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Ananda Machado

TYZYTABA’U
TRANÇADORES DE
PALAVRAS E COISAS
O livro é uma adaptação da tese
Kuadpayzu, Tyzytaba’u na’ik Marynau:
Aspectos de uma História Social da
Língua Wapichana em Roraima
(1932-1995), defendida em 2016
no Programa de Pós-Graduação em
História Social da UFRJ. Nele é apre-
sentada, a partir das tramas do falar
e do trançar, a complexidade das
práticas culturais Wapichana. A lín-
gua Wapichana faz parte do tronco
linguístico Aruak e tanto os objetos
feitos recentemente, quanto aque-
les guardados no Museu Nacional/
UFRJ, fazem parte da vida e da his-
tória desse povo indígena. Como
não encontramos uma palavra na
língua Wapichana significando ar-
tesão, artesanato ou mesmo arte, por
aproximação adotamos tyzytaba’u,
como significante de ‘trançador’ e
‘artista’. Assim, o nome do livro é
Tyzytaba’u: Trançadores de Palavras
e Coisas.
O livro sintetiza o que a auto-
ra ouviu das narrativas históricas
e compartilha aproximações pos-
síveis com a língua e a cultura
wapichana, no que tange à constru-
ção das casas, relações de trabalho,
forma de processar alimentos, de
comer, de cantar, de dançar, de fes-
tejar, de ritualizar, de trançar, de
tecer, de desenhar, de pintar, de
esculpir objetos, de viver e de pen-
sar. Nele estão incluídas fotografias
TYZYTABA’U
Ananda Machado

TYZYTABA’U
TRANÇADORES DE
PALAVRAS E COISAS
Reitora da Universidade Denise Pires de Carvalho
Federal do Rio de Janeiro
Diretor do Museu Nacional Alexander Kellner
Chefe do Setor de Etnologia e Etnografia João Pacheco de Oliveira
e Curador das coleções etnográficas
Presidente da Associação Amigos Mariangela Menezes
do Museu Nacional

editor João Pacheco de Oliveira


revisão Wilson Milani
projeto gráfico Marisa Araujo

Ddados internacionais de catalogação na publicação (cip)


(câmara brasileira do livro, sp, brasil)
Aline Graziele Benitez — Bibliotecária — crb 1/3129

Machado, Ananda
Tyzytaba’u : trançadores de palavras e coisas / Ananda Machado.
– 1. ed. – Rio de Janeiro : Ed. do Autor, 2022. – (Etno museu ; 3)
Bibliografia.
isbn: 978-65-00-43491-0
1. Etnografia – Brasil 2. Roraima (Estado) – História social
3. Wapichana – Gramática – Estudo e ensino 4. Wapichana –
Vocabulários, glossários etc I. Título II. Série.
22-107516 cdd: 498.3829807

Todos os direitos reservados ao


Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional.
Este livro foi patrocinado pelo Instituto Cultural Vale.
Distribuição gratuita.

Museu Nacional UFRJ


Quinta da Boa Vista, São Cristóvão
CEP 20.940-040 – Rio de Janeiro-RJ
see@mn.ufrj.br
AGRADECIMENTOS

A escrita deste livro seria tarefa impensável sem a par-


ticipação ativa e direta dos indígenas Wapichana e Atoraiu.
Muitos dos que colaboraram com a pesquisa foram generosos
no exercício de compartilhar seus conhecimentos. Agradeço
a todos os entrevistados, colaboradores nas transcrições e nas
traduções, especialmente a Nilzimara de Souza Silva, Miriam
de Souza Chaves, Joceline Araujo Veras, Joice Alberto de Souza,
Frank das Chagas Silva e Maria Shirlene Silva Souza.
Agradeço ao coordenador dos professores de língua
Wapichana, Odamir de Oliveira, aos professores colaborado-
res com os quais interagimos nos encontros de professores de
línguas indígenas da Região da Serra da Lua desde 2012, e ao
professor Dr. Manoel Gomes dos Santos, que muito contribuí-
ram para a preparação de material educativo para o ensino da
língua Wapichana e para a construção das reflexões deste livro.
Agradeço a minha família, principalmente aos meus filhos
Pedro, Clarice e Manoel, que entenderam minhas ausências e
apoiaram minhas lutas, à orientadora Maria Paula Nascimento
Araújo. Sou grata a todos que me encorajaram, criticaram e não
me deixaram desistir. Agradeço à CAPES e aos idealizadores do
Dinter UFRJ , na pessoa da professora Maria Luiza Fernandes,
que viabilizaram que eu cursasse o doutorado.
Agradeço a supervisão do pós-doutorado pelo professor
João Pacheco de Oliveira, assim como ao convite para publicar
com a UFRJ este livro e por em 2013 ter recebido a pesquisa no
Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional.
Agradeço a deputada Joênia Wapichana, por ser essa mulher
liderança exemplar para todas nós, pela redação do prefácio
deste livro e pelo apoio ao trabalho no Instituto Insikiran de
Formação Superior Indígena (UFRR) por meio de emendas
parlamentares.
Faço minha homenagem póstuma a Alfredo de Souza e a
Casimiro Manoel Cadete, que tive a honra de conhecer e entre-
vistar, com eles compartilhando momentos especiais de vida.
Sumário

Apresentação 11
João Pacheco de Oliveira
Prefácio 15
Joenia Wapichana
Palavras introdutórias 19

As tranças da vida de Alfredo Souza 25


Fazeres de palha e da terra 45

Entre as tramas da vida Wapichana e de seus 61


objetos no Setor de Etnologia e Etnografia
do Museu Nacional
A Za’Apun ‘tanga’ de Kaxuru ‘miçanga’ e o 74
Saadkariweinau ‘desenhos’ Wapichana
Objetos Wapichana de buriti e arumã 81
O chimery ‘ralo’ 85
Armas e armadilhas 86
O fazer arte com imi, ‘barro’ 95
Zamak ‘rede’ 99
Cocares, duwad ‘cabaça’, puchi ‘cuia’, zapu ‘tanga’ 104
e baru ‘machado’
Os usos dos objetos nos rituais Wapichana 107
As palavras no canto e a dança 113
As festas Wapichana: as tranças ancestrais 123
contemporâneas
Acabamento provisório 131

Referências 133

Posfácio 137

Caderno de fotos 147

A autora 196
Apresentação
João Pacheco de Oliveira

Este livro trata de aproximações e encontros entre o povo


Wapichana e o acervo etnográfico do Museu Nacional (MN).
Seu começo ocorreu em 2013 quando Ananda Machado, lin-
guista de formação mas cursando o doutorado em História
Social da UFRJ, me procurou interessada em conhecer as co-
leções indígenas de Roraima existentes no Setor de Etnologia
e Etnografia (SEE) do Museu Nacional. Durante vários meses
visitou de maneira sistemática o SEE convivendo longamen-
te com tais objetos, registrando-os em fotos, pesquisando nos
livros de tombo, na biblioteca e nos arquivos.
Em seguida, em sucessivas etapas de trabalho de campo
junto aos Wapichana, pode reencontrar aqueles objetos em
performances rituais, em atividades cotidianas e nas memórias
de Alfredo de Souza e alguns líderes e intelectuais indígenas
das malocas da Malacacheta, Taba Lascada e outras da Terra
Indígena Jacamim. Tal material foi utilizado em sua tese de
doutoramento defendida em 2016.
Com o trágico incêndio do Palácio da Quinta da Boa Vista,
em 2018, as coleções etnográficas do MN foram destruídas.
12 ¦ TYZYTABA’U

A forma de existência daqueles objetos passou a ser a de re-


gistros de memória, tal como os mitos e rituais celebradas
no passado, que apenas se materializam e voltam a brilhar
através de relatos feitos por pessoas específicas em situações
também singulares.
Em 2019 uma parte daquele rico material que integrava
a tese veio a ser cuidadosamente retrabalhado e desenvolvido
durante Pós Doc realizado por Ananda Machado, sob a minha
supervisão acadêmica, no PPGAS/MN. Estava agora substan-
cialmente acrescido de novas informações e conhecimentos
procedentes de oficinas com professores indígenas, ocorridas
nas comunidades indígenas no município de Boa Vista e Serra
da Lua. Aproveitava e incorporava assim as suas práticas e ex-
periências de docência realizadas no Insikiran/Universidade
Federal de Roraima.
Neste livro estão presentes igualmente as antigas coleções
do MN assim como as falas dos historiadores (kuadpayzu),
trançadores (tyzyaba’u) e pajés (marynau), muitas vezes apre-
sentadas em seu próprio idioma. Recuperar tais objetos em
sua densidade cultural e histórica, nas sensações múltiplas
e na afetividade que evocam, constitui um grande desafio –
o de interrelacioná-lo com as vozes, o pensamento e o fazer
Wapichana. Uma vez feito tal trabalho precisa ser tornado
acessível e ser fonte de conhecimento ao público em geral mas
também às futuras gerações de indígenas.
É com enorme satisfação que o SEE e o Etno Museu
(Laboratório de Antropologia Pública), propicia aos leitores
interessados o acesso a este livro, intitulado por sua autora, com
muita precisão e poesia, Tyzytaba’u – Trançadores de Palavras e
Coisas. Obra de um processo criativo que se inspirou no trabalho
Apresentação ¦ 13

dos próprios artistas Wapichana, num espelhamento generoso


e sútil, e que refluirá em que uma parte de sua tiragem estará
voltada para a distribuição e circulação nas escolas indígenas.
Por outro lado concretiza uma linha curatorial, baseada em
uma antropologia radicalmente histórica e dialógica1, que tem
inspirado a atuação do SEE nas últimas décadas e repercutido
em exposições (como Os Primeiros Brasileiros, sobre os povos
indígenas do nordeste, agora em versão digital, e Kumbukumbu,
sobre as coleções africanas e afro-brasileiras), livros (como No
Coração do Brasil e Mil Peças, ambos editados em 2020)2, par-
cerias de trabalho e alianças políticas (como o Museu Maguta,
dos Ticunas, e o Aty Guasu, dos Guarani Kaiowá).
Uma mensagem de grande força este livro traz para os
debates sobre o futuro dos museus e coleções etnográficas.
Os objetos étnicos não são jamais seres mudos e anônimos,
de uma materialidade finita, que necessitam de um espírito
externo que lhes atribua funções claras e significados supos-
tamente exatos. Que lhes dote de razão e beleza e atribua as
comunidades de origem um implacável destino.
Ao contrário, os objetos étnicos, portadores de luz pró-
pria e inesgotável, quando de algum modo se reencontram
com suas comunidades de origem tornam-se outra vez vivos
e livres, alimentam novas performances culturais e ganham
novos sentidos em função das lutas contemporâneas.
Reconstruir uma coleção não pode ser assim buscar es-
pécimes similares segundo morfologia, função ou valor de

1
  Vide Pacheco de Oliveira, João – “Perda e superação” In Santos, Rita - No Coração
do Brasil. Rio de Janeiro, SEE, 2020, pgs. 7-23. <https://museunacional.ufrj.br/
see/publicacoes.html>
2
  Vide o site mencionado na nota 1para visitar as exposições e fazer download
nos livros.
14 ¦ TYZYTABA’U

mercado. Nem muito menos pretender privar o artista de sua


contemporaneidade, transformando-o em porta-voz impessoal
de tradições imemoriais. É preciso acompanhar a coletivida-
de em sua auto-produção, resgatando o artista e o pensador
enquanto experiências concretas, remetidas a contextos his-
tóricos e etnográficos, como criações humanas, produto de
intenções, carências e desejos.
Se, em virtude de uma linha curatorial e de uma diretiva
institucional de compartilhamento, as novas coleções forem
concebidas como fruto do rompimento do cordão umbilical
com as comunidades de origem, os museus poderão não ser
exclusivamente templos de celebração do pretérito e do morto,
mas locais de vida e de inclusão social, instrumentos para o
debate e a construção do futuro.
É o que esperamos com este livro, que foi pensado para
circular também nas escolas e nas aldeias, numa perspectiva
alargada e de compromisso ético com as múltiplas funções
sociais de um museu.
PREFÁCIO
Joenia Wapichana

As palavras tem vida. As artes trazem histórias de vidas.


É uma honra apresentar o “Tyzytaba’u: Trançadores de Palavras
e Coisas”, que reúne memórias, conhecimentos, artes e prá-
ticas do Povo Indígena Wapichana organizados pelo trabalho
de pesquisa da doutora Ananda Machado.
Tyzytaba’u é uma historiografia preciosa do mundo indíge-
na. Dedica bom espaço para relatar a partir da vida de Alfredo
Souza, patriarca de uma família Wapichana, sua trajetória e
experiências acumuladas em vida há mais de 100 anos de
existência, a memória do fluxo constante dos Wapichana nas
áreas de fronteira Brasil-Guiana Inglesa-Brasil, registrada so-
mente na transmissão oral entre gerações familiares. Um fator
que chama a atenção é a importância da língua Wapichana no
registro, tanto da história, como também da cultura indígena.
A transmissão oral dos saberes e práticas indígenas predomina
nas relações entre famílias para repassar conhecimentos, rea-
lizar comércios e manter contatos nesses espaços geográficos.
O subtítulo “Trançadores de Palavras e Coisas” instiga a
curiosidade do leitor na busca do seu significado. A conclusão
16 ¦ TYZYTABA’U

do leitor vai depender da leitura atenta das entrevistas feitas


durante o trabalho de campo da autora. Na minha compreensão
a publicação reflete o tempo indígena, afirma a importância
da cultura e mostra as características do Povo Wapichana:
que muito ouve e também muito aprende, com paciência e
tranquilidade, e ao mesmo tempo, utiliza as palavras para
analisar, debater, se manifestar, num estilo que, por meio da
arte de trançar, mostra a cultura e transmite o conhecimento.
Demonstra claramente a arte viva dos Wapichana.
No decorrer da pesquisa, a autora encontrou um rico acervo
no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Os objetos registrados
mostram a resistência do povo indígena numa época de coloni-
zação. Mas também demonstra uma imensa e rica diversidade
cultural refletida nos objetos de arte brasileira e herança coleti-
va Wapichana. Reforça a necessidade de políticas públicas para
assegurar que esse patrimônio seja protegido e ao mesmo tempo
compartilhado por quem não teve a oportunidade de conhecer.
Interessante que os desenhos ou grafismos Wapichana
contam as narrativas sobre sua vida, criação, princípios, visões,
temores e desafios. Essas artes aparecem em peças guardadas
no Museu Nacional, e podem mostrar com o tempo, algumas
ameaças que estão se confirmando, por exemplo, a vida indí-
gena vir do “Urupiru” (Cobra grande) que está sendo destruída
pelos impactos do garimpo ilegal nas terras indígenas.
Trançar os utensílios para uso doméstico e artes ainda
estão forte nos dias de hoje. As comunidades indígenas da
Serra da Lua visitadas pela autora demonstram a sua impor-
tância na reprodução cultural, na proteção do meio ambiente,
no uso sustentável da natureza para fazer tais objetos. Poderia
afirmar que a vida Wapichana nessa região é um exemplo de
PREFÁCIO ¦ 17

boas práticas, de repasse de saberes, desde o plantio até o uso


sustentável por eles.
A publicação deste livro tem um destaque especial para
o papel das mulheres indígenas. Em diversas partes do livro
pode-se observar a importância e o protagonismo delas na pro-
dução dos objetos indígenas, seja a rede de algodão, panelas
de barro, tipoias, vestimentas, e demais utensílios.
A terceira parte do livro mostra objetos utilizados nos
rituais Wapichana. É um paralelo entre o passado e o presen-
te, no qual a autora tenta explicar as tradições e práticas nos
rituais Wapichana. Eu diria que é um tema bastante forte e
ousado, carregado de mistérios fascinantes e assim contribui
para manter as crenças indígenas vivas em cada um que tenta
explicar o significado das palavras, da dança o Parichara, e do
trabalho dos pajés.
Ananda reuniu informações importantes da vida dos
Wapichana. Um trabalho que vai ser lido por muitos que não
conhecem essas histórias. Ressalto ainda que as fontes des-
sas informações são os resultados de uma pesquisa de campo,
feita por ela, em diferentes comunidades indígenas e com al-
guns entrevistados como Sr. Alfredo e falas imortalizadas de
Casimiro Cadete, que é também uma grande referência para
os Wapichana. Assim como os demais parentes Wapichana,
professores e professoras indígenas que se fizeram essenciais
para esta publicação.
Kaimen Manawyn!
Palavras introdutórias

Precisamos de modelos para entender um universo


(que é afinal um pluriverso ou um multiverso) e que
foi construído em permanente mudança, no meio do
caos e do imprevisível. Esses modelos simplificam
o que só pode ser entendido como entidade com-
plexa e complicam o que só em simplicidade pode
ser apreendido (Mia Couto).

Este livro pretende, a partir das tramas do falar e do trançar,


apresentar a complexidade das práticas culturais Wapichana.
Espera-se que o leitor perceba a força de suas palavras e ges-
tos. A língua Wapichana faz parte do tronco linguístico Aruak
e tanto os objetos feitos recentemente, quanto antes dos anos
1840 e guardados no Museu Nacional (UFRJ), fazem parte da
vida e da história desse povo indígena.
Como não encontramos uma palavra na língua Wapichana
significando artesão ou artesanato, muito menos alguma que
traduzisse arte, por aproximação adotamos tyzytaba’u, como
significante de ‘trançador’ e ‘artista’. A formação desta palavra
dá-se a partir do verbo tyzytan ‘trançar’, que perde suas termi-
nações verbais e recebe o sufixo nominalizador -ba’u, assim,
20 ¦ TYZYTABA’U

com a colaboração de alguns(as) professores(as) indígenas


Wapichana, escrevemos e nomeamos este livro de Tyzytaba’u:
Trançadores de Palavras e Coisas.
O texto é uma adaptação de um dos capítulos da tese
Kuadpayzu, Tyzytaba’u na’ik Marynau: Aspectos de uma História
Social da Língua Wapichana em Roraima (1932-1995), defen-
dida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orien-
tada pela Profª Drª Maria Paula Araújo. O objetivo da tese foi
evidenciar as mudanças vividas pelo povo Wapichana no pe-
ríodo de 1932 a 1995. Na pesquisa da história social da língua
Wapichana, reconstituímos alguns aspectos do que aconteceu
em Roraima nesse período por meio das histórias de vida (de-
zoito entrevistas realizadas com os kuadpayzu ‘historiadores’,
tyzyaba’u ‘trançadores’ e marynau ‘pajés’).
No capítulo tomado como base e que dá título a este livro,
enfocamos as entrevistas sobre o trabalho dos trançadores,
partindo da simplicidade de suas ações para, a partir daí, abor-
dar esse complexo campo do conhecimento, de uso da língua
Wapichana, de trabalho, de produção artística e cultural desse
povo.
Como metodologia, sistematizamos conhecimentos obti-
dos por meio da observação etnográfica do uso da língua e dos
objetos Wapichana, do trabalho de entrevistas em campo, do
fichamento bibliográfico, da análise de documentos, fontes
primárias3 e secundárias.
Constatamos que muitos desses conhecimentos vêm sendo
repassados há anos pelas narrativas orais, gestuais e em lín-

3
  Sobre os Wapichana encontramos: Documentação da Comissão Rondon, Política
indigenista do SPI, vocabulários de línguas indígenas. Comissão Rondon, 1875-1953.
Museu do Índio. Relatórios pesquisadores SEDOC-Museu do Índio, 1950-1994.
Palavras introdutórias ¦ 21

gua Wapichana. Percebemos que, de modo mais intenso nas


comunidades quase monolíngues na língua portuguesa, esses
conhecimentos e práticas culturais Wapichana recebem, ao
longo do tempo, novos significados e de forma adaptada con-
tinuam a ser vividos.
Esses saberes estão presentes nas histórias de vida, na
forma da construção das casas, nas relações de trabalho, na
forma de produzir alimentos, de comer, de cantar, de dançar,
de festejar, de ritualizar, de trançar, de tecer, de desenhar, de
pintar, de esculpir objetos, enfim, de viver e de pensar. O pro-
cesso de ouvir e transcrever as narrativas históricas contribuiu
para entender as dificuldades, as aproximações possíveis e im-
possibilidades de tradução cultural, linguística e as dinâmicas
das mudanças na vida Wapichana. Assim, partimos das entre-
vistas e das fotografias dos objetos para construir os sentidos.
Realizamos entrevistas projetivas, ou seja, centradas em
materiais visuais (fotografias). Minayo (1993) afirma que esse
tipo de entrevista é usado para aprofundar determinado tema,
como forma de ativar a memória dos entrevistados. Aplicamos
então essa metodologia para sistematizar e aprofundar co-
nhecimentos sobre os objetos fotografados por nós em 2013
no Museu Nacional (UFRJ). Sempre que possível incluímos
as falas originais em língua Wapichana aqui traduzidas para
o português, optando por deixá-las em notas de rodapé para
manter a fluência do texto.
Percebemos, por um lado, o orgulho, principalmente dos
mais velhos, por conhecerem suas tradições e, por outro, o
medo de que sejam esquecidas, uma vez que poucos jovens
têm tido interesse em aprender. Há, de fato, desinteresse dos
filhos e netos pelo aprendizado da língua Wapichana, do ar-
22 ¦ TYZYTABA’U

tesanato, do trabalho na roça e dos demais conhecimentos


transmitidos por seus ancestrais.
A cultura material Wapichana é rica e diversificada na
forma de cestos, cuias, trançados, saias, cerâmica, e diferentes
formas de tecer. Como cultura material, no caso deste estudo,
consideramos os objetos materiais. Trabalhamos aqui também
a cultura imaterial, os conhecimentos e práticas da vida social,
cultural e espiritual Wapichana. Assim, os tyzyaba’u ‘trançado-
res’ continuam criando essas formas e sentidos como modo
de produção material e imaterial da existência. Analisaremos
aqui principalmente as falas que tratam de diversos exemplos
de trabalho com arte nas experiências cotidianas.
Os artistas desempenham papel importante e muitos dos
objetos etnográficos feitos pelos Wapichana estão relaciona-
dos a antigos rituais que acontecem desde o tempo dos antigos.
Alguns deles, como os que envolvem encantações, são menos
praticados pela influência de algumas escolas, das religiões,
das fazendas, dentre outros; mas continuam de forma discreta
transmitindo esses conhecimentos, mesmo os proibidos pelas
instituições que invadiram seus territórios.
Neste livro analisamos principalmente as entrevistas rea-
lizadas com Alfredo de Souza nas comunidades Malacacheta
e Tabalascada; as trabalhadas na Terra Indígena Jacamim, em
dezembro de 2014, outubro de 2015 e abril de 2016, dentre
outras. As entrevistas com Alfredo de Souza foram todas rea-
lizadas na língua Wapichana porque ele escutava pouco, assim
como entendia e falava com dificuldade a língua portuguesa.
Os outros entrevistados também usam muito mais a língua
Wapichana do que a portuguesa no seu cotidiano, o que exigiu
que traduzíssemos as questões para língua Wapichana, com a
colaboração de intérpretes.
Palavras introdutórias ¦ 23

Incluímos ainda neste livro um posfácio com fotos que


não fizeram parte da tese, assim como resultados da conti-
nuidade da pesquisa no pós-doutorado supervisionado pelo
professor João Pacheco de Oliveira Filho, no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional), da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Há ainda no
posfácio, material organizado a partir de oficinas realizadas
com os professores de línguas indígenas que atuavam nas es-
colas municipais nas Terras Indígenas de Boa Vista (de 2016
a 2018) e na Região Serra da Lua, municípios Bonfim e Cantá-
RR (de 2012 até a atualidade).
As tranças da vida de Alfredo Souza

Alfredo nasceu no dia 1º de janeiro de 1916, de pais Atoraiu


(língua da família Aruak). Foi criado até os sete anos pelo pa-
drinho no país que hoje é chamado de República Cooperativa
da Guiana. Depois veio para o Brasil ainda criança, trazido por
Luis Cadete, vivendo com ele inicialmente na comunidade
Tabalascada e depois no Canauanim. Alfredo trabalhou com
balata (látex da árvore popularmente chamada de balateira),
garimpo e roça. Ele sabia trançar jamaxim, tipiti, peneiras e
conseguiu repassar seus conhecimentos aos filhos e netos, que 
falam fluentemente a língua Wapichana.
Tivemos acesso a esse documento (figura 1 no caderno de
fotos) dia 04 de setembro de 2021 e nos surpreendemos com o
nome George Alfred, diferente de Alfredo de Souza, como até então
o conhecíamos. A data de nascimento no documento acima é de
10 anos depois em relação ao que seus filhos nos informaram.
Fomos ao aniversário que sua família comemorava os 100 anos
de Alfredo e ele faleceu dia 26 de novembro de 2020 segundo
os seus com 104 anos, portanto consideramos a palavra tão va-
liosa quanto o documento acima, reafirmando a idade que sua
família atribuiu e desconfiando da veracidade deste documento.
26 ¦ TYZYTABA’U

Realizamos com Alfredo três entrevistas; a professora


Nilzimara de Souza Silva, sua neta, participou da primeira,
traduzindo nossas perguntas da língua portuguesa para língua
Wapichana, colaborando assim para a comunicação com ele.
As entrevistas foram filmadas e gravadas, sendo a maior parte
da transcrição e tradução das duas primeiras entrevistas da
língua Wapichana para a portuguesa feita por Miriam Chaves
de Souza, tradutora e intérprete que colaborou conosco nos
projetos de extensão (UFRR) de 2010 a 2015. A terceira entre-
vista foi realizada em 2017, com a participação de Silvestre,
filho de Alfredo que respondeu muitas questões junto a ele.
Esse momento foi bastante emocionante e ambos já se foram
deste plano, restando-nos a oportunidade de homenageá-los
neste livro.
Alfredo falou durante todo o tempo na língua Wapichana e
nos recebeu muito bem, colaborando com a pesquisa durante
duas horas no primeiro dia de entrevista. Compreendemos, na-
quele momento, apenas parte do que foi dito por ele na língua
Wapichana. A dinâmica da entrevista diferiu das metodolo-
gias de história oral que estudamos até então por incluir uma
língua indígena; no entanto, entendemos que foi adequada
para este caso.

Eu não sei como eu vivia, eu morava com meus pais no mato,


mato, mato. Meus avós moravam no mato, os Atoraiu, eles
colhiam castanhas do Brasil no mato. O local deles se chama
Parubaz na Guiana, é na Guiana que se localiza Parubaz. É um
mato assim com lavrado, lá que morava os Atoraiu antigamen-
te, construíam o local deles, se multiplicaram e cresceram lá.
Aí depois eles foram embora, foram embora para longe. Eu
nem sei pra onde de novo, mas os meus avós são diferentes,
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 27

morreram aqui em Karaudarnau que se chama a comunidade,


aí os locais onde eles roçavam eram chamados de Turaraton,
tem outro Uwaynau, que é Serra do Macaco. E assim a gente
vai, tem outro lá que se chama Boca da Mata, que é local deles
de novo na beira do mato4.

Pelo que compreendemos, o aprendizado e o uso da língua


Atoraiu por Alfredo, antes de vir para o Brasil, manteve-se na
fuga para o mato, lugar tido como refúgio do uso dessa língua
indígena. Alfredo repetiu três vezes a palavra mato, deixan-
do entender que era um local bem distante, lá para dentro da
Guiana. De fato, a maioria dos que vivem usando apenas a lín-
gua Wapichana, moram em casas mais distantes do centro das
comunidades indígenas, e alguns não frequentaram a escola,
como Alfredo. Mas, com isso, não queremos reforçar a ideia
de que “indígena é apenas quem vive no mato”. Sabemos que
há, inclusive, muitos Wapichana que falam bem a língua in-
dígena e moram há anos na capital Boa Vista e que, nem por
isso, esqueceram sua cultura e sua língua. Muitos professores
de Wapichana que escrevem bastante nessa língua moram
no centro das comunidades, perto da escola, e usam bastante
também a língua Wapichana inclusive no seu trabalho.

4
  Aunaa un aichapan na’apam unmaxaapayzun zii, unmaxapan undarunau diaypaichan
ungary kanuku ii, kanukuba’u ii, kanukuba’u ii. Undukuzynau maxapan kanuku bau-
sannau aturadanau inminhaypan kanuku ii inwiiz yy Parubaz Guiana ii, Guiana inhau
wyyry’y parubaz kikizei. Kanuku kaipa’a baraz ty’yz, baraz ty’yz kaipa’a kanuku zikun ii
mixi na’ii wyyry aturadanau maxapayzun kutya’anaa an inkeawiiztinhan na’ii na’iana
inbyan, indaypain na’ii, aizii wyry’y inmeakukinhaa kidia’anaa inmeakun mynapu naa
aunaa un aichipan na’itim naa kuxan inmeakun mazan wyryy undukuznau pa’na ipei
inmeukan na’a da’a karaudaznau kikizei dakutkau wyryy amazada wiizei, aizii inwiiz
sudkid inkezakaniapkiz kainha’a dakutikau, turatun, kainha’a bauran uwaunau, makun
wyry’y kainha’a baura di’iaa dakutykau buxu mutu (Boca da Mata kiau) inwiiz kuxan
kanuku danumaiakkau (Entrevista com Alfredo de Souza no dia 18 de julho de 2014).
Revisão dos textos na língua Wapichana: Maria Shirlene Souza Silva.
28 ¦ TYZYTABA’U

Nas escolas da Região Serra da Lua nunca houve o ensino


de Atoraiu, desconhecemos dicionário ou livro de histórias
desse povo. E a bíblia pelo que conseguimos averiguar não foi
traduzida para a língua Atoraiu. Talvez por todos esses moti-
vos, dentre outros, a língua Atoraiu vem sendo esquecida. Por
isso, é provável que as famílias já não encontrem motivação
para transmiti-la a seus filhos. Há relatos de que na Guiana
há famílias que falam Atoraiu, mas ainda não conseguimos
realizar uma pesquisa específica para averiguar.

Eu não sei, eu sei um pouco, mas não todas as palavras, algu-


mas, eu não sei mais direito. Antigamente meus avós falavam
tudo pra mim em Atoraiu. Meus pais também, quando eu era
criança, eu falava em Atoraiu e quando escutava compreendia.
Mas depois, quando eu fiquei velho, não falo mais, aí todos os
Atoraiu morreram também, não tem mais ninguém pra falar
comigo5.

Alfredo, em muitos momentos, disse que não sabia mais


falar a língua Atoraiu e não lembrava o que perguntávamos,
mas sua neta Nilzimara, no momento de nossa terceira entre-
vista, conseguiu gravar uma música que ele cantou em Atoraiu.
Seus filhos Silvestre e Noberto nos contaram muita coisa que
ele conhece e detalhes de histórias da sua vida que ouviram
no passado. Como as situações das entrevistas não foram mo-

5
  Aunaa an un aichapan, un aichap kaikapa aunaa patamaka an man, bayday ki’ana
karikeunan aunaa naa uunaichapan kaimeimen. Wyry’y kuty’anaa unwyzunau para-
dapan un’at aturad idian, ipei undarynau unkaikesudindun, ungary paradan aturad
idia’an, ykayan unwabat padamat, mazan ydayan untynarynawyn py’ana aunaa an,
yryy inmaukan kidana ipei wyry’y aturad nhawyz aunaa an kanam paradapa’u nii un’ati.
(Entrevista realizada com Alfredo Souza no dia 18 de julho de 2014).
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 29

mentos de fala espontânea, talvez na convivência, com mais


tempo, poderíamos ter aprofundado a temática e ouvido suas
histórias ao seu tempo e modo.

Eu não sei, mas eu já ouvi falar em trocas com os brancos, que


chegaram e trouxeram anzóis, trouxeram arma, trouxeram sal
e todas as coisas. [...] Os antigos não comiam sal, mas achavam
peixes e eles viviam comendo peixe. Como eles eram do mato,
comiam de tudo: queixada, porco do mato, anta, tudo que está
em cima de árvore como macacos, cuatá, cuxiu, guariba, todos
os bichos os Atoraiu comiam6.

Nilzimara contou-nos que o tio de Alfredo o entregou em


troca de sal para o pai de Casimiro Cadete. Sobre esse tema,
uso do sal, Alfredo falou dos peixes e carnes que consumiam
mesmo sem terem o sal. Na sequência, ele começou a contar
como foi sua infância:

Meu pai morreu, eu não sei que altura eu estava, ele faleceu.
Ele faleceu e tem a minha mãe, mas ela não cuidou da gente
direito, somos assim em Wapichana, a conta é assim, um, dois,
três, quatro, cinco contando comigo, é assim, aí somos de um
pai só. O nosso pai faleceu, a nossa mãe ela não presta, ela nos
abandonou por aí, ela não soube cuidar da gente, não soube
criar a gente direito, ela fez foi jogar. E essa nossa mãe correu
atrás de outra pessoa, com outro homem, deixou nós. Até so-

6
  Aunaa un aichipan, un abatannaa ykuadapayzukau na’ap kainha’a inkeauana pa-
rangarynau, kaikini’i kawan na’ak kubau, inhaaka’a mukau, ipei inha’akapan mukau
inhaka’a dyu, ipei wyry’y kaipa’a nikeizukariwei. [...] Ipei inha’akapan mukau inhaka’a
dyu, ipei wyry’y kaipa’a nikeizukariwei maskaydaysud kii inhau tan kutyainhaunau aunaa
inniken dyu mazan inkuda kupay inmeaxapan kupay dia’na. Aizii kainha’a na’apanxaa
ydakutkau atii inkudan panikennii kanukusannau wyry’y mixii inniken wyryy ipei kanam:
bichi, bakyry, kudui, ipei dukunuinhau puaty, rumi, wixi, sybyry, ipei wyry’y panaukazi-
nhau aturada niken. (Entrevista com Alfredo dia 18 de julho de 2014).
30 ¦ TYZYTABA’U

fremos, eu estava passando dificuldades, a minha roupa suja,


não tinha com que lavar roupa, não tinha sabão e não tinha
como lavar nada. Aí tinha meu tio, ele disse: “vamos você carre-
ga esse abóbora na sua rede pra gente comprar sabão lá com os
negros”. Ele me deu uma abóbora desse tamanho, aí eu enrolei
e carreguei na minha rede, depois encontramos com a pessoa
que estava voltando lá dos negros, aí foi ele quem me criou, o
Luis Cadete, me encontrou, é assim eu estava indo com meu
tio. ‘Ele é seu filho?’ Perguntou Cadete [...]7.

Alfredo teve uma infância difícil, pois perdeu o pai e foi


abandonado pela mãe. Em sua narrativa, percebemos traços
da vida Wapichana da época, eles usavam a rede para dormir
e também para carregar objetos. Ele fez referência ainda aos
“negros” como comerciantes. Alfredo contou que conheceu o
pai de Casimiro Cadete quando ele voltava do comércio com
os “negros”.
Com 100 anos em 2014, Alfredo foi um dos artesãos que
fez parte da história que reconstituímos. Ele veio adotado por

7
  Undary maukan, aunaa un aichapan na’apam ungary, dukua’anaa, kaikep man, undary
maukan, kainha’a undaru, mazan aunaa utaapan waynau kaimen, kaipa’u da’i, waynau
wapichan kian aicharibei baydap, diaytam, idikinhayda’y, paminhaytamkii, bakaiayda’y
wapichan aichan (contar). Mixi kaipayda’y waynau, wadary dan, undary maukan! Undaru
aunaa ukaimenan, kabuuta’akan waynau di’it karikeunan, aunaa uaichapan pataaoan
waynau, aunaa udiupaichan waynau kaimen, kabubi’ian. Yryy wadaru dimeakan naa
ba’uran pidian tyma’anaa, ba’uran daunaiura tyma’anaa makun,wa’akabian naa way-
nau ipei. Wapatakaytinhan naa ungary kachamidikii, unkamichan kaniribe,aunaa
kanam id unchiken, aunaa chikeribei nii, aunaa kanam dia’an chiken aimeakan. Aizii
kainha’a papai kian wamaku puduwayt wyry’y kawiam piximek zuan, waturinakkiz chi-
keribei di’ia’a mikurunau di’ii, taa kawiam, kaipa’a ytybaryn, duwaytan unximek dia’a,
bazupata’akan naa. Dayna’an waikudapan pidian wa’ati’u na’ki’u mikurunau di’ik’u
wa’atin. Yryy arawy’y! Yryy naa diupaichau ungary, yryy Luiz Cadete ikudupan ungary,
yryy unmakun papain tyma’u, xa’apayzin arawy’y? Cadete kian. (Entrevista realizada
com Alfredo, no dia 26 de outubro de 2015).
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 31

Luis Cadete da República Cooperativa da Guiana e trabalhou


para a família deles no Brasil.

‘Aqui é a Tabalascada’, ele disse: ‘é mesmo! Agora você vai morar


aqui com a gente, vou comprar roupa pra você, vou comprar
sua calça, camisa e vou comprar a sua rede’. Aí ele comprou e
fiquei morando com eles e trabalhando pra ele, ajudando ele
na roça, aí eu já era empregado dele, mas ele me tratava bem.
Me dava comida e muito mais8.

No período da figura 2 no caderno de fotos Alfredo tinha


uns 11 anos. Encontramos essa imagem no Museu do Índio (RJ),
é um microfilme da época da comissão Rondon. Observamos
as casas com teto de palha e paredes de barro. Aparentemente
quem estava visitando a comunidade deve ter distribuído rou-
pas, pois principalmente as crianças parecem estar vestidas
com “uniforme”.

Observa-se, entre os indígenas, um sistema parecido com


o que os fazendeiros usavam quando adotavam ou apadri-
nhavam crianças, o que se praticava na época para obtenção
de mão de obra. Assim, ao invés de contratar, tomavam como
“parentes” quem passava a trabalhar para a família.

É possível observar um homem segurando uma sanfona


à esquerda, o marechal Rondon à direita e quem usa um cha-
péu provavelmente era o tuxaua na época. E quem está com os
pés aparecendo na fotografia encontra-se descalço.

8
  Da’a’a Tabalascada. Aizii da’aunii pymaxaapan waynau tym turikizi’inaa pa’i pyka-
michan nii, pychuran nii, kamichan nii, puxuutun nii, unturikiz piximek, unturikiz! Yryy
turina naa, unmaxaapan naa, kaydinhan naa yati’i naa. (Entrevista realizada com
Alfredo em 26 de outubro de 2015).
32 ¦ TYZYTABA’U

Alfredo faleceu na comunidade Tabalascada em 2020,


no meio da pandemia de Covid-19. Na ocasião de nossa pri-
meira entrevista, em 2014, ele morava no Gavião, na beirada
da estrada que vai para comunidade Jacaminzinho. Gavião
e Jacaminzinho são comunidades que fazem parte da Terra
Indígena Malacacheta, município Cantá(RR).
Alfredo repetiu bastante em suas falas o fato de não es-
crever e de não saber nada, por isso, reforçamos, em nosso
diálogo com ele, o valor dos conhecimentos que ele adquiriu
mesmo sem ir à escola e conseguiu ensinar para seus filhos e
netos. “Eu não sei escrever, nem sei escrever meu nome, então
eu envelheci assim mesmo não sei de nada, eu só sei a língua
Wapichana. É só isso!”9. Observamos que muitas famílias que
conseguem continuar a transmissão desses conhecimentos
mantêm uma vida mais voltada para o interior da comunida-
de, ao contrário de outras que passam muito tempo viajando
e participando de reuniões fora.
Na continuação da entrevista, Alfredo contou sobre quan-
do não existia escola e o fato de ele desconhecer a escrita.
Entretanto, foi curioso chegarmos à sua casa para a segunda
entrevista e encontrá-lo sentado na rede folheando um livro
didático antigo, provavelmente de um dos seus netos. Ele lia
as imagens.
Em sua fala, citada abaixo, Alfredo diz que quem estuda
conhece datas. De fato a memória segue uma lógica mais cí-
clica do que a da datação cronológica, escrita e linear. É de se
observar que, na fala de outros Wapichana, os números e as
datas são expressos em língua portuguesa, mesmo quando
a fala é toda na língua Wapichana. O sistema de numeração

9
  Entrevista com Alfredo em 26 de outubro de 2015.
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 33

Wapichana tem base cinco, os dedos de uma mão. Assim,


quanto maior o número, mais mãos, pés e corpos precisarão
ser incluídos, fazendo com que terminem falando os números
grandes em português.
Constatamos que as escolas indígenas na Região Serra da
Lua seguem a lógica do sistema de educação, que por mais
que se tente modificar, ainda lhes é imposto. Essas institui-
ções, bem claramente, trazem para dentro das comunidades
uma dose muito maior de conhecimentos exógenos em língua
portuguesa, do que privilegiam e fortalecem o que é próprio
daquele lugar.

Não tinha escola lá, então eu não tenho conhecimento sobre


as palavras, eu não entendo como a pessoa vai falando no
livro. É, faz tempo que estou assim desde criança, mas só com
as pessoas que estou andando, então eu não sei. Agora quan-
do eu cheguei de viagem, lá pra onde eu morava de novo para
Karaudarnau, aí já tinha a escola, já tinha pessoas estudando,
já sabiam a data, eles já tinham conhecimento, eu não, cheguei
assim mesmo. Eu envelheci assim mesmo, não tenho estudo10.

Durante toda a primeira entrevista, uma das bisnetas de


Alfredo de cinco anos ficou ao seu lado, ou brincando por
perto. Observamos que essa estratégia familiar certamente
vem garantindo o repasse de conhecimentos. E dentre eles, o

  Aunaa school naa ii, yka’yan aunaa untuminpen. Aunaa un ainhatinhan paradakary
10

da’y. Aunaa un aichapan na’apam pidian kadakuinpen karichi dia’a, ka’yan kuty’y un-
makun kuraidiaunaa pidiannau tym. Unmakun da’ati’i, karikeunan chi’ikpan, ka’yan
aunaa un aichapan. Aizii unkaawan di’iki’i chi’ikepkiz ik di’iti’i unmaxaapkiz it kuxan
Karaudaz it kainha’anaa school, kainha’anaa pidiannau aichapa’anaa, tuminpen, in
ainhatinhan ipei, kaipa’anaa diayn, ungary aunaa, aunaa un aichapan, unkaawan
na’apan kaipa’a tynarynawyn na’apan karikeunan, aunaa un aichapan. (Entrevista
com Alfredo realizada no dia 26 de outubro de 2015).
34 ¦ TYZYTABA’U

falar a língua Wapichana. No passado, antes de começarem


a ir com quatro anos para escola, as crianças ficavam muito
tempo com os avós.
Na atualidade, a escola e os serviços assalariados modi-
ficam esse quadro. Entretanto, em algumas comunidades, a
influência dessas instituições que vieram de fora para dentro
é pequena, sendo certo que os filhos faltam à escola para tra-
balhar na roça, pescar, caçar e fazer farinha. Observamos que,
nessas comunidades, tais práticas são mantidas de forma mais
forte do que em outras, incluso o uso da língua Wapichana.
Há tentativas de incluir as práticas de roça, pesca, caça
e casa de farinha em projetos das escolas indígenas, faltan-
do ainda, todavia, encontrar uma forma de integração desses
projetos com os conteúdos das diversas disciplinas ou temas
contextuais. Parece-nos um caminho interessante incluir o
trabalho das famílias na rotina das escolas indígenas, siste-
matizando as informações, refletindo sobre as dificuldades e
encontrando soluções. Assim, ao invés de o aluno faltar à aula
para ajudar sua família, ou deixar esse aprendizado de lado, ele
passa a colaborar em casa, podendo a escola também contri-
buir nos ‘ajuris’ (trabalhos coletivos) comunitários. Percebemos
que isso já acontece em algumas comunidades.
O antropólogo Alessandro Roberto Cardoso de Oliveira
(2012) entende a articulação do “tempo dos avós” com o “tempo
dos netos” como essencial à análise da sociologia Wapichana
atual. O caso de Alfredo confirma a importância dessa con-
vivência, uma vez que todos os seus filhos e netos falam
fluentemente a língua Wapichana, tendo aprendido com ele
o que veio de seus ancestrais. No entanto, alguns bisnetos, fi-
lhos de seus netos que se tornaram professores, assumiram
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 35

cargos de liderança e ficam menos tempo em casa, já não estão


aprendendo a falar sua língua, apenas entendem.
Alfredo criticou a forma de as famílias se organizarem na
atualidade, deixando de lado esses saberes: “eu não sei por que
os pais deles fizeram filhos desse jeito? Não os ensinaram a falar
língua, só falam português, isso eles gostam muito de falar. Tem
apenas alguns que sabem”. Efetivamente, atualmente, apenas
30% dos moradores da comunidade Malacacheta, onde vivia
Alfredo, falam a língua Wapichana. A partir de 2017 iniciou-se
o Inventário Nacional da Diversidade Linguística Wapichana
e Macuxi da Região Serra da Lua(RR) e em breve saberemos
com mais precisão o resultado do diagnóstico sociolinguístico.
Em 1985, a liderança indígena Quintino contou como vi-
viam antigamente os Wapichana: “naquela época não tinha
escola, não escreviam. A escola era as tranças. Os velhos ensi-
navam bem” (CIRD, 1985, p. 2). Na época de Quintino já não
aprendiam a trançar na escola, que ensinava a ler e a escrever
sobre outra temática e em língua portuguesa.
Em sua tese, Nádia Farage (1997) fez referência às crianças
brincarem na casa das avós e às trocas cotidianas nos conjuntos
sociológicos Wapichana, mencionando que as filhas casadas
moravam próximo às mães para compartilhar trabalho, ali-
mento, receber ajuda no parto, nas doenças, caminhar junto
para a roça, fiar algodão e ralar mandioca.
Na comunidade Marupá, em entrevista realizada com
Anastácio de Souza, no dia 16 de dezembro de 2014, ele rela-
tou: “quando dava aula de Wapichana não ensinava artesanato.
Todo mundo sabia trançar. Hoje os próprios professores não
sabem. Só querem arrumar emprego, não querem aprender”.
Em reuniões comunitárias e assembleias indígenas ouvimos
36 ¦ TYZYTABA’U

sobre essa necessidade de os professores saberem transmitir


esses conhecimentos ou convidarem quem sabe para colabo-
rar em suas aulas.
Ouvimos uma fala semelhante na Reunião Equatorial de
Antropologia, em que o pajé Antônio, Kariri Xocó de Alagoas,
disse que precisam incluir nas escolas indígenas “professores
de raízes”. Reclamou que enquanto o povo dele não ouve o que
ele diz, a universidade o convida para palestrar. “O professor
indígena não aprendeu, o velho precisa ser considerado” (julho
de 2015 em Maceió).
Alfredo contou como buscava materiais, quais os objetos
que sabe fazer e como tinha aprendido artesanato com seu avô:

Até entrei, eu entrei na floresta pra procurar cipó titica, cortei


a cipó titica e dividi. Depois eu coloquei um pedacinho de pau
na trança e com a outra eu fiz um tipiti bem grande, eu tranço
jamaxim. Tudo isso é meu trabalho. Aí eu aprendi, quem me
ensinava antigamente era só o vovô. Ele era bom em trança,
ele fazia de todo tipo de trança, tipo bolsa, peneira, jamaxim,
tudo isso ele fazia. Foi ele que me ensinou a fazer tranças,
então eu sei fazer11.

Casimiro Cadete, irmão de criação de Alfredo, contou


que o pai dele quem o ensinou a trançar, e que ele, Casimiro,
ensinou o pai a escrever. Continuamos conversando sobre o

  Mukurutan, unmakun kanukubau it. Durutan mukuru, dykytan mukuru, xaidian, kaa-
11

wan xaidiapan, dayna’an tyzytypan, dayna’an kanam saykan atamynytaba’y nii tyzytan...
tyzyt ba’uran nizu nii, kaimen, nizu za’abai kid, dupawai nii, tyzyt kuxan dupawai. Ipei
unkaydinkiz kuas. Wyry’y... Yryy tuminpen... Tuminpen... kanam tuminhakididia’u un-
gary suu ku’ukuukyty’yanaa, suu ku’ukuu tuminhapkid, ku’ukuu tyzytybau da’i. tyzytan
kanam sud kid: dazuan, ipei kanam, manary, dupawai ipei utyzytan. Uruu tuminhapki-
dian ungary tyzytkary da’y. ka’yan un aichap ipei tyzytkary, mazan kai, aunaa untyyryan
untyzytpan, un awyn ixan naa, aunaa naa untykypan na’apam naa tyzytkary. (Entrevista
com Alfredo realizada em 26 de outubro de 2015).
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 37

assunto na entrevista com Casimiro e, em tom de lamento, ele


afirmou sobre a realidade da comunidade Canauanim (2013).

Aqui podiam aprender, mas só que não querem aprender a pró-


pria língua. Os pais não se esforçam de ensinar os filhos quando
pequenos. Agora eu tenho falado muito e já começam a falar,
estão ensinando os filhos pequenos. Desde quando começou
a escola aprendeu a escrever e não quer mais o Wapichana.12

Tal como fez Casimiro, Alfredo também reclamou sobre


essas mudanças, contando-nos um pouco mais a respeito de
sua experiência com o avô na feitura de artesanato e lembrou-
-se também do que aprendeu com os balateiros.

O meu avô era artesão, eu vi como era trançar, aí eu tentei fazer,


aí eu comecei a trançar também. Depois eu aprendi mais com
os balateiros, eles que sabem fazer artesanatos, aí me ensina-
ram mais ainda. Assim peneira para fazer farinha, peneira para
fazer beiju, abanador de fogo, tipiti e tem diferentes formas
de fazer também, tem um trançado chamado reto e tem outro
unurukanay, esses que eu sei, mas tem outros tipos13.

Alfredo sabia fazer três tipos de traçado, sendo que, se-


gundo ele, utu, ‘cascudo’, que imita as formas desse peixe, é o
mais difícil. Durante a entrevista, quando mostramos a Alfredo
algumas fotos dos objetos Wapichana que estavam guarda-

12
  Entrevista com Casimiro em 26 de maio de 2013.
13
  Aizii undary tyzytpayz untykpan na’apam tyzyzkary yryy untiwen naa untyzytan, unsa-
kadan naa untyzyzpan kapam dayna’an untuminpen pawa’azii kapam iziiarasannau tym,
yryy aichapainhau patyzytpan, yryy intuminhapkidian naa pawa’azii ungary. Kaipeura
u’i tan naa, baditan naa, awaribei, manary, dupawai, nizu, aizii wyry’y pabi’inak kida’u
wyry’y kapam itumka’u, dakutka’u sakitpayz, kainha’a taramiz dakutkau. (Entrevista
com Alfredo no dia 18 de julho de 2014).
38 ¦ TYZYTABA’U

dos no SEE antes do incêndio de 2018, teve dificuldade em


enxergar e reconhecer o que era cada um deles: “Agora não
tenho mais como trançar, não enxergo mais a trança, meus
olhos estão cegos e não sei mais”. Ele começou a nos contar
como trabalhou com os balateiros e garimpeiros no passado.
Consideramos importante saber mais sobre o assunto e ele
explicou o seu trabalho com a balata.

Subiu no pé, fez aqui, tem um saco assim para pegar leite de ba-
lata, Wapichana disse que é leite de balata, começando no saco,
aí depois foi lixando e cortando, cortando, vai subindo, vai até
em cima; depois desce quando o saco está cheio, aí você coloca
dentro de outro saco, se está cheio é assim com outro de novo
e derrubou, é assim até guardar toda balata. Agora depois de
guardar, ia trazendo da floresta né, trazendo da floresta você ia
carregando. E a pessoa deixa para secar assim quando derrama,
amassa e faz uma pequena caixa. Aí os Wapichana chamam isso
de caixinha pequena e depois você tira balata, coloca pra secar
e secava toda essa balata. Agora depois você passava o leite por
cima de novo, aí você pode guardar bem, depois que terminar,
aí você joga para o sol pra esquentar um pouquinho para dobrar
direitinho, enrola assim pap, pap desse tamanho assim; depois
carrega e vai embora de novo até o local onde se vende a bala-
ta, carregou até lá na vila, oferece, como dizem os Wapichana,
oferecendo lá, aí eles compravam e pagavam tudo, aí era o fim,
não trabalham mais com isso, isso terminou. É só isso14.

Alfredo não lembrava determinadas palavras que usava


quando trabalhou com os “brancos”. Ele viveu um período no

  Entrevista com Alfredo no dia 26 de outubro de 2015.


14
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 39

qual a borracha tinha muita importância econômica. Marechal


Cândido Mariano da Silva Rondon coordenou os trabalhos
no estado de Mato Grosso em 1907 e posteriormente conti-
nuou a instalação das linhas telegráficas para os estados do
Amazonas e Acre:

O desconhecimento geográfico das fronteiras, a importância


econômica da borracha, a necessidade de controlar a região após
a anexação do Acre e de impulsionar o povoamento desses ser-
tões levaram o presidente Afonso Pena a convidar Rondon para
chefiar a nova Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas
de Mato Grosso ao Amazonas (Oliveira; Freire, 2006, p. 108).

Percebe-se que tal iniciativa tinha interesses geopolíticos e


econômicos, na medida em que essas regiões despontavam-se
como as principais produtoras de borracha naquele momento.
Há referências de que um fazendeiro de sobrenome Melville,
na Guiana, trabalhava com os indígenas a extração de balata.
Na Terra Indígena Malacacheta há ainda, na atualidade, um
seringal, mas deixaram de extrair balata.
Alfredo nos contou que trabalhou com a balata no Brasil e
na Guiana. Silvestre, o filho mais velho de Alfredo, participou
da última entrevista que tivemos, afirmando que já trabalhou
com balata também e foi aprofundando alguns detalhes:

A balata é feita assim: é tirada do pé da balateira. O pé da ba-


lata tem leite. Colocamos esporas, sapato, bota, para subir no
pé da balata. É liso e amolado. Ao subir no pé da balata você
corta: tá, tá, você sobe com seu saco e pega a balata. Sobe até a
ponta da árvore, pode escorregar e cair. Às vezes abre o saco.
É muito perigoso trabalhar com balata. Você anda descalço no
chão, carrega, faz uma canoa ou uma caixa e derrama dentro.
40 ¦ TYZYTABA’U

Às vezes você acha até 60 litros de leite de balata. Aí você faz


qualquer coisa, bacia e você derrama dentro. Aí você coloca no
sol para secar, abre bem, passa dois, três ou quatro dias para ficar
fino aí você tira do sol. Você tira, descasca com duas pessoas,
enrola ou estende na forquilha, amarra e guarda tudo. A casca
você descasca. Dá umas dez cascas. Aí, seco, você enrola igual
couro de gado. Ao terminar de fazer seu trabalho você retira
cipó ou envira para pendurar. Tinham pessoas esperando para
comprar a balata. Vendia tudo. Depois que vendíamos o pes-
soal dava rancho para nós. Como lima, terçado, café e outras
coisas. Aí, depois de trabalhar você descansa e vai novamente.15

15
  Iziary tumkau, na’apauram yiaradan, na’apauram idikau, tyryy man wasu’utan idi-
kin! Na’apauram aimeakan! Uu ian na’apauran iziary idikin. Uu waaipen ydawyn! Iziary
kadynaa kaibe’u myydan espora, wamyyda, wamyyda dazikidii, bota, pirazkary dimen,
kaimen pyzaydian, na’ik saykan da, da. Zaidian, pysakun tym, sautan iziary yy. Atii zaidian
atamyn dakusab it, tyryy pidizektan na’ik wautan. Pichi’iken madazkidiidayn imi’iba-
ra’a, panadun dakaatin pysakun, kichanaikia’u kaydinkery iziary da’y. Puduwaytan,
puduwaytan, tyryy putuman kanau putuman caixa, box (kinnhai) tyryy puxuutan nazuu
it. Yryy ikudan, aunaa un aichian na’apam wapichan dia’an dakutkau, diaytam pidian
tiniin 40 latas, wapichan dakutan idikinhayda’y latas wyry’y 60 litros iziary aibe iku-
daka’u, yryy pytuman xa’apauram aimeakan, pyabata pidiannau paradan kian, tumam
kulala, ipei basian, yryy pyxuutan nii basii nazu it, yryy puzuichannyz, aunaa un aicha-
pan na’apaydym tinii u litros taan. Yryy pymyydan naa kamuu di’it u darakadan kamuu
di’it, kaimen pyda’atan, na’an atii diaytam kamuu, idikinhayda’y kamuu u paminhay-
tamkii kamuu naa ii. Marinha’akiz madidikan yryy pysu’utan kamuu di’ik, pyxaxutan,
diaytan pidian tym, u purubian u pydarakadan atamyn dakuri timpe’u (forquilha) dia’a.
Yryy pysykyrytan, pysaaban naa. Da’ian ymud, xutan yry 10 ymyda, yry wapichan kian
baukukau, imad yry iaradan, yry zurudian, zurudian, ikuu tapi’iz mad kuan, zuridkau.
Yry daian pyduwaitan pysuwaichian. Yry naa inturimpenan na’ii,yry ipei in tan pidian
kaydinkinhau tin nii. Intan supara, kirikiri, kana suu, karikeunan, raxin suu, cafii (wi-
chisudi’u), ipei inchan pidian waykinii, yry id intan pidian kaydinkiz wyry da’y. Yry intan
pidian kaydinkiz wyry day! Yryy intan ipei pidian waykini nii. Yryy ipeinian pysukpan naa
atii bauran dun. (Entrevista realizada com Alfredo, na comunidade Malacacheta, com
seu filho Silvestre, no dia 01 de outubro de 2017. Transcrita e traduzida da língua
Wapichana para a portuguesa por Joceline Araújo Veras (bolsista do Programa de
Valorização das Línguas e Culturas Macuxi e Wapichana em 2017).
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 41

Na narrativa anterior fica evidente os riscos que envolvem


esse tipo de trabalho e como havia relação de exploração, uma
vez que quem realizava todo o serviço conseguia depois apenas
o rancho (alguns alimentos). E, mudando de atividade, passou
a trabalhar com algo também perigoso, tendo sido mais uma
vez explorado. Alfredo passou a contar com detalhes como foi
sua ida e seu trabalho no garimpo:

Quem me levou foi o Casimiro, faz tempo, antes de ir morar


na Tabalascada, eu não tinha andado no garimpo ainda, e o
Casimiro chegou do garimpo e me encontrou. Ele disse: ‘hei,
meu irmão. Hei, irmão, agora vamos, pra trabalhar, vamos tra-
balhar no garimpo’. ‘Tudo bem!’ Aí a gente foi e encontramos
para nosso patrão o Rangel, que era o nome do branco. A gente
foi com ele. Até que Casimiro me deixou lá no Tepequém. Ele
que me levou e me deixou trabalhando no Tepequém. Aí eu
aprendi a trabalhar de garimpeiro. Me deixou, mas eu estava
indo bem, disse ‘vou ficar’. Eu morei dez anos no garimpo do
Tepequém. Depois de sair, eu adoeci com uma doença na perna
que se chama beribéri, não sei como se chama em Wapichana,
só em português. Então a minha perna inchou igual a mamão
maduro. ‘Pode ir, pode ir, de repente você morre aqui’. Aí eu
sai do Tepequém. Aí eu vim pra cá, até fiquei bom e não voltei
mais, vim pra ficar16.

16
  Kanam na’akan ungary Cassimiro man, makun kuty’anaa kiwin, aunaa zii kaawan
da’atii Tabalascada at. Chi’ikipan garimpo ia. Aizii Cassimiro kaawan garimpo ik, yryy
ikudan ungary. – Ei cham! – ei un inhawyz unkian wapichan, ba’uran wapichan – Ei
un inhawyz. – Ei cham! - Axa! Aizii wamaku cham, wamaku kaydinkizei it, garimpo it. –
Kaimen! Tão wamaku’unaa, waikud wanaubanaa nii Rangel kia’u y yy karaiwe, yryy tym
wamakun. Atii Cassimiro wa’ak ungary na’ii Tepequém ii. Yryy maku’u, na’aka’u ungary,
ywa’ak ungary na’ii, kaydinhan zii tepequém ii. Yryy untuminpeakan naa kaimen ga-
rimpo da’y. Yryy ywa’akan! Aizii ungary makun naa wyry’y. – kaimen, ungary na’an nii
zii, wapichan kian, baukupka’y wyn unmaxaapan garimpo ii. Baukupka’y wyn! Karaiwe
42 ¦ TYZYTABA’U

Casimiro Manoel Cadete também nos contou sobre sua


experiência no garimpo do Tepequém. Ele disse que depois de
um tempo deixou de ir para o garimpo, pois percebeu que sua
família tinha razão em pedir que não voltasse para lá, consi-
derando que o risco daquele trabalho não valia o que ganhava.
Ele achou que não aproveitava o ouro que conseguia: “eu brin-
cava com o dinheiro”.

Fui para o garimpo com Bento Brasil Filho, era o dono do ga-
rimpo Tepequém em 1940. Trabalhei lá seis verões, passava
o inverno em casa e voltava no verão. Depois fui para o Maú
[nome de um rio], trabalhei lá um ano. Depois, quando eu voltei
de lá meus pais não deixaram mais eu voltar porque souberam
minha notícia que tinham me matado no garimpo17

Felizmente a notícia mencionada anteriormente estava er-


rada e Casimiro estava vivo. O aspecto econômico na relação
com os garimpeiros apareceu fortemente na narrativa tanto
de Casimiro, quanto de Alfredo. Alfredo ficou mais tempo do
que Casimiro no garimpo, e continuou sua narrativa com mais
detalhes sobre como era a vida no garimpo:

Eu trabalhei com bateia, peneiras, todo tipo de material, com


picareta, picava assim e com a enxada puxava esse material,
depois carregava para beira do rio pra lavar. Aí, lavou tudo,

dia’an dez anos, karaiwe dia’an. Dez anos unmaxaapan garimpo ii, Tepequém ii, bauku-
pka’y wyn wapichan kian. Dayna’an unkudichan, karinhan, un ikudan taba’y rinha’a nii
na’ii Beribéri kia’u dakutka’u! Na’ap man, aunaa un aichapan wapichan dakutan yryy,
un abatan karaiwenau dakutan Bariberi. Ka’yan taba’y xiian, unkidibe ma’apai uzukan
kawan, taba’y puudan. Pumaku, ba’uran, pumaku’unaa panadun pumaukan da’a’a. Yryy
unkudichan na’ ik Tepequém ik. Yryy unwa’atin naa, yryy unkakydan da’a’a, aunaanaa
unkiwen pawa’a it, unna’annaa. (Entrevista com Alfredo no dia 26 de outubro de 2015).
  Entrevista com Casimiro Cadete no dia 10 de setembro de 2014.
17
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 43

colocava dentro da caixa de novo. Agora tem sugador que está


pegando diamante. Eu trabalhava com peneira dentro da água,
tirando pedras e jogando os diamantes para a caixa, aí lá tem
caixão que lava com outra peneira, os diamantes que iam fi-
cando no meio, eles pegavam. Aí eu trabalhava dentro da água,
a água estava bem por aqui em mim, eu estava todo cinza de
barro. Depois, quando era meio dia íamos almoçar, eu banhava
um pouquinho. Nem demorava já estávamos indo pra terminar
o nosso trabalho. Chamavam: ‘vamos!’ A gente ia e trabalhava
de novo e terminava esse trabalho até carregar para dentro
da caixa, eu pegava tudo. Agora já quando acabava o material
íamos descansar. É só isso!18

Enquanto contava, Alfredo gesticulava, reproduzindo os


movimentos e mostrando a altura que a água atingia em seu
corpo, para cima da cintura, perto do peito. E Alfredo tam-
bém falou sobre a relação dos garimpeiros com o artesanato
Wapichana: “tinha muitos garimpeiros também lá que eles
queriam muito jamaxim, os Wapichana também compram as
cordas do jamaxim, feitas de fibras de buriti, fizeram tudo, aí

  Kaydinhan kanum da’y, pá, palin, ipei karikeunan kanum kaydinkizei, kanam picare-
18

ta dia’an, sampa, pidian kian wapichan kian: sampa, wyry’y material, kikizei. Dayna’an
duwaytan, chikeanan ywa’uz danum ii na’akan. Ipei unchiken caixa nazua’an chikeakan
kuxan kainha’a chegador da’a’a yryy zamapa’u diamante peneira dia’anyryy zamatan.
Ungary kainha’a unkaydinhan na’ap wyn tym kiapan kanam , kyba su’utan, kabuutan
kyba, diamante maku’unaa di’itii caixa, di’it, kainha’a caixão di’it. Kainha’u chikea-
pa’u manary dia’an zamatan saiwenan wyry’y arady kidian diamante izikuny’y, yryy
yzamatan na’ii. Yryy kaydinhan na’ap, atii unkaydinhan wyn bauku’u, wyn da’a’anaa
undamutinpen. Ipei unkadadan imi’i id, daari id, ah! Dayna’an sakichap kamuu, aizii
waarupanka’anaa, wamaku’u naa waarupa’anaa, kaupa’akan maskayda’y. maskayda’y
dayna’an waipeianka’anaa wakaydinkiz, então wamaku’unaa kaydinha’anaa kuxan, at. Ipei
waxa’apatan caixa zua’u, wazarikuakan naa, at. Aizii ipei material, aizii at, marina’anaa,
suka’akan naa, yryy kadyz. (Entrevista com Alfredo no dia 26 de outubro de 2015).
44 ¦ TYZYTABA’U

eles vão comprar”19. Na segunda entrevista com Alfredo, per-


guntamos se ele trocava ou vendia seu artesanato, para quem
entregava e ele respondeu que quando esteve no garimpo ven-
dia e que, até hoje, nas comunidades há quem compre cestos,
peneiras, tipiti, abanos e jamaxim. Vivenciamos esse comér-
cio e percebemos que principalmente o tipiti ainda é bastante
procurado e usado pelos Wapichana.
Quando perguntamos com o que mais ele já trabalhou,
Alfredo esclareceu que não tinha experiência em fazenda:

Agora o boi bravo me atacou, então o boi é bravo, eu não trabalho


com gado. Então é só isso, não sei como trabalhar, eu trabalho
só de roça. Eu não trabalhei com os brancos em fazenda não,
nunca trabalhei, eu não sei trabalhar com gado, não sei andar
de cavalo, não sei peiar a perna de gado com a corda, não sei
jogar corda na cabeça do gado. Então não tenho interesse de
trabalhar com gado. Não quero saber disso. Só isso!20

Em suas falas, Cassimiro e Alfredo ressaltaram como hoje


o comércio sobressai nas comunidades. “Na minha comuni-
dade a gente compra tudo, caxiri a gente compra, a gente faz
caxiri, mas mesmo assim a gente compra”.21

  Wyry’y irib garimpeironau kapam naa ii inhau pan aiap dupawai, wapichannau kapam
19

inturiak kaikapa’u didimei, diywyz idib idi’u itumkau dupawai zynaa nii ipei itumkau yryy
inturian nii wyry’y, yryy turiaka’u wyry’y inda’y naa ii, da’a’a aunaa wana’apan. Aunaa
mixi (Entrevista com Alfredo em 18 de julho de 2014).
20
  Tu’uru tapi’iz, zuian ungary. Tapi’iz tu’ura’u wyry’y ka’yan aunaa unkaydinhan tapi’iz
da’y. Yryy kadyz. Aunaanaa un aichapan na’apam kaydinhan. Yryy id suu zakap da’y
karikeunan kaydinhan. Ka’yan aunaa unmakun karaiwe di’it man, Fazenda di’it man,
aunaa. Aunaa unkaydinhan tapi’z da’y, aunaa un aichapan zaidian kawaru, aunaa un
aichapan unbu’utipen, aunaa un aichapan papidian tapi’iz taba’y bu’utii dia’an. Aunaa
un aichapan bu’utichan tapi’iz zuay, ka’yan aunaa undiaytan kaydinhan tapi’iz da’y.
Ungaryz. (Entrevista com Alfredo no dia 26 de outubro de 2015).
  Mazan unwiiz ii ipei waturiakan, parakari waturiaka watum nii parakari padamat,
21

mazan ipy’y waturian. (Entrevista com Alfredo em 18 de julho de 2014).


As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 45

Quando demonstramos interesse sobre as particularida-


des dos contextos Wapichana entre os dois países, Brasil e
República Cooperativa da Guiana, Alfredo fez uma compara-
ção22, mencionando algumas diferenças entre o uso da língua
Wapichana de um lado e do outro da fronteira. “É diferente
pra mim tem alguns pronunciamentos, porque lá na Guiana,
eles sabem falar Wapichana em uma forma de pronúncia e
nós mudamos pra cá e imitamos o Wapichana daqui. E fala-
mos da moda daqui”23. Cabe destacar a observação de Alfredo,
considerando “moda” a forma de seguir o sotaque ou a variante
linguística do Brasil ou da Guiana.

FAZERES DE PALHA E DA TERRA

Percebemos que a casa de Alfredo, que visitamos na comuni-


dade Malacacheta, era construída praticamente apenas com
materiais retirados diretamente dos arredores. No chão da
varanda da casa havia tijolo de barro artesanal secando.
A casa de Alfredo foi construída em barro, material que
segundo Nádia Farage, simbolicamente, para os Wapichana,
tem vida. Esse pode ser o motivo de muitos dos mais velhos
resistirem a morar em casas de alvenaria, porque as paredes e
esteios têm panaukaru, ‘seres que estão presentes na natureza’.

  Para estudos linguísticos comparativos há fontes disponíveis de quem documen-


22

tou partes da língua Wapichana no Brasil: em 1885, Feliciano Antonio Benjamin;


em 1887, Coudreau; em 1927, João Barbosa de Faria (CNPI, na Bacia do Uraricuéra,
mais precisamente no Boqueirão). Antes de 1936, Braulino de Carvalho registrou
palavras e algumas frases e, nos anos 1940, Curt Nimuendaju. A partir de então, as
referências são os dicionários de Casimiro Cadete (1990) e do grupo de professo-
res da região Serra da Lua (2013). Na Guiana, quem fez alguns registros da língua
Wapichana foi Farabee (1918), Tracy (1972), dentre outros que não aprofundamos
na pesquisa porque nosso foco foi a Região Serra da Lua.
23
  Entrevista com Alfredo no dia 18 de julho de 2014.
46 ¦ TYZYTABA’U

Nela habitam as panaukaru dos materiais como a palha que


vem do buritizal, o barro, que vem da beira do igarapé. “São
como micróbios, você não vê, mas estão ali” (Farage, 1997, p. 59).
As casas em que realizavam rituais, não tinham prego para
não atrapalhar a circulação da energia entre céu e terra. É pos-
sível que alguns dos moradores das comunidades Wapichana
mais antigos prefiram continuar com suas casas construídas
sem utilização de ferro também por esse motivo.
Historicamente, a dimensão das casas, os materiais, as
formas de construir vêm mudando, sobretudo em relação aos
materiais, que antes eram mais “naturais” e artesanais. Segundo
Dom Eggerath (1924), originalmente a habitação indígena era
redonda e coletiva, única, coberta de folhas de palmeira bu-
riti, dispostas em maneira de telha, em sentido horizontal.
O madeiramento era segurado por cipó habilmente laçado e
as paredes eram revestidas de barro, feito pau a pique, ou de
folhas de palmeira, com única entrada, fechada com manta
ou esteira, sem janelas ou outras aberturas, podendo atingir
18 metros de diâmetro por 8 de altura.
O religioso esmiuçou: “o chão é batido e, por isso, são estas
habitações infestadas, além do ‘bicho de pé’, por escorpiões,
lacraias e outras pragas mais” (Eggerath, 1924, p. 46). A lareira
e o fogo eram sustentados dia e noite, costume que muitos dos
mais velhos mantêm na atualidade, alguns inclusive se negam
a viver com luz elétrica.
As malocas, como eram chamadas essas casas no início
da colonização, recebiam o sentido de “casa do diabo”, pois
eram associadas à imoralidade pelos religiosos e deviam ser
transformadas em casas familiares (Freire, 2004). Para mui-
tos, depois, maloca passou a significar comunidade indígena,
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 47

inclusive, na atualidade, esse nome é usado com frequência


em Roraima para tal fim.
Cabe observar que não existe ainda na língua Wapichana
um nome designando família. Na língua Macuxi tampouco
há essa tradução. Atentamos para isso quando no trabalho
de tradução da bíblia para crianças na língua Macuxi, os in-
dígenas que participaram desse processo com a Diocese de
Roraima, afirmaram não conseguirem traduzir esse conceito.
Isso acontece muito provavelmente porque a ideia de famí-
lia que a igreja trazia não era vivida por esses povos, porque
todos eram considerados parentes. Importa notar que, mesmo
passando a incorporar uma forma de agrupamento familiar
monogâmico e mais restrito, os Wapichana continuam sem
adotar um nome para tal configuração.
Na figura 4 no caderno de fotos observamos uma espécie
de muro cercando a varanda da casa, a palha bem aparada,
totós descalços e um usando chapéu provavelmente feito com
algodão fiado e tecido por uma mulher da comunidade.
Sobre as casa Wapichana, João Paulo Jeaninne Carneiro
(2007) fez referência em sua dissertação em relação à durabi-
lidade de 25 anos e de que continuam usando a palha do diywy
‘buriti’, para cobrir as casas. E as folhas da palmeira pukurid
‘inajá’, duram mais do que cinco anos. O pesquisador ouviu
dos Wapichana que quando a palha é retirada fora do tempo
a cobertura da casa dura menos.
Os Wapichana interpretavam preconceituosamente as
casas Atoraiu, construções mais simples quando comparadas
às casas Wapichana. Assim, ora os Atoraiu eram mencionados
para legitimar conhecimento ancestral dos povos Aruak, ora
para ressaltar a “superioridade” dos Wapichana sobre eles.
48 ¦ TYZYTABA’U

Atanásio de Souza, professor na Escola Estadual Indígena


Otávio Manduca, na comunidade Jacamim, confirmou o regis-
tro de Dom Eggerath quando apontou para algumas casas que
podíamos ver ao longe. E Atanásio falou sobre as diferenças
entre as casas Atoraiu e Wapichana. “Agora estão cortando a
biqueira das casas, na época eles usavam a casa e não faziam
parede. A casa não era para ficar muito tempo, em dois, três
anos mudava. Não tinha ninguém para atrapalhar. Hoje é di-
ferente, colocamos a roça e não saímos mais”24.
A figura 5 no caderno de fotos mostra que em 1927 já cor-
tavam a palha do telhado e usavam paredes de barro. A quinta
pessoa da esquerda para direita, no centro da fileira de pessoas
sentadas na foto, está o tuxaua Terencio, o avô de Ana, mãe de
Anastácio de Souza. Os dois nos concederam entrevista e eles
o reconheceram. Ao lado direito é possível ver um jamaxim
pendurado. Observe-se também que todos estão descalços.
Koch Grünberg descreveu algo interessante para reflexão
acerca dessas múltiplas influências entre povos, com relação à
construção das casas, ao relatar ter encontrado cabanas elípti-
cas e retangulares, afirmando que eram uma: “fusão do arcaico
estilo redondo Caribe e um estilo retangular trazido pelos eu-
ropeus e, quem sabe, também pelos Aruak [...]” (1924, p. 35)25.).
Alfredo também nos falou sobre suas andanças e de como,
no passado, circulou pelo território Wapichana, caminhando
do Canauanim até a comunidade Marupá. Sua relação com
a casa era outra, compatível com a lógica que Atanásio men-

  Entrevista com Atanásio em 17 de dezembro de 2014.


24

25
  Livre tradução espanhol-português pela autora
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 49

cionou anteriormente. E Alfredo justificou mais um motivo


de suas andanças:

A minha ex-esposa me abandonou, ela que me levava para outras


comunidades, me chamou e fui pra lá, então eu sei de tudo no
Marupá, no Marupá quando eu cheguei o tuxaua era Braulino,
que era o nome dele. Foi lá que eu e Casimiro Cadete nos en-
contramos novamente. Ele disse para prima dele, ‘o que vocês
estão fazendo aqui?’ ‘Estamos só passeando’, ela disse. ‘Vamos
para nossa comunidade?’, ele disse. Aí ele levou a prima dele, aí
eu vim de novo, até que ela separou de mim aqui Canauanim,
ela me deixou. Aí ela me deixou no Canaunim, por causa de
outro. Ela estava gostando de Peter, que era o nome dessa
pessoa, por causa dele, ela me deixou. Logo ela se juntou com
Peter, e eu continuei morando por aqui, depois eu fui embora
de novo para minha comunidade. Aí eu abandonei e deixei de
ir ao Marupá. E só isso, não fui mais para outro lugar, fui dei-
xado aqui e fiquei de vez. É isso!26

Percebe-se que motivos pessoais também contribuem para


esses deslocamentos. A mulher de Alfredo que conhecemos
em 2014 veio da República Cooperativa da Guiana para viver
com ele. Observamos que, assim como no passado, os Atoraiu

26
  Ungary daiaru kaidi’iaa myyda’u ungary, uruu wyry’y na’akpa’u kaipa’a ba’uran wiizei
it, makun na’it, ipei un aichapan na’it Marupá, ipei Marupá, kaawan na ii. Tuxau na’ii
kanam, tuxau nii na’ii Braulino kia’u y yy.Marupá ii yryy kai... Cassimiro Cadete ikudan
waynau na’it kuxan. Yryy kian papriman at. Kanam yxa’apa’apan da’anaa? – Wachi’ikpan
karikeunan. Wamaku wawiiz iti’inaa. Yryy yna’akan naa papriman, yryy wawa’atin naa
kuxan. Atii umyydan ungary canaunii ii. Ba’uran da’yan, yryy unaydapan man wyry’y
Pitar kia’u y yy, eyry’y pidian. Yryy dayna’an, umyydan dayna’an ungary, uzamatan wyry’y
Pitar. Yryy ungary maxaapkiz da’anaa. Dayna’an unmakun naa kuxan unwiiz it. Yryy
unmyyda’akan naa wyry’y unmaxaapan Marupá iak. Yryy kadyz aunaanaa na’itim un-
makun puuaa, yryy unmyydka’u Canaunii ii. Yryy unna’akan naa. Yryy kadyz. (Entrevista
com Alfredo de Souza, 2014).
50 ¦ TYZYTABA’U

e Wapichana viajavam por questões familiares, muitos dos


professores das escolas indígenas ainda vivem mudando com
frequência de comunidade, mesmo que por outros motivos.
E as comunidades se organizam para ter casas de apoio que
servem para hospedar esses profissionais “seletivados”, que
ficam meses ou apenas um ano na localidade.
No passado, quando construíam casas com cobertura de
palha, usavam o puruku, ‘caranã’ para marcar a contagem das
palhas. Assim a cada dez faziam um corte pequeno no caranã,
a cada cem um corte grande e assim não levavam nem palha
a mais e nem a menos do que o necessário.
Na Escola Estadual Indígena Sizenando Diniz, na comu-
nidade Malacacheta, durante uma feira de ciências do ensino
fundamental e médio, houve apresentação de pesquisas com
a exposição desse objeto usado para contagem da palha. No
entanto, os alunos e professores desconheciam seu nome na
língua Wapichana, não aprofundando, portanto, o estudo do
detalhe do corte pequeno para dezenas e grande para centenas.
A luta para incluir na escola os saberes indígenas é recen-
te, datando de aproximadamente trinta anos, sendo certo que
poucas experiências têm conseguido mudar a direção que as
escolas vêm historicamente tomando nos territórios indíge-
nas, trazendo muito mais de fora para dentro.
Um velho sábio Kaxinawá disse à Nieta Monte, quando esta
perguntou se o neto dele falava a língua indígena: “não, minha
filha, ele desaprendeu a língua e os conhecimentos da gente.
É que ele, coitado, frequentou a escola” (Freire, Taquiprati,
2013). Esse distanciamento se dá também em relação ao am-
biente, uma vez que os alunos passam metade do dia dentro
de quatro paredes da sala de aula da escola.
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 51

O meio ambiente local tanto pode ser visto como um espaço


de produção e reprodução de bens culturais, quanto recurso
ou matéria-prima para a criação de determinados bens. Pois,
além de representar parte indissociável do imaginário coletivo
(expresso nas letras das músicas, na sonoridade dos ritmos, na
coreografia das danças e na história oral), constitui matéria-
-prima para a criação de utensílios, instrumentos, meios de
transporte, moradias, remédios e artefatos simbólicos (Vianna
apud Belas, 2005, p. 268).

Essa questão é central neste estudo, porque as músicas de


Parichara e muitas histórias em língua Wapichana falam des-
sas relações com a natureza e com os materiais que usam em
suas construções, bem como no artesanato. O esquecimento
dessas relações e sentidos pode contribuir também para en-
fraquecer os vínculos de proteção ao meio ambiente.
As comunidades com muitos moradores e com a maioria
não falante da língua Wapichana já sofrem com plantas que
começam a desaparecer das matas, como a piwera ‘cupiúba’,
que serve para coluna das casas e para a construção das canoas.
A escassez desses materiais e os projetos do governo justifi-
cam a construção de casas de alvenaria com telhas de amianto
e a mudança na paisagem do território Wapichana. Na Terra
Indígena Malacacheta, por exemplo, a população já vive esses
problemas de sustentabilidade ambiental.
Lucila Hermann, a partir do estudo dos cadernos de Dom
Mauro Wirth, afirmou: “a casa do tuxaua possui um terreiro
maior que a dos outros, onde realizam as grandes festas de
danças e, quando há hóspedes, os homens se reúnem para
conversar e beber caxiri” (1946, p. 132). A autora fez referência,
52 ¦ TYZYTABA’U

assim como o estudo de Nádia Farage, às antigas regras de re-


sidência matrilocal.
Em relação ao tempo de uso da casa, Dom Eggerath consi-
derou que “não impede o esforço empregado que se abandone
a maloca facilmente; basta para tanto morte na família, insu-
cesso na caça, falta de caça” (1924, p. 32).
Houve casos de abandono não definitivo da casa, apenas
temporário, tendo o dono voltado depois de passado o medo do
morto, que tinha acabado de partir e ameaçava roubar a alma
(Hermann, 1946). E algumas vezes, mesmo na atualidade, esse
abandono não atrapalha o trabalho na roça que, mesmo com
a casa abandonada, continua a ser cultivada.
Na comunidade Wapum, com poucos moradores, relativa-
mente às outras comunidades, vimos uma casa abandonada
após a morte do antigo morador. Importa notar que esta dista-
va do centro da comunidade. Quando a casa é perto da escola,
local concorrido para morar, mais dificilmente é abandonada,
mesmo que um morador venha a falecer. Outro aspecto a ser
observado em relação ao abandono ou não da construção, é ser
a casa de alvenaria, ou construída com os materiais e forma
tradicional Wapichana de construir.
Um aspecto que contribui para a permanência na casa,
mesmo após o falecimento de alguém, é ela ser de alvenaria,
durar mais tempo e se for destruída, não conseguirem que os
materiais desapareçam na natureza, uma vez que nem todos
os entulhos poderão ser reaproveitados, poluindo assim o
meio ambiente. O material ter sido comprado fora da comu-
nidade e ter custado caro também pode influenciar a decisão
por permanecer na casa.
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 53

Alfredo trabalhou a maior parte de sua vida na roça e com


o artesanato. Na sequência do texto, abordaremos como se dá
o trabalho na roça Wapichana e quais tipos de plantas foram
e são ali cultivadas. Percebemos que, de um modo geral, atual-
mente, com algumas exceções, as roças continuam longe das
casas e praticamente toda família na Terra Indígena Jacamim,
por exemplo, ainda tem sua roça.
Quanto à divisão do trabalho, os homens roçavam, semea-
vam e as mulheres capinavam e colhiam. Dom Eggeratt (1924)
observou esses trabalhos como penosos para os indígenas do
lavrado, dado que a falta de chuva em certas épocas compro-
metia a lavoura, trazendo a fome. “Mandioca e milho são as
principais plantações, havendo pouco feijão, canna de asucar,
arroz, algodão, amendoim, mamão, bananas, aboboras e aba-
caxis”. Segundo Dom Eggeratt (1924, p. 35), eles cozinhavam,
assavam o milho verde e faziam fubá para bolos chatos, tam-
bém feitos com farinha de mandioca. Havia pilões de pesadas
madeiras que ficavam um pouco enterrados.
Muito do que Dom Eggerath (1924) registrou nos seus es-
critos continua presente na vida de Alfredo de Souza. No final
da primeira entrevista realizada com ele, seus netos chegaram
da roça com macaxeira que eles iriam descascar para fazer fa-
rinha na casa de farinha que tinha ali perto, em barracão logo
ao lado da casa do avô.

[...] peneirada, é a farinha aproveitada para os bolos de man-


dioca que constituem um dos alimentos diários do índio [...]
acompanham-n’o em todas as viagens; também são aprovei-
tados, como os de fubá, para o fabrico de bebidas alcoólicas,
cuja fermentação provocam com pedaços de canna de assucar
e outros do próprio bolo mastigado primeiramente e cuspidos
54 ¦ TYZYTABA’U

depois para dentro de uma gamella que já guarda certa porção


de bolos inteiros (Eggeratt, 1924, p. 35).

O religioso fez referência ao badi ‘beiju’, que supomos


ser o que chamou de “bolo de mandioca”. Na atualidade, não
vimos colocarem cana de açúcar e nem cuspirem dentro do
recipiente que guarda o caxiri. Mas ouvimos contar que no
passado tinham esse costume. Na atualidade há casos em que
misturam cachaça ao caxiri para aumentar seu teor alcoólico.
Alfredo nos explicou como trabalhava na roça: “Eu só sei
os trabalhos, a pessoa fazendo roça, derrubando, brocando,
tudo plantando mandioca, plantando tudo, qualquer coisa de
planta, taioba ou melancia, abóbora e tudo. Aí eu aprendi só
sobre plantação, eu não sei escrever”.

Eu trabalho na roça, nós plantamos mandioca, cana, melancia,


banana, abacaxi, batata, inhame, milho e tudo que eu preciso
eu planto, para eu me alimentar, eu planto timbó também, é
assim que a gente planta na roça até agora. A gente planta arroz,
mas agora não aguento mais. Eu disse pra vovó deixar pra lá27.

Como sua fala foi na língua Wapichana, a construção do


texto anterior e de outros transcritos e traduzidos, eviden-
cia e aceita as especificidades do funcionamento da língua
Wapichana na sua variação influenciada pela língua Atoraiu.
Deixamos a forma do discurso parecida com a ordem sintática,
sem modificar muito essas diferenças na forma de constru-
ção. Quando voltou do garimpo, Alfredo foi trabalhar na roça
com Casimiro.

  Alfredo de Souza, entrevista em 18 de julho de 2014.


27
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 55

Até fiquei morando com Casimiro de novo. “Hei, agora vamos


trabalhar, irmão”, ele disse pra mim: “vamos trabalhar, irmão,
vamos fazer a nossa roça? Vamos fazer a nossa roça e plantar
as coisas, vamos plantar a nossa mandioca, ou plantar milho,
arroz, vamos plantar de tudo, melancia, ou qualquer coisa a
gente planta”. E disse: “tá bom”. Aí começamos a trabalhar na
roça, fizemos a roça e plantamos de tudo, milho, banana e tudo,
a roça ficou cheia de banana. É esse que foi o nosso trabalho
com Casimiro. E depois começamos a vender um pouquinho
para ter nosso dinheirinho pra comprar alguma coisa como
nosso café, essas coisas, e isso já é dinheiro de banana, ou de
farinha, ou de melancia. E achamos o nosso dinheiro de novo,
de plantação. Plantação produz dinheiro para pessoa, quando a
pessoa trabalha de plantação, quando você planta você ganha
dinheiro com isso. Depois, “agora vamos dar um tempo de fazer
roça”, aí paramos de trabalhar na roça. E só!28

Em relação à diversidade de manivas, o conhecimento


sobre o veneno de algumas “batatas de maniva” e as folhas da
planta, foi e ainda é importante, uma vez que muitos não indí-
genas que desconsideraram esses saberes foram intoxicados e
até vieram a falecer por conta da ingestão de substância tóxica.

28
  Aizii na’an naa Cassimiro tyma’anaa kuxan, kaawan. – Ei aizii wakaydin cham.
Wakaydin cham, watum wazakapyn ykian. Watum wazakapyn, wapaukiz aimeakan.
Wapaukiz wawayn, wapaukiz maziki, ydakutan ba’uran: awati’i, wapaukiz awati’i,
wapaukiz ipei kanun karikeunan, paachiaa, kanamsud kidkarikeunan wapauwan. At.
Wakaydinhan zakap da’y, ipei watum zakap, wapawaa ipei aimeakan: maziki, syyz, ipei
syyzbau ty’yzkan naa. Yryy wakaydinkiz kuas Cassimiro tym wakaydinhan. Yryy dayna’an,
waipeian naa kaiki nii. Kanamsud kid, pauribeisud kid, waikudkinha’a wapyratansyd
nii. Waturikinhaa nii kanamsud kii, wacafensudinaa, syyz winipinaa dia’an, u’i dia’an,
paachiaa winipinaa sud id dia’an. Yryy waikudan wapyratan, na’ap xa’apauribei dia’an.
Pauribei ikud pyrata,pidian kaydinhan, paupan, paunhan dun piikud pupyratan nii
pupauribe dia’an... ipei, at! (Entrevista com Alfredo no dia 26 de outubro de 2015).
56 ¦ TYZYTABA’U

Valentino de Souza, morador e artesão da comunidade


Marupá, listou quatorze nomes de manivas que cultiva em
sua roça: kirichiaba, nome que vem de kirichi; ‘inhame’ riri-
chibay; kizipi ‘piaba’ (tipo de peixe pequeno); kuama ‘cigarra’;
arawan ‘sulamba’ (tipo de peixe); iazizun ‘nervo’; uradab; wayni
‘manival’; nanaryp; urududui; kamanarip; subi ‘girino’; bakurai;
warunau ‘papagaios’; o que evidencia a riqueza que continua
sendo cultivada e transmitida de geração a geração. Observamos
que não foi possível traduzir alguns desses nomes.
Na tese de Oliveira (2012) ele listou mais 23 nomes: Bakyray
‘Catitu’; Bai ‘Pato’; Irudadap ‘Juriti’; Kamynaryp ‘Aracu’; Kadadap;
Amazona; Mekuryn; Zinip; Kuray ‘irara’; Wixap ‘lixa’; Pireira;
Mukumukup; Karaudazyp; Buzuwap; Azip; Kuxarap; Tybary awyn
‘olho grande’; Manarip; Kizpii; Sabin; Charip; Macaxeira man-
teiga; Kyryk danip ‘ninho’, dividindo em brancas, amarelas e
vermelhas e explicando como usam cada uma delas.
Na continuidade da entrevista com Alfredo de Souza, mos-
tramos fotografias que fizemos no SEE, no Rio de Janeiro, e
percebemos que esses objetos foram e são referências ainda
atuais da identidade cultural Wapichana. Alguns deles ainda
são usados, outros são ainda confeccionados, outros ficaram
apenas na memória e poucos foram esquecidos ou não reco-
nhecidos por eles como sendo Wapichana.
Alfredo de Souza, ao examinar nossas fotos, nos contou que
na Guiana, certa vez, cavaram e encontraram muitos objetos,
mas levaram tudo e ele não sabe para onde. O que evidencia
como as formas usadas no passado para encontrar e levar os ob-
jetos indígenas eram marcadas por trocas, furtos e apropriações,
incluindo o modo como Alfredo descreveu, levando os objetos
para lugares e com objetivos que os indígenas desconheciam.
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 57

A questão apontada por Alfredo em relação ao desapareci-


mento dos objetos Wapichana nos fez lembrar das discussões
de Appadurai quando pensa que o “desvio de mercadorias de
sua rota costumeira sempre carrega uma aura arriscada e mo-
ralmente ambígua” (2008, p. 44). Dessa maneira, na vida dos
objetos acontecem transferências, conversões, com espírito
seja de empreendimento, ou de corrupção moral. Em alguns
casos, inclusive, pode haver aumento do valor do objeto pelo
seu desvio. E essas rotas, segundo o autor, podem ter sido bas-
tante complexas.
Começamos então a refletir acerca do estatuto do obje-
to além da função inicial dada pelo seu dono e para qual foi
criado ou associado ao destino do dono. “Assim como pessoas,
objetos têm seu tempo certo de vida” (Lagrou, 2007, p. 102)
Além disso, a vida de um objeto varia segundo as sociedades.
Alguns, por exemplo, não sobrevivem ao ritual e outros são
usados até o seu dono falecer, quando podem ser enterrados
com ele ou destruídos.
Segundo Dom Eggerath (1924), os objetos do morto eram
quebrados: o arco e flecha dos homens e as panelas e cestas
das mulheres, colocavam fogo para queimá-los próximo à se-
pultura cavada na maloca onde o corpo era colocado enrolado
em sua rede.
Na busca do sentido que esses objetos passaram a ter quan-
do o povo passou a viver de modo diferente e deixou de lado
determinados fazeres, perguntamos quais significados eles
tiveram e têm na atualidade.
As informações sobre o artesanato por nós fotografado
no SEE nos ajudaram a compreender alguns aspectos dessas
58 ¦ TYZYTABA’U

relações. Seguindo o que aponta Wilson, para quem: “qualquer


análise que não se baseasse em alguma tradução dos símbolos
usados pelo povo daquela cultura estaria exposta a suspeitas”
(1957, p. 6). Nesse sentido, em especial foi fundamental ouvir
os entrevistados na língua Wapichana como forma deles re-
conhecerem os nomes e funções de seus objetos.
Após a revolta do Rupununi29 os Wapichana na Guiana
foram “abandonados” e passaram a não ter acesso aos bens
industrializados. Stephen Baines confirmou essa informação
em seus estudos de campo e fez essas análises em alguns de
seus artigos, observando que os objetos industrializados como
panelas de alumínio na atualidade vão do Brasil para República
Cooperativa da Guiana (2005, 2012, 2013).
Coudreau (1887) fez suas observações, aproximadamente
118 anos antes de Baines (2005, 2012, 2013), quando esteve na
Região Serra da Lua de que em muitas comunidades afastadas
não havia objetos de ferro e apenas algumas facas de péssima
qualidade. Quando queriam objetos como fuzil, chumbo, pól-
vora, munição, machados, sabres, facas, baús, trabalhavam até
consegui-los e assim que isso se dava voltavam para suas casas.
O fazendeiro Melville na Guiana trocava objetos manufa-
turados por redes e cestaria indígena, depois casou com uma
Atoraiu e tornou-se influente entre os indígenas (Oliveira,
2012). E a força de trabalho em sua fazenda era fornecida
pelos Wapichana e Atoraiu. Esse fazendeiro falava fluente-

29
  No dia primeiro de janeiro de 1969 teve início a Revolta do Rupununi em Lethem.
As pessoas ligadas ao governo Burham foram dominadas, mas erros estratégicos e
ausência da prometida ajuda da Venezuela à rebelião, levaram a revolta ao fracasso.
Assim, no dia 03 de janeiro a Guyana Defense Force (GDF) promoveu um movi-
mento de repressão. Os Hart fugiram para a Venezuela, ficando apenas os Melville
e os índios, sendo os maiores penalizados (Borges da silva, 2005).
As tranças da vida de Alfredo Souza ¦ 59

mente essas línguas indígenas e começou a trabalhar com os


indígenas na extração de balata.
Essas relações com os viajantes, fazendeiros, religiosos e
entre povos e países fizeram com que muito do que era estra-
nho e exterior aos Wapichana se tornasse parte da vida deles,
transformando-a ora de modo mais sutil, ora mais radical.
A multiplicidade de imagens, os significados diferentes e
semelhantes circulam diante das classificações Wapichana.
Traços da fronteira entre as artes Wai Wai, Macuxi, Atoraiu,
Taruma, Jaricuna, Mawayana, Xeréu, Tiriyó e Wapichana pa-
recem ter sido transformados pelo contato forte e frequente
entre esses povos. E as trocas de objetos entre eles foram do-
cumentadas desde o século XIX.
O geólogo britânico Barrington Brown (1876, 1878) encon-
trou em 1870 os Taruma, Wapichana e Mawayana voltando de
uma “expedição comercial” com os Wai Wai, que, sem contato
com os brancos, obtinham mercadorias  – como ferramentas,
panos e miçangas – trocando-as por seus raladores de man-
dioca e cães de caça com esses grupos vizinhos.
Outro aspecto, desta vez mencionado por Dom Eggeratt,
esclarece um pouco do gosto dos Wapichana e de tantos outros
povos indígenas pelos cachorros, animais que vieram com o
colonizador para o Brasil. “Cães de caça existem e são muito
estimados [...] têm fama de criadores intelligentes os índios
Macuchis e os Uapichanas” (1924, p. 42).
Coudreau referiu-se no ano 1887 à rede de trocas dos Wai
Wai ao norte com os Wapichana, os Atorai e os Taruma, ao leste
com os Pianokoto (Tiriyó), e nos rios Trombetas-Mapuera com
os Mawayana e os Xerew, entre outros. Cuthbert Cary-Elwes
60 ¦ TYZYTABA’U

também narrou acerca das atividades comerciais dos Wai Wai


com os Taruma e os Wapichana (Colson; Morton, 1982).
Como encontramos apenas uma bolsinha de couro que es-
tava para desinfecção classificada como Wapichana no museu
do Índio do Rio de Janeiro, e a maior parte dos objetos clas-
sificados como Wapichana estava no SEE no Rio de Janeiro,
incluímos em nossas entrevistas com os Wapichana a exibição
das fotos por nós lá realizadas.
Valentino de Souza é morador, rezador e artesão da comu-
nidade Marupá. É bastante procurado para curar seus parentes.
Trabalha na roça, pesca e faz artesanato. Conhece muito a
língua Wapichana e lembrou de muitos nomes de objetos e
detalhes da cultura: como pintavam, os tipos de trançado, para
que usam cada objeto e os nomes de tipos de maniva. Ele foi
um dos entrevistados que muito compartilhou de seus co-
nhecimentos sobre os objetos e padrões gráficos Wapichana.
Incluímos nas entrevistas realizadas com ele a exibição dos
desenhos de Koch Grünberg organizados em 1982 pelo arqui-
vo do setor indigenista da Diocese de Roraima. A maior parte
dos nomes dos objetos foi transcrita na língua Wapichana pelo
professor Frank das Chagas Silva, seu filho.
No próximo capítulo discutiremos como os objetos ainda
aparecem nos rituais e também no cotidiano Wapichana. Cabe
esclarecer que nosso olhar que interpreta esses usos tem base
em estudos da antropologia da arte, observando o poder que
determinados objetos, nomes e imagens vem tendo entre os
Wapichana.
Entre as tramas da vida Wapichana
e de seus objetos no Setor de Etnologia
e Etnografia do Museu Nacional

Embora um artesão individualmente seja responsável por tran-


çar uma determinada sílaba gráfica, usando para isso do seu
talento e habilidade individual, a concepção artística e estética
daquela obra não é fruto de sua criatividade individual, mas
advém de uma criação coletiva, a qual não se limita, neste caso,
à mera soma de contribuições individuais (Baptista, 2004, p. 17).

Quando falamos cultura Wapichana ou objetos Wapichana,


buscamos fazê-lo a partir das relações e processos vividos por
essa sociedade, de modo dissociado ao sentido colonialista, que
segundo Marshall Shalins, poderia ser um modo intelectual de
controle. Não desejamos “[...] ‘encarcerar’ os povos periféricos
em seus espaços de sujeição, separando-os permanentemente
da metrópole ocidental progressista”. O antropólogo chama
atenção para os riscos que determinada ideia de cultura pode
trazer. “[...] por conspirar para a estabilização da diferença, le-
gitimaria as múltiplas desigualdades” (1997, p. 2). Assim como
o autor, repudiamos a ideia de cultura associada à dominação.
62 ¦ TYZYTABA’U

Homi Bhabha trata das diferenças e transvalorações entre


culturas.

As diferenças na cultura e no poder são constituídas atra-


vés das condições sociais da enunciação: a cesura temporal,
que é também o momento historicamente transformador,
em que um entre-espaço se abre no intervalo da intersubje-
tiva “realidade dos signos... destituídos de subjetividade” e o
desenvolvimento histórico do sujeito na ordem dos símbolos
sociais. Esta transvaloração da estrutura simbólica do signo
cultural é absolutamente necessária para que na renomeação
da modernidade se dê aquele processo da agência ativa da
tradução - o momento de “construir um nome para si”, que
emerge através da indecidibilidade... [em ação] em uma luta
pelo nome próprio dentro de uma cena de endividamento ge-
nealógico” (2003, p. 334).

Como vimos afirmando, a língua Wapichana vem sendo ele-


mento fundamental de autoafirmação e de propagação desses
conhecimentos coletivos. E assim como a língua, são também
os objetos Wapichana com sua beleza e força, como o que para
Baptista: “constitui uma herança cultural que se reproduz e se
recria através daquele(s) indivíduo(s)” (2004, p. 18).
No decorrer da história, ora consideraram a força de tra-
balho empregada na produção dos objetos, ora a escassez ou
a fartura do objeto e dos materiais para produzir, ora o valor
cultural e simbólico do objeto; assim, ora o objeto circulava
em sistema de troca, ora de compra e venda. Em cada perío-
do histórico e nos diferentes contextos, os objetos tinham sua
vida conduzida de determinada forma. E, na relação com ou-
tras culturas, os valores variam também. Por exemplo, o que
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 63

funcionava como sistema de trocas virou compra-e-venda,


alguns artistas indígenas que eram “anônimos” passaram a
participar de exposições em ambientes urbanos.
Estudiosos de cultura material refletiram sobre esses pro-
cessos de transferência de sentidos e valores dos objetos, leis
de mercado, temporalidades, lógicas, mundos de artesãos e
de artistas:

Objetos de “cultura material” - que no contexto tradicional


tinham, freqüentemente, valor espiritual - são re-espiritualiza-
dos (em termos ocidentais) como objetos estéticos, ao mesmo
tempo em que são submetidos às leis do mercado do mundo
da arte. Como suas produções ficam emaranhadas na lógica do
mercado, alguns dos que foram ou deveriam ter sido artesãos
nativos, são transformados em artistas no sentido ocidental
do termo (Stocking, 1985, p. 9).

Inclusive, certos objetos, mesmo depois da entrada do di-


nheiro nas comunidades indígenas, conseguem continuar a
viver um sistema de troca. Antigamente tinham que viajar,
muitas vezes em território inimigo, para levar os melhores
produtos que aquele povo poderia fazer. Assim os processos
de comunicação entre povos espalham ideias e novidades de
interesse geral.
Como os objetos Wapichana que encontramos estavam no
SEE30, em primeiro lugar buscamos informações nos livros de
Registro Antropologia e Etnologia, organizados por Roquete
Pinto em 1906, que naquele período trabalhou o mapeamen-
to das peças com enfoque mais geográfico do que étnico. Essa

30
  Do século XIX ao XX, o Museu Nacional recebeu e adquiriu 40.000 peças.
64 ¦ TYZYTABA’U

informação é importante para saber que houve, muitas vezes,


apenas a sugestão de que era uma peça Wapichana.
O Museu Nacional nomeou e classificou esses objetos como
dos: “Índios do Rio Branco”; outros dos: “índios da Guiana
Inglesa”; outros dos: “índios da Guiana Brasileira”. Por isso fi-
zemos o exercício de acompanhar a vida desses objetos lá e cá.
Com o detalhe de que as informações da Guiana foram obtidas
no Brasil, com os Wapichana de lá que vivem aqui atualmente.
Para iniciar a pesquisa, no dia 17 de dezembro de 2013 ti-
vemos uma reunião com o professor João Pacheco de Oliveira,
que coordena o setor desde 1998 e cogitamos a possibilidade
de listar os objetos Wapichana, fotografá-los, buscar documen-
tos associados a eles, com o interesse de imprimir essas fotos
e mostrar para os tyzyaba’u ‘trançadores’ identificarem e des-
creverem em língua Wapichana seus sentidos. Expliquei que
priorizaríamos quem ainda sabia fazer, conhece sua história
e o que mais lembrassem a respeito. A partir dessa contex-
tualização em relação à aproximação com o Museu Nacional
decidimos refletir sobre os sentidos de museu e de como a
relação dos povos indígenas com essa instituição foi modifi-
cando no decorrer do tempo.
João Pacheco de Oliveira definiu, sem necessariamente
diferenciar ainda questões específicas aos museus indígenas,
que “um museu é uma cidade de objetos, de imagens, de men-
sagens. Pessoas e coletividades estão ali apenas representadas
[...]”. Para ele um museu divide os que olham as vitrines e per-
correm as salas, na maior parte das vezes brancos e urbanos; e
os que lá estão representados e são objeto desse olhar. Os últi-
mos não estão apenas nas vitrines, mas: “possuem uma conexão
com identidades presentes, pois freqüentemente participam
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 65

de coletividades vivas e existentes fora daquele contexto, em


processo de autodefinição e autoconstrução (inclusive de sua
cultura)” (2007, p. 96).
E o autor continua: “Por meio de suas salas e galerias um
museu presentifica coletividades que não estão lá, lhes atribui
sentidos, valores e intenções”. Oliveira considera que quando
os objetos e os conhecimentos saem das comunidades, seus
usos rituais e cotidianos transformam-se e são colocados: “arti-
ficialmente em exemplificações de entidades abstratas (o povo
x, a cultura y, a sociedade z), desvinculadas da praxis histórica
e engessadas dentro de um processo em que a criatividade e a
variação não podem ser refletidas” (Pacheco de Oliveira, 2007,
p. 96). Assim, o antropólogo continua pensando o museu de
forma mais ampla, mas é possível refletir, a partir dessas ideias,
acerca de questões das relações dos povos indígenas com seus
objetos etnográficos.

Por um lado as iniciativas museológicas correm sempre o risco


de vir a constituir-se em intervenções técnicas de natureza
classificatória, que tem como domínio próprio uma mimesis
de coletividades ausentes; por outro lado consagra uma rela-
ção de exclusão de natureza essencialmente política (Pacheco
de Oliveira, 2007, p. 96-97).

Além das trocas e apropriações vividas entre os povos, os


objetos Wapichana foram levados para os museus por viajan-
tes, militares, religiosos e etnógrafos31. Alguns foram parar na

  Buscamos informações sobre quem tinha “ofertado” ao Museu Nacional os obje-


31

tos que fotografamos: S. M. Azevedo Barroso Bastos (presidente de província, 1884),


Coleção Heliodoro Jaramillo Taylor, coleção Gastão da Cunha (embaixador em 1830),
Visconde de Santo Elias (Elias José Santos da Silva, Visconde por Portugal, o mais
rico dos seringais da região Norte), Coleção Rondon (Tenente Paes de Andrade e
66 ¦ TYZYTABA’U

Alemanha, outros na França, Bélgica, Inglaterra e outros no


Museu Nacional no Rio de Janeiro. E mais recentemente foi
iniciado um movimento de alguns povos africanos e indígenas
buscarem esses objetos para ressignificá-los.

Isso não envolve simplesmente uma questão da propriedade


ou da posse do “bem cultural”, mas também de quem deve
controlar a representação do significado dos objetos na clas-
sificação ocidental de “cultura material”. Ainda que ele possa
ser corretamente considerado como uma “invenção” da cultura
ocidental, o museu não é mais exclusivamente uma instituição
preservadora euroamericana (Stocking, 1985, p. 15).

Os povos indígenas, antes tratados pelos museus como


objetos, passaram a criar seus próprios museus, tornando-se
curadores e solicitam a repatriação de suas coleções. Esses mu-
seus funcionam tanto como lugar de exposição pública, como
centro cultural ligado a tradições em curso (Clifford, 1993).
Em muitas ocasiões, os objetos fruto do artesanato
Wapichana são emblemas de sua identidade étnica na atua-
lidade. Inclusive eles expõem os objetos artesanais, histórias
ilustradas e escritas na língua Wapichana para enfeitar as
escolas indígenas e as festas, reuniões e demais eventos que
realizam. Não existe ainda exposição de objetos etnográficos,
ou um museu indígena em Roraima32, mas consideramos que

Pimenta Bueno), Dr. Aurelino Leal, Marquês de Paranaguá (tinha privilégios porque
a Princesa Isabel jogou brinquedo que cegou sua filha), D. Pedro II, E.H. Snetllage
(1935), Dom Alcuino Meyer (Monge Beneditino, 1937).
32
  Há em Boa Vista uma galeria que expõe arte indígena contemporânea: pinturas
a óleo e acrílica em tela e em alguns objetos do artista Jaider Esbell, Macuxi que dá
nome ao espaço. Ele iniciou recentemente esse movimento e passou nos últimos
anos a agregar à sua exposição obras de outros pintores e artesãos indígenas. E o
Museu Integrado de Roraima, localizado no parque Anauá, que está abandonado
desde 2010.
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 67

seria uma boa estratégia para desconstruir os preconceitos


contra os povos indígenas no estado.

Paradoxalmente, entretanto, aqueles objetos são, ao mesmo


tempo, atemporais - removidos da história por curadores,
que procuram (entre outros fins) preservar os objetos na sua
forma original, num processo legítimo de sua incorporação.
Removidos, contudo, de seu contexto original no espaço e no
tempo, e re-contextualizados em outros que buscam ou não
recriá-los, o significado das formas materiais preservadas nos
museus é sensivelmente problemático. Essa é quase sempre a
regra, uma vez que os objetos observados por espectadores de
museus são “sobrevivências” não só do passado do qual a co-
leção arrancou-os, mas de passados longínquos, no qual o ato
de exibição os identificou (Stocking, 1995, p. 6).

Desde o ano 2000, com a inauguração da política do pa-


trimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), a questão da sobrevivência dos
objetos fora dos museus começou a receber atenção. Ela tem
relação direta com o saber colher os materiais necessários para
confeccionar, fazer e ensinar essa arte aos jovens. E nesse pro-
cesso os poderes simbólicos dos objetos são fundamentais na
construção do sentido e no valor dado a essa arte.
Boaventura de Souza Santos considera que o museu é o
lugar que deve revelar aquilo que uma parte do país não quer
lembrar, mas que outra não pode esquecer. Para o sociólogo
“são choques de memória entre aqueles que não podem esque-
cer e os que não querem lembrar. Esta confrontação, que não
é política, mas também cultural, exige que se construa outro
tipo de memória” (Santos, 2008, p. 2).
68 ¦ TYZYTABA’U

Pacheco de Oliveira considera que os museus podem ser


muito úteis para os indígenas que sofreram uma série de ações
contra seus valores, suas tecnologias, seus conhecimentos.
“O museu é um instrumento poderoso para inculcar e reforçar
demarcações identitárias, recusando o preconceito e a invi-
sibilidade com que tais coletividades são tratadas em outros
contextos” (Pacheco de Oliveira, 2007, p. 95). O antropólogo,
por outro lado, observou que:

Há uma relação de suspeição porque os museus detêm um


poder muito temível – o de classificar as coletividades vivas,
instaurando um processo de identificação que lhes é exterior
e escapa ao seu controle, embora dotado de alta visibilidade e
legitimidade social. Essa é uma questão da maior relevância na
agenda política dos povos indígenas no Brasil, pois associada
ao tema da terra aparece a questão legal e administrativa do
reconhecimento de pessoas e coletividades como indígenas
(Pacheco de Oliveira, 2007, pp. 95-96).

Encontramos similaridade entre as preocupações de


Marshall Sahlins (1997) e as de João Pacheco de Oliveira (2007).
Nossa proposta de perceber as mudanças na vida dos objetos
Wapichana é independente dos que pretendem negar iden-
tidades por identificar o que está ausente, usando questões
culturais para deslegitimar o que significa ser indígena na
atualidade. Nosso foco aqui é a reconstituição da história de
vida desses objetos a partir das falas dos entrevistados e de
outros documentos.
Leonel Kaz quando escreveu sobre educação e museu disse
que museu é o lugar onde “ninguém precisa ser prisioneiro
dos preconceitos do mundo. Museu é onde a cultura aponta à
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 69

educação que tanto um como o outro foram feitos para rein-


ventar o modo de ver as coisas” (2013, p. 1).
Pensamos museus como processos contínuos de constru-
ção de uma “memória protética”, que pode emergir em uma
sala, no momento do contato, quando ocorre uma experiência
pela qual a pessoa se liga a uma história maior, provocando a
emergência de uma reconexão com o passado. A “prótese” vai
além do caráter educativo de aprender sobre eventos e fatos do
passado, mas assume um caráter de memória pessoal e vívida
de um evento que a pessoa não viveu. Para Landsberg (apud
Erll, 2011), a memória protética tem a capacidade de moldar
a subjetividade e a política de uma pessoa.
Percebemos que muitos dos Wapichana que ainda guardam
o saber fazer artesanato são falantes da língua e contadores de
suas histórias. Supomos então que o falar a língua Wapichana,
memorizar as histórias e o saber fazer esses objetos têm estrei-
ta relação. Há ainda jovens artistas indígenas criando obras,
ocupando salas de exposição em outros estados e países, além
de estarem demarcando telas também na rede mundial de
computadores.
O antropólogo Edmundo Pereira (2012) observou que com
o povo indígena Uitoto, a hora de contar histórias é a mesma
do fazer artesanato. Os Ye’kwana também têm o hábito de tecer
e contar. Assim percebemos que os saberes e fazeres culturais
muitas vezes são associados uns aos outros e podem assim
potencializar-se.
João Pacheco de Oliveira afirmou que “temos que relativizar
os nossos enunciados, praticando paralelamente um movimen-
to de “metarreflexão” e buscando como chave de compreensão
70 ¦ TYZYTABA’U

a conformação de nossa condição de observador e de nossos


vínculos com o observado” (Pacheco de Oliveira, 2007, p. 99).
O antropólogo considera que quando damos valor posi-
tivo a algumas produções indígenas, “transformando-as em
objetos típicos e inclusive merecedores de uma apreciação es-
tética, caminhamos por um estreito despenhadeiro, correndo
o risco de esquecer, minimizar ou recusar outras produções”
(Pacheco de Oliveira, 2007, p. 96).
O pesquisador alerta para o fato de que, ao legitimar um
modo de fazer um objeto, pode-se recusar outro. E essa auto-
ridade do museu pode ser perigosa, esse exercício pode incluir
equívocos e injustiças.

Se no passado os museus e as exposições etnográficas foram


engenhos dotados de dispositivos acrônicos, que visam supri-
mir distâncias físicas e temporais, promovendo um encontro
– lógico, integrador e tranqüilizador – do seu público com o
que lhe é díspar e diferente, os desafios da atualidade recomen-
dam justamente enveredar pelo caminho inverso (Pacheco de
Oliveira, 2007, p. 97).

Coletividades que no passado deixaram de ser reconhecidas


como indígenas, “enquadrados pelas autoridades administra-
tivas do século XIX na condição de ‘misturados’, hoje retomam
suas demarcações identitárias e investem na reconstrução de
sua cultura”. Portanto uma “autenticidade”, “seja de objetos,
imagens ou padrões de comportamento, deve ser abandona-
da em benefício de um exercício múltiplo e continuado de
contextualização, da compreensão da variabilidade e muta-
bilidade das formas sociais dentro de cada grupo” (Pacheco
de Oliveira, 2007, p. 97).
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 71

As tradições orais indígenas continuam, mesmo com as ten-


tativas contínuas de apagamento, a ser métodos educacionais
que sobrevivem pela força da palavra milenar, irrrompendo as
barreiras impostas pela colonialidade. A palavra assim como
a magia é capaz de (re)criar mundos possíveis. Pelas línguas
indígenas, dentre outras linguagens, esses povos continuam
estabelecendo um léxico de resistência.
Há histórias que, do ponto de vista de seus narradores,
realmente aconteceram. No entanto, quem interpreta de fora
às vezes rotula como mito. Assim como a verdade não é uni-
versal, são também as formas pelas quais ela pode ser contada.
Muitas narrativas são verdadeiras do ponto de vista de cada
povo indígena, “tão verdadeiras como considera-se a indepen-
dência do Brasil”, por exemplo (Cesarino, 2015, p. 9).
E João Pacheco de Oliveira complementa sua reflexão
afirmando que: “é necessário um esforço para sair da pura es-
tetização do outro, fornecendo ao contrário todos os elementos
necessários para que o público real (heterogêneo e contraditório,
incluindo os antigos sujeitos da ação colonial) possa atingir
uma compreensão efetiva”. Se faz urgente entender o porque
aquelas pessoas e coletividades se apresentaram daquela, e não
de outra maneira (Pacheco de Oliveira, 2007, p. 98).

É importante atentar não só para o contexto de produção dos


objetos e imagens que compõem a etnografia, explicitando
a relação colonial que freqüentemente ali se expressa, como
também para o resgate da polifonia, dando voz – e não apenas
valor estético – aos membros daquelas coletividades (que em
geral são apenas observadas pelo público e traduzidas pelos
etnólogos). Avançar por esses novos caminhos exige rupturas
72 ¦ TYZYTABA’U

teóricas (com o abandono de velhos paradigmas) e também um


compromisso político (em tornar o público melhor informado
e mais crítico) (Pacheco de Oliveira, 2007, p. 97).

Embora importantes, não podemos imaginar que vamos


assistir à mudança de paradigmas de maneira passiva e fácil,
precisamos modificar a relação que os museus e exposições
etnográficas mantêm com seus visitantes. “O estudo das co-
leções deve ser combinado com a etnografia e a pesquisa de
fontes históricas, devendo tais produtos vir a ser expostos aos
olhos e à voz das populações atuais, que descendem daquelas
de que tais materiais falam” (Pacheco de Oliveira, 2007, p. 98).
Nessa direção, iniciamos nosso trabalho buscando os obje-
tos Wapichana e tentando ouvir informações dos Wapichana
sobre eles, para colaborar na elaboração de um projeto de ex-
posição com esse povo, sua língua e seus objetos.
Assim, a memória narrativa apoiada na semântica (pala-
vras) e simbologia (imagens), vem adaptando-se e mudando
ao longo do tempo. Essa memória narrativa pode ser expan-
dida de acordo com os contextos permitindo que as pessoas
se tornem mais conscientes de sua experiência.
Portanto, com os recursos que possuímos, precisamos lutar
para que “as populações observadas possam exercitar suas
memórias e conhecimentos, publicizando assim as ‘outras
histórias’ que constroem”. Para Pacheco, “esse é o compromis-
so político que antropólogos, curadores e museólogos devem
adotar” (Pacheco de Oliveira, 2007, p. 98).
Buscamos e tivemos dificuldades em reconstituir a histó-
ria de quem levou o material ao Museu Nacional, local no qual
fizemos as fotos. Essa memória ainda não está acessível e or-
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 73

ganizada, conseguindo apenas situar algumas informações33.


Em 1939, Dom Alcuino Meyer, em uma correspondência, fez
referência a objetos etnográficos muito bonitos. “Deixei-os em
certos pontos para dahi serem remetidos a Bôa Vista, quando
houver portador e oportunidade” (carta de 14 de dezembro,
arquivo do Mosteiro de São Bento). Em outra carta, mencio-
nou ter coletado amostras de minerais e “instrumentos de
pedra polida dos antigos índios” (1939, p. 82) e, prosseguindo,
“trouxe uma quantidade de artefatos indígenas: arcos, flechas,
zarabatanas, curare (e cuamaluá), cuidarús, tangas, cestos de
toda qualidade”.
Iniciamos nosso trabalho no SEE buscando os objetos
Wapichana, fotografando-os e tentando, a partir dessas ima-
gens impressas, ouvir informações dos Wapichana sobre eles
nas línguas Wapichana e portuguesa.
Trataremos aqui os objetos como pessoas (Gell, 1988) e seus
vários usos e funções como formas de interação social interna
e externa às comunidades Wapichana. Assim buscamos com-
preender em profundidade os sentidos dos padrões gráficos,
das formas de trançar e de tecer. Assim como buscaremos as
histórias de cada objeto etnográfico Wapichana fotografado,
historicamente descrito, que continuam ou não a ser usados
nas comunidades indígenas da Região Serra da Lua e na me-
mória dos entrevistados.
O conceito de arte se refere “[...] à capacidade consciente e
intencional de produzir objetos e ao conjunto de regras e téc-

33
  Averiguamos que as peças que chegaram via Dom Alcuino Meyer, por exemplo,
foram impedidas, por Heloisa Alberto Torres (membro do Conselho de Fiscalização
de Exportação Artística e Scientífica do Brasil (Doc. 27537) de sair do país em gran-
de quantidade. Assim, parte da remessa que ele enviaria à Suiça ficou confiscada
no Museu Nacional (RJ).
74 ¦ TYZYTABA’U

nicas que o pensamento usa para representar a realidade e agir


sobre ela” (Lagrou, 2009, p. 69). Olharemos com essa especi-
ficidade para os objetos indígenas. Assim, em vez de buscar o
que alguns estudiosos no passado sentiram falta, invertemos
essa perspectiva de leitura das artes Wapichana, olhando para
o que e como vem se transformando no decorrer do tempo.
Retiramos o peso da definição de arte na tradição ociden-
tal, histórica e institucional, pois percebemos que os objetos
Wapichana surgiram porque os artistas indígenas os criaram
e assim transformaram os materiais usados e o mundo. Nessa
perspectiva, passado e presente coexistem, assim como os
mundos ocidentais, no Brasil, na Guiana, regional, Macuxi,
Wapichana e o de outros povos indígenas também.
Começamos então a rememorar, reescrever e recriar a his-
tória, indo além do que Benjamim (1987) aponta em relação a
escrever a história a contrapelo. Há rupturas históricas provo-
cadas pelo colonialismo que abriram frestas que não podem
ser recuperadas e em alguns casos somente de maneira ima-
ginativa podem ser preenchidas.
Os artistas e os falantes da língua Wapichana são mediado-
res entre tempos e mundos. Em diferentes períodos e lugares
recriaram conhecimentos que receberam de seus ancestrais
e dos espíritos. Assim as artes como a memória, a língua e os
conhecimentos Wapichana afetam sua imaginação e suas in-
tenções sociais atuais.

A ZA’APUN ‘TANGA’ DE KAXURU ‘MIÇANGA’ E OS


SAADKARIWEINAU ‘DESENHOS’ WAPICHANA

As miçangas tecem caminhos pelo mundo. Esses caminhos


contam histórias de fascínio mútuo entre povos distintos, falam
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 75

do comércio e da exploração, do encontro e do desencontro


de perspectivas entre viajantes e nativos. Enquanto o coloni-
zador julgava estar trocando quinquilharias contra preciosas
matérias primas, a maioria dos povos nativos desejavam muito
essas contas, vindas de ultramar34.

No SEE (RJ) vimos grande quantidade de objetos feitos


com miçanga e supomos que os Wapichana tenham passado
a usar miçangas desde quando esse material entrou nas co-
munidades pelas mãos do colonizador.
Na atualidade usam kaxuru ‘miçanga’ de todas as cores
para fazer pulseiras, colares, chaveiros zoomórficos e bonecos
de miçanga. A tanga (ficha 239), quando foi mostrada a Meire,
Wapichana da comunidade Malacacheta, disse ter visto uma
similar no Museu que visitou em Manaus.

O uso das missangas é necessariamente o resultado do inter-


cambio com o civilizado, mas adaptou-se aos costumes originaes
com felicidade rara, tal a maestria, com que as empregam as
índias, tal o gosto artístico que elas revelam [...] as cores prefe-
ridas são o branco, o vermelho e o azul (Eggeratt, 1924, p. 43).

Na atualidade, de modo geral, todos os Wapichana andam


vestidos com roupas parecidas às dos regionais. Porém, no
período observado pelo religioso, ele documentou que “a ves-
timenta é tanto mais simples, quanto mais afastado o índio
vive dos nucleos civilisados até desapparecer por completo.
A tanga é feita pela própria mulher e varia nos seus tamanhos”
(Eggeratt, 1924, p. 43). Atualmente a forma de se vestir foi de

  Catálogo da exposição “No caminho da miçanga: um mundo que se faz de con-


34

tas”, Museu do Índio RJ, 2001).


76 ¦ TYZYTABA’U

fato substituída e as “vestes antes tradicionais” são adaptadas


e usadas apenas para apresentações culturais.
O religioso narra mudanças culturais que já aconteciam
naquela época. Percebemos na atualidade como as artes in-
dígenas são lembradas e passam a fazer parte de momentos
construídos para seu uso. São situações criadas para que o
passado relampeje no presente da forma atualizada e desejada.
Madalena da Silva, Wapichana, moradora da comunidade
Wapun, ao ver uma das fotos disse que za’apun significa ‘tanga’.
E Jonas de Oliveira disse: “Já vi nos livros a tanga de miçanga”35
e afirmou que não sabia o significado dos desenhos. Lembrou
que seu tio Galdino costuma trançar arumã naqueles forma-
tos. A imagem que Jonas viu em livro pode ter sido no de Roth,
pois mostramos o livro que temos em formato digital a ele e
demonstrou conhecer o material.
Muitos anos antes do período recortado por essa pesquisa,
Coudreau observou mais de uma vez em seus relados de campo
que, sob as roupas, os Wapichana guardavam suas tangas e
colares de contas. Chamavam a roupa de kashoro ‘miçangas’,
‘contas’ dos brancos. Portanto na época a roupa poderia signi-
ficar enfeite. E Coudreau observou uma relação curiosa com
essas vestimentas, “nada guardando da civilização a não ser a
calça e a camisa” (1887, p. 74-75).
Segundo o geógrafo francês, por volta do ano 1888, apenas
os “enfeites” da “civilização” eram guardados pelos Wapichana.
A relação com os colonizadores foi ficando mais intensa e
atualmente há uma coexistência que oprime e faz com que ele-

  Entrevista realizada no dia 24 de agosto de 2014.


35
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 77

mentos de origem externa ganhem mais espaço do que o uso


das vestes e artefatos Wapichana nas comunidades indígenas.
Há, inclusive, em muitos casos, vergonha em vestir-se com
saia de palha para dançar Parichara. Algumas igrejas procuram
disseminar certos hábitos na população com proibições tanto
de vestir as vestes Wapichana, quanto de dançar, pois desejam
que esse sistema seja esquecido e substituído.

O corpo se torna artefato conceitual e o artefato um quase corpo


e que os caminhos seguidos por corpos e artefatos nas socie-
dades vão se assemelhando cada vez mais. Outro resultado é
que funcionalidade e contemplação se tornam inseparáveis,
resultando a eficácia estética da capacidade de uma imagem
agir sobre e, deste modo, criar e transformar o mundo. Se a arte,
a nossa e a dos outros, fascina, é porque não podemos nunca
parar de sonhar a possibilidade de criar novos mundos. Esta
possibilidade da coexistência e sobreposição de diferentes
mundos que não se excluem mutuamente é a lição ainda a ser
aprendida com a arte dos ameríndios (Lagrou, 2007, p. 105).

Assim os corpos, as roupas, os padrões gráficos em dife-


rentes suportes e com o uso de diversos materiais evidenciam
a possibilidade dessa coexistência e permanência do que é
essencial para o povo, tal como acontece a continuidade da
prática do artesanato e da fala na língua Wapichana.
Atualmente, em algumas situações observadas, os
Wapichana usam as roupas sem refletir sobre o que nelas está
estampado, fazendo sem querer propaganda de produtos e até
de políticos, quando são fotografados e filmados. Em outras
vezes, encomendam camisetas homenageando pessoas impor-
tantes na comunidade, lideranças que já se foram e divulgam
78 ¦ TYZYTABA’U

seus eventos culturais. Percebemos que quando a produção


fotográfica ou audiovisual é realizada pelos indígenas, pres-
tam mais atenção a essas questões.
Em relação às tangas de miçangas, Casimiro Cadete, no
dia 10 de setembro de 2014, na comunidade Canauanim, disse
que seu irmão Andrade fazia aqueles desenhos que aparecem
nas tangas no trançado em arumã. Que ele pintava com talo
ou com breu, ou com o sujo da panela. Ouvimos o mesmo de
outros artesãos que também possuem essa habilidade, em re-
lação a esses padrões trançados.
Na entrevista com Valentino de Souza, artesão da comuni-
dade Marupá, ele explicou que as tintas eram produzidas com
na’ib ‘resina de jatobá’ e era necessário queimar a resina com
raspa da casca de ingá para obter a cor preta e pintar o arumã
de preto no trançado.
Algumas vezes, principalmente no passado, os desenhos
assumiram função de língua que escrevia “o verdadeiro”. E as
imagens desenhadas, pintadas, trançadas ou tecidas possuíam
estreita relação com a vida e com a simbologia Wapichana, de
modo parecido com o que Lagrou escreveu sobre os Kaxinauá:

Se os Kaxinauá e outros grupos de língua pano, além dos Piro


e Wauja, ambos Arawak, usam termos diferentes para con-
ceitualmente distinguir grafismo e figura, enfatizando, desta
maneira, o caráter não representacional do primeiro e compa-
rando-o com a escrita dos brancos, outros grupos só conhecem
um conceito para designar desenho. Este é o caso dos Wayana,
dos Waiãpi e Asurini (Lagrou, 2007, pp. 97-98).

Também na língua Wapichana, saadkariwiei significa ao


mesmo tempo ‘desenho’ e ‘escrita’. Os Wapichana usam a
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 79

mesma palavra para os atos de escrever e de desenhar. O pa-


drão gráfico presente na tanga abaixo é réplica de pele de cobra,
como um Wapichana da comunidade Raimundão I (Região
Taiano) nos falou e mostrou uma foto em seu celular compa-
rando com a que projetamos no telão em oficina de extensão
com sua comunidade. Em outros desenhos, as formas podem
ser metáforas de caminhos entre mundos. Os desenhos tam-
bém podem ser caminhos traçados como mapas de percurso,
para não se perderem durante as caçadas.
Franz Boas (1955) afirmou que uma mesma forma pode ter
diferentes significados, sendo a forma constante e as interpre-
tações variáveis entre povos e pessoas. Cada “categoria visual”,
que configura um “sistema gráfico”, pode compor combinações
dentro de complexa padronagem, incluindo expressões sim-
bólicas e funções mneumônicas. Importa acrescentar que Els
Lagrou tratou da relação Kaxinauá com seus padrões gráficos:

Já entre os Kaxinauá, as referências são de natureza mais abs-


trata: não somente todos os motivos gráficos se encontram na
pele da anaconda primordial, mas essas marcas representa-
riam também entradas ou portas para visualização de todas
as possíveis figuras que finalmente levariam à revelação dos
seres sobrenaturais. Os desenhos são caminhos, traços, indí-
cios desse poder imagético do qual a cobra primordial é dona,
através dos desenhos ou das visões (Lagrou, 2007, p. 98).

Dizem os Wapichana que foram das cinzas de Oropiro


‘enorme cobra’ que eles vieram (Farage, 1997). Na atualida-
de, Terêncio Salomão Manduca contou que “o garimpo que
acontece na Terra Indígena Jacamim está destruindo Urupiru”
(Entrevista em setembro de 2015). Portanto essa referência de
origem anda fortemente ameaçada.
80 ¦ TYZYTABA’U

Essas formas, tais como as da serpente primordial, repre-


sentam o ser e os níveis de consciência humana, sendo esses
conhecimentos das artes, transmitidos na língua Wapichana,
difíceis de traduzir. O ato de ver é dinâmico e a percepção
viaja entre dia e noite, vigília e sonho. É de se notar que o pa-
drão gráfico, referência importante, tem relação direta com o
pensamento.
A cada transformação, muda também a expressão e a forma
de ver. São muitos mundos simultâneos, presentes e em con-
tato. “O papel da arte seria, portanto, o de comunicar uma
percepção sintética dessa simultaneidade das diferentes rea-
lidades”. E essas nem sempre são perceptíveis a todos (Lagrou,
2007, p. 93). Nós diríamos que o papel da língua Wapichana
com sua lógica diferenciada, na conexão entre esses conheci-
mentos, também é fundamental.
Curt Nimuendaju, em seu manuscrito Etnografia selvagem
(1948, p. 1), referiu-se a “tatuagem: não forma critério muito
seguro: na região do Rio Uraricuéra, por ex., a tatuagem femi-
nina nos cantos da boca em forma de dois anzóes encontra-se
nos Makusí (Karib), Wapicána (Aruak) e Sirianá (tribo primi-
tiva de língua isolada)”. Portanto, como acontece ainda hoje,
há padrões gráficos com usos compartilhados pelos povos.
Fritz Krause (1911) constatou que, entre os Karajá, o desenho
derivava dos padrões geométricos provenientes do trançado. Os
Karajá sempre respondiam a ele hoadjudju ‘trançado’ quando
ele perguntava o significado dos padrões gráficos. E, muitas
vezes, o que nos pareceu geométrico e abstrato nos padrões
Wapichana, é figurativo e tem conteúdo semântico enraizado
na vida, nas músicas e nas histórias desse povo.
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 81

Dentre os padrões usados pelos Wapichana, Valentino de


Souza e Terêncio Salomão Manduca lembraram o charawaid
kaxuwad danid ‘broto de taboca’, kankuryn ‘escorpião’ e puaty
zykaritan ‘macaco pula’, desenhos que aparecem tanto em ob-
jetos de miçanga, em cestas, como em peneiras.
Encontramos nas falas dos entrevistados palavras que
abordam uma relação desses objetos tanto na sua materiali-
dade quanto imaterialidade, relacionados com a vida em seus
vários planos.

OBJETOS WAPICHANA DE BURITI E ARUMÃ

Um dos objetos etnográficos que fotografamos no Museu


Nacional, foi uma sandália enviada para lá por Dom Alcuino
Meyer. Muitos(as) entrevistados(as) disseram já terem visto
essa espécie de chinelo. Anastácio de Souza nos contou que o
“finado Pedro fazia a sandalinha de buriti, trança ali, trança
ali”. Ana, mãe de Anastácio, também da comunidade Marupá,
afirmou que tinha visto uma sandália feita assim. Ela acres-
centou “pararam de fazer porque chegou a sandália do branco
e quando viam o chinelo de palha, ‘malinavam’. Não tinha di-
nheiro para comprar havaiana”. E riu.
Jonas de Oliveira relatou: “minha avó Wapichana, da parte
da minha mãe, usava chinelo de buriti”.36 E Alderísio Silva
contou ao pesquisador Heleno Montenegro (2016) que, além
das saias, usadas para dançar o Parichara, portavam um tipo
de calçado feito de “capemba do buriti”, que era amarrado nos
pés com cordas.

  Entrevista realizada no dia 24 de agosto de 2014.


36
82 ¦ TYZYTABA’U

Hoje, a sandália de palha ficou somente na memória, to-


talmente substituída no dia a dia. Alguns grupos fazem delas
apenas para apresentações da dança Parichara nos eventos.
Há um objeto que, mesmo com as máquinas e engenhocas
inventadas, continua sendo fundamental nos processamentos
dos produtos da maniva, é o tipiti. Não conseguimos fotogra-
far no Museu Nacional, teríamos previsão para fazê-lo em
2019 junto de grande parte dos objetos de palha, cerâmica e
instrumentos musicais Wapichana que existiam lá. Nos livros
de registro identificamos mais de 250 objetos para fotografar;
desses, conseguimos documentar apenas 168.
Dom Eggerath descreve o processo de enxugamento da
massa processado pelo tipiti:

Como contenha o producto deste processo(uma massa molhada)


ainda todo o veneno, collocam-n’a depois no “tipity”, espécie de
mangueira, trançada pelos hoemens de junco Ararua, fechada
embaixo e aberta emcima para receber a massa. Dependurado o
tipity em uma das extremidades, dependuram-se na outra para
espeichal-o o mais possível, do que resulta forte compressão
sobre a massa, cujo líquido, o veneno, começa a gottejar pelos
interstícios do tecido até ficar enxuta (Eggeratt, 1924, p. 35).

O nizu ‘tipiti’ é usado até hoje para escoar todo o líquido


necessário da massa, mesmo pelas famílias com barracões com
prensa motorizada. Durante dois períodos: de 1973 a 1976, e
de 1983 a 1984, Orlando Sampaio Silva visitou comunidades
Wapichana, mencionando um “dualismo tecnológico”.
“Ao lado do tipiti, da peneira e do ralo indígena, são em-
pregadas a prensa de madeira e a máquina de ralar mandioca
movida a motor ou manual (“catitu”)” (Silva, 1980). O que evi-
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 83

dencia mais de 45 anos usando máquinas, mas continuando


a aproveitar também a tecnologia do tipiti.
Em dezembro de 2014, na comunidade Marupá, Anastácio
estava, no meio do dia, sentado no quintal trançando um nyzu
‘tipiti’, segundo ele porque o da casa de farinha deles tinha “tora-
do”37. Ele nos mostrou as diferentes formas usadas para trançar
o nizu: sukurydaku ‘dente/boca da cutia’ e madary ‘cascudo’.
Além dos tipos de trançados usados no tipiti, há também
o trançado kapaxi mad ‘escama de tatu’ e, segundo a explicação
de Valentino de Souza, na zuzuribei ‘peneira para coar caxiri’
o trançado usado é kupay waichau sabay xidau.
Anastácio já foi professor de língua Wapichana. Seu tata-
ravô foi Terêncio, pai de Braulino e de Pedro, fundadores da
comunidade Marupá Velho. Em outubro de 2015 Anastácio
nos contou sua história de vida:

Eu nasci aqui no Jacamim, até cresci aqui e depois eu fui me


batizar na Guiana, na comunidade Achawib. Eu fui e levei dois
dias pra chegar até lá para ser batizado, depois voltei a até agora
estou morando aqui. Quando eu fui me batizar eu tinha oito
anos de idade e depois eu estudei no Jacamim. Meu primeiro
professor foi Zé Maria e o Pedro. A escola foi construída em
1960, lá eu estudei até a quarta série. Depois eu casei e até
hoje estou vivendo bem. Eu já ajudei um pouquinho o irmão
Francisco Bruno a produzir um livro e fui professor de língua
Wapichana. Depois me colocaram como catequista e passei
a ensinar a palavra de Deus. Até hoje eu faço isso. Faz trinta
anos que estou trabalhando sobre a palavra de Deus na igreja

  Torado é vocábulo usado também no Nordeste do Brasil por grande parte da


37

população. Provavelmente é herança indígena.


84 ¦ TYZYTABA’U

católica. Eu tenho os livros pra deixar, dar para meus filhos


ensinarem na língua Wapichana. Tenho dois filhos que são
professores. Agora estou com sessenta anos, vou trabalhar só
nas palavras e vou escrever. Por isso construímos nossa igre-
ja e nossa escola. Eu já fui tuxaua, trabalhei vinte anos como
tuxaua. Tenho feito muitas coisas aqui na nossa comunidade
Marupá. Então é só isso.

Além do tipiti, outros objetos trançados merecem nossa


atenção, antigamente a sumbara ‘esteira’ era a mesa dos
Wapichana. Ficavam durante horas em volta dela, conversando
e se alimentando. Eles usam vários tipos de manary ‘peneira’,
uma para cada função e com determinado tipo de trançado.
Buscamos mais informações acerca das modalidades de
trançado usados na construção de outros objetos como o du-
pawai ‘jamaxim’, constatando que, na lateral, usam kawaryd,
espécie de trançado empregado em um dos tipos peneira, sendo
que, no fundo do dupawai, adotam o tipo ‘peito de jacaré’. Esse
último, segundo o artesão Valentino de Souza, é usado tam-
bém em manary ‘peneira’ para beiju, badi taunaa ‘só de um’.
Informou saber trançar o sumbara ‘esteira de palha’, para o
quê empregam o trançado yscoinhambaru.
No livro de referências do SEE, há peças identificadas como
“cesto para trazer às costas preso à cabeça”, dos Índios do Rio
Branco (8147, 8150, 8151, 8152, 8153), sendo certo que não en-
contramos a tempo o jamaxim para fotografar. Há referências
de cestas (4625 e 4626 com algodão) e paneiro (4634), no en-
tanto ficamos sem conseguir situar esses objetos na reserva
técnica antes do incêndio. Usamos então algumas imagens de
Koch-Grünberg.
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 85

Jonas de Oliveira, professor na Escola Estadual Indígena


Otávio Manduca, comentou: “eu acho que na Guiana conti-
nuam fazendo artesanato mais do que no Brasil. No Jacamim
não tem mais jamaxim, estão usando só saco de fibra agora”.38

O CHIMERY ‘RALO’

O chimery ‘ralo’, por exemplo, tem origem em áreas geográ-


ficas distantes mais de 1.000 quilômetros entre si. Primeiro
circulavam dos Waiwai para os Wapichana, após, entre os
Macuxi, posteriormente, nos Arekuna. Em um segundo período
passou a circular dos Ye’kwana, para os Arekuna, ulteriormente
para os Macuxi e, por último, para os Wapichana, sendo que
os Taurepang e Akawaio também trocavam ralos. Na atua-
lidade, entre os povos citados, os Ye’kwana são aqueles que
conseguem manter o significado e as histórias do ralo e de
seus objetos artesanais.
Conforme a especialidade, cada povo produzia um obje-
to bem definido, que era trocado por produtos que lhe eram
indispensáveis. Entravam nas trocas, sobretudo, alimentos e
quem recebia aproveitava o que não produzia. Dessa forma, a
economia entre povos funcionava e os objetos e suas signifi-
cações circulavam entre culturas diferentes.
Jonas de Oliveira39 disse que queria comprar um ralo por-
que sua filha nunca tinha visto um. Queria que ela aprendesse
a usar e conhecesse o objeto que considera importante na cul-
tura Wapichana.

  Entrevista realizada no dia 24 de agosto de 2014.


38

39
  Entrevista realizada no dia 24 de agosto de 2014, no Instituto Insikiran, UFRR.
86 ¦ TYZYTABA’U

ARMAS E ARMADILHAS

Como armas desenhadas por Koch Grünberg, Valentino


de Souza identificou sumara, sumadzaura, katanaurazun, que
são, segundo ele, tipos de ‘arco’ que quase já não se sabe fazer.
Recentemente vimos um movimento de retomada para
aprender a confeccionar os arcos e seu uso em competições
indígenas, que passam a ser cada vez mais comuns nos eventos
escolares, festas nas comunidades, universidade, chegando a
fazer parte de competição olímpica.
Nos eventos como o Festival do Beiju, realizado quase
todos os anos na comunidade Tabalascada, há competição de
flecha ao alvo.

O arco tem o comprimento médio de 1,70 a 1,80m e é feito de


madeira pezada e resistente, esculpida a golpes de machado
e depois alizada pacientemente com uma faca, occasião em
que se dá ao arco o feitio desejado: exteriormente de forma
meia lua, interiormente côncava ou chata. As extremidades
são engrossadas para evitar que a corda escorregue. Esta é
feita normalmente de fibra “Curauá” ou então das fibras da
palmeira tucum e consta de duas cordas, torcidas com a mão
sobre a coxa da perna (Eggeratt, 1924, p. 37).

Madalena da Silva, após contar uma história sobre o nome


da comunidade, no desfecho de sua narrativa incluiu o uso de
bairii ‘flecha’, dizendo: “não sabem mais fazer flecha com vene-
no”. Madalena da Silva em entrevista no dia 15 de dezembro de
2014 contou que foi expulsa pelos brancos, o pai dela morreu e
o fazendeiro não quis que morassem lá. O fazendeiro brigava
com eles. “Lá a gente tinha os animais: porco, eles não gostavam
que os nossos animais ficassem misturados com eles, por isso
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 87

expulsaram e chegamos no Jacamim, moramos no Jacamim


três anos. E depois viemos para o Wapum”. Contou que a tia
dela a chamou para morar no Wapum. Madalena contou-nos
também sobre a origem do nome da comunidade, em versão
parecida com o relato de Anastácio.

Antigamente, na serra do Wapum, o pai do morcego matava


as pessoas de lá. Até um dia que as pessoas amarraram um
fogo no braço de uma velhinha, e o morcego pegou e levou ela
para o céu. Esse fogo era para as pessoas verem para onde ele
ia levando ela. Fizeram flecha, um monte de flecha e depois
foram para serra, acharam o morcego e mataram. Naqueles
tempos colocaram veneno para matar. Os antigos mesmo que
sabiam se o nome Wapum era Atoraiu. Não sabemos o que é
esse Wapum, que língua é40.

O professor Frank Chagas confirmou que os Atoraiu cha-


mavam de Wapum a pedra grande existente na comunidade,
que tem um enorme desenho branco, com a forma de um mor-
cegão. Incluímos a narrativa anterior aqui porque ela inclui o
fazer e usar as flechas.
Há uma questão linguística interessante referente à posse
de bairii ‘flecha’. Eles dizem: Pidian tunpan bairii ‘A pessoa está
fazendo flecha’. Quando a flecha é de alguém (possuída) a pala-
vra fica diferente, fica com uma letra i a menos: pidian tumpan
pabairi ‘a pessoa está fazendo sua flecha’.
Atanásio de Souza, ao ver a foto do recipiente para guardar
flechas relatou: “essa flecha é envenenada na ponta e só usa
na hora da caçada. E trisca na pessoa já vai”. E considerou que
na atualidade: “a flecha acabou, não tem mais flecha”. As foto-

  Tradução Wapichana-Português realizada por Miriam Chaves de Souza.


40
88 ¦ TYZYTABA’U

grafias desses recipientes foram feitas pela autora no Setor de


Etnologia e Etnografia do Museu Nacional (RJ). Jonas Oliveira
ao ver essas fotografias falou que entre os Wapichana: “aqui
no Brasil não tem mais flecha, não usa mais”.
No entanto, o neto de Casimiro Cadete contou que algumas
vezes ainda pesca com flecha e mergulha de noite, em outras
usa malhador41. Ele explicou que há uma flecha específica para
peixe. E apontou o detalhe de que as penas colocadas no ex-
tremo contrário à ponta das flechas servem para dar direção
(Depoimento no vídeo do “Pibid Licenciatura Intercultural
Práticas Pedagógicas e Valorização Cultural no Canauanim”,
2015).
Alfredo de Souza falou que, no passado, pescava com fle-
cha no Rio Branco, levado por Luis Cadete, pai de Casimiro.

‘Agora vamos, vamos pescar no Rio Branco’, ele me disse: ‘lá


tem um lugar de pescar e lá tem peixe’. E a gente foi lá, pesca-
mos e tinha peixe deitado bem pertinho, matei ele com flecha,
outro com anzol e outro de flecha, até matarmos muitos peixes.
Algumas vezes pescamos muito. Às vezes assamos, colocamos
no fogo pra assar e depois de assar carregamos pra casa, para
nossa casa. ‘Chegamos, aqui tem peixe’, disse Luis Cadete para
sua esposa. ‘Aqui tem peixe assado ele disse, pode cozinhar’.
‘Tudo bem’. Ela cozinhou, ‘pronto, agora vamos comer’, disse
ele, ‘vamos comer todos juntos’ e depois de comer lavamos as
mãos e guardamos tudo, ‘agora vamos descansar’. E descansa-
mos, não saímos mais, só ficamos em casa. É só isso!42

  Malhador é uma rede de pesca.


41

42
  Aizii wamaku, wakupawypnak, watiwepnak, wakupawypnak di’ia Rio Branco danum
ii. Kainha’akupawypkizei, kainha’a kupay na’ii, atii wamakun na’it. Yryy kaawan na’ii
kubawypan, kainha’a kupay waxitinpen karikeunan, ba’ian bairii dia’an, ba’uran, ba’uran
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 89

Dom Eggeratt observou, em sua época, os tamanhos das


flechas, a quantidade usada, o fato de serem diferentes, mais
leves ou mais pesadas, com penas de papagaios e outros ani-
mais que eram domesticados.

A flecha costuma ter de 1,30 a 1,60 de comprimento, tal seja


a caça a que se destina; feita de canna de junco, introduz-se-
-lhe pela ponta uma vareta de madeira de talvez 20 a 30 cm,
a qual, por sua vez, termina em ponta fina. Para fortalecer
este enxerto, apertam o cano contra a vareta por cordas finas,
processo que também usam para segurar as pennas da outra
extremidade. Sete flechas costumam constituir a munição do
índio: nem sempre são eguaes entre si: alem do typo normal,
já descripto, há as flechas de ponta cega e pezada, destinada a
tornear apenas aves como papagaio, aráras, tucanos, mutuns,
etc., que os índios gostam de domesticar, por causa de suas
pennas coloridas, tendo taes flechas ainda a vantagem de não
se perder, pois cahem no mesmo logar, feito petecas (Eggeratt,
1924, p. 37-38).

Citamos as especificidades descritas pelo religioso com


a esperança de que em futuros estudos possamos identificar
esses objetos nos museus que ainda os guardam. Constatamos,
no Museu do Índio do Rio de janeiro, que houve confusão com
o nome Rio Branco (como chamavam Roraima antigamente),

kubau dia’an, ba’uran bairii. At. Ipei wazuian kupay. Mazan wadiped. Wakabuutan tikez
di’it, yryy wadipeadan naa, tumakan dayna’an duwaytan naa kabayn it, padap iti’inaa.
At. Kaukidia’anaa ipei kupay kian. Yryy Luiz Cadete kian: - paydaiaru at, di’ii kupay naa,
di’ii kazimetkary, dipery, warakina’anaa. Kaime! Warakina’akan naa, waarupa’anaa, waa-
rup baukup, ipei waynau baukup waarupan, waarupan baukup. Yryy waata’akan naa
wachiken waka’y. yryy wasukupa’anaa. Wasukupa’akan naa, aunaa wamakun na’itim,
na’an naa, yryy kadyz.
90 ¦ TYZYTABA’U

e a atual capital do Acre, assim como confundiram Rondônia


com Roraima.
Cabe ressaltar que quando a flecha está envenenada me-
rece ser guardada com cuidado para evitar acidentes. Para
isso usam kubin ‘recipiente para guardar flechas’. Tal como
professor Frank explicou, se arranhar quem está carregando,
o veneno da ponta da flecha pode matar.
Dom Eggeratt detalhou também o uso desses objetos e tipos
de veneno aplicados nas flechas, o que evidencia os profun-
dos conhecimentos do território Wapichana pelos indígenas,
pontuando cada nome e, até geograficamente, a origem do cipó
usado como veneno nas flechas.

Há outras de pontas entalhadas ou recortadas, usadas, quan-


do o animal, dentro da floresta, poderia livrar-se da flecha na
sua fuga atravez do matto; com este systema, porem, a ponta
quebra, permanece na ferida do animal e este cahe finalmente
nas mãos do seu perseguidor. Há ainda as flexas, envenenadas
nas pontas que neste caso são cuidadosamente embrulhadas
para que, antes do seu uso, não firam o próprio dono. Este ve-
neno chamado curare é tirado da casca de um cipó que vegeta
tão somente em certos logares para o lado da serra do Canucú”
(Eggeratt, 1924, p. 38).

Eggeratt observou sobre a alimentação com essas carnes


de caça obtidas com a flecha envenenada: “este efeito terrível
não impede a ingestão da carne, pois não actua sobre o esto-
mago: consideram até essas carnes mais saborosas” (Eggeratt,
1924, p. 39).
Como, no início da pesquisa, tivemos dificuldades em
encontrar objetos Wapichana nos museus etnográficos, apro-
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 91

veitaremos os detalhes descritos pelo religioso para identificar


aqueles que ainda não tiveram origem definida, ou que, clas-
sificados pelos museus e que precisam de mais informação,
ou que ainda receberam classificação equivocada, bem como
outros que poderão ser encontrados e considerados ou não,
após realização de estudos futuros, como parte do artesanato
Wapichana.
Valentino de Souza, ao ver os objetos, desenhados por Koch
Grünberg, identificou bairii tumkinhei tikez ‘aparelho para fazer
fogo’ e marii kaxuad danid idi’u ‘instrumento de bambu usado
para raspar’.
Para além das armas e armadilhas, incluímos neste tópi-
co outros objetos como os anteriores para fazer fogo ou raspar
(faca indígena). Na sequência, continuamos a observar as aza-
gaias, zarabatanas e lanças de guerra.

As azagaias tem perto de 2m de comprimento, são bem re-


dondas e vão diminuindo de grossura para a extremidade de
baixo, para que o peso principal permaneça na parte superior,
onde colocam a ponta aguda e forte, feita às vezes de madeira
especial, às vezes de ossos de vários animaes, outras vezes de
laminas de facões velhos (Eggeratt, 1924, p. 39).

As takyp ‘azagaias’ são consideradas pelos Wapichana fle-


chas grandes que, na atualidade, não vimos. O que encontramos
referência no Museu Nacional foi de uma borduna, com o
nome de “cuidarú” (borduna, objeto de número 2286). Teria
sido necessário continuar o trabalho no SEE para conseguir
fotografar e diferenciar essas peças.

A sarabatana é a arma nobre do selvicola e por elle tão estima-


da como por nós uma boa espingarda [...] Feita do tronco oco
92 ¦ TYZYTABA’U

de uma palmeira, é este cuidadosamente escolhido, para que


seja absolutamente rectilineo e não apresente outros defei-
tos; é seco por meio de fogo brando. N’uma das extremidades
dão-lhe um boccal, constante de metade da noz de coco da
palmeira Tucumã, furada no centro e segura por cordas finas
cuja firmeza augmentam por meio de uma rezina, espécie de
pixe. Como viseira collocam dois dentes da cutia, o que, no
emtanto, não é essencial. Guardam os índios este canudo em
uma espécie de estojo, ou seja outro canudo, feito da palmeira
“Paxiúba”, quando nova (Eggeratt, 1924, p. 39).

O Kubin43 ‘canudo para armazenar’, conforme já citado


anteriormente, é usado como recipiente para armazenar fle-
chas um pouco maiores e ainda: kubada ‘pequenas flechas’,
como chamou Valentino de Souza. Ele nomeou como payz a
‘zarabatana’. Valentino identificou também, nas imagens de-
senhadas por Koch Grünberg, uma chipirari atamyn nhykynyy
idiu ytumkau ‘lança de guerra’.
Na época, Dom Eggeratt (1924) já tinha feito referência às
habilidades indígenas no manuseio de armas trazidas pelos
invasores. Apesar das facilidades do uso da mukau ‘espingar-
da’ (os Yanomami também chamam espingarda de mukau),
indígenas explicaram para o religioso as vantagens de usar
sua arma tradicional.

O uso da espingarda, pouco conhecido, mas então exercido


com impressionante habilidade, não conseguirá facilmente
desthronar a sarabatana, poisque, conforme me disse um índio

  No dicionário Wapichana (Oliveira, 2013, p. 58) kubin é zarabatana. Tais observa-


43

ções apontam para o fato das novas gerações começarem a esquecer determinados
detalhes relacionados aos objetos.
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 93

intelligente, offerece ella vantagens insuperáveis, si bem que


a sua esphera de ação seja muitíssimo limitada em relação ao
alcance da espingarda. Um tiro desta, por exemplo, abaterá um
animal apenas, espantando os demais, ao passo que a flechinha
de sarabatana parte silenciosamente, o que permite abater um
bando de macacos, ou de pombas, cujubins, emfim de animaes
em convívio social, muitos exemplares sem assustar os outros
(Eggeratt, 1924, pp. 39-40).

De fato, as “armas” Wapichana funcionam de modo silen-


cioso. Outro aspecto interessante no texto de Dom Eggeratt é
o que menciona a educação das crianças. Antes da escola, as
crianças aprendiam cedo a fazer e usar os objetos indígenas.
“Usar estas armas aprende o índio já na infância: é muito
dovertido vel-os, os pequenos, a experimentarem sua habili-
dade com os arcos, flecha, sarbatanas em miniatura, espécie
de brinquedos que lhes fazem pacientemente os paes e avós”
(Eggeratt, 1924, p. 40).
Na atualidade, verifica-se uma inversão em relação ao
passado: os Wapichana usam espingarda para caçar, raramen-
te arco e flecha, estes, quando há competição em eventos, ou
como enfeite em apresentações culturais. Presenciei, inclusive,
situação em que precisaram e não conseguiram arco e flecha
para uma competição, tendo sido a atividade suspensa.
As famílias vêm deixando também de ensinar a habilidade
de caçar com espingarda; principalmente nas comunidades
mais próximas às cidades é visível a dificuldade no manuseio
tanto do arco e flecha, como da espingarda, e é raro vê-los fazer
esses objetos como brinquedo para as crianças. Os poucos ar-
tesãos que fazem arcos e flechas, fazem-nos para venda como
artesanato. Na época de Dom Eggeratt (1924), além dos arcos
94 ¦ TYZYTABA’U

e flechas e outras armas aqui mencionadas, faziam ainda ara-


pucas e armadilhas para caça e pesca.

Arapucas e armadilhas para toda espécie de animal, elles sabem


faze-las mui engenhosamente e dellas tiram muito resultado,
cercados, jiquis, etc. proporcionam pescadas fáceis que, não
obstante, muitas vezes não lhes bastam. Tocam então os peixes
para dentro de um baixio morto do rio ou das lagoas, constroem
rapidamente um dique improvisado e por meio de cabaças e
outros utensílios atiram a água para traz até que os peixes fi-
quem descobertos (Eggeratt, 1924, p. 40).

Valentino de Souza, morador da comunidade Marupá, disse


que, na língua Wapichana, sairu é ‘tarrafa’ ou ‘jiqui’. Chamou de
kaiisairun o objeto ilustrado na figura 37 no caderno de fotos.
Buscamos o nome desse objeto no dicionário Wapichana (2012,
p. 86) e observamos que também está escrito tarrafa dessa
forma. Madalena da Silva, da comunidade Wapum, nomeou
como tandam o obejto de pesca (número 27544) mostrado na
mesma foto que Valentino viu.
Diferentes objetos usados para pesca foram surgindo no
decorrer da história, de acordo com a situação interétnica,
territorial e ambiental vivida. Esses, desenhados por Koch
Grünberg (1982), foram reconhecidos por Valentino como:
daruku ‘cesto com dois funis’, usado também pelos Taurepang
para capturar peixes maiores; daruku nikubu ‘instrumento de
pesca’ também usado pelos Taurepang e Macuxi; e sairu kabu-
wapkariwei ‘malha trançada com agulha’.
Atanásio contou que, desde o ano 1980, na comunidade
Jacamim, “a gente vê é o malhador. São 158 pais de família
na comunidade e todos têm malhador”. Disse que “o finado
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 95

Otávio fazia de curuá, fazia a tarrafa pra ele, aí amarrava no


cipó”. Otávio foi tuxaua do Jacamim, tendo a escola recebido
o nome de Otávio Manduca em homenagem a essa liderança
e ao pajé Manduca.
Em 1976, Orlando Sampaio Silva observou que os Wapichana
ainda faziam um artesanato elementar, com produção de ces-
tos, “paneiros”, redes de algodão para dormir, arcos e flechas,
segundo ele, cada vez menos usados, “substituídos pelas espin-
gardas ‘civilizadas’, mais eficazes na caça” (1980, p. 78). E em
algumas comunidades o antropólogo viu também trabalhos
em cerâmica.

O FAZER ARTE COM IMI ‘BARRO’

O fazer panela de barro é uma das artes que deixa bastante


evidente as mudanças culturais vividas pelos Wapichana. Na
atualidade, em Roraima, os Karib praticam mais as artes com
barro do que os Aruak. Mas Dom Eggeratt observou o contrário:

A cerâmica pertence em algumas tribus exclusivamente à mu-


lher, em outras ao homem, sendo mais desenvolvida na raça
Aruak do que na raça dos Caraibas, mais guerreira e caçadora
por excellencia. [...] sobrepõem em forma de espiral cordões de
barro, cujas fendas alisam em seguida para, depois de prompto,
cozerem o producto ao fogo lento de galhos verdes, folhas de
bananeiras e outras. Com a rezina conseguem produzir uma
espécie de esmalte vidrado que fecha os poros e permitte o
cozinhar (1924, p. 42).

Como já foi mencionado, esses dois povos, Macuxi e


Wapichana, compartilham o mesmo território e influências
circulam entre eles em vias de mão dupla. Ao contrário do que
96 ¦ TYZYTABA’U

afirma o religioso sobre a cerâmica Aruak, nas comunidades


Wapichana, na atualidade, vê-se mais a prática do trançado do
que da cerâmica. E a produção e uso dos pigmentos até hoje
não vimos nas comunidades que frequentamos.

Os desenhos exteriores não são muito usados, nem apresentam


o gosto artístico revelado em outros artefatos, como, por exem-
plo, cuias, cabassas e outros mais. Quanto ás cores é o branco e
o amarello geralmente mineral (uma espécie de Kaolim), o ver-
melho vegetal, obtido de folhas do cipó Carayurú ou de sementes
do Urucum; o azul provem do genipapeiro brabo que também
fornece a tinta preta, obtida ainda pelo processo já descripto
ou da fuligem. Uma espécie de leite, tirado de varias arvores,
serve de vehiculo e meio de aplicação (Eggeratt, 1924, p. 43).

Mesmo diante das observações que fizemos, percebe-se que


os conhecimentos associados ao fazer arte com barro conti-
nuam na memória. Ao observar os desenho de Koch-Grünberg
(1982), Valentino de Souza lembrou os nomes dados aos di-
ferentes tipos de cerâmica: kybaiau ‘pote largo e baixo com
bocal menor que a largura da parede’, kuwara ‘panela usada
para fazer mingau’ e kamuti ‘vaso para colocar água ou caxiri’.
Madalena da Silva contou que sabia fazer panela de barro
com sua mãe, quando ainda moravam na fazenda, e que não
ensinou a suas netas porque não tinha quem quisesse apren-
der. Disse que o barro fez mal a ela. Provavelmente por ter
usado sem os cuidados necessários da tradição Wapichana.
Catarina Silva, moradora da comunidade Marupá, contou
que, antigamente, todas as pessoas tinham panelas de barro. “As
canecas, pote de colocar a água, tudo era de barro. Agora não
aprendem essas coisas, antes sabiam fazer panela”. Entendemos
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 97

um tom de lamento por deixarem de lado conhecimentos que


ainda consideram importantes. Isto ficou evidenciado nas falas
de todos os entrevistados.
Encontramos referência a uma peça de cerâmica no catálo-
go do Museu Nacional, com número 9641, que não conseguimos
fotografar a peça “panela dos índios Uapichanas”. O benediti-
no continuou suas considerações sobre as artes:

São mestres em artefactos de cerâmica e olaria e não menos


perfeitos nos officios de cesteiros, empalhadores e semelhantes.
Trabalho exclusivo dos homens, fazem estes de certos juncos
(arumá e outros) e de material das palmeiras bacaba e Burity as
cestas de carregar, chamadas “panacús”, jacás, aljavas, mantas,
esteiras, tipitys, peneiras e outros utensílios mais, dos quaes
alguns ficam tão bem feitos que a água nelles não penetra. [...]
entremeiam no seu trabalho desenhos de lindo aspecto, tanto
feitos de linhas regulares, como representando figuras phan-
tasticas de homens e animaes. Para isso colocam parte do seu
material dentro d’água, misturada com folhas de certas árvo-
res, para retirarem-n’o algum tempo depois, como que curtido
e de brilhante cor preta (Eggeratt, 1924, p. 42).

Das formas de trançado que o religioso fala, na atualidade,


apenas alguns artesãos sabem fazer. No SEE, em 2013, conse-
guimos situar alguns dos objetos Wapichana trançados.
Quando perguntei sobre o artesanato Wapichana que en-
volve a confecção de panelas de barro, Alfredo de Souza falou:
“eu não sei como se chama ou como faziam. Eu vi assim, como
faziam, enrolava a massa até ficar no ponto”. Silvestre, primogê-
nito de Alfredo, lembrou que a mãe e a avó dele faziam panela
de barro. E, segundo Silvestre, elas tinham nomes e funções
98 ¦ TYZYTABA’U

diferentes. Com o pai foi lembrando dos nomes: kibaiau ‘panela


de barro’, karadau ‘pote para colocar caxiri’, duada ‘cumbuca’,
kamuchi ‘pote’, patyxi ‘tipo prato para colocar no chão’. “Panela de
barro que elas fazem é igual tabatinga. Igual faz massa de buriti.
Começa o fundo e vai aumentando do tamanho que ela quer”.44

Um metro de fundura encontra panela de barro. Onde os caras


moravam, deixavam panela velha deles. É o mesmo, não tem
diferença nenhuma. Já fiz várias casas e encontrei pote, panela
velha de barro. A terra é como que vai afundando [...] Carvão
também, ele não apodrece, ele enterra. Nós encontramos na
serra. Cavei dez metros de fundura e encontrei carvão. Não
sei se é a serra que vai crescendo [...] Lá onde a gente trabalha-
va com balata. Estava fazendo barraco lá, cavou e encontrou.
Ninguém sabe quem morou ali. Tudo a terra engole.45

De fato, na Amazônia, onde se cava encontra cerâmica,


pedras esculpidas, restos de carvão, dentre outras marcas da
diversa existência humana nesse território. Ao ouvir Silvestre
foi importante perceber como trabalhava, suas reflexões e nar-
rativa sobre a ação da terra sobre o ambiente, do que vai sendo
enterrado mesmo sem a interferência humana, apontando para
outras perspectivas e compreensões possíveis.
Há, no movimento organizado de mulheres indígenas,
iniciativas de retomada do fazer artesanal da cerâmica, imi
‘barro’, mas, atualmente, quem tem mantido essa prática inin-
terruptamente são as mulheres Macuxi, principalmente as da

  Fala de Silvestre ao participar da última entrevista que fizemos com Alfredo.


44

  Fala de Silvestre, na casa de Alfredo, na comunidade Malacacheta, no dia 01 de


45

outubro de 2017. Transcrito e traduzido da língua Wapichana para a portugue-


sa por Joceline Araújo Veras (bolsista do Programa de Valorização das Línguas e
Culturas Macuxi e Wapichana).
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 99

comunidade Raposa (município de Normandia). Na Serra da


Lua, conhecemos apenas Marinês, ex-mulher de Simeão, que
era coordenador dos tuxauas em 2016, que ainda faz e vende
panelas de barro.

ZAMAK ‘REDE’

Na língua Wapichana falam zamak ‘rede’ quando remetem


ao objeto isolado, e uximek ‘rede dela’, inhau ximek ‘rede deles’,
quando há posse. Portanto eles usam essa palavra de maneira
diferente quando a rede é de alguém. Cabe observar que este é
um objeto bastante importante para os Wapichana.
As mulheres Wapichana são conhecidas há tempos
como exímias tecelãs e boas fornecedoras de zamak ‘rede’
(Os Yanomami chamam rede de hamaca, identificamos algu-
mas proximidades entre essas línguas). Este é um dos objetos
muito valorizados. Segundo Im Thurn, as redes de algodão
Wapichana eram trocadas pelos cachorros e canoas dos Waiwai,
que tinham fama de adestradores de cachorros e faziam ca-
noas (1883, p. 273).
O nome desse objeto que estava no armário Uapixana do
SEE era “Rede dos índios Uapichana”, com procedência de
M.A. Bastos. Ela estava em bom estado de conservação. Além
dessa, havia outra rede com inventário nº 8199, descrita como
“rede de algodão branca e marrom”.
Na comunidade Marupá, vimos uma linda rede feita de
sybyrid ‘algodão guariba’ (marrom) misturado com algodão
branco, por Maria Madalena. Ela disse que fazia por enco-
menda e que demora muito para concluir a confecção desse
tipo de rede.
100 ¦ TYZYTABA’U

Maria Madalena Caetano Salomão, de 89 anos, veio para o


Brasil e não falava português, pois sempre conviveu na Guiana
e aqui falando apenas a língua wapichana. Ela contou que seus
avôs morreram cedo. Quando perguntei sobre as histórias da
comunidade Marupá, local onde vive atualmente, ela justificou
ter pouca memória porque lembra mais do lugar que viveu mais
tempo, que foi na República Cooperativa da Guiana. Segundo
ela, é da etnia Taruma46, lembra que foi para escola na Guiana
e andou em fazenda por lá também.
Na figura 45 no caderno de fotos, além de Maria Madalena,
aparece a professora Wanja da Silva Sebastião, que morava e
trabalhava na escola da comunidade Marupá na ocasião e que
colaborou conosco como intérprete Wapichana-Português.
Ao ver a foto da rede de tucum que fotografamos no SEE,
Maria Madalena nos contou que tinha uma mulher no Marupá
que fazia ainda rede de fibra de buriti, “vou contar isso pra ela,
ela vai fazer para vender”47, trazendo assim a visão de que a
fotografia pode motivar a continuidade do fazer.
Essa rede com 212 x 55 centímetros também estava em
boas condições de conservação e encontrava-se no armário
Uapichana com registro: “Rede dos índios Uapichanas” no livro
do SEE. A procedência também era de M.A. Bastos.
Na comunidade Malacacheta há Helena, Hilda e Ivete,
dentre outras mulheres, que ainda fazem rede de algodão. Para
obter a cor marrom, usam o algodão que chamam de sybyrid

46
  Taruma é um povo indígena que subiu o rio Negro em fuga, percorrendo terri-
tórios de povos Aruak, chegaram ao extremo norte, na Guiana, em território Karib
e lá se fixaram. Supomos que a grande quantidade de vocábulos que encontramos
na atualidade em comum entre os Wai Wai e Wapichana venham da língua do povo
Taruma que se dividiu, vivendo parte entre os Aruak e parte com os Wai Wai (Karib).
  Conversa informal, com a participação de Wanja da Silva Sebastião, na língua
47

Wapichana no dia 15 de dezembro de 2014.


Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 101

‘guariba’, uma armação em forma de x, que precisa ficar en-


costada num canto, sem mexerem, até a conclusão do trabalho.
E, para fazer a saia da rede, usam fibra de olho de buriti.
Segundo Dom Eggerath (1924), diante da morte, a sepultu-
ra indígena era cavada na maloca, embaixo da rede do morto,
com menos de um metro de profundidade. O corpo era colo-
cado na cova enrolado em sua rede com o rosto para cima, na
direção dos nascer do sol. Depois a terra era pisada e os objetos
do morto eram ali quebrados. Quebravam o arco e flecha dos
homens e as panelas e cestas das mulheres, colocando fogo
para queimá-los.
Dom Mauro Wirth relatou que as redes eram mantidas
arreadas durante a agonia e as pessoas cuidavam para que os
parentes não vissem. Ninguém descobria o rosto e nem toca-
vam o cadáver com medo de contágio (apud Mussolini, 1944).
Na cabeceira da rede ficavam o pajé e o padre.
Ainda na comunidade Marupá, em conversa informal, Ana,
Atoraiu, mãe de Anastácio, disse: “hoje em dia ninguém mais
fia algodão, não tem mais fuso”. Catarina Silva, moradora da
mesma comunidade, disse que só sabe fazer a rede de algodão e
não a de fibra. “Então a gente está esquecendo tudo”. Disse que
agora ela não consegue mais fiar porque adoeceu e seu braço
dói, mas que está melhorando e vai começar a fazer de novo. Na
comunidade Wapum, Madalena da Silva também contou que
não fazia mais rede e nem tipoia por causa da vista, mas que
ainda consegue fiar. Disse ainda que tem um monte de fusos,
mas as netas não querem mais saber, não querem aprender.
Na comunidade Jacamim, Atanásio considerou que: “hoje já
está quase deixando a produção de rede. Em toda comunidade
você não vê mais. Os próprios políticos trouxeram rede, doa-
vam e as pessoas foram deixando de plantar algodão. O finado
102 ¦ TYZYTABA’U

Ottomar48 distribuía umas dez redes por família”. Jonas Oliveira,


professor na escola da comunidade Jacamim, falou, no dia 24
de agosto de 2014, que: “tecer rede está difícil agora, na Guiana
vi de algodão” e continuou: “as meninadas não sabem, teve
competição de fiar algodão e sabem pouco”.
De fato, na atualidade há bem poucas tecelãs nas comuni-
dades que visitamos. Uma vez vimos fiarem kinharyd ‘algodão’
para fazer cobertas, redes e bolsas, porém essa prática não
faz parte do diaadia das comunidades. Há escolas indígenas
fazendo projetos para que as meninas Wapichana e Macuxi
reaprendam a fiar e a tecer. E, nos eventos culturais, como no
Dia do Índio, 19 de abril, por exemplo, fazem competição entre
quem fia e tece melhor e mais rápido.
Casimiro Cadete, no dia 10 de setembro de 2014, contou-
-nos que, na comunidade Canauanim, atualmente, Idalina faz
rede de algodão e usa o tear. E, segundo Casimiro, Valdélia e
sua filha Rosa fazem bolsas de fibra de buriti.
Idalina, Wapichana de 74 anos, moradora da comunida-
de Canauanim, em vídeo do “Pibid Licenciatura Intercultural
Práticas Pedagógicas e Valorização Cultural no Canauanim”,
falou que a juventude não valoriza a arte e não pratica por
preguiça. Sua fala aconteceu na língua Wapichana e foi tradu-
zida pela pesquisadora Wapichana Leilândia Cadete. Idalina
afirmou também que ela sabe fiar algodão e repassa seus sa-
beres aos filhos e netos, fazendo a parte dela. Ela disse ter sido
reconhecida como melhor artesã do estado de Roraima. E há

  Ottomar Pinto foi governador de Roraima por três vezes: de 1979 a 1983, depois
48

de 1991 a 1995 e, por último, de 2004 a 2007, quando faleceu. Supomos que tenha
distribuído as redes na comunidade Jacamim em 1991.
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 103

mulheres Wapichana que ainda fazem e usam didimei ‘tipoia’


(objeto usado para carregar bebê).
O beneditino D. Eggeratt narrou sobre o fuso e o tear:

[...] com seu fuso torce o fio de algodão ou de fibras vegetaes


diversas (sobresahindo a do Curauá que pode rivalisar com o
nosso linho perfeitamente) e com elle produz no tear fachas
para carregar creanças, rêdes de dormir e o mais que lhes seja
preciso. Exactamente por ser rudimentar o processo usado, é a
fabricação de fios e tecidos muito morosa; o producto, porem,
nem por isso pode ser chamado de grosseiro, pois é bem feito,
muito regular e apresenta até complicados desenhos (Eggeratt,
1924, p. 44).

Na comunidade Malacacheta, Meire explicou que a trança


da tipoia é diferente da rede. A armação de madeira para fazer
tipoia é menor, é um x pequeno. Ela contou também que, na
Malacacheta, Beth fazia bolsas com tear de madeira armada
similar ao da foto do objeto de número 283, que se encontra
no Museu Nacional.
Valentino de Souza disse que tinkizai é ‘fuso’, tinkizai daku é
a ‘ponta da varinha’, tabay ‘haste’ e kinharid tinkeariwei ‘início do
fio’. Ao consultar o dicionário Wapichana (2012), averiguamos
que tayribei é a peça usada para preparar o algodão para ser
fiado. Essas diferenças lexicais apontam para variação linguís-
tica da Terra Indígena Jacamim em relação às outras da região.
Tanto na haste como no disco, desenhos enfeitam a peça,
lembrando mandalas, flores, olhos, borboletas e pássaros, essas
formas aparecem vincadas como gravuras pretas em processo
que deve acontecer parecido ao da pirogravura. Não pergun-
tamos qual técnica utilizavam.
104 ¦ TYZYTABA’U

Ao ver os desenhos de Koch Grünberg (1982) (figuras 52


e 53 no caderno de fotos), Valentino de Souza identificou ki-
nhara ‘novelo de fio de algodão em pacote de folhas’ e também
awaibara tibi idi’u ytyzytkau kamutikauny’u ytumkau ‘recipiente
de palha usado para limpar e guardar algodão’.
Valentino disse ainda que o nome da bolsinha que guarda
algodão (32020) é zidiariubei. Identificou também o chapéu de
algodão (28046, enviado ao Museu Nacional por Dom Alcuino).
Disse: “os Wapichana fazem também. A mulher do Eliezio faz
tudo”.
Eliezio trabalha no posto de saúde da comunidade Marupá
e estava em 2016 prestes a se aposentar. Muito nos chamou a
atenção seu atendimento porque dava-se totalmente na lín-
gua Wapichana.
O tuxaua da comunidade Jacamim, Geraldo Antônio Souza,
no dia 17 de dezembro de 2014, ao ver a foto da bolsinha de
algodão, usada para limpar e guardar algodão, contou que
Elizabeth, sua mãe, fazia daquela bolsinha (nº de registro no
Museu Nacional: 8284), porém de palha, ao invés de algodão.
O desenho de Koch-Grünberg (1982) melhor representa a bolsi-
nha de Elizabeth. O etnólogo fez referência ao fuso Wapichana,
incluído em foto, na página 34 do tomo III de sua obra.

COCARES, ‘DUWAD ‘CABAÇA’, PUCHI ‘CUIA’,


ZAPU ‘TANGA’ E BARU ‘MACHADO’
Antes da chegada do carro de boi, do cavalo e da bicicle-
ta as viagens levavam dias e os Wapichana caminhavam de
uma comunidade a outra. Era muito comum saírem da atual
República Cooperativa da Guiana e virem até o Brasil, parando
no caminho, caçando, pescando, até chegar ao local de destino.
Entre as tramas da vida Wapichana e de seus objetos no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional … ¦ 105

As cabaças serviam para carregar água, caxiri ou outros líqui-


dos para matar a sede no percurso.
Koch Grünberg fez referência ao anel de coquinho (1982,
p. 43) que ainda é produzido na atualidade pelos Wapichana;
inclui imagens de cocares Wapichana (1982, p. 44) e cabaças
pintadas (1982, p. 85).
Valentino de Souza chamou de duwad ‘cabaça que serve
como recipiente ou vasilha’. Ele nomeou de puchi ‘cuia para
beber com ponta’ e waiau ‘cuia redonda’. Um dos desenhos es-
culpidos em uma das cuias registradas por Grünberg (1982)
era bem parecido com o da cuia que encontramos no Museu
Nacional.
Aproveitamos para mostrar outros objetos desenhados por
Grünberg (1982) e Valentino da Souza chamou de maudii ‘pente
de madeira’ e mazuwaka ‘prensa para espremer cana de açúcar’
e identificou zapu ‘tanga de mulher feita com fios de algodão’
nas imagens de Koch Grünberg. Na comunidade Marupá, em
2014, Geraldina se vestiu e pediu que fotografasse sua veste
tradicional feita em algodão, que era justamente uma zapu.
Enquanto os indígenas entrevistados chamaram a figura 65
no caderno de fotos de cocar, o objeto inventariado pelo nº 1.049
estava nomeado como “tanga de penas de arara Uapichanás”.
Este foi levado por Barroso Bastos (Manáos, em 1844).
Ao apresentarmos fotos de alguns objetos Wapichana que
fizemos no SEE e imagens organizadas por Koch Grünberg
(1982) a Valentino de Souza, na comunidade Marupá, ele re-
conheceu ainda o baru ‘machado’ e o wadukurii ‘tamborete de
madeira’.
Em dezembro de 2014, Valentino identificou uma peça de
madeira (objeto de número 27.994),figura 68 no caderno de
fotos, como purukau kanauidian ‘soquete de pilão’. Em grupo,
106 ¦ TYZYTABA’U

outros Wapichana, que observaram as fotos, consideraram


que o objeto teria mesma função. No entanto, no dicionário
(2012), o nome está como aku na’ik tayribei ‘pilão e a madeira’.
Paramos nossa pesquisa no SEE no livro quatro, ficando
faltando outros 16 livros para serem pesquisados. Fotografamos
168 peças e anotamos apenas as referências das peças: flautas
(315 e 7738), maracás (1079, 9491 e 1080), tambores (4662 e
8289), juki49 (bastão com chocalhos) (3546), chocalho tubular
(274), abano (2668), balaio de palha (8122), dentre outras, fal-
tando ainda buscar nos armários e estantes, para fotografar,
252 peças de que temos a referência e faziam parte do acervo
que foi queimado no incêndio de 2018.
No próximo capítulo o enfoque vai para a vida, os ri-
tuais e as festas realizadas com esses objetos Wapichana.
Problematizamos a ideia de tradição e analisamos seus com-
plexos processos culturais ancestrais e contemporâneos.

 Jequi.
49
OS USOS DOS OBJETOS
NOS RITUAIS WAPICHANA

Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades


culturais icomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo
afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou
a uma tradição “recebida”. Os embates de fronteira acerca de
diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consen-
suais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições
de tradição e modernidade [...] (Bhabha, 2003, p. 21).

Muitos rituais Wapichana são difíceis de traduzir em pa-


lavras e sua descrição pode confundir o leitor. Nos eventos
festivos e no diaadia Wapichana, há presença de elementos
identificáveis como continuidade de tradições e marcas de
diferenças culturais reconhecidas, quando relacionadas a
outros povos. Objetos como a indumentária usada na hora de
dançar o Parichara, são historicamente reconhecidos como
fazendo parte do ritual.
Há uma série de conflitos vivenciados quando parte da
comunidade e escola deseja que todos se vistam com saia e
cocar para dançar Parichara, por exemplo. Há uma parte que
108 ¦ TYZYTABA’U

rejeita práticas dos antigos, querendo vestir-se seguindo a


moda da televisão e da cidade, mostrando que são modernos
e atualizados; e outra parte que continua investindo nessas
continuidades e atualizações.
Muitas vezes, o “mundo escolarizado” é diferente e exclui
o “mundo Wapichana tradicional”, porém, ao mesmo tempo,
a escola funciona tantas vezes como palco de reencenação dos
rituais, principalmente e, sobretudo, quando recebem visitas e
desejam exibir a força de sua identidade indígena. Acontecem
também, nas escolas e comunidades, projetos realizados em
parceria com instituições que apoiam essas iniciativas de for-
talecimento do uso da língua e da cultura Wapichana.
As reuniões gerais, regionais e locais, sejam as de sábado ou
domingo, ou as agendadas mensalmente, também podem ser
consideradas elas mesmas rituais e lugares nos quais alguns
outros rituais e práticas tradicionais/atuais se fazem presentes.
Cabe aqui uma discussão sobre o que é tradição, consi-
derando tradição cultural tanto o que veio dos ancestrais,
quanto o que é recriado na atualidade. “[...] é essencialmente
um processo de formalização e ritualização, caracterizado por
referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da
repetição” (Hobsbawm, 1984, p. 12).
E a repetição pode ser criativa e adaptar-se aos novos con-
textos de vida, sendo em vez de limitante, potente. Stuart Hall
fala de um “espaço cultural para a abertura de novas formas
de identificação que podem confundir a continuidade das
temporalidades históricas, perturbar a ordem dos símbolos
culturais, traumatizar a tradição” (apud Bhabha, 2003, p. 250).
Percebe-se a possibilidade de fluxos que atravessam o
tempo, de conhecimentos compartilhados, rememorados e
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 109

escolhidos para continuar existindo. Cabe observar que, talvez,


o que alguns entendem como simulacro dos rituais, seja o ri-
tual da atualidade entre os Wapichana. Há ainda exemplos de
rituais atuais que alguns interpretam como “fake”. Considera-
se que mesmo a “venda dos rituais” a turistas e visitantes, por
exemplo, nas regiões que trabalham com etnoturismo há mais
de dez anos, alimenta essa continuidade.
Em relação aos rituais, percebemos que a maior parte dos
professores de língua Wapichana, conforme observamos du-
rante nossos encontros para produção de material pedagógico,
passou por, ou conhece os ritos de passagem Wapichana. Em
média, esses professores são da geração que tem entre 40 e 60
anos e são justamente os filhos das lideranças que iniciaram a
luta pelo direito de ensinar a língua Wapichana, o artesanato
e os saberes do plantio da roça na escola.

Os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo [...]


os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais in-
tensamente e, sendo a forma de expressão convencional e
obrigatória, os valores do grupo é que são revelados. Vejo no
estudo dos ritos a chave para compreender-se a constituição
essencial das sociedades humanas (Wilson, 1954, p. 241).

A passagem dos Wapichana para a vida adulta era marca-


da por rituais que preparavam o jovem para ser bom caçador
e pescador e para enfrentar e assumir responsabilidades. As
mulheres, por seu turno, ficavam reclusas, em redes pendu-
radas no alto, sem poder ver e falar com homens durante sua
primeira menstruação.
Nos ritos de passagem femininos, as mulheres passam por
restrições. Uma delas é não ir nunca ao igarapé ou mata estando
110 ¦ TYZYTABA’U

menstruada. Há plantas que são de uso e cuidado apenas das


mulheres. As variedades da piprioca komi e komiroanan são
mais usadas pelas mães e avós que guardam o tubérculo seco
ou plantado. Deixam exalar seu perfume entre os fusos e rolos
de algodão fiado, por exemplo (Farage, 1997).
Dom Eggerath fez as seguintes observações sobre os ritos
de iniciação:

A época da puberdade que já ocorre aos 12 e 13 annos em ambos


os sexos é assignalada por outro cerimonial, a que todos devem
se submeter. Para o rapaz [...] índios mais velhos e ou Tuxaua
duros castigos corporaes que consistem primeiro em açoital-os
fortemente por uma espécie de chicote e pelo corpo todo. [...]
cortes feitos de propósito por meio de conchas afiadas, pas-
sam uma pasta de raízes, folhas, e sementes de determinadas
plantas, tudo isso macerado e misturado com água para ficar
pastoso. Querem assim assegurar-lhes o exito na caça, na pesca
[...] cujos ingredientes variam, conforme seu destino: remédio
para veado, para anta, para onça, para cutia e demais represen-
tantes daquella fauna rica, remedios para isto, remediso para
aquillo. Um conjuncto de todos estes “remédios” é ainda pas-
sado sobre um cordão de fibras de palmeira, fino em uma das
extremidades e bastante grosso na outra, onde termina em uma
franja. A ponta fina enfiam no nariz do pobre candidato até
atingir a pharinge e sahir pela boca (Eggerath, 1924, pp. 49-50).

Gioconda Mussolini também descreveu, de modo parecido


com o anteriormente citado, como as “pussangas” de veado, de
cotia e de pesca funcionavam para o indivíduo tornar-se “ma-
rupiara” (esperto, ativo), confirmando que, entre a primeira
e a segunda menstruação, a moça ficava deitada em sua rede
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 111

com um “pausinho do tamanho de um lápis, pintado de ver-


melho, com o fito de afugentar os maus espíritos” (Mussolini,
1944, p. 148).

As dansas do jacaré, da onça, do urubu, da paca, do jacú e tantas


outras mais, pretendem afastar o perigo dos animaes ferozes
e apazigual-os, como constituem meio excelente para agradar
aos animaes uteis e obter caças abundantes. Outras danças, ex-
clusivamente rituais, são dedicadas aos bons e mãos espíritos
e, neste caso, sempre presididas pelo “pagé”, cuja presença é o
penhos seguro do bom êxito. Nestas danças usam ás vezes as
mascaras, cujas formas bizarras, se não abjectas e hediondas
facilmente impressionam a assistência (Eggerath, 1924, p. 55).

Ailton Krenak, liderança indígena responsável pela defe-


sa dos direitos indígenas quando esses foram aprovados na
Constituição Federal de 1988, que vem contribuindo com a
produção de mídias audiovisuais, palestras e escritas indíge-
nas, conta como acontece a iniciação com os Krenak:

Na nossa tradição, um menino bebe o conhecimento do seu


povo nas práticas de convivência, nos cantos, nas narrativas.
Os cantos narram a criação do mundo, sua fundação e seus
eventos. Então, a criança está ali crescendo, aprendendo os
cantos e ouvindo as narrativas. Quando ela cresce mais um
pouquinho, quando já está aproximadamente com seis ou oito
anos, aí então ela é separada para um processo de formação
especial, orientado, em que os velhos, os guerreiros, vão iniciar
essa criança na tradição (Krenak, 1989, p. 1).

Outro ritual que acontecia durante o processo de inicia-


ção, tantos dos rapazes, quanto das moças Wapichana, era o
da prova da wiku ‘formiga’. Segundo Dom Eggerath (1924),
112 ¦ TYZYTABA’U

colocam grande quantidade de tucandeiras em pequenas


cestas apropriadas e aplicam aos poucos a todas as partes do
corpo “as fomigas irritadas e excitadas previamente, mordem
então raivosamente as suas victimas” (1924, p. 50). Acabam
ficando doentes e se recolhem a suas redes, devendo aceitar
todas essas provas com resignação.
Catarina, na comunidade Marupá, em outubro de 2015,
contou-nos que antigamente não tinha injeção “só ferravam
de minha’y ‘tucandeira’” e disse que a picada de tucandeira
serve para curar dor de cabeça e dores no corpo. Lembrou que
a ferrada de kaktyb ‘formiga vermelha que vive na árvore’ cura
malária. “A pessoa quebrava um galho com formiga e tampa-
va os buraquinhos para levar, quando chegava com a pessoa
doente, ferravam ele na rede e ele ficava curado”. Lamentou
que hoje as pessoas não praticam mais esse tipo de cura e só
querem remédio de branco.
A socióloga Gioconda Mussolini relatou que, com o uso de
roupas, essas práticas profiláticas que incluíam o uso de enfei-
tes, pinturas, escarificações e sangrias foram desaparecendo.
Continuavam, naquele período, apenas com as práticas que
dão boa sorte na caça e na pesca.

Entre os Vapidiana realizam-se as chamadas “pussangas” do


veado, da cotia, da caça em geral (a que se submetem caçador
e cachorro a um tempo) etc. Empregam plantas que tomam
o nome do animal visado, vespas, formigas, objetos cortantes
para escarificar. Parece que a este cerimonial se submetia ou-
trora o menino e o noviço de pagé em sua iniciação (Mussolini,
1944, p. 149).

De acordo com as explicações dadas pelos Wapichana a


Farage (1997), os bons caçadores escarificam pernas e braços,
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 113

passando pimenta no corpo para manterem a leveza, viven-


ciando assim o rito de passagem quando entram na vida adulta.
Quem se lembrou deste objeto (figura 69 no caderno de
fotos) e de seu nome na língua Wapichana foi Valentino de
Souza, rezador da comunidade Marupá. O objeto é usado na
pajelança como “chicote para certas flagelações”. Os pajés
Wapichana, assim como os Ye’kwana, utilizavam esse objeto
em determinados casos que exigem este ato para a cura.
Outro ritual que acontece até hoje entre os Wapichana e
Macuxi é a dança do Parichara. Os cantos que acompanham
essa dança são de alegria, agradecimento e espelham o calen-
dário cultural Wapichana, os ciclos de vida dos peixes, das aves,
dentre outros temas. Na sequência deste texto nos dedicamos
ao estudo desses cantos e danças.

AS PALAVRAS NO CANTO E NA DANÇA

Depois do contato violento com os Makuxi, os Wapichana


assumiram várias danças Karib, sobretudo o Parixara. Com o
aumento da influência dos brancos, nordestinos em particu-
lar, as danças Makuxi foram substituidas pelo forró e por isso
é normal encontrar, nas malocas, toca-discos, sanfonas etc. Ao
mesmo tempo, também as bebidas indígenas (caxiri etc.) foram
parcialmente substituidas pela cachaça (CIDR, 1985, p. 72).

Em tempos diferentes, identificamos referência ao


Parichara, ícone de identidade que perpassou relatos de via-
jantes desde antes do ano 1880 e continua sendo cantado e
dançado na atualidade. Faremos uma breve retrospectiva para
verificar como, de diferentes formas, essa prática cultural foi
sendo citada.
114 ¦ TYZYTABA’U

Coudreau (1887) narrou que, após a festa do “grande caxiri”,


quando se fartavam de peixe, carne e caxiri, no dia seguinte,
cantavam e dançavam o Parichara, com uso de instrumentos
como flautas de tíbia de veado.
Sobre as trocas linguísticas e culturais entre povos indí-
genas, Koch-Grünberg (1924), etnógrafo alemão que viajou
entre os anos 1909-1924 pela região, afirmou que, em al-
guns coros dançantes dos Macuxi, participavam também
Wapichana e percebeu o parentesco entre os cantos de cada
um desses dois povos.
No entanto, no tomo III de sua obra, dedicado às músicas,
aparecem muitas Taurepang, poucas músicas Macuxi e ne-
nhuma Wapichana. Segundo ele, aconteciam situações nas
quais “mulheres Wapichana cantavam canções Macuxi. Por
conseguinte é de se supor que os cantos dessas duas tribos
estão em estreito parentesco”50 (Koch-Grünberg, 1924, p. 363).
Theodor Koch Grünberg (1981) descreveu o bailar do
Parichara como numa roda semi aberta, no compasso quatro,
com batidas fortes do pé direito no chão; assim homens, mu-
lheres e crianças cantavam e andavam em círculos. Segundo
ele a canção era monótona.
Para Farabee (1918, p. 85), o nome Parichara veio de pa-
rakary ‘caxiri’. No entanto, Farabee escreveu “parikara”. Ele
deve ter concluído assim porque, de fato, quando acontecia
essa dança, os Wapichana consumiam também essa bebida.
Farabee observou que o Parichara era dançado em momentos
alegres, quando as comunidades recebiam visitas, depois das
caçadas, pescarias, construção de casas e colheitas na roça.

  Tradução do espanhol para o português pela autora.


50
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 115

Na comemoração do Dia do Índio, na comunidade Marupá,


em 2016, vimos o pai de Terêncio Salomão Manduca usando
um “chapéu” parecido com os usados na figura 71 no caderno
de fotos. Na comunidade Raimundão, no II Festival de Parixara,
o grupo que venceu a competição usava trajes parecidos com
os da figura 72 no caderno de fotos.
A socióloga Gioconda Mussolini observou que, como pre-
caução contra os maus espíritos, os Wapichana faziam a “dança
Aparitchára o toque de unhas de veado viza afugentar os maus
espíritos. Nas danças com fito de proteção volteiam a casa, fazen-
do barulho com ramagens de plantas” (Mussolini, 1944, p. 148).
Lúcia Hermann encontrou, nas anotações de Dom Mauro
Wirth, observações referentes a determinados momentos do
Parichara, quando tocavam flauta de imbaúba, instrumento
importante no ritual do Parichara Wapichana.

A parijara é a dansa de todos os quadrupedes, principalmen-


te do porco do mato. Os sons roucos das flautas de imbaúba
representam o grunhido e a fila cumprida dos que a dansam,
conduzidos pelo pajé, representa a vara grunhidora dos porcos
do mato (Hermann, 1946, p. 68).

Hermann, além de fazer referência ao fato de os Wapichana


acreditarem que com o Parichara poderiam garantir boa pesca
ou caça, listou outras danças praticadas pelos Wapichana
“Imeaurai, Uearipean, Auari, Pimurda e Moruá” (1946, s/p.).
Perguntamos aos Wapichana e não conseguimos encontrar
quem tenha dançado ou se lembrasse desses tipos de dança.
Na língua Wapichana tybarypan é ‘crescendo’, pode ser que
dançassem na iniciação das moças. Bauari é um tipo de peixe,
é provável que esta dança acontecesse para chamar ou agrade-
cer pela pesca. Pimyd é ‘beija-flor’, ave presente nas histórias
116 ¦ TYZYTABA’U

de origem dos pajés. Buscamos, com os Wapichana, palavras


com sonoridade próxima às citadas pela socióloga, mas con-
seguimos fazer apenas essas associações.
Ficam evidenciadas as mudanças vividas pelo povo
Wapichana e, a partir delas, muitas práticas caíram em desu-
so e foram esquecidas. Os novos sistemas impostos em seus
territórios, com a entrada de fazendas, escolas e igrejas, den-
tre outras instituições, influenciaram e obrigaram o povo a se
recriar para conseguir dar continuidade à dança do Parichara
e ao uso da língua Wapichana.
Orlando Sampaio Silva, quando esteve em Roraima, em
1976, considerou o envolvimento dos indígenas com as “seitas
cristãs, sem, no entanto, renunciarem às suas crenças tradicio-
nais”. Em relação às festas e danças, “Parixara (folha de inajá)
[...] embora caindo em desuso, são lembrados com saudosismo
ardente e é desejada a sua prática” (1980, p. 78).
Mike Ribeiro contou a Heleno Montenegro que o Parichara
é um momento de descontração, em que compartilham a alegria
de ter concluído um trabalho feito por todos em colaboração.

Parichara, esse é um costume dos indígenas mesmo. Porque


eles fazem ajuri […] Aí vai pedir pra esposa fazer cachiri. Ele vai
caçar, mata uma caça ali, faz aquele damurida, aí vai chamar
todo mundo pra trabalhar. Broca, broca, meio dia vem comer,
toma cachiri. Aí depois? É uma festinha deles, aí, das antiga.
Essa é a cultura indígena. Eles vão cantar e dançar, né? (Ribeiro
apud Montenegro, 2016, p. 100).

Alderísio, liderança também da comunidade Tabalascada,


contou que, atualmente, o Parichara é dançado na Semana do
Índio. “Aí tu vai ver todo mundo procurando saia pra dançar.
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 117

Aí depois acaba, tu não vê nenhum saia por aqui, né?” (Silva


apud Montenegro, 2016, p. 100).
Na comunidade Tabalascada, hoje em dia, assim como em
muitas outras comunidades na região Serra da Lua, percebe-
mos que o Parichara é dançado apenas no Dia do Índio (em
que na Tabalascada é também comemorado o aniversário de
homologação da comunidade) e nas Festas, como a do Beiju,
que são as maiores festas daquela comunidade.
Nos dias que correm, nas apresentações culturais, é comum
aos Wapichana e aos Macuxi, dentre outros povos, cantarem
uns as músicas junto aos outros, porém poucos compreendem
seu significado, por não serem falantes dessas línguas. Quem
sabe o que está cantando tem atitude diferenciada, parece
bater com mais força e convicção o pé no chão.
Alderísio Silva contou a Heleno Montenergo (2016) que a
dança do Parichara ocorria com mais frequência no passado,
quando dançavam em muitas ocasiões, passando a noite in-
teira em volta de uma fogueira. Segundo ele, no mês de junho,
a comunidade trabalhava menos e se alegrava mais.
A cada evento, o povo Wapichana repete a dança do
Parichara e com riqueza de ritmos, melodias e letras. Supomos
que o nome Parichara seja genérico e dentro haja várias danças
e músicas indígenas, umas inventadas, outras muito antigas.
É fato que para algumas letras não há tradução, ficando pala-
vras sem sentido imediato.
E para cantar e dançar o Parichara, os Wapichana vestem
saias de palha, ou de sementes, ou de bambu, ou de algodão
fiado e tecido e cantam na língua Wapichana. Até o momen-
to, desconhecemos Parichara na língua portuguesa. É comum
também os Macuxi e Wapichana dançarem e cantarem juntos
as músicas do Parichara nessas duas línguas.
118 ¦ TYZYTABA’U

Gilberto Silva relatou a Montenegro que os cantos de


Parichara falam do jenipapo, do urucum e do ingá, que eram
usados pelos seus avós para pintura. Além de animar o povo, o
Parichara também servia para atrair as caças (principalmente
o porco do mato) ou ainda para trazer chuva. O entrevistado
mencionou a questão da possibilidade de trazer fertilidade, im-
portante na vida econômica da comunidade (Montenegro, 2016).
Gilberto Silva falou da dança do Mari, que, no entendimen-
to de Heleno Montenegro, acontecia de forma “teatralizada”.
Presenciamos ensaios dessa dança nos cursos de extensão
em língua e cultura Wapichana na UFRR, quando imitam um
passarinho que levanta sua perna (2015). Na letra da música,
o texto pede que levantem a perna.
O professor Frank das Chagas Silva falou que “ensinar a lín-
gua sozinha é mais difícil”. Em suas aulas de língua Wapichana,
ele ensina vários Parichara aos alunos e eles aprendem. Mais
de uma vez o grupo ensaiado por ele venceu competições nas
festas. E, no lançamento do livro Wapichan Paradan Idia’an
Aichapkary Pabinak na’ik Kadyzyi kid, ele cantou e dançou, ani-
mando o evento por duas horas seguidas.
A música continua então sendo um momento de uso das
línguas indígenas. Assim, os professores de língua Wapichana
usam as músicas do Parichara para ensinar essa segunda língua
aos alunos, que, mesmo sendo Wapichana, não aprenderam
em casa.
Nos eventos culturais, o Parichara identifica-se com lugar
de vestir, de se pintar, de usar a língua e as músicas Wapichana,
de vivenciar e exibir sua identidade a eles mesmos e aos visi-
tantes. E, quando há competição, forma de conseguir recurso
quando premiados.
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 119

Os termos do embate cultural, seja através de antagonismos


ou afiliação, são produzidos performativamente. A represen-
tação da diferença não deve ser lida apressadamente como o
reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, ins-
critos na lápide fixa da tradição. A articulação da diferença,
da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em
andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos
culturais que emergem em momentos de transformação his-
tórica (Bhabha, 2003, p. 21).

Em nosso caso, como coordenamos um programa de ex-


tensão e muitas comunidades solicitam projetos de valorização
e documentação das práticas culturais, em muitos momentos
nos perguntamos: será que estão cantando, dançando, contan-
do história apenas porque estamos visitando? De qualquer
forma, essa mobilização e a criação de espaços de uso da língua
e das demais práticas culturais consideramos ser interessan-
te, principalmente porque chama a atenção dos jovens para
o tema. E quem pratica compartilha conosco o desejo de ter
essas práticas culturais fortalecidas.
Emerson Cadete afirmou a Heleno Montenegro o aspecto
performático do Parichara. Para o jovem professor, na Escola
Estadual Indígena Edmilson Cavalcante, a dança acontece ape-
nas para exibir a “indianidade”. “Eu digo que somente é pra
mostrar que você ainda guarda isso no seu meio, né? Ainda
sabe dançar o parichara, sabe cantar o parichara. É só mesmo
pra mostrar, mostrar pra sociedade, né? Que você ainda sabe
fazer isto. Uma parte da cultura” (Cadete apud Montenegro,
2016, p. 100).
Emerson Cadete afirmou uma questão similar a que Homi
Bhabha (2003) tratou em seus estudos, a natureza performa-
tiva das identidades diferenciadas, daregulação e negociação
120 ¦ TYZYTABA’U

daqueles espaços que estão continuamente, contingencialmen-


te, se abrindo, retraçando as fronteiras, expondo os limites de
qualquer alegação de um signo singular ou autônomo de di-
ferença. E essa diferença não é nem o Um nem o Outro, mas
algo além, intervalar .
Ao mesmo tempo em que são legítimos os movimentos
de valorização da ancestralidade, para Bhabha é necessário
construir uma teoria do imaginário social que “não requeira
um sujeito que expresse uma angústia de origem (West), uma
auto-imagem única (Gates), uma afiliação necessária ou eter-
na (Hall)” (2003, p. 249).
O tuxaua da comunidade Tabalascada, César da Silva, tam-
bém foi entrevistado por Heleno Montenegro e respondeu de
maneira a reconhecer como o Parichara é importante no for-
talecimento da cultura Wapichana.

Parichara […] Todos os cantos é alegria, confraternização, né?


Então... agradecimento, é tudo isso. Então eu creio que os cantos
hoje são um dos elementos essenciais pra manter a cultura, né?
Pra manter a cultura. [E são todos cantados] em Wapichana.
Então... por que nós temos aqui dos Wapichana só o paricha-
ra. Já pros makuxi já tem mais outras coisas. Tem mais outras
danças: aleluia, tucui, é... mais outras coisas. Pra gente aqui é
só o parichara. Assim... então, com certeza é um dos elementos
pra que também que se valoriza muito, né? Porque como é tudo
na língua, valoriza demais, né? (Montenegro, 2016, p. 100).

Há um forte desejo de muitos Wapichana de continuida-


de, trazendo para o presente e levando para o futuro muitos
conhecimentos deixados pelos antigos. A aluna Wapichana
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 121

Maria Consolata Alfredo de Oliveira criou em aula, no Insikiran,


no ano de 2012, o seguinte texto teatral: “que possamos dar
as mãos, assim como no Parichara, e cantar na nossa língua
mãe que anda perdendo espaço para uma língua que veio de
fora, da Europa”. A retomada pelos Wapichana de práticas que
vinham caindo em desuso é, de acordo com o que vimos no
trabalho de campo, política de busca do significado do passa-
do no presente. E assim continuou Maria Consolata Alfredo
em seu texto teatral: “vamos olhar para nosso umbigo cultu-
ral e se orgulhar dele, de quem nos gerou”. Ela falou sobre a
importância de prestarem atenção ao sonhar a identidade no
presente e no futuro. “Se nos colonizaram, vamos viver com
coragem e garra um processo de descolonização e de valoriza-
ção de nossas raízes”. E uma forma de fazer isso talvez possa
ser criar novas situações, novos rituais, como o teatro, para
reviver tais ensinamentos.
Em muitas músicas as plantas são reverenciadas: Kibiui diu
watuman watandinkinhaanii Ku, ku, ku, ku’ukuunau kadyz kapam
‘Com urucum a gente faz a nossa pintura. É a cultura das ma-
mães também’. O urucum tem papel importante na pintura
corporal e também tem outras funções historicamente reco-
nhecidas entre os povos indígenas em Roraima.
Urucum vem da palavra tupi urukú e é uma árvore que dá
frutos com sementes que produzem uma tintura vermelha,
usada para proteger o corpo do sol, de insetos e para pintar
cerâmicas. Moído ele é transformado em pó e empregado
na culinária, dando cor avermelhada como na moqueca, por
exemplo (Bagno; Carvalho, 2014).
122 ¦ TYZYTABA’U

O jenipapo, que também é usado na pintura corporal, dentre


outros usos, aparece nas músicas de Parichara: Kibiuidiu watuman
watandinkinhaanii Du, du, du, dukuzynau kadyz kapam ‘Com jeni-
papo a gente faz a nossa pintura. É a cultura das vovós também’.
O nome jenipapo também vem do tupi: ianipáua ou iandi-
páua, é um fruto arredondado com polpa aromática, comestível
(compotas, doces, xaropes, refrigerante, vinho e licor). Dele os
indígenas há milhares de anos produzem uma tinta preta que
vem sendo usada em inscrições em pedras, cerâmica, em ta-
tuagens e, como já mencionamos, na pintura corporal (Bagno;
Carvalho, 2014).
A música damurida, criada na comunidade Jacaminzinho
e transcrita no trabalho de conclusão de curso de Maria
Auxiliadora Oliveira (2017), ressalta a importância do prato
que inclui vários tipos de pimenta plantadas na comunidade.
A música revela como é feita a damurida: Damuryd didi’ada tym,
damuryd kanyzy tym ‘A damurida com pimenta, a damurida com
tucupi’. Este prato da culinária indígena em Roraima consiste
em ser um caldo apimentado, com folhas de pimenta e peixe
ou outros tipos de carne de caça. É muito apreciado, conside-
rado bom para a saúde e é também usado para proteção.
Simão, entrevistado dia 17 de dezembro de 2014 na comu-
nidade Jacamim, afirmou: “ninguém está valorizando mais o
Parichara. Antes o tuxaua e o gestor juntavam os alunos para
dançar. A gente precisa lembrar pra eles”.
E, para minimizar essa angústia expressada pelo professor
Simão e também por outros(as), as lideranças Wapichana, re-
unidas e organizadas, decidiram criar eventos que servissem
como espaços de uso de práticas que evidenciam e fortalecem
sua diferença.
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 123

AS FESTAS WAPICHANA: AS TRANÇAS


ANCESTRAIS CONTEMPORÂNEAS

Algumas festas que foram criadas e acontecem na região


Serra da Lua são bons exemplos de que “muitas vezes, ‘tradi-
ções’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante
recentes, quando não são inventadas” (Hobsbawm, 1984, p. 9).
A festa da Damurida na comunidade Malacacheta, que
acontece desde o ano 2005, é um desses exemplos. O evento
foi criado para fortalecer o uso de práticas que vinham sendo
pouco vividas nas famílias Wapichana. Assim, a expressão
“tradição inventada” para Eric Hobsbawm nos ajuda a com-
preender esses movimentos culturais.

Inclui tanto as tradições realmente inventadas, construídas e


formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de
maneira mais difícil de localizar num período limitado e de-
terminado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e
se estabeleceram com enorme rapidez (Hobsbawm, 1984, p. 9).

Além da festa da Damurida, na comunidade Malacacheta,


na Região Serra da Lua, organizaram o Festival51 do Beiju, na
comunidade Tabalascada, do Caxiri, na comunidade Moskow,
da Farinha, na comunidade Manoá, da Castanha, no Jacamim,
todas elas inicialmente inventadas pelo movimento das lideran-
ças indígenas para valorizar esses ‘produtos’ e os conhecimentos
associados a eles, inclusive o uso da língua Wapichana.

  Antes o evento era chamado de festa, mas, para conseguir apoio finaceiro da
51

Fundação Nacional do Índio (FUNAI), passaram a chamar de festival.


124 ¦ TYZYTABA’U

Esta, dentre outras competições, acontecem nesses eventos


e evidenciam como ainda há quem use o ralo, quem saiba fiar,
trançar, contar histórias, cantar e dançar o Parichara.

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práti-


cas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade
em relação ao passado (Hobsbawm, 1984, p. 9).

Assim, o sucesso dessas “tradições inventadas” (festas e


festivais) que acontecem a cada ano pode ocorrer por terem
referência em relação a um passado longínquo, “é óbvio que
nem todas essas tradições perduram; nosso objetivo primordial,
porém, não é estudar suas chances de sobrevivência, mas sim
o modo como elas surgiram e se estabeleceram” (Hobsbawm,
1984, p. 9). Consideramos que se esses eventos permanecem,
é porque fazem sentido e há desejo de que continuem a acon-
tecer nas comunidades.

[...] na medida em que há referência a um passado histórico,


as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por estabelecer com
ele uma continuidade bastante artificial. [...] elas são reações
a situações novas que ou assumem a forma de referência a si-
tuações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através
da repetição quase que obrigatória (Hobsbawm, 1984, p. 10).

Por exemplo, dançar Parichara, comer damurida, beiju,


tomar caxiri são práticas culturais que acontecem há séculos
entre os Wapichana e os Macuxi. As comunidades indígenas
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 125

aproveitaram a historicidade do uso dessas tradições para criar


eventos como as festas já mencionadas, dentre outras.
Nilzimara de Souza Silva, neta de Alfredo de Souza, atual
coordenadora pedagógica da região Serra da Lua e mestran-
da na Pós-Graduação em Letras (PPGL) na UFRR, nos contou
que em outubro, na comunidade Muriru, farão a festa da Wiku
‘formiga’. Assim vemos novas festas surgirem com temas cul-
turais considerados importantes pelos Wapichana.
O evento Intercultural, da comunidade Canauanim, é uma
das tradições inventadas mais recentemente na Região Serra
da Lua e teve sua primeira edição em 2009, sendo repetido,
desde então, todos os anos no mês de setembro. No início, o que
acontecia e chamava mais atenção era o futebol. Com o tempo,
o Parichara vem sendo mais valorizado e as competições de
fiar algodão, ralar mandioca, beber caxiri e flecha ao alvo ga-
nharam espaço e passaram a ocupar a hora “nobre” do evento.
Esses projetos ajudam, uma vez que há toda uma prepara-
ção, as comunidades se encontram e compartilham momentos
que ficam na memória. E as competições que ali acontecem
fazem com que os jovens queiram se preparar e aprender o
que antes deixavam de lado.
Para o autor indiano Homi Bhabha, a própria comunidade
é concebida enquanto projeto e não pode ser pensada como
uma categoria monolítica e fixa. Assim, por mais que essas fes-
tas indígenas tenham ligação com seu passado histórico, estão
alinhadas com o que acontece no presente e planejadas pelas
lideranças indígenas para continuarem a acontecer no futuro.

As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiên-


cia através de uma tradição cultural já autenticada; elas são os
126 ¦ TYZYTABA’U

signos da emergência da comunidade concebida como proje-


to - ao mesmo tempo uma visão e uma construção - que leva
alguém para ‘além’ de si para poder retornar, com um espírito
de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente”
(Bhabha, 2003, pp. 21-22).

Essas festas são exemplos interessantes que contribuem


para a reflexão sobre a origem, o quando os eventos foram
concebidos, discutidos e implantados nas comunidades indí-
genas, e o que se tornaram com as múltiplas influências que
receberam. São relações complexas e que muitas vezes provo-
cam uma série de problemas como, por exemplo, a violência
por uso excessivo de bebidas alcoólicas, furtos e até estupros.
O curioso é que relatos antigos de viajantes e religiosos
sobre as “festas de caxiri” traziam também informações acer-
ca dos excessos e dos problemas observados nos períodos de
cada estudo, causados pela quantidade de bebida fermentada
consumida.

A enunciação da diferença cultural problematiza a divisão bi-


nária de passado e presente, tradição e modernidade, no nível
da representação cultural e de usa interpelação legítima. Trata-
se do problema de como, ao significar o presente, algo vem a
ser percebido, recolocado e traduzido em nome da tradição
sob a aparência de um passado que não é necessariamente
um signo fiel da memória histórica, mas uma estratégia de
representação da autoridade em termos de artifício do arcai-
co. Essa interação nega nossa percepção das origens da luta.
Ela mina nossa percepção dos efeitos homogeneizadores dos
símbolos e ícones culturais, ao questionar nossa percepção da
autoridade da síntese cultural em geral (Bhabha, 2003, p. 65).
OS USOS DOS OBJETOS NOS RITUAIS WAPICHANA ¦ 127

As ideias de Bhabha ajudam-nos a entender que esses


“entrelugares” passado e presente, pensando no futuro, foram
construídos pelas lideranças indígenas da Região Serra da Lua
como estratégia de luta pela continuidade da diferença.
A sonoridade do Parichara e das outras músicas e danças
Wapichana, os cantos/puuri dos pajés, o uso da indumentária
e dos objetos artesanais, tudo isso carrega uma força e muitos
sentidos agregados.
Dom Eggerath (1924) referiu-se aos cantos dos pajés
Wapichana, considerando-os monótonos e tristes, porém re-
conhecendo que eram harmônicos.

[...] cuja aflição procuram aliviar, abanando ramalhetes de fo-


lhagens apropriadas, cujo escolha e composição é segredo do
“Pagé” e entoando cantos monótonos e tristonhos, posto que
de harmonia agradável. Esse processo age sobre o doente como
que hypnoticamente (Eggerath, 1924, p. 52).

Exemplos dessa multivocalidade dos símbolos Wapichana


podem ser o fato de nas letras das músicas do Parichara apa-
recerem personagens e referências comuns às histórias e às
puury ‘rezas’ Wapichana. Muitas vezes, tudo aparece interliga-
do, o uso da língua Wapichana, o conhecimento e a narração
de histórias, o fazer e o uso dos objetos, a prática das músicas,
das danças e das puuri.
Acabamento provisório

Concluímos, então, que a permanência do uso da língua


Wapichana no território se alimenta do exercício da utilização
dos objetos por ela denominados nas narrativas transmitidas
e nos rituais vivenciados. Como as culturas são dinâmicas, elas
podem ocupar novos espaços simbólicos e esses poderão ser
acompanhados pela própria língua. Se não for possível evitar
as mudanças, poderão, assim como vêm fazendo, agir sobre
elas de forma própria.
Da mesma forma, as fagulhas de memória recuperadas
neste livro foram construídas pela fusão das análises do uso
das narrativas, dos objetos e dos rituais. Constatamos que a
imagem que o povo Wapichana tem de si mesmo subsume
o uso de sua língua. Logo, escolher usar ora uma, ora outra
língua deve-se, seguramente, ao reconhecimento ou não da
importância da língua Wapichana por seu povo. Percebemos
que há casos de comunidades que pouco compartilham suas
histórias, vivenciam esporadicamente a atividade do artesa-
nato e da dança do Parichara e, ainda assim, mantêm o uso
da língua Wapichana.
Averiguamos que quem usa a língua Wapichana o faz
porque precisa, na maior parte dos casos são pessoas que de-
130 ¦ TYZYTABA’U

dicam mais tempo às atividades herdadas de seus ancestrais e


muitas delas nem foram à escola. As famílias que continuam
transmitindo a língua são as que ainda sabem fazer artesanato,
passaram pelos ritos de iniciação e tem dentro de si ao menos
um pupayzu ‘rezador’.
Acreditamos que a continuidade do uso da língua e dos
valores Wapichana pode corroborar para a qualidade de vida
nas comunidades, bem como de defesa das perspectivas desse
povo, de dentro para fora, diante dos conflitos vividos.
Continuamos o trabalho como olhar para a rememória,
reconhecendo que ela constrói identificações e desperta o
senso de enraizamento com o passado, sendo a re-criação da
história uma forma de cura (Gentzler, 2008, p. 181).
O livro precisou ser publicado, mas continuaremos traba-
lhando, uma vez que o tempo linear que exige uma publicação
nos tira do agora, ao contrário do tempo indígena, que, segun-
do Daniel Munduruku (2019), é o tempo da natureza, que é
cíclica e se desdobra em si mesma para se renovar. Assim, res-
saltamos que continuaremos dialogando e reinventando com
os trançadores de palavras e coisas.
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Posfácio

No pós-doutorado em 2019 continuamos aprofundan-


do o estudo com a pesquisa “Biografias de Objetos Macuxi,
Taurepang, Ye’kwana e Wapichana Guardados no SEE-RJ e
no Museu Etnológico de Berlim”. Nesse contexto, certa vez
ouvimos a seguinte afirmação: “já levaram nossos objetos,
agora querem levar nossos conhecimentos”. Em outra oca-
sião disseram-nos também: “se for para levar embora nossos
objetos não temos interesse em participar do projeto”. Essas
falas evidenciam uma tomada de consciência em relação às
pesquisas que levam palavras e objetos sem devolver depois
nenhum tipo de retorno ao povo que busca estratégias para
lembrar e continuar repassando dentro de suas comunidades
seus conhecimentos.
Nesse sentido, fazemos referência ao papel da arte e das
origens e ao mesmo tempo do desrespeito e violência físi-
ca e simbólica enfrentada pelos povos originários. Dizem os
Wapichana que foram das cinzas de “Oropiro” ‘enorme cobra’
que eles vieram (Farage, 1997). Na atualidade, Terêncio Salomão
Manduca contou que “o garimpo que acontece na Terra Indígena
Jacamim está destruindo Urupiru” (Entrevista em setembro
de 2015).
138 ¦ TYZYTABA’U

Essas formas, tais como as de uma serpente primordial,


tantos outros desenhos e pinturas nos mais diversos suportes,
representam o ser e os níveis de consciência humana. Essas
relações mais profundas, associadas aos conhecimentos das
artes, são transmitidas na língua Wapichana e difíceis de tra-
duzir. O ato de ver é dinâmico e a percepção viaja entre dia e
noite, vigília e sonho. É de se notar que o padrão gráfico, re-
ferência importante, tem relação direta com o pensamento e
com a capacidade de enxergar uma multiplicidade de mundos
concomitantemente.
A cada transformação, muda também a expressão e a forma
de ver. São muitos mundos simultâneos, presentes e em contato.
“O papel da arte seria, portanto, o de comunicar uma percep-
ção sintética dessa simultaneidade das diferentes realidades
nem sempre perceptíveis a todos” (Lagrou, 2007, p. 93). E nós
diríamos que o papel da língua Wapichana na conexão entre
esses conhecimentos é fundamental, tal como é nas palavras
de poder, de cura, nas músicas e histórias.
No caderno de fotos incluiremos algumas das imagens que
não fizeram parte da tese, para divulgar um pouco do que foi
fotografado antes do Museu Nacional ser incendiado em 2018,
existindo na atualidade apenas nessas imagens.
Na comunidade Malacacheta ouvimos a informação de que
ainda há mulheres Wapichana que fazem bolsa com esse tipo
de madeira armada. A figura 83 é um aparelho para tecer tan-
gas contém duas madeiras curvas com amarração interna de
corda de palha e linhas de algodão; está sendo confeccionada
uma tanga de miçangas lilás, branca, preta, verde e marrom.
As famílias Wapichana que voltam para o Brasil ou as que
vem para cá muitas vezes trazem seus trajes e usam nas apresen-
Posfácio ¦ 139

tações culturais que acontecem tanto nas comunidades como


nas cidades. Os grupos de Parichara no Brasil usam mais saias
de palha ou de algodão. Raramente vemos saias de bambuzinho.
Em oficinas na comunidade Malacacheta a professora
Waléria Ambrósio colecionou desenhos feitos pelos alunos e
montou uma lista de padrões. Em oficinas realizadas por nós
na região Baixo São Marcos ouvimos e anotamos os nomes
que os Wapichana e Macuxi dão aos padrões gráficos (figuras
108 a 118 no caderno de fotos). Compartilhamos também esse
material com os professores de línguas indígenas da Região
Serra da Lua.
Cada tipo de padrão gráfico trançado, segundo o Sr. Adão
Alberto da Silva, pode ser chamado de katanaakariwei e tem
um nome e é a base das tranças, mas ele faz apenas abano
atualmente. A trança para cinto, tiara, chapéu de arumã, cada
trança tem um nome. O trançador Sr. Edgar Antônio da Silva
contou outros nomes, evidenciando que há variedade na no-
meação e no sentido de cada padrão gráfico. E alguns dos que
mostramos a ele, disse que apenas os Wai Wai fazem.
Esses padrões continuam a ser pintados nos corpos, como
é possível ver a seguirna fotografia Kunhantã Pintada da an-
tropóloga Wapichana Greice Rocha (comunidade indígena
Tabalascada, município Cantá). Essa fotografia esteve na ex-
posição coletiva indígena “Para Amazônia respirar Arte”, que
aconteceu nos dias 4 e 5 de setembro de 2021, no Espaço Paricá,
bairro Aeroporto, em Boa Vista (RR).
Percebemos que o padrão chamado Waichau aparece tam-
bém na Pedra Pintada, sítio arqueológico de pintura rupestre
localizado na Terra Indígena São Marcos (figura 121 no caderno
de fotos). Na figura 122 vemos o padrão kapaxi mad.
140 ¦ TYZYTABA’U

Em 2016 compartilhamos uma oficina com um tyzya-


ba’u ‘trançadores’ e com professores de línguas Wapichana
da Região Murupu, na comunidade Serra do Truaru, Terra
Indígena Serra da Moça (município de Boa Vista) e foi dito
que não daria para fazer o nizu ‘jamaxim’ com arumã porque
já não havia essa planta ali naquela localidade. Para substituir
o arumã sugeriram a jacitara, mas avisaram que mesmo assim
precisava procurar bastante, andar longe, mas conseguiam. No
entanto, contaram que houve uma queimada muito grande e
naquela ocasião não conseguiríamos nem jacitara. O trabalho
foi realizado apenas com o trançador narrando o como fazer
dupaiwai, quando a proposta inicial era todo mundo trançar
para depois conseguir ensinar na prática também.
Na comunidade Raimundão, em 2012, os professores en-
sinaram a fazer: peneira, darruana, diversos tipos de cestos,
vassoura, colares de sementes e de miçangas, saia e cocar de
palha. Desde a abertura dos cursos, aos momentos de culminân-
cia e nos eventos de encerramento, o uso da língua, as danças,
cantos, pinturas corporais, teatro prestigiam e ressaltaram
a importância das culturas indígenas Macuxi e Wapichana.
A quantidade de alunos interessados e a mobilização das co-
munidades comprovam que os indígenas querem sim manter o
uso de suas línguas e culturas. Portanto mais iniciativas como
a do Programa de Valorização das Línguas e Culturas Indígenas
de Roraima precisam ser pensadas e desenvolvidas para con-
seguir apoiar o movimento nas comunidades indígenas na
direção de fortalecer o uso das práticas artístico socioculturais.
Sonhamos juntos(as) conseguir organizar muitos intercâm-
bios, livros, vídeos e produzir boas lembranças, prestigiando
práticas socioculturais e fortalecendo relações entre pessoas,
Posfácio ¦ 141

plantas, animais e ambiente, para amenizar a crise climática


e pelo bem viver nas comunidades de cidades. Assim como
no Raimundão estão reflorestando, que consigamos fazer ger-
minar a semente das línguas e das artes, sem esquecer tanta
sabedoria ancestral que vem continuando a ser compartilhada
generosamente por tantas lideranças indígenas.
Em 2012, com a artesã Macuxi Iolanda Fidelis, criamos
cursos e colaboramos para divulgar a arte de suas peças de
barro, levando-as para expor e vender em feiras e eventos. As
panelas de barro são usadas no cozimento dos alimentos, como
a damurida, que é tão apreciada tanto pelos Macuxi, quanto
pelos Wapichana. Conseguimos aprovação no edital para apoio
a eventos Anna Komanto’ Eseru: Festival das Panelas. O even-
to aconteceu no dia 10 de novembro de 2012, na comunidade
indígena Raposa I com apresentação de danças de Parichara,
relatos da história sobre a origem do povo Macuxi, diversos
produtos das comunidades. Mesmo sendo um evento pensado
pelos artesãos, o apoio do tuxaua Caetano Raposo da comuni-
dade Raposa foi fundamental, assim a coordenação geral do
evento foi assumida pela casa de cultura Amooko Eppu’kena.
As artesãs Isilda Fidelis, Ivanir Fidelis, Joana, Anazuíla e
Iolanda foram homenageadas e Leucir Sampaio, representante
da comunidade do Xumina, dentre outros artesãos presentes.
No evento houve discurso em homenagem as primeiras mu-
lheres artesãs que vem, ao longo dos anos, demonstrando a
força de trabalho como forma de garantir a geração de renda
de suas famílias, e ao mesmo tempo trabalham a valorização
de antigos costumes.
Todos os convidados presentes prestigiaram as mulheres
artesãs, visitaram as exposições de trabalho realizado pelas
142 ¦ TYZYTABA’U

artesãs. Nas salas de aula na escola foram realizadas palestras,


exposições de fotos, apresentação de vídeos, debates para valori-
zar as línguas e artes, apresentações e exposições dos trabalhos
das escolas indígenas, apresentação de dança de Parichara
das comunidades Raimundão e Sucuba; dramatização com os
alunos “A reconquista da comunidade Barata” e apresentação
do coral da comunidade Araçá da Serra. Houve corrida com
tora de dois quilômetros, disputa de arco e flecha, oficina de
cerâmica e apresentação de bandas locais.
O evento conseguiu atingir seu objetivo, o de divulgar a
ideia de que o saber fazer panelas de barro Macuxi é patrimô-
nio imaterial indígena e precisa ser preservado e valorizado.
Conseguiu-se também tornar mais visível e acessível para um
público amplo a história das panelas de barro Macuxi e da
memória das artesãs. Os moradores da comunidade e da re-
gião também perceberam no evento a riqueza cultural do povo
Macuxi que vive na comunidade Raposa I. Assim o evento pode
contribuir para que as artesãs Macuxi continuem utilizando
essa atividade como forma de garantir a geração de renda de
suas famílias, estimulando, a partir do desenvolvimento dessas
práticas artísticas, o estudo e o uso da língua Macuxi, desper-
tando a curiosidade e o orgulho dos mais jovens, na medida em
que estes passam a conhecer mais sobre as suas raízes e sobre
a trajetória do povo Macuxi. Na ocasião foi possível também
reunir e promover o intercâmbio de conhecimentos entre as
comunidades e as instituições que trabalham processos de
valorização das culturas indígenas em Roraima.
Em 2014 trabalhamos em sala de aula, com uma turma de
quinto período, a cartilha com informações desde como eram
produzidas e usadas as panelas de barro no passado, até seus
Posfácio ¦ 143

usos e modos de transmissão de conhecimentos na atualidade.


As oficinas para elaboração da cartilha aconteceram durante as
aulas no curso Gestão Territorial Indígena, no tema contextual
Patrimônio Indígena na Amazônia. A partir dessas experiên-
cias redigimos um texto refletindo sobre o que observamos e
vivenciamos com os alunos indígenas na relação com a panela
de barro Macuxi. Quando vamos às comunidades com os bol-
sistas e alunos da ênfase Patrimônio Indígena, do curso Gestão
Territorial Indígena, realizamos palestra, projetamos filmes,
damos os informes sobre a legislação que protege o patrimô-
nio, as possibilidades de apoio, financiamento e planejamos
a continuidade das ações do programa de extensão.
A exposição “Pena Esenyakama’san Amenanpe Tesenyaka’
masanan: o fazer que atravessa o tempo” foi inaugurada em 2019
durante o Congresso de Cerâmica na UFRR e depois permane-
ceu permanente na casa de cultura da comunidade Raposa I.
Atualmente estamos juntos realizando o “Inventário
Nacional da Diversidade Linguística Wapichana e Macuxi da
Região Serra da Lua/RR”, projeto no qual pesquisadores in-
dígenas estão documentando falas nas línguas Wapichana e
Macuxi, incluindo desde a explicação da retirada de materiais,
até cada detalhe da confecção de objetos.
Pretendemos continuar essa parceria com a região que
iniciou desde quando chegamos a Roraima, em 2009. No
ano de 2010, com a Escola Estadual Indígena Edmison Lima
Cavalcante, na comunidade Tabalascada, realizamos o projeto
“Narrativas Gráficas da Tabalascada: Registros Visuais”. Como
resultado desse trabalho, pintamos narrativas nos muros da
escola, enfeitando o muro, que antes estava abandonado, com
padrões gráficos Macuxi, Wapichana, com paisagens e objetos
como darruana, abano e tipiti.
144 ¦ TYZYTABA’U

Na Escola Estadual Indígena Sizenando Diniz, na comu-


nidade Malacacheta, trabalhamos oficinas de história oral e
orientamos os alunos a buscarem informações sobre os objetos
que escolheram estudar. A escola vem realizando há muitos
anos oficinas de produção de objetos trançados e estamos
também, com eles, trabalhando materiais didáticos para siste-
matizar esses conhecimentos na língua Wapichana e incluí-los
de forma sistematizada nas escolas, principalmente nas aulas
de língua Wapichana. Nos muros dessa escola, pintamos esses
objetos escrevendo seus nomes na língua Wapichana e ma-
peamos com os alunos os artesãos, artesãs e objetos que ainda
são produzidos na comunidade. Assim como refletimos acerca
das inovações que a arte contemporânea vem agregando aos
fazeres e conhecimentos Wapichana.
Esperamos continuar o desenvolvendo de trabalho com ale-
gria, muita dedicação e seriedade e que todos que nos apoiam
continuem na direção de fortalecer o uso das línguas e cultu-
ras Macuxi e Wapichana no Estado de Roraima.
Esperamos conseguir continuar orientando alunos(as) in-
dígenas na graduação, pós-graduação, organizando com eles
cursos de extensão e desenvolvendo pesquisas. Queremos con-
tinuar colaborando no estudo e ensino das línguas e culturas
indígenas em Roraima.
Sonhamos juntos construir uma casa de memória e um
Ecomuseu Wapichana e Macuxi na Região Serra da Lua, sem-
pre com textos nas três línguas, colocando ainda mais placas
para divulgar e prestigiar essas línguas e culturas. Pretendemos
pensar possibilidades de construir exposições/museus de
modo coletivo, físico e/ou digital com povos indígenas a partir
de experiências com História Oral e refletir acerca de quais
Posfácio ¦ 145

objetos expor, como fazê-los circular, em quais espaços e como


trabalhar educação patrimonial entre culturas, de preferência
nas línguas indígenas ou com material bilíngue.
Como forma de colaborar na implementação das leis que
cooficializaram as línguas Wapichana e Macuxi na Região
Serra da Lua - 211/2014, no município Bonfim; e 281/2015, no
município Cantá -, colocamos seis placas às margens das es-
tradas (vicinais) nas línguas Wapichana, Macuxi e Portuguesa.
A primeira avisando que ali se dá o “acesso às comunida-
des indígenas”; a segunda: “preserve a natureza” e as outras
cinco com os nomes das Terras Indígenas: Jacamim, Moskow,
Malacacheta e Manoá.
A colocação de placas aconteceu na direção de pensar a
territorialização como uma forma de demarcar, mostrar pre-
sença, diversidade e prestigiar as línguas Wapichana e Macuxi
na região. Houve solicitação de mais placas com os nomes de
todas as comunidades da região e de “preserve a natureza”
para os locais como os igarapés que frequentemente são mal-
tratados por turistas.
Para concluir este livro gostaria de compartilhar a alegria
de ver artes indígenas contemporâneas em exposições mundo
afora. A figura 140 no caderno de fotos é a obra em acrílico
sobre tela, de 2019, com tamanho de 146,5 x 0,68. Essa imagem
nos fala dos gente-planta e nos ajuda a compreender tanto a
simultaneidade de mundos como a personificação.
Que possamos respirar arte e sejamos vida! Kaimen ma-
nawyn ‘agradeço’ aos Wapichana e todos(as) que colaboraram
com este trabalho. No que depender de nós continuaremos
com os povos indígenas em Roraima e nos demais lugares do
mundo compartilhando conhecimentos, sonhando junto e
caminhando entre línguas e mundos.
Caderno
de fotos

Caderno de fotos
Caderno de fotos ¦ 149

Figura 1 – Documento de Identidade de Alfred George


Fonte – Documento apresentado por seu filho Noberto Cruz da Silva

Figura 2 – Comunidade Tabalascada poucos anos


antes da chegada de Alfredo
Fonte – Microfilme, Museu do Índio mf340_pl052_doc00_foto029_1333.
150 ¦ TYZYTABA’U

Figura 3 – Mapa da etnoregião Serra da Lua


Fonte – CIR, Protocolo de Consulta (2019, p. 10)
Caderno de fotos ¦ 151

Figura 4 – Comunidade Malacacheta na época


da Comissão de Fronteiras
Fonte – Microfilme, Museu do Índio mf340_pl052_doc00_foto025_1341

Figura 5 – Casa e moradores da comunidade Jacamim


Fonte – Microfilme, Museu do Índio mf340_pl052_doc00_foto028_1340.
152 ¦ TYZYTABA’U

Figura 6 – Casa de apoio na comunidade Marupá


Fonte – Casa em que a autora ficou hospedada em 2014.

Figura 7 – Tanga com grafismo kuazaza mada ‘pele de cobra’


Fonte – Fotografia da autora do objeto número 5576
no SEE/Museu Nacional.
Caderno de fotos ¦ 153

Segundo Valentino de Souza, o


padrão ao lado chama-se Wizbara
‘desenhos de estrelas’. Essa tanga
estava inventariada pelo nº 1048,
nome “Uapichanás”, com material
de miçangas e algodão e sua origem
notificada a M.A. Barros Bastos,
1884.
Valentino de Souza chamou este
padrão de uiskunhanbara kuwazaza,
sem traduzir essa expressão e
informando que é usado no Natal.
A tanga ao lado estava com nº 239,
nomeada como “Uapichanás do Rio
Branco”. Apesar de a ponta direita
inferior estar desfazendo, seu
estado geral era bom.
Este padrão gráfico, para Valentino
de Souza, tem o nome de charawaud
kaxuwada danid ‘broto de taboca’
e ele disse que faz esse desenho
também no trançado.

Nº de inventário no Museu
Nacional: 240.
Segundo Valentino de Souza, esse
padrão chama Rumi ‘desenho de
cuatá’ (tipo de macaco que já foi
bastante encontrado na região).

Nº de inventário no Museu
Nacional: 3280.
(continua)
154 ¦ TYZYTABA’U

Terêncio Salomão Manduca relatou


já ter visto o padrão gráfico ao
lado: puaty zykaritan ‘macaco pula’,
segundo ele esse padrão também
é usado em vários trançados de
balaio.

Nº de inventário no Museu
Nacional: 2222.
O padrão gráfico ao lado parece um
Kankuryn ‘escorpião’. Registrado
no livro do Museu Nacional
como: “Collar de contas dos índios
Uapichanás”.

Nº de inventário no Museu
Nacional: 1607
Figuras 8 a 13 – Padrões gráficos nas peças de miçanga

Madalena da Silva, da comunidade


Wapum, também reconheceu o
chinelo, informando que se chama
ywyzarukun, na língua Wapichana.

Figura 14 – Ywyzarukun ‘Chinelo de Buriti’


Fonte – Fotografia da autora de objeto
no SEE/Museu Nacional, 2013.
Caderno de fotos ¦ 155

O tuxaua da comunidade Jacamim


daquele período, Geraldo Antônio
Souza, em 17 de dezembro de 2014,
examinou as fotos dos objetos
Wapichana que fotografamos no
Museu Nacional, ensinando: puchi
‘cuia’ (nº de inventário no Museu
Nacional 21481 e 568), kurarike
‘vassoura’ (nº de inventário no Museu
Nacional 28048)1.

Figura 15 – Kurarike/ Parayribei ‘Vassoura’


Fonte – Fotografia do objeto feita pela autora
no SEE/Museu Nacional, 2013.

1
Observamos uma diferença no dicionário Wapichana (2013), em que bun é regis-
trado como cuia, e parayribei como vassoura.
156 ¦ TYZYTABA’U

Figura 16 – Mulheres retirando a massa


de mandioca do nizu ‘tipiti’
Fonte – Fotografia arquivada na pasta do Rio Branco, no centro de
documentação do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, provavel-
mente da época que Dom Alcuíno Meyer esteve em Roraima.
Copiada pela autora em 2013.
Caderno de fotos ¦ 157

kapaxi mad

atury dukurii

kawarydzz

Figuras 17 a 19 – Tipos de trançado.


Fonte – Desenhos realizados pelos alunos de língua e cultura
Wapichana no curso de extensão (UFRR, 2015).

Figura 20 – Anastácio trançando tipiti.


Fonte – Fotografia feita pela autora na comunidade Marupá em 2014.
158 ¦ TYZYTABA’U

O passador é feito com osso de


macaco guariba e funciona como
uma agulha para as tranças de
arumã ganharem forma. Gilberto,
capataz na comunidade Tabalascada,
mostrou o objeto ao pesquisador
Heleno Montenegro, sendo esta a
única referência que encontramos.

Figura 21 – Passador para trançar arumã


Fonte – MONTENEGRO, 2016.

kawaryd badi taunaa


Figuras 22 e 23 – Tipos de trançado
Fonte – Acervo da autora, 2012. Fonte – Desenhos de Koch Gurmberg
(1982).
Caderno de fotos ¦ 159

Da miçanga passamos para o


estudo das formas de trançar a
palha de buriti, de najá e do arumã.
Percebemos no trançado ao lado
uma variação de charawaid kaxuwad
danid que já foi aqui exposto na
tanga de miçanga.

Kiberu ‘sapo’. O sapo aparece


em várias histórias Wapichana
e Macuxi. Há referência à mãe
sapa de Makunaimî.

Puaty ‘macaco’ Eles trançam esse


padrão em jamaxim e no balaio. Os
Ye’kwana também usam essa forma.

Kankuryn ‘escorpião’ Observa-


se que o escorpião aparece
tanto no trançado como no
colar de miçanga (fotografia
incluída anteriormente nesse
livro-objeto nº1607, assim re-
gistrado no Museu Nacional).
Figuras 24 a 27 – Padrões nos trançados
Fonte – Koch-Grünberg.
160 ¦ TYZYTABA’U

O ralo funcionou antes da entrada


do dinheiro, como objeto de
identificação do valor da troca
(ANDRADE, 2007). Por exemplo,
uma rede valia dois ralos. Com
a intensificação do contato com
o colonizador, os Wapichana
passaram a receber e trocar seu
trabalho por facas, por exemplo,
com os Waiwai. Desta forma, o
objeto passava do povo que tinha
mais contato com o colonizador
para o que ainda não conhecia,
sofrendo uma refuncionalização,
por faltar, a quem o recebia, o
conhecimento da função dada pelo
produtor originário
Figura 28 – Mulheres ralando mandioca
Fonte – Cópia fotográfica de outra fotografia do centro
de documentação do Mosteiro de São Bento.
Caderno de fotos ¦ 161

Figura 29 – Competição de arco e flecha no Festival do Beiju.


Fonte – Foto da autora na comunidade Tabalascada,
no dia 05 de dezembro de 2015.

Figura 30 – Serra do Morcego na comunidade Wapum


Fonte – Foto da autora em 15 de dezembro de 2014.
162 ¦ TYZYTABA’U

Figura 31 a 33 – Kubin ‘recipiente para guardar flechas’


Fonte – Fotografia da autora do objeto 27995, presente
no SEE/Museu Nacional, 2013.

bairii tumkinhei tikez marii kaxuad danid idi’u


Figura 34 e 35 – Objetos usados para fazer fogo e para raspar
Fonte – Desenho de Koch Grünberg, 1982.
Caderno de fotos ¦ 163

Figura 36 – Chipirari atamyn nhykynyy idiu ytumkau


‘lança de guerra’
Fonte – Desenho de Koch Grünberg, 1982.

Figura 37 – Objeto de pesca


Fonte – Fotografia da autora do objeto 27544, registrado no livro
do SEE/Museu Nacional, 2013.
164 ¦ TYZYTABA’U

daruku nikubu

sairu kabuwapkariwei
Figuras 38 a 40 – Objetos de pesca desenhados
Fonte – Desenho de Koch Grünberg, 1982.

kybaiau kamuti

kuwara
Figura 41 a 43 – Objetos de cerâmica
Fonte – Desenhos de Koch Grünberg, 1982.
Caderno de fotos ¦ 165

Figura 44 – Rede de algodão tingido e marron


Fonte – Fotografia da autora do objeto nº 8198,
no SEE/Museu Nacional, 2013.

Figura 45 – Rede de algodão branco e marrom


Fonte – Arquivo pessoal da autora, 2014.
166 ¦ TYZYTABA’U

Figura 46 – Rede de Tucum


Fonte – Fotografia da autora, SEE/Museu Nacional,
objeto de número 8203, 2013.

Essa imagem do ano de 1927 mostra o uso da tipoia e também um tipo


de casa da época com as paredes também de palha.
Figura 47 – Mulher com criança na didimei ‘Tipoia’
Fonte – Microfilme do Museu do Índio mf340_pl052_doc00_foto027_1355
Caderno de fotos ¦ 167

Figuras 48 a 51 – Tinkizai e tabay ‘fusos’


Fonte – Fotografias da autora dos objetos 1087, 28052 (frente e verso) e 1089,
no SEE/Museu Nacional.
168 ¦ TYZYTABA’U

kinhara awaibara tibi idi’u ytyzytkau


kamutikauny’u ytumkau
Figuras 52 e 53 – Recipientes para limpar e guardar o algodão
Fonte – Desenhos de Koch Grünberg, 1982.

Figura 54 –Zidiariubei ‘bolsinha que guardam algodão’


Fonte – Fotografia da autora no SEE/Museu Nacional, 2013.
Caderno de fotos ¦ 169

Figura 55 – As Duwad ‘cabaças’ na viagem


entre comunidades e países
Fonte – Microfilme do Museu do Índio mf340_pl052_doc00_foto026_1332.

Figuras 56 e 57 – Puchi ‘Cuia’ e Waiau ‘Cuia redonda’


Fonte – Fotografias da autora no SEE/Museu Nacional, 2013.
170 ¦ TYZYTABA’U

waiau puchi

Figura 58 a 60 – Cabaça e cuias


Fonte – Desenhos de Koch Grünberg, 1982.

Figura 61 e 62 – Maudii ‘pente’ e Mazuwaka ‘prensa’


Fonte – Desenhos de Koch Grünberg, 1982.
Caderno de fotos ¦ 171

Figura 63 a 65 – Tipos de Kuwamai ‘cocar’


Fonte – Fotografia da autora dos objetos 220, 28019, 1049 e 221
no SEE/Museu Nacional.
172 ¦ TYZYTABA’U

Figura 66 e 67 – Baru ‘machado’


Fonte – Fotografias da autora dos objetos 1101,
no SEE/Museu Nacional.

Figura 68 – Purukau Kanauidian ‘Soquete de pilão’


Fonte – Fotografia da autora do objeto
no SEE/Museu Nacional, nº 27994.
Caderno de fotos ¦ 173

Figura 69 – Xikiraduu ‘chicote para certas flagelações’


Fonte – Desenho de Koch-Grünberg, 1982.

Figura 70 – Flauta de Tíbia de Veado


Fonte – Museu Etnológico de Berlim.

Figura 71 – Parichara
Fonte – Fotografia no centro de documentação do
Mosteiro de São Bento copiada pela autora em 2013.
174 ¦ TYZYTABA’U

Figura 72 – Terêncio Salomão Manduca de “chapéu”


Fonte – Arquivo pessoal da autora, 2016.

Figura 73 – Apresentação de Parichara na comunidade Marupá


Fonte – Arquivo pessoal da autora, 2016.
Caderno de fotos ¦ 175

Figuras 74 e 75 – Capa e página de um cd de Parichara


Fonte – Conselho Indígena de Roraima.
176 ¦ TYZYTABA’U

Figura 76 – Competição de quem rala mais


rápido no Festival do Beiju
Fonte – Fotografia da autora, comunidade Tabalascada,
05 de dezembro de 2015.

O canudo do cachimbo é de tíbia de veado, o extremo oposto é


de cabaça e uma espécie de barro faz o ajunte. Essa cordinha
provavelmente servia para carregar o cachimbo atado ao pescoço e
para guardá-lo pendurado em casa.
Figura 77 – Cachimbo Wapichana
Caderno de fotos ¦ 177

Havia uma tanga menor com o mesmo padrão gráfico


inventariada com nº 5325

As cores das miçangas que predominam nessas três peças são branco
e azul. E as formas vão desde espirais quadradas a pequenos “s” que
entram uns nos outros com ângulos retos entre as linhas.
Nº de inventário 258, nomeado de “Uapichanás”,
com dimensões de 22 x 12 cm.
. (continua)
178 ¦ TYZYTABA’U

Figuras 78 a 82 – Tangas Wapichana

Figura 83 e 84 – Aparelho para tecer tangas


de contas índios Uapixanás2

2
Nº de inventário 283, “Aparelho para tecer tangas de contas índios Uapixanás”,
com as dimensões de 78 x 43 cm. Havia outro aparelho desses de nº 284, com a
tanga de cores e formas diferentes medindo 58 x 39 cm.
Caderno de fotos ¦ 179

Nº de inventário 257.
Havia outra bem parecida de nº 252 dentro de um saco
Figura 85 – Bracelete de contas Wapichana

A “tanga de fructos Uapixanás” estava em bom estado e estavam


registradas também outras desse tipo com os números: 278, 235, 260,
281, 829, 16230, 538, 6293, 21726, 27725. Muitas delas estavam dentro
de sacos que as protegiam. Ouvimos relatos de que na Guiana Inglesa
os Wapichana usam mais esse tipo de tanga do que no Brasil.
Figura 86 – tanga de frutos Wapichana
180 ¦ TYZYTABA’U

Nº de inventário 877, “Dicotillis torquatrux cinta de dentes


de catitu provavelmente Uapixana”. Ao observarem a imagem
disseram que usaram algodão guariba.
Figuras 87 e 88 – Cinta de dentes de Catitu

Figuras 89 e 90 – Colar de dentes Wapichana


Caderno de fotos ¦ 181

Colocamos fotografias com zoom nos colares acima para permitir


uma visão mas nítida do tipo de dente de cada um. Fizemos o
mesmo com o colar de conchas a seguir.
Figura 91 – Pequeno Colar de dentes Wapichana

Figuras 92 e 93 – Colar de conchas


182 ¦ TYZYTABA’U

Nº de inventário 244, “colar de


contas”. Dimensão: 1,12 cm.
Feita com 5 fios de um lado e de
outro, como ondas de
miçangas brancas opacas e vermelhas
translúcidas.

Com zoom percebe-se ainda uma


fileira de contas verde e outra lilás.
Recentemente encontrei belas peças
em miçanga na exposição “Para
Amazônia respirar Arte” (2021). E o
estilo das peças não era tão diferente
do que as aqui expostas.

Nº de inventário 244, “colar de contas”. Dimensão: 1,12 cm.


Feita com 5 fios de um lado e de outro, como ondas de
miçangas brancas opacas e vermelhas translúcidas.
Figuras 94 a 99 – Colares de miçangas
Caderno de fotos ¦ 183

Inventariado pelo nº 1068 “colar de fructos dos índios Uapichanás”,


encontrava-se em bom estado
e sua procedência era Bastos, 1884.

Percebemos que na atualidade os WaiWai produzem mais colares com


esse tipo de sementes do que os Wapichana.
Figura 100 – Colar de Frutos

Este colar de bambuzinho ou taquarinha foi a única peça encontrada


com esse material. Já vi saias de parichara
Macuxi com bambuzinhos ou taquaras um pouco maiores.
Figura 101 – colar de bambuzinho
184 ¦ TYZYTABA’U

Essa foi a única colher de madeira encontrada.

Nº 2331 no livro de Registro do Museu Nacional.


Figura 102 – Colher de madeira

Figuras 103 e 104 – Bolsa para flechas com tampa

Provavelmente era a esse tipo de corda ao lado


que se referiu Alfredo de Souza no capítulo 1.

Nº 1137 no livro de Registro do Museu Nacional.


Figura 105 – Corda artesanal
Caderno de fotos ¦ 185

Foi interessante encontrar alguns materiais


também guardados no Museu Nacional.

Nº 1084 no livro de Registro do Museu Nacional.


Figura 106 – Material para vassoura

Um presente de um ex orientando Wapichana me fez conhecer e


poder explicar o objeto acima. É dai de dentro que saem as castanhas.
E é muito difícil quebrar e abrir.
Figura 107 – Casa de castanha do Brasil
186 ¦ TYZYTABA’U

kadadzapun ‘jibóia’. Quem usa


mais é moça solteira.

Wyradmad ‘casco de jabuti’, que


significa perseverança.

Kupaynau ‘peixes’

Maraty duluri’i ‘peito de um tipo de


pássaro’ ou Awaribei ‘abano’. Usam
a tinta da fruta diakary para fazer
aparecer os desenhos no trançado.

Kapaxi mad ‘Escama de tatu’

Waichau ‘pacu grande’ ou kadary ury


‘pacu pequeno’

Kupay mad ‘Escama de peixe’,


é muito usado para dançar
Parichara.
Nizu (tipiti usado para espremer
Kankurin ‘escorpião’
massa de mandioca), sumbara (esteira
que coloca no chão). Quando alguém
se pinta assim é para representar as
tranças.
Sakichapayzu daiman
‘diamante’

Taramizu ‘cruzado’

Kuxary awyn ‘olho de veado


capoeira’

Figuras 108 a 118 – padrões gráficos Wapichana


Fonte – Recebemos esses padrões gráficos da professora
Waleria Ambrósio em documento com três páginas.
Caderno de fotos ¦ 187

Figuras 119 e 120 – Kunhantã e Moça Pintada


Fonte – Catálogo da exposição Para a Amazônia respirar Arte, 2021.
188 ¦ TYZYTABA’U

Figuras 121 e 122 – Pinturas Rupestres da Pedra Pintada (RR)


Fonte – Acervo da autora, 2014.

Figuras 123 e 124 – Páginas do livro Dupawai


Fonte – Livro no prelo.
Caderno de fotos ¦ 189

Figuras 125 a 130 – Sequência de fotos do


artesanato da comunidade Raimundão
Fonte – Acervo da autora, 2012.
190 ¦ TYZYTABA’U

Figuras 131 a 133 – 2º Festival de Parixara e aula de trançado


Fonte – Acervo da autora, 2014.
Caderno de fotos ¦ 191

Figuras 134 e 135 – Anna Komanto Eseru -


Festival da Panela da Barro
192 ¦ TYZYTABA’U

Figuras 136 e 137 – Pinturas de mulheres fazendo panela de Barro


Fonte – Fotografias da obra do artista Vinícius Kenede, 2015.
Caderno de fotos ¦ 193

Figura 138 – Exposição inaugurada em 2019 na casa de cultura da


Raposa I
Fonte – Fotografia da autora, 2019.

Figura 139 – Colocação de 7 Placas Trilíngues na Região Serra da Lua


Fonte – Acervo da autora, 2017.
194 ¦ TYZYTABA’U

Figura 140 – Somos Vida


Fonte – Quadro de Barto no catálogo da exposição
Para a Amazônia respirar Arte, 2021.
A autora

Fonte – Fotografia da aluna Kris pintando a professora Ananda,


de Inara Nascimento, no Festival de Parixara, em 2014.
Doutora em História Social pela UFRJ, mestre em Memória
Social pela Unirio, especialista em Educação Indígena pela UFF
e em Democracia e Movimentos Sociais pela UFMG. Professora
do curso Gestão Territorial Indígena no Instituto Insikiran-
UFRR, com ênfase em Patrimônio Indígena. Coordenadora do
Programa de Valorização das Línguas e Culturas Indígenas de
Roraima (PRAE/PRPPG-UFRR). Licenciada em Artes Cênicas
pela Unirio, com experiência em arte educação, etnografia dos
objetos Guarani e Wapichana, produção de materiais didáticos
em línguas indígenas e documentação cultural e linguística.
Com formação, pesquisas e publicações interdisciplinares,
nas áreas de história oral, biografias indígenas, memória e
patrimônio, antropologia, letras (narrativas orais e línguas
indígenas), linguística (lexicologia e sociolinguística), artes
(teatro de animação e dramaturgia em línguas indígenas).
Com pós-doutorado em Antropologia Social (PPGAS-Museu
Nacional-UFRJ) e em Estudos de Literatura (PPGEL-UFF- bolsa
PROCAD-CAPES).
Este livro foi composto em Petrona e Genos sobre papel offset 90g/m2,
publicado pela Mórula Editorial, no ano de 2022,
na cidade do Rio de Janeiro –RJ.
de objetos wapichana do Setor de
Etnologia e Etnografia do Museu
Nacional (SEE/UFRJ) antes do in-
cêndio de 2018.

ANANDA MACHADO é doutora


em História Social pela UFRJ, mes-
tre em Memória Social pela UNIRIO,
especialista em Educação Indígena
pela UFF. Tem pós-doutorado em
Antropologia Social (PPGAS-Museu
Nacional/UFRJ) e em Estudos
de Literatura (PPGEL-UFF bolsa
PROCAD-CAPES). É professora do
curso Gestão Territorial Indígena no
Instituto Insikiran- UFRR e coorde-
nadora do Programa de Valorização
das Línguas e Culturas Indígenas de
Roraima (PRAE-UFRR). Tem expe-
riência em arte educação, etnografia
dos objetos Guarani e Wapichana,
produção de materiais didáticos em
línguas indígenas e documentação
cultural e linguística.
Wyry’y karicha kuadapayzu abatan kutyainhau ai na’ik maunapdan
paradakary na’ik wapichan kadyz, aidian na’apam kabayn
tumkau, kaydinkizei kid, na’apadii wanhikynyi da’ya’u, kiniapkary,
aruapkary, kunayapkary, kunaykikery/ baukuptinkery, tyzyytapkary,
tinhapkary, tuman dikinii, tandapkary, aimeakan da’ya’u, kakypkary
na’ik di’itinhapkay da’ya’u. Inhau da’y kainha’au da’i dikinii kid
wapichan xa’apayz wyry’y dapanaa Museu Nacional/UFRJ yka’awan
ya’i 2018 dun.

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