovia BR-230 (Trecho Miritituba-Rurópolis) DNITT/Universidade Fe-
deral do Pará, sob a coordenação geral de Denise Pahl Schaan. Ver também Schaan,
D.P. (2012).
mostra-se incerta quanto a sua gênese. Ela se pergunta: “ou é que produz
na terra mesmo, né? num sei... o fogo eu vi”. Lourdes, por sua vez, diz ter
encontrado muitos “machadim”, que ela classifica em dois grupos: estrei-
tinhos e largos, para os quais estabelece relações de gênero: eles seriam
“o machado e a machada”. Assim como Agda, também pondera sobre a
origem dos coriscos e conclui que o “céu tem armazenado essas coisas”. A
ideia de que os objetos arqueológicos são coisas da natureza, criadas por
Deus, é bastante frequente entre os moradores. Mencionei, anteriormen-
te, que a mãe de uma das crianças de Joanes diz que o filho pega as coisas
que “a chuva traz”. Seu Zuza, agricultor de Primavera, fala do “jabuti”,
nome que deu a um almofariz como algo que ele acredita “ser da terra
mesmo”. Sua mulher confirma, dizendo que o objeto é “gerado pela terra”,
e ambos concluem que “são coisas de Deus”.
As camboas12, tratadas aqui neste livro, também são consideradas,
por alguns pescadores em Joanes, como “coisas de Deus” porque estão lá,
como diz Joelson, pescador local “desde que ele se entende”. Essas estruturas
remontam ao período colonial, estão documentadas em fontes históricas e
faziam parte do sistema que operava o Pesqueiro Real, que abastecia Belém
com grandes quantidades de peixe. Embora tenham perdido parte signifi-
cativa das pedras que constituíam as suas paredes e não sejam mais usadas
como armadilhas, como afirmam os pescadores, a área das camboas é uti-
lizada para a armação de currais de pesca, visando ao aproveitamento dos
limites impostos pelas paredes restantes. Por essa razão, eles “consertam as
camboas”, como dizem, referindo-se à recolocação das pedras que formam
sua estrutura. Os pescadores mais velhos, ou suas famílias, lembram-se das
camboas como referência dos bons tempos da pesca na vila, quando havia
muito peixe. As famílias desciam para a praia e ficavam reunidas ao lado
das camboas, enquanto os peixes presos na armadilha eram coletados pelos
homens. Os pescadores mais jovens recordam-se das brincadeiras de criança
dentro da área das camboas. Dona Enedina, viúva de um pescador, diz ter
saudades da época em que “a camboa era feliz” (A.C. Silva, 2012) A asso-
13 Entrevista transcrita por Vera L. M. Portal (2009) no âmbito das ações de educação
patrimonial desenvovidas pela autora no âmbito do “Programa de Arqueologia Pre-
ventiva Rodovia BR-163 (Trecho Guarantã do Norte ao Entroncamento da BR-230) e
Rodovia BR-230 (Trecho Miritituba-Rurópolis) DNITT/Universidade Federal do Pará,
sob a coordenação geral de Denise Pahl Schaan. Ver também Schaan, D.P. (2012).
14 Trata-se, provavelmente, dos sítios de terra preta arqueológica (TPA), resultantes de
ação antrópica no passado, e cujos sedimentos são potencialmente férteis e, portanto,
muito procurados por pequenos agricultores. Ver Kern, D.C., D’Aquino, G., Rodri-
gues, T.E. et al 2003.
para os (...) netos, que estão todos grandes, que nem [estão] aqui, [estão]
todos morando lá [no sul]” e continua dizendo que o machado é para o
filho, hoje com 42 anos, mostrar para os filhos, assim como os ossos de um
animal que ele matou e que estariam “na sala” de sua casa. Sua narrativa re-
vela a emoção de lembrar-se do filho pequeno, misturada ao sentimento de
orgulho pela bravura do menino representada pela entrada no mato e pela
morte do cabrito - atos associados ao machado, chamado afetuosamente de
“machadozinho dos índios”. Destaco o emprego do diminutivo que sugere
a relação de proximidade, de familiaridade, de afeto.
Conclusões
O que pretendi mostrar a partir desses casos é que há uma po-
tência simbólica nesses objetos, que precisa ser mais bem explorada. Pen-
so que seja um caminho fértil compreender as relações cotidianas entre
as pessoas, hoje, e a materialidade estudada pela arqueologia, refletindo
sobre os outros papéis que os objetos assumem, principalmente aqueles
que evitamos tratar como legítimos, seja porque não os consideramos
importantes, seja porque só vemos neles a aura arqueológica que interdi-
ta outros sentidos e significações além dos autorizados por nós.
Os exemplos apresentados falam da circularidade desses objetos-
-coisas e das elaborações sobre eles. Em muitos casos eles são guarda-
dos, passados de pai para filho, tornam-se parte de sua herança e agem
como objetos biográficos, evocando memórias daquele grupo familiar.
Em outros casos eles são usados ordinariamente, como os pesos de porta
e de papel, entre outros, que também sugerem uma aproximação distinta,
uma forma de aproximar a coisa estranhada, de domesticá-la até poder
descartá-la da tralha doméstica. Há os casos em que não é a presença
física da coisa, mas a coisa imaginada que tem agência sobre as pessoas,
como nas narrativas sobre o corisco, muitas vezes não conhecido pelas
mãos, como dito por uma narradora, mas reconhecido no imaginário.
O imaginário amazônico é povoado por formas sensíveis de agen-
ciamento de pessoas e coisas (Leite 2014; Silveira e Bezerra 2012: 142), e
7(1): 49-71.
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2 Nessa primeira viagem fui acompanhada pelo arqueólogo Wesley Charles de Oliveira.
3 Para ver imagens do garimpo: http://www.amazonasimages.com/travaux-main-hom-
me; ver também Salgado (1996).
4 A Rio Doce Geologia e Mineração S/A foi fundada em julho de 1971 pela Compa-
nhia Vale do Rio Doce – CVRD para realizar pesquisas minerais. Era subsidiária
integral da CVRD e tinha autorização do governo federal para comercializar, com
exclusividade, o ouro do garimpo de Serra Pelada. A CVRD - empresa de capital
misto - foi criada pelo presidente Getúlio Vargas, em 1942, por meio de Decreto-Lei
Nº 4.352. A companhia foi privatizada em 1997. Em novembro de 2007, a CVRD
passou a se chamar Vale (VALE, 2012).
5 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7805.htm e
6 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0318.
htm#alteração6
Sra. Raimunda M.C. da Silva, garimpeira, Sr. Pedro Salzar Jr, garimpeiro e alfaiate em
e sua bateia. Serra Pelada.
7 Balata é um látex extraído na região norte e utilizado para confeccionar objetos arte-
sanais, entre outros.
eles continua, talvez até mais forte do que no passado, pois hoje é a po-
tência simbólica da imagem do mineral, e não mais ele, que age no seu
cotidiano.
O ouro, hoje, continua sendo o seu devaneio (Bachelard 1988) e
protagonista das conversas e das histórias sobre lugares da vila. Relatos
recorrentes contam das “enormes” quantidades de ouro que ainda repou-
sam no fundo do lago em que se transformou a cava do garimpo. É fre-
quente ouvir sobre a existência de toneladas de ouro ainda por serem ex-
traídas. Cada um deles afirma ter a sua parte no bolo da cava. Isso me faz
lembrar as histórias, ou causos, sobre o enterro de ouro e de tesouros que
povoam o imaginário de diversas comunidades no Brasil, como no sul
do país, na área missioneira pesquisada por Silveira (2011), e também na
Amazônia (Leite 2014, entre outros). As histórias sobre barrancos cheios
de ouro seriam os seus “causos de dinheiro-ouro” (Silveira 2011). Eles
não estão enterrados como os do sul, mas estão submersos; não são mais
vistos, apenas imaginados. A paisagem do trabalho está submersa.
O intervalo de tempo que os distancia da vida de trabalho no ga-
rimpo de ouro provoca a criação de histórias e memórias que têm como
função “possibilitar a continuidade da existência no presente” (Ferreira
2013: 89) e manter a coesão social (Halbwachs 2004). Mas a imaginação
também é acionada quando estão na presença das coisas associadas ao
passado do garimpo. Durante caminhadas, com Seu Ivan e Seu Cearazão,
pela montoeira e por outros locais da vila, o achado de objetos como ca-
bos de pás, picaretas, pedaços de cordas, sacos rasgados, kichutes8, tiras
de sandálias de dedo, talheres, embalagens de biscoitos, farinhas, entre
outros, ativava memórias do cotidiano no garimpo, que muitas vezes não
haviam surgido durante as conversas realizadas em outros lugares. Ou
emergiam com uma potência narrativa tão intensa, que contar não era
8 O Kichute era uma combinação de tênis e chuteira criada pela Alpargatas em 1970
e que teve grande aceitação no mercado. Segundo a empresa era o “calçado perfeito
para as peladas de futebol”. Foi adotado pelos garimpeiros por ser resistente, “o ki-
chute topa tudo”, por ter travas na sola, o que dava maior segurança nas descidas e
subidas nos barrancos e porque era barato. Ver http://www.alpargatas.com.br
Artesanato produzido pelo Sr. Ivan Almei- O “Pau da Mentira” em frente ao restaurante Vitória,
da, Serra Pelada. Serra Pelda.
9 Garimpeiro que ganhou muito dinheiro com a extração de ouro. Seu Índio faleceu
em 2015.
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