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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Pedro Peixoto Ferreira

Música Eletrônica e Xamanismo:


técnicas contemporâneas do êxtase

Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao


Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Laymert Garcia
dos Santos.

Este exemplar corresponde à versão final da Tese


defendida pelo autor e aprovada pela Banca
Examinadora em 2 de outubro de 2006.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Laymert Garcia dos Santos (IFCH-UNICAMP; orientador)

Prof. Dr. Eduardo B. Viveiros de Castro (PPGAS-UFRJ)

Prof. Dr. Márcio Goldman (PPGAS-UFRJ)

Prof. Dr. Mauro W. Barbosa de Almeida (IFCH-UNICAMP)

Prof. Dr. Vanessa R. Lea (IFCH-UNICAMP)

Prof Dr. Luiz B.L. Orlandi (IFCH-UNICAMP; suplente)


Prof Dr. José Miguel Wisnik (USP; suplente)
Prof Dr. Hermano P. Vianna Jr. (suplente)

Outubro
2006
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Ferreira, Pedro Peixoto


F413m Música eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do
êxtase / Pedro Peixoto Ferreira. - - Campinas, SP : [s. n.], 2006.

Orientador: Laymert Garcia dos Santos.


Tese (doutorado ) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Música eletrônica. 2. Xamanismo. 3. Tecnologia. 4. Ritual.


5. Dança. I. Santos, Laymert Garcia dos. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
III.Título.

(cc/ifch)

Título em inglês: Electronic music and shamanism: contemporary techniques


of ecstasy

Palavras – chave em inglês (Keywords): Electronic music


Shamanism
Technology
Ritual
Dance

Área de concentração : Ciências Sociais

Titulação : Doutor em Ciências Sociais

Banca examinadora : Laymert Garcia dos Santos, Eduardo B. Viveiros de


Castro, Márcio Goldman, Mauro W. Barbosa de
Almeida, Vanessa R. Lea

Data da defesa : 02-10-2006

Programa de Pós-Graduação :- Ciências Sociais

ii
Resumo
Começamos com uma análise das relações entre música eletrônica de pista e xamanismo a partir
de um assim chamado discurso nativo e descobrimos que elas se concentram principalmente na
produção de uma experiência de transe pela imersão em um ambiente sonoro intenso, repetitivo e
técnico. Depois, realizamos uma pesquisa bibliográfica sobre xamanismo indígena e sobre suas
relações com a tecnologia moderna, que revelou não apenas a íntima relação entre xamanismo e
tecnologia, mas também uma tendência do xamanismo tradicional a se distribuir
tecnologicamente em situações de contato entre índios e brancos. Enfim, propomos uma
interpretação da música eletrônica de pista como o som de uma máquina e de seu xamanismo
como o uso dessa máquina pelo DJ e pelo seu público na produção de estados de transe
maquínico. Esboçamos também as linhas gerais de uma metodologia para a verificação dessa
proposta em pesquisas futuras. Esta pesquisa se insere num esforço mais amplo de investigar os
maquinismos inconscientes que fazem funcionar a máquina capitalista contemporânea.

Abstract
We began with an analysis of the relations between electronic dance music and shamanism as
found in a so called native discourse, and discovered that they concern mainly the experience of
trance produced by the immersion in an intense, repetitive and technical sonic environment.
Then, we did a bibliographical research about indigenous shamanism and about its relations with
modern technology which revealed not only the intimate relations between shamanism and
technology but also a tendency of traditional shamanism to become technologically distributed in
contexts of contact among Indians and Whites. At last, we proposed an interpretation of
electronic dance music as the sound of a machine and of its shamanism as the use of this machine
by the DJ and his audience in the production of machinic trance states. We also sketched the
main lines of a methodology for the verification of this proposal in future researches. This
research is part of a bigger effort to investigate the unconscious machinisms which make work
the contemporary capitalist machine.

iii
iv
Para Larissa,
por tudo.

v
vi
Sumário
Agradecimentos ............................................................................................................................................................ ix
Lista dos Quadros ......................................................................................................................................................... xi
Nota Sobre as Referências ............................................................................................................................................ xi

Introdução ..................................................................................................................................... 1
A definição do tema desta pesquisa ................................................................................................................. 2
Apresentação da tese ...................................................................................................................................... 13

Parte I – O Discurso Nativo ....................................................................................................... 31


Capítulo 1: Cosmologias .............................................................................................................................. 33
A cosmologia matemática do DJ Mantrix ....................................................................................... 37
Mr. Lemon e o poder energético da mente ...................................................................................... 47
Capítulo 2: Ritologias .................................................................................................................................. 57
As dinâmicas rituais do DJ Arlequim .............................................................................................. 61
Cláudio Manoel e "o sentido tribal de dançar" .................................................................................75
Capítulo 3: Micropolíticas do Underground .............................................................................................. 83
O underground, o mainstream e o overground ............................................................................... 87
Estratégias do underground ............................................................................................................. 98

Parte II – As Técnicas do Êxtase ............................................................................................. 111


Capítulo 4: Técnicas "arcaicas" do êxtase .............................................................................................. 113
Xamanismo como técnica do êxtase .............................................................................................. 123
Axis mundi, tempo mítico e criação ............................................................................................... 133
Capítulo 5: Tempo mítico hoje ................................................................................................................. 141
Mito e tecnologia ........................................................................................................................... 146
O mundo fora dos eixos ................................................................................................................. 161
Capítulo 6: Técnicas contemporâneas do êxtase ..................................................................................... 179
Os xamãs e as máquinas ................................................................................................................ 188
Um novo axis mundi? .................................................................................................................... 204

Parte III – Música Eletrônica e Xamanismo .......................................................................... 219


Capítulo 7: Devires .................................................................................................................................... 221
O devir-xamanismo da música eletrônica ...................................................................................... 226
O devir-máquina do xamã ............................................................................................................. 233
Capítulo 8: O som de uma máquina ......................................................................................................... 241
Estética maquínica ......................................................................................................................... 251
Transe maquínico .......................................................................................................................... 260
Capítulo 9: Como funciona? ..................................................................................................................... 277
O break e o pulso constante ........................................................................................................... 289
Intensidades, freqüências e velocidades ........................................................................................ 315

Considerações Finais ................................................................................................................ 337


A máquina ressonante da música eletrônica ................................................................................................ 344

Post-Scriptum: O que pode uma máquina? ................................................................................................................ 367

Imagens ...................................................................................................................................... 373


Anexo: CD de Exemplos Sonoros ............................................................................................ 429
Referências ................................................................................................................................ 435
Publicações de caráter acadêmico e científico..................................................................................................... 437
Outras publicações (*) ..................................................................................................................................... 467
Vídeos (v) ...................................................................................................................................................... 477
Áudio (a) ........................................................................................................................................................ 479
Entrevistas realizadas ...................................................................................................................................... 483

vii
viii
Agradecimentos
Gostaria muito de agradecer:
À FAPESP pelo apoio que deu a esta pesquisa entre 2001 e 2005.
A Laymert Garcia dos Santos, por me incentivar a fazer alguma diferença, pelo seu papel
decisivo tanto no início desta pesquisa em 2001 quanto no seu término em 2006 e pelo
aprendizado que foi nossa convivência.
Especialmente importantes na primeira fase desta pesquisa foram Armando Sato Turtelli e
Marcelo Nahuz, por compartilharem comigo o ambiente tecnológico e estético de um estúdio de
gravação digital contemporâneo, além das revistas e livros de música e tecnologia. Ao Marcelo
eu agradeço ainda os diversos livros sobre música eletrônica e xamanismo e as nossas discussões.
Ao Armando eu saúdo, junto com Fabrício, Célia e Rodrigo, pela companhia roqueira na
juventude.
Aos pesquisadores: Ivan Fontanari, pelas discussões e pela fonte valiosa de informações,
referências e inspiração que foi sua pesquisa de mestrado; Tatiana Bacal, pelas entrevistas, pela
troca internética, pela dica da ABA-2004 e pelo valioso documento que é sua dissertação de
mestrado; Rosana Monteiro, pelas conversas e pela bibliografia sobre representação científica;
João Urbano pelo estimulante diálogo intercontinental; Maria da Consolação G.C.F. Tavares,
pelo apoio e pela generosidade.
A todos os amantes de música eletrônica underground que dedicam parte de seu tempo e
de suas vidas para divulgá-la e promovê-la, em especial à lista de discussões "Pragatecno Brasil".
Aos DJs e produtores Arlequim, Mantrix, Camilo Rocha, Ramilson Maia, Cláudio
Manoel, e Chico Correia e ao promoter Mr. Lemon, por compartilharem comigo um pouco de
suas experiências com a música eletrônica.
Aos parceiros do subradio (Chico, Ju, Paulo e Iwao), pelas incontáveis horas de
experimentação psico-sônica. Ao coletivo da Rádio Muda por viabilizar essa experimentação.
A Joaquim Cutrim, pelo diálogo e pela experiência psico-eletroacústica decisiva na minha
compreensão das diferenças entre o CD e o vinil. A Jayme Aranha por tornar possível essa
experiência e pelas conversas malucas sobre computadores. A Oscar Ferreira de Lima pela
revisão técnica de acústica. A Larissa S. Turtelli por todas as conversas e pela leitura de partes do
texto.
A cada um de meus colegas do CTeMe pela rede de apoio, leituras e discussões, sem a
qual esta tese não seria metade do que é hoje: André L. Favilla, Cecilia Diaz-Isenrath, Christian
P. Kasper, Daniela T. Manica, Emerson Freire, Francisco A. Caminati, Luiz Cintra, Márcio
Barreto, Marta M. Kanashiro, Martha C. Ramírez-Gálvez, Osvaldo J. López-Ruiz.
Ao Nuti e à Rede Abaeté de Antropologia Simétrica, pela receptividade em discutir meu
trabalho, em especial a Francisco Araújo e Flávio Gordon e aos professores Eduardo Viveiros de
Castro e Márcio Goldman.
A todos os professores que discutiram rascunhos desta tese comigo, em especial Robin
Wright, Nádia Farage, Regina Müller, Mauro Barbosa de Almeida, Eduardo Viveiros de Castro e
Vanessa Lea, que participaram das bancas examinadoras pelas quais esta pesquisa passou desde o
início.
Aos funcionários do IFCH-Unicamp, por todo o auxílio e convivência durante os 11 anos
em que estudei neste instituto.
Em especial a Ivan Fontanari, Odete P. Ferreira, Marta M. Kanashiro e Anderson Santos,
pela cuidadosa revisão final do texto e pelos seus valiosos comentários.
À minha família, pelo apoio e pela compreensão.

ix
x
Lista dos Quadros
1 – Quadro sintético das características distintivas da música eletrônica de pista frente à música popular
tradicional segundo Fry............................................................................................................................................ 4
2 – Quadro sintético da cosmologia do DJ Mantrix................................................................................................. 46
3 – Quadro sintético da cosmologia de Mr. Lemon................................................................................................. 54
4 – Quadro sintético dos "dois passos" rituais do DJ Arlequim............................................................................... 68
5 – Quadro sintético das contingências do ritual segundo DJ Arlequim.................................................................. 68
6 – Quadro sintético de temas do discurso nativo relativos a rituais indígenas....................................................... 81
7 – Quadro sintético das idéias nativas sobre o underground e o mainstream........................................................ 97
8 – Intensidade sonora (dB) ..................................................................................................................................... 318
9 – Faixas de freqüência do espectro sonoro, suas características e efeitos............................................................. 323
10 – Faixas de velocidade da música eletrônica de pista e suas características....................................................... 330

Nota Sobre as Referências


Consideramos adequado expor previamente ao texto desta tese as convenções nele adotadas para a
organização de suas referências bibliográficas, videográficas e fonográficas. A lista de referências ao final
da tese está assim dividida e obedece às seguintes convenções:

• PARTE 1 – Publicações de caráter acadêmico e científico: estão listadas aqui as publicações


em qualquer suporte consideradas fruto direto ou indireto de uma pesquisa acadêmica e/ou
científica. Referências a publicações pertencentes a esta parte serão feitas pelo sobrenome do
autor (na ausência dessa informação outros nomes ligados ao documento serão usados), seguido
do ano de publicação (obras cujo ano de publicação é desconhecido receberão a indicação "[s.d.]";
obras diferentes de um mesmo autor com o mesmo ano de publicação serão distinguidas pelo
acréscimo de letras após o ano, em ordem alfabética; quando o ano da primeira publicação da obra
diferir do ano de publicação da edição consultada, aquele pode vir entre colchetes logo após este)
e, quando necessário, pela(s) página(s) referida(s) após dois pontos (e.g. Benjamin 1994:95).
• PARTE 2 – Outras publicações: estão listadas aqui todas as demais publicações (geralmente
relatos, depoimentos, manifestos, textos de opinião ou reportagens jornalísticas) a que faremos
referência ao longo da tese. Referências a publicações pertencentes a esta parte serão identificadas
pelo acréscimo de um asterisco logo antes do ano de publicação, todo o resto obedecendo às
mesmas convenções da Parte 1 (e.g. Rushkoff *1994:118).
• PARTE 3 – Vídeos: estão listados aqui todos os documentos videográficos ou cinematográficos a
que faremos referência ao longo da tese. Referências a esses documentos serão feitas pelo
sobrenome do diretor e/ou produtor (na ausência dessa informação outros nomes ligados ao
documento serão usados), seguido do ano de lançamento marcado pela letra "vê" (e.g. Telles
v2004).
• PARTE 4 – Áudio: estão listados aqui todos os documentos fonográficos a que faremos
referência ao longo da tese. Referências a esses documentos serão feitas pelo nome artístico
completo do autor (na ausência dessa informação outros nomes ligados ao documento serão
usados), seguido do ano de lançamento marcado pela letra "a", pelo volume da unidade entre
colchetes quando necessário e, quando houver, pela(s) faixa(s) – ou música(s) – referida(s) após
dois pontos (e.g. Kraftwerk a2005[vol.2]:7).

A divisão das referências bibliográficas entre as Partes 1 e 2 a partir de uma avaliação de sua base
acadêmica e/ou científica é, certamente, uma entre outras possíveis e ela mesma passível de outras
interpretações (outras distribuições dos títulos seriam possíveis e diversos títulos poderiam figurar em
ambas as partes). Nossa única intenção foi facilitar a avaliação do estatuto das referências empregadas. As
referências serão indicadas sempre em notas de rodapé e legendas, nunca no texto principal.

xi
xii
Introdução

1
2
A definição do tema desta pesquisa
Quatro momentos muito diferentes, cada um a seu modo, contribuíram para a definição do tema
desta pesquisa. Foram eles:1 (1) uma reportagem em uma revista especializada em música e
tecnologia; (2) uma dissertação de mestrado pioneira sobre bailes Funk no Rio de Janeiro; (3) um
livro sobre a experiência de imersão sonora; e (4) um artigo sobre o xamanismo eletrônico de um
videomaker. Oferecemos a seguir um breve relato desse trajeto que foi determinante para os
rumos que esta pesquisa tomou.

(1)
Foi por acaso que, folheando uma revista sobre música e tecnologia na ante-sala de um estúdio de
gravação,2 eu me deparei com um caderno especial dedicado à música eletrônica de pista
(electronic dance music).3 Uma das matérias, assinada por James Fry, argumentava que enquanto
a "música popular convencional" era uma "extensão das tradições narrativas da humanidade,
destinada a transmitir informação, ensinar e divertir", a música eletrônica de pista nos desafiava a
"ouvir música de uma maneira diferente", a "desenvolver novas habilidades auditivas [new
listening skills]". Diferentemente da "identificação com o cantor ou o músico" e da "centralização
na personalidade do artista", características da música popular convencional, a música eletrônica
de pista seria "sem ego [egoless]", "cíclica e contínua, projetada para fazer seu corpo mexer",
produzindo assim uma audição "menos passiva" e fazendo do ouvinte "uma parte do próprio
processo musical". Ao reunir sons do "passado, presente e futuro", a música eletrônica de pista
criaria uma "perspectiva universal que atravessa fronteiras culturais e sociais", unificando
pessoas e povos os mais diversos em um mesmo "amplo mundo da eletrônica".4 O texto me

1
Os eventos ocorreram todos entre 1999 e 2000, mas não necessariamente na ordem de exposição.
2
Estúdio Piranha, Campinas, São Paulo.
3
Tratava-se do "Electronic Music's Summer Remix Supplement", incluído na edição de julho de 1999 da revista
Electronic Musician (vol.15, no.7, pp.129-147). Usaremos o termo "música eletrônica de pista" (também referida
normalmente como "e-music" ou "emusic") sempre que for necessário distingui-la da música eletrônica "erudita",
"acadêmica", de "vanguarda", de "alto-repertório" etc. (para uma definição "erudita" de música eletrônica, cf.
Poissant 2001:262) e sempre que tivermos a intenção de enfatizar a sua relação necessária com a dança (para uma
definição geral de música eletrônica, cf. Shapiro e Lee 2000:218). Esta pesquisa será centrada nos DJs de música
eletrônica de pista pois parece terem sido eles os mais diretamente envolvidos na formação de todo o contexto
ritual xamânico no qual se inserem mesmo os DJs de estilos que não priorizam a dança, como, por exemplo, o
Ambient. Trabalharemos, de qualquer modo, com um conceito amplo de dança, que prioriza movimentos corporais
mas que não se prende ao conceito biológico de corpo. O corpo, é preciso notar, vai muito além do organismo.
4
Todas as citações em Fry (*1999a:A6). Uma versão ampliada e ligeiramente modificada desse texto foi incluída,
sem nenhuma referência à revista, em uma das partes do sexto capítulo do livro Rave Culture: an insider's
overview, de Jimi Fritz (1999; cf. pp. 65-79). Diversas correspondências entre o artigo de Fry e o livro de Fritz (e.g.
eles têm o mesmo ano de publicação, ambos trazem uma entrevista com o DJ e produtor James Lumb e Fry é

3
interessou pois levantava questões extremamente relevantes para uma sociologia da música
contemporânea como as rupturas com o modelo narrativo tradicional, com o individualismo
modernista e com o princípio publicitário da identificação personalista, além de propor um
curioso conceito transcultural de "mundo da eletrônica".5 Poderíamos sintetizar essa oposição
entre a música eletrônica de pista e a música popular tradicional no Quadro 1:

MÚSICA ELETRÔNICA DE PISTA MÚSICA POPULAR TRADICIONAL


repetição (corporal) modelo narrativo (mental)
"sem ego", sem centralização no artista centrado na personalidade do artista
público ativo público passivo
transcultural culturalmente específica
Quadro 1 – Quadro sintético das características distintivas da música
eletrônica de pista frente à música popular tradicional segundo Fry (*1999a)

O fato de que uma oposição dessas pôde ser traçada em um curto texto jornalístico em uma
revista de ampla circulação no meio da produção musical sugere que as especificidades da
música eletrônica de pista já podiam ser consideradas senso comum em 1999. Mas o grande
diferencial do texto, que marcou o início da definição do tema desta pesquisa, foi a seguinte
passagem:

apresentado na revista como autor de um livro "recente" chamado "The Rave Culture") sugerem que ambos, James
Fry e Jimi Fritz, são a mesma pessoa.
5
A idéia de que a música eletrônica seria mais "transcultural" (para não dizer "universal") do que qualquer outra é
muito comum no discurso nativo e encontra fundamento na efetiva disseminação global de sua estética repetitiva e
artificial. Segundo vozes nativas: a música eletrônica é "a única portadora da liberdade universal da língua
musical", "o único tipo de música que não está pres[o] a regras culturais" (Croppo *2002); "uma das linguagens
mais universais que existem", "a música que fala a todos e une todos, porque é uma linguagem absolutamente
polissêmica – possibilita trocentas [sic] interpretações", "[u]m som livre" (Pinheiro *2002); "a música menos
preconceituosa do planeta" (Bia Abramo, in: Palomino 1999:124); nela "não existe atitude", "[é] a música por si só
[...] [e não] como o hip hop ou como o rock, em que a idéia é mais forte do que a música", "[n]ão tem letra, não
tem mensagem política, não tem ideologia [...] [e] talvez por isso seja uma música tão universal" (DJ Renato
Cohen, in: Ney *2004); "um dos códigos musicais mais facilmente traduzidos atualmente", "[v]ocê coloca a agulha
em uma batida e as pessoas respondem, estejam elas em Buenos Aires, Tel Aviv ou São Petersburgo" (DJ Spooky,
in: Reighley 2000:17). Em seu estudo sobre o Techno, Dan Sicko afirma que o estilo substituiu a velha e "frouxa"
definição de World Music com "um som universal, adaptado e modificado para provocar emoções íntimas em
qualquer ambiente ou local" (Sicko 1999:172). Segundo o pesquisador Ansgar Jerrentrup, a música eletrônica "não
pode ser considerada representativa de um povo ou de uma cultura, mas sim um exemplo de des-etnicização da
música e de uma cultura cujo limite é a civilização" (Jerrentrup 2000:71). Depoimentos de ravers sobre a
"universalidade" e a "transculturalidade" da música eletrônica podem ser encontrados em Fritz (1999:252-4). A
contrapartida dessa des-etnicização seria a sobreposição de elementos musicais locais de cada cultura à "matriz
neutra da música eletrônica [...] que pode ser entendida em qualquer cultura ou idioma" (Richard e Kruger
1998:165). Ralf Hütter, membro fundador do grupo pioneiro de música eletrônica Kraftwerk, apesar de reiterar a
"natureza internacional" da música eletrônica, que ele define como "industrial folk music" (cf. Miller 1999:188) ou
mesmo simplesmente como "world music" (cf. Savage 1993), freqüentemente aponta suas raízes "étnicas" na sua
Alemanha natal – "gostamos de pensar [na música eletrônica] como música étnica da área industrial da Alemanha"
(Hütter, in: Dery *1991) – e em sua história – "Qual é a nossa cultura étnica?... Ela foi bombardeada? [...] Qual é o
nosso som? Qual é nosso ambiente? Eu sou mudo?" (Hütter, in: Toop 1995:206).

4
A natureza repetitiva da música eletrônica de pista é apenas aparentemente simples. Como o
tambor do xamã, ela representa simbolicamente o batimento do coração, primeiro som que
escutamos de dentro do útero. A batida contínua nos força a nos sintonizar com nosso próprio ritmo
e humor, agindo como uma ponte que nos conecta a nós mesmos e a cada um de nós. Em alto
volume, a música exige nossa total atenção, tornando-se um ambiente sonoro que sobrepuja todos
os outros estímulos. Ela providencia o contexto para uma jornada pessoal. 6

Mais adiante no mesmo caderno, em uma mesa-redonda com cinco DJs e produtores de
destaque,7 o mesmo jornalista comentou com o DJ Paul Oakenfold:8 "Alguns vêem o DJ como
uma espécie de xamã ou guia espiritual que conduz os ouvintes de um nível de consciência para
outro". Oakenfold respondeu: "Com certeza. Esse é o meu objetivo: te levar em uma jornada
espiritual".9
"Tambor do xamã"? "Jornada espiritual"? Eu já havia lido coisas sobre xamanismo e
imaginava que poderiam haver paralelos entre suas atividades tradicionais e as experiências
rituais de jovens urbanos do final do século XX, como a participação em pequenos grupos
sociais, em festas, eventos musicais amplificados, consumo coletivo de drogas etc. No entanto,
minha cautela em estabelecer relações tão diretas entre meios socioculturais tão diversos ainda
não me havia permitido levar essa idéia adiante. Mas agora era diferente. Não era eu quem estava
fazendo as relações, mas sim pessoas diretamente envolvidas na produção e divulgação de
música eletrônica de pista. As perguntas eram inevitáveis: Seria a música eletrônica realmente

6
"The repetitive nature of electronic dance music is deceptively simple. Like the shaman's drum, it represents a
symbolic beating heart, the first sound we hear from inside the womb. The continual beat forces us to attune to our
own rhythm and mood, acting as a bridge that connects us to ourselves and to each other. At high volumes, the
music demands our whole attention, becoming an audio environment that overwhelms other stimuli. It provides a
context for a personal journey." (Fry *1999a:A6). Para uma versão ligeiramente diferente da mesma passagem, cf.
Fritz (1999:78).
7
O título da matéria ("Meet five star DJs and producers in this dance-musician summit") permitia um trocadilho
entre o número de DJs entrevistados (five) e sua suposta excelência (five star). Eram eles: James Lumb, Chris
Cowie, John Digweed, Paul Oakenfold e Dave Ralph.
8
DJ Paul Oakenfold (também conhecido como "Oakie") é um dos principais personagens de uma das mais
consolidadas narrativas – logo adiante veremos que se trata de uma narrativa que chamaremos de cultural – sobre o
início da "cena" eletrônica contemporânea na Inglaterra. A narrativa conta que, em 1988 e junto com outros DJs
(Johnny Walker, Danny Rampling e Nicky Holloway), Oakenfold decidiu repetir em Londres a experiência que
teve no verão anterior na ilha espanhola de Ibiza, composta basicamente por música eletrônica eclética (o que se
convencionou chamar de Balearic Sound) e uma droga ainda nova para eles: o ecstasy (cf. Reynolds 1999:58;
Brewster e Broughton 2000:366-67, Reighley 2000:13-6). E se ele foi um dos responsáveis pela explosão da "cena
eletrônica" em Londres ("cena" que ele mesmo afirma ter "começado"; cf. Reighley 2000:16), esta por sua vez foi a
responsável pela projeção mundial de sua carreira, tornando-o um dos DJs mais populares e bem pagos do mundo
(cf. Reynolds 1999:275-6; Brewster e Broughton 2000:381 e 384-5). Ele toca periodicamente para milhares de
pessoas e foi, em 1999, eleito "o DJ mais bem sucedido do mundo" pelo The Guinness Book of Records e "o
melhor DJ do mundo" pela revista inglesa DJ (Kasparian *2004).
9
DJ Paul Oakenfold, in: Fry (*1999b:A10).

5
xamânica? Seria o DJ realmente uma espécie de xamã? Como exatamente esse xamanismo se
manifestaria?

(2)
Meu interesse pelo estudo das dimensões potencialmente rituais dos eventos musicais urbanos
contemporâneos já me havia levado a refletir sobre a figura inovadora do DJ, e foi com o estudo
pioneiro de Hermano Vianna sobre os bailes de Funk carioca10 que essas intuições começaram a
se organizar em linguagem acadêmica. O estudo de Vianna permanece um importante documento
sobre como algumas práticas técnicas e estéticas típicas de DJs no mundo todo se desenvolveram
no contexto específico do Funk carioca até 1988.11 Nele, aprendemos que, nos bailes, o DJ
assume uma posição simultaneamente central e periférica: centro das atenções e das tensões do
público pois que mediador entre o "desejo da massa" e sua satisfação sonora através de seu
"poder sobre o público" e suas "táticas [...] infalíveis";12 periférico pois que sujeito à dinâmica do
ritual, mero funcionário "submetido à 'ditadura' de um público que quer apenas se divertir, e não
admirar a performance de um indivíduo 'especial'".13
Segundo Vianna, o DJ "tem que 'captar o desejo da massa'",14 pois "está sempre falando
'em nome' dos desejos do público";15 ele é "a peça mais importante para o bom funcionamento do

10
Cf. Vianna (1988). O Funk carioca (conhecido no exterior também como "Rio Funk") é muito diferente do Funk
criado por músicos negros norte-americanos de Soul e Rhythm'n'Blues nos anos 70, dos quais James Brown é
talvez o mais conhecido no meio da música eletrônica. O estilo é uma variante do Miami Bass, que por sua vez
deriva de experiências pioneiras de DJs de Hip Hop do início dos anos 80 com bases eletrônicas sintéticas (cf.
Ishkur *2004) – a narrativa mais difundida remete a origem de toda essa linhagem à música "Planet Rock" (1982)
de Afrika Bambaataa (Columbia a1998[vol.1]:8; cf. Exemplo Sonoro 20), que consiste em improvisos vocais
sobre uma base que copia explícita e deliberadamente as músicas "Numbers" e "Trans Europe Express" do grupo
eletrônico alemão Kraftwerk. Segundo DJ Marlboro, que toca em bailes Funk desde "três de agosto de 1980" (DJ
Marlboro, in: Cidade *2001:66) e tem sido um dos maiores expoentes do estilo em sua recente popularização
nacional (cf. Matias *2003; Medeiros *2004a; Zonta *2004; Migliaccio *2005) e internacional (cf. Angelo *2003;
Macedo 2003:73; Zanete *2004; Bellos *2004; Assef *2005; Gola *2005a, *2005c; Werneck *2005), "é por volta
de 1988 que acontece a nacionalização do funk" (DJ Marlboro, in: Angelo *2003:20), a partir do que ele passa a
ser "a verdadeira música nacional eletrônica" (DJ Marlboro, in: Pimenta *2003b). Sobre a transição dos estilos
acústicos (o Funk, o Rhythm'n'Blues, o Soul etc.) para o Miami Bass nos bailes do Rio de Janeiro, cf. Vianna
(1988:24-33), Macedo (2003:47, 62-3) e Assef (2003:45-52). Sobre as relações entre o Funk carioca e o Funk
baiano, cf. Midlej e Silva (1997) e Sansone (1997).
11
A relevância duradoura do estudo de Vianna foi confirmada em DJ Marlboro na terra do Funk (Macedo 2003),
que mostra algumas transformações ocorridas no estilo e nos bailes desde 1988, mas também confirma, 15 anos
depois, muitas de suas afirmações. A publicação traz ainda uma homenagem ao antropólogo e a transcrição de uma
reunião recente entre ele e pessoas envolvidas com o Funk carioca, dentre as quais o DJ Marlboro (seu principal
informante na época de sua pesquisa de mestrado) (cf. Macedo 2003:118-22). Para Michael Herschmann, a
dissertação de Vianna "continua sendo o mais completo estudo realizado sobre esta manifestação cultural"
(Herschmann 1997:9).
12
Vianna (1988:80-1).
13
Vianna (1988:94).
14
Vianna (1988:44).

6
baile", pois sabe "controlar a intensidade da festa, aumentando ou diminuindo a animação dos
dançarinos".16 Mas, central para o tema desta pesquisa que se esboçava naquele momento, foi a
sua afirmação de que os próprios DJs "se consideram uma espécie de terapeutas da massa".17
Vianna não falou explicitamente em xamanismo, mas usando o conceito durkheimiano de
"efervescência" para descrever a experiência do baile Funk carioca, insistindo no papel dos DJs
como "maestros" desse ritual e revelando que eles mesmos se consideravam "terapeutas da
massa", faltou pouco para que o fizesse.18

(3)
O terceiro momento que contribuiu para a consolidação do tema desta pesquisa foi um belo livro
em que o artista e pensador David Toop apresenta uma pesquisa rica e fascinante sobre a
experiência sonora de imersão.19 Trata-se, como veremos, de uma experiência importantíssima na
música eletrônica, que Toop mostrou ir muito além do mundo humano, sendo antes aquilo que a
música humana tem em comum com todas as outras "músicas não-humanas" – sons naturais e
sobrenaturais que nos envolvem, sustentam e, quando percebidos, nos encantam. A certa altura
do livro, o autor relata uma viagem sua à Amazônia, quando teve a oportunidade de conhecer
xamãs Yanomami e visitar diferentes aldeias.20 Apesar de nada antropológico (no sentido
acadêmico do termo), é impossível não considerar o relato dessa experiência quando, nas últimas
páginas do livro, ele retoma o tema do xamanismo relacionando-o às tentativas de vinculá-lo à
música eletrônica de pista:

Desde que o tecnopaganismo pós-Acid House se tornou uma opção de vida, o xamanismo tem sido
evocado de maneira rotineira, como se consumir ecstasy e dançar Techno a noite inteira, quando
não fazer um curso de xamanismo de fim-de-semana, pudesse produzir no corpo urbano profano e
limitado, do dia para a noite, um estado xamânico.21

15
Vianna (1988:22).
16
Vianna (1988:80). Segundo Edmilton (dono de equipe e ex-DJ): "O discotecário é responsável [...] pelo clima do
baile. Ele tanto anima, provoca um clima de euforia, como ele pode desanimar, esfriar o pessoal" (Vianna
1988:45).
17
Vianna (1988:45 nota 2).
18
De fato, quase 10 anos depois do livro, Vianna (*1997) retoma o tema da "energia 'durkheimiana'", relacionando-a
então àquilo que ele chamou de "tecnologia do transe/êxtase" (mas dessa vez com relação à música eletrônica em
geral, e não apenas o Funk carioca) e fazendo referência explícita à definição de Eliade (1998) do xamanismo
como "técnica do êxtase".
19
Cf. Toop (1995).
20
Cf. Toop (1995:225-38).
21
"Ever since post-acid-house techno-paganism took hold as a lifestyle option, shamanism has been invoked in a
routine way, as if swallowing Ecstasy and dancing all night to techno records, let alone taking a weekend course in
shamanic journeying, can transform the beleaguered, profane urban body into a shamanic state overnight." (Toop
1995:277)

7
É perceptível a ironia com que Toop trata a idéia de que DJs e festas de música eletrônica
pudessem ter algo a ver com xamanismo. Em outro momento, Toop já havia sugerido que,
segundo os "ciborgues transcendentalistas [cyborgian transcendentalists]" do final do século XX,
"o xamanismo psicodélico se tornou um santo graal, não apenas na busca por novas identidades
em um mundo fragmentado, mas também na busca pela derradeira máquina-droga-parque-
temático-comercial".22 Percebe-se como essa relação já era banalizada na "cena eletrônica", a
ponto de figurar dessa forma em um livro que, por toda a sua valorização das experiências
musicais extraordinárias – quase metade dos 13 capítulos do livro têm, no título, a expressão
"estados alterados [altered states]" – e também do xamanismo tradicional, teria tudo para apoiá-
la. Reforçando ainda mais essa imagem, ele conta como o DJ norte-americano Derrick May23
ridicularizou essa relação DJ-xamã quando Fraser Clark (definido por Toop como um "guru pró-
psicodélico auto-proclamado do movimento zippie"24) disse que "dançar ao ar livre a noite inteira
é xamânico".25 Toop então conclui (o assunto e o livro) dizendo que, sem querer entrar no
"campo de batalha" dos debates acadêmicos sobre o tema, ele tem "sérias dúvidas sobre
presunções automáticas de que os tipos de estados extáticos induzidos por drogas, dança e
provável desidratação [sejam] idênticos às jornadas espirituais cosmologicamente centradas do
xamanismo" e façam jus aos altos riscos e desprazeres intrínsecos a elas.26

22
"In their view, psychedelic shamanism has become a metaphorical holy grail, not only in the quest for new
identities in a fragmented world, but in the search for the ultimate commercial, theme park, drug machine." (Toop
1995:51)
23
Junto com Juan Atkins e Kevin Saunderson, Derrick May integrava aquilo que ficou conhecido como "o trio de
Belleville [the Belleville three]", que figura nas narrativas dominantes como o grupo de DJs que, na segunda
metade da década de 80, deu origem ao gênero que depois seria conhecido como Techno.
24
A formulação original é: "self-proclaimed pro-psychedelic guru of the zippie (Zen-inspired professional pagan)
movement" (Toop 1995:277). Declarações de Clark sobre xamanismo e música eletrônica podem ser encontradas
em Schneider et al. (*1993).
25
Toop (1995:277-8).
26
Vale citar a formulação original: "Without wishing to join the bootcamp of fundamentalist animal-skin shamanic
academics, I have serious doubts about automatic assumptions that the kind of free-floating ecstatic states induced
by drugs, dancing and probable dehydratation are identical to shamanism's cosmologically centered spirit journeys.
[...] Shamans, as portrayed by Oliver Stone, may gaze serenely into the middle distance as rock stars commune
with the Dionysian mysteries of beer, but archive photographs and films of shamans from Siberia, Mongolia and
Amazonas show grizzled, haunted characters, lined with knowledge after travelling to hell and back." (Toop
1995:278-9)

8
(4)
A dúvida de Toop foi central para a consolidação do problema desta pesquisa e reflete o
paradoxo sobre o qual ela se desenvolveu. De um lado o discurso nativo,27 onde DJs e pessoas
envolvidas com música eletrônica definem suas próprias atividades com referências ao
xamanismo; do outro lado uma espécie de dúvida metodológica acerca do sentido e do alcance
dessas afirmações. E o paradoxo era também meu, pois se por um lado minha intuição dizia que
havia de fato relações entre música eletrônica e xamanismo, por outro essas relações, da maneira
como eram feitas pelo discurso nativo, pareciam completamente (e evidentemente, como mostrou
Toop) inconsistentes. Afinal, se existe já um discurso que defende a relação DJ-xamã, então
como reconhecer a sua realidade sem com isso se tornar alvo de críticas contundentes como as de
Toop?
Na mesma época em que lidava com essas questões, tive a sorte de cursar a disciplina de
Graduação Sociologia da Tecnologia, em que o professor Laymert Garcia dos Santos propunha
"explorar como, a partir do século XIX, o progresso técnico revoluciona os modos de produzir,
de viver, de perceber e de pensar, levando o homem da ambição de dominar a natureza à ambição
de transformar a sua própria natureza".28 Na última aula do curso, discutimos o vídeo I do not
know what it is I am like de Bill Viola à luz do texto "Bill Viola, xamã eletrônico",29 onde Garcia
dos Santos explorava com ousadia justamente os aspectos xamânicos presentes na prática
artística do videomaker. Ele sustentava, com uma convicção que me pareceu espantosa na época,
afirmações como:

Viola é um xamã que recorre às máquinas eletrônicas como o feiticeiro dispõe de um arsenal de
objetos e fetiches para invocar as forças e as potências, e canalizá-las com o intuito de empreender
uma transformação.30

27
Optei por chamar de "discurso nativo" o discurso produzido por aqueles de alguma forma envolvidos na produção,
reprodução e transformação do objeto desta pesquisa, o xamanismo da música eletrônica. O fato de que não apenas
o discurso dos DJs e de seu público, mas também aquele de qualquer um que se envolva de alguma forma com o
xamanismo da música eletrônica, seja considerado "nativo" exige, evidentemente, que abandonemos qualquer
concepção essencialista de natividade, concebendo a possibilidade de que pessoas se tornem nativos ou deixem de
sê-lo com a mesma facilidade com que trocam de roupa, de corte de cabelo ou de assunto – que algumas pessoas
tenham mais facilidade de realizar essas trocas do que outras apenas revela que existem graus variados de
natividade. Nossa opção pelo uso do termo "nativo" foi diretamente influenciada pela máxima "ninguém nasce [...]
nativo" de Viveiros de Castro (2002a:119) e considera abertamente a possibilidade de que outros pesquisadores
encontrem outros discursos nativos dizendo coisas diferentes daquelas que aqui se verá, o importante para nós
sendo não a coincidência dos enunciados particulares, mas sim a consistência do campo ao qual eles estão ligados.
28
Garcia dos Santos (1999:13).
29
Garcia dos Santos (2003b:184-96 [publicado originalmente em 1995]).
30
Garcia dos Santos (2003b:185).

9
Comparar máquinas eletrônicas com objetos rituais xamânicos? Comparar a produção de um
vídeo artístico com a realização de um ritual xamânico? Eu perguntava: como é possível falar
seriamente de xamanismo fora das sociedades indígenas?; como atribuir o mesmo valor e a
mesma eficácia aos rituais xamânicos tradicionais e a esse "xamanismo eletrônico"? Mas o
professor não tinha o que esconder. "[N]ão se trata", dizia ele no texto, "de compará-lo [o artista]
abusivamente aos xamãs do passado ou dos povos primitivos, de qualificar seu trabalho artístico
através de metáforas imaginosas; muito ao contrário, trata-se de levar ao pé da letra o que ele
mesmo diz e pratica".31 Subitamente, a questão com a qual eu vinha me deparando até então
parecia perder sua consistência. Não se tratava mais de averiguar a veracidade das afirmações do
artista segundo algum padrão "oficial" (e ainda incerto para mim), mas sim de aceitar seu
discurso e suas ações como índices de uma realidade em seu próprio direito (mesmo que ainda a
ser descoberta). A discussão foi tão fértil que, no ano seguinte, Garcia dos Santos já orientava
minha Monografia de Graduação,32 tendo desde então orientado esta pesquisa.
Além de me colocar em contato com textos de, e sobre, artistas que estabeleciam paralelos
entre suas próprias atividades e práticas rituais indígenas como o xamanismo33 e com textos que
refletiam com profundidade sobre essas relações,34 Garcia dos Santos definiu o caminho que esta
pesquisa seguiria através das referências precisas ao xamanismo que encontrei em seus textos –
tanto o horizonte negativo, como quando evocou Davi K. Yanomami para dizer que sua
"revelação capital para o destino de seu povo e dos homens civilizados"35 não é compreendida
pois "[n]ão há pajés entre os brancos",36 quanto o horizonte positivo, como quando evocou
Gilbert Simondon para dizer que "o técnico habilitado para a tarefa [de "salvar a bio-
sociodiversidade" e "também, tecnologia"] é o descendente do remoto xamã".37 A maneira como
Garcia dos Santos lidava com as relações entre xamanismo, tecnologia, arte e sociedade sugeriam
linhas de investigação radicalmente novas e, tudo indicava, extremamente promissoras,
principalmente pela ênfase nas dimensões sensíveis e inconscientes da tecnologia. Foi também
ele quem me apresentou às obras, até então totalmente desconhecidas para mim, de pensadores

31
Garcia dos Santos (2003b:186).
32
Ferreira (2000).
33
E.g. Adriani (1989), Viola (1992 e 1995) e Sellars (1992).
34
E.g. Lippard (1983), Francis (1996), e Wijers (1996).
35
Garcia dos Santos (1992:193).
36
Davi K. Yanomami, in: Garcia dos Santos (1992:192). Cf. Yanomami (1990:12).
37
Garcia dos Santos (2003b:69-70 [texto publicado originalmente em Reis de Araújo 1998:23-46]).

10
como Henri Bergson, Gilles Deleuze e Félix Guattari.38 Apesar da crescente importância desses
autores na teoria social contemporânea,39 eles não fazem parte do currículo de Graduação em
Ciências Sociais e, mesmo nos cursos de Pós-Graduação, são raramente empregados. Julgo
importante explicitar, porém, que foi somente após entrar em contato com os conceitos
desenvolvidos por eles que pude começar a compreender o verdadeiro problema por trás desta
pesquisa.

***

Começando oficialmente em 2001 como um Mestrado em Sociologia, esta pesquisa foi


transferida para a condição de Doutorado Direto em Ciências Sociais em 2003, graças à avaliação
favorável que recebeu durante o exame de qualificação, realizado em 20 de agosto de 2002, com
a presença de Vanessa R. Lea (IFCH-UNICAMP) e Eduardo B. Viveiros de Castro (PPGAS-
UFRJ). Entre o início e a transferência, um quinto momento especialmente relevante se deu no
trajeto dessa pesquisa que merece ser destacado aqui: o encontro, principalmente durante a
disciplina de Mestrado Mito, Rito e Simbolismo, ministrada por Vanessa R. Lea no segundo
semestre de 2001, com as referências antropológicas que viriam a nortear o estudo sobre
xamanismo desenvolvido na Parte II desta tese. Além de ter entrado em contato com uma
literatura até então desconhecida por mim sobre as complexidades do contato dos povos nativos
americanos com os brancos, pude naquela ocasião conhecer e discutir um texto que mudaria
radicalmente as minhas expectativas com relação à Antropologia e ao pensamento antropológico:
"Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio", de Viveiros de Castro.40
Naquele artigo, o apelo por uma "crítica etnológica rigorosa" e por uma
"dessubstancialização" dos conceitos de Natureza e Cultura através da explicitação da maneira
muito particular como eles são trabalhados pela mitologia ameríndia e pelo xamanismo ressoou
muito intensamente com as minhas preocupações naquele início da pesquisa. Por um lado, a
teoria do perspectivismo me permitiu, de uma maneira que jamais teria sido possível com meus
referenciais teóricos antropológicos anteriores, interpretar os dados etnográficos sobre mitologia

38
Philip Turetzky (1998; cf. p.117-20) chamou a corrente filosófica que se inicia com Bergson e que se preocupa
acima de tudo com a emergência do novo de "tradição menor [distaff tradition]", colocando-a à parte das outras
duas tradições filosóficas dominantes do século XX (a analítica e a fenomenológica).
39
Para discussões gerais, cf. Lash (1989), Lingis (1994), Watson (1998a, 1998b), Bogard (1998), Jameson (1999),
Donzelot (2001) e Hanna (2003).
40
Viveiros de Castro (2002b:345-399 [1996]).

11
e xamanismo que eu já vinha coletando. Por outro, a crítica epistemológica implicada nessa teoria
parecia ser o melhor instrumento disponível até então para lidar com os impasses que pareciam
impedir a plena compreensão de qualquer prática ritual, indígena ou não: o pressuposto
multiculturalista (que, como um Midas transformado, desrealiza tudo aquilo em que toca) de que
o objeto das Ciências Sociais são as múltiplas representações subjetivas que os seres humanos
continuamente elaboram de um só e mesmo mundo objetivo (que é o objeto exclusivo das
Ciências Naturais). Se não posso dizer ter ido além da superfície da dimensão propriamente
etnográfica da teoria do perspectivismo, foi desde o início que me senti totalmente transportado
para o interior de sua dimensão epistemológica, como se meus próprios germes de reflexão
tivessem ali encontrado o terreno fértil para crescer. No entanto, para minha surpresa (ingrata, a
bem da verdade), foi apenas durante o último ano desta pesquisa, após muitas releituras do artigo
de 1996, de sua seqüência de 2002 ("O Nativo Relativo"41) e de muitos outros textos sobre o
perspectivismo42 que senti ter finalmente alcançado alguma compreensão das implicações
metodológicas que essa proposta epistemológica trazia. Creio ser relevante apresentar essa
descoberta logo de início, pois foi a partir dela que o trajeto a seguir foi finalmente delineado.
Em "O Nativo Relativo", Viveiros de Castro apresenta dois exemplos particularmente
eloqüentes das implicações político-epistemológicas de sua teoria, dos quais o primeiro foi o
responsável pelo despertar tardio que acabei de mencionar.43 Citarei aqui todo o trecho em que o
antropólogo expõe a questão:

Quando um antropólogo ouve de um interlocutor indígena (ou lê na etnografia de um colega) algo


como "os pecaris são humanos", a afirmação, sem dúvida, interessa-lhe porque ele 'sabe' que os
pecaris não são humanos. Mas esse saber – um saber essencialmente arbitrário, para não dizermos
burro – deve parar aí: seu único interesse consiste em ter despertado o interesse do antropólogo.
Não se deve pedir mais a ele. Não se pode, acima de tudo, incorporá-lo implicitamente na
economia do comentário antropológico, como se fosse necessário explicar (como se o essencial
fosse explicar) por que os índios crêem que os pecaris são humanos quando de fato eles não o são.
É inútil perguntar-se se os índios têm ou não razão a esse respeito: pois já não o 'sabemos'? Mas o
que é preciso saber é justamente o que não se sabe – a saber, o que os índios estão dizendo, quando
dizem que os pecaris são humanos. [...] Assim, quando seus interlocutores indígenas lhe dizem (sob
condições, como sempre, que cabe especificar) que os pecaris são humanos, o que o antropólogo
deve se perguntar não é se 'acredita ou não' que os pecaris sejam humanos, mas o que uma idéia
como essa lhe ensina sobre as noções indígenas de humanidade e de 'pecaritude'. [...] A pergunta
[...] deve ser: para que serve essa idéia? Em que agenciamentos ela pode entrar? Quais suas

41
Cf. Viveiros de Castro (2002a).
42
Além dos textos de Viveiros de Castro (1996, 2000, 2001, 2002a, 2002b, 2003, 2004, 2006), fizeram parte desse
trajeto Lima (1996), Carneiro da Cunha (1998), Leite (1998), Descola (1998), Ingold (2000), Vilaça (2000), Labate
(2001) e Andrello (2006).
43
A importância do segundo exemplo, o das diferentes concepções de corpo (Piro e ocidental), foi percebida muito
antes daquela do primeiro (certamente por ser mais epistemológica do que metodológica), e foi trabalhada em um
texto que escrevi com Aline Bonetti e outros colaboradores como trabalho de curso (cf. Bonetti e Ferreira 2003).

12
conseqüências? Por exemplo: o que se come, quando se come um pecari, se os pecaris são
humanos? 44

Durante muito tempo, li essas palavras como quem lê um maravilhoso texto exótico sobre uma
realidade distante e desconhecida. Foi apenas recentemente (e subitamente) que percebi o quão
próximo o problema ali tratado estava dos problemas metodológicos de minha própria pesquisa.
O fato é que esta pesquisa se desenrolou no confronto entre duas afirmações análogas (mas não
idênticas) àquela a que Viveiros de Castro se refere no trecho supracitado ("os pecaris são
humanos"): de um lado, DJs dizendo que são xamãs ("os DJs são xamãs"45), de outro, xamãs
dizendo que são máquinas ("o xamã é uma máquina"46). Desde o início, apesar de minha
predisposição em aceitar ambas as afirmações, a primeira sempre pareceu mais difícil de
sustentar do que a segunda. Se por um lado a afirmação do xamã de que ele é uma máquina me
parecia coerente com suas práticas rituais e suas cosmologias, por outro a afirmação do DJ de que
ele é um xamã sempre esbarrou na minha percepção da distância que separa as suas práticas e
teorias daquelas dos xamãs tradicionais, situação que encontrava apoio em boa parte da literatura
e do discurso nativo e que não mudou durante a maior parte desta pesquisa.47 Dito de outra
forma, mesmo sabendo (desde o encontro com Garcia dos Santos) que o xamanismo da música
eletrônica não deveria ser avaliado a partir do conhecimento já estabelecido sobre o xamanismo
tradicional, eu ainda não havia encontrado uma maneira mais consistente de relacioná-los, uma
maneira que fizesse jus às particularidades e complexidades de ambos, sem as já usuais
simplificações do xamanismo tradicional e deslegitimações do xamanismo contemporâneo.
O trecho supracitado foi crucial para desbloquear meus hábitos metodológicos por me
mostrar (apesar de minha resistência) que o fato de eu "saber" que os DJs não são xamãs como eu
normalmente os concebo é não apenas parte importante da relevância da relação entre música
eletrônica e xamanismo para mim, mas também o motivo pelo qual essa relação é relevante para
o conhecimento em geral tanto sobre xamanismo quanto sobre música eletrônica. Em outras
palavras, ao invés de perguntar "se" os DJs são "de fato" xamãs ("pois já não o 'sabemos'?"), seria
preciso perguntar "o que" os DJs estão dizendo sobre xamanismo e música eletrônica quando

44
Viveiros de Castro (2002a:134-5, 138; itálicos no original).
45
Cf. Capítulos 1 e 2, abaixo.
46
Cf. Capítulo 6, abaixo.
47
Já vimos acima o caso de Toop, assim como a minha própria resistência inicial diante da proposta de Garcia dos
Santos. Essa resistência em aceitar a legitimidade do discurso nativo (ou melhor dizendo, em abandonar de vez a
busca por alguma legitimação) pôde ser observada ainda em minha apresentação ao Núcleo de Transformações
Indígenas (NuTI-UFRJ) no Seminário "Música eletrônica e xamanismo", realizado em 14 de outubro de 2005 (cf.
Ferreira 2005d).

13
dizem que são xamãs, "o que" essa idéia pode nos ensinar de novo sobre xamanismo e música
eletrônica, "o que", enfim, fazem DJs e xamãs (em que consiste suas atividades), quando DJs são
xamãs. O mesmo vale, ademais, para a outra relação que me parecia menos problemática: "o que"
os xamãs estão dizendo sobre xamanismo e tecnologia quando dizem que são máquinas?; "o que"
a idéia de que xamãs são máquinas pode nos ensinar de novo sobre xamanismo e sobre as
máquinas?; "o que" fazemos quando assistimos televisão ou ouvimos rádio quando essas
máquinas são xamânicas? Foi apenas após esse deslocamento de questões que esta tese
finalmente assumiu sua forma atual. Dificilmente se encontrará aqui as respostas para todas essas
perguntas, mas se elas forem ao menos adequadamente apresentadas em sua complexidade já terá
sido um avanço, pois mais importante do que chegar a conclusões definitivas quanto ao objeto de
nossa investigação é colocar em movimento o processo de produção de conhecimento novo sobre
ele, fazer do estudo da música eletrônica uma espécie de continuação do processo criativo que
encontramos (pois procuramos) nela mesma, experimentando com ela, evoluindo com ela. Trata-
se, como bem disse Bergson, de "encontrar o problema e conseqüentemente de colocá-lo, mais
do que de resolvê-lo", sabendo que "enunciar o problema não é somente descobrir, é inventar".48

Apresentação da tese
A música eletrônica de pista já conta atualmente com uma bibliografia especializada bastante
consolidada,49 sendo este um momento extremamente produtivo de descoberta de suas próprias
metodologias e questões específicas. No Brasil, a segunda metade dos anos 90 parece marcar o
início de um estudo mais sistemático do tema, sendo cada vez maior o número de trabalhos –
acadêmicos50 ou não51 – dedicados a ele. Durante a primeira metade da primeira década do século
XXI, observou-se um notável aumento no número de estudos acadêmicos sobre música eletrônica

48
Bergson (1974:133; itálicos no original).
49
Na bibliografia desta tese, as publicações mais antigas sobre música eletrônica de pista datam da passagem dos
anos 80 para os 90 (e.g. Vianna 1988; Langlois 1992; Savage 1993) e parece-nos que os principais estudos
históricos sobre o tema, aqueles que servem de base ou ponto de partida para a maioria dos trabalhos posteriores,
foram publicados entre 1995 e 2000 (e.g. Poschardt 1998[1995]; Toop 1995; Reynolds 1999[1998]; Thornton
1996; Brewster e Broughton 2000[1999]; Sicko 1999).
50
No Brasil, diversos estudos acadêmicos sobre música eletrônica de pista com viés étnico e privilegiando estilos de
ritmos quebrados como o Funk e o Hip Hop foram desenvolvidos durante os anos 90 (e.g. Herschmann 1997;
Sansone e Teles dos Santos 1997) enquanto estudos mais voltados para os estilos de pulso constante só se tornaram
mais comuns a partir do final daquela década (sobre a diferença entre os estilos de ritmo quebrado e de pulso
constante, cf. no Capítulo 9 a seção "O break e o pulso constante", abaixo).
51
Palomino (1999) parece ter inaugurado, no Brasil, os estudos jornalísticos sobre a música eletrônica de pista,
sendo Assef (2003), sem dúvida, a maior contribuição ao gênero desde então.

14
de pista no Brasil,52 e pode-se dizer que pesquisadores do tema já contam atualmente com
estudos nacionais de boa qualidade. Esperamos que esta tese também faça a sua parte na
consolidação desse campo de estudos no Brasil, um campo que acreditamos ainda ter muito a
oferecer.
Logo de início, é útil esclarecer que esta pesquisa não teve como foco principal as festas
de música eletrônica (popularmente conhecidas como raves) ou a "cultura" dos DJs e de seu
público (aquilo que é normalmente chamado de "cena"53). Sobre esses temas existem já inúmeros
estudos de qualidade aos quais faremos referência ao longo desta tese. O foco principal desta
pesquisa é metodológico e conceitual: partimos de uma reflexão minimamente documentada
sobre a maneira como as transformações dos conceitos de "xamanismo" pela música eletrônica e
de "máquina" pelo xamanismo indígena contribuem para a compreensão do xamanismo da
música eletrônica; e em seguida propomos um conceito de música eletrônica como o som de uma
máquina e uma metodologia para estudá-la enquanto tal. Trata-se, em verdade, de um estudo
preparatório para futuras pesquisas que pretendemos realizar, e esperamos que possa também
servir a outros pesquisadores interessados em olhar com outros olhos (ou escutar com outros
ouvidos) a música eletrônica de pista. Não pretendemos adiantar nesta Introdução os resultados
devidamente expostos ao longo da tese, mas apenas tecer alguns comentários sobre três pontos
específicos – (1) o tema das drogas e como ele se relaciona com esta pesquisa; (2) as

52
O número de Dissertações de Mestrado defendidas no Brasil sobre música eletrônica de pista cresce
constantemente e pudemos consultar aqui Fontanari (2003), Bacal (2003) – sabemos que Ivan Fontanari e Tatiana
Bacal desenvolvem atualmente Doutorado sobre música eletrônica –, Arango (2005) e Cavalcante (2005). Sabemos
ainda da existência de outras três dissertações que não consultamos: Música eletrônica e cibercultura: Idéias em
torno da socialidade, comunicação em redes telemáticas e cultura do DJ, defendida por Cláudio M. Duarte de
Souza na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia em 2003 (cf. Lopes e Abreu *[s.d.]);
Periferia Bate-Estaca (título provisório divulgado em Michalick *2003b), de Ricardo A. de S. Feitosa, sobre a qual
sabemos apenas que é vinculada ao Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea da Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal da Bahia (cf. Feitosa 2003; Lopes e Abreu *[s.d.]); e Eletrônia: um
Continente Político?, defendida por Luciana Amorim no Departamento de Ciência Política da Universidade
Federal de Minas Gerais em 2003 (cf. Amorim *2003; Katia *2004). Vale mencionar ainda os trabalhos a que
tivemos acesso sobre música eletrônica de pista apresentados em congressos acadêmicos brasileiros: Bacal (2004);
Fontanari (2004a, 2004b); Baldelli (2004); Baldelli e Moutinho (2004); e Silva dos Santos (2004). Nossas próprias
contribuições anteriores podem ser encontradas em Ferreira (2004a, 2005c, 2005d).
53
"Cena é uma palavra que define com bastante clareza o mundo que criamos, trabalhamos e vivemos no nosso dia-
a-dia. [...] Todo um conjunto de pessoas, festas, discussões e ações em torno de um único ponto comum – a [...]
música eletrônica e variações." (Lubna *2002). O conceito nativo de "cena" vai aparecer repetidas vezes neste
trabalho, sempre entre aspas, indicando nossa opção por manter em suspenso o seu estatuto. Com efeito, é difícil
atender ao apelo da jornalista supracitada por "tirar as aspas da 'Cena'" (cf. Lubna *2002), tanto pela conotação
teatral da palavra (que tende a colocar toda a ação no registro da representação) quanto pelo efeito de "profecia
auto-realizadora [self-fulfilling prophecy]" que Becker e Woebs (1999:66-7) lhe atribuem e que se confirma na
conclusão do texto da jornalista: "perca o estranhamento: a cena tá aí e você que tá lendo esse texto muito
provavelmente faz parte dela. Querendo ou não." (Lubna *2002) Trata-se de um conceito ainda a ser pesquisado.

15
especificidades de sua orientação teórica; (3) os princípios básicos e as convenções de análise
sonora que aqui utilizaremos – e apresentar o plano geral da tese.

(1)
Esta tese não abordará diretamente o tema do uso de drogas nas festas de música eletrônica, um
dos aspectos da cultura associada a ela que mais recebe atenção da mídia em geral54 através de
reportagens que apresentam as festas como pontos de venda de drogas, seus freqüentadores como
viciados e os DJs como traficantes,55 numa evidente supervalorização publicitária do "escândalo"
e de estereótipos depreciativos.56 A opção por não abordar diretamente esse tema poderia ter sido

54
Há um consenso de que o "pânico moral [moral panic]" promovido pela ênfase dos tablóides ingleses no consumo
de drogas pelos freqüentadores das raves contribuiu ativamente para o crescimento da própria "cena rave" daquele
país (cf. Thornton 1996:129-37; Reynolds 1999:66-7; Brewster e Broughton 2000:371-2), assim como para a
repressão que se seguiu (cf. Critcher 2000). No Brasil, a associação da "cena eletrônica" com as drogas pela mídia
tem tido um impacto aparentemente apenas negativo, com proibições de eventos em Santa Catarina, Rio de Janeiro,
São Paulo e Belém (cf. Rocha *2003b:56). O veterano DJ francês François K. (que começou a tocar em Nova
Iorque nos anos 70) sugere que esse impacto negativo das drogas na "cena" é generalizado: "É sempre a mesma
coisa. Fui para Tóquio e fecharam o clube do meu amigo. A cena dos clubes é difícil. Envolve substâncias ilegais
muitas vezes, pessoas ficando loucas." (François K. in: Rocha *2004b:69). Outros depoimentos nesse mesmo
sentido em Fritz (1999:227-34).
55
É comum, no Brasil, encontrar manchetes como: "DJ é preso com LSD, haxixe e 'supermaconha'" (Lombardi
*2003a); "DJ é preso com drogas em chácara de SP" (Lombardi *2003b); "Polícia acaba com festa rave, prende 31
e acha drogas" (O Estado de S.Paulo 19 de abril de 2004, pp.C4); "Denarc prende 11, apreende LSD e ecstasy.
Acaba rave em fazenda" (Godoy *2005c); "Polícia detém 28 em festa rave" (Thomé *2005); ou afirmações como:
"Os organizadores dessas festas [referindo-se em especial ao megafestival Skol Beats 2005] devem ter mais
cuidado com o consumo de drogas" (Ivaney Cayres, Diretor do Denarc, in: Godoy *2005a); "os acusados [de
tráfico] forneceriam drogas em danceterias e festas rave" (Godoy *2005b); "coreano [...] fornecia o entorpecente
para festas" (Dacauaziliquá *2003); "a droga alucinógena MDMA [é] componente químico do badalado ecstasy
das maratonas rave" (Harazim *2005); "[a droga] [t]ransformou-se em febre entre os jovens que freqüentam as
baladas em São Paulo. [...] 'Eles vendem para jovens que freqüentam festas como o Skol Beats', afirmou [o
delegado]" (Godoy *2006); "a droga estava com o músico e DJ" (O Estado de S.Paulo 5 de julho de 2005, pp.C5).
Particularmente curiosa foi a assim chamada "Operação Dancing", promovida pelo Denarc desde 2000, em que
policiais "disfarçados de freqüentadores de festas rave e danceterias" (o que envolve "roupas descoladas, calça
folgada, tênis Nike Shox", "policial que pinta o cabelo, usa óculos coloridos" e a aproximação dos "traficantes"
"através das meninas, que sempre dão mole"; Igor Galati, policial, in: Brancatelli e Moreno *2005:26) surpreendem
vendedores e consumidores. Em uma reportagem intitulada "'Os pais precisam saber', diz delegado: Operação
Dancing, feita em casas noturnas, flagra cenas degradantes", lê-se que "a droga faz parte da festa", que "o Denarc
prendeu quatro DJs, que animavam festas com música e drogas vendidas por eles" e que "convites para festas rave
[...] traziam um comprimido de ecstasy dentro" (Godoy *2003). Em outra, intitulada "A perigosa balada do
ecstasy", lê-se que "[a] reportagem [...] levou apenas 92 segundos para ter acesso ao ecstasy em uma rave"
(Brancatelli e Moreno *2005:23). Um relato detalhado de algumas operações policiais em busca de drogas em
casas noturnas de São Paulo em 1996 e 1997 pode ser encontrado em Palomino (1999:92-7); cf. Assef (2003:211).
56
Essa é a opinião de pessoas diretamente envolvidas na "cena", como um empresário que considera "inadmissível
que [...] [se] entreviste um suposto traficante, publique uma declaração na qual ele difama casas noturnas e festas e
não dê aos donos das casas e festas a possibilidade de rebater", dizendo-se "humilhado ao ver o nome de minha
empresa citado na reportagem" (cf. Veja SP 1 de junho de 2005, pp.8), e uma jornalista que considera o tema um
"bode expiatório para arrumar publicidade, para vender jornal", "um bom lide, que é a fórmula 'ecstasy mais
música eletrônica mais gente muito louca', para os Cadernos de Cidades" e que "a polícia aproveita muitas vezes
para mostrar serviço, aparecer na TV com um suposto 'DJ' sendo preso vendendo pastilhas", perguntando ainda:

16
problemática, visto que há um consenso quanto à impossibilidade de se negar a forte relação
entre o uso de drogas (em especial o ecstasy57) e a música eletrônica em geral58 e principalmente
considerando a importância dessa relação para os seus aspectos normalmente associados ao
xamanismo,59 mas acreditamos ter uma boa justificativa para ela: aquilo que Reynolds e Eshun
chamaram de "o nexo música-drogas-tecnologia" (muitas vezes sintetizado na expressão drug-
tech interface).60
Já é sabido que a música eletrônica de pista, além de ser fortemente influenciada pelos
efeitos de determinadas drogas consumidas durante as festas e durante a sua própria criação, é

"esses caras que se dizem DJs, quem são? Eles falam que são DJs e a mídia aceita. Já viu [...] o tal traficante DJ,
tocando em alguma festa? Eu não, nem ninguém que eu conheça" (Assef, in: Medeiros *2003c).
57
Um compêndio da farmacopéia do raver de primeiro mundo é oferecido em Fritz (1999:150-2). Quanto ao Brasil,
mesmo sendo o ecstasy a droga mais freqüentemente associada à festas, o consumo de álcool, maconha, cocaína e
solventes em geral parece ser muito mais comum – sobre o ecstasy como "capital subcultural" de uma cena do
terceiro mundo e outros "recursos para ir além", cf. Fontanari (2003:146-9). A idéia da "normalização" do ecstasy,
ou seja, da sua desvinculação de qualquer criminalidade ou ilegalidade, para não dizer sua banalização, é
freqüentemente mencionada pela bibliografia. Isso foi evidenciado por Bill Sanders durante sua pesquisa sobre o
uso de ecstasy em clubes noturnos ingleses quando um freqüentador veio lhe perguntar se ele sabia como conseguir
uma pílula, apesar de ele estar, na ocasião, exercendo a função de segurança do clube (cf. Sanders 2005:252-3).
Curiosamente, eu também fui abordado por uma garota em uma festa, que insistia na idéia de que eu teria alguma
"bala" para vender, apesar de minha incrédula reação negativa. Outro pesquisador que também passou pela mesma
situação foi Fontanari (cf. 2003:109).
58
É fácil encontrar, em estudos e depoimentos, afirmações como: "É impossível separar a cena Acid House do
Ecstasy e das outras drogas que a acompanharam" (Anthony *1998:175); "A centralidade das 'drogas' para a
cultura dance contemporânea é um fato inquestionável" (Gilbert e Pearson 1999:138); "As drogas têm feito parte
da cena rave desde seu início [...], ninguém pode separar a cena rave do uso de drogas" (Mas Stiens, in: Duarte de
Souza 2001:65); "Noventa por cento dos discos de techno atuais são feitos para uma pista de dança drogada"
(Renaat Vandepapeliere, in: Savage 1993:8). Citemos aqui ainda a engenhosa justificativa de Sarah Thornton para
a ingestão de seu "primeiro" ecstasy: "Eu não gosto muito de drogas – preocupo-me com meu cérebro. Mas elas
são um fato dessa cultura jovem, portanto me submeto à experiência em nome da pesquisa" (Thornton 1996:89).
Infelizmente, a "experiência" não parece ter contribuído muito para a pesquisa de Thornton, pois ela acaba não
fazendo nenhuma referência ao efeito da droga e, como bem notaram Jeremy Gilbert e Ewan Pearson, "não
menciona a experiência [central] da dança" (Gilbert e Pearson 1999:18; itálico no original). Já existe uma vasta
bibliografia sobre o uso de drogas em festas de música eletrônica em todo o mundo. Além do ótimo estudo de
Reynolds (1999), indicaríamos Rushkoff (*1994), Anthony (*1998) e Fritz (1999) como fontes riquíssimas de
depoimentos nativos e, para estudos de caso em diferentes países: Austrália (Desenberg 1997); Índia (Saldanha
2002); França (Bonniol 2002); Estados Unidos (Dore 2002; Glover 2003); Canadá (Fritz 1999); Holanda
(Verhagen et al. 2000); e Inglaterra (Critcher 2000; Sanders 2005).
59
Por um lado, o ecstasy é visto como o promotor de uma "revolução social", modificando positivamente o
comportamento de toda uma geração através da redução do racismo, da homofobia, do sexismo, das desigualdades
de gênero e de classe, do uso de álcool, da agressividade, da timidez, do individualismo e, enfim, através da "cura"
do jovem do final do século XX de seus maiores problemas (cf. Reynolds 1999:60, 63, 65, 81; Fritz 1999:145-6;
Brewster e Broughton 2000:368-9). Por outro lado, o ecstasy é visto como o promotor, ao lado de outras drogas, de
uma "revolução espiritual", diretamente ligada ao lado mais tecnológico do imaginário "místico" e "tribal" da
filosofia New Age (magistralmente sintetizado por Douglas Rushkoff em Cyberia; cf. Rushkoff *1994), ao
internacionalmente famoso neo-xamanismo californiano (centrado em figuras como Timothy Leary, Aldous
Huxley, Terrence McKenna e Michael Harner entre outros; cf. Hutson 1999, 2000) e também àquilo que Reynolds
chamou de "comunidade ciberdélica de San Francisco" (Reynolds 1999:239) – Reynolds menciona ainda as raízes
dessa cultura psicodélica no Rock progressivo e suas experiências com LSD e, não menos importante, o fato de que
a Costa Oeste dos Estados Unidos é célebre por seus laboratórios produtores de drogas sintéticas "fortes" (cf.
Reynolds 1999:150).
60
Cf. Reynolds (1999:55, 239), Shapiro e Lee (2000:148-9), Eshun (2000a).

17
também freqüentemente criada com a intenção consciente de interagir com esses efeitos.61 Em
outras palavras, DJs e produtores de música eletrônica, ao criarem novas músicas, levam em
conta os efeitos que elas provocarão em determinados contextos e em pessoas sob o efeito de
determinadas drogas, e assim transformam suas músicas em espécies de "aditivos" ou de
"intensificadores" desses mesmos efeitos.62 Isso abre a possibilidade de um proto-determinismo
musical que permite associações convincentes entre certos estilos musicais ou efeitos sonoros e
certas drogas63 (como numa espécie de "tecnologia pavloviana"64) ou a atribuição de
transformações ocorridas em "cenas musicais" a mudanças específicas nas drogas e na maneira
de consumí-las.65 Muito mais do que teorias a serem verificadas, encaramos essa estreita relação
entre o som e seus efeitos como afirmações a serem compreendidas. A possibilidade de que
certos efeitos de certas drogas sejam traduzidos para uma linguagem sônica capaz de intensificá-
los e até mesmo de provocá-los ganha ainda mais força quando constatamos que as mesmas
pessoas que afirmam ser impossível dissociar as drogas da "cultura rave" fazem questão de
ressaltar que, apesar disso, é perfeitamente possível passar por todas as experiências
extraordinárias que elas proporcionam sem as drogas, apenas com a música – como quando
Reynolds afirma que "a música, por si só, droga o ouvinte"66 –, ou quando constatamos que
"cenas" locais inteiras de música eletrônica podem evoluir sem o uso generalizado de drogas.67

61
Cf. Ross et al. (1995:71), Gilbert e Pearson (1999:138), Reynolds (1999:63, 83-5, 326), Eshun (1999:99, 2000a),
(Sharp 2000:133, 146), Brewster e Broughton (2000:367), Sanders (2005:249).
62
Nas palavras de Reynolds: "Os aspectos latentes na House e no Techno que intensificavam os efeitos do Ecstasy
não eram intencionais e foram descobertos acidentalmente pelas primeiras pessoas que misturaram a música e a
droga. Nos anos seguintes, porém, a música foi evoluindo gradualmente como uma ciência para intensificar os
efeitos do MDMA. Produtores de House e Techno desenvolveram um repertório de efeitos determinado pela droga,
texturas, e frases musicais expressamente criadas para disparar as sensações que atravessavam o corpo em Ecstasy
[the Ecstatic body]." (Reynolds 1999:85)
63
Os exemplos são muito variados. Podemos citar aqui: a associação do gosto pela repetitividade e pela alta
velocidade aos efeitos do princípio ativo do ecstasy (MDMA) no sistema nervoso (Reynolds 1999:83-5; Jones
*1994; Noys 1995:322); a associação da intensa sensibilização da superfície corporal aos efeitos da música alta das
raves e a certas combinações de freqüências (cf. Reynolds 1999:5, 63, 83, 85, 119; Brewster e Broughton
2000:367); a associação dos efeitos sensibilizadores do princípio ativo da maconha (THC) aos sons graves e às
texturas do Drum'n'Bass e do Trip Hop (Reynolds 1999:326; Sharp 2000:146; Eshun 2000a); a associação dos
efeitos alucinógenos do LSD à sonoridade progressiva e intensamente harmônica do Trance (Fritz 1999:90).
64
Encontramos referências explícitas a Pavlov para falar sobre o poder da música no controle das reações de pessoas
sob o efeito de determinadas drogas em Reynolds (1999:125), Brewster e Broughton (2000:406) e Reighley
(2000:191).
65
Exemplos são facilmente encontrados em Reynolds (1999), Palomino (1999) e Brewster e Broughton (2000).
66
"[B]y itself, the music drugs the listener." (Reynolds 1999:9; itálico no original; cf.55). O DJ norte-americano Josh
Wink declara: "nunca me droguei [...], fico louco com a música" (Skrufff *2003b); e ravers entrevistados por Fritz
(1999) confirmam esse poder da música: "É a sensação que toma conta do seu corpo quando você escuta aquela
música que faz dela [...] um tipo de intoxicação" (Sebastian Zillinger, austríaco, p.83); "Estou limpo. A música é a
minha droga." (Sonic Intervention, Estonia, p.139)
67
Os exemplos mais célebre de "cenas" fortes e livres de drogas são a de Detroit dos anos 80 (cf. Reynolds 1999:71
e 230; Sicko 1999:116) e as da Finlândia e da Suécia dos anos 90 (cf. Fritz 1999:241 e 250).

18
Tudo se passa como se o novo caminho aberto pela experiência com drogas pudesse, uma vez
aberto, ser trilhado também sem elas, seja pela mesma pessoa,68 que agora já sabe o caminho,
seja por outras pessoas que nunca tomaram a droga mas que agora contam com o conhecimento
coletivo traduzido em efeitos sonoros.69 Nosso principal argumento aqui é que os efeitos
extraordinários da música eletrônica de pista que são valorizados pelo discurso que descreve o
seu potencial xamânico são já o resultado de uma coevolução música-droga e que, portanto, o
estudo desses efeitos e de seu modo de funcionamento é tão importante para a compreensão desse
xamanismo quanto o estudo do discurso sobre as drogas ou de sua bioquímica. Em outras
palavras, mesmo sabendo da importância das drogas para as experiências que aqui abordaremos e
admitindo a importância de pesquisá-las, consideramos que nosso enfoque estritamente sonoro se
justifica pela importância igualmente grande da música, sobre cuja função sentimo-nos muito
mais aptos a contribuir com algum conhecimento novo.

68
Essa é, por exemplo, a teoria de Reynolds (1999:9 e 139) – "Talvez você só tenha que tomar [ecstasy] uma vez,
tornar-se s-E-nsível [sens-E-tized], para que a música induza baratos memorados e flashbacks corporais" – e de
Fritz (1999:44 e 138) – "Uma vez familiar e habituado à experiência do ecstasy, a música se transforma num
disparador hipnótico que produz os efeitos da droga sem que se a tenha tomado". Cf. também depoimentos em
Fritz (1999:141, 154-8).
69
"Parece haver um consenso quanto a que não é preciso consumir drogas para entrar em transe" afirma Fontanari,
que ainda cita o DJ Double S dizendo: "acho que a música te leva pra fora de si tranqüilamente, sem precisar
nenhum aditivo, só tu tá afim" (Fontanari 2003:146). "Sim, é possível ir a uma rave e não usar drogas. Sim, é
possível ser um raver e viver o estilo "sem drogas". Não, uma rave não depende do uso de drogas" (Mas Stiens, in:
Duarte de Souza 2001:65). O livro de Fritz – que afirma ter ouvido muitas descrições de "experiências completas
de transe psicodélico usando nada além de água mineral" (Fritz 1999:41) – é rico em exemplos de pessoas que
afirmam encontrar na música em si os mesmos efeitos que são normalmente atribuídos às drogas. Alguns deles
(sempre em Fritz 1999): "Eu não comecei a dançar, foi a música que me agarrou e me forçou a dançar. Senti a
batida pulsando com meu sangue, obrigando o meu corpo a se mexer, a seguir cada um dos sons em uníssono.
Fechei meus olhos automaticamente e entrei em contato comigo mesmo de uma maneira que nunca tinha
acontecido antes. [...] Senti a energia pulsante me atravessando com uma força incrível, tirando-me do chão. Eu
dancei por onze horas, praticamente sem parar, sem me cansar e sem nunca ter tomado nenhuma droga." (Janne
Leino, raver da Finlândia, p.47); "A música excita algo profundo dentro de mim e faz meu corpo gritar por
movimento! Eu me excito completamente e experiencio uma loucura totalmente natural!" (Maya Berelowitz,
estudante da África do Sul, p.80); "Quando estou numa rave eu [...] fecho os meus olhos e viajo através de nuvens
e montanhas. É ótimo. Encho-me de alegria. E eu não uso nenhuma droga" (Ivan Arar, raver da Croácia, p.81); "Eu
nunca uso drogas e [...] experiencio a música provavelmente de maneira muito mais intensa" (Dominique,
administradora de sistemas da Bélgica, p.154); "Eu tento criar um ambiente nas minhas festas que seja tão
divertido para aqueles que usam drogas quanto para aqueles que não as usam, por isso a música precisa ser o foco
central" (Nigel Tasko, promoter do Canadá, p.155); "Eu nunca uso drogas e me acabo em todas as festas" (DJ
Marcore, México, p.157); "Eu vou a raves porque minha mente e meu corpo precisam disso. A dança me cura. [...]
E eu nunca tomei ecstasy" (Fredrik Larsson, músico da Suécia, p.199). Além disso, Rushkoff relata o freqüente uso
de mind-machines (cf. Hutchinson *1992; Harrah-Conforth 1992; e também o ótimo comentário de Martins 2005:
nota 72) e outras tecnologias de "realidade virtual" entre ravers norte-americanos para a produção de estados
alterados de consciência (cf. Rushkoff *1994:124 e 217), esforço também feito na Inglaterra com o objetivo de
substituir totalmente as drogas por essa realidade virtual (cf. Jones *1994). Tim Becker e Raphael Woebs, enfim,
percebem que a própria "atmosfera" das festas de música eletrônica pode ser vista, em si, como uma grande mind-
machine, "um gerador gigante de mundos psicodélicos" (Becker e Woebs 1999:65).

19
(2)
Como ocorre em qualquer campo de estudos, existem já diversas narrativas consolidadas sobre o
tema da música eletrônica de pista – o que ela é, qual é a sua origem, qual é a sua função etc. – e
a opção por uma ou outra dessas narrativas não apenas depende das predisposições de cada
pesquisador como também acaba orientando o seu recorte do tema e a maneira como ele é
desenvolvido. Ao longo desta pesquisa, pudemos perceber a existência de quatro narrativas
dominantes sobre a música eletrônica de pista, que decidimos chamar de erudita, tecnológica,
cultural e primitivista.
A narrativa que chamamos de erudita poderia ser tipificada como aquela que parte das
experimentações de artistas modernistas e futuristas do início do século XX com a introdução de
novas sonoridades na música, passa pelas experiências da musique concrète, da elektronische
musik e da tape music de meados daquele mesmo século (é comum também a menção ao
minimalismo dos anos 70) e chega até as vertentes mais conceitualmente elaboradas da música
eletrônica contemporânea, geralmente rotuladas com o qualificativo "inteligente" – e.g.
Intelligent Techno, Intelligent Drum'n'Bass, ou simplesmente Intelligent Dance Music (IDM) – e
encaradas como sendo a vanguarda do gênero. Uma característica deste tipo de narrativa é a
preferência pela abordagem de artistas individuais, pelo escrutínio de suas personalidades e
idiossincrasias e pela avaliação de sua genialidade e criatividade, valorizando acima de tudo a
experimentação estética e a ruptura de paradigmas associadas às suas obras. Vale notar também
que a música privilegiada por esta narrativa é geralmente voltada, por um lado, para museus e
galerias de arte, e por outro, para o consumo individual doméstico, tendo como traço comum uma
relação mais individualizada e contemplativa com a música. Sabemos que estamos diante de uma
narrativa de tendência erudita quando nos deparamos com passagens como: "Luigi Russolo
afirma em seu manifesto o que os DJs [...] fazem atualmente";70 "O breakbeat [...] é a epítome da
musique concrète";71 "A referência comum da deflagração da música eletrônica [...] tem sido as
experiências da Eletroacústica nos anos 50 na Alemanha".72

70
Bacal (2003:55). Outro exemplo de passagem que faz do músico futurista um precursor da música eletrônica de
pista é: "Muito antes das pistas [de dança] [...] Luigi Russolo [...] pregava que 'era preciso quebrar o limitado
círculo de sons até então usados e buscar uma infinita variedade de barulhos sonoros'." (Ferla 2004:18)
71
Young (2000:15). Outra passagem que apresenta a musique concrète como precursora da música eletrônica de
pista é: "A musique concrète pode ser vista como o nascimento do sampling criativo e é certamente relacionada ao
remix" (Prochak 2001:15). Cf. ainda Neill (2002:4).
72
Duarte de Souza (2003:2). Outra passagem que apresenta a elektronische musik como precursora da música
eletrônica de pista é: "A música eletrônica, inaugurada há 50 anos por Stockhausen, migra dos laboratórios de
pesquisa para movimentar multidões nas pistas de dança" (Sukorski *2001:74). Stockhausen é, aliás,
freqüentemente chamado de "o avô da música eletrônica" (cf. Shapiro e Lee 2000:228; Negromonte *2001), "um

20
A narrativa que chamamos de tecnológica tem muitos pontos em comum com a erudita,
pois também tende a valorizar a experimentação e a ruptura de paradigmas estéticos, mas merece
ser considerada separadamente. Poderíamos tipificar a narrativa tecnológica como sendo aquela
que parte de invenções técnicas voltadas à síntese, gravação e transmissão sonora a partir do final
do século XIX, passa pelo desenvolvimento da parafernália eletrônica dos DJs e produtores ao
longo dos anos 70 e 80 e chega até a utilização contemporânea de tecnologias e interfaces
digitais. Esta narrativa tem como característica a dissociação da música eletrônica de estilos,
finalidades e contextos sociais específicos, privilegiando acima de tudo uma leitura mais neutra
da maneira como ela ilustra a evolução de uma crescente sinergia entre humanos e máquinas.
Sabemos que estamos diante de uma narrativa de tendência tecnológica quando nos deparamos
com passagens como: "Mesmo sendo o fonógrafo de Thomas Alva Edison um dispositivo
mecânico feito de encaixes e engrenagens e movido a alavanca manual e não uma caixa
eletrônica com fios e capacitores [...], sua primeira gravação de 'Mary Had a Little Lamb' em
1877 foi o início da música eletrônica".73
A narrativa que chamamos de cultural é talvez a mais disseminada e poderia ser tipificada
como aquela que parte das experiências de DJs negros, homossexuais, imigrantes ou drogados (e
não raro tudo isso ao mesmo tempo) com a Disco e o Hip Hop nos Estados Unidos dos anos 70
(geralmente são feitas referências também ao Dub jamaicano dos anos 60), passa pelo
desenvolvimento da House e do Techno ao longo dos anos 80 e chega até o fenômeno global das
raves nos anos 90. O que caracteriza este tipo de narrativa é a ênfase na dinâmica coletiva de
produção, distribuição e consumo da música eletrônica, no fato de que ela é produzida por grupos
sociais específicos, em contextos específicos e para fins específicos, geralmente marcados pelo
espírito de resistência e celebração de minorias e indissociáveis da marginalidade social, estados

dos fundadores da música eletrônica [de pista]" (Mena *2001) e também considerado um artista "prototecno"
(Ferla 2004:20). A relação entre a música eletrônica erudita e a Intelligent Dance Music é particularmente explícita
no caso do artista inglês Aphex Twin, um dos nomes mais célebres do gênero – geralmente referido como "gênio",
"louco", "excêntrico", "de vanguarda", "exótico", "hermético", "uma janela crítica dentro da música eletrônica" (cf.
Ivanov *2001; Mena *2001; Folha Online *2001; Nascimento *2001; Matias *2001; Moura *2001) ou mesmo
como "o novo Mozart" ou o "Mozart da música eletrônica" (cf. Ivanov *2001; Mena *2001) (também devido à
pouca idade com que teria começado a produzir, 14 anos) –, freqüentemente comparado a Stockhausen (cf. Ivanov
*2001) e sendo de fato o único citado pelo músico erudito como "um de seus seguidores preferidos" (Negromonte
*2001): "Há vários músicos tecno de quem gosto. Um deles é Aphex Twin." (Stockhausen, in: Negromonte
*2001). Um repórter constatou: "um set de Aphex Twin pode ser comparado a um momento de fruição de arte,
quando nos deparamos com objetos produzidos geralmente por gente que está na linha que separa a genialidade da
loucura." (Terra *2001)
73
Shapiro (2000a:2). Outros exemplos de passagens que colocam a invenção de objetos técnicos no início da música
eletrônica de pista são: "A história do DJ começa com a história do rádio e, portanto, está diretamente ligada à
história da tecnologia" (Poschardt 1998:349); "Em 1935 [...] os alemães contribuíram pela primeira vez à causa
eletrônica ao apresentarem ao mundo [...] o primeiro gravador de fita magnética" (Ferla 2004:19).

21
alterados de consciência, atividades ilegais, homossexualismo etc. Este tipo de narrativa tende a
privilegiar as vertentes mais festivas de música eletrônica de pista, promotoras de um espírito
positivo e celebratório, assim como músicas com maior conteúdo expressivo, promotoras de um
tipo de envolvimento mais ideológico com a música, mediado pela identificação com artistas e
discursos. Sabemos que estamos diante de uma narrativa de tendência cultural quando nos
deparamos com passagens como: "desde o começo, foram os gays e os negros que realmente
mantiveram a música eletrônica de pista [dance music]".74
Por fim, a narrativa que chamamos de primitivista poderia ser tipificada como aquela que
parte de uma imagem arquetípica de rituais tribais de povos indígenas, passa pela dessacralização
desses rituais durante o processo civilizatório promovido pelas civilizações européias e chega até
a ressacralização promovida pelas raves, vistas como grandes celebrações igualitárias e
ritualísticas neo-primitivas. O que caracteriza este tipo de narrativa é o pressuposto de que um
mesmo impulso primordial que levou povos indígenas de todo mundo, desde tempos imemoriais,
a realizarem rituais com música, dança e a produção de estados alterados de consciência, está na
base das festas de música eletrônica contemporâneas, apenas transformado por um processo
civilizatório que o recalcou desde a Idade Média e pelo uso de alta tecnologia.75 Esta é, sem
dúvida, a narrativa mais diretamente ligada ao discurso que defende as relações entre música
eletrônica e xamanismo, enfatizando acima de tudo a produção de estados alterados de
consciência, o papel do DJ como orientador de uma viagem espiritual e privilegiando o estilo

74
Mel Cheren, da gravadora West End Records, in: Tausig (2003). Bill Brewster e Frank Broughton descrevem o
público da casa noturna Loft (Nova Iorque), o "local de nascimento" da Disco, como "provavelmente 60% negro e
70% gay" (Brewster e Broughton 2000:147), e o da Warehouse (Chicago), o local "que deu nome" à House, estilo
que é muitas vezes considerado "o princípio de tudo" (Palomino 1999:283), como "majoritariamente gay, quase
totalmente negro" (Brewster e Broughton 2000:292). Outras passagens que vinculam a música eletrônica de pistas
a grupos sociais específicos são: "Se você era negro e gay em Chicago na passagem para os anos 80, a Warehouse
[...] provavelmente seria a sua igreja" (Brewster e Broughton 2000:292; cf. p.399); "As primeiras discotecas no
início dos anos 70 deram à comunidade gay um lugar onde podiam expressar e experienciar sua própria
sexualidade longe da repressão social. Essa liberação foi particularmente forte nos clubes de gays negros e latinos.
[...] A música Disco não pode ser compreendida sem a percepção do quanto ela era 'uma coisa gay'. [...] Assim
como a música Disco, a House emerge de uma cena de clubes negros e/ou gays, [...] [e] a cultura dos clubes pode
ser vista como o produto de uma estética gay" (Poschardt 1998:111-2, 252); "O Techno de Detroit é
fundamentalmente música negra [black music]", faz parte da "tradição musical da diáspora africana" (Tausig
2003); "No Brasil, a construção da música eletrônica underground [...] atraiu gente com perfil semelhante ao dos
primórdios da disco em Nova York [...] [, que] era predominantemente gay, negro e latino" (Assef 2003:151);
"Mesmo hoje em dia, seja em Paris, em Moscou ou na Irlanda, se você está atrás de música eletrônica de pista de
ponta [cutting edge electronic dance music], vá a um clube gay" (Fritz 1999:67).
75
Cf. Rushkoff (*1994:196), Reynolds (1999:65, 85-6, 150-2, 169), Fritz (1999), Borges (*2003). Nas palavras de
Seb Vaughan, DJ do coletivo europeu Spiral Tribe: "Com nossa música e nossas festas não estamos tentando
penetrar no futuro, estamos tentando voltar ao ponto onde estávamos antes da Civilização Ocidental estragar tudo"
(Seb Vaughan, in: Reynolds 1999:169).

22
Trance em suas vertentes mais psicodélicas.76 Sabemos que estamos diante de uma narrativa de
tendência primitivista quando nos deparamos com passagens como: "A história das raves deveria
começar propriamente quarenta mil anos atrás, quando os primeiros homens ainda viviam em
cavernas e respiravam fumaça de fogueira".77
Evidentemente, essas quatro narrativas são apenas tendências que submetemos a uma
purificação analítica para fins expositivos mas que são apenas muito raramente encontradas,
nessa forma pura, em casos concretos.78 O que se observa em geral é a escolha de uma ou duas
dessas tendências como eixo narrativo principal e o aproveitamento variado de elementos das
demais. Também aqui se observará o mesmo procedimento: adotaremos elementos
principalmente das narrativas tecnológica,79 primitivista80 e cultural81 (mas também da erudita82)

76
Este tipo de discurso promove uma complexa fusão de experiências psicodélicas (principalmente LSD, mas
também o ecstasy), alta tecnologia (com especial ênfase na realidade virtual e nas brain-machines) e
conhecimentos antropológicos sobre o xamanismo (geralmente re-significados de maneira essencialista como
"nosso passado tribal"). O livro de Mircea Eliade (1998) sobre xamanismo é tido como uma das principais fontes
teóricas do imaginário xamânico desse discurso, que poderíamos chamar de neo-xamânico ou New Age –
consideraremos adiante a obra de Eliade (cf. Capítulo 4, abaixo). Alguns exemplos desse discurso que chegamos a
consultar (a literatura é infindável) são: Harner e Doore (1996), Harrah-Conforth (1992), Willis (1994), Green
(2001), Hutchinson (*1992), Rushkoff (*1994), Miller (*2001), Groothuis (*[s.d.]), e o site Hyperreal (*[s.d.]).
Sobre os problemas do xamanismo New Age, principalmente as conseqüências de sua apropriação seletiva e
estereotipada de tradições, cf. Atkinson (1992:322-3), Woodman (1998), Greene (1998:641-2), Aldred (2000),
Kehoe (2000:81-9), Vitebsky (2001a:150-3; 2001b), Brown (2001), Ott (2001), Dobkin de Rios (2001) e Conklin
(2002:1056-7).
77
Fritz (1999:31). Um exemplo típico dessa narrativa que pode ser encontrada em diversas variantes é: "O ritual de
uma noite inteira dançando é uma memória que corre profundamente dentro de nós todos. Uma memória que nos
traz de volta a um tempo em que respeitávamos a grande Mãe Natureza e a todos os demais. Fazíamos nossos
rituais ao redor de fogueiras, dançando com o intuito de canalizar as energias cósmicas até nós, de ficarmos mais
próximos de nossos deuses ou apenas celebrar uma boa caçada. Nesses tempos o Xamã era nosso guia através de
outras realidades. Ele induzia as pessoas ao transe através de poções mágicas [à] base de ervas em ação conjunta
com a música tocada por tambores, flautas, didjeridoos ou vozes, de acordo com a cultura de cada povo. [...] Mas
com o surgimento de decretos durante a Idade Média, esses rituais pagãos foram reprimidos em diversas
localidades do planeta pela mão da igreja católica, ressurgindo muitos séculos depois em nossa cultura ocidental
através de diversas vertentes, entre elas a das festas Tecno-Tribais em Goa na Índia, nascendo então o Goa Trance
e as Festas Trance. [...] A festa Trance é como uma jornada xam[â]nica em que o DJ (Xamã) conduz o público até
o [ê]xtase do transe psicodélico, guiando todos através de atmosferas e realidades criadas por sua m[ú]sica. Um
guia que te leva através da noite, através da escuridão e do infinito, atingindo as áreas mais obscuras do
subconsciente humano, escolhendo músicas que t[ê]m como objetivo ir além." (DJ Thomas *[s.d.]) Uma variação
desse mesmo discurso (talvez a inspiração do DJ Thomas) pode ser encontrada no encarte de um CD de Trance (cf.
Taylor 2001:191). Retomaremos aspectos desse tipo de narrativa ao longo do texto e em especial na seção "Cláudio
Manoel e 'o sentido tribal de dançar'" do Capítulo 2, abaixo.
78
Por isso, vale notar que os trechos citados acima como exemplos de cada tipo de narrativa não devem ser
interpretados como uma rotulação dos trabalhos dos quais foram retirados ou de seus autores. Em outras palavras, o
fato de citarmos um autor como exemplo de uma narrativa particular não quer dizer que ele tenha essa narrativa
particular como orientação predominante, mas apenas que ele forneceu, naquela passagem citada, um exemplo
desse tipo de narrativa. Uma rotulação consistente de trabalhos e autores nos termos da tipologia de narrativas aqui
proposta exigiria uma pesquisa que não realizamos.
79
E.g.: na importância que atribuímos à qualidade técnica do controle que o DJ tem sobre o som (cf. Capítulo 9,
abaixo) e à forte relação entre a sensibilidade musical eletrônica e a paisagem tecnológica moderna (cf. Capítulo 8,
abaixo)

23
articulados por uma perspectiva que propomos chamar de maquínica e que partirá do princípio
funcionalista da música eletrônica de pista – o imperativo da dança – e buscará analisar cada
contexto específico como uma manifestação contingente e singular desse princípio geral. Assim,
nosso eixo narrativo partirá das experiências de DJs de Disco e Funk da década de 70 com a
captura e a manutenção dos movimentos de seu público, passará por todo um processo
coevolutivo no qual os sons tocados pelos DJs influenciam e são influenciados pelos movimentos
realizados pelo seu público e chegará na fórmula consolidada de alternância entre pulso constante
e break da música eletrônica de pista atual, com a qual os DJs experimentam através do controle
técnico das intensidades, freqüências e velocidades; um processo de individuação de uma
máquina sonoro-motora composta pela sinergia entre os sons tecnológicos tocados pelo DJ e os
movimentos do público em transe.83
A principal fonte de inspiração para a adoção dessa perspectiva maquínica foi a percepção
da sua potência analítica, sua abertura maior à experimentação conceitual consistente com os
devires ainda pouco conhecidos da música eletrônica de pista e sua capacidade de trazer à tona
um conhecimento novo sobre suas especificidades. Duas obras em especial nos convenceram da
superioridade da perspectiva maquínica: Generation Ecstasy: into the world of techno and rave
culture, de Simon Reynolds;84 e More Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction, de
Kodwo Eshun.85 O leitor terá a oportunidade de conhecer um pouco mais dessas duas obras nas
inúmeras referências a elas que faremos nas páginas que se seguem. Três estudos de menor
fôlego que também adotam essa narrativa maquínica e que também serviram de inspiração para o
presente trabalho apesar de terem sido menos amplamente usados aqui por questões de definição
de objeto foram os artigos: "What I Hear Is Thinking Too", de Timothy S. Murphy e Daniel W.
Smith;86 "Music tourism and factions of bodies in Goa", de Arun Saldanha;87 e "De Nietzsche à
la Techno: Manifeste pour les machines-pensées à venir", de Richard Pinhas.88

80
O leitor encontrará repetidamente traços da narrativa primitivista, seja pela sua força no discurso nativo do qual
partimos, seja pelo parentesco inegável entre o "impulso primordial" de que ela fala e o filo maquínico constante
pressuposto pela vertente maquínica.
81
E.g.: na importância que atribuímos à natureza coletiva da música eletrônica de pista (cf. Considerações Finais,
abaixo).
82
E.g.: na nossa ênfase no valor atribuído pelos DJs underground à experimentação estética (cf., em especial, a
Parte I, abaixo)
83
Essa proposta é desenvolvida principalmente no Capítulo 9 e nas Considerações Finais, abaixo.
84
Cf. Reynolds (1999). Cf. também Reynolds (1996, 2000). Os escritos de Reynolds têm tido uma boa penetração
nos debates acadêmicos sobre música eletrônica, sendo muitas vezes recebidos como exemplos raros de "escrita
inteligente" (Hesmondhalgh 1998a:252), "completa, perspicaz, e de boa qualidade" (Jowers 1999:388).
85
Cf. Eshun (1999). Cf. também Eshun (2000a-e).
86
Cf. Murphy e Smith (2001).

24
Esperamos que as páginas que se seguem, em especial aquelas sobre o papel mítico-ritual
da tecnologia para os povos indígenas contemporâneos,89 esclareçam a complexidade do conceito
de máquina que aqui promovemos, inspirado principalmente na obra de Deleuze e Guattari.90 Por
hora, limitamo-nos a avançar que, segundo nossa proposta,91 há uma grande diferença entre os
maquinismos e os mecanismos: aqueles são definidos pela sinergia molecular entre elementos os
mais variados (e.g. corpos físicos e biológicos, ações, enunciados, símbolos etc.) na formação de
máquinas cujo funcionamento coincide com essa mesma formação (ou seja, que não têm outra
função determinante além daquela de se formar e que só funcionam enquanto se formam); estes
são definidos pela organização molar desses mesmos elementos, mas a partir de um plano
funcional que transcende sua própria formação (máquinas formadas para alguma coisa, que
primeiro se formam e apenas depois funcionam).92 O mecanismo é, diríamos, um maquinismo
que não foi longe o suficiente, pois enquanto aquele é feito de peças que não são máquinas, este é
"infinitamente maquinado, é máquina cujas partes ou peças são todas elas máquinas".93 É essa
maquinação infinita que chamamos de filo maquínico: a atração, sinergia, simpatia, afinidade e o
desejo maquinadores.94
Uma possível vantagem de nossa forte e perene resistência aos termos em que o discurso
nativo apresenta o xamanismo da música eletrônica foi nossa decisão de não adotar a narrativa
primitivista como eixo analítico para o xamanismo da música eletrônica, vantagem que se

87
Saldanha (2002).
88
Pinhas (1998).
89
Cf. Parte II, abaixo.
90
Tanto em sua obra conjunta quanto em suas publicações individuais, como Deleuze (1988, 1991) e Guattari (1988,
1992, 1996).
91
Apresentamos essa proposta no seminário Arte, Tecnociência e Política organizado pelos grupos CTeMe e
Submidia no IFCH-Unicamp em 25 de outubro de 2004, quando definimos "a problemática de uma Sociologia da
Tecnologia que se propõe a [...] pesquisar os fenômenos sociotécnicos a partir daquilo que tanto a sociedade quanto
a tecnologia têm em comum" – i.e., os maquinismos – como o estudo "de uma relação entre maquinismos virtuais
determinantes e mecanismos atuais determinados, mediados por um processo de atualização indeterminado pois
que contingente e histórico" (cf. Ferreira 2004b). Espera-se que esta tese seja um primeiro passo nessa direção.
92
Usamos aqui os termos "molar" e "molecular" no mesmo sentido que Deleuze e Guattari (1976), para distinguir o
comportamento estatístico de grandes quantidades de moléculas (como, por exemplo, na medição da pressão de um
gás, usando a unidade "mol") do comportamento imprevisível e caótico de moléculas individuais.
93
Deleuze (1991:19). Daí a enorme distância que separa nossa proposta de qualquer mecanicismo. No mecanicismo,
como bem mostrou Diego Rios, é "a máquina [que] pressupõe a existência de um mecanismo porque a própria
máquina exige a existência de eventos que são governados por regras" (Rios 2004:86; itálico no original),
enquanto no maquinismo é o mecanismo que pressupõe a máquina pois são as regras mecânicas formadas e
determinadas que exigem a formação maquínica determinante.
94
"Filo" nos dois sentidos de "amigo/amante" (como em "filosofia") e "linhagem/família" (como em "filogênese").
Encontramos em Delanda (1997) Broeckmann (1997) e Broeckmann e Wark (1997) comentários úteis sobre o
conceito de filo maquínico. Esse conceito recebeu grafias alternativas nas diferentes traduções de diferentes obras
de Deleuze e Guattari, como: "filo maquinístico"; "phylum maquinístico"; "phylum maquínico"; e "filo
maquínico".

25
revelou na leitura de estudos acadêmicos sobre o mesmo tema que foram baseados
principalmente nesse discurso. O fato é que adotar essa narrativa implica, normalmente, assumir
pressupostos que consideramos problemáticos, aceitar como dado aquilo que deveria ser
pesquisado. Explicitaremos as desvantagens de assumir os pressupostos implicados na narrativa
primitivista como dados (e não como objeto de investigação) adiante, após nosso estudo sobre o
xamanismo indígena contemporâneo.95 Por hora, gostaríamos ainda de ressaltar que pesquisas
baseadas principalmente no discurso que adota a narrativa primitivista correm o risco de colocar
a própria experiência sonoro-motora sobre a qual ele versa em segundo plano, fazendo assim de
racionalizações póstumas, recognitivas e conscientizantes o principal meio de acesso a uma
experiência que se caracteriza, acima de tudo, pela imersão corporal no som, pela ruptura da
comunicação oral e por estados alterados de consciência dificilmente verbalizáveis. Por tudo isso,
parece-nos que o discurso primitivista não deveria ser a única fonte para uma pesquisa sobre o
xamanismo da música eletrônica, mas apenas um dos seus pontos de partida, e que maiores
esforços deveriam ser direcionados para a investigação dos procedimentos, mecanismos, técnicas
e operações sonoras que efetivamente compõem a experiência à qual esse discurso se refere.

(3)
Como veremos adiante, nossa investigação sobre o xamanismo da música eletrônica nos
conduziu naturalmente a uma análise da experiência sonoro-motora que o caracteriza, i.e., a
imersão em um meio vibratório (gerada pelo volume extremamente alto do som eletronicamente
amplificado) e a perda desejada do controle habitual sobre os próprios movimentos (promovida
por técnicas sonoras de captura e modulação do movimento). Esta análise, por sua vez, exigiu a
elaboração de uma metodologia própria de descrição do som que não dependesse de conceitos
tradicionais de musicologia baseados na representação e voltados para a expressão, e fosse mais
próxima da natureza funcionalista e a-significante de nosso objeto. Foi adotando uma
terminologia técnica comum a engenheiros, cientistas e também aos DJs, mais interessada em
parâmetros como intensidade, freqüência e velocidade do que em princípios como harmonia,
melodia ou andamento, que encontramos o melhor ponto de partida para o desenvolvimento desta
metodologia. Sem querer adiantar o conteúdo dessa metodologia, que é na verdade o ponto de
chegada de nosso trajeto, pareceu-nos necessário oferecer um guia introdutório à leitura de dois
dos principais tipos de representação gráfica que utilizaremos adiante e que ilustra

95
Cf. Capítulo 7, abaixo.

26
satisfatoriamente os conceitos que lhe servirão de base: o sonograma e o espectrograma.96 Para
isso elaboramos as quatro primeiras imagens exibidas ao final desta tese.
Nas duas primeiras imagens (cf. Imagens 1 e 2), oferecemos representações sonográficas
e espectrográficas de quatro sons sintetizados: três tons simples de 100Hz, 1kHz e 10kHz e um
tom composto pelas mesmas três frequências.97 O objetivo dessas imagens é explicitar, a partir de
sons simples, os princípios básicos por trás da produção e interpretação dessas representações.
Nas duas imagens seguintes (cf. Imagens 3 e 4), oferecemos representações sonográficas e
espectrográficas da música "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)" dos DJs Camilo Rocha e
Yah!.98 Só poderemos aproveitar plenamente as informações fornecidas por essas representações

96
Seria arriscado aqui propor uma defesa da análise sonográfica e espectral para o estudo do uso humano do som,
seja por não considerarmos produtiva a busca pela "objetividade" e pela "neutralidade" que tradicionalmente
pautou a escolha entre os métodos de descrição e análise sonora em etnomusicologia (cf. Merriam 1964:58-60;
Nettl 1983:76-9), seja por concordarmos que "diferentes questões teóricas e diferentes perspectivas são
beneficiadas por diferentes tipos de transcrição, visto que o objetivo de uma transcrição analítica é demonstrar as
questões ao leitor de uma maneira facilmente inteligível", "facilitar para o leigo a compreensão e o uso de dados
analisados e publicados por especialistas" (Seeger 1994:693). No entanto, se "sem uma boa descrição não pode
haver taxonomia, e portanto tampouco uma ciência do som e do movimento" (Seeger 1994:693), parece-nos que,
no caso específico da música eletrônica de pista, é verdade aquilo que Jaques M.E. Vielliard concluiu para a
bioacústica: "a descrição dos sons [...] precisa da medição de seus parâmetros e não de suas correspondências
musicais" (Vielliard 1993:45; sobre a importância das análises sonográfica e espectrográfica em bioacústica, cf.
Ewing 1989:222-4; Catchpole e Slater 1995:14). Em suma, acreditamos que o método analítico que aqui
proporemos é mais adequado ao nosso objeto não por ser mais "objetivo" ou "neutro", mas sim por trazer à tona
com maior clareza para não especialistas aspectos da música eletrônica de pista que são relevantes para aqueles que
estão de fato nela envolvidos. Limitaremo-nos aqui a fundamentar esse método e delinear seus contornos gerais,
esperando poder colocá-lo à prova em trabalhos futuros. Aproveitamos para registrar que todos os sonogramas,
espectrogramas e sínteses sonoras desta tese foram produzidos com o software Sound Forge (Sonic Foundry) e que
as medições automáticas de velocidade exibidas na Imagem 13 foram produzidas com o uso do software Acid Pro
4.0 (Sonic Foundry).
97
Explicaremos com maiores detalhes o conceito de freqüência adiante (cf. no Capítulo 9 a seção "Intensidade,
freqüência e velocidade", abaixo). Por hora, basta saber que "hertz" (Hz) é uma unidade usada para designar o
número de ocorrências de um evento periódico no intervalo temporal de um segundo, de forma que um evento
periódico que ocorre à freqüência de 1Hz ocorre uma vez por segundo. Para valores acima de 1000Hz costuma-se
usar a unidade "kilohertz" (kHz). Aproveitamos também para esclarecer que uma "oscilação harmônica simples" é
um simples vai-e-vem de um corpo percorrendo sempre o mesmo espaço no mesmo intervalo de tempo.
98
Otto (a2000[vol.2]:5). Essa música será nosso principal exemplo sonoro concreto para ilustrar diferentes aspectos
funcionais da música eletrônica de pista (cf. Imagens 3, 4, 12, 16 e 17; cf. Exemplos Sonoros 1, 2, 3, 4, 5 e 6).
Trata-se de um remix da música "Re/Pe", do músico e compositor Otto, lançado no CD duplo Changez Tout:
Samba Pra Burro Dissecado (Otto a2000), dedicado exclusivamente a remixagens de músicas do seu primeiro CD
(Samba Pra Burro; Otto a1998) por dezenas de DJs e produtores brasileiros. Consideramos "'Re/Pe' (2 Freaks TB
& Tamborim Remix)" um exemplo privilegiado da música eletrônica de pista atual por sua simplicidade, sua
concordância com os princípios estruturais mais gerais do gênero e sua qualidade. Aproveitamos para esclarecer
que um remix é, literalmente, uma nova mixagem de uma música já previamente mixada. Sendo uma "mixagem" a
mistura controlada de diferentes sinais de áudio em um sinal principal (geralmente a confluência de mais de vinte
canais de gravação em apenas dois canais de reprodução), uma "remixagem" seria a realização de uma nova
mistura controlada dos diferentes canais obedecendo a outros critérios. Muitos remixes não envolvem efetivamente
novas mixagens, mas apenas edições da mixagem original – cortes no fluxo sonoro, mudança na sequência de suas
partes, eliminação de partes e introdução de novos sons. Consideramos o remix um objeto de estudo à parte, capaz
de oferecer uma via de entrada arqueológica àquilo que chamaremos adiante de a "coevolução do som e do

27
depois de conhecermos os usos particulares que a música eletrônica de pista faz das variações de
intensidade e freqüência,99 por isso sua função aqui é apenas ilustrar os princípios básicos
apresentados nas duas primeiras imagens com um exemplo musical concreto.

***

O corpo desta tese é composto por três partes principais, sendo cada uma delas composta por três
capítulos que, por sua vez, são compostos cada um por uma introdução e duas seções de
tamanhos variados.
Dedicamos a Parte I àquilo que decidimos chamar de O Discurso Nativo: o discurso
produzido por todos aqueles de alguma forma envolvidos na produção, reprodução e
transformação do xamanismo da música eletrônica. No Capítulo 1 (Cosmologias) tratamos da
orientação mais teórica e sistematizante do discurso nativo – interessada sobretudo na relação
entre diferentes níveis da realidade –, principalmente a partir de entrevistas realizadas com o DJ
Mantrix (na seção "A cosmologia matemática do DJ Mantrix") e o promoter Mr. Lemon (na
seção "Mr. Lemon e o poder energético da mente"). No Capítulo 2 (Ritologias) tratamos da
orientação mais prática e operatória do discurso nativo – interessada sobretudo na experiência de
transe provocada pela dança e pela música repetitiva –, principalmente a partir de entrevistas
realizadas com o DJ Arlequim (na seção "As dinâmicas rituais do DJ Arlequim") e documentos
públicos produzidos pelo DJ e teórico Cláudio Manoel Duarte de Souza (na seção "Cláudio
Manoel e 'o sentido tribal de dançar'"). No Capítulo 3 (Micropolíticas do Underground)
tratamos de alguns aspectos daquela que nos pareceu ser a principal oposição conceitual do
discurso nativo – e um importante critério para distinguir as qualidades de transe no xamanismo
da música eletrônica –, a oposição entre o underground e o mainstream (na seção "O
underground, o mainstream e o overground"), e consideramos algumas de suas estratégias
micropolíticas (na seção "Estratégias do underground").100

movimento" (cf. Considerações Finais, abaixo). Esperamos poder avançar mais nessa direção em um outro
momento.
99
Cf. no Capítulo 9 a seção "Intensidade, freqüência e velocidade", abaixo.
100
É útil adiantar que grande parte do discurso nativo em que se baseiam esses três primeiros capítulos foi coletada
em sites da Internet e também por meio de entrevistas por e-mail. Devido à grande informalidade da linguagem
utilizada pelos entrevistados e às ambigüidades que essa informalidade poderia gerar, optamos por modificar esses
textos aproximando-os da linguagem escrita formal. Essas modificações são pressupostas nas transcrições de
entrevistas orais e geralmente não precisam ser indicadas, mas no caso dos depoimentos escritos consideramos
apropriada a indicação de todas as suas ocorrências através da inclusão dos trechos modificados em colchetes. Por
isso, na maior parte das transcrições de trechos do discurso nativo obtidos já por escrito serão encontradas letras,

28
A Parte II é dedicada às transformações daquilo que se convencionou chamar As
Técnicas do Êxtase, ao xamanismo indígena e às suas relações com a tecnologia moderna. No
Capítulo 4 (Técnicas "arcaicas" do êxtase) fazemos uma breve síntese daquilo que nos parece
ser mais relevante no conceito eliadeano de xamanismo como técnica do êxtase (na seção
"Xamanismo como técnica do êxtase"), assim como de conceitos diretamente relacionados a ele
(na seção "Axis mundi, tempo mítico e criação") e que serão retomados nos capítulos seguintes.
No Capítulo 5 (Tempo mítico hoje) desenvolvemos um estudo bibliográfico sobre a forma
como mitos indígenas definem a tecnologia indígena e não-indígena (na seção "Mito e
tecnologia") e sobre como o contato com a tecnologia moderna é vivido como uma transição
entre duas ordens cosmológicas distintas (na seção "O mundo fora dos eixos"). No Capítulo 6
(Técnicas contemporâneas do êxtase) continuamos o estudo bibliográfico iniciado no capítulo
anterior concentrando-nos agora nas particularidades da relação dos xamãs indígenas com as
máquinas técnicas (na seção "Os xamãs e as máquinas") e na maneira como essa relação é
reveladora de uma transformação no próprio conceito de xamanismo e de suas técnicas do êxtase
(na seção "Um novo axis mundi?").
A Parte III (Música Eletrônica e Xamanismo) é aquela na qual os elementos
apresentados nas duas partes anteriores ganham seu pleno sentido. No Capítulo 7 (Devires)
procuramos sintetizar e formular algumas das descobertas que fizemos a partir do material já
trabalhado quanto à necessidade de rever o conceito de xamanismo aplicado à música eletrônica
(na seção "O devir-xamanismo da música eletrônica") e quanto às contribuições do próprio
xamanismo indígena contemporâneo nessa revisão (na seção "O devir-máquina do xamã"). No
Capítulo 8 (O Som de uma máquina) tratamos do contexto maquínico no qual
contextualizamos o xamanismo da música eletrônica, primeiro considerando as influências de
transformações tecnológicas sobre a sensibilidade e a percepção sonora (na seção "Estética
maquínica") e depois propondo o esboço de uma teoria sobre a experiência de transe maquínico
que estaria na base desse xamanismo (na seção "Transe maquínico"). No Capítulo 9 (Como
funciona?) elaboramos as linhas gerais daquilo que esperamos ainda vir a ser uma metodologia
produtiva para o estudo da música eletrônica de pista, definindo os seus dois principais elementos
de base (na seção "O break e o pulso constante") e os seus três principais parâmetros de operação
(na seção "Intensidade, freqüência e velocidade").

palavras, pontuação e espaços entre colchetes, indicando nossa decisão por modificar a grafia original dos textos
para eliminar ambigüidades e facilitar a leitura.

29
Encerramos esta tese com algumas Considerações Finais – onde retomamos os principais
pontos apresentados e propomos algumas vias de desenvolvimento de pesquisas futuras – e com
um Post-Scriptum – onde sintetizamos algumas de nossas propostas na forma de um texto-
manifesto –, seguido das Imagens às quais faremos referência ao longo do texto, de um Anexo
com informações sobre o CD de áudio que contém os Exemplos Sonoros aos quais também
faremos referência ao longo do texto e, enfim, da lista de Referências.

30
Parte I
O Discurso Nativo
32
Capítulo 1
Cosmologias

33
34
Música Maquínica é cosmogenética. Ela nunca
pára de gerar 'mundos míticos de experiência
eletronicamente processada'.1

1
"Machine Music is cosmogenetic. It perpetually generates 'mythic worlds of electronically processed experience.'"
(Eshun 1999:131)

35
36
Uma definição ao mesmo tempo ampla e sintética de cosmologia seria: "O estudo da origem e
estrutura do universo".2 É verdade que tal definição faz da cosmogonia uma parte da cosmologia,
mas com isso estaríamos apenas confirmando a observação de P.A.Y Gunter de que "cosmólogos
modernos são também cosmogonistas".3 Se, porém, o importante na cosmologia é "a maneira
como um povo entende o seu mundo",4 então é dos "mundos míticos de experiência
eletronicamente processada" do discurso nativo que a sua definição deve emergir. Vejamos,
através de três casos específicos, algumas formulações cosmológicas (com suas dimensões
cosmogônicas e também cosmográficas e cosmosônicas) oferecidas pelo discurso nativo durante
o esforço de expor verbalmente as relações entre música eletrônica e xamanismo.

A cosmologia matemática do DJ Mantrix


DJ Mantrix5 toca Trance desde 1998 e fundou, junto com outros DJs6 sediados em Fortaleza
(Ceará) em 2000, o coletivo Undergroove, do qual se desligou no ano seguinte "para se dedicar
apenas ao trance".7 Diferentemente da maioria dos DJs de seu estilo, que costumam usar mídias
digitais para tocar,8 ele afirma só tocar com discos de vinil, usando CDs "só na hipótese de
inexistir música lançada em vinil".9 Logo no primeiro parágrafo de seu primeiro e-mail em
resposta a algumas questões iniciais sobre as relações entre música eletrônica e xamanismo,
Mantrix declarou:

[O] xamã está totalmente relacionado ao fenômeno da cibercultura, especialmente à música


eletrônica. [E]sta última, trabalhando o ouvido, se reflete no sentido das pessoas e, como um ritual
primitivo (movido ao que há de mais vanguardista na informática), conduz [as] pessoas a um
estado alterado de consciência. 10

2
Blackburn (1997:81).
3
Gunter (1971:530). Ao considerar os paralelos entre o conceito bergsoniano de matéria e as transformações da
Física na passagem do século XIX para o XX, Gunter conclui que uma das principais conseqüências da ruptura
com a visão newtoniana do universo foi a vinculação necessária entre cosmologia e cosmogonia, i.e., a exigência
de que qualquer concepção do universo inclua processos genéticos.
4
Grim (1981:7).
5
Nascido em Petrópolis (RJ) em 1973, Angel Alberto de Oliveira Couto Napoli (DJ Mantrix) é formado e tem Pós-
Graduação em Direito, trabalhando atualmente na área.
6
Entre eles estava DJ Arlequim, que conheceremos adiante.
7
Release do DJ Mantrix disponível no site de música eletrônica Rraurl:
<http://www.rraurl.com.br/djs/profile.php?dj=mantrix>.
8
Segundo o DJ Oakenfold, o motivo pelo qual os DJs de Trance usam mídias digitais é a localização inóspita das
festas: "Se você vai tocar numa praia em Goa [Índia], você não vai usar um disco de vinil" (DJ Oakenfold, in:
Reighley 2000:221). Brewster (que é DJ, além de escritor) e Broughton confirmam que o CD "é muito mais prático
do que o vinil em lugares quentes e empoeirados" (Brewster e Broughton 2000:405).
9
DJ Mantrix (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 30 de agosto de 2000).
10
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 27 de novembro de 2001).

37
Uma característica dessa primeira declaração, facilmente encontrada também em outros
depoimentos favoráveis à relação entre xamanismo e música eletrônica, foi a demonstração
inicial de grande intimidade e desenvoltura com o tema. No caso de Mantrix, a desenvoltura era
tanta que ele logo transformou a maior parte das suas respostas às questões propostas em um
texto amplamente divulgado sobre música eletrônica e xamanismo (ver abaixo). Foi apenas após
duas semanas de intercâmbio e insistentes perguntas sobre o assunto que ele começou a moderar
suas afirmações – "não conheço nada [...] sobre o assunto ('só sei que nada sei')".11 Curiosamente,
ao mesmo tempo em que moderava o tom assertivo de suas afirmações, Mantrix também tecia
uma dura crítica aos "estudiosos do xamanismo" que, "com todo respeito, ainda nem
compreendem direito as músicas do [P]ink [F]loyd ou do próprio [B]eethoven": "aí, meu irmão,
fica difícil clarear a mente desse povo pra música eletrônica".12 Segundo Mantrix, o
conhecimento sobre o xamanismo está "nos nossos olhos e em nossa mente" e "não precisa ser
'iniciado' para 'desvendar' essas questões" pois "nada é obscuro".13 Assim, o xamanismo de que
fala Mantrix está relacionado a um conhecimento que lhe parece evidente mas que permanece de
alguma forma inacessível aos "estudiosos do xamanismo" – talvez porque "não basta procurar a
luz; a luz deve entrar em você".14
O texto que Mantrix escreveu a partir de nossos primeiros contatos pode nos ajudar a
entender como essa relação é articulada por ele. Intitulado "Música Eletrônica 'versus'
Xamanismo"15 e bastante divulgado no meio,16 o texto foi escrito na forma de itens, sendo os
itens 13 a 26 transcrições diretas de respostas de Mantrix às minhas perguntas.

11
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001). Vale notar que no início de seu texto "Música
eletrônica 'versus' xamanismo" (ver abaixo), publicado cerca de uma semana depois de seu primeiro e-mail, ele já
apresentava suas teorias como apenas uma "opinião pessoal" (cf. DJ Mantrix *2001, item 1).
12
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
13
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
14
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
15
DJ Mantrix (*2001). Ao longo de toda esta seção da tese dedicada ao discurso de Mantrix farei referências a esse
seu texto apenas através da numeração de seus itens ("item 1", "item 2" etc.).
16
O texto foi publicado no site de seu coletivo de DJs na Internet (o Undergroove;
<http://www.undergroove.com.br/>) e em um fanzine especializado em Trance (o Fanzine Union; ano 1, no.2).
Posteriormente, Mantrix incluiu menção ao texto em seu release público disponibilizado no site Rraurl
<http://www.rraurl.com.br/djs/profile.php?dj=mantrix>.

38
MÚSICA ELETRÔNICA "VERSUS" XAMANISMO.
por DJ Mantrix

1. Inspirado em questão levantada por um colega de São Paulo, escrevi este artigo para o
Undergroove, tentando esclarecer opinião pessoal sobre as relações da e-music com o
xamanismo.
2. Antes de mais nada, o que é o xamanismo?
3. Acredita-se que a raiz da palavra "xamã" deriva da língua dos povos Tungus, da Sibéria. Foi
adotada amplamente pelos antropólogos para se referirem a pessoas de uma grande
variedade de culturas antigas, antes conhecidas por "pajés", "curandeiros", "magos" ou
"videntes". Ressaltamos que nem todo vidente, curandeiro, mago ou pajé é um xamã.
4. A prática xamânica deu-se pela primeira vez nos seres humanos antes mesmo que o homem
primitivo dominasse a palavra. Por esta singular razão é que se diz que uma das
características do xamanismo é a "poesia cantada", que marca a oralidade da própria
concepção da linguagem poética, marcada nas canções dos velhos xamãs.
5. Os xamãs, na verdade, sabiam que a palavra cantada dava um sentido de "presentificação",
rompendo os limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, entrando assim
em contato com novos fatos e mundos, que através do poder de seu canto, tornavam-se
audíveis, visíveis e presentes.
6. Com o xamanismo, portanto, estabelece-se uma sutil relação com diversos planos, entre o
nome e a coisa nomeada, trazendo a própria presença dos seres visualizados, passando ou
retornando em níveis de consciência que reportam para o princípio da criação, onde tudo é
paz.
7. Com a comunicação telepática entre os seres imateriais, chega-se à "transcendência". No
decorrer do tempo é possível dominar esse processo, tornando o caminho um conjunto de
várias artes, como por exemplo a poesia, a música, a filosofia etc.
8. No xamanismo não há qualquer distinção entre ajudar os outros e ajudar a si próprio,
resultando isso numa grande "aventura mental e emocional", onde as pessoas presentes
ficam envolvidas em transcender a noção normal e comum que elas têm acerca da
realidade. Entretanto, o conhecimento xamânico só pode ser adquirido através da
experiência individual de cada um, sendo necessário que se aprenda os métodos, a fim de
utilizá-los.
9. O xamã é aquele que consegue entrar e sair dos estados alterados de consciência, trazendo
ensinamentos e curas para si e para os outros, com técnicas que lhe são exclusivas, tendo à
sua disposição espíritos, seres ou entidades, que, quando chamados, o atendem
prontamente.
10. O xamanismo não é nem nunca foi uma religião; é o princípio inspirador delas.
11. O xamanismo é universal, ganha mais força hoje, em tempos globalizados, sobretudo
quando algo de extraordinário e transformador está acontecendo.
12. O grande xamã é aquele que conhece a Lei do Som, das vogais comuns para toda a
humanidade, como força criadora de tudo o que existe em cima da Terra.
13. O xamã está totalmente relacionado ao fenômeno da cibercultura, especialmente à música
eletrônica. Esta última, trabalhando o ouvido, se reflete no sentido das pessoas e, como um
ritual primitivo (movido ao que há de mais vanguardista na informática), conduz pessoas a
um estado alterado de consciência.
14. Apenas um parêntese: a droga é elemento acidental. Pode-se praticar o xamã com ou sem
ela.
15. Inconscientemente o artista de e-music, o raver, o clubber, buscam algo superior, quando
praticam música binária, dançando, pulando, gritando, rindo, chorando, tendo orgasmos
sexuais, ou apenas admirando quietos num canto.
16. É por isso que é tão difícil vender e-music à mídia. Porque esse tipo de cultura não age de
acordo com os fluxos e refluxos da maré comercial, da maré de dólares (US$).
Desenvolve-se com relativa autonomia. Mas observe-se bem: não falei em artistas de
emusic que se vendem. Falei na cultura como um todo, que emerge e submerge ao sabor
da criatividade dos seres dotados de inteligência.
17. Qualquer alteração na estrutura musical, no que tange à emusic, em geral atende a um
pressuposto primeiro de satisfazer a criatividade e uma necessidade interior. É uma
filosofia totalmente contrária ao que é disseminado pela música pop, por exemplo (vai

39
falar isso pra Britney Spears ou Sandy e Junior, que eles endoidam).
18. Pra que mistério mais atraente do que produzir múltiplas formas de música eletrônica com
apenas DOIS (isso mesmo) números, zero (0) e um (1)? Não são esses os caracteres
utilizados em linguagem de máquina?
19. Deus criou todas as coisas do universo com número, medida e peso. Conseqüentemente,
cada número contém um mistério e um atributo que se refere a uma força, virtude ou
inteligência.
20. A importância das relações numéricas em todos os ramos da ciência humana é
incontestável e visível à primeira vista. O Sol, a Terra, os astros, todos fazem suas
revelações cada um em determinado número de dias ou horas. Os átomos e as moléculas
são sujeitos a regras numéricas fixas, para comporem os corpos.
21. Xamã e música eletrônica andam de mãos dadas. Ambos têm por base números.
22. O número é a base da classificação em todas as ciências naturais (lembre-se de que emusic
é matemática pura). O xamã não deixa de ser número, porque relaciona-se com fenômeno
de repetição de ritos, que conduzem a mente para além do contexto da realidade corpórea.
23. A história não pode existir sem cronologia, cuja essência é o número. E o dj nada mais é do
que um ente que tem por função tentar transmitir o que há no mundo extracorpóreo ao
mundo corpóreo. É claro que esse caminho não é fácil de perseguir, porque está sujeito a
uma série de elementos acidentais (habilidade do dj, estado de espírito do dj, vícios do dj –
se pratica excessos que prejudiquem a alma –, humildade do dj, dificuldade de encontrar
discos ideais, limitações em softwares à criatividade etc.)
24. Ser dj, formalmente falando, é fácil. Basta aprender a mixar. Mas ser dj, materialmente
falando, é uma conquista diária, uma evolução diária, uma superação diária, um lapidar
dia e noite no espírito.
25. O dj, assim como um professor, um sacerdote, um profissional de qualquer área, deve
continuamente se aprimorar material e formalmente, se não cada dia que passa ele fica
menos dj.
26. E se ele fica menos dj, menos próximo do xamã fica, pois xamã é também evolução
espiritual.
27. Por fim, o novo mundo continuará a se fazer devido ao som; a mudança está sendo
processada a partir dos sons emitidos pelos seres humanos, que são verdadeiros "portais"
de um mundo de lá e de cá, do consciente e do inconsciente, do manifesto e do imanifesto,
do visível e do invisível.

Fortaleza, 03 de dezembro de 2001.


Fonte: Site do Undergroove <http://www.undergroove.com.br/> (publicado também no zine
Union, ano 1, no.2).

Mantrix assume desde o início, como vimos, que a relação entre música eletrônica e xamanismo
existe e é verdadeira. Seu texto-manifesto, porém, vai além da afirmação pura e simples dessa
relação e nos oferece alguns elementos-chave a partir dos quais iniciar esse nosso trajeto pelo
discurso nativo sobre o xamanismo na música eletrônica.
Logo no quarto item de seu texto, quando fala da "poesia cantada" dos xamãs tradicionais,
Mantrix começa a apresentar aquilo que poderíamos chamar de uma "teoria do poder criador do
som". No quinto item ele dá seqüência à teoria, referindo-se ao "sentido de 'presentificação'" da
"palavra cantada", que "rompendo os limites de suas possibilidades físicas de movimento e
visão", tornavam "audíveis, visíveis e presentes" os "novos fatos e mundos" com que os xamãs
entravam em contato. Mantrix encontra nessa presentificação da palavra cantada – poder de abrir
vias de acesso a "novos fatos e mundos" ainda desconhecidos – uma definição produtiva de

40
xamanismo como "uma sutil relação entre diversos planos", dentre os quais se destaca aquele
definido como "o princípio da criação, onde tudo é paz" (item 6). O "caminho" entre esses
diversos planos – também entendido como "comunicação telepática entre os seres imateriais" – é
composto por "um conjunto de várias artes", que devem ser "dominadas" pelo xamã, entre as
quais está a poesia, a música e a filosofia (item 7), mas que podem ser sintetizadas na "Lei do
Som", "força criadora de tudo o que existe em cima da terra" (item 12). A relação entre o DJ e o
xamã se dá, então, entre outras coisas, porque também este "tem por função tentar transmitir o
que há no mundo extracorpóreo ao mundo corpóreo" (item 23), dar continuidade à criação do
"novo mundo" através do som, na qualidade de "'portais' de um mundo de lá e de cá, do
consciente e do inconsciente, do manifesto e do imanifesto, do visível e do invisível" (item 27).
O poder de "presentificação" do xamanismo nos conduz ao tema das técnicas através das
quais esse domínio da "Lei do Som" é alcançado: as tais "artes" que compõem o "caminho", a
"comunicação telepática entre os seres imateriais" (item 7). Segundo Mantrix, é através de
"técnicas que lhe são exclusivas" que o xamã "consegue entrar e sair dos estados alterados de
consciência, trazendo ensinamentos e curas para si e para os outros" (item 9). São técnicas, entre
as quais "a droga" figura "acidentalmente" (item 14), que aproximam o DJ do xamã ao colocá-lo
em "estados alterados de consciência" (comparar itens 9 e 13) permitindo-lhe "transmitir o que há
no mundo extracorpóreo ao mundo corpóreo" (item 23). DJ e xamã se aproximam, assim, no
texto de Mantrix, através da "evolução espiritual" (item 26), "uma conquista diária, uma evolução
diária, uma superação diária, um lapidar dia e noite no espírito" (item 24). Não basta "aprender a
mixar" (item 24), é preciso "continuamente se aprimorar material e formalmente" (item 25) e
estar constantemente atento a "uma série de elementos acidentais" que podem se interpor em seu
caminho (item 23).
Chama a atenção, no discurso de Mantrix, um forte dualismo assimétrico, marcado por
oposições como "espiritual"/"material", "incorpóreo"/"corpóreo" e "interior"/"exterior", em que
aqueles são sempre superiores a ou têm precedência sobre estes. Esse dualismo se reflete até
mesmo no "nome artístico" que ele criou para distinguir sua persona como DJ: além de evocar os
Mantras indianos ("elemento da cultura hindu, correspondente [à] emiss[ã]o de frases, palavras e
sons que levam as pessoas [à] medicação, ao transe, [à] sensibilidade religiosa, [à] consci[ê]ncia
hol[í]stica etc."17), "Mantrix" faz referência direta ao filme Matrix18 ("que, em dado momento do

17
DJ Mantrix (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 30 de agosto de 2000).

41
calendário cristão, representou o que de mais avançado existiu em termos de ficção científica,
apesar de ter sa[í]do de [H]ollywood"19), filme que se baseia justamente na idéia de que existe,
por trás da realidade manifesta e ilusória, uma outra realidade "mais real" conhecida apenas pelos
iniciados. O teísmo declarado de Mantrix20 também ajuda a explicar a forma como ele organiza
seu dualismo assimétrico (suas referências às criações de "Deus", ao seu papel modelar, aos
"desígnios insondáveis do criador" ou às "centelhas do espírito de bondade"21), mas mais
importante do que isso é o papel desse dualismo na sua concepção de xamanismo como uma
mediação entre o conhecido (o mundo material, corpóreo, exterior, físico) e o desconhecido (o
mundo espiritual, incorpóreo, interior, mental), como uma capacidade de "transmitir" aquilo que
há neste para aquele. As relações matemáticas, tudo indica, são a chave "esotérica" para esta
operação.
Segundo Mantrix, "deus criou todas as coisas do universo com número, medida e peso".
"Conseqüentemente, cada número contém um mistério e um atributo que se refere a uma força,
virtude ou inteligência." (item 19) A intrincada cosmologia matemática de Mantrix vai desde a
macrofísica – "o Sol, a Terra, os astros, todos fazem suas revelações cada um em determinado
número de dias ou horas" – até a microfísica – "[o]s átomos e as moléculas são sujeitos a regras
numéricas fixas, para comporem os corpos" – (item 20), passando pelas ciências naturais – "[o]
número é a base da classificação em todas as ci[ê]ncias naturais" (item 22) – e pelas ciências
históricas – "a história não pode existir sem cronologia, cuja ess[ê]ncia é o número" (item 23).
Também "[o] xamã não deixa de ser número, porque relaciona-se com [o] fenômeno de repetição
de ritos, que conduzem a mente para além do contexto da realidade corpórea" (item 22) e, quanto
à música eletrônica: "lembre-se de que emusic é matemática pura" (item 22). "[E]nfim", conclui
Mantrix em um dos e-mails que serviram de base ao seu texto, "xamã e música eletrônica andam
de mãos dadas[;] ambos têm por base números."22 Mas por que dar tanta importância aos
números e às relações numéricas?
Em um de seus e-mails, Mantrix revelou que sempre se viu "atraído pelo mistério, pelo
esoterismo, pelo desconhecido a olho nu". Lendo "por conta própria [...] desde a bíblia, rituais da
missa, livros espíritas, protestantes, rosacrucianos, hinduístas, messiânicos, maçônicos, até

18
Wachowski e Wachowski (v1999). Os aspectos xamânicos deste filme foram bastante discutidos em alguns
círculos (cf. Horsley *1999). O impacto que esse filme teve no imaginário de toda uma geração ainda está por ser
considerado seriamente.
19
DJ Mantrix (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 30 de agosto de 2000).
20
"[S]ou teísta, como pode ver" (DJ Mantrix, entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
21
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
22
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 27 de novembro de 2001). Essa frase foi reformulada no item 21 de seu texto.

42
filosofia de bar", ele disse ter passado a ser "uma pessoa que acredita em coisas que [...] oferecem
explicações à luz da razão", pois "muito embora não seja [...] adepto do iluminismo", ele acredita
que "através da razão é que o homem tem condições de crescer moral e intelectualmente, sabendo
o porquê do crescimento seu". "[S]endo a m[a]temática a rain[h]a das ciências", ele conclui,
"tudo [...] leva a crer que o conhecimento dessa ciência explica esotericamente uma série de
fenômenos da alma, inclusive o xamanismo."23
Mantrix também expôs, em entrevista, uma "teoria das frequências", explicando que
"estamos todo santo dia, consciente ou inconscientemente, atuando em faixas vibratórias" em
cada uma das quais "há frequências, umas mais propensas ao xamã, outras menos propensas"
cabendo "principalmente a nós [...] identificarmos essas frequências, mas sempre com
responsabilidade, acima de tudo, pois toda ação corresponde a uma reação."24 Em outro
momento, respondendo à minha pergunta sobre a importância mística que ele atribuía ao número
sete, ele fez referência aos "filósofos herméticos" e suas teorias do "macrocosmos" – "natureza
elementar ou rudimentar, sujeita à lei do quaternário dos elementos (terra, fogo, ar e água)" – e do
"microcosmos" – "natureza mais elevada, em consequência de um acorde vibratório com as sete
notas que formam a gama da harmonia universal" –, relacionando-as fluentemente com "as sete
notas musicais básicas (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si)", os "sete planetas dos antigos (sol, júpiter, lua,
mercúrio, marte, vênus e saturno)", os "sete metais conhecidos dos antigos", os "sete dias da
semana" e com os "sete pecados capitais".25

23
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
24
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001). O DJ norte-americano de Illbient Spooky defende
uma teoria das freqüências parecida com a de Mantrix: "A única coisa que importa em todo o universo é a
freqüência, a ressonância – descendo até o nível atômico, mantendo nossa carne unida. A ciência encontrou a
freqüência de vibração dos átomos, tudo está em constante vibração. [...] Para mim, tudo é freqüência, é o que
impede que nos desfaçamos [...]. Imagens ampliadas da pele revelam que ela é repleta de falhas e buracos, não
passamos de poros gigantes. [...] Existem dias em que se está fora de sincronia e nada dá certo e outros em que
tudo parece funcionar em conjunto. Isso é balanço, que favorece a realização de coisas. Então, para mim, ser ou
não um ser criativo é ser ou não capaz de se alinhar. [...] São as freqüências da sua vida que contribuem para que
seu dia seja bom" (DJ Spooky, in: Radio-V *1999). O produtor austríaco Richard Dorfmeister também tem uma
teoria semelhante: "Todos os tipos de freqüências nos atravessam o tempo todo, com efeitos positivos ou
negativos... Minha teoria é: se você está envolvido por boa música, você está a salvo, protegido pelas freqüências
mágicas do bem-estar." (Richard Dorfmeister, in: Prochak 2001:54)
25
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001). O produtor jamaicano Lee "Scratch" Perry – um dos
fundadores do Dub na Jamaica dos anos 60 (cf. Toop 1995:112-8), também conhecido como "o perturbador", "o
super-macaco", "inspetor bugiganga", "o computador do firmamento" e muitos outros (cf. Davis 1997),
considerado "o maior e mais idiossincrático produtor da Jamaica" (Shapiro e Lee 2000:229) e pioneiro naquilo que
Eshun chamou de ""ciência mítica da mesa de mixagem" (Eshun 1999:62) – acrescentaria mais uma variação a este
tema "kepleriano" a partir de sua explicação para seu apelido "Scratch" (que é o nome de um efeito sonoro típico
dos DJs) em entrevista a um jornal antes de uma apresentação sua em São Paulo: "É mais do que um apelido. É
parte da minha verdade. Conheço o scratch [...] desde o começo. O scratch é formado por sete letras que
representam os sete dias da semana. Estou indo para o Brasil para mostrar isso. Depois de mim, o país vai se

43
Um historiador das religiões talvez aproveitasse esta tendência numerologista de Mantrix
para tecer complexos paralelos trans-culturais.26 Importa-nos mais, no entanto, entender como
essa cosmologia matemática ajuda a explicar o funcionamento do xamanismo da música
eletrônica. Afinal, como funcionam essas relações matemáticas empregadas tanto pelos filósofos
herméticos em seus sistemas cosmológicos quanto pelos cientistas modernos em seus sistemas de
classificação?; tanto pelos xamãs na repetição periódica de seus rituais e comunicação com os
"seres imateriais" quanto pelos DJs no emprego de alta tecnologia para a realização de seus
"rituais" de "música binária"?
A imagem de um cosmos matematicamente ordenado parece dominar o discurso de
Mantrix; não uma ordem imóvel e cristalizada, mas sim uma ordem móvel e em constante fluxo.
Tratam-se, tudo indica, menos de relações matemáticas sincrônicas no espaço e mais de "sutis"
relações temporais entre freqüências e repetições que se dão entre os "diversos planos" cósmicos
e entre estes e o "princípio da criação" (cf. item 6). É preciso lembrar que a música eletrônica é
chamada, por Mantrix e outros DJs, de "música binária":27 "Pra que mist[é]rio mais atraente do
que produzir múltiplas formas de m[ú]sica eletrônica com apenas DOIS (isso mesmo) números,
zero (0) e um (1)? Não são esses os caracteres utilizados em linguagem de máquina?" (item 18) É
preciso lembrar também a importante relação estabelecida por Mantrix entre "número" e o
"fenômeno de repetição de ritos", técnica xamânica para conduzir "a mente para além do contexto
da realidade corpórea" (item 22). Há, portanto, uma forte relação entre um certo conceito
matemático de música eletrônica (sua natureza binária) e um certo conceito matemático de

chamar 'Scratchzil'." (Assef *2003:E3) Vale notar que a importância das relações numéricas no xamanismo da
música eletrônica também é levantada por outros depoimentos nativos, como a importância atribuída ao número 3
como "desequilíbrio temporário" (cf. Duncan *1997) e a cosmologia algorítmica do tecnoxamanismo ("se preciso,
então ajude"; cf. Schneider et al. *1993).
26
Eliade de fato dedica uma seção de seu estudo sobre xamanismo aos "números místicos 7 e 9" (1998:303-8), além
de fazer repetidas referências à importância mística do número sete ao longo do livro (e.g. pp.199, 434-5, 440-1 e
530). Um tratamento simpático de temas setenários e outros relacionados à mística musical dos antigos sábios
egípcios, gregos, hindus e islâmicos e às teorias alquimistas, esotéricas, teosóficas e antroposóficas pode ser
encontrado em Godwin (1987:132-8). Sobre a mitologia do sete na música, cf. Wisnik (1989:91-2).
27
Quando perguntei a Mantrix sobre o porquê desta maneira de se referir à música eletrônica, ele preferiu indicar um
texto "assinado pelo meu amigo [C]láudio [M]anoel [D]uarte" (DJ Mantrix, entrevista por e-mail, 12 de dezembro
de 2001). Veremos as idéias de Cláudio Manoel Duarte de Souza (também conhecido como DJ Angelis Sanctus)
mais adiante. Outra referência à música eletrônica como "música binária" foi feita em um e-mail publicado no
informativo eletrônico do coletivo Electronic Alternative Resistance (EAR), só que dessa vez com relação à sua
estrutura musical: "Leia os números em voz alta, e do jeito [que] eles estão posicionados no texto: [...]
11111111111111111111111111111111000011111111111111111111111111111111000011111111 [...] Cada 'um'
é um bumbo, cada zero é um compasso sem bumbo, onde a música 'flutua'. [...] O mais louco é que 1 e 0 são pura
linguagem binária, ou seja, a linguagem básica da música eletrônica é a mesma [...] dos computadores! Seria esse o
motivo [pelo qual] a música eletrônica tenderia [a] ser a música pop de uma sociedade informatizada?" (EAR
*2001)

44
xamanismo (suas técnicas rituais), que parece passar pelo processo de sincronização precisa de
freqüências de diferentes planos através de um domínio técnico do poder criador do som.
A produção de "estados alterados de consciência" é, para Mantrix, uma parte importante
da operação xamânica (cf. itens 9 e 13). Trata-se, vimos, menos de um estado induzido
quimicamente por drogas (cf. item 14) e mais por um certo "trabalho do ouvido" que "se reflete
no sentido das pessoas", que, "como [n]um ritual primitivo (movido ao que há de mais
vanguardista na informática), conduz pessoas a um estado alterado de consciência" (item 13). O
processo pode ser totalmente inconsciente, as pessoas podem nem se dar conta, mas elas "buscam
algo superior, quando praticam música binária, dançando, pulando, gritando, rindo, chorando,
tendo orgasmos sexuais, ou apenas admirando quietos num canto" (item 15). E esse "algo
superior", que Mantrix relaciona à criatividade alheia aos interesses do mercado, está diretamente
ligado ao trabalho xamânico da música eletrônica na criação do "novo mundo" pelo trabalho
continuado com as potências sonoras.
Nos itens 16 e 17 de seu texto-manifesto, Mantrix afirma que é "dif[í]cil vender e-music à
mídia", "[p]orque esse tipo de cultura não age de acordo com os fluxos e refluxos da maré
comercial, da maré de dólares (US$)". A música eletrônica goza de "relativa autonomia",
"emerge e submerge ao sabor da criatividade dos seres dotados de inteligência" e "[q]ualquer
alteração na [sua] estrutura musical [...] em geral atende a um pressuposto primeiro de satisfazer
a criatividade e uma necessidade interior." "[É] uma filosofia totalmente contrária ao que é
predicado na música pop", ele conclui. Mantrix colocou essa filosofia em prática quando, junto
com outros DJs de Fortaleza, fundou o coletivo Undergroove, preocupado em "disseminar aos
ouvidos das pessoas timbres musicais de qualidade, preferencialmente destituídos de caráter
comercial".28
A oposição à "mídia" e ao mercado (à "maré de dólares") é, portanto, não apenas uma
característica distintiva da música eletrônica frente à "música pop", mas principalmente uma
parte essencial de seu poder xamânico. Astros da música Pop como a cantora norte-americana
Britney Spears e a dupla campineira Sandy e Júnior são, na terminologia de Mantrix, "artistas
convencionais", que "usam a mídia para fazer dinheiro" e só se importam com a "matéria".
"[L]embre-se", insiste ele, "poucos são os que atentam às necessidades do espírito".29 O

28
DJ Mantrix (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 30 de agosto de 2000).
29
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001). Segundo Fredrik Larsson (produtor de música
eletrônica sueco), a música eletrônica "não é criada para fazer dinheiro, mas sim com, por e para o espírito"
(Fredrik Larsson, in: Fritz 1999:81).

45
importante aqui parece ser que os motivos apontados para esta "relativa autonomia" da "música
binária" à lógica do capital são que: (1) "[i]nconscientemente", as pessoas buscam nela "algo
superior"; e (2) sua dinâmica criativa "emerge e submerge ao sabor da criatividade dos seres
dotados de inteligência", satisfazendo "em primeiro lugar" a uma "necessidade interior".
"Superior" e "interior" são palavras-chave aqui, opondo experiências introspectivas e elevadoras
("espirituais") características da música eletrônica à dimensão supostamente exterior e inferior
("materiais") do mercado e do capital. As duas dimensões do "ser DJ" propostas por Mantrix no
vigésimo quarto item de seu texto-manifesto também sugerem a existência de duas tendências
divergentes na música eletrônica, uma voltada para a "matéria" (inferior, exterior) e a outra para o
"espírito" (superior, interior): a concepção "fácil" de DJ se refere às técnicas de mixagem que
qualquer um pode treinar e aprender; a difícil consiste numa "conquista diária", num "lapidar dia
e noite no espírito". Segundo Mantrix, é esta segunda dimensão do "ser DJ" que o aproxima do
xamã, havendo então a necessidade de uma permanente "evolução espiritual" (item 26).
Vimos então que, segundo Mantrix, o xamanismo na música eletrônica envolve um
conjunto de técnicas exercitadas continuamente que permitem o uso de um certo poder criador
do som na produção de estados alterados de consciência que conduzem a um certo princípio da
criação. Tais técnicas são fundamentadas numa cosmologia matemática que entende o universo,
em todos os seus níveis concebíveis, como sendo um complexo arranjo dinâmico de relações
quantitativas trabalhadas tanto pelos rituais periódicos dos xamãs quanto pela música binária-
eletrônica. Poderíamos tentar sintetizar essa cosmologia, buscando seus princípios mais
elementares num quadro em que "espírito" e "matéria" se opõem de diversas formas e em
diversos níveis, comunicando-se no entanto através das técnicas e poderes xamânicos (cf.
Quadro 2):

ESPÍRITO MATÉRIA
criatividade, inteligência mercado, mídia, capital
música eletrônica música Pop
interior exterior
superior inferior
mundo extra-corpóreo mundo corpóreo
o mistério, o invisível, esotérico o banal, o visível, exotérico
natureza superior (número 7) natureza elementar (número 4)
introspecção-elevação Ù criação-presentificação
estados alterados de consciência, controle técnico do poder criativo
transcendência, introspecção do som, criação do novo mundo
Quadro 2 – Quadro sintético da cosmologia do DJ Mantrix.

46
As relações entre o "espiritual" e o "material" (representadas pelo símbolo "Ù") são centrais na
cosmologia de Mantrix. Em seu texto sobre xamanismo, é justamente a partir delas que o
xamanismo tradicional é caracterizado – através das técnicas de "presentificação" da "palavra
cantada", do estabelecimento de relações entre "diferentes planos, entre o nome e a coisa
nomeada", da "comunicação telepática entre os seres imateriais", da capacidade de "transcender a
realidade" e do poder criador do som (cf. itens 4, 8 e 12). O DJ-xamã de Mantrix usa, portanto,
alta tecnologia ("movido ao que há de mais vanguardista na informática"; item 13) e música
repetitiva ("binária") com o objetivo de provocar nas pessoas um "estado alterado de consciência"
caracterizado pela "elevação" e pela "introspecção" e assim transmitir criativamente as
qualidades do "mundo espiritual" para o "mundo material".
No último item de seu texto-manifesto, Mantrix define os "seres humanos" como
"verdadeiros 'portais' de um mundo de lá e de cá, do consciente e do inconsciente, do manifesto e
do imanifesto, do visível e do invisível", responsáveis pela contínua produção de um "novo
mundo" através do som. Assim, parece-nos que apesar da função central do DJ no xamanismo da
música eletrônica, este não depende exclusivamente daquele, sendo todos os envolvidos
potencialmente capazes de operar a mediação entre os dois níveis da realidade. Segundo o DJ, o
xamanismo "ganha mais força hoje, em tempos globalizados, sobretudo quando algo de
extraordinário e transformador está acontecendo" (item 11). Mas não nos apressemos: "vem mais
coisa por aí no futuro[;] aguardemos."30

Mr. Lemon e o poder energético da mente


Mr. Lemon31 entrou nesta pesquisa quando, no dia 15 de agosto de 2002, enviou um e-mail à lista
de discussão "Pragatecno Brasil" onde dizia defender a tese de que os DJs fazem uso da prática
do "xamantismo [sic]", "que tem ra[í]zes seculares e é largamente utilizada nos dias de hoje pelos
DJ's". Presumindo que ele se referia ao xamanismo, estabelecemos contato com ele para
aprofundar sua tese e entender melhor o alegado "largo" uso atual do xamanismo pelos DJs. Aos
poucos Lemon revelou que antes de se mudar para Manaus ele morava em Fortaleza e conhecia
muito bem o DJ Mantrix. Mais do que isso, em uma de suas respostas às questões propostas, ele

30
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 27 de novembro de 2001).
31
Nascido em Fortaleza em 1981, Luiz Eduardo Torquato (Mr. Lemon) é publicitário (designer) e produtor de
eventos (promoter) e atua na realização de festas de música eletrônica.

47
revelou que seu interesse pelo "xamanismo (ou xamantismo [sic])"32 foi despertado justamente
por "um texto sobre xamantismo [sic]" escrito por Mantrix e publicado no "site do undergroove":

Talvez ele [Mantrix] nem saiba, mas foi o cara que me inspirou e me deu motivação. Muito [do]
que te falo li no texto dele há uns 2 anos [...] e mais ainda li nos in[ú]meros site[s] sobre
xamanismo que [existem] on line e [em] alguns livros avulsos.33

Assim como Mantrix, desde o início Lemon demonstrou não ter a menor dúvida de que existia
uma sólida relação entre xamanismo e música eletrônica, apesar de ter sido muito mais comedido
em suas afirmações.34 O primeiro e-mail enviado por ele em resposta às questões propostas trazia
o germe de toda a discussão que se seguiu, a saber:

Bem, no xamanismo o pensamento é mais que uma consequência da atividade cerebral. Na


realidade as ondas cerebrais são formas de energia que [se] concentra[m] em um determinado
trabalho ou local, buscando assim aumentar seu poder intel[e]ctual.
Essa arte implica em buscar, encontrar e expressar de alguma forma aquilo que temos dentro
de nós, que seria o deus interior ou sexto sentido. Relaxar a mente e buscar a paz interna, ou seja, o
alpha (onde tudo começa, onde não[ ]existe nada, onde só existe a paz). Os xamãs expressam sua
arte através de orações cantadas, dançadas e por isso a ligação com a m[ú]sica eletrônica. Partimos
do suposto que o som que emitimos é uma forte rajada de energia conce[n]trada dentro de cada um
de nós para o mundo exterior (fora do nosso corpo). Então, como bons xamãs, todo DJ expressa
sua arte da forma que mais consegue se encontrar.35

Nota-se aqui um importante ponto em comum entre o discurso de Lemon e o de Mantrix: a idéia
de um princípio de criação, relacionado à paz e à interioridade, que é ativado, pelos xamãs,
através de certas técnicas-artes. Mas nota-se também um deslocamento do paradigma matemático
de Mantrix (com ênfase cosmológica) para um paradigma que poderíamos chamar de energético
(com ênfase cosmogenética), centrado na manipulação da "energia sonora" pelo DJ. Segundo
Lemon, o pensamento é energia concentrada, "poder intelectual": disponível internamente no
estado "alpha" do relaxamento (estado cosmogenético) e empregado através de sua exteriorização

32
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 25 de agosto de 2002). Até o último e-mail que trocamos, Lemon ainda
alternava as duas grafias. Uma possível origem (especulativa) dessa grafia alternativa para xamanismo pode ser a
importância, no imaginário dos DJs interessados na dimensão ritual da música eletrônica, da prática tântrica do
mantra.
33
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002). De duas uma: ou Mantrix havia publicado um texto
sobre xamanismo muito antes daquele que originou de nosso contato; ou Lemon estava se referindo ao texto que
Mantrix publicou no site do Undergroove em 3 de dezembro do ano anterior (quase nove meses antes, portanto, e
não dois anos) a partir das respostas que dera às nossas perguntas, e se equivocou com as datas.
34
Quase todas as mensagens de Lemon traziam observações como "eu tenho mais ou menos esse pensamento",
"manda alguma opinião sua" (25 de agosto de 2002), "[n]ão existem conceitos sobre isso, apenas opiniões" (26 de
agosto de 2002), "não sou um especialista no assunto, estas são apenas as minhas opiniões pessoais sobre o
xamanismo" e "'como eu penso...' não entenda como '[você]' deve entender" (29 de agosto de 2002).
35
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 25 de agosto de 2002).

48
na realização de trabalho (como o canto e a dança). Logo de início, portanto, é preciso destacar
essa relação muito específica entre o "dentro" (energia concentrada) e o "fora" (energia em fluxo
direcionado), assim como as dinâmicas de exteriorização e concentração da energia mental.
Solicitado a elaborar melhor estas idéias, Lemon explicou que "[o]ndas cerebrais,
atividade cerebral e poder intelectual é como uma escadinha[, ]sabe? Do degrau mais baixo até o
mais alto". Segundo Lemon, quando dormimos, emitimos ondas cerebrais "inconscientemente"
(sem "o menor esforço", "elas simplesmente existem"), e quando acordamos, ativamos nossa
"consciência" e damos origem a uma "atividade cerebral mais fixa, mais forte", que nos permite
"tomar decisões como caminhar pra frente, pra tr[á]s, conversar, etc." O "poder intelectual" seria,
então, "a capacidade [...] de assimilar tudo isso direcionado para algum assunto específico", como
quando os "políticos", em seus discursos, usam "toda a sua atividade cerebral (conhecimento)
para saber do que o povo precisa e como transmitir a sua [mensagem]".36
Prevendo que o exemplo dos discursos políticos seria complicado, Lemon citou também
uma frase do livro Fernão Capelo Gaivota37 – "eu já li mais de 50 vezes e ainda continuo, pois
cada vez que leio aprendo uma coisa diferente"38 –, sugerindo que ela fosse lida "umas três
vezes": "Nosso corpo é uma idéia limitada do nosso pensamento".39 Segundo Lemon, a frase é
boa pois "fala sobre ultrapassar os limites impostos pela massa que muitas vezes é 'cega' e não
permite[ ]que alguns membros cre[s]çam".40 O interior (pensamento, mente), o exterior (corpo) e
um fluxo energético que passa de um para o outro (potencializando um e
produzindo/transformando o outro) parecem ser os elementos básicos do discurso de Mr. Lemon.
Quando define xamanismo, por exemplo, ele diz que se trata de "uma arte que se vai aprendendo
de acordo com a freq[üê]ncia [com] que você pratica", consistindo essa prática no exercício de
"nossa capacidade de assimilação da vida (Poder Intelectual) para compreender algum segredo
oculto da vida, que nos será revelado por um ser mais evolu[í]do que nós em um momento de
transe", que "os xamãs alcançam quando [estão] bastante relaxados e em contato com o seu
esp[í]rito."41 O estado de relaxamento assume, no discurso de Lemon, um estatuto misto de

36
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002).
37
Bach (*1970).
38
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
39
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002). Lemon provavelmente se refere à passagem em que
Fernão Capelo Gaivota tenta ensinar seus discípulos a superar os limites do corpo: "Todo o corpo de vocês, da
ponta de uma asa à outra – dizia Fernão [...] –, não é mais do que seus próprios pensamentos, numa forma que
podem ver. Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do corpo..." (Bach
*1970:122-3).
40
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
41
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002)

49
tempo mítico e nirvana: um estado "alpha" "onde tudo começa, onde não[ ]existe nada, onde só
existe a paz":

Nesse momento [você] não tem mais corpo, pois a idéia de limite não existe mais. [Você] se torna
um esp[í]rito de luz que pode se mover para onde quiser quando quiser. O momento de paz que
tentamos tanto alcançar é tão simplesmente ultrapassar a barreira do corpo que controlamos aqui na
terra. Nosso corpo é apenas uma idéia limitada do nosso pensamento...braços e pernas não existem,
é só uma ilusão criada pelo c[é]rebro quando não estamos em transe.42

Ao apresentar o corpo como uma "idéia limitada do pensamento", evocando Fernão Capelo
Gaivota, Lemon dá a entender que o corpo é apenas uma materialização específica de uma
energia que é, em primeiro lugar, mental. Superar o corpo seria, assim, aumentar seu "poder
intelectual". Mas ele adverte: "não esqueça de um todo do seu corpo, ok? Vamos viver em paz
com o mundo espiritual, porque vivendo assim, o mundo material fica mais fácil de se
compreender".43 Há, portanto, na cosmologia energética de Lemon, um forte dualismo entre
mente (interior) e corpo (exterior) em benefício daquela, mas também uma prudente manutenção
de suas relações mútuas.
Segundo Lemon, "o xamantismo [sic] tem a ver com tudo o que existe na vida"
("religiões, pol[í]tica, esportes, artes, etc.") e o que o torna presente (sempre enquanto
"crescimento intelectual") é "o modo como [você] vê e interpreta as coisas que te acontecem no
dia-a-dia".44 "[Você] é o xamã, porque escolhe ser um", ele afirma. "A sua opção por uma vida
voltada para o encontro da perfeição e a paz absoluta é o que [faz] de [você] um xamã." Ele
exemplifica dizendo que mesmo desejando realizar uma cura pela reza ele não terá sucesso se não
tiver uma "vida de paz, de fé" e se não conhecer o seu "deus interior suficientemente bem" para
saber que tem esse "dom (cura)". "Cada um faz sua opção na vida", ele continua, "mas a prática
do xamantismo [sic] é simplesmente para [você] entender quem [você] é e saber qual [é o] seu
dom". Assim, é "entrando dentro de si" e "conversando com a natureza" que se pode descobrir
seus próprios dons, suas próprias capacidades, seus próprios poderes.

42
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002).
43
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002). A mesma relação entre corpo e alma pode ser vista na
seguinte frase de "Soul Mantra '99" do DJ e produtor inglês Chris Liberator: "Se você se abrir para sua alma ela
viverá e crescerá, e você alcançará felicidade e bem-estar. É mais fácil dizer do que fazer, mas alimento para a
alma é possivelmente a coisa mais importante na vida (depois do alimento para o corpo, é claro)." (Chris Liberator
a2000:9)
44
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).

50
[V]ai que seu dom é dançar?! [Você] dança e algu[é]m te v[ê] dançar e se emociona, ou deixa
algu[é]m feliz...os resultados dos dons [são] muito simples, tanto que quase não vemos. Se [você]
entra dentro de si e conversa com a natureza e vê que sabe[ ]cantar, [você] canta, entoa os so[n]s
que [você] sabe e que [têm] um sentido enorme pra [você]. É isso, morreu a hist[ó]ria.45

O xamanismo "voluntário" de Lemon (xamanismo por opção individual) pode ir contra muitos
exemplos concretos de iniciação forçada e involuntária ao xamanismo em sociedades indígenas,46
mas revela um traço repetidamente evocado por outros DJs: sem alguma predisposição a aceitar
as dimensões xamânicas da música eletrônica, elas dificilmente se concretizam. Já vimos como
Mantrix chegou à sua visão do xamanismo a partir de estudos avulsos e ecléticos, sempre guiados
por um desejo próprio de sondar o desconhecido. No caso de Lemon, a relação com o xamanismo
não foi menos intuitiva. Ele conta que, certo dia, "caminhando e meditando (o que gosto muito de
fazer), [refleti] sobre o que senti quando ouvi falar a primeira vez [em xamanismo]; parecia uma
resposta mais clara, um caminho ou até mesmo uma coisa que eu já conhecia há tempo mas que
não lembrava."47 Ele diz que foi então tomado por "uma ânsia de conhecer, de relembrar, de me
encontrar e viver melhor, de alguma forma eu sabia [que] era bom".48 Assim como Mantrix, para
quem o conhecimento sobre o xamanismo está "nos nossos olhos e em nossa mente" e "nada é
obscuro" se "a luz [...] entrar em você",49 Lemon soube desde a primeira vez que ouviu falar em
xamanismo que este "era bom". E é essa afinidade eletiva, essa predisposição para ir em busca de
conhecimentos e se abrir para as experiências, que parece estar na base desse xamanismo urbano
contemporâneo.
"Xamã pode ser DJ, mas DJ nem sempre pode[ ]ser xamã", afirma Lemon.50 Um "DJ-
xamã" "emite seu poder intelectual, ele profetiza, ele canta, dança num ritual sagrado para os seus
seguidores", mas "se não houver, por parte do DJ, um compromisso com a seriedade, com o amor
a música e a paz, nunca ele será um xamã, nunca conseguirá encontrar seu deus interior[,]
continuará preso ao seu corpo cheio de limites [...] [e] seus seguidores em nada crescerão na

45
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
46
Dave Green inclusive apresenta essa como a "diferença fundamental" entre o xamanismo tradicional e aquele dos
DJs: "O xamã tradicional é normalmente escolhido pelos espíritos contra a sua vontade, ao passo que a participação
mística e psicodélica na rave é uma atividade voluntária – aliás, uma afinidade eletiva." (Green 2001)
47
Lemon conta que chegou a presenciar um ritual xamânico indígena, mas não entendeu muito bem: "Já vi um xamã
sim, mas [não] entendi muito do que ele estava fazendo, acho que porque ningu[é]m quis me explicar e o ritual
parecia ser para uma pessoa específica. Aquilo que [você] vê na televisão sabe? É igua[l]zinho, só que os [í]ndios
[es]tão vestidos por aqui...normalmente seus mantras são para expor poder e bravura." (Mr. Lemon, entrevista por
e-mail, 29 de agosto de 2002)
48
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 30 de agosto de 2002).
49
DJ Mantrix (entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001).
50
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).

51
vida".51 Portanto, para que o DJ seja um xamã, é preciso que ele tenha um compromisso com o
esforço voluntário de autoconhecimento, de "crescimento [do poder] intelectual", é preciso que
ele encontre o seu "dom". Mesmo no caso extremo do Goa Trance, descrito por Lemon como a
"m[ú]sica mais delirante do mundo, pois invoca nossos deuses através de m[ú]sicas que te levam
ao alpha", "[i]sso só acontece pra quem quer mesmo entrar em alpha".52 A situação é sintetizada
por Lemon da seguinte forma.

Nem todo DJ é um xamã, a maioria não é, guarde isso na cabeça, ok? Todo DJ deve ter es[s]a
intenção: promover a diversão e a interação do público local fazendo com que eles saiam de si
através da música. O fato das pessoas dançarem e gritarem quando se toca uma música já é parte do
seu "trabalho" como xamã. Resumindo, era pra ser assim, mas vemos [que] não é bem por a[í] que
acontece[.] [I]nfelizmente, são muito poucos os Djs que crêem nisso e que fazem [mesmo] algo pra
coisa acontecer53

Apesar de não ter dúvidas quanto ao xamanismo da música eletrônica, Lemon afirma que ele é
raramente encontrado na prática dos DJs. Quando questionado sobre quais DJs ele tem em mente
quando fala dos DJs-xamãs, ele cita seus "amigos de Fortaleza, principalmente, Mantrix,
Arlequim e Bruno Malabares, que foram meus primeiros contatos com a música eletr[ô]nica e
mais especificamente com o Trance, progressivo e psycodélico".54
Segundo Lemon, pode haver xamanismo na música eletrônica mesmo quando o DJ não é
um xamã. Certa vez ele me perguntou: "Quando [você] escuta seu [ritmo] favorito seu coração
bate a mil? [Você] fica feliz e dança a música? Isso te 'cura'? Pois bem", ele continuou, "o Dj
pode não estar fazendo a parte dele por [você], mas mais importante que ele é [você] ter a
consciência de que a música te tra[z] paz e que mesmo pulando muito [você] consegue fechar os
olhos [e] sentir as vibrações do som no seu corpo e na sua alma", causando assim "uma mudança
em [você] e em[ ]outras 5 ou 6 pessoas que t[ê]m o [mesmo] pensamento que [você] e estão na
festa." 55
Mas se pode haver xamanismo sem um DJ-xamã, parece ser inconcebível para Lemon um
xamanismo sem um público predisposto a participar de seu ritual: "vai que o DJ tem os mesmos
prop[ó]sitos e não vê ningu[é]m na pista dançando e pulando com o som que ele emite?! Isso é

51
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002).
52
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
53
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
54
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002). Vimos acima como Mantrix entende o xamanismo da
música eletrônica. Veremos abaixo a perspectiva de Arlequim.
55
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002).

52
preocupante mesmo".56 É preciso, assim, que o público se predisponha a exercitar sua "meditação
(concentração)" ao som que o DJ produz.57 Quando isso acontece, o "DJ-xamã passa a alegria
para as pessoas. Se algu[é]m está triste, ele a deixa feliz, ele é a cura para a infelicidade".58 É
fazendo "da m[ú]sica, do som, da pintura, da dança, da reza e do transe" um "encontro entre
nosso mundo, a natureza [e] o mundo paralelo ao nosso" que ele atinge este objetivo.59 Certa vez,
como "amostra de que o xamantismo [sic] [está] inserido na cultura do mundo de uma forma
muito simples, mas que [à]s vezes complicamos", Lemon deu um exemplo inusitado de transe:

[Você] reza o pai nosso? Quando [você] reza [você] tem a certeza de estar falando com Jesus e
sabe que ele está te escutando não é? Pronto, momento de transe pequeno, mas é uma oração que
faz com que [você] entre num plano diferente [em] que [você] quase [não] sente seu corpo. O efeito
é pequeno mas é válido, afinal de contas, [você] tá falando com o nosso Pai, nosso
criador...hehehe.60

O "Pai-nosso" é, segundo Lemon, uma comunicação direta com "Jesus" ("nosso Pai, nosso
criador"), um "transe pequeno" que transporta a pessoa para "um plano diferente" onde ela "quase
[não] sente seu corpo". É como que uma técnica de relaxamento, de interiorização, onde a energia

56
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
57
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
58
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
59
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002).
60
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002). Lemon tem um forte envolvimento com o catolicismo.
Após 6 anos de participação em um "grupo de jovens da igreja católica", inclusive organizando "encontros
espirituais", ele abandonou a igreja decepcionado com a "hipocr[i]sia das pessoas que queria[m] Deus mas não o
respeitavam", mas ainda se considera um "católico [...] praticante" mesmo há "3 anos sem entrar em uma igreja",
pois pratica "a paz, a paciência, a[ ]perseverança" e procura "ajudar" a quem pode (Mr. Lemon, entrevista por e-
mail, 29 de agosto de 2002). Ao saber que seu interlocutor não sabia rezar o "pai nosso", Lemon disse achar "um
crime uma pessoa não saber o pai nosso" e logo procurou ensiná-lo, solicitando que ele fosse rezado "pelo menos
agora". Transcrevemos abaixo, como documento etnográfico (sem nenhuma alteração ou correção), a versão,
comentada por Lemon, da oração:

"Segue uma explicação 'minha' sobre cada parte da oração, ok? Mas é uma opinião minha tá?
Pai nosso que estais no céus (Deus nosso que triunfa sobre tudo é e plena paz)
Santificado seja vosso nome (vivas ao teu nome porque tudo fizeste para nós)
venha nós ao voso reino (venha a cada um de nós, porque nosso corpo é tua igreja)
seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu (que possamos aprender teus ensinamentos para que o
mundo se encha de paz e prosperidade por todas as partes)
O pão nosso de cada dia nos dai hoje (mostra-nos como viver bem a aproveitar os presentes dados pelo
senhor, como a natureza e seus frutos)
perdoai as nossa ofensas (que nossas falhas sirvam de lição de vida para que aprendamos a nos comportar
bem)
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (que possamos estar cientes de que erramos e somos
homens pecadores, mas que possamos lembrar dos nosso errros e perdoar aqueles que ainda errarão, e assim
o fazemos)
não nos deixei cair em tentação (devsia-nos do caminho sem ti, porque tu é paz e esperança)
e livrai-nos do mal (dai força para que não nos deixemos vencer pelo mais, mas que pratiquemos o bem)
amém (que assim seja!)" (Mr. Lemon, entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).

53
do pensamento é concentrada não em ações no mundo material (o corpo) mas sim na
potencialização do espírito (poder intelectual). Marcel Mauss já nos ensinou que a prece é um
exemplo privilegiado da interdependência entre mito e ritual61 e, portanto, assim como a magia,
uma espécie de proto-técnica.62 O que Lemon nos mostra aqui é que ela, de fato, ainda pode
assumir esta função, servindo como exemplo "pequeno" de uma experiência de transe extático
que ele encontra atualmente em outras práticas como a música eletrônica e a entonação de
mantras.63 Com relação aos mantras, Lemon inclusive afirma ter feito deles um substituto para o
pai-nosso, pois acredita que são a "semente absoluta de onde nascem tod[a]s as orações positivas
do nosso mundo". "Para praticar o OM", ele ensina, "basta falar 'OOOMMMMMMMM'"
repetidamente ("por mais de 15 vezes com o intuito de meditar") e "sentir seu corpo vibrar e se
encher de paz".64
As idéias de Mr. Lemon poderiam ser sintetizadas em um quadro análogo àquele que
propusemos para a síntese das idéias do DJ Mantrix, partindo daquela que nos pareceu ser a sua
principal oposição, entre o interior (energia concentrada) e o exterior (energia em fluxo
direcionado) (cf. Quadro 3):

INTERIOR EXTERIOR
pensamento (formas de energia) atividade cerebral (ondas cerebrais)
mente corpo
inconsciente consciente
mundo espiritual mundo material
energia concentrada energia em fluxo direcionado
crescimento-concentração Ù exteriorização-transformação
técnicas de auto-conhecimento (achar som, dança, forte rajada de energia
seu dom), compromisso com a direcionada, produção
seriedade, predisposição, transe
Quadro 3 – Quadro sintético da cosmologia de Mr. Lemon.

De maneira muito semelhante ao DJ Mantrix, Mr. Lemon não apenas opõe nitidamente uma
dimensão interior (espiritual) a uma dimensão exterior (material), mas também atribui um valor
maior àquela. No caso de Lemon, a dimensão interior é descrita com termos como "deus

61
Mauss (1979:103-4).
62
Cf. Mauss (1979:138-46) e Mauss e Hubert (1974:48-9, 169-72).
63
Encontramos uma afirmação semelhante em Fritz: "Práticas espirituais como a recitação do rosário, a repetição de
rezas ou mantras, hinos, cantos, a visão de velas etc. são práticas devocionais destinadas a desviar a mente das
preocupações cotidianas em direção à unidade da consciência divina. Raves incorporam muitas dessas práticas e
técnicas e podem alcançar os mesmos resultados." (Fritz 1999:181) Segundo Reynolds, de todas as tentativas de
vincular os estados alterados produzidos pela música eletrônica a experiências religiosas, a mais consistente é a que
evoca o Zen Budismo: "o esvaziamento de significado via repetição mântrica; o nirvana como a paradoxal
plenitude do nada" (Reynolds 1999:243).
64
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).

54
interior", "sexto sentido", "paz absoluta" e "estado alpha" "onde tudo começa, onde não[ ]existe
nada", enquanto para Mantrix essa superioridade do espiritual se reflete na idéia de que todos
buscam na música eletrônica, "mesmo que inconscientemente", "algo superior". No caso de
Lemon essa superioridade se evidencia ainda na sua afirmação de que a predisposição ao
xamanismo parte do interior, do espírito de cada um, e não de suas manifestações contingentes na
materialidade do som e do corpo, de forma que intenções xamânicas por parte do DJ não bastam
para produzir uma experiência extática em pessoas indiferentes a elas e pessoas predispostas à
experiência xamânica poderão alcançá-la à revelia do DJ.65 Enquanto Mantrix enfatiza a
transmissão, para o mundo material, das qualidades do mundo espiritual, Lemon enfatiza a
exteriorização, por meio de ações direcionadas, de energia mental (poder intelectual). Em ambos
os casos, de qualquer forma, o xamã (DJ ou não) é o mediador entre dois níveis assimétricos da
realidade a cuja comunicação é atribuído um papel mitopoésico (o mundo interior-espiritual
criando-transformando o mundo exterior-material).

Lemon descreve uma dinâmica energética entre os níveis interior e exterior da realidade
(representada no quadro pelo símbolo "Ù"), na qual técnicas de relaxamento e interiorização
promovem o "crescimento" do "poder intelectual" através da "concentração" de energia, e
práticas como o canto e a dança (ou, no caso dos DJs, a reprodução de discos) promovem a
"produção" e a "transformação" do mundo exterior através da canalização orientada dessa
energia.66 Se, para Lemon, "nosso corpo é apenas uma idéia limitada do nosso pensamento", é
porque através do direcionamento de nosso "poder intelectual" podemos transformá-lo; e se não
podemos esquecer nosso corpo por completo é porque o objetivo do acesso à "paz" do "mundo
espiritual", do crescimento do "poder intelectual", é facilitar a compreensão e a transformação do
"mundo material".
Podemos ver, assim, que para Lemon as relações entre xamanismo e música eletrônica
residem na capacidade de exteriorizar energia mental através do som: enquanto os xamãs fazem
isso através da "oração cantada", os DJs fazem isso através de seus toca-discos. O que distingue
um DJ comum de um DJ-xamã é o esforço voluntário deste último na busca pelo seu próprio

65
Essa idéia vai na mesma linha da seguinte afirmação do DJ e jornalista carioca Calbuque: "A platéia é sempre mais
importante, o DJ é só o condutor" (Calbuque, in: Bacal 2003:123). Assim, o DJ poderia ser um "condutor" melhor
ou pior, mas é a energia do público que dá o sentido ao ritual. Um DJ-xamã sem um público disposto a ser
xamanizado é como uma máquina desligada de sua fonte energética. Já um público suficientemente predisposto, na
ausência de um DJ-xamã, poderia eventualmente usar outros condutores para a sua energia.
66
A eficácia de um processo análogo a esse é sugerida pelo depoimento de Fritz sobre sua primeira experiência com
ecstasy: "O clima na pista de dança era elétrico. Eu nunca havia visto tanta gente dançando tão entusiasticamente e
com tanto fervor. O nível de energia no ambiente poderia facilmente iluminar uma pequena cidade." (Fritz 1999:5)

55
"dom" através de técnicas de interiorização. Assim como os xamãs praticam sua "capacidade de
assimilação da vida (Poder Intelectual)" para aprenderem, "em transe", "segredos ocultos da
vida" revelados por "seres mais evoluídos", também os DJs e seu público devem aprender a
utilizar este "poder intelectual" "entrando dentro de [si] mesmos" e "conversando com a
natureza". Nada acontecerá se não houver um engajamento voluntário por parte dos envolvidos
no ritual de transformação energética, mesmo que seja apenas por parte de alguns participantes,
dentre os quais, curiosamente, o DJ pode não estar.

56
Capítulo 2
Ritologias

57
58
Passando ao largo de qualquer interpretação, o
ouvinte é sugado por um vórtice de sensações
fortes, emoções abstratas e energias artificiais.1

1
"Bypassing interpretation, the listener is hurled into a vortex of heightened sensations, abstract emotions, and
artificial energies." (Reynolds 1999:9-10)

59
60
Vimos, com DJ Mantrix e Mr. Lemon, como o xamanismo da música eletrônica está envolvido
em complexas teorias sobre religião, relações matemáticas e fluxos de energia. Elas foram
chamadas de cosmologias, pois tentam explicitar o contexto cósmico no qual o xamanismo da
música eletrônica é compreendido. A principal característica destas cosmologias pareceu ser um
dualismo dinâmico, assimétrico e mediado por técnicas específicas, i.e., a existência de dois
níveis principais da realidade, um determinante e outro determinado, entre os quais flui um certo
poder criativo que os DJs-xamãs são capazes de modular e direcionar através de técnicas
específicas. Chegou agora a hora de conhecer mais de perto essas técnicas a partir do discurso de
dois DJs que enfatizam mais as ritologias da música eletrônica do que as suas cosmologias.

As dinâmicas rituais do DJ Arlequim


DJ Arlequim2 toca desde os 13 anos de idade, tendo passado por diversos estilos (dentre os quais
o Electro, o Trance e o Hard Techno) e atualmente toca as variantes "tribais" do Techno. Junto
com outros DJs3 sediados em Fortaleza (Ceará) ele fundou o coletivo Undergroove em 2000, que
posteriormente se associaria ao Pragatecno. O contato com Arlequim se deu por indicação do DJ
e líder do Pragatecno Cláudio Manoel Duarte de Souza.4 Desde o primeiro e-mail que trocamos,
Arlequim se mostrou extremamente interessado nesta pesquisa e totalmente disposto a contribuir,
afirmando logo de partida considerar a música eletrônica um "ponto de fuga" e "uma porta de
entrada para outros horizontes".5 Incentivado a elaborar melhor esta idéia, ele escreveu:

[E]sse lance de ponto de fuga [é] [...] realmente interessante. Desde que participo da cena gosto de
observar o comportamento das pessoas e tentar achar um por quê dessas pessoas estarem nesse
meio. Sempre vi as festas como um lugar muito especial. Nela[s] as pessoas [...] interagem com a
m[ú]sica, a luz [...] e a decoração e descarregam todas as suas energias. [É] legal ver isso. Tem
pessoas que fecham os olhos e vão além. Acredito que [é] por isso que chamo de ponto de fuga...
[é] um momento... [é] um desconto de tudo o que ela n[ã]o faz no meio social, no cotidiano... E [é]
nessa hora que vem a porta de entrada. A pessoa está introspectiva, conhecendo novas sensações,
outras dimensões e nisso rolam muitos questionamentos e uma certa sede de ir além. [...] [É] muito
bacana.6

2
Bruno Gomes Soares nasceu em Arapiraca (Alagoas) em 1981 e viveu em Brasília de 1985 a 1999, quando mudou-
se para Fortaleza (Ceará). Começou a tocar como DJ em 1994 e assumiu o nome "Arlequim" em 1998. Ele e é
formado em Publicidade e trabalha na área.
3
Entre os quais está, como vimos, DJ Mantrix.
4
Mais sobre Cláudio Manoel adiante.
5
DJ Arlequim (entrevista por e-mail, 15 de novembro de 2001).
6
DJ Arlequim (entrevista por e-mail, 16 de novembro de 2001).

61
Já estavam colocadas, nesse e-mail, as principais preocupações que orientariam todo o discurso
de Arlequim sobre o xamanismo da música eletrônica: o "ponto de fuga", experiência ritual de
dissociação através da introspecção provocada pelo ambiente da festa ("a música, a luz"); e a
"porta de entrada", experiência reflexiva em que o novo estado alcançado possibilitaria uma
transformação, um "ir além". Retomaremos esses pontos adiante. Por hora basta notar que
Arlequim, desde o início, via na música eletrônica um meio de transformação que, ele intuía,
poderia ser chamado de xamanismo.
A simpatia que Arlequim mostrou desde o início pela relação entre xamanismo e música
eletrônica parecia ter uma origem diversa daquela que encontramos nos discursos de DJ Mantrix
e de Mr. Lemon. Apesar das múltiplas relações entre os três entrevistados,7 o discurso de
Arlequim se distingue daquele dos outros dois pela total ausência de referências a religiões
institucionalizadas. Vimos que a simpatia inicial de Mantrix e Lemon pelo tema estava
inevitavelmente ligada a experiências religiosas que iam além do contexto da música eletrônica
de pista (como o "teísmo" de Mantrix e o "catolicismo" de Lemon), o que talvez explique suas
tendências cosmicizantes. No caso de Arlequim, porém, a simpatia pelo tema vinha de
experiências rituais com a própria música eletrônica, sem mediações anteriores com experiências
análogas em outros campos.
"Qual é o certo, 'xamantismo' ou 'xamanismo'?"8 Apesar da simpatia inicial de Arlequim
pela idéia de um xamanismo na música eletrônica, ele (diferentemente de Mantrix e Lemon)
relutou, de início, em falar sobre algo que ele acreditava não conhecer suficientemente.9 Ele
solicitou algumas vezes definições e explicações "sobre xamanismo, como funciona, como eles
pensavam, como eles agiam, como eram os rituais",10 assumindo de início, portanto, que não
sabia do que se tratava. Além disso, apesar de nunca duvidar de um certo "poder" da música
eletrônica, Arlequim chegou a questionar a possibilidade efetiva de que um DJ pudesse ser
considerado um xamã: "você realmente acredita que realmente tem uma ... [aqui Arlequim hesita
bastante] ... acredita realmente que tem uma grande força, um grande objetivo, da parte do DJ,

7
Como já vimos, existem múltiplas relações entre DJ Mantrix, Mr. Lemon e DJ Arlequim. Dentre elas: eles se
conheceram em Fortaleza; foi através de Arlequim que chegamos a Mantrix; o primeiro texto sobre xamanismo
lido por Lemon foi escrito por Mantrix; Arlequim e Mantrix são, junto com outros DJs, membros fundadores do
coletivo Undergroove; e Lemon citou Mantrix e Arlequim como exemplos daquilo que ele considera DJ-xamãs.
8
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
9
A dúvida de Arlequim pode ter se originado da mesma associação que gerou a "certeza" de Lemon (que sugerimos
ser a semelhança entre as palavras "mantra" e "xamantismo") ou então por contato com a própria terminologia de
Lemon (afinal, Lemon escreveu pelo menos um e-mail para a lista "Pragatecno Brasil" usando a palavra
"xamantismo", aquele que motivou nosso contato com ele).
10
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001).

62
em tentar mudar, em tentar trabalhar com esse lado mais subliminar da coisa, esse lado mais,
digamos assim, espiritual?"11 Atento às complicações do tema, Arlequim sabia que não era
possível estabelecer um paralelo automático DJ-xamã pois, além de ele ter sérias dúvidas sobre o
que era o xamanismo, ele sabia que era extremamente difícil falar sobre os sentimentos e
experiências envolvidos, mais ainda quando se referiam a outras pessoas. "[C]ada pessoa é um
mundo", ele disse mais de uma vez. "Cada um tem suas interpretações, suas limitações até, e isso
torna cada problema, ou cada coisa que aconteça, uma coisa que pode variar muito de pessoa pra
pessoa".12
Mostrando a extrema força e disseminação da idéia de que o xamanismo estaria
relacionado ao transe pela música repetitiva, foi esse justamente o primeiro paralelo que
Arlequim propôs entre música eletrônica e xamanismo.13 "[A] característica mais forte do
xamanismo é [a repetição], né? Ou não?"14 Arlequim defendeu até o fim sua opinião de que "o
Techno seria o estilo que mais se aproximaria dessa pesquisa que você está fazendo", pois "[d]e
todos os estilos, [...] [ele] seria o que mais se aproxima daquela coisa bem tribal [...] e eu acho
que cai bem nisso que você tá querendo buscar". Techno tribal, o principal estilo que Arlequim
tocava na época das entrevistas, se caracteriza principalmente por ter "a batida do Techno (tum,
tum, tum), e [ser] só percussivo", "muito repetitivo" (cf. Imagem 5 e Exemplo Sonoro 28).15 A
repetitividade da música é, segundo Arlequim, uma espécie de "concentração", de "meditação",
cuja eficácia depende de uma certa capacidade ou predisposição para "abrir a cabeça". "[Q]uando
as pessoas não conseguem assimilar esse som", ele diz, "é porque não querem abrir a cabeça para
aquilo". Mas o que é "abrir a cabeça"?
Ele sugere uma experiência: se duas pessoas estão conversando e ao mesmo tempo
ouvindo uma "música do tipo tribal, repetitiva", elas provavelmente não vão "abrir a cabeça", e
mais certamente ainda vão "achar que aquilo está incomodando". No entanto, "a partir do
momento em que você presta atenção naquilo e deixa a música entrar, a sua cabeça vai abrindo,

11
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001).
12
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001). Sobre a mesma dificuldade em falar sobre os efeitos
da música nas pessoas, o músico Chico Correa concluiu: "É uma coisa muito subjetiva, né?" (Chico Correa,
entrevista por telefone, dezembro de 2001).
13
"Eu já ouvi falar algumas coisas sobre a relação que existe entre os dois ambientes [i.e., música eletrônica e
xamanismo]. O lance da música repetitiva, que leva a um transe..." (DJ Arlequim, entrevista por telefone 1,
novembro de 2001). Já vimos esta relação entre a repetição da música eletrônica e o xamanismo no artigo de Fry
(*1999a) e ela será retomada "repetidamente" ao longo desta tese.
14
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
15
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

63
sabe? E com a mixagem você vai sentindo as variações".16 A experiência ritual do Techno tribal
dependeria, portanto, de uma disposição e capacidade da pessoa de "se fechar" para o mundo
intersubjetivo e se "abrir" para o ritmo do som e suas variações. A "abertura" para as variações
que o DJ provoca na música dependeria deste "fechamento" para um mundo que parece
nitidamente estar em outro compasso.17 Uma vez dentro deste mundo paralelo de repetições e
diferenças, as pessoas embarcariam em uma jornada cujo condutor é o DJ. Segundo Arlequim, o
DJ tem não somente a "capacidade" de conduzir as pessoas nesta jornada, mas a "obrigação" de
fazê-lo. "'[T]ocar por tocar' não tem sentido".18 Mas ele também conta com a contrapartida do
público: "A gente tem esta força, e o resto é com a própria pessoa, né? Isso vai depender muito da
pessoa, na verdade".19
Arlequim distingue entre dois tipos de sets,20 o "linear" e o "progressivo", dizendo preferir
o segundo tipo. Vale citar sua justificativa para esta preferência:

Eu gosto realmente de ir conduzindo as pessoas. Eu acho que tem o momento de crescer, o


momento do clímax, daí dá uma... fica mais reto, depois desce um pouquinho, sobe de novo... Acho
que tá aí a graça... Acho que os momentos legais são as mudanças. Acho que enquanto você tá
naquela linearidade, fica uma coisa gostosa, mas quando muda é que você sente: "Putz! Que
massa!", sabe? "Mudou", né? 21

As imagens de Arlequim revelam a existência de uma geografia dinâmica construída pelas


variações sonoras. "Crescer", atingir um "clímax", ficar "reto", "descer" um pouquinho, "subir"
de novo etc. O DJ de fato "conduz" a pessoa através de um espaço paralelo, com "linearidades" e
"mudanças", buscando proporcionar-lhe uma experiência específica que corresponde a um certo
equilíbrio entre essas "linearidades" e "mudanças". Questionado sobre os detalhes desta operação,
Arlequim se sentiu forçado a dizer o que deveria ser óbvio: "a gente tá lidando com pessoas, né?

16
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001). DJ Mis-Chief usou palavras semelhantes às de
Arlequim para descrever o "click na cabeça" que fez com que ele deixasse de ver a música eletrônica como "apenas
uma batida [que ele "não agüentava"] na sua cabeça": "De repente eu comecei a dançar como nunca havia dançado
antes e a batida se transformou na batida mais endiabrada que eu jamais havia ouvido. Era como se meu cérebro
tivesse se aberto para ela e, ao invés de ficar batendo fora de minha cabeça, ela agora entrava no meu corpo." (DJ
Mis-Chief, in: Fritz 1999:80).
17
Judith Becker chama a atenção para dois traços essenciais da neurofisiologia do transe que parecem intimamente
relacionados com a ênfase de Arlequim na repetitividade e no "fechamento": o "foco", definido como "a contínua
ativação de um complexo particular de grupos neurais, um 'mapa' particular"; e o "fechamento [shutting down] de
certas conexões perceptivas", que promove um "esquecimento de eventos e preocupações mundanas", "bloqueia a
distração e estimula uma abertura a muitos novos tipos de percepção e cognição" (cf. Becker 1994:46-7).
18
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
19
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001).
20
Chama-se de set a seqüência musical que compõe a apresentação de um DJ. Segundo Robert Fink, sets são
"construções totalmente transitórias de desejo" (Fink 2005:61).
21
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

64
[risos] Pessoas, cada um é um mundo, e é difícil...".22 Segundo Arlequim, enquanto alguns
conseguem embarcar na viagem "sozinhos", outros "precisam de drogas para conseguir". A
música não vai ter o mesmo efeito em uma pessoa "dispersa" ("uma pessoa que está ali por estar
ali dançando, e um pouco desligada da música") e em uma pessoa "que está ali concentrada e
realmente sentindo", e enquanto uma pessoa pode "simplesmente só introspectar e pensar em
uma direção" (sem que isso cause mudanças mais profundas), outra pode "pensar neste sentido de
questionar e depois pensar em querer mudar". Além disso, tudo "depende muito do ambiente",
"da luz, do som", "do estado de espírito do DJ" e também do "estilo" do DJ (se é mais "linear" ou
mais "progressivo"). Existem, enfim, muitas variáveis envolvidas em cada caso (aquilo que
chamaremos de "as contingências do ritual").
Estimulado a fornecer uma imagem mais geral e abstrata desse processo "progressivo",
ele afirmou que tudo pode começar na primeira música: "chamar a atenção das pessoas, saber
colocar a primeira música, saber brincar com aquela música", realizar alguma "performance" com
ela. As primeiras músicas devem ser capazes de "puxar" as pessoas para "dançar", para
"interagir". Só depois, quando elas já estiverem com a cabeça "aberta", é que Arlequim vai
"começar a entrar mais na cabeça", fase em que ele fica "mais delicado", em que vai "se
preocupar mais com as músicas que eu vou entrar", com "como é que eu vou entrar".23 É
interessante notar a ambigüidade de sua fala nesse ponto quanto a se é ele ou a música que vai
"entrar" e aonde se vai entrar. A interpretação normal seria a de que é a música que vai entrar no
ambiente, como quando o DJ abaixa o volume da música que sai e aumenta o volume da música
que entra. No entanto, podemos também pensar que é Arlequim quem vai entrar na música, como
quem sai de um ambiente físico dado e entra em um ambiente sonoro. Não parece ser preciso
escolher entre as duas interpretações, pois ambas (e outras ainda) podem ser verdadeiras
simultaneamente, e veremos adiante mais exemplos de como esse tipo de confusão das fronteiras
entre o corpo e o som é parte central da experiência xamânica na música eletrônica.
Existe, portanto, uma nítida divisão de responsabilidades no ritual da música eletrônica
descrito por Arlequim. De um lado, o público disposto a (e capaz de) abrir a cabeça ao som; de
outro, o DJ atento à dinâmica global na condução da jornada coletiva. Enquanto este deve se
preocupar em "envolver" as pessoas ("puxá-las") para depois "conduzi-las" ("entrar na cabeça"),

22
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
23
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001). Arlequim sugere, com relutância, que o tempo
necessário para o processo inicial de "abrir a cabeça" é de "30 minutos". Trata-se, evidentemente, de um número
que não deve interpretado literalmente, mas que também não deve ser ignorado.

65
aquele deve estar "predisposto" a se deixar "envolver" (a "abrir a cabeça") e depois "refletir"
("questionar", "ir além").24 Esses seriam, segundo Arlequim, os "dois passos" do ritual. Já vimos
como a introspecção tinha papel importante nas cosmologias xamânicas de Mantrix e Lemon, que
opunham o interior e o exterior e propunham dinâmicas de transição entre eles. Arlequim vem
então confirmar a importância dessa relação dentro/fora e enriquecê-la com uma perspectiva mais
voltada para as práticas rituais envolvidas, para os processos de fechamento, abertura e
condução. Um ótimo exemplo de como a sua compreensão desses processos deriva de sua
própria prática como DJ é o seu relato de um "caso especial" vivido em uma "festa privé" na casa
de uma conhecida sua, em Salvador, onde Arlequim fora para tocar em um festival (Solaris).
Segundo Arlequim, havia poucas pessoas na festa ("umas 15"), e estas se revezavam no comando
dos toca-discos. Foi quando chegou a sua vez de tocar:

Eu entrei com músicas mais... essas musiquinhas que têm umas formulazinhas mais prontas, que
você sabe que você toca e o pessoal dança. Rolou muito Ecstasy e LSD, e à medida em que o efeito
foi batendo, eu senti uma mudança, assim, em mim, e na pista. E aí eu comecei, assim, "Pô, deixa
eu pegar umas coisas diferentes aqui, vamos fazer umas experiências". Cara, à medida em que a
cabeça do pessoal foi abrindo... aquela música, que parece tão grossa, tão "indigestível", ela foi
entrando nas pessoas, assim, ao ponto de... é... não sei nem como falar. Foi um momento de
interação tão grande, sabe? A coisa fluiu de um jeito que eu acho que eu nunca tinha visto. Foram
poucas pessoas, o som não era nada grande, mas foi um momento que... é... assim, parece que eu
tinha entrado na música, e a música entrou na pista e a pista entrou em mim, sabe? Fechou um
ciclo, sabe? 25

Vemos aqui a descrição de uma situação concreta em que Arlequim colocou em prática os
princípios que antes ele havia apresentado de forma geral e abstrata. Primeiro, o envolvimento
das pessoas através de "musiquinhas que têm umas formulazinhas mais prontas, que você sabe
que você toca e o pessoal dança". Depois, um momento de mudança na relação das pessoas com
a música (facilitado em grande parte pelas drogas), quando Arlequim resolve começar a "fazer
umas experiências". Poderíamos dizer que estes dois momentos correspondem aproximadamente
aos "dois passos" distintos já descritos por Arlequim, em que as pessoas primeiro "se fecham"
(motivadas pelas "fórmulas" musicais e químicas) e depois "se abrem" (se deixando conduzir
pelas experimentações do DJ). Arlequim falou ainda de outras "experiências muito massas", "de
estar tocando umas músicas mais acessíveis, que fazem o pessoal dançar mais, e de repente cair
num Techno tribal e fazer um set, assim, de uma hora, daquela coisa repetitiva, e ver que as
pessoas se fecharam, que elas estão... 'CARACA!'". Como sempre, encontramos os dois "passos"

24
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001).
25
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

66
do "fechamento" e da "abertura". E como sempre também, o público pode ser dividido entre
aqueles que resistem ao ritual – seriam aqueles que dizem "Porra, esse negócio não muda" – e
aqueles que "tão lá, lá dentro, assim, perdem totalmente a noção" – seriam aqueles que dizem
"CARACA!".26 Mas naquela festa privé em Salvador a experiência parece ter ido além. Arlequim
sentiu que ele havia "entrado na música" – como quem penetra um novo ambiente e assim pode
explorar suas novas relações –, que a música, por sua vez, "entrou na pista" – provavelmente
entrando na cabeça das pessoas e assim trazendo-as para dentro da esfera de atuação que
Arlequim passava a explorar – e que a pista, por fim, "entrou" no DJ – como se ele próprio, além
de conduzir a pista, passasse a ser conduzido por ela, reagindo a cada novo estímulo que ela lhe
transmitia.
Se tentássemos dar a esses acontecimentos dimensões espaço-temporais convencionais,
imaginando caixas entrando uma dentro da outra em seqüência, cairíamos em paradoxos.
Primeiro o DJ entraria dentro de uma caixa chamada "música". Em seguida, essa caixa-música
entraria dentro de outra caixa chamada "pista". Finalmente essa caixa-pista entraria dentro de
uma terceira caixa chamada "DJ" que... já estaria dentro dela! Aceitar a possibilidade dessa
seqüência de acontecimentos implica necessariamente em aceitar que essa experiência não se dá
no tempo-espaço habitual do cotidiano. Por que não considerar, por exemplo, que no momento
em que o ciclo se fechou, a pista deixou de estar "diante" ou "fora" do DJ e se tornou uma espécie
de mediação ou intervalo entre dois aspectos ou dimensões do próprio DJ? Assim, entrando
dentro da música (saindo de si?), o DJ teria se tornado capaz de introduzir a pista em seu próprio
interior, mas um interior que agora era experienciado como "outro".
As possibilidades interpretativas deste tipo de experiências são múltiplas, e serão ainda
melhor exploradas adiante. Basta, por hora, notar que a compreensão dos aspectos xamânicos da
música eletrônica dependerá, necessariamente, da correta avaliação deste tipo de experiência
extática. É preciso, enfim, saber levar a sério o que se diz, o que se faz, e o que se diz que se faz.
Com o objetivo de facilitar este trabalho interpretativo, propomos dois quadros sintéticos da
ritologia de Arlequim. No primeiro quadro, retomamos aquilo que poderíamos chamar de "os
dois 'passos' do ritual", etapas apresentadas por Arlequim como compondo a experiência ritual da
música eletrônica tanto para o DJ quanto para o público (cf. Quadro 4). No segundo quadro,
sintetizamos aquilo que chamamos de "as contingências do ritual", i.e., os fatores dos quais

26
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

67
dependem os resultados de cada experiência ritual específica, relacionados aos dois pólos do
ritual (DJ e público) e ao ambiente em que ele ocorre (cf. Quadro 5).

OS DOIS "PASSOS" DO RITUAL


(da perspectiva dos seus dois pólos)
• DJ
1.envolver o público ("puxar as pessoas") através de
repetições, fórmulas e performance.
2. conduzir o público ("entrar na cabeça") através de
variações e experiências.
• PÚBLICO
1. "se fechar" ("ponto de fuga"), rompendo com a
intersubjetividade social cotidiana e imergindo no
som, se deixando envolver pelo som.
2. "se abrir" ("porta de entrada"), deixando a música
"entrar na cabeça" e se deixando conduzir pelo
som num processo de introspecção e
questionamentos
Quadro 4 – Quadro sintético dos
"dois passos" rituais do DJ Arlequim.

AS CONTINGÊNCIAS DO RITUAL
• DJ
o "estado de espírito" (intenções, predisposições,
drogas etc.)
o set progressivo ou linear?
o set experimental ou comercial?
o estilo musical.
• PÚBLICO
o com ou sem drogas?
o atento ou disperso?
o buscando transformação ou adaptação?
o predisposto a abrir a cabeça?
• AMBIENTE
o luz (efeitos de iluminação)
o visual (decoração, roupas etc.)
o som (qualidade, intensidade)
o contexto (ambiente aberto ou fechado?, festa
comercial ou particular? etc.)
Quadro 5 – Quadro sintético das
contingências do ritual segundo DJ Arlequim.

As preocupações de Arlequim com a "potência que a música eletrônica tem na cabeça das
pessoas" já vêm de longa data. Ele conta que desde que começou a trabalhar com música
eletrônica (entre 1997 e 1998)27 ele se sentiu "abismado com o ambiente", com o "potencial" do

27
Apesar de tocar como DJ desde 1994, antes de um período de transição entre 1997/1998 Arlequim tocava "Euro
dance, Freestyle, Miame", estilos considerados "comerciais" por ele, mas que lhe serviram como "um degrau [...]
para eu poder chegar [à] música eletrônica": "s[ó] a música eletrônica para conseguir entrar tão a fundo em mim.
Quando eu percebi que não tinha mais jeito larguei toda a minha carreira de Dj comercial e mergulhei a fundo

68
fenômeno, e pensou: "Caraca! Eu preciso fazer alguma coisa com isso! Isso aí é muito forte!".
Desde então sempre teve "idéias malucas" como "estudar um set de mixagem, trabalhando a
percepção das pessoas" ou "[p]egar músicas pré-selecionadas, e tentar fazer um jogo de
sentimentos nas pessoas".28 No entanto, cabe perguntar: quais são as conseqüências destas
experimentações, deste "trabalho da percepção", deste "jogo de sentimentos"? Até onde pode
chegar esse poder que a música eletrônica confere ao DJ? Até onde pode ele controlar as
experiências do público, para não dizer das suas próprias?
Como já vimos, Arlequim não tem dúvidas de que estamos trabalhando com "pessoas" e
que, sendo cada uma "um mundo", elas nunca podem ser completamente previsíveis e
controladas por princípios gerais. Não obstante, suas preocupações precoces com o potencial da
música eletrônica o motivaram desde cedo a tentar compreender quais são as questões em jogo,
quais são os desejos e afetos envolvidos nesse ritual eletrônico. E suas conclusões, que retomam
os temas iniciais do "ponto de fuga" e da "porta de entrada," são de extrema relevância:

Eu sempre fiquei observando os amigos com quem eu andava, as pessoas que eu fiquei
conhecendo, assim... "Pô, por que é que esse cara tá aqui?", sacou? E [...] eu vi que, tipo 90% dos
caras tinham problemas com a família.29 Sabe? A grande maioria queria esquecer alguma coisa, ou
teve algum problema no passado... E eu sentia que quando eles estavam num ambiente de festa, ou
num clube, eles... entram na pista de dança, fecham os olhos... e esquecem! Esquece! Sabe? Ficam
lá horas dançando, e ficam naquele... naquele interior deles, ali, um bom tempo. E eu acho que a
música, por ter essa profundidade toda (tanto no som como na hora de trabalhar a iluminação, ou
no visual, como as pessoas se vestem, ou nas drogas que às vezes ajudam as pessoas a
transgredirem para um outro ambiente), acaba tendo um papel... Já que ela tem esse papel de fuga,
é porque algo está errado pra trás, né? Então ela acaba tendo um papel de... de questionar. É um
momento de você perguntar, é um momento de você falar: "Pô, por que é que é assim? Por que é
que eu tenho que voltar pra lá?" Né? "Por que é que eu tô aqui?" 30

nessa nova co[nc]epção e passei a comprar discos e mais discos" (DJ Arlequim, e-mail enviado à lista "Pragatecno
Brasil" em 30 de agosto de 2000).
28
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001). O DJ Bobby Viteritti tinha idéias parecidas com as de
Arlequim quando tocava em San Francisco nos anos 70: "Billy [o iluminador] e Bobby se reuniam no início da
noite e planejavam aonde eles levariam o público e com quais músicas [...]. Eles acreditavam que se pudessem
controlar totalmente o ambiente acústico e visual eles chegariam a controlar a consciência do grupo e influenciar as
viagens das pessoas, coisa que eles certamente faziam" (David Diebold, in: Brewster e Broughton 2000:199). Os
DJs Derrick May e Juan Atkins também tinham preocupações semelhantes quando começaram a se apresentar
como Deep Space Soundworks na Detroit dos anos 80: "Nós construímos toda uma filosofia para nossas
apresentações. Nós sentávamos e pensávamos sobre o que o cara que fez o disco estava pensando, e procurávamos
um disco que se encaixasse com aquilo, para que as pessoas na pista de dança compreendessem o conceito. [...] Na
véspera da festa, ficávamos a noite inteira pensando sobre o que tocaríamos, que pessoas estariam na festa, qual o
conceito do público." (Derrick May, in: Reynolds 1999:17). Veremos adiante que o problema dessa abordagem
conceitual (o DJ propondo um conceito ao público) é que o público muitas vezes não corresponde às expectativas
do DJ.
29
Problemas familiares e geracionais são freqüentemente apontados como fatores que influenciam o envolvimento
de jovens com a "cultura da música eletrônica" (cf. Fritz 1999:132-3, 169, 171; Becker e Woebs 1999:60-1).
30
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

69
As observações de Arlequim sugerem que grande parte da disposição e capacidade para "se
fechar" para o mundo cotidiano e "se abrir" para a jornada musical vem daquilo que ele chamou
de "algum problema no passado". A experiência ritual de dançar a música eletrônica (que
envolve, além da música, as luzes, o "visual" e as drogas) teria, assim, num primeiro momento,
uma função escapista, uma fuga de "algo [que] está errado pra trás". Num segundo momento, o
"papel de fuga" da música eletrônica se tornaria também um "papel de [...] questionar", de tentar
descobrir os mecanismos dos problemas e de suas soluções. Este papel positivo da fuga se
revelaria, assim, como a sua capacidade de colocar os problemas em perspectiva (como que
criando um novo "ponto de fuga", agora no sentido geométrico do termo) e assim possibilitar,
mais do que um "retorno" à mesma situação problemática, uma transformação desta situação.
Mas Arlequim não é ingênuo. Mesmo percebendo este "potencial" para "melhorar as coisas", ele
sabe que nada é automático. Em sua opinião, "este 'melhorar' está muito mais dentro da gente do
que no exterior". Seria este, segundo o DJ, o motivo pelo qual "as pessoas talvez não se
expressem tanto, não falem: 'Pôrra! O mundo tá em guerra!' [...] 'Por que é que a gente não busca
a paz? Por que é que a gente não faz uma festa em prol da paz?'". Assim, muitas vezes, o
potencial transformador da música acaba sendo apenas um mecanismo de adaptação através do
qual as pessoas, ao buscarem mudar as coisas "dentro de suas cabeças", "[d]e dentro pra fora, e
não de fora pra dentro", acabam tentando apenas "muda[r] sua percepção para poder viver
tranqüilo no ambiente em que está".31 O problema, aparentemente, não seria a direção
predominante da mudança, "de dentro para fora" (tendência dominante também nos discursos de
DJ Mantrix e de Mr. Lemon), mas sim a sua natureza adaptativa ao invés de transformadora.
A distância entre o potencial transformador da música eletrônica e o papel adaptativo que
ela acaba assumindo na prática é motivo de frustração para Arlequim. Esta facilidade de "chegar
numa festa, tomar uma 'droguinha' e esquecer do mundo" faz Arlequim acreditar que "[t]em
alguma coisa na música eletrônica que falta". "[M]esmo sem droga", a facilidade com que se
"esquece do mundo" em uma festa de música eletrônica acaba assim, infelizmente, agindo contra
o seu próprio potencial transformador. Arlequim nota que a música eletrônica é um "movimento
grande, [...] forte, [...] diverso, [...] que trabalha com ferramentas de vanguarda" e cujos
participantes têm acesso a "muita informação" (principalmente através da Internet). No entanto,

31
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

70
apesar deste "papel social [...] [e] cultural muito forte", existe "muito pouca atuação nesse
sentido".32
Arlequim imagina possíveis caminhos de ação para "interagir mais com o social", como
trabalhar com "criancinhas com câncer", "doentes de Aids", ou com a conscientização sobre o
"mundo que está em guerra". Ele acredita que a capacidade dos DJs de "entrar na cabeça das
pessoas e passar um sentimento" deve ser usada para "mexer" com estas questões, trazê-las para
seu campo de ação, "tentar mudar isso aí". Ele considera esse "um papel importante que a gente
tem no mundo hoje", de "não se isolar, de poder entrar no social, interagir com o social e mudar
essa sociedade". No entanto, é justamente a assunção deste papel que ele considera que "falta"
entre aqueles responsáveis pela "cena". "É uma carência que a gente tem". Uma "falta" atribuída
justamente àquilo que poderia ser um dos maiores trunfos desta cultura da música eletrônica: a
"facilidade que a gente tem de fugir".33

Você, ao mesmo tempo que foge, compreende. Você tá vendo aquela realidade suja, feia? Você
foge, vai para um ambiente que te agrada, e ali você compreende o por quê de estar ali. Mas não
tem uma resposta. A resposta você encontra no seu interior. Assim: você consegue esquecer aquilo,
mas você não tem aquela força de querer chegar e "Pô, vou mudar agora".34

A fuga-compreensão que Arlequim encontra em suas experiências concretas em festas se


distingue, portanto, da fuga-transformação que ele vislumbrou como um potencial da música
eletrônica. Na fuga-transformação, o "esquecimento" da realidade da qual se foge é apenas um
primeiro passo rumo à transformação efetiva do mundo e à solução de seus problemas. Na fuga-
compreensão, por outro lado, teríamos uma fuga adaptativa, incapaz de gerar as transformações
necessárias para a superação dos problemas que provocaram a fuga em primeiro lugar e voltada
apenas para tornar estes problemas aceitáveis.
Apesar da frustração de Arlequim diante do potencial xamânico aparentemente sub-
utilizado da música eletrônica, ele acredita que, em casos específicos, é possível superar o
conformismo generalizado, citando os adeptos do Psychedelic Trance e do Goa Trance como
possíveis exemplos de pessoas que "têm essa fuga, mas têm o seu exercício na sociedade" –

32
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
33
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001). Segundo o DJ norte americano Brent Carmichael, as
experiências de transformação promovidas pela combinação de drogas e música eletrônica são precárias pois
"quando o efeito passa, é difícil colocá-las em prática": "Aquela experiência traz consigo obrigações. Se você vê
algo de errado ou algo que precisa ser mudado você precisa agir mesmo sem a droga. Se você só tem insights sob o
efeito de drogas, então você se torna dependente delas, o que é um problema." (DJ Brent Carmichael, in: Fritz
1999:99).
34
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).

71
também pela identificação com a natureza (as festas são geralmente feitas fora dos centros
urbanos) mas, principalmente, pelo fato de que os mais conhecidos produtores desse estilo vêm
de Israel, onde "a galera [...] sofre tanto" mas consegue "mudar aquela realidade dentro deles na
música".35 Arlequim não elabora melhor esta possibilidade, talvez por não ser este o seu estilo
musical,36 mas muito mais provavelmente pois o maior "comprometimento social" do Trance, na
maior parte das vezes, não passa de um estereótipo baseado na sua simbologia "naturalista" e
"comunitária",37 seu engajamento social não sendo, a princípio, mais consistente do que aquele
de qualquer outro tipo de música eletrônica. Como bem mostra Ivan Fontanari em sua etnografia
da "cena rave" de Porto Alegre, se existe alguma preocupação "comunitária" específica aos
adeptos do Trance, ela geralmente se limita à dissociação temporária das formas de socialidade
cotidianas (o que ele chama de "guetização"), e não de transformação delas.38 Parece haver, no

35
Segundo o DJ Chika (Tóquio, Japão), a força do Trance em Israel tem como uma de suas causas a grande
migração de jovens israelenses para Goa, fugindo do serviço militar obrigatório em seu país. O governo indiano
chegou a proibir as festas em Goa em 1994 atendendo a pressões do governo israelense, mas a proibição não durou
muito (cf. Fritz 1999:230). Se considerarmos que muitos atribuem a criação do estilo Trance a hippies provenientes
principalmente da Califórnia (cf. Reynolds 1999:175; Saldanha 2002; McAteer 2002), somos obrigados a concluir
que o estilo esteve, desde o início, ligado aos mais diversos tipos de fuga (algo que também pode ser dito dos
primórdios da cena rave inglesa, geralmente remetidos à "fuga" de ingleses para Ibiza). Outros países normalmente
associados às origens e desenvolvimentos do Trance além de Israel e Índia (Goa) são: Japão, Alemanha, França,
Hungria, Portugal, Iugoslávia, Grécia, Estados Unidos (Califórnia), Egito e Brasil (cf. Pimenta *2003a:21; Fritz
1999:237-51).
36
Foi falando sobre o maior engajamento social dos adeptos do Trance que Arlequim indicou seu amigo DJ Mantrix
como possível entrevistado, apresentando-o como "um cara muito ligado, muito culto, [que] tem muita informação
e toca Psychedelic Trance", ressaltando que já havia visto Mantrix "falando sobre xamanismo" (DJ Arlequim,
entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
37
Arlequim ecoa, em sua referência ao Trance, os estereótipos repetidos como um "Mantra" pelo discurso oficial da
"cena", sobre suas relações com a natureza (festas longe de centros urbanos e presença esporádica de sons
"naturais" e acústicos nas músicas), com as drogas, com a cultura psicodélica dos anos 70, com a simbologia
hippie, com decoração fluorescente etc.: "A galera do Trance Psicodélico [...] toma muuuito LSD [risos]. Sabe? É
uma galera que tá assim... totalmente zen. [...] Tem muito aquele clima do ambiente psicodélico dos anos 70. Eles
trouxeram um pouco isso aí, né? Os ambientes são sempre fluorescentes, com luz negra, aquelas telas
psicodélicas... [...] Nas capas dos discos sempre tem um cogumelo [risos], sempre tem uma pílula, assim... sabe?
Mas é uma galera que tem muita consciência nesse sentido. É uma galera muito mais ativa nesse sentido. Eles têm
essa fuga, mas têm o seu exercício na sociedade. Eles fazem muitas festas com esse tema..." (DJ Arlequim,
entrevista por telefone 1, novembro de 2001). Ótimos exemplos desse tipo de estereótipo do Trance podem ser
encontrados em Fontanari (2003:142-6). Limitaremo-nos aqui a constatar que se por um lado o Trance "cultiva
uma imagem relacionada à espiritualidade", por outro "[n]inguém sai de casa 'pensando em transcender', mas
simplesmente em se divertir" (Pimenta *2003a:20-1), e quanto à visão estereotipada do Trance o DJ Camilo Rocha
é enfático: "Ninguém engole esse pseudo-hippismo. Os flyers das festas falam em elevar o espírito, mas a galera
vai e joga lixo no mato. Está cagando pro mundo" (Camilo Rocha, in: Pimenta *2003a:19). O leitor interessado na
"cena Trance" brasileira já conta com pelo menos duas pesquisas de qualidade: as dissertações de mestrado de
Cavalcante (2005) e de Fontanari (2003). No contexto internacional, vale consultar McAteer (2002) e Saldanha
(2002).
38
Cf. Fontanari (2003:123-8). Hakim Bey provavelmente chamaria isso de TAZ (Temporary Autonomous Zone, uma
espécie de "anarquismo local e efêmero"), conceito muito comum no discurso nativo (e.g. Gibson 1997; Duarte de
Souza 2001:66-7, Bacal 2003:94 e 134; Borges *2003; Fusion Anomaly *2004). Segundo um raver grego
entrevistado por Fritz, mais do que temporária, a festa de música eletrônica seria uma "zona totalmente autônoma
[a totally autonomous zone]" (Will, in: Fritz 1999:29). No entanto, como bem notaram Becker e Woebs, a

72
entanto, uma outra saída para o exercício do potencial xamânico da música eletrônica muito mais
próxima de Arlequim do que o Trance (ou qualquer outro rótulo) e muito mais coerente com toda
a dinâmica ritual por ele descrita: a ênfase na experimentação.
A música eletrônica, para Arlequim, não deveria servir "simplesmente [...] pra ter o
sucesso, pra ter o reconhecimento", mas principalmente para "causar uma sensação, uma coisa
diferente, evoluir". Justamente por isso, ele vê a "experimentação" (o "trabalhar com a cabeça das
pessoas") como o seu "principal fundamento", como um "conceito" que a distingue de outros
tipos de música. "A música eletrônica como uma ferramenta experimental, uma ferramenta de
mudança, capaz de mudar alguma coisa".39 Daí a distinção da música eletrônica em dois grandes
grupos: a mainstream (as "vertentes [...] mais comerciais") e a underground ("toda aquela cultura
que está envolvida, que foi desenvolvida neste contexto, nesta cultura da música eletrônica").40
Quando Arlequim fala em "música eletrônica" ele se refere, na maior parte das vezes
implicitamente, à música eletrônica underground, e não à mainstream. E a diferença entre elas
seria, justamente, a ênfase na experimentação (no caso da underground) ou no sucesso comercial
(no caso da mainstream).
Vimos como, na cosmologia do DJ Mantrix, o potencial xamânico da música eletrônica
estava diretamente relacionada à sua relativa autonomia com relação aos interesses comerciais do
mercado. Veremos ainda como a distinção underground/mainstream é extremamente difundida
no discurso nativo e serve para distinguir gêneros, músicas, artistas, gravadoras, revistas,
jornalistas, eventos etc. considerados "autênticos" daqueles considerados superficiais, passageiros
e exteriores à "verdadeira cena". No caso de Arlequim, sua associação ao underground é feita nos
seguinte termos:

A gente não tem objetivos comerciais. A gente não tá... preso a fórmulas para ter que ganhar
dinheiro, esse tipo de coisa. Na música eletrônica, uma das coisas que eu mais valorizo é

"autonomia" alcançada se dá com relação a uma realidade que escapa do controle (chamada de "percepção da vida
cotidiana") através da imersão em uma realidade totalmente controlada e controlável (chamada de "sentimento-
techno"), um "controle do descontrole" (Becker e Woebs 1999:60) que Fritz apresenta como condição para que as
pessoas "se sintam suficientemente livres para se soltarem totalmente e ainda assim se sentirem seguras" (Fritz
1999:42). Reynolds, que define as grandes raves comerciais como "espaços altamente organizados planejados para
que jovens enlouqueçam [to freak out] com redes de segurança para evitar excessos" (Reynolds 1999:289),
confirma esta inversão da idéia de TAZ quando afirma que a "rave como zona autônoma temporária se tornou o
clube como prisão-de-prazer [preasure-prision], um campo de detenção para jovens" (Reynolds 1999:382; cf.
também pp. 169 e 245).
39
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001).
40
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001).

73
justamente esse caráter experimental. Os caras fazem músicas, ou fazem remixes, pra trazer coisas
novas, trazer barulhos novos, trazer sons novos, ritmos novos, grooves novos 41

Assim, enquanto o underground é associado a "estilos [...] mais experimentais",42 à pesquisa e à


inovação estética, o mainstream estaria "preso a fórmulas para [...] ganhar dinheiro", menos
disposto a colocar sua posição em risco através da experimentação e, justamente por isso, teria
menos valor estético.43 Outros marcadores diferenciais entre o underground e o mainstream
podem ainda ser encontrados no discurso de Arlequim, como, por exemplo, o uso de discos de
vinil ("que é o nosso símbolo de resistência da música eletrônica underground"44) ao invés de
CDs e o nome do coletivo de DJs que ele ajudou a fundar (o Undergroove), mas teremos
oportunidade de aprofundar esses e outros aspectos da oposição underground/mainstream
adiante. Neste momento, gostaríamos de sugerir que a insatisfação de Arlequim com o "exercício
na sociedade" da música eletrônica parece não levar plenamente em conta as potencialidades
xamânicas que ele mesmo atribui à experimentação estética da música eletrônica underground.
Afinal, se é preciso um certo "fechamento" à intersubjetividade para que haja uma "abertura" aos
questionamentos e experimentações, por que a preocupação com o sentido dado à festa
(assistencialismo, conscientização, ecologia etc.)? Será que a "carência" de sentido que Arlequim
encontra na música eletrônica não é justamente a contrapartida necessária de sua maior potência,
i.e., a "fuga"? Será que as experimentações do DJ durante o momento de fuga – seu "trabalho"
criativo com a percepção, com as sensações, com os sentimentos – não são muito mais eficazes
na produção de uma transformação do que certos discursos que parecem servir acima de tudo
para legitimar socialmente certas festas e para produzir a adaptação social a certos problemas? 45

41
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
42
DJ Arlequim (entrevista por telefone 1, novembro de 2001).
43
O DJ LK, de Porto Alegre (que lançou um CD mixado independente onde se lê, na contracapa, "100%
uncommercial techno"; Fontanari 2003:82 nota 41), afirma que enquanto "o underground teria como ideologia o
som pelo som, toda uma filosofia de como a música afeta as nossas vidas e a mensagem que ela passa", o
mainstream se caracterizaria por "ter como objetivo a movimentação de dinheiro, venda de CDs, festas, etc, tudo
baseado na geração de renda e no capitalismo" (Fontanari 2003:79).
44
DJ Arlequim (entrevista por telefone 2, novembro de 2001). Abordamos o tema das dimensões micropolíticas
envolvidas na escolha da mídia sonora pelo DJ em Ferreira (2004a) e consideramos excessivo aprofundá-lo aqui.
Sobre isso, ver também Fontanari (2003:79-80).
45
Sobre isso, vale considerar que, segundo Fritz, festas com temas conscientizadores ou assistencialistas (ele cita a
Rave for Choice, voltada para a legalização do aborto, a Rave for the Rain Forest, voltada para a arrecadação de
fundos para organizações ecológicas, as Raves to Benefit Aids, voltadas para a promoção do tratamento da Aids, e
a Unleash the Queen, voltada para o combate à homofobia) têm se tornado mais freqüentes à medida em que
pressões sociais e do Estado através da repressão policial obrigam seus organizadores a legitimarem suas festas
enquanto "instrumentos de mudança social" (Fritz 1999:225-6). No caso da Love Parade de Berlim, Birgit Richard
e Heinz H. Kruger afirmam que ela não poderia ser aberta e gratuita para os participantes se não se apresentasse
como "demonstração política" – demonstrando, justamente, a "paz" de seus participantes –, pois só assim seus

74
Essas perguntas não serão respondidas aqui, mas esperamos que até o final deste texto tenhamos
mais elementos para refletir sobre elas.

Cláudio Manoel e "o sentido tribal de dançar"


Cláudio Manoel Duarte de Souza46 (também conhecido como DJ Angelis Sanctus47) é uma
pessoa de grande importância para aquilo que poderíamos chamar de "cena eletrônica
nordestina". Junto com Gil Maciel "e amigos",48 ele criou o coletivo Pragatecno em Maceió
(Alagoas) em janeiro de 1998, com o objetivo de estabelecer, na cidade, "uma rotina de pequenos
eventos de música eletrônica, preenchendo uma lacuna existente".49 Desde então, o coletivo (que
se autodefine como "uma rede sonora em torno do underground"50) se expandiu com a realização
de eventos (inclusive acadêmicos51) relacionados à música eletrônica em diversas cidades do
Norte-Nordeste do país, com o lançamento de um CD52 e com a criação de "filiais" em outros
sete estados.53 A região Norte-Nordeste é assumida como periférica – que, na definição de um
participante da lista "Pragatecno Brasil", corresponde a "todo brasil menos sp e rj [sic]"54 – tanto
por Cláudio quanto pela maior parte do discurso dominante da "cena eletrônica brasileira".55

organizadores podem delegar ao Estado a responsabilidade pelo policiamento do evento e pela posterior limpeza da
cidade (cf. Richard e Kruger 1998:171).
46
Cláudio nasceu em Maceió em 1959. Além de DJ, ele é professor na área de comunicação, webdesigner, jornalista,
produtor cultural e sócio fundador e líder do coletivo de Pragatecno. Defendeu, em 2003, sua dissertação de
mestrado Música eletrônica e cibercultura: Idéias em torno da socialidade, comunicação em redes telemáticas e
cultura do DJ na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.
47
Não trataremos aqui da prática musical do DJ Angelis Sanctus, que toca House e Breakbeat, participa do projeto
musical Quasiduo e tocou no Open Stage da edição de 2004 do megafestival Skol Beats.
48
Cláudio Manoel (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 7 de dezembro de 2001).
49
Pinheiro (*2001).
50
Cf. Pragatecno (*[s.d.]).
51
Como o SoulCyber, realizado em 1999, 2001 e 2002 na FACOM/UFBA com participação ativa do coletivo.
52
O CD duplo Sombinário#1, uma coletânea com 21 músicas de artistas alagoanos, foi lançado em fevereiro de
2000.
53
São elas: o grupo Infinity, de Aracaju (Sergipe); o grupo Cotonete, de Belém (Pará); o grupo Oversonix, de João
Pessoa (Paraíba); o grupo B.U.M., no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro); o grupo RecDJs de Recife (Pernambuco); o
grupo Undergroove, de Fortaleza (Ceará); e a segunda sede do grupo em Salvador (Bahia).
54
André "Urso" Silva (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 25 de novembro de 2003).
55
Segundo o tratado sobre "a engrenagem da existência noturna de São Paulo e do Rio em seu caráter underground"
de Érika Palomino (1999:11), por exemplo, o Nordeste é "praticamente virgem e desconhecido para nós"
(Palomino 1999:271; itálico nosso). Outro exemplo é a auto-intitulada "história do disc-jóquei no Brasil" de
Cláudia Assef, em que o Norte e o Nordeste só mereceram duas páginas (cf. Assef 2003:231-2) – e nisso foram
ainda mais beneficiados do que a região Sul do país, que ganhou apenas um parágrafo (uma ótima etnografia da
"cena eletrônica de Porto Alegre" pode ser encontrada atualmente em Fontanari 2003). A justificativa de Assef
para esta redução do "Brasil" ao Sudeste (quando não a São Paulo) revela bem a dimensionalização da relação
centro-periferia no discurso oficial da "cena": "Não tinha a pretensão de registrar cada pequena cena. Minha idéia
era contar uma história maior e mais ampla, que é a formação do DJ no Brasil. Por isso, parti pra histórias
maiores" (Pinheiro *2003; itálicos nossos). Enfim, mesmo Cláudio, quando narra o surgimento e desenvolvimento

75
Justamente por isso, grande parte da força e do reconhecimento que o coletivo conquistou durante
este tempo56 podem ser atribuídos a um uso estratégico da Internet, principalmente através de um
site onde são divulgados textos, músicas e eventos relacionados ao coletivo e uma lista de
discussões fundada em agosto de 2000.57 Assim, o isolamento causado pela situação periférica do
Norte-Nordeste é contrabalançado por um forte sentimento de comunidade e um intenso
aproveitamento das redes descentralizadas e globalizadas de circulação de informação.58
Os textos de Cláudio interessam a esta pesquisa pois, além de amplamente divulgados no
meio, fazem freqüentemente referência ao xamanismo para descrever o papel do DJ nas festas de
música eletrônica. Cláudio define o DJ como um "xamã cibernético" que "procura criar o clima, o
vibe, para o prolongamento de um estado de espírito comum aos dançarinos", à "sua ciber
tribo".59 O DJ, ele afirma, "assume a função de um orientador da energia coletiva, de um xamã,

da "cena brasilis", apesar de incluir referências ao resto do país e ao Pragatecno, reitera o senso comum de que São
Paulo é "sem dúvida o principal centro de produção da Cultura da Música Eletrônica no País" (Duarte de Souza
2001:71). Falando da exclusão de "cenas periféricas" da maior parte das narrativas sobre música eletrônica no
Brasil, DJ Dolores afirma que "é injusto que a cena mangue do [R]ecife nunca seja citada quando era na sua
essência uma cena de dj (as bandas chegaram depois ...)" (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 25 de
novembro de 2003).
56
O reconhecimento do Pragatecno pela mídia especializada pode ser notado em Matias (*2002), Olivani (*2002),
Avila (*2002), DJ World (*2002:40-1), Beatz (*2003:34-5) e nas suas indicações ao prêmio "Noite Ilustrada" de
2002 e 2003 (este prêmio, segundo sua promotora, "[m]ais do que encarnar o fundamento de 'Oscar do mundinho',
[...] é um reflexo do comportamento jovem, abrigando novas manifestações, refletindo tendências, revelando
personagens e consagrando profissionais e iniciativas do setor"; Palomino *2003:E8).
57
O endereço eletrônico do site do Pragatecno é: <http://www.pragatecno.com.br/>. O endereço eletrônico da lista
de discussão "Pragatecno Brasil" é: <http://br.groups.yahoo.com/group/pragatecnobrasil/>. Segundo texto do
próprio coletivo, a "Pragatecno Brasil" é "uma das 3 maiores listas de discussão sobre cultura do dj do País"
(Pragatecno *[s.d.]).
58
Cláudio fala repetidamente do "trabalho reduzido e difícil pelo isolamento de informação" e da necessidade de "a
cena de outras regiões ficar atenta para a cena do norte-nordeste" (Pinheiro *2001). Mas ele também fala com
freqüência sobre como as dificuldades de se "estar fora do principal circuito de eventos do país (São Paulo)" geram
um maior "afeto e dedicação à cultura" e fazem da Internet a "conexão global de nosso trabalho" (DJ World
*2002). "[V]ivemos [...] na periferia [...] de um País de Terceiro Mundo [...] com menos recursos, menos
possibilidades, enfim, o que, a meu ver, só engrandece e finca mais bases fortes para nossa vontade, nosso desejo,
nosso motor"; "o desejo, por ser o motor, nos joga para adiante à procura de mais prazer, para alimentar a vida, ela
mesma [...], e as redes telemáticas, cheia[s] de ondas, fios bits e idéias ainda funcionam como nossas [...] grandes
aliadas" (Duarte de Souza, in: Michalick *2003b) É interessante notar como as mesmas relações entre isolamento
da periferia (através de palavras como "província", "colônia", "interior"), sentimento de comunidade e uso
estratégico da Internet para conexões globais aparecem no discurso dos ravers de Porto Alegre (cf. Fontanari
2003:64-5). Fontanari revela ainda uma curiosa relação entre underground e "provincianismo", mostrando como o
fato de a "cena de Porto Alegre" ter "dimensões menores" do que a de São Paulo é visto como uma "vantagem: o
'sentimento verdadeiro', a 'aura' da música eletrônica permanece, ao contrário do que já teria ocorrido em outros
lugares, onde, em virtude de sua ampla difusão [...], teria se 'prostituído'" (Fontanari 2003:82). Soul Slinger, um DJ
brasileiro de Drum'n'Bass radicado em Nova Iorque, sintetizou essa concepção "periférica" e "provinciana" de
underground: "Eu acho que o DJ underground é o DJ local. Eles são os mais importantes. Eu estou perto de Nova
Iorque. O DJ underground de Seattle estará perto de Seattle. Eles serão os verdadeiros DJs" (DJ Soul Slinger, in:
Reighley 2000:204).
59
Duarte de Souza (2001:64).

76
através da música hipnótica";60 ele "mixa, mistura, aumenta e diminui as bpms, as velocidades
das batidas, o ritmo dos sons repetitivos e minimalistas", ele "controla o êxtase, a vibração (vibe),
a energia" do "ritual coletivo da dança".61 Cláudio faz referência, entre outros, ao MC Mr.C, para
quem "o bom DJ hipnotiza a pista, desenvolve uma relação telepática e xamanística com as
pessoas"62 e ao site Hyperreal, onde se lê que "[n]uma rave, o DJ é um xamã, um padre, um
canalizador de energia", que "raves são comparáveis às cerimônias religiosas dos índios
americanos [...] e também ao conceito do xamã nas sociedades Esquimó e siberianas" e que "o
efeito hipnótico da música Techno, junto com as transições contínuas e progressões temáticas dos
DJs ao longo da noite numa rave, podem ser bastante intoxicantes, resultando em algo muito
próximo e comparável a uma experiência religiosa".63
Reencontramos aqui, de maneira concentrada, ecos de um mesmo discurso já visto com
Mantrix, Lemon e Arlequim, que conecta rituais indígenas (o "tribal"), experiência religiosa
("Mantras" e "transcendência"), estados alterados de consciência ("transe", "êxtase", "hipnose",
"telepatia" e "alucinação") e música eletrônica (geralmente assumida como underground) e que
pode ser encontrado, nas mais variadas formulações (e muito comumente com a mesma
formulação), em inúmeros sites na Internet, sendo impossível dizer quem o formulou

60
Duarte de Souza (2001:67). Como já vimos, apesar da percepção de Mr. Lemon (que retomaremos adiante) de que
pode haver xamanismo na música eletrônica sem que o DJ seja um xamã, a associação direta entre os indivíduos
xamã e DJ parece ser muito arraigada no discurso nativo, principalmente em seus momentos mais estereotipados,
como na seguinte passagem: "Muito tempo atrás, quando o homem vagava pelas savanas empoeiradas tentando
encontrar a melhor forma de surpreender um mamute peludo, ele percebeu que sua experiência era dividida
nitidamente entre o dia e a noite. À luz do dia ele era um animal nu, presa fácil para os animais maiores do que ele;
mas quando a noite caía ele se juntava aos deuses. Sob o céu estrelado, com tochas flamejantes que ofuscavam sua
visão e exércitos de percussionistas martelando uma batida incessante, ele ingeriu algumas raízes e frutos sagrados,
abandonou os tabus da vida cotidiana, acolheu os espíritos em sua mesa e se juntou a seus irmãos e irmãs na dança.
[...] Com freqüência, havia alguém no centro disso tido. Alguém que fornecia as plantas festivas, alguém que
iniciava a ação, alguém que controlava a música. Essa figura – o feiticeiro, o xamã, o padre – era um pouco
especial, ele tinha certo poder. [...] Hoje (sem querer ofender os rabinos e padres, que fazem o melhor que podem)
é o DJ que assume esse papel." (Brewster e Broughton 2000:4-5)
61
Duarte de Souza (2001:64; itálicos no original).
62
Duarte de Souza (2001:67). O original é Rodrigues (*1998). Vale notar que MC Mr.C foi membro de um grupo de
Pop-Rock eletrônico chamado The Shamen ("os xamãs"). A sigla "MC" é normalmente definida como a abreviação
para Master of the Ceremony, que é aquele que canta/fala sobre as bases eletrônicas dos DJs. A dupla MC e DJ é a
formação básica dos grupos de Rap (cf. Toop 2000a), e também é muito comum no Funk carioca (cf. Macedo
2003) e no Drum'n'Bass (cf. Gerard e Sidnell 2000).
63
A formulação original, com trechos suprimidos na tradução, é: "At a rave, the DJ is a shaman, a priest, a
channeller of energy [...]. A[t] the base level, raves are very comparable to American Indian religious ceremonies,
i.e. pow-wows, and also to the concept of the Shaman in Eskimo and Siberian society – where music is the key
towards pulling oneself into a unique emotional and psychological state, a state in which one experiences washes
of sensations and visions, not delusions, but visions. Sounds very hokey in print, but I'm sure MANY of you out
there know what I'm talking about. The hypnotizing effect of techno music coupled with the seemless [sic]
transitions and thematic progressions of rave DJ's as the night progresses can be QUITE intoxicating, resulting in
what could be closely compared to a religious experience." (Hyperreal *[s.d.])

77
originalmente.64 Mas se mais importante do que a autoria deste discurso compartilhado é a
concretude da experiência comum que sua reiteração sugere, poderíamos perguntar, junto com
Cláudio: "Qual [é], então, a relação entre a dança tribal dos povos mais antigos com as
contemporâneas raves? A alta tecnologia se encontra com alguns velhos sistemas de crença?"65
Ele mesmo nos dá sua resposta:

Realmente o conceito de Rave não é (tão) novo. Ele se compara às cerimônias indígenas religiosas,
como as do[s] Pow-wows americanos, ou [d]os cânticos noite adentro dos índios Truká (do interior
de Pernambuco), que usam a música repetitiva e a droga jurema para contactar um mundo mágico.
A música é a chave para despertar um novo estado psicológico único de transce[n]dência coletiva
[...] [e] as drogas, como o Ecstasy e o ácido, presentes em toda a trajetória da música eletrônica e
na cena rave, aprofundam esse conceito xamânico66

As referências aos povos indígenas parece se dar, assim, a partir da percepção de que tanto nas
festas de música eletrônica quanto em certos rituais indígenas encontra-se o uso conjugado de
drogas e música repetitiva para alcançar estados alterados de consciência (descritos como
"transe", "êxtase", "transcendência", "hipnose", "telepatia" e outros). Já vimos que o discurso
nativo não desenvolve o tema do uso ritual das drogas na música eletrônica para além da
constatação de que "ninguém pode separar a cena rave do uso de drogas"67 e, ao mesmo tempo,
de que essa relação indissociável não é necessária ao xamanismo mas apenas um "elemento
acidental".68 O mesmo não ocorre, no entanto, com o outro ponto em comum entre rituais
indígenas e eletrônicos, a música repetitiva, que é objeto de elaborações muito mais detalhadas.
Em seus escritos, Cláudio faz repetidamente referências à natureza repetitiva da música
eletrônica e ao papel desta repetitividade em sua função ritual. Retomando e enriquecendo a
oposição que já vimos em Fry entre a música eletrônica de pista e a música popular tradicional,69

64
Exemplos particularmente interessantes desse discurso na Internet são: DJ Thomas (*[s.d.]); Hyperreal (*[s.d.];
principalmente a seção dedicada ao "tecnoxamanismo"); The Cyberpunk Project (*[s.d.]); Groothuis (*[s.d.]);
Castle (*1998); Lopiano-Miscom (*1998); Green (2001); DJ Mantrix (*2001); Miller (*2001); Borges (*2003).
65
Duarte de Souza (2001:64).
66
Duarte de Souza (2001:64-5).
67
Mas Stiens, in: Duarte de Souza (2001:65).
68
Mantrix (*2001; item 14).
69
Fry (*1999a:A6). Cf. na Introdução a seção "A definição do tema desta pesquisa", acima. Questionado sobre a
repetitividade que caracteriza o Techno (estilo baseado no pulso constante) o DJ Camilo Rocha constatou que a
repetitividade é mesmo "a essência" da música eletrônica, e quando levantamos o contra-exemplo da maior
diversidade rítmica do Drum'n'Bass (estilo baseado em breaks) ele esclareceu: "É que tem duas coisas que eu acho
legais no som que eu gosto de tocar: é o groove, o swing, a levada da música; e a repetição na sua cabeça, que tem
um certo efeito hipnótico. Até o que você está ouvindo igual, depois de um tempo começa a ficar meio diferente,
porque as freqüências que estão na sua cabeça girando e se acumulando já começam a produzir efeitos diferentes.
Então tem esse efeito meio hipnótico que eu acho legal. [...] Quem quer ouvir variação a cada um minuto tem que
ouvir música Pop, na verdade, e não ouvir música eletrônica. Entendeu? E tanto é que o Drum'n'Bass, na verdade, é

78
Cláudio aponta que, diferentemente da repetição na "canção tradicional", associada à "ausência
de criatividade", na "música eletrônica voltada para as pistas" "o loop,70 o sample sequenciado –
a repetitividade – é [...] um elemento fundamental em sua estética." Segundo Cláudio, na música
eletrônica "haverá sempre uma batida (beat) repetida (em loop), acompanhada de elementos
percussivos (groove71), também em loops, repetidos [...] [e] [o]utros elementos, como layers
(camadas, texturas) e efeitos, [que] se sobrepõem aos beats e grooves".72 "Reclamar da
repetitividade na música eletrônica", ele sintetiza, "é como reclamar do som tribal e repetitivo dos
índios, ou reclamar dos mantras indianos."73 É, portanto, a partir desta "estética da repetição" que
são feitas as conexões mais elaboradas não apenas "com o som tribal produzido pelos povos
indígenas", cuja estética possuiria "elementos baseados na repetição de ritmos e cânticos, feito o
loop nos samplers dos djs", mas também com os Mantras, "versos místicos indianos [que]
adquirem poder, pois se baseiam na repetição e buscam uma melhor integração do homem com o
Cosmo".74

o ritmo que mais se presta a fazer versões Pop, um crossover Pop [...], os maiores hits de rádio eletrônicos são
Drum'n'Bass [...] [e] a batida do Drum'n'Bass chega até a ser parecida com a batida do Rock [...]. Techno, junto
com Trance, talvez tenha esse lado que é um pouco mais minimalista, mais repetitivo mesmo. Isso porque eu nem
toco Techno minimalista. Tem uns que são bem mais repetitivos, que são mais lineares ainda." (Camilo Rocha,
entrevista 10 de maio de 2003) O que Camilo opõe aqui é menos a repetitividade à variação ou o Techno ao
Drum'n'Bass e mais a predisposição em se deixar levar pelo groove de um loop repetido e variado
experimentalmente à expectativa pelas repetições e variações padronizadas da música Pop. Ele não opõe estilos
(que têm variantes underground e mainstream), mas sim tendências.
70
Definido por Cláudio como "a auto-repetição do som" (Duarte de Souza *2001a).
71
Vale citar aqui a definição de groove de Cláudio Manoel: "A palavra não tem tradução perfeita, literal. Mas é em
última instância o que conhecemos como a 'levada' da música. O encontro do beat (batida) com um outro som
percussivo mais grave ou com umas poucas notas mais graves do baixo normalmente em contra-tempo pode ser um
groove dos bons – é a síntese do ritmo de uma música. [...] Groove é o encontro de sons percussivos em contra-
tempo [...] com as batidas, os beats. [...] Na música eletrônica, o groove, a levada, é fundamental para mostrar até
que ponto ela experimenta, inventa, e se torna irresistível para quem gosta de dançar. Uma música pode ter um
bom vocal, bons arranjos, boa melodia, mas faltar groove compromete aquela vontade irresistível de dançar. Essa –
sem groove – é uma música sem tanto apelo de pista, sem ritmo contagiante. É o groove o responsável pelo melhor
momento do ritmo e a principal estrutura da música eletrônica de pista. Uma música com groove dos bons, balança
nosso corpo e faz nosso corpo – nossa carne, literalmente – sentir a música." (Duarte de Souza *[s.d.]b)
72
Duarte de Souza (*2001a). Becker e Woebs ilustram a repetitividade inerente à música eletrônica exibindo uma
representação gráfica de uma "produção techno" gerada pelo programa de computador Cubase (Steinberg), muito
usado por DJs e produtores de música eletrônica, onde tudo o que se vê são seqüências de quadrados e retângulos
alinhados, sobrepostos e intercalados por espaços vazios (como uma "parede sonora" em que cada camada
horizontal apresenta tijolos de tamanhos diferentes e com alguns buracos estratégicos), cada quadrado
representando um som diferente e cada seqüência um certo número de repetições desse som (cf. Becker e Woebs
1999:62).
73
Duarte de Souza (*2001a). Ele faz ainda uma referência ao "som incrível do Zambiapunga (folclore do interior
baiano)", que "é bem repetitivo, e feito com conchas do mar e enxadas" (Duarte de Souza *2001a).
74
Duarte de Souza (2001:64; itálicos no original). Segundo DJ Science, "a repetitividade é útil para estabelecer um
estado de espírito ou sentimento 'tribal', um estado que promove a dança e o transe" (DJ Science, in: Fritz
1999:80). A mesma associação entre repetição, rituais indígenas e transe foi feita por um informante de Fontanari:
"a magia da música eletrônica é a mistura [...] desse tribalismo, que é a repetição [...], que os indígenas faziam
aquela repetição naqueles tambores, sempre a mesma coisa, com a tecnologia [...], que é um negócio da nossa era,

79
Repetitiva, feito o som tribal dos índios, a música eletrônica é um mantra tecnológico disponível
para promover a alegria e "resgatar – como diz o dj Marcos Morcerf – o sentido tribal de dançar".75

O loop na música techno, além do caráter estético, cria a atmosfera de hipnose. É o efeito paralelo
da repetição no mantra.76

A música eletrônica é um cibermantra, um mantra tecnológico!77

É possível dizer que a comparação entre o poder ritual da repetição na música eletrônica e o
poder ritual da repetição no Mantra é, em si, um verdadeiro Mantra do discurso nativo.78 Já vimos
como o tema está presente tanto no discurso do DJ Mantrix (aliás, em seu próprio "nome
artístico") quanto no de Mr. Lemon, sempre associado aos "rituais tribais indígenas". A retomada
do tema por Cláudio apenas reforça a sua importância para a compreensão da experiência
xamânica na música eletrônica. O fato de que todas essas referências às relações entre
"cerimônias religiosas", "rituais" dos "povos indígenas" e "mantras indianos" e as festas de
música eletrônica são, na maior parte das vezes, totalmente intuitivas e carentes de qualquer
elaboração para além da sua afirmação pura e simples, não deverá nos preocupar. Não se trata
aqui de exigir do discurso nativo alguma adequação a um conhecimento já estabelecido sobre o
tema, mas sim de descobrir aquilo que esse discurso pode nos mostrar de novo sobre ele. Sobre o
que fala esse discurso nativo quando afirma que "o mesmo impulso humano básico que estimulou
e inspirou povos primitivos a pularem em suas cavernas e se reunirem num sábado à noite está
emergindo novamente na cultura rave para satisfazer as mesmas necessidades fundamentais"?79
Como entender a insistência desse discurso na nossa "ancestralidade primitiva", em "nossos
ancestrais tribais"80 que "dançavam em volta da fogueira e entravam em transe"?81

que é o computador, que são as máquinas, então a fusão dessa tecnologia de agora com esse primitivismo tribal, da
repetição, faz uma fusão que é magia [...], entra todo esse lance do transe, assim, de um ritual" (Juliano, in:
Fontanari 2003:162).
75
Duarte de Souza (2001:67).
76
Duarte de Souza (*2000)
77
Duarte de Souza (*2001a).
78
Já em 1975, o DJ Steve D'Aquisto (que tocou em Nova Iorque nos anos 70 e ainda hoje trabalha com música) dizia
que "a música de discoteca [Disco music] é um mantra, uma oração" (Steve D'Aquisto, in: Brewster e Broughton
2000:164).
79
Fritz (1999:31). O tema das "necessidades/instintos humanas fundamentais/básicas/tribais" é recorrente em Fritz
(cf. 1999:46, 87, 170, 173, 217, 265). Nas palavras de um raver canadense: "As pessoas têm hoje as mesmas
necessidades tribais que sempre tiveram, e a cena rave está satisfazendo essas mesmas necessidades humanas
básicas incrementadas com tecnologia [with technology in the mix]" (Leandre, in: Fritz 1999:173).
80
A idéia de que as festas de música eletrônica são uma atualização de rituais que "nossos ancestrais
primitivos/tribais" faziam em tempos pré-históricos é encontrada repetidamente no discurso nativo. E.g.: Fritz
(1999:4-6, 27, 40-1, 46, 99, 169-71, 265,); Reynolds (1999:169); Brewster e Broughton (2000:4-5); Green (2001:5,
10); Fontanari (2003:162); Jones (*1994:1); Borges (*2003); Shivaya (*[s.d.]); DJ Thomas (*[s.d.]). Na

80
Aparentemente, para além das diferentes direções que cada vertente particular desse
discurso prefere privilegiar, há uma idéia principal que parece sustentar essa constante reiteração
da relação entre a experiência xamânica da música eletrônica e os rituais religiosos orientais e
indígenas: a experiência do transe. A partir de uma síntese dos temas do discurso nativo
referentes aos rituais religiosos e indígenas (cf. Quadro 6), parece-nos que o foco principal e
objetivo comum de todos eles é a produção de "estados alterados de consciência", dentre os quais
o transe é o mais citado.

Pontos em comum entre festas de


música eletrônica e rituais indígenas
• estados alterados de consciência (transe, êxtase, hipnose, telepatia etc.)
• ambiente imersivo (música alta, luzes, decoração etc.)
• música repetitiva
• mantra
• DJ como xamã (orientador da energia coletiva)
• jornada xamânica
• experiência religiosa (transcendência)
• experiência psicossomática
• drogas
Quadro 6 – Quadro sintético de temas do
discurso nativo relativos a rituais indígenas.

A jornada xamânica propiciada pelo uso que o DJ faz da música repetitiva-mântrica em um


ambiente imersivo e normalmente associado ao uso de drogas é, portanto, aquilo que faria do
transe uma experiência religiosa e psicossomática de cura, de transformação. Tudo girando em
torno do transe, da sua produção e de sua correta condução, é preciso entender melhor como essa
experiência é vivida pelo DJ e pelo seu público, suas diferentes qualidades, orientações e
conseqüências. Para isso, será útil conhecer melhor as duas tendências principais na qualidade da
experiência da música eletrônica identificadas pelo discurso nativo: o underground e o
mainstream.

formulação direta de Fritz: "A rave é parte de um processo evolutivo que começou com nossos ancestrais das
cavernas e continua forte no mundo veloz de hoje. Quanto antes aprendermos a aceitar e valorizar nossa herança
tribal, mais cedo perceberemos que somos de fato uma tribo global com necessidades interdependentes e um
destino comum." (Fritz 1999:265)
81
Ainda Fritz, um porta-voz privilegiado desse discurso extremamente difundido: "Em tempos pré-históricos, nós
pintávamos nossos rostos e dançávamos em volta da fogueira, mas à medida em que nos sofisticamos, o mesmo
ocorreu com nossos rituais." (Fritz 1999:170)

81
82
Capítulo 3
Micropolíticas do Underground

83
84
Assim, decidi levar meu trabalho de volta ao
underground, para que ele deixasse de cair nas
mãos erradas.1

1
"So, I've decided to take my work back underground, to stop it falling into the wrong hands" (The Prodigy
a1994:1).

85
86
Vimos, no discurso de Mantrix, Lemon e Arlequim, como a diferença entre o underground e o
mainstream está diretamente ligada àquilo que eles identificam como sendo a potência criativa e
experimental que está na base do xamanismo da música eletrônica e que se opõe aos interesses
comerciais e adaptativos da música Pop convencional. Vimos também, com Cláudio, que é a
experiência do transe, provocada principalmente pela natureza repetitiva e experimental da
música eletrônica underground, que a aproxima do xamanismo indígena. Vejamos agora com
mais detalhe as especificidades daquilo que o discurso nativo chama de underground, suas
micropolíticas, para que possamos entender em que sentido, afinal, o xamanismo da música
eletrônica é, necessariamente, um fenômeno underground.

O underground, o mainstream e o overground


Segundo Cláudio, "nem toda música eletrônica, por ser eletrônica, tem qualidade": "[t]ambém
existe música eletrônica feita só para dar lucro às empresas" e "[a]o dizermos que gostamos da
música eletrônica 'underground', queremos deixar claro que é a música não comercial".2 A
"estética da repetição", a ênfase na "experimentação", a valorização da "inovação", são, como já
vimos até aqui, características que definem uma aproximação alternativa, underground, da
música eletrônica, em oposição às músicas populares tradicionais, à música "comercial", ao
mainstream.3
Em um texto dedicado ao tema, Cláudio define underground da seguinte forma:

O "underground" é aquilo que abre mão dos interesses de lucro e aposta na busca de novidades e se
manifesta contra o que é comum, contra o tradicional, o já conhecido, propondo novas formas de
cultura. [...] É o que não está vinculado aos inte[r]esses do mercado de consumo tradicional,
"mainstream", meramente comercial, sem preocupação com a experimentação artística ou com as
culturas "alternativas".4

2
Duarte de Souza (*2001b). Existem nomes específicos usados para se referir à música eletrônica mainstream, como
"poperô", "baba" e "dance". O primeiro foi usado, por exemplo, pelo DJ e jornalista Camilo Rocha para distinguir
os "sons de caráter underground, experimentais e radicais na forma" que eram tocados nas raves que surgiam em
São Paulo em 1997 do "infame 'poperô' que impregna as ondas do rádio e o som das casas comerciais" (Rocha
*1997). O segundo foi definido por Cláudio e Arlequim em seu "manual para DJ" como: "Dance Music feita
apenas para fazer sucesso. Música com apelo simplesmente comercial de timbres, arranjos e vocais fáceis." (DJ
Arlequim e Duarte de Souza *2003). O terceiro foi usado pelo coletivo Electronic Alternative Resistance (EAR)
para designar o estilo "comercial", "bastante popular" e "[m]usicalmente não tão interessante": "Se você é um
produtor musical e quer ter bastante dinheiro, este é 'o' estilo!" (EAR *2001) Assef define "música eletrônica
underground" como "aquela sem absolutamente nenhum compromisso comercial" (Assef 2003:151).
3
A relação entre o underground e o conceito modernista de vanguarda foi notado por Poschardt (1998:20) e Bacal
(2003:70-2).
4
Duarte de Souza (*2001b).

87
Mas o underground não apenas se "opõe" ao mainstream, ele também se "antecipa" a ele, como
bem apontou uma jornalista nativa:

[B]asicamente consideramos o underground como o movimento formado por quem trabalha "por
baixo". Sem celebridades. Criando antes o que vai ser mastigado, "descoberto" pela mídia. E
quando é digerido – ou hypado – o underground muda para renascer com outra música, outros
personagens e outros espaços.5

Antecipando-se ao mainstream, o underground constitui como que uma espécie de reserva


permanente de novidades sempre um passo à frente dele. Fortemente ligada a essa capacidade
permanente de antecipação criativa do underground está aquilo que poderíamos chamar de suas
políticas de segredo e exclusividade.6 Já havíamos visto como Mantrix valorizava o
conhecimento esotérico, tipicamente compartilhado por "poucos". Agora percebemos que essa
valorização é também a da potência do desconhecido, do poder dos "segredos do underground
que o mainstream não sabe como cavar ainda e transform[ar] em lucro" e que, mesmo se
capturados, logo darão lugar a novos "segredos".7
Seja como oposição, seja como antecipação, seja como segredo, o que se nota
repetidamente no discurso nativo é que, na maior parte das vezes, o underground parece só poder
ser definido como a negação de algo que ele não é, i.e., o mainstream. Assim, apesar de ser
ocasionalmente definido positivamente pela experimentação, pela inovação, pela antecipação,
pelo compromisso ético e estético, por uma certa "ideologia"/"filosofia", o mais comum é
encontrá-lo definido negativamente pela oposição ao "lucro", ao "comum", ao "tradicional", ao
"já conhecido", enfim, ao mainstream. E mesmo quando definido positivamente, o fato é que

5
Lubna (*2001). Fritz corrobora essa definição ao afirmar que o underground é a base de uma pirâmide invertida, ou
seja, a ponta minoritária sobre a qual toda a pirâmide se equilibra (cf. Fritz 1999:103), e Brewster e Broughton a
completam então com sua "conclusão otimista" de que "sempre haverá um underground" (Brewster e Broughton
2000:407).
6
É a "restrição", a "inacessibilidade", o "controle de circulação" que, segundo Thornton, valoriza aquilo que ela
chama de "capital subcultural" (Thornton 1996:161). Um exemplo típico desta restrição da circulação de
informações na música eletrônica é a retirada, troca ou rasuração do selo de discos especialmente valorizados, para
garantir a exclusividade perante DJs mal-informados, que assim ficam sem saber o nome do disco que faz tanto
sucesso nos sets de seus concorrentes. Acredita-se que essa prática tenha começado com DJs jamaicanos nos anos
50 (cf. Brewster e Broughton 2000:52; Reighley 2000:55), mas ela logo se difundiu para DJs de diversos estilos de
todo o mundo – alguns casos são os DJs de Northern Soul na Inglaterra dos anos 70 (Brewster e Broughton
2000:101), de Funk e Hip Hop na Nova Iorque dos anos 70 e 80 (Brewster e Broughton 2000:222-1; Reighley
2000:55), de Funk no Rio de Janeiro dos anos 80 (Vianna 1988:26; Macedo 2003:51) e de Reggae em São Luís do
Maranhão nos anos 80 (Rodrigues da Silva 1995:52). Essa lógica exclusivista parece ser a mesma daquilo que o DJ
e produtor brasileiro de Drum'n'Bass XRS chamou de "a máfia do dubplate", referindo-se à prática comum dos "top
produtores" ingleses de entregar suas músicas "apenas aos seus DJs favoritos", que então têm exclusividade sobre
elas: "É uma máfia mesmo, mas de proteção. Eu tenho muito ciúmes da minha música" (XRS, in: Katia *2003a:24)
7
Duarte de Souza (*2005). Reynolds falou de um certo "conhecimento esotérico" que é "constantemente reiterado"
pelos participantes da "cena", mas "nunca traduzido" para o mainstream (cf. Reynolds 1999:245).

88
conceitos como "experimentação", "inovação", "antecipação" e compromissos éticos e estéticos
são vagos o bastante para impedir qualquer delimitação nítida do underground que não seja, em
algum nível, negativa, ou pelo menos relacional (i.e., relativa àquilo que ele não é). O que é
experimental para uns pode ser tradicional para outros (ou mesmo para as mesmas pessoas em
um outro contexto). Músicas que eram underground em um momento ou contexto podem se
tornar mainstream em outros. Consumidores de música mainstream podem, sem contradição,
tornarem-se adeptos do underground.8 "O underground", afirma Sarah Thornton, "se alia a
sistemas de moda altamente relativos; é tudo uma questão de posição, contexto e oportunidade
[timing]".9
Mas se por um lado o underground é, em sua concepção mais geral, aquilo que não é o
mainstream, este parece ser simetricamente definido como aquilo que não é o underground.
Segundo Cláudio, "o mainstream, como o nome diz, é a principal via, [é] a mídia mesmo, o que
circula de forma massiva e com intenções populares, de popularização, com vistas a ter um
retorno maior de difusão e como conseqüência de lucro."10 O mainstream são sempre "eles", os
"outros", aqueles que não se preocupam com os princípios éticos da experimentação, da
inovação, da pesquisa, e nem com os princípios estéticos da qualidade, do estilo, do bom gosto.11
"Eles" só pensam no sucesso e no lucro, e passarão por cima de todos os princípios para alcançar

8
Fontanari cita o caso do raver Juliano, que passou de uma fase mainstream "de 'deslumbramento'" com a música
eletrônica, "em que se 'fantasiava' e pintava o cabelo para ir nas festas", para uma fase underground, "em que ficou
barbudo depois de se aproximar da ideologia dos DJs [...] que lhe mostraram o lado 'caverna', 'sujo', da música
eletrônica" (Fontanari 2003:43). Veremos adiante que a passagem do mainstream para o underground é descrita
pelo discurso nativo como, na verdade, uma disseminação maior do underground no mainstream (o fluxo é sempre
do underground para o mainstream).
9
Thornton (1996:118). A socióloga cita o exemplo de coletâneas de Dance Music consideradas mainstream pelos
clubbers ingleses que, freqüentemente, traziam músicas que haviam sido underground apenas seis meses antes
(Thornton 1996:118). Apesar de sua descrição dos ravers ingleses – acusados implicitamente de "elitismo e
discriminação sexual e etária" (cf. Hesmondhalgh 1998a:250) – dificilmente poder ser generalizada para além do
contexto britânico, o trabalho de Thornton é esporadicamente citado no discurso nativo e tem o mérito de enfatizar
a natureza êmica e relacional do par underground/mainstream (são, enfim, marcadores diferenciais nativos), que
não deve ser tomado irrefletidamente como categoria analítica (cf. Thornton 1996:114-8).
10
Cláudio Manoel (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 10 de novembro de 2001).
11
Thornton propôs uma tabela sintetizando a oposição entre mainstream e underground no discurso dos clubbers
ingleses, intitulando aquela de "eles" e esta de "nós" (Thornton 1996:115). Fontanari também confirma que, entre
os ravers de Porto Alegre, "'underground' aparece sempre como autoreferido, enquanto 'comercial' é uma categoria
de 'acusação'" (Fontanari 2003:24), e também Bacal revela que "a maioria dos DJs que entrevistei se pensa
trabalhando em cima de música underground" (Bacal 2003:12 nota 6) – Fontanari e Bacal usam a teoria de Norbert
Elias sobre os "estabelecidos" e os "outsiders" para trabalhar as relações entre o underground e o mainstream (cf.
Fontanari 2003:110-1 e 158; Bacal 2003:72). Ulf Poschardt, falando sobre DJs norte-americanos dos anos 60,
também notou que os "DJs underground não se limitavam a tocar música inovadora, eles também era os
responsáveis por estabelecer as fronteiras entre o underground e o mainstream" (Poschardt 1998:82).

89
seus objetivos. E, principalmente, "eles" são a maioria.12 Mas se o par relacional do underground
parece ser o depositário de todos os valores contra os quais ele se opõe, seria um equívoco
reduzir a oposição underground/mainstream a um maniqueísmo absoluto.
Em primeiro lugar, é preciso notar que os próprios DJs, mesmo os que se dizem
underground, encaram positivamente o reconhecimento do seu trabalho pela mídia e o retorno
financeiro que isso pode trazer. O coletivo Pragatecno, por exemplo, apesar de declaradamente
underground, ainda assim busca alguma legitimação pelos grandes meios de comunicação e seus
membros e simpatizantes vibram (por exemplo, através de declarações na lista "Pragatecno
Brasil") quando o grupo é contemplado com reportagens de circulação nacional13 ou quando
algum de seus DJs ganha destaque em algum evento comercial de maior porte (como quando DJ
Angelis Sanctus foi escalado para tocar no megafestival Skol Beats de 200414). Em segundo
lugar, muitos DJs e participantes da "cena" criticam seus companheiros mais puristas e zelosos do
underground acusando-os de preconceituosos e elitistas quando usam argumentos de "bom
gosto" para deslegitimar artistas, gêneros ou eventos.15 As políticas de exclusividade do

12
"Maioria implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é
avaliada. [...] A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário. Supõe o metro padrão e não
o contrário." (Deleuze e Guattari 1995b:52).
13
Cf. Matias (*2002), Olivani (*2002), Avila (*2002), DJ World (*2002:40-1), Assef (2003:231-2) e Beatz
(*2003:34-5).
14
A ida à edição de 2003 desse festival fez parte desta pesquisa e pudemos constatar como a enorme quantidade de
pessoas (muitas com menos de 18 anos, em situação irregular; cf. Medeiros e Del Ré *2003, Del Ré *2003), de
comércio e de publicidade fez do evento, no geral, uma mistura grandiosa de "shopping center em véspera de natal"
e "playground eletrônico" (Medeiros *2003b), impressão que não foi só nossa: "É como se estivéssemos num
parque de diversão", afirmou uma "mulher-com-jeito-de-menina" de 29 anos e "visual estudantil" (cf. Del Ré
*2003); "acho o Skol Beats uma coisa meio playground, falta uma mensagem forte" (Carcará, DJ e designer, in:
Pinheiro e Passarelli *2003c); e houve até quem se sentiu "em uma quermesse" (Renata, designer e promoter do
Rebordose Eletrônica, in: Pinheiro e Passarelli *2003c). Isso pode ser explicado pela opção da empresa Skol –
"líder de mercado, com 32,5% de market share" (Medeiros *2003a) – por fazer do festival a "sua maior aposta na
conquista de um consumidor jovem" (Medeiros *2003a): "Esses eventos são uma forma muito eficaz de atingir
nosso público-alvo, jovens de 18 a 30 anos, e transmitir a imagem de modernidade e ousadia", disse o gerente
nacional de marketing da empresa (cf. Mello *2003), cujas palavras são também as das empresas contratadas para
prestar serviços no festival (cf. Lacerda *2005). O lado shopping center do festival é tão evidente que na sua edição
de 2005 ele se explicitou como a "Electro Hype Fair", com "2.600 m2 de estandes divididas entre equipamentos
para DJs, telefonia, reprodutores de MP3, moda, piercings, tatuagens [...], além de cabeleireiros, restaurantes, bares
e uma área reservada para pequenas amostras de danceterias [...], sites de música eletrônica e revistas
especializadas" (Deodato *2005b). Ainda sobre como shopping centers em véspera de natal se tornam facilmente
pistas de dança (para desespero dos lojistas desavisados), cf. Dantas (*2005). Um evento comercial duradouro que
assume abertamente o seu lado "playground" é a festa E-Force, realizada anualmente no parque de diversões
Playcenter (São Paulo) desde 2002.
15
O Funk carioca é um típico exemplo desse conflito do underground: enquanto alguns o consideram populista, de
baixa qualidade, esteticamente pobre, de mau gosto e facilmente digerível pela mídia, outros afirmam ser ele a
única música eletrônica verdadeiramente underground, independente (pois que se sustenta sem o apoio da grande
mídia) e legitimamente brasileira. Para muitos, o Funk carioca é "a autêntica música eletrônica brasileira" (Ferla
2004:80), opinião defendida com freqüência pelo mais destacado DJ do estilo, o DJ Marlboro, para quem o Funk
carioca é "a verdadeira música nacional eletrônica" (DJ Marlboro, in: Pimenta *2003b). Segundo os integrantes da

90
underground, nesse caso, teriam seus critérios questionados, por serem vistos mais como um
elitismo que exclui a criatividade do que como uma tentativa de preservar essa criatividade do
processo de banalização do mainstream. Além disso, é importante notar que, para muitos DJs, a
opção pelo mainstream é menos uma escolha estética do que um imperativo sócio-econômico.
Quanto a esse último ponto, vale citar o exemplo do DJ Ramilson Maia.16 Hoje
nacionalmente reconhecido como DJ e produtor tanto por seu trabalho solo quanto por seu grupo
Kaleidoscópio, Ramilson sempre enfatiza, em suas entrevistas, as dificuldades que sua "origem
humilde" colocaram para o desenvolvimento de sua carreira,17 assim como sua constante
preocupação com o reconhecimento de sua arte.18 Para ele, todo artista que obtém algum
reconhecimento está necessariamente exposto à comercialização e, portanto, à possibilidade de se
sustentar financeiramente com sua própria arte. Ele afirma: "se você gosta disso, se você quer
sobreviver disso, tem que ter marketing, as pessoas têm que conhecer para comprar, você tem que

banda de "Rio Funk" Tetine, "[o] funk [carioca] é o maior tipo de música eletrônica brasileira, o que mais pode ser
conectado com o que está acontecendo no mundo" (Bruno Verner, in: Gola *2005a), e "[s]e a música brasileira tem
algo a dizer pro mundo, esse algo vem do funk [carioca]" (Eliete Mejorado, in: Assef *2005:58). Segundo o
jornalista Silvio Essinger, o Funk carioca só será compreendido se levarmos em conta o "impacto que ele causa nos
quadris e corações do público" e o fato de que "essa é hoje uma música feita pela favela para a favela, não uma
música que a mídia tenta impor ao público" (Silvio Essinger, in: Migliaccio *2005), dois traços que poderíamos
certamente chamar de underground.
16
Ramilson Maia é DJ de Drum'n'Bass que toca desde o final dos anos 80 e se popularizou no final da década
seguinte pelas suas produções que misturam com talento o estilo eletrônico com a música popular brasileira. Ele
afirma ter sido "o primeiro DJ brasileiro a fazer um disco de Dance Music" (Ramilson Maia, entrevista por
telefone, 7 de novembro de 2001) e possui, de fato, uma vasta produção – e.g. Mundo Mix Music (a1998:7;
a[s.d.]:2), Sambaloco (a1999:8), Ramilson Maia (a1999, a2001 e a2003), Otto (a2000[vol.2]:3), DJ World
(a2000:4 e 6, esta última com Guilherme Lopes; a2001a:8 e 12), B.U.M. (a2002:3 e 5; a[s.d.]:8), ST2
(a2003[vol.2]:10) e Telles (v2004).
17
Ramilson diz: "eu vim da Bahia, sem estrutura nenhuma, comecei a estudar aqui [São Paulo], fazendo supletivo, e
tudo naquela vontade de vencer, de fazer aquilo que eu queria"; "não foi fácil porque eu não tinha uma estrutura de
família, de grana", "correndo atrás, não tendo grana para pagar ônibus, tendo que pedir emprestado pros outros,
enfrentar situações que nunca enfrentei na minha vida" (Ramilson Maia, in: Naves et al. *2002), "[a]s pessoas
sabem o quanto eu batalhei", "[e]las sabem a correria, a dificuldade" (Ramilson Maia, in: Katia *2003b:12).
18
Ramilson insiste sempre na sua vontade de "vencer na vida", "ter um selo, ter meu nome reconhecido e ser quem
eu sou" – "foi quando [...] eu comecei a misturar essa coisa de música brasileira, que, graças a Deus, [...] as pessoas
começaram a dar um valor um pouco maior pra essa estória" (Ramilson Maia, entrevista por telefone, 7 de outubro
de 2001), "que tive o reconhecimento das pessoas, foi ali que me vi como alguém na sociedade", que "todo mundo
começou a me ligar e elogiar a música", "que as pessoas [...] que me tinham como um DJ com um zero à esquerda
[...] começaram a me chamar para as casas noturnas para eu 'lançar' meu disco" (Ramilson Maia, in: Naves et al.
*2002) – e em seu rancor pelo reconhecimento tardio – "rolou uma desilusão ferrada, porque eu toquei todo esse
tempo em várias casas [...], comprava os discos, [...] tinha conhecimento, mas ao mesmo tempo não saía nada,
nenhum trabalho meu na mídia", "por que o Patife e o Marky fizeram sucesso" se o que eles fazem "[é] o que eu
fazia oito anos atrás [...] [m]as [...] ninguém falou nada e nem sabe? Porque o sucesso veio lá de fora. Na verdade
[...] eles mesmo não acreditavam nisso. [...] Mas é isso mesmo [...]. Eu acredito que tem o momento de cada um.
Hoje é o seu, e amanhã pode ser o meu. Então eu acho que vai chegar minha hora. Aliás, tem chegado. Tenho
sentido isso a cada dia, a coisa tem crescido cada vez mais" (Ramilson Maia, in: Naves et al. *2002); "Acho que
tenho direito a uma fatia desse bolo" (Ramilson Maia, in: Assef 2003:186-7). Cf. ainda os depoimentos de
Ramilson Maia em Telles (v2004).

91
ganhar dinheiro com isso. É sua arte".19 Criticando alguns artistas da periferia de São Paulo que
dizem que "marketing não tem nada [a ver] com o Hip-Hop", "que não podem ir para a grande
mídia, que têm ficar no gueto", Ramilson pergunta: "Alguém acha que vai sobreviver ficando no
gueto?"20
O assunto é extremamente complexo, pois enquanto para Ramilson o mainstream não
seria uma opção estética, mas sim uma questão de sustentação econômica, para a maior parte dos
DJs de música eletrônica essa sustentação nunca é colocada em questão. Essa diferença de
perspectivas pode gerar paradoxos, como a dupla condição do Drum'n'Bass como o estilo de
música eletrônica "mais underground" – devido justamente à sua condição socialmente
periférica, mas também à tendência experimental de algumas de suas vertentes – e ao mesmo
tempo "mais mainstream" – devido à popularidade mundial alcançada por DJs brasileiros do
estilo e à grande aceitação popular de suas vertentes mais acústicas e adaptáveis às estruturas
tradicionais da canção popular brasileira21 –, as relações de gênero implícitas nessa distinção

19
Ramilson Maia, in: Naves et al. (*2002). Essa posição não é de forma alguma restrita àqueles que se consideram
"periféricos". Surfer Bob (membro do coletivo canadense Vibe Tribe), por exemplo, acredita que "se você colocou
todas as suas fichas numa festa que deixou todo mundo com um belo sorriso no rosto, então foi um bom trabalho e
você merece ganhar algum dinheiro" (Surfer Bob, in: Fritz 1999:113); e o DJ Camilo Rocha, falando sobre a
profissionalização das raves no Brasil, defende que "todo mundo que está batalhando há muito tempo por isso
deveria começar a ganhar mais dinheiro, virar um modo de vida. Não ter que trabalhar em banco e ser DJ à noite."
(Camilo Rocha, in: Bacal *2001) Para um relato livre e em primeira pessoa do enorme fluxo econômico de
algumas raves inglesas entre 1988 e 1990 (com lucros chegando a cerca de 100 mil libras por festa e prejuízos de
até 70 mil libras), cf. Anthony (*1998).
20
Ramilson Maia, in: Naves et al. (*2002).
21
Bacal conta que todos os DJs de Drum'n'Bass que ela entrevistou estavam "inseridos em projetos de realizar
'música eletrônica brasileira'" (Bacal 2003:63), e o estilo foi, de fato, aquele que melhor se misturou com a música
popular brasileira convencional (cf. DJ Dolores e Orchestra Santa Massa a2002; Ramilson Maia a2003; Bryan Gee
a2003:17; DJ Marky e XRS a2003:7; Drumagick a2004; Telles v2004), o que é explicado matematicamente por
JrDeep da dupla brasileira de Drum'n'Bass Drumagick: "É matemático. Samba e bossa nova têm por volta de 87,
90 bpms, enquanto o [Drum'n'Bass] tem exatamente o dobro. Para encaixar com house e techno, que variam entre
130 e 140 bpms, é mais complicado e pode-se perder muito da característica da música." (JrDeep, in: Pimenta
*2004b:17). O DJ brasileiro de Techno Renato Cohen confirma: "O drum'n'bass se encaixou perfeitamente com a
música brasileira, com a bossa nova. Tentar fazer isso com o tecno não soa bem." (DJ Renato Cohen, in: Ney
*2004). A falta de repercussão (com trocadilho) das experiências de "brazilian electronic music" realizadas pelo
grupo M4J confirma essa aparente inaptidão do Techno para esse tipo de mistura (cf. M4J a1998, a2000).
Referindo-se ao sucesso radiofônico mundial de músicas com estrutura de canção dos DJs brasileiros Marky e XRS
– que foram "os brasileiros mais bem colocados na história da música nos charts" (DJ Marky, in: Assef 2003:193;
itálico no original) com a música LK, que traz trechos da música "Carolina Carol Bela" de Jorge Ben e Toquinho
(cf. Silva dos Santos 2004; DJ Marky a2001:2) –, Patife – "o catalisador da escalada galopante da música para
dançar feita no Brasil" (Assef 2003:195) – e Ramilson Maia – com seu grupo de Drum'n'Bass Pop Kaleidoscópio –,
Camilo Rocha considera que "o Drum'n'Bass, na verdade, é o ritmo que mais se presta a fazer versões Pop, um
crossover Pop" (Camilo Rocha, entrevista, 10 de maio de 2003). Apesar disso, em 1997 ele já havia feito uma
associação direta entre Drum'n'Bass, periferia e underground: "'Underground' é como são conhecidos esses sons na
periferia." (Rocha *1997; sobre a relação Drum'n'Bass-periferia, cf. Lopes e Abreu *[s.d.]) Um bom retrato desta
situação ambígua do Drum'n'Bass brasileiro, ao mesmo tempo periférico (pois que associado a públicos e DJs de
periferia) e mainstream (pois que mais privilegiado pela indústria cultural), pode ser visto em Telles (v2004).
Como notou Fontanari, "[a]pesar de visto como um estilo 'periférico'" ("um underground dentro do underground"

92
entre o underground e o mainstream22 e a própria situação de Ramilson Maia que, apesar de sua
fixação pelo reconhecimento midiático, sempre manteve seus princípios éticos e estéticos em
primeiro plano, o que coloca a sua produção musical legitimamente underground23 em franca
contradição com seu discurso explicitamente mainstream.
Apesar da ambigüidade que envolve as relações entre o underground e o mainstream em
cada caso, a perspectiva de nunca obter autonomia financeira através da música eletrônica é o
consenso mais geral entre aqueles que se classificam como underground. Como disse uma
importante jornalista da área, "[q]uem está no underground eletrônico brazuca sem dúvida
trabalha por amor [à] música e ao que ela representa, já que a perspectiva de pelo menos se

segundo DJ Navarro), "o drum'n'bass tem uma projeção nacional, na figura dos DJs Marky e Patife, que os outros
estilos não têm" (Fontanari 2003:117; itálico no original). Segundo o antropólogo, o Drum'n'Bass seria "um 'estilo
limite', uma 'intersecção' entre música eletrônica e música acústica ou música mass media" (Fontanari 2003:115;
itálico no original). Ele cita o DJ Nando Barth que distingue as duas variantes do estilo como Hard Step
("'completamente underground'", "de batidas mais 'pesadas'", "'completamente música, de muita qualidade'") e
Cool Step ("'comercial', acessível aos meios de comunicação de massa e à indústria cultural") (cf. Fontanari
2003:116). Essa mesma divisão do estilo em duas variantes foi apresentada por Reynolds como uma disputa entre
"dois modelos opostos de negritude [blackness]: urbanidade elegante [...] e tribalismo bruto", entre o "crossover" e
o "undergroundismo [undergroundism]" (Reynolds 1999:347). Outro caso de fusão do Drum'n'Bass com músicas
populares tradicionais, agora orientais, pode ser visto no trabalho do DJ e produtor Talvin Singh (a1997, a1998).
22
O DJ Patife (DJ e produtor brasileiro de Drum'n'Bass) propõe uma interpretação da oposição entre as vertentes
Hard Step e Cool Step do Drum'n'Bass em termos de gênero ao explicar sua preferência pela segunda (que deu
título, aliás, ao seu segundo CD, Cool Steps: Drum'n'Bass Grooves; DJ Patife a2001): "me lembro que, desde os
meus tempos de bailinho, tinha sempre uma hora em que só as gatinhas dançavam [...]. E eu via que, depois, os DJs
passaram a tocar só para os homens e eu 'nada disso, vou tocar para as mulheres'. [...] Desde que houve a
transformação do drum'n'bass, por volta de 95, fui para o lado mais melódico. [...] As mulheres merecem." (DJ
Patife, in: Alexandre *2002:22) Esse foi também um dos motivos mencionados pela proprietária da casa noturna
Lov.e para o fim da noite dedicada ao Drum'n'Bass, em benefício do Funk carioca e do Electro: "O [Drum'n'Bass]
foi ficando muito pesado, as meninas gostam de rebolar" (Flavia Ceccato, in: Brandão *2004:30). A associação
entre sonoridades mais melódicas e comerciais e o público feminino também foi feita pelo DJ holandês Paul Elstak
para justificar a sua mudança de estilo, do ultra-rápido e pesado Gabba para o mais leve e melódico Happy Gabba:
"Em 1994 a música estava muito dura, rápida demais. Cada vez menos garotas estavam dançando e a atmosfera
festiva estava indo embora." (DJ Paul Elstak, in: Reynolds 1999:287-8). Na Holanda, o "aumento no número de
mulheres" nas festas de Gabba (conhecidas como "gabberbabes") coincidiu com a "comercialização" do estilo e
"contribuiu para tornar a atmosfera das festas mais agradável", mas mesmo assim as mulheres "continuam sendo
minoria" (cf. Verhagen et al. 2000:150). Essa associação entre feminilidade e o mainstream é generalizada (cf.
Farrugia 2004:241), e parece estar diretamente ligada ao número sempre inferior de mulheres que assumem a
função de DJs, número este que só começou a subir com a popularização da música eletrônica nos anos 90 e nos
novos gêneros que surgiram desde então (muito menos vinculados à homossexualidade masculina), dentre os quais
se destaca, não por acaso, o Drum'n'Bass (cf. Brewster e Broughton 2000:276-8). Talvez as "mulheres DJs" (que
Assef teve a idéia de chamar de "DJéias"; cf. Assef 2003:171-7) sejam o segundo tema de maior interesse da mídia
em geral pela música eletrônica, depois das drogas (e.g. Centofani *2002; Caso *2004; Garcia *2004b).
23
Apesar de seus projetos voltados para a indústria cultural, como o grupo Kaleidoscópio – que foi desde o início
"um projeto para rádio" (Ramilson Maia, in: Beatz no.1, abril de 2003, pp.66), fruto de um processo que começou
quando o DJ "tirou um pé do underground e o colocou no pop" (Assef 2003:186) –, Ramilson sempre esteve
genuinamente vinculado a coletivos explicitamente underground como o B.U.M. (coletivo carioca associado ao
Pragatecno; cf. DJ World a2001a:8 e 12; B.U.M. a[s.d.]:8 e a2002:3 e 5) e é conhecido por colocar seus princípios
morais acima das pressões comerciais – como quando se recusou a trocar o nome da música "Só Jesus Salva"
(Ramilson Maia a1999:8) a pedido do diretor artístico de sua gravadora (cf. DJ World *2001:32).

93
manter sem um 'day job' é sempre distante";24 e segundo outro jornalista, "[d]entro do que se
convencionou chamar de cena 'underground', não há como negar que a maior parte dos seus
integrantes é composta por 'amadores'", sendo "este amor, paixão mesmo, que a torna uma cena
viva e pulsante".25 Mas se por um lado esse "amor" desinteressado, esse "amadorismo" convicto,
liberta o DJ e seu público de qualquer comprometimento com outra coisa além de sua própria
interação (o "som pelo som"), por outro ele acaba limitando o próprio leque de alternativas do
underground, impedindo DJs de adquirirem seus materiais de trabalho (equipamentos e discos de
vinil caros e importados) e se dedicarem totalmente à sua atividade criativa. Cria-se então um
"dilema": "como crescer sem perder a identidade?"26
Para muitos, quando alguns desses "amadores" "acabam se profissionalizando e [...]
eventualmente [chegando] ao 'mainstream'", "isto em si não é [necessariamente um] problema,
pois se a coisa é boa deve ser levada para o maior público possível, desde que neste caminho
mantenha sua essência e nível de qualidade".27 Cláudio apontou, em um de seus textos, o

24
Lubna (*2001). Camilo Rocha chega a afirmar, sobre os DJs brasileiros que não precisam de um emprego paralelo
para se sustentarem, que "[d]eve ser uns 10" (Camilo Rocha, in: Bacal *2001). Em sua pesquisa com DJs da "cena
House" londrina (UK), Tony Langlois confirma que "a maioria dos DJs estão envolvidos também em outros
empregos, [...] em lojas de discos, promovendo raves, jornalismo musical ou remixagens" (Langlois 1992:232).
Segundo Bacal, "nenhum" dos DJs do Rio de Janeiro e de São Paulo que ela pesquisou "vive somente dessa
atividade", trabalhando também como web designers, jornalistas, promoters, vendedores e funcionários do ramo
fonográfico ou de informática (cf. Bacal 2003:71 nota 60). Dentre os DJs entrevistados para esta pesquisa, todos,
sem exceção, exerciam alguma outra atividade remunerada além da discotecagem: Mantrix como advogado,
Arlequim como designer, Cláudio Manoel como professor universitário, jornalista e promoter, Camilo Rocha
como jornalista, Ramilson Maia como vendedor de discos e gerente de boate (no momento da entrevista, no
entanto, Ramilson vivia um momento de dedicação exclusiva à produção musical e à discotecagem) e Chico Correa
como pesquisador de um centro de pesquisas universitário (Mr. Lemon foi o único entrevistado que não exercia
atividade de DJ). Mais exemplos desta "dupla jornada" dos DJs podem ser encontrados em Pimenta (*2003c:64-5).
Vale ainda notar que a fama internacional de alguns DJs brasileiros tem estimulado a criação de diversos "cursos
de DJ", que promovem a expectativa de "ascensão e reconhecimento" (Bacal 2003:76 nota 69) para quem está
"interessado em entrar no ramo da música eletrônica", "um mercado promissor para os reis das baladas" (Del Ré e
Deodato *2004a), "conquistar clientes e fazer da música um investimento de retorno atrativo" cuidando da "trilha
sonora de desfiles, festas, casamentos, aniversários e formaturas" (Glauber *2005) e eventualmente ser contratado
por agências que "agendam trabalhos", "cuidam da burocracia" e ajudam a "profissionalizar a atividade" (cf.
Centofani *2002:19), e, como resume Assef, "funcionam como uma espécie de 'descascadora de pepinos' para os
DJs" (Assef 2003:238). Mesmo no circuito underground, os cursos são uma porta de entrada para a
profissionalização quando organizadores de festas escolhem DJs locais desconhecidos para as suas festas dentre
aqueles que freqüentaram seus próprios cursos (situação sugerida em Fontanari 2003:86).
25
Michalick (*2003a).
26
Lubna (*2001). Reynolds conta como as rádios piratas inglesas, centrais para a "cena" eletrônica underground do
país, viveram um dilema semelhante em meados da década de 90: "entre o desejo de reconhecimento e o medo
paranóico de distorção e cooptação", "militância underground versus sedução do mainstream [underground
militancy versus crossover seduction, guettocentricity versus gentrification]" (Reynolds 1999:267-8).
27
Michalick (*2003a). O DJ Skribble (turntablist de Long Island que começou a tocar em Long Island no final dos
anos 80 e hoje tem fama internacional) defende o mesmo raciocínio: "Se 'virar pop' [going pop] significa atingir
um público maior, isso não me incomoda. [...] Eu ainda vou poder fazer o meu trabalho [I can still get busy and
show them what I can do] e mostrar para eles algo que nunca viram antes, relacionar com eles em seu próprio
nível." (DJ Skribble, in: Reighley 2000:228)

94
crescente interesse de grandes empresas por aquilo que é considerado música eletrônica
underground: "grifes de moda, indústrias voltadas ao público jovem, que não investem nas
culturas emergentes[,] estão com seu direcionamento de marketing apontando para o lado
destoante dos caminhos do mercado", mostrando até "uma certa disputa" pela promoção de
eventos de música eletrônica que se pretendem "autênticos" e underground; "Bebidas energéticas
querem se inserir de vez nas noites eletrônicas, cervejas fazem festivais com djs nacionais e
internacionais do underground (!) [sic] e que não tocam som comercial."28 Segundo Cláudio, ao
patrocinarem e organizarem eventos de qualidade com DJs valorizados pelo underground, estas
empresas "alimentam esta cultura – e assim demarca[m] território de venda de seu produto".29 "O
underground financiado por empresas" seria, para Cláudio, a prova de que o "mainstream
reconhece que quem sabe da música eletrônica de qualidade são os produtores e djs do
underground, aqueles que pesquisam e não abrem mão do conceito da experimentação",30 e por
isso capitalizam em cima desse "saber" exclusivo. Mas um underground financiado por empresas
ainda pode ser considerado um underground? É possível manter a "identidade", a "essência", a
"qualidade" underground quando se passa para o mainstream?
Segundo Cláudio, "[à]s vezes a música não[-]comercial chega à m[í]dia, ao mercado
tradicional,[...] [sem abrir] mão de suas experimentações estéticas". "Isso é bom", ele continua,
"porque é a arte de qualidade difundida para mais gente, através dos meios de comunicação de

28
Duarte de Souza (*2002a).
29
Duarte de Souza (*2002a). Como nota Sanders, "a cultura contemporânea dos clubes é uma cultura jovem
mainstream" (Sanders 2005:244) e, na linguagem direta de Sellars, "um grande negócio [big business]" (Sellars
1998:611). As empresas que têm colocado seu nome em eventos dedicados à música eletrônica underground no
Brasil são majoritariamente do ramo de bebidas alcoólicas, refrigerantes, telefonia móvel, cigarro, pasta de dente e
roupas (cf. Palomino 1999:134; Passarelli *2002:66; Assef 2003:237-8) – vale notar também que, diferentemente
da Europa e dos Estados Unidos, onde raves começaram como eventos clandestinos, muitas vezes proibidos, "a
rave chegou no Brasil meio distorcida" (DJ Double S, in: Fontanari 2003:64), "como uma 'cultura de consumo'"
baseada na "conquista de mercado" e na "importação, e promoção no universo local, de elementos simbólicos da
cultura rave norte-americana e européia" (Fontanari 2003:81; cf. Castro *2004:24; Bacal 2003:96; Assef
2003:221). No exterior, o leque de empresas que passaram a patrocinar os "megaeventos" de música eletrônica
depois da explosão comercial das raves pós-1988 inclui, além das já citadas, empresas de artigos esportivos,
automóveis, informática e eletro-eletrônicos, entre outras (cf. Fritz 1999:103, 111-2; Brewster e Broughton
2000:402-3). A quantidade de pessoas atraídas por esse tipo de "megaevento" (cf. Fritz 1999:111-6) – e.g.: Skol
Beats 2004 com 50 mil pessoas (Giannini et al. *2004); Brasília Music Festival Electronic de 2004 com 80 mil
pessoas (Garcia *2004c); Tim Festival de 2004 com 20 mil pessoas (Medeiros *2004b:D1); Parada da Paz de 2003
em São Paulo com 170 mil pessoas (Assunção e Dacauaziliquá *2003); e Love Parade de 2003 em Berlim com 750
mil pessoas (Love Parade *2003) – certamente justifica os "megainvestimentos" que eles recebem de grandes
empresas. O fato é que a música eletrônica é um ramo da indústria de entretenimento que movimenta muito
dinheiro: nos Estados Unidos dos anos 70, cerca de US$ 4 bilhões/ano (Stibal 1977:82; Brewster e Broughton
2000:194); na Inglaterra dos anos 90, cerca de £ 2 bilhões/ano (Thornton 1996:15; Malbon 1998:266). Mais sobre a
dimensão econômica da música eletrônica (muito pouco considerada pelo discurso nativo) em Hesmondhalgh
(1998b).
30
Duarte de Souza (2001:71).

95
massa. É o que chamamos de 'overground'."31 O termo "overground" se refere então àqueles
artistas que alcançaram sucesso comercial sem abandonar os valores do underground.32 Seria um
erro, portanto, afirmar que o underground "não deve chegar à mídia", "pois ao chegar à m[í]dia o
'underground' só perde seu caráter experimental se abrir mão de sua estética inovadora para se dar
bem no mercado, sem fazer emergir novidades".33 Uma vez assimilado pela "mídia", cabe ao
underground manter sua "estética inovadora", pois assim "mais pessoas têm acesso à qualidade, e
não engolem tão facilmente a 'baba', o produto fácil".34 Nota-se, portanto, uma certa missão
civilizadora na passagem do underground para o overground, como se uma popularização
consistente (i.e., sem perder a "essência" underground) fosse a vitória de uma batalha na guerra
contra o mainstream embrutecedor e massificante. Afinal, "a origem do 'overground' é sempre o
'underground' – surge 'de baixo', dos artistas e produtores comprometidos com a
experimentação".35

31
Duarte de Souza (*2001b).
32
O termo overground também é usado por Fritz para se referir às megaraves planejadas para dezenas de milhares de
pessoas e patrocinadas por grandes empresas (cf. Fritz 1999:111-6). Vale registrar aqui também o nome da
gravadora dos DJs e produtores Marky e XRS, Innerground, como mais uma possível via de complexificação das
relações entre o underground e o mainstream.
33
Duarte de Souza (*2001b). Em resposta a este texto de Cláudio, um participante da lista "Pragatecno Brasil"
desabafou: "Realmente Cláudio... [...] Talvez o que mais me irrita hoje dentre os que se chamam alternativos ou
adeptos do underground é ver um certo radicalismo, uma coisa cega na forma de encarar tudo que chega na mídia.
Temos tanto preconceito do que está em evidência que às vezes deixamos de observar as coisas boas que podem
estar sendo apresentadas. Ou pior, discriminamos aqueles que antes undergrounds obtiveram um reconhecimento e
taxamos estes de traidores quando na verdade eles sempre mantiveram seus princípios inovadores. É uma pena..."
(Vinicius Pinheiro, e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 18 de setembro de 2001).
34
Duarte de Souza (*2001b).
35
Duarte de Souza (*2001b). Vale citar aqui um relato de uma jornalista sobre a festa (mainstream) Planeta
Atlântida (realizada em janeiro de 2005 em Atlântida, Rio Grande do Sul): "A música eletrônica realmente saiu do
underground e chegou – para ficar – no mainstream. [...] A [...] popularização da música eletrônica é uma realidade
contra a qual não se pode mais lutar. [...] Isso me causa sentimentos ambivalentes. Eu, particularmente, sempre me
incomodei com essa certa popularização, talvez porque o que tenha me atraído no universo da música eletrônica
tenha sido (além da música, claro) exatamente o oposto: a liberdade do "underground" que sempre a rodeou.
Quando eu comecei a me interessar por ela, isso foi um fator que me encantou e mudou muitos dos meus conceitos.
Com sua popularização, no entanto, esse fator se perde. A música sai de seu nicho original e vai para o palco do
Planeta Atlântida (e leia-se palco-do-planeta-atlântida como metáfora para todo mainstream). Mas naquele dia, às
seis da manhã, com ventinho batendo no rosto e vendo toda aquela massa feliz e animada, de frente para o dj,
realmente curtindo muito, me deu uma felicidade indescritível e uma sensação de que aquele era o objetivo no fim
das contas: música eletrônica é justamente essa integração, de todas as pessoas, todos as tribos, todos os gostos,
todos os gêneros – música eletrônica é a diversidade. E o que acontecia ali e dava essa sensação embriagadora era
uma rave no sentido mais puro da palavra. E foi ali, quando o superpop Planeta Atlântida se transformou numa
rave, que eu esqueci de todas as minhas idéias negativas em relação à isso [...] e dancei muito, com a certeza de
que, sim, a música eletrônica se popularizou – e isso é ótimo." (Teixeira *2005)

96
UNDERGROUND MAINSTREAM
experimentação fórmulas consolidadas
inovação reprodução
criação apropriação
antes depois
evolução sucesso
conceitual comercial
conhecimento lucro financeiro
pesquisa didática pesquisa de mercado
desenvolvimento reconhecimento
comunidade mercado
compromisso interesse
cultura moda (hype)
autêntico falso
amador profissional
via alternativa via principal
secreto, raro público, banal
minoritário dominante
disco de vinil, mídias CD, mídias digitais
analógicas
bom gosto mau gosto
música eletrônica de qualidade "baba", "poperô"
"nós" "eles"
conversão Ù overground
Arregimentação de aliados, Renovação estética,
apoio financeiro, legitimidade, autenticidade.
transformação social
Quadro 7 – Quadro sintético das idéias
nativas sobre o underground e o mainstream.

O que parecia uma oposição absoluta entre o experimentalismo do underground e a mesmice do


mainstream se revela agora uma espécie de intercâmbio forçado em que cada um dos pólos tenta
obter do outro aquilo que lhe interessa: o mainstream se alimentando da inovação, da
experimentação e da legitimidade do underground e assim alargando seu território; o
underground se alimentando da força financeira e do alcance popular do mainstream e assim
contribuindo para o desenvolvimento do senso crítico e do bom gosto de um maior número de
pessoas. Uma síntese de toda esta tipologia do underground e do mainstream, agora nuançada36
pelo conceito de overground, revelaria, portanto, mais que uma simples oposição, uma espécie de
constituição mútua, cada um dos pólos usando o outro como contraponto (cf. Quadro 7). Mais

36
Fontanari fala em "gradação" entre os "tipos puros" de underground e mainstream (comercial) (cf. Fontanari
2003:159).

97
do que isso, essa constituição mútua é dinâmica, pois existem múltiplas possibilidades de
transição entre eles, preservando ou transformando suas características em graus variados. O caso
ideal de transição, como vimos, é o overground, quando um artista, música, estilo ou evento do
underground se torna mainstream – alcançando sucesso comercial, reconhecimento popular, e a
profissionalização – sem necessariamente (apesar de geralmente isso ocorrer37) abandonar as
características do underground – a experimentação, a inovação, o desenvolvimento conceitual, a
autenticidade e o bom gosto. É importante notar que não é considerada, pelo discurso nativo, a
possibilidade de que um artista, música, estilo ou evento do mainstream se torne underground. Se
isso ocorre (quando, por exemplo, um adepto do mainstream passa a se interessar pelo
underground), trata-se sempre de um alargamento do underground. Tudo se passa como se, numa
imagem hidrográfica, o fluxo fosse, a princípio, unidirecional (sempre do underground-montante
para o mainstream-justante), qualquer fluxo no sentido inverso sendo visto como uma espécie de
refluxo, um retorno do fluxo, por vias tortuosas (e.g. conversões-chuva), às suas origens.38

Estratégias do underground
Muitas vezes, Cláudio define o "ritual tribal" e "xamânico" da música eletrônica como
"hedonista, despolitizado e pagão": "Hedonista porque imediato e em função do prazer;
despolitizado, porque é uma cultura além-Estado, além-Governos, além-Instituições, globalizante
e universal, sem bases em partidarismos; e pagão, na medida em que nenhuma religião é eleita
como coletiva, nenhum deus é eleito como norteador. O único deus é a música tribal."39 Prazer

37
Fritz cita o diretor do departamento de Dance Music da Columbia/Sony dizendo que considera importante que um
artista nunca perca suas "raízes underground" pois "o sucesso comercial é transitório e incerto, mas um público
underground pode fazer esse sucesso durar muito mais e até mesmo sustentar carreiras" (Dave Jurman, in: Fritz
1999:122). De fato, David Hesmondhalgh mostra como, no complexo equilíbrio interdependente entre o "capital
cultural" do underground e o "capital econômico" do mainstream (aquele vendendo a credibilidade que este não
tem, e este fornecendo o apoio financeiro e logístico que aquele não tem), os riscos maiores acabam ficando
sempre do lado do underground (que corre sempre o risco de perder sua maior moeda de troca: sua credibilidade),
o mainstream permanecendo livre para investir onde quiser (e com o benefício da flexibilidade que essa espécie de
"terceirização" da pesquisa estética lhe traz) (cf. Hesmondhalgh 1998b:240-9). É o underground a serviço do
mainstream ou o contrário, como quer o conceito de overground? Segundo Cláudio Manoel, o "mainstream est[á]
formatando cada vez mais a rela[çã]o palco e plat[é]ia" e "que[r] a cultura da e-music como uma manifestação
próxima ao pop, com a mesma linguagem" que ele "domina bem, sabe vender e faz [você] comprar", e "q[uan]do
um formato underground se encontra com [o] mainstream e o mainstream [é] quem est[á] propondo o
under[ground] no mercado de espetáculo, sempre h[á] distor[çõ]es na recep[çã]o" pois "o mainstream sobrevive
[d]a cultura do espet[á]culo" e "certos formatos mais experi[me]ntais, mais under[ground] n[ã]o colam e n[ã]o
v[ã]o colar mesmo" (Cláudio Manoel, e-mails enviados à lista "Pragatecno Brasil" em 1 e 2 de novembro de 2001).
38
Poschardt, por exemplo, justifica sua "queda" pelo underground por entender que "é ele que impulsionou o
desenvolvimento do mainstream" (Poschardt 1998:20).
39
Duarte de Souza (2001:67).

98
imediato, além-Estado e além-religião. Seria um erro interpretar o uso da palavra "despolitizado"
aqui como uma negação absoluta de qualquer dimensão política à música eletrônica. Antes,
parece muito mais coerente vermos nesse uso uma crítica à macropolítica institucionalizada – a
política dos partidos, baseada na representação – em prol de uma micropolítica dos afetos, da
sensibilidade.
Segundo Cláudio, apesar de na maior parte das vezes não haver "um arcabouço de
reinvindica[çõ]es/proposi[çõ]es" dessa "cena eletrônica" (apenas o "hedonismo" e o "prazer pela
m[ú]sica"), "n[ã]o ser 'pol[í]tico' é j[á] estar fazendo pol[í]tica".40 Ele cita o texto de uma colega
sugerindo que pensemos "o aspecto político como uma dimensão fundamental da vida cotidiana,
presente em todas as relações e não apenas nas de caráter declaradamente institucionais /
oficiais".41 "São", segundo o pesquisador Ricardo Feitosa, "novas formas de política que vão se
configurando", em que o "direito de se divertir", de "ir a uma rave" e o "visual" são encarados
como "uma forma de contestar".42 "Ravers", completa o também pesquisador Steve Mizrach,
"basicamente reclamam o direito de festejar [the right to rave]": "Eles tendem a encarar o ato de
festejar [raving] como intrinsecamente político, na medida em que une pessoas de todas as
classes, raças e nações para além de suas diferenças e em torno da música."43
A ênfase na repetitividade como técnica de "libertação do ego" em oposição à ideologia
do pop star é também um exemplo de crítica pragmática ao paradigma representativo no qual se
baseia tanto a indústria cultural de massas44 quanto o sistema político atualmente dominante. Da

40
Duarte de Souza (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 22 de outubro de 2003).
41
Prates (*2003).
42
Feitosa, in: Lopes e Abreu (*[s.d.]).
43
Mizrach (*1996b:10). Fritz vai na mesma direção quando afirma que a própria rejeição que os ravers demonstram
pela política acaba sendo "uma afirmação política em que manifestos ou políticas formalmente bem desenvolvidas
são substituídos pela rave em si como ato político": "É uma expressão de vontade política que se dá por exemplo"
(Fritz 1999:216). A mesma idéia de uma política não institucionalizada e festiva da música eletrônica pode ser
encontrada em Becker e Woebs (1999:64) e Brewster e Broughton (2000:362-3). Tudo se passa como se o "lute
pelo seu direito de festejar [fight for your right to party]" dos Beastie Boys (a1987:7) coincidisse com o "festeje
pelo seu direito de lutar [party for your right to fight]" do Public Enemy (a1988:16), e a opção entre "[a]to político
ou carnavalesco" (Bacal 2003:100) perdesse o sentido, sendo o ato carnavalesco já em si um ato político. Diante da
questão "como pode a música de pista se tornar política sem deixar de ser prazerosa?" o DJ Frankie Knuckles
respondeu simplesmente: "Por que ela deve se tornar política?" O crítico musical Frank Owen completou
confirmando que se trata de uma "definição ampla de política" na qual "não se trata de falar sobre política, mas sim
de concretizar de fato uma comunidade na terra por algumas horas": "It's kind of like the difference between disco
fever and discourse fever." (Frank Owen, in: Ross et al. 1995:86-7)
44
Segundo Brewster e Broughton, o problema da explosão comercial da Disco na segunda metade dos anos 70 foi a
insistência das gravadoras em criar artistas fictícios quando os verdadeiros artistas eram DJs e engenheiros de som
que pouquíssimos conheciam de vista ou pelo nome: "A maioria das grandes gravadoras, acostumadas a
comercializar pessoas famosas cujos posters se poderia comprar e cujas carreiras se poderia acompanhar, só se
sentiu confortável com esse tipo de música revestindo-a com todo tipo de artista e banda de fachada. Naturalmente,
quando o público se deparou com tanta falsidade e dublagem, concluiu que essa música era de fato artificial e

99
mesma forma que o artista deixaria de ter um rosto reconhecido, de representar uma personagem,
também o agente político deixaria de ser um representante individual para coincidir com uma
coletividade, que então deixaria de ser a receptora de um fluxo enunciativo pré-determinado.
Evidentemente, muitos DJs são hoje típicos pop stars,45 totalmente integrados na máquina
comercial da indústria de entretenimento, e grande parte do público destes DJs ainda espera deles
a representação de personalidades e narrativas coerentes. No entanto, tais "superstar DJs" estão,
na melhor das hipóteses, entre o overground e o mainstream, e na maior parte das vezes são
declaradamente mainstream, tornando-se por isso alvos justamente daquilo que aqui chamamos
de as micropolíticas do underground.46

inumana." (Brewster e Broughton 2000:195) Em seu estudo sobre DJs de House na Inglaterra no início dos anos
90, Langlois notou que a "despersonalização" e o "etos centrado no evento [event-centered ethos]" da música
eletrônica de pista era uma "reação (consciente ou não) contra a construção de imagens estandardizadas pela
industria fonográfica" (Langlois 1992:235). Vale também mencionar a proposta de Philip Tagg, para quem a
música eletrônica de pista operou uma inversão da relação figura/fundo típica da música ocidental e assim "talvez
encerre quase quatro séculos de individualismo burguês na música" (Tagg 1994a:219).
45
Hesmondhalgh nota que, em muitos casos, os DJs não eliminaram a figura do artista comercial, eles apenas "se
tornaram a base de um novo star system" (Hesmondhalgh 1998b:242). Basta ver a histeria que cerca grupos como
The Chemical Brothers – que "estão entre os melhores alquimistas da e-music" (Ferla 2004:97) e tocaram para 26
mil pessoas em São Paulo em 2004 (Del Ré e Deodato *2004b) – e The Prodigy – freqüentemente considerado
"um dos grupos de música eletrônica mais populares do mundo" (Shapiro e Lee 2000:232; cf. Ferla 2004:102) e
"mais próximo do Rock do que do Techno" (Reynolds 1999:368; cf. Brewster e Broughton 2000:398-9) – e DJs
como Fatboy Slim – "o DJ celebridade" (Martins *2004) ou "DJ das multidões" (Garcia *2004a; Rocha *2004a:67)
que tocou para 150 mil pessoas no Rio de Janeiro em 2004 (Thomé *2004; cf. Martins *2004) e "entrou para o
Guinness Book como o cara que emplacou mais músicas na parada inglesa usando nomes diversos" (Ferla 2004:98)
–, Paul Oakenfold – que, como já vimos, é um dos DJs mais populares e bem pagos do mundo e foi, em 1999,
eleito "o DJ mais bem sucedido do mundo" pelo The Guinness Book of Records e "o melhor DJ do mundo" pela
revista inglesa DJ –, Tiësto – eleito o "melhor DJ do mundo" por três anos consecutivos pela revista DJ Magazine
e responsável pela trilha sonora da abertura das Olimpíadas de Atenas de 2004 (cf. Deodato *2005a) –, Carl Cox –
"o Rei das pistas, o Pelé do techno" (Medeiros *2003d) – e os brasileiros Marky – eleito o melhor DJ do mundo
pela revista Knowledge em 2000, "nosso DJ exportação", "o primeiro DJ [brasileiro] a ganhar reconhecimento
internacional" (DJ World março 1999, pp.7) – e Mau Mau – "o DJ mais conhecido do Brasil, e o mais admirado"
(DJ World março 1999, pp.8), "o DJ mais famoso do Brasil" (Volume 01, dezembro de 2003, capa), vencedor do
prêmio Noite Ilustrada de "melhor DJ" por 7 vezes, até ser promovido a hors-concours (cf. Palomino *2003) –,
entre outros. Sobre os "superstar DJs", cf. Brewster e Broughton (2000:383-410), Langlois (1992:234), Reighley
(2000:201-7) e Reynolds (1999:275-6). Vale notar, porém, que mesmo no caso de "superstar DJs" o anonimato
ainda predomina tanto com relação aos próprios DJs – os membros do The Chemical Brothers, por exemplo, cuja
música "Hey Boy, Hey Girl" faz referência explícita ao seu status de "superstar DJs" (cf. Shapiro e Lee 2000:224;
The Chemical Brothers v2003:5), comemoram o fato de que "[a]s pessoas não compram os [nossos] discos por
nossa causa", pois "[t]er chegado várias vezes na primeira posição (das paradas) é legal, mas fazer isso sem
nenhuma intromissão na sua vida é que é brilhante" (Ed Simmons e Tom Rowlands, in: Skrufff *2003a:35),
tranqüilidade essa que foi confirmada em uma pesquisa da revista inglesa The Face em que apenas 3% dos
"cidadãos comuns [ordinary citizens]" foram capazes de identificar os membros do grupo (cf. Reighley 2000:201)
– quanto às músicas tocadas – ele se torna "o rosto para todas aquelas músicas sem rosto" (Brewster e Broughton
2000:393), pois "ninguém se importa em saber quem fez a música" (Reynolds e Oldfield *1990), só o que importa
é a sua função no set do DJ e o seu efeito no público.
46
Cláudio Manoel fala de uma "cultura do segredo" – outro nativo fala em um "conceito de sigilo/anonimato
fundamental ao underground" (André Silva, e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 1 de novembro de 2001)
– que teria surgido nos anos 70 na forma de uma estratégia dos produtores e DJs de música eletrônica de inventar
pseudônimos para cada novo projeto, provocando assim uma proliferação de nomes pouco conhecidos em oposição

100
Como já vimos, segundo Arlequim, o primeiro passo do ritual xamânico da música
eletrônica consiste em "envolver" o público com músicas que "chamem" as pessoas para dançar e
favoreçam a sua "abertura" para a música. A escolha das primeiras músicas de um set obedece a
critérios muito específicos e é, portanto, altamente carregada de significados e conseqüências.
Vimos como esse primeiro passo do ritual pode ser dado desde a primeira música que o DJ
escolhe para tocar e pode durar, se quiséssemos estipular um intervalo de tempo, cerca de 30
minutos. Arlequim nos revelou que, nesse primeiro momento, é comum o uso de músicas que
trazem, em sua estrutura, fórmulas cuja eficácia no favorecimento do "envolvimento" e da
"abertura" já é conhecida. Mas, poderíamos perguntar, o que distinguiria estas fórmulas daquelas
usadas pela indústria cultural para capturar consumidores? A diferença, é importante notar, não
estaria necessariamente na sua estrutura concreta, ou seja, nas fórmulas em si, mas sim o uso que
se estaria fazendo delas.47 Enquanto uma utilização mainstream destas fórmulas teria como
objetivo o "lucro" (a venda de discos, a popularização de um artista etc.), um DJ underground as
utilizaria com objetivos que seriam, a princípio, experimentais: "envolver" as pessoas no ritual,
trazê-las para a pista de dança e favorecer sua "abertura" para a "jornada musical". No entanto, se
é já desde primeiro passo do ritual que um DJ underground se distingue de um DJ mainstream, é
no segundo passo que essa diferença se mostra com toda a força.
DJs comerciais também precisam envolver as pessoas e colocá-las para dançar e, apesar
de terem a seu dispor um arsenal muito maior de sucessos (hits) de pista facilmente
reconhecíveis, vão fazer uso de estruturas e fórmulas musicais que são, a princípio, análogas às
dos DJs underground (número de compassos, duração, intensidade, velocidade etc.). Mas
enquanto o DJ comercial, após conquistar a pista, continuará a lhe fornecer aquilo que ela espera,
satisfazendo a uma demanda que foi construída pela máquina capitalista da publicidade e da
venda de produtos, o DJ underground tentará conduzir a pista numa direção muito diferente
através de experimentações sonoras que pretendem expandir e transformar seu horizonte. Um
ótimo exemplo dessa diferença é fornecido pelo DJ Camilo Rocha,48 que poderia ser considerado

à consolidação de grandes nomes da música Pop: "na cultura da música eletrônica, tenta-se não cultuar o pop star, o
artista-estrela, midiático" (Cláudio Manoel, e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 1 de novembro de 2001).
47
Evidentemente, seria impraticável a utilização de músicas consideradas comerciais ("babas" e "poperôs") em um
set de um DJ que se considere underground. No entanto, além de freqüentemente ocorrer que músicas consideradas
underground se tornem mainstream sem nenhuma alteração formal, veremos adiante que é possível deduzir
princípios estruturais nas músicas eletrônicas (i.e., fórmulas) que são, a princípio, comuns ao underground e ao
mainstream.
48
Camilo Rocha, considerado "[u]m dos melhores exemplos de personificação da palavra 'pioneirismo' que temos na
cena brasileira" (Pinheiro e Passarelli *2003a) e definido como "um dos maiores DJs de tecno do Brasil" em seu
extenso release no site Rraurl (<http://www.rraurl.com/djs/profile.php?dj=camilorocha>), é um renomado DJ

101
um DJ overground por ter ao mesmo tempo alcançado um alto grau de profissionalização e
reconhecimento popular e mantido a busca pela experimentação e o comprometimento com os
valores reconhecidos pelo underground.
Comentando uma apresentação sua em uma festa considerada "comercial",49 na qual ele
foi requisitado pelo público a "acelerar" a velocidade de suas músicas, Camilo explicita as
diferenças entre um set comercial e um set conceitual:

[T]em uma coisa que é foda, de tocar para molecada ou num lugar mais comercial um pouco, [...]
que é que você não pode viajar muito no conceito do set. Você tem que tocar os hits e tem que
"bombar", e as pessoas às vezes estão mais interessadas em velocidade e peso do que na música em
si, entendeu? Então você tem que já entrar "pah-pah-pah-pah-pah-pah". E aqui eu quis entrar
mais... como se estivesse tocando no Lov.e50 ou em algum lugar assim [risos], em que o pessoal iria
prestar atenção na música. Mas não era o caso.51

A diferença entre um set comercial e um set conceitual seria, nesse caso, a diferença entre tocar
para um público que exige uma performance pré-determinada do DJ e outro que está disposto a
acompanhá-lo (ou ser conduzido por ele) em um conceito musical. Apesar de toda a
popularização mundial da música eletrônica e da difusão midiática da figura do DJ-artista durante
a década de 90, não estamos aqui numa situação muito diversa da do DJ de Disco dos anos 7052
ou de Funk carioca do final dos anos 80, simultaneamente centro das atenções e mero funcionário
"submetido à 'ditadura' de um público que quer apenas se divertir, e não admirar a performance
de um indivíduo 'especial'".53 Não existe, aparentemente, conceito ou experimentalismo que se

brasileiro de Techno que já lançou dois CDs mixados – Rave Trip (DJ Camilo Rocha a1999) e Rave Trip 2 (DJ
Camilo Rocha a2000) –, remixes – e.g. "Bicho Solto" (ST2 a2003[vol.1]:2) e "Re/Pe (2 Freak's TB & Tamborim
Remix)" (Otto a2000[vol.2]:5), ambos com DJ Yah! – e produções próprias – e.g. "Station" (com DJ Yah!; DJ
Camilo Rocha a2000:1), "Galaxie" (DJ World a2001b:8), "Penta" (ST2 a 2002:9), "Caraco" (com Dj Yah!; DJ
Vanni a2004[vol.1]:9) e "Capeta" (com Dj Periférico; ST2 a2004:6). Camilo Rocha se apresenta "no mínimo duas
vezes por semana" (Camilo Rocha, entrevista, 10 de maio de 2003), tendo participado de inúmeros festivais de
música eletrônica do Brasil. Ele faz atualmente parte do cast da agência de DJs Smartbiz, que agenda suas
apresentações lhe oferece apoio logístico (cf. Buarque de Gusmão *2005:27). Além disso, ele atua como jornalista
escrevendo colunas e matérias periodicamente para as principais revistas e sites da Internet especializados em
música eletrônica do Brasil e publica esporadicamente em diversos veículos de circulação nacional.
49
A festa Bosque Beats, realizada no Clube do Bosque (Americana-SP) em 10 de maio de 2003.
50
Lov.e é uma famosa casa noturna de São Paulo onde Camilo toca mensalmente durante esta pesquisa.
51
Camilo Rocha (entrevista, 10 de maio de 2003). A maneira como o apelo do público foi atendido prontamente pelo
DJ através da aceleração de suas músicas e a maneira como ele varia a velocidade de seu set em uma apresentação
no clube Lov.e podem ser comparadas na Imagem 22, abaixo.
52
Dom Pepe, DJ da casa noturna carioca Frenetic Dancin' Days no final dos anos 70, confirma: "Foi ali que entendi
que o DJ não pode ficar tocando só o que curte. O cara pagou para entrar, tem que ouvir música legal, não só
conceito" (Dom Pepe, in: Assef 2003:57).
53
Vianna (1988:94). No final dos anos 80, Vianna constata a respeito dos DJs de Funk Carioca: "Não é possível,
segundo o 'discurso nativo', encontrar situações em que o DJ pense que seu trabalho foi muito bom e que os
dançarinos é que não souberam apreciá-lo, como acontece com freqüência em várias manifestações da arte
moderna. Se não há uma interação imediata entre discotecário e público, a culpa é sempre do primeiro. Não existe

102
sobreponha à "eficácia cinética" de um set. Ou, nas palavras de Camilo, "não adianta ser super
conceitual e as pessoas não estarem dançando".54
Camilo, justamente por ser um DJ com acesso ao mainstream e que decidiu fazer de sua
atividade musical a sua fonte de renda,55 é extremamente consciente de seu papel como
"animador contratado". Ele não tem dúvidas de que se "[a] pessoa pagou o ingresso, gastou
dinheiro, pra ir lá ver, pra ir lá dançar, então você tem que pelo menos ir lá fazer ela dançar. Eu
acho que é meio básico isso." O DJ, neste contexto, "é uma atração", "o nome dele [está] no
flyer,56 as pessoas pagaram dinheiro, muita gente foi lá só pra ver ele, então ele tem que se
dedicar àquele trabalho naquele momento", "tem que se concentrar e tem que fazer o melhor que
ele pode fazer ali". Colocar os desejos do público em segundo plano seria, assim, "falta de
respeito".57

público 'frio' que um bom DJ não saiba como esquentar" (Vianna 1988:44). No final dos anos 90, Palomino
reclama: "Tem que tocar hit, tem que tocar as músicas que a gente conhece e gosta; não tem que mostrar 'conceito'
nem 'mostrar o trabalho'." (Palomino 1999:119) Robbie Leslie (que atuou como DJ na primeira metade dos anos 80
em Nova Iorque, EUA) e Peter Calandra (que começou a discotecar em Nova Iorque no final dos anos 70 e
permanece ativo) resumem o imperativo contratual: "Você está trabalhando para um estabelecimento, e seu
trabalho é satisfazer, fazer feliz um monte de pessoas" (Peter Calandra, in: Reighley 2000:149); e "Se você quer
manter seu emprego [de DJ], você precisa agir de acordo com o público" (Robbie Leslie, in: Reighley 2000:136).
54
Camilo Rocha (entrevista, 10 de maio de 2003). Falando sobre a influência da pista de dança em suas próprias
produções, o DJ inglês Domu declarou: "Quando eu toco minhas coisas realmente experimentais e elas não
funcionam eu vou embora pensando: para quê continuar fazendo isso se ninguém vai dançar?" (Calico *2004:17).
Por outro lado, o DJ inglês Pete Tong lamenta o imperativo funcional de sua arte pois "a pressão para manter tudo
bombando com músicas populares torna impossível explorar novos sons" (Pete Tong, in: Brewster e Broughton
2000:397).
55
Camilo trabalha ainda como jornalista para diversos jornais, revistas e sites na Internet para complementar sua
renda, mas afirma que "poderia viver só com o trabalho de DJs, mas não viveria tão bem" (Camilo Rocha, in: Bacal
*2001).
56
Flyer é o nome dado ao panfleto de divulgação de uma festa ou evento.
57
Camilo Rocha (entrevista, 10 de maio de 2003). O DJ inglês Pete Tong demonstra a mesma preocupação quando
reclama da "enorme responsabilidade de bombar a noite": "Eu nunca esqueço que estou lá para entreter. Quando as
pessoas fazem fila para pagar e entrar, elas só esperam que eu toque seus discos favoritos." (Pete Tong, in:
Brewster e Broughton 2000:397). Segundo a DJ Anita Sarko (que tocou em Nova Iorque nos anos 80), há toda uma
racionalidade na escolha entre agradar a platéia ou lhe propor um conceito – "Há uma linha tênue entre a auto-
indulgência e o reconhecimento de que [...] você deve algo às pessoas que pagaram para se divertir" (Anita Sarko,
in: Reighley 2000:130) – e, segundo Juan Atkins (um dos pioneiros do Techno, em plena atividade hoje como DJ),
o DJ não pode chegar "martelando suas escolhas pessoais e velhos clássicos que ninguém conhece. Primeiro dê às
pessoas o que elas querem, depois elas deixarão que você as leve para onde você quer ir" (Juan Atkins, in:
Reighley 2000:130) – ou, nas palavras do DJ Tron (Chicago, EUA): "Eu preciso agradar os outros antes de agradar
a mim mesmo." (DJ Tron, in: Reighley 2000:134) Mas se segundo DJ Patife (DJ e produtor brasileiro de
Drum'n'Bass) o DJ "não pode tocar só o que [...] gosta e esquecer de quem está lá, que está precisando ficar feliz" –
"Se você quer escutar só o que gosta, vai para casa." (DJ Patife, in: Alexandre *2002:22) – e para o DJ Robbie
Leslie a atitude do DJ não pode ser a de "venha-comigo-ou-vá-embora [my-way-or-the-high-way]" (Robbie Leslie,
in: Reighley 2000:151), o oposto pode ocorrer quando o DJ se torna um pop star vendedor de discos, como no caso
da dupla The Chemical Brothers: "Nosso esquema é 'Venha conosco ou vá pra casa' [You're coming with us or
you're going home]. As pessoas precisam botar uma fé. Elas serão recompensadas. (Tom Rowlands, da dupla The
Chemical Brothers, in: Reighley 2000:135). São poucos, tudo indica, os que podem dizer, como o DJ Patife, que
"tenho tocado 99% do que eu gosto, e acaba casando com o gosto das pessoas [...]. Isso é maravilhoso." (DJ Patife,
in: Alexandre *2002:22)

103
Mas existem DJs que, diferentemente de Camilo Rocha ou Ramilson Maia, optaram por
não fazer de sua atividade de DJ uma fonte de renda e, assim, não dependem financeiramente de
suas próprias apresentações, podendo selecionar com muito mais critério o seu público e não
precisando abrir mão dos riscos envolvidos na experimentação e na inovação. Eles se
encontrariam em grande parte livres tanto do imperativo sócio-econômico de que falou Ramilson
Maia (pois sua fonte de renda seria dada por outra atividade) quanto da "ditadura" do público
pagante de que falou Camilo (pois poderiam negar-se a tocar para um público que não estivesse
aberto às suas experimentações e conceitos). Um bom exemplo deste tipo de DJ é Cláudio, o DJ
Angelis Sanctus, que certa vez divulgou na lista "Pragatecno Brasil" ter se recusado a tocar em
um evento58 por considerá-lo excessivamente comercial. "O som [que] me recebia", ele afirmou,
referindo-se ao som do DJ que tocava logo antes de sua vez, "não abria espaço para o meu som",
para "minha house, mod[é]stia à parte, experimental, fina, para quem tem bom gosto".59
Definindo aquele som como "pop, comercial, [...] cheio de timbre[s] f[á]ceis e viradas
previs[í]veis", "baba, comercial, poperô, ruim, apelativo [...], sem compromisso com a estética da
experimentaç[ã]o, sem compromisso com a arte" e "muuuuuuito bagaceira", Cláudio justificou
sua "retirada [...] estratégica" nos seguintes termos:

[M]e dou o direito de tocar onde quero, se convidado for. [Não] vivo disso e isso me dá mais
direito ainda de escolhas. [...] [N]essas horas [é] [que] vale o luxo de ser do underground e decidir
pular fora de um "mercado" estético [que] n[ã]o nos interessa. [...] [G]osto da música eletr[ô]nica
de qualidade, da música de qualidade. [E] me dou a esse luxo como artista. [...] [A] prop[ó]sito,
underground [é] assim mesmo: briga pelo que gosta.60

O principal argumento de Cláudio em favor de sua total autonomia estética foi, portanto, a sua
condição underground, que está diretamente relacionada ao "luxo" de não depender
financeiramente de sua atividade artística e poder optar por não tocar em eventos que não
compartilhem de sua estética. Cláudio dialogava aqui diretamente com o DJ que o convidara para
aquele evento (que era quem estava tocando o "som" tão duramente criticado por ele) e que
reagiu acusando-o de "arrogante", "retórico", "medroso" e sem "humildade", por não considerar a
necessidade de alguns DJs (inclusive do próprio Pragatecno, ele ressaltou) de atuar nas "duas
cenas" (a comercial, mainstream, e a alternativa, underground) para se manterem
financeiramente. Sua "dupla jornada" foi então explicitada na assinatura de seu e-mail: "DJ

58
Era o evento Barra Fashion (Salvador-BA, 9 de setembro de 2003), realizado em um shopping center.
59
Cláudio Manoel (e-mails enviados à lista "Pragatecno Brasil" em 10 e 11 de setembro de 2003).
60
Cláudio Manoel (e-mails enviados à lista "Pragatecno Brasil" em 10 e 11 de setembro de 2003).

104
OLIVER (com prazer e amor) aka DJ MÁRCIO SANTOS (com muito orgulho, pois desta
maneira consigo pagar minhas contas e atualizar meus vinis)".61 "DJ Oliver" (underground, "com
prazer e amor") e "DJ Márcio Santos" (mainstream, "com orgulho") seriam, assim, duas
personalidades que levariam ao extremo a situação esquizofrênica de DJs como Camilo Rocha e
Ramilson Maia, que apesar de manterem um vínculo com o underground, dependem do
mainstream para sobreviver. Para Cláudio, no entanto, "tocar em dois mercados (das babas e da
arte) é uma op[çã]o pessoal", e ele não vê sentido em "incorporar personas que fortalece[m]
mercados est[é]ticos comerciais", pois "quanto menos gente estiver tocando baba, som ruim, a
gente vai melhorando o n[í]vel, o padr[ã]o da arte". Resumindo sua posição, ele conclui sua
resposta ao DJ: "seu som de [Má]rcio [S]antos destr[ó]i o que o [O]liver [J]ack constrói."62
Em todo este episódio, é importante notar que parece ter sido o público quem determinou
que Cláudio desistisse de tocar. "Quem deu a cara do evento foi o público de cada dia" disse o DJ
que havia convidado Cláudio, revelando que "as pessoas queriam um som pra agradar" e que
"aquele definitivamente não é um evento underground [...], tanto que fui como [DJ] Márcio
Santos".63 Por sua vez, diante daquilo que lhe parecia mais um "carnaval eletr[ô]nico", Cláudio
considerou que mais "arrogante" do que abandonar o evento seria "propor ali para a pista uma
house noutra dire[çã]o estética do som cheio de timbre[s] f[á]ceis e viradas previs[í]ves [que]
estava sendo tocado". "[T]eria ficado mal para mim se eu tocasse", continuou Cláudio, "e
p[é]ssimo para aquel[e] p[ú]blico [que] estav[a] feliz com o conceito firmado ali".64 Não foi
cogitado por Cláudio obrigar o público mainstream a escutar seu som underground. O público,
como vemos, é quem comanda a festa, e se ele não está interessado no conceito do DJ, é este
quem deve mudar (ou se mudar). Trata-se sempre de saber negociar com o público até aonde este
está disposto a ir, de avaliar se, enquanto DJ, esse limite é aceitável, e, enfim, de nunca "bater de
frente" com a pista.
Isso nos leva de volta aos dois passos rituais descritos por Arlequim. O público estaria
disposto a "se fechar" para o mundo intersubjetivo e, portanto, aos valores e relações que regem
sua vida cotidiana? Estaria ele disposto a "se abrir" verdadeiramente para as experiências do DJ,
deixando-se conduzir por este em uma jornada desconhecida? E, talvez mais importante, seria
esse público capaz disso? Assim como existem DJs underground e DJs mainstream (e DJs de

61
DJ Oliver Jack (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 11 de setembro de 2003).
62
Cláudio Manoel (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 11 de setembro de 2003).
63
DJ Oliver Jack (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 11 de setembro de 2003).
64
Cláudio Manoel (e-mails enviados à lista "Pragatecno Brasil" em 10 e 11 de setembro de 2003).

105
"dupla personalidade"), existem também públicos underground, mais abertos às experimentações
sonoras dos DJs e menos dispostos a aturar músicas eletrônicas comerciais, e públicos
mainstream, mais interessados em "paquerar" e escutar suas músicas preferidas do que em aturar
sets estranhos e conceituais.
Além disso, como já vimos, existem inúmeros fatores contingentes que interferem na
interação entre DJs e público e que fazem da negociação entre eles uma matéria sempre instável e
mutante. Qual é, por exemplo, o "estado de espírito" do DJ? Estaria ele, como Arlequim naquela
festa memorável, agradavelmente embalado pela companhia de amigos, por um ambiente
favorável e pelo efeito das drogas certas? Ou estaria ele cumprindo um contrato, tocando em uma
boate na qual ele provavelmente nunca teria ido se não tivesse sido contratado, em um
equipamento de som precário e para um público que não está interessado em seu conceito?65 O
que acontece, por exemplo, quando um DJ que se considera absolutamente underground, em um
estado de espírito conceitual, encontra um público disperso buscando satisfação em um ambiente
comercial? Teríamos então algo muito próximo da situação vivida por Cláudio que acabamos de
comentar. Se, ainda na mesma combinação, imaginássemos um DJ resolutamente comercial,
teríamos a situação do DJ Márcio Campos (que é diferente daquela de Oliver Jack). Para cada
situação, alterando cada uma de suas variáveis, teríamos conseqüências diversas. O importante
aqui é que, tudo indica, é apenas quando um DJ underground encontra um público underground
que pode, de fato, haver xamanismo na música eletrônica.
Vimos que Fry distingue a "música eletrônica de pista" da "música popular tradicional"
através de características como a repetitividade (que enfatiza uma recepção mais corporal, em
oposição à recepção mental), a pouca valorização da personalidade do artista (descrita como
"ausência de ego", em oposição à valorização da personalidade do artista pela indústria cultural),
o papel ativo do público na fruição (em oposição à escuta passiva, onde emissores e receptores
são claramente distintos) e a transculturalidade (em oposição à territorialização cultural e étnica).
Vimos depois a mesma oposição, em termos análogos e de maneira um pouco mais sistemática,
nos escritos de Cláudio. A música eletrônica de pista, segundo essa perspectiva, se apresenta
claramente como o pólo positivo com relação à música popular tradicional, aquele que fomenta o
desenvolvimento de "novas habilidades auditivas" (Fry) e a "libertação do ego" pelo
"cibermantra" underground (Cláudio).

65
Esta situação, vivida pelo DJ Camilo Rocha na festa Bosque Beats (Americana, 10 de maio de 2003),
provavelmente ocorre freqüentemente com qualquer DJ que, como ele, se apresenta "no mínimo duas vezes por
semana" (Camilo Rocha, entrevista, 10 de maio de 2003).

106
Se retomarmos as cosmologias de DJ Mantrix e Mr. Lemon, veremos que a mesma
dualidade assimétrica ocorre, só que agora entre "espírito/interior" e "matéria/exterior": enquanto
aqueles são associados à "criatividade", à "inteligência", à "mente", à "música eletrônica"; estes
são associados ao "mercado", à "mídia", ao "capital", ao "corpo", à "música pop". Qualquer
aparente contradição entre a valorização de Fry do corpo em detrimento da mente ("repetição
(corporal)"/"modelo narrativo (mental)") e a valorização de Mantrix e Lemon do "mundo extra-
corpóreo/espiritual" em detrimento do "mundo corpóreo/material" deve se dissolver perante as
considerações de Cláudio acerca do "sentido tribal de dançar" como via para a "transcendência",
através da repetição e do transe, para estados alterados em que o corpo material é inegavelmente
transformado.66 A ênfase no corpo é a ênfase no poder da música eletrônica de, através dos
efeitos corporais da repetição sonora, provocarem experiências que poderíamos chamar de "extra-
corpóreas".
Vimos que a música do DJ-xamã deve ser capaz de "nos sintonizar com nosso próprio
ritmo e humor, agindo como uma ponte que nos conecta a nós mesmos e a cada um de nós",
criando um "ambiente sonoro que sobrepuja todos os outros estímulos" e providencia "o contexto
para uma jornada pessoal".67 É "sintonizando" estados e "sincronizando" freqüências, criando
"pontes" e "conexões" internas às pessoas, entre elas, e entre diferentes níveis da realidade,
envolvendo as pessoas em um ambiente sonoro totalizante e favorecendo a realização de uma
"jornada pessoal" que os DJs se tornam xamãs. E os principais instrumentos do DJ nesta
operação são a repetitividade musical e técnica, causando uma ruptura com o meio intersubjetivo
(com o "ego", com fronteiras culturais) e uma imersão sonora (pelo volume, associado ao
ambiente geral), favorecendo a vivência ativa de um tempo-espaço diferente do cotidiano.
Estamos aqui revendo a ênfase do DJ Arlequim na repetitividade como instrumento disjuntor ("se
fechar"), na importância do ambiente imersivo da festa ("envolver"), no potencial conectivo da
experiência ("questionamentos", "transformações") e na perspectiva de uma jornada

66
A "transcendência" do corpo pela própria imersão em sua materialidade através do transe da repetição é descrita
por Dave Duncan (em sua consideração sobre o ritual eletrônico que ele promoveu no equinócio da primavera de
1997, em Nova Iorque) nas seguintes palavras: "O mais importante é como se usa a música e os movimentos
corporais na produção do transe. [...] [A] repetição pode funcionar como um foco para a mente da mesma forma
como um mantra ou um canto, quando repetidos exaustivamente, perdem seu sentido literal e desviam a atenção do
ambiente imediato, como num sonho. Quando entramos nesse estado de espírito com o intuito de 'chegar em algum
lugar' em particular, pode-se falar em viagem xamânica. [...] Qualquer movimento repetido pode ser usado para
intensificar esse transe, melhor ainda quando ele for intenso o bastante para desviar a atenção para fora do corpo.
Esse efeito pode ser observado em longas maratonas; as endorfinas provocam um barato [a high] que pode
conduzir ao abandono do corpo." (Duncan *1997)
67
Fry (*1999a:A6).

107
("condução"). A repetitividade da música eletrônica, para Arlequim, propiciaria a "meditação", a
"introspecção", o "fechamento" das relações com o mundo cotidiano e a "abertura" para o mundo
sonoro proposto pelo DJ. Ao propiciar a introspecção, o DJ está favorecendo uma experiência
considerada espiritual tanto por Mantrix quanto por Lemon: "interiorização", "ascendência",
"concentração de energia", "crescimento", são todas palavras empregadas em suas cosmologias
para indicar o caminho a ser percorrido pelo DJ-xamã.
O underground, como vimos, é encarado pelo discurso nativo como sendo a "origem"
daquilo que depois será capturado pelo mainstream. Assim como Mantrix atribuiu a criatividade
ao pólo "espiritual", assim como Lemon descreveu o pólo "interior" como "onde tudo começa",
também o underground é descrito pelo discurso nativo como o lugar onde o novo é gestado. E
assim como o papel do xamã para Mantrix era "transmitir" para o mundo "material" as qualidades
do mundo "espiritual" e para Lemon era "exteriorizar" sua "energia mental" ("poder intelectual")
na transformação do mundo, o DJ underground tem como papel arquetípico alcançar o maior
número de pessoas através de um trabalho experimental e sem compromissos comerciais,
tornando-se overground. Tanto nas cosmologias de Mantrix e de Lemon quanto nas
micropolíticas do underground, o pólo negativo (i.e., o lado direito dos quadros) é, apesar de
desvalorizado e apresentado como virtualmente inferior, sempre reconhecido como atualmente
dominante e contingentemente necessário para a atualização do pólo positivo. Em outras
palavras, se por um lado são "poucos" (por princípio e de fato) aqueles que efetivamente
constituem underground (ou, poderíamos dizer com Mantrix, que "atentam para as necessidades
do espírito") e "muitos" aqueles que reproduzem o mainstream, por outro é da minoria
underground que o mainstream se alimenta e é através do uso estratégico dessa dependência que
aquele acaba se beneficiando deste na condição de overground. Assim, em todas as dualidades
analisadas, temos um domínio atual do pólo direito sobre o esquerdo, uma superioridade virtual
do esquerdo sobre o direito, e uma utilização contingente dos elementos do pólo direito pelo pólo
esquerdo para seus próprios fins.
A superioridade ontológica virtual do underground sobre o mainstream, do "interior"
sobre o "exterior", do "espírito" sobre a "matéria" e até mesmo da "música eletrônica" sobre a
"música popular tradicional", é exatamente aquilo que lhes conferiria maior poder xamânico. DJ
Arlequim nos mostrou que assim como um DJ pode ser underground (experimental) ou
mainstream (comercial), mas que se for underground será capaz de promover uma experiência
muito mais poderosa no seu público, também um público pode ser underground (atento,
buscando transformação) ou mainstream (disperso, buscando adaptação), mas apenas o público
108
underground estará predisposto e será capaz de realizar os "dois passos" necessários para fazer da
experiência um ritual de transformação. Como bem disse o DJ, "'tocar por tocar' não tem
sentido", e um DJ que não tenha por objetivo "trabalhar a percepção" e os "sentimentos" de seu
público dificilmente poderia ser chamado de xamânico.

109
110
Parte II
As Técnicas do Êxtase
112
Capítulo 4
Técnicas "arcaicas" do êxtase

113
114
O xamã é o primeiro técnico.1

1
Garcia dos Santos (2003b:70).

115
116
Dentre a infinidade de obras das mais diversas áreas voltadas, de alguma forma, ao tema do
xamanismo, uma se destaca por ser talvez a mais influente até hoje: O Xamanismo e as técnicas
arcaicas do êxtase, do historiador das religiões romeno Mircea Eliade,2 na qual se encontra a
seguinte definição de xamanismo:

Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será:
xamanismo=técnica do êxtase3

Apesar da influência dessa obra nos estudos sobre o xamanismo que se seguiram, ela foi
duramente criticada, principalmente por antropólogos e, geralmente, com razão.4 Reiterando uma
dessas críticas contundentes, Nicolas Thomas e Caroline Humphrey afirmam que Eliade "evitou
associar xamanismos particulares ou práticas xamânicas às peculiaridades de ambientes políticos
e sociais".5 Eles não chegam a considerar o xamã de Eliade "uma ficção total", mas mesmo assim

2
Cf. Eliade (1998 [1951]). "Apesar das numerosas reservas que atualmente se faz a essa imponente obra, ela
permanece a melhor introdução ao xamanismo, no tocante tanto aos temas abordados quanto à diversidade de
tradições culturais descritas" (D'Anglure 1996:506). "O livro de Eliade" é, segundo Piers Vitebsky, "provavelmente
a obra simples mais completa sobre o assunto" (Vitebsky 2001a:132) e Jeremy Narby nota que "Eliade entendeu,
antes de muitos antropólogos, a utilidade de levar a sério as pessoas e suas práticas e de prestar atenção aos
detalhes do que elas dizem e fazem" (Narby 1998:17).
3
Eliade (1998:16; itálico no original). Para reiterações desta definição, cf. Eliade (1998:10, 20, 84, 115, 127, 166,
208, 214-5, 226, 240, 244, 264, 287, 293, 329-30, 527, 534, 542, 547, 550; 1972a:41). Seu Dicionário das
Religiões, publicado postumamente em conjunto com Ioan P. Couliano, reforça a persistência dessa definição de
xamanismo: "O xamanismo não é propriamente uma religião, mas um conjunto de métodos extáticos e terapêuticos
cujo objetivo é obter o contato com o universo paralelo, mas invisível, dos espíritos e o apoio destes últimos na
gestão dos assuntos humanos." (Eliade e Couliano 1999 [1990]:267)
4
Eliade é freqüentemente criticado na Antropologia por nunca ter pesquisado o xamanismo fora das bibliotecas –
segundo Alice B. Kehoe, pelo menos até a publicação de sua obra sobre xamanismo, "o mais próximo que Eliade
havia estado dos 'povos primitivos e orientais' tinha sido uma universidade em Bangladesh" (Kehoe 2000:1; cf.
p.40) – e, principalmente, por ter distorcido informações para que se encaixassem em seu projeto purista e
essencialista de descobrir "o verdadeiro xamanismo Siberiano" e se adequassem às suas preferências religiosas –
como bem notaram Narby e Huxley, Eliade "queria que o xamã fosse para o céu", "priorizava os 'vôos celestiais'
em detrimento dos 'infernais'" e suas distinções entre êxtase e possessão "tinham mais a ver com suas crenças
religiosas do que com os fatos" (Narby e Huxley 2001:75, 76). Kehoe (2000) faz uma crítica bem fundada (apesar
de pouco construtiva e com muitos "pontos cegos"; cf. Kendall 2002) ao livro de Eliade. Vale repetir aqui a síntese
das críticas feitas por John Saliba a Eliade, citadas por Kehoe: "Em primeiro lugar, ele não distingue entre fontes
primárias e secundárias. . .Em segundo lugar, Eliade, via de regra, não faz nenhum esforço para avaliar as fontes
que ele cita e, quando o faz, nem sempre é de uma maneira antropologicamente correta. É importante notar que
nem todo relato etnográfico possui o mesmo padrão acadêmico. . .Em terceiro lugar, os escritos de Eliade são um
perfeito exemplo de acumulação indiscriminada de fontes. . .Não se percebe que os dados religiosos fornecidos por
essas fontes diversas variam quanto à precisão, certeza, interpretação e conteúdo." (Saliba, in: Kehoe 2000:6). Cf.
ainda Narby (1998:168 nota 24, 178 nota 7).
5
Thomas e Humphrey (1999:1). Segundo Esther J.M. Langdon, Eliade "preocupou-se demais com o xamã enquanto
indivíduo deixando em segundo plano o papel social exercido por este" (Langdon 1996:14), e Bernard S.
D'Anglure o acusa de ter "reduzido um sistema simbólico a um estado psicológico" (D'Anglure 1996:506). O fato é
que o mais próximo que Eliade parece chegar da (macro)política em seu livro é quando se refere à "história
lendária e o folclore da China", segundo a qual "a primeira pessoa que conseguiu voar foi o imperador Chuen
(2258-2208 de acordo com a cronologia chinesa)", sendo o "'êxtase' [...] tão necessário a um Fundador de Estado

117
o colocam ao lado de conceitos como "casta, tabu e mana", estando "mais próximo de uma
essência exótica, uma inversão romântica da racionalidade Ocidental, do que de uma categoria
acadêmica sustentável".6 Advogando a importante proposta de "rehistoricizar o xamanismo"7 e de
"desconstruir esse arquétipo"8 através de um "livro exploratório", eles sugerem que os xamãs
sejam encarados principalmente como "atores políticos ou mediadores de contradições e
resistências sociais historicamente constituídas".9 Mesmo concordando com as críticas feitas a
Eliade (que de fato oferece uma perspectiva despolitizada de xamanismo, mais preocupada com a
sua dimensão trans-histórica do que com suas relações históricas10) e com a importância de

quanto as virtudes políticas, pois essa capacidade mágica equivalia a uma autoridade, a uma jurisdição sobre a
natureza." (Eliade 1998:485-6)
6
Thomas e Humphrey (1999:2). Clifford Geertz já havia colocado "xamanismo" ao lado de "animismo,
"animatismo", "totemismo", "culto de ancestrais" e outras "insípidas categorias através das quais os etnógrafos da
religião desvitalizam sua documentação" (Geertz 1978:139), e em 1903 (quase meio século antes da obra de
Eliade, portanto) Van Gennep já achava melhor "deixar de lado" a palavra "xamanismo" por entender que ela "não
se aplica a nada em definitivo" (Van Gennep 2001:52). Segundo Kehoe, "a idéia Ocidental clássica de xamanismo"
que "Eliade aceitou sem nenhuma crítica" é o "estereótipo de selvagens distantes e primitivos preservando uma
religião pura e primordial perdida para os alienados homens cultos civilizados" (Kehoe 2000:3). "'Xamãs' e
'xamanismo'", a autora afirma, "são palavras usadas tão livre e ingenuamente, tanto por antropólogos quanto pelo
público em geral, que acabam gerando mais confusão do que conhecimento" (Kehoe 2000:2). Sem em nenhum
momento duvidar dos problemas envolvidos no uso inconsistente dessas palavras, por Eliade ou qualquer outro
pesquisador, é preciso notar que, se os mesmos pesquisadores que criticam o seu uso ainda assim continuam a usá-
las (o título do livro organizado por Thomas e Humphrey, afinal, é Shamanism, History and the State, e todos os
textos usam as palavras shaman e shamanism), é porque elas de alguma forma servem para produzir algum
conhecimento útil sobre os mais diversos processos rituais (sobre as limitações da crítica de Kehoe ao termo
"xamanismo" e as vantagens do uso do termo na antropologia, cf. Kendall 2002).
7
Thomas e Humphrey (1999:2). O problema da deshistoricização eliadeana do xamanismo é, como mostra Greene,
"a maneira como os xamãs são geralmente colocados em um papel atemporal e mítico ["xamanismo como 'reserva'
cultural [...] de identidade étnica pré-conquista, atemporal, mítica, pré-histórica, primordial", "sobrevivência
cultural", "um fenômeno anterior e arcaico"] para servir à mitologia Ocidental", aquilo que ele chama de "o pré-ser
[ante-self] do Ocidente" (Greene 1998:641-3).
8
Thomas e Humphrey (1999:11).
9
Thomas e Humphrey (1999:1).
10
Eliade (1998) se interessava, afinal, sobretudo pela "anistoricidade da vida religiosa" (p.9), por aquilo que chamou
de "fenômeno originário" (p.4) – como "os sonhos de ascensão, as alucinações e as imagens ascensionais que se
encontram pelo mundo afora" (p.4), "situações-limite obtidas pelas primeiras tomadas de consciência do homem
arcaico" (p.82), "a vontade de superar a condição profana, individual, e de atingir uma perspectiva transtemporal"
(p.82), "uma reimersão na vida originária" (p.82), "esse não-sei-quê irredutível" (p.5) –, "herança proto-histórica
comum" (p.479) "constitutiva da condição humana e, por conseguinte, conhecida pela humanidade arcaica em sua
totalidade" (p.547), que "pertence ao homem como tal, em sua integridade, e não como ser histórico" (p.4), é
"independentemente de qualquer 'condicionamento' histórico" (p.4) e que "talvez nos revele a verdadeira situação
do homem no cosmos, situação esta que – jamais nos cansaremos de repetir – não é unicamente 'histórica'" (p.5).
Para Eliade, "o condicionamento histórico de um fenômeno religioso [...] não o esgota completamente" (p.4) e
"nenhuma religião é inteiramente 'nova'", sendo sempre uma "reorganização, renovação, revalorização, integração
de elementos – e dos mais essenciais! – de uma tradição religiosa imemorial." (p.24). Daí sua afirmação de que
"[a]s experiências dos profetas monoteístas podem repetir-se, malgrado a enorme diferença histórica, no seio da
mais 'atrasada' das tribos primitivas; basta para tanto 'realizar' a hierofania de um deus celeste, deus testificado em
várias partes do mundo, ainda que no momento esteja praticamente ausente da atualidade religiosa" (p.8); e sua
idéia de "um arquétipo de 'conscientização existencial', presente tanto no êxtase de um xamã ou místico primitivo
quanto na experiência de Er, o Panfílio, e de todos os outros visionários do mundo antigo que, ainda em vida,
tiveram conhecimento do destino do homem após a morte" (p.429). Segundo Eliade, o historiador das religiões

118
"rehistoricizar" a teoria sobre o xamanismo, parece-nos demasiadamente apressado afirmar que
"qualquer interesse" em definições mais gerais do xamanismo "exige a supressão da dimensão
política".11 Afinal, não poderia haver na obra de Eliade (e nos esforços de definição em geral)
nenhuma contribuição para a compreensão das práticas rituais normalmente rotuladas de
xamânicas? Diferentemente do que defendem aqueles para quem os esforços de Eliade "não
produziram um paradigma frutífero"12 – e mesmo em acordo com a maior parte de suas ressalvas
– acreditamos que sim.13
A idéia de que exista um "xamanismo" em geral independente dos "xamãs" particulares é,
sem dúvida, apenas uma ficção metodológica. Cada sociedade tem seus próprios rituais de
iniciação ao xamanismo, e mesmo dentro de uma mesma sociedade esses rituais podem variar de
acordo com o caso. Além disso, atualmente já se sabe que a palavra "xamã" indica menos algo
que se é e mais propriamente algo que se tem ou que se pode –uma capacidade, um poder que a
pessoa adquire e que ela pode também perder.14 Por fim, é preciso nunca esquecer que o olhar

"apega-se, de um lado, ao concreto histórico, mas esforça-se, de outro, por decifrar o que um fato religioso revela
de trans-histórico através da história" (p.6), considerando "toda história [...] uma queda do sagrado, uma limitação e
uma diminuição" (p.9), o oposto dos sonhos, nos quais "o tempo histórico é abolido, recuperando-se o tempo
mítico", no qual "se atinge a vida sagrada por excelência", "se restabelecem relações diretas com os deuses, os
espíritos e as almas dos antepassados" e é possível "assistir ao começo do mundo e, assim, tornar-se
contemporâneo tanto da cosmogonia quanto das revelações míticas primordiais" (p.123). Cumpre notar, enfim, que
Eliade declara saber que "em nenhuma parte da história das religiões lidamos com fenômenos 'originais', pois a
'história' ocorreu em todos os lugares, modificando, refundindo, enriquecendo ou empobrecendo as concepções
religiosas, as criações mitológicas, os ritos, as técnicas do êxtase" (p.23-4).
11
Thomas e Humphrey (1999:3). O leitor encontraria uma prova contrária a esse argumento poucas páginas adiante
no mesmo livro, no ótimo texto de Hugh-Jones, que é em grande parte um esforço teórico por "revelar insights"
sobre as complexidades histórico-políticas do xamanismo a partir de uma interpretação de suas diferentes
manifestações amazônicas a partir de uma divisão "típico-ideal" entre xamanismos verticais e horizontais (cf.
Hugh-Jones 1999).
12
Langdon (1996:14).
13
Mesmo quando Kehoe critica antropólogos como Reichel-Dolmatoff, Peter Furst e Barbara Myerhoff por terem
aceito a terminologia eliadeana (cf. Kehoe 2000:44-5), parece-nos que a própria aceitação dessa terminologia por
antropólogos em contato direto com aquilo que escolheram chamar de "xamãs" revela algo de sua potencialidade.
Kehoe pergunta: "Há algum benefício em usar na mesma palavra 'xamã' para se referir a Ramón, o mara'akáme
executando saltos voadores sobre uma alta cachoeira [xamã Huichol pesquisado por Furst e Myerhoff], o homem
sul-americano desacordado por horas sob o efeito de drogas poderosas [xamã Desana pesquisado por Reichel-
Dolmatoff] e o siberiano que toca seu tambor, canta, dança e hiperventila até o colapso?" (Kehoe 2000:45)
Segundo Furst, Myerhoff, Reichel-Dolmatoff e mais dezenas de antropólogos, parece que sim, desde que ver
"algum benefício" em usar a palavra "xamã" e parte da terminologia eliadeana não implique em concordar com
tudo ou mesmo com a maior parte daquilo que ele fala (o que faria, de fato, pouco sentido) (cf. Kendall 2002).
14
As variações sobre o tema são diversas. Dominique T. Gallois, por exemplo, mostra que entre os Waiãpi, "pajé"
(traduzido como "xamã") é algo que se tem e que se pode muito facilmente perder: "Todos podem 'ter pajé'",
"[m]as são raros aqueles que conseguem [...] conservar-se neste estado, normalmente precário" (Gallois 1996:51;
cf. pp.40-2 e 51-61; 1985:190) – vale notar, no entanto, que "[i]ndividualmente, pode-se perder o –paie, mas o –
paie nunca se perde, não se esgota, não morre" (Gallois 1996:49). Waud H. Kracke, por sua vez, afirma que o
conceito Kagwahiv de ipají (pajé, xamã) é menos uma função estabelecida do que "uma qualidade encontrada em
certos indivíduos: ser dotado desse poder é como ser generoso, alto, bravo ou belo" (Kracke 1992:129); como ele
ouviu repetidas vezes: "Qualquer um capaz de sonhar tem um pouco de pajé" (Kracke 1992:137, 139, 143).

119
que cada pesquisador, em cada época e contexto, lançou sobre cada xamã, certamente influenciou
não apenas aquilo que ele viu, mas também aquilo que outros viram através dele.15 Assim não
podemos, a princípio, falar de "xamanismo" a não ser como um "tipo-ideal"16 sempre provisório e
contingente construído por induções a partir de estudos particulares de casos particulares.
Mas se a análise comparativa de práticas xamânicas tradicionais em uma enorme
variedade de sociedades diferentes não nos oferece mais do que um "tipo-ideal", isso não nos
impede necessariamente de usar uma tipologia como recurso interpretativo. Ocorre que não
explicar tudo é muito diferente de não explicar nada. É preciso apenas atentar para que a forma
"xamanismo" nunca deixe de se informar pelas singularidades da matéria dos "xamãs", nunca se
torne um molde acabado que então só reduziria esta matéria a uma forma pré-estabelecida.17 Em
outras palavras, é preciso não confundir o "tipo" – que busca apenas construir um objeto ideal a
partir daquilo que é comum aos casos – com o "conceito" – que busca então penetrar na
singularidade do objeto assim construído. Talvez o mínimo que se deva esperar de um bom
conceito é que ele seja "bem talhado"18 e não um leito de Procusto, e parece-nos que a força e a
boa aceitação19 da definição de xamanismo como técnica do êxtase se deve principalmente ao

Viveiros de Castro afirma que "os Araweté nunca definiram uma classe de seres pelo critério ipeye hã ["potência
xamânica ou espiritual"]; eles apenas apontavam esse poder em tal espécie de ser, em tal outra, etc.", e que "a raiz –
peye [pajé, xamã] pode ser tanto substantivada quanto entrar em construções verbais" (Viveiros de Castro
1986a:207 nota 19). "Xamã", assim, é "algo que se 'tem'", "uma qualidade ou capacidade adjetiva ou relacional",
uma "função" (Viveiros de Castro 2004:5). Grim, enfim, nota que a palavra "xamã", na sua concepção siberiana
original, funciona tanto como um substantivo quanto como um verbo (cf. Grim 1981:2).
15
Jeremy Narby e Francis Huxley (2001) mostram isso muito bem numa coletânea de 64 textos sobre xamanismo em
que o primeiro data de 1535 – quando o cristianismo estigmatizava o xamanismo como demoníaco e os
pesquisadores que o levassem a sério como pecadores – e o último de 2000 – quando o xamanismo já é tratado
como uma forma específica de produção de conhecimento ao lado da ciência. Segundo os editores, se algo mudou
nos últimos cinco séculos de pesquisas sobre o xamanismo, foi "o olhar dos pesquisadores" (Narby e Huxley
2001:8). Sobre isso, cf. também Vitebsky (2001a:130-5).
16
Consideramos útil a definição weberiana de tipos ideais como "construções racionais, técnico-empíricas" ou
"máquinas racionais de pensar" (Weber 1992:394). O tipo ideal, Weber propõe, não se mistura à realidade dos
fatos, servindo apenas como "recurso técnico" (Weber 1963:372), "um conceito-limite, puramente ideal, em
relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos
importantes" (Weber 1992:140).
17
Essa formulação se inspira em Simondon (1992) e em Viveiros de Castro (2002a).
18
Segundo Bergson, "o inconveniente dos conceitos demasiadamente simples" é que "cada um deles retém do objeto
apenas o que é comum a este objeto e a outros" (Bergson 1974:23). Daí seu apelo por trabalhar apenas "sob
medida", por elaborar um método que dedica "um esforço absolutamente novo para cada novo objeto que estuda",
que "talha para o objeto um conceito apropriado somente ao objeto, conceito de que se pode dificilmente dizer que
seja ainda um conceito, pois somente se aplica a uma única coisa" (Bergson 1974:29). Deleuze remete o valor
atribuído por Bergson ao "bom alfaiate" e às "vestes feitas sob medida" para definir o "conceito preciso" a um certo
platonismo (cf. Deleuze 1999:34).
19
A influência dessa definição de xamanismo como técnica do êxtase pôde ser observada principalmente nos estudos
de orientação histórica – e.g. Pike (1958) , Bongard-Levin e Grantovsky (1977), Sullivan (1988), Flaherty (1992),
Ripinsky-Naxon (1993) e König (1998) –, mas pudemos notar também a sua presença (geralmente implícita) em
muitos estudos de orientação antropológica – e.g. Lewis (1971), Lins (1985), Crocker (1985:19-20, 22), Müller
(1985; 1990:178), Langdon (1992a; 1996:9-37), Baer (1992), Kracke (1992), Wright (1992), Wright (1998:85, 89-

120
fato de que ela dá conta do fenômeno e é capaz de se deixar informar por cada nova descoberta,
principalmente por ter captado uma característica fundamental do xamanismo, a saber: a
capacidade do xamã de controlar tecnicamente o seu próprio êxtase e aquele dos outros.20 Assim,
se é verdade que não existe um xamanismo em geral, apenas xamãs particulares, também é
verdade que um elemento comum a todos os xamãs conhecidos certamente pode dar origem, após
um certo trabalho bergsoniano de purificação, a um conceito operativo de xamanismo como
"objeto singular". Deleuze mostrou bem como a "obsessão pelo puro" em Bergson define o seu
método intuitivo como "um verdadeiro método de divisão" que busca nas "tendências" do real as
suas "diferenças de natureza"21 e como esse método comporta dois momentos, cada qual com sua
divisão e dualismo específicos:

No primeiro tipo [de divisão], tem-se um dualismo reflexivo, que provém da decomposição de um
misto impuro: ele constitui o primeiro momento do método. No segundo tipo, tem-se um dualismo
genético, saído da diferenciação de um Simples ou de um Puro: ele forma o último momento do
método, aquele que reencontra, finalmente, o ponto de partida em um novo plano.22

É como ponto de partida para esse processo de purificação conceitual que pretendemos aqui
adotar a definição eliadeana de xamanismo como técnica do êxtase, sendo o "segundo momento"
desse processo aquele da "diferenciação" desse conceito purificado no caso específico da música
eletrônica.23
Não nos deteremos aqui na malfadada busca de Eliade pelo "xamanismo stricto sensu"24 e
pelo "fenômeno xamânico em si"25, já criticada com muita propriedade dentro da Antropologia.

90), Reichel-Dolmatoff (1997:121-47; cf. Kehoe 2000:44-5), Narby (1998), Hugh-Jones (1999), Peter Furst e
Barbara Myerhoff (cf. Kehoe 2000:44-5), Vitebsky (2001a), Narby e Huxley (2001:4, 75-6, 135). Vale notar ainda
que, antes de Eliade, William James (1902) e Max Weber (1963 [1915]) já haviam se dedicado ao estudo de
algumas técnicas do êxtase.
20
Em uma abrangente pesquisa, Larry G. Peters e Douglas Price-Williams afirmam que "[q]uase todos que
escreveram sobre o tema apontam o êxtase como o ingrediente inescapável do xamanismo", sendo "o elemento
comum em todos esses relatos o fato de o xamã […] manter o controle de seu êxtase" (Peters e Price-Williams
1980:398-9). Langdon confirma que "a experiência extática é o critério essencial" (Langdon 1992a:16) do poder
xamânico, e um exemplo de confirmação etnográfica explícita das teses eliadeanas no xamanismo sul-americano
pode ser encontrado em Lins (1985).
21
Cf. Deleuze (1999:15, 130-1; itálico no original).
22
Deleuze (1999:77; itálicos no original).
23
Diríamos, mesmo sabendo que dificilmente fazemos jus à nossa inspiração filosófica, que as Partes II e III desta
tese correspondem, respectivamente e grosso modo, aos primeiro e segundo momentos do método bergsoniano.
24
Segundo Eliade, a "vida mágico-religiosa" dos povos siberianos e centro-asiáticos gira em torno do xamanismo,
pois "em toda essa região, onde a experiência extática é considerada a experiência religiosa por excelência, é o
xamã, e apenas ele, o grande mestre do êxtase" (Eliade 1998:16). "Visto que esse fenômeno mágico-religioso se
manifestou em sua forma mais completa na Ásia central e setentrional [...] como uma estrutura na qual certos
elementos que existem difusos no resto do mundo [...] já se revelam [...] integrados numa ideologia particular que
valida técnicas específicas", ele continua, "tomaremos como exemplo típico o xamã dessas regiões." (Eliade

121
Partiremos da constatação de que, para além de todos os problemas já detectados na sua obra, há
um acordo entre os pesquisadores quanto a pelo menos dois méritos que a ela se pode
seguramente atribuir:26 (1) ter disponibilizado, de uma maneira ordenada e sintética, a enorme
quantidade de pesquisas até então dispersas sobre xamanismo, dando início a uma nova fase no
estudo do fenômeno; e (2) ter proposto uma terminologia unificada, mesmo sem tê-la

1998:18). No entanto, Eliade não parece encontrar nos dados empíricos os subsídios necessários para sustentar sua
argumentação em favor desse "xamanismo stricto sensu". O fato é que não mais do que duas páginas após a
máxima "[o] xamanismo stricto sensu é, por excelência, um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático" (Eliade
1998:16; itálico no original), Eliade é obrigado a afirmar que "[t]al xamanismo stricto sensu não está restrito à Ásia
central e setentrional" (Eliade 1998:18; itálico no original). As dificuldades dessa empresa idealista de Eliade eram
inúmeras. Como nota Vitebsky, "[h]avia vários tipos de 'xamãs' [na Sibéria e na Mongólia], inclusive no seio de
uma mesma sociedade, e até no mesmo acampamento. [...] A idéia do xamã puro ou ideal, tal como apresentada
por Eliade, torna-se cada vez mais difícil de sustentar em qualquer pesquisa nesta região social e ecologicamente
diversificada." (Vitebsky 2001a:34-5). Segundo Caroline Humphrey, "Eliade transformou as práticas religiosas
inspiratórias [the inspirational religious practices] do norte da Ásia em um eterno mistério": "Povos, dos quais não
se oferece nenhuma descrição e nenhuma contextualização temporal, são citados como exemplos desse ou daquele
aspecto do xamanismo, como se o xamanismo fosse algum tipo de entidade metafísica se fazendo presente apesar
da história e das sociedades" (Humphrey 1999:191). Em um curto comentário publicado no periódico Man, Ioan
M. Lewis apresenta críticas contundentes ao "purismo" eliadeano, cujo emprego do termo "xamã" lhe parece, na
verdade, "impuro". Segundo Lewis, "qualquer um que se dê o trabalho de consultar as fontes primárias de Eliade"
perceberá que "todos os traços segregados erroneamente por Eliade em termos pseudo-evolucionistas"
(principalmente a possessão) estão presentes no xamanismo Tungue (cf. Lewis 1993:361). Lewis se diz
surpreendido com a "enorme e desencaminhadora influência que Eliade exerceu sobre as maneiras como
antropólogos pensam sobre e conceitualizam o xamanismo" e também com "a extraordinária persistência dos
equívocos de Eliade entre antropólogos modernos" (Lewis 1993:361), talvez por ele mesmo já ter considerado o
trabalho de Eliade "convincente" (cf. Lewis 1971:26; Langdon 1992a:5).
25
Segundo Eliade, "[s]e por 'xamã' se entender qualquer mago, feiticeiro, medicine-man ou extático [a tradução para
o português acrescenta ainda "curandeiro" e "pajé"] encontrado ao longo da história das religiões e da etnologia
religiosa, chegar-se-á a uma noção ao mesmo tempo extremamente complexa e imprecisa, cuja utilidade é difícil
perceber" (Eliade 1998:15; itálico no original). Assim, é preciso distinguir o "fenômeno xamânico em si" de todos
os outros fenômenos normalmente associados a ele – "não é qualquer mago que pode ser qualificado de xamã", e
"não se pode [...] considerar qualquer extático como um xamã" (Eliade 1998:17). No entanto, debruçando sobre o
seu uso do termo "êxtase", nos deparamos de imediato com um excesso de definições conflitantes e nada
sistemáticas que acaba por comprometer o poder analítico do tipo-ideal proposto. Não mais do que três páginas
após afirmar que "não se pode [...] considerar qualquer extático como um xamã", por exemplo, Eliade transforma
em sinônimos "xamã" e "extático", "experiência xamânica" e "experiência extática" (Eliade 1998:20). E basta um
estudo sistemático da obra para perceber que esta confusão terminológica jamais se esclarece – pelo contrário, se
complica, sua terminologia variando indefinidamente. Alguns exemplos das mais variadas ocasiões em que Eliade
emprega como sinônimos de xamã termos que ele explicitamente distinguiu dele são (sempre em Eliade 1998):
curandeiro (pp.34, 36, 41, 46, 71, 103, 122, 145, 202-3, 208, 211, 310, 313, 330, 332, 339, 348, 354-5, 357, 361,
371, 378, 380-2, 386, 396-9, 406, 422, 491, 512-3, 532); extático (pp.20, 409, 422, 424, 431, 433, 442, 446, 485,
492); feiticeiro (pp.34, 36, 46, 73-4, 104, 111, 120, 163, 177, 182, 202-4, 208, 278, 329-30, 333, 350, 356, 359,
360, 363, 381, 384-5, 389, 395-7, 399, 400, 402, 404-7, 419, 421, 425, 427, 431, 465, 476, 480-1, 485-7, 490-2,
494, 502-3, 512, 514-5, 518-20, 527, 532, 534, 545); mago (pp.16-7, 34, 41, 62, 65, 67, 86, 105, 107, 111, 122,
134, 148, 156, 163, 188, 205, 210-1, 256, 329, 333, 356, 380, 382, 395-6, 405, 409, 415-6, 419-20, 437, 443-7,
450-1, 461, 465, 485, 488, 495, 515, 517, 522, 541, 544, 545, 548); medicine-man (pp.16-7, 36, 46, 62-8, 74, 84,
101, 106, 128, 134, 148-9, 153-4, 156-60, 162, 164, 204, 260, 332, 348, 350, 353, 364, 369, 374-5, 381, 393, 395-
6, 406, 518, 527, 531, 548, 551); pajé (pp.101-2, 111, 356-7, 360). A lista de termos usados por Eliade como
possíveis análogos para "xamanismo" ainda inclui: adivinho; alquimista; brâmane; carpideira; doutor; exorcista;
fada; faquir; ferreiro; guru; herói; ilusionista; imperador; inspirado; iogue; médico; médium; místico; necromante;
poeta; possuído; profeta; psicopompo; purificador; rei; sábio; sacerdote; santo; soberano; taoísta; vidente; além de
dezenas de termos nativos (como angakok, pawang, machi e outros).
26
Cf. Langdon (1992a:3-4; 1996:13-4) e D'Anglure (1996:506).

122
desenvolvido plenamente, centrada principalmente no conceito embrionário de "técnicas do
êxtase". Além disso, apesar de muitas vezes exageradamente essencialista em sua idealização do
homo religiosus,27 Eliade foi muitas vezes capaz de revelar (talvez involuntariamente) aspectos
míticos pouco conhecidos daquilo que ele mesmo chamou de homo faber28 – i.e., aspectos da
"grande mitologia da 'arte e da técnica'"29 – e de chamar a atenção para aquilo que ele chamou de
"a sobrevivência subconsciente, no homem moderno, de uma mitologia abundante", de um
"tesouro mítico [que] aí repousa 'laicizado' e 'modernizado'".30 Parece-nos útil levar a sua
definição de xamanismo como técnica "arcaica" do êxtase para além do essencialismo
primordialista no qual ele o encerrou, investigando as possibilidades que ela abre para a
compreensão de possíveis técnicas contemporâneas do êxtase.

Xamanismo como técnica do êxtase


Assim como o conceito de xamanismo, a idéia de uma "iniciação ao xamanismo" é uma
abstração baseada na análise comparativa de rituais de iniciação às vezes muito diversos. Existem
sociedades onde essa iniciação é bastante complexa e institucionalizada, ao passo que em muitas
outras ela praticamente inexiste enquanto ritual organizado.31 O que talvez se possa dizer com
segurança é que existem, em meio à enorme variedade de atividades que iniciam a pessoa no
xamanismo, algumas experiências que se destacam pela recorrência e pela semelhança, mesmo
quando não se formalizam em rituais socialmente prescritos. Tais experiências, que assumem
formas distintas em cada contexto, consistem nos primeiros contatos do iniciando com o mundo
sobrenatural e são o ponto de partida para o aprendizado das técnicas do êxtase. Essas
experiências são geralmente vividas em situações-limite (traumas, doenças, rupturas existenciais,
experiências próximas da morte ou a própria morte), mas também podem se fazer presentes em
qualquer outro momento da vida (sonho, devaneio, meditação, contemplação, dança, sexo etc.),

27
Cf. Eliade (1995).
28
Cf. Eliade (1979:78-9, 110, 131-3). Segundo Bergson, o homo faber se caracteriza pela "faculdade de fabricar
objetos artificiais, em particular utensílios para fazer utensílios, e variar indefinidamente sua fabricação" (Bergson
2005:151).
29
Cf. Eliade (1979:79).
30
Eliade (1996:12 e 14).
31
Entre os Araweté, por exemplo, "[n]ão há iniciação ou 'chamado' formais ao xamanismo" e "não há um critério
nítido de separação entre xamãs e não-xamãs", sendo todo adulto "um pouco xamã" (Viveiros de Castro
1986a:530, 535). Mesmo assim, certos sonhos, "se freqüentes", podem "indicar uma vocação xamanística", e há
um "treinamento xamanístico" conduzido por um "iniciador" que "consiste em um longo ciclo de intoxicações por
tabaco" (Viveiros de Castro 1986a:530-2).

123
sendo os rituais de iniciação ao xamanismo apenas um contexto privilegiado em que elas ocorrem
e ganham forma. Uma boa introdução a esse tipo de êxtase iniciático é oferecida por Eliade:

As doenças, os sonhos e os êxtases mais ou menos patogênicos são [...] meios de acesso à condição
de xamã. Às vezes, essas experiências singulares significam apenas uma "escolha" [...]. Mas quase
sempre as doenças, os sonhos e os êxtases constituem em si uma iniciação, ou seja, conseguem
transformar o homem profano de antes da "escolha" em um técnico do sagrado. É claro que essa
experiência de ordem extática é sempre [...] seguida por uma instrução teórica e prática a cargo dos
velhos mestres, mas não deixa por isso de ser decisiva, pois é ela que modifica radicalmente o
status religioso da pessoa "escolhida". [...] [T]odas as experiências extáticas que decidem a
vocação do futuro xamã comportam o esquema tradicional das cerimônias de iniciação: sofrimento,
morte e ressurreição. [...] Quanto ao conteúdo dessas experiências extáticas iniciais, embora seja
bastante rico, quase sempre comporta um ou vários dos seguintes temas: despedaçamento do corpo
seguido pela renovação dos órgãos internos e das vísceras, ascensão ao Céu e diálogo com os
deuses ou os espíritos; descida aos Infernos e contato com os espíritos e as almas dos xamãs
mortos; revelações diversas de ordem religiosa e xamânica (segredos do ofício).32

O êxtase iniciático, segundo Eliade, apesar de geralmente seguido de uma certa "instrução teórica
e prática a cargo dos velhos mestres", é "em si uma iniciação". Dentre os principais elementos
constitutivos desse êxtase xamânico iniciático, se destaca a forte relação entre "doença", "sonho"
e "êxtase". Essa relação, retomada diversas vezes por Eliade, deriva do fato de que, no
xamanismo, a doença está diretamente ligada à "perda da alma"33 e o sonho é, em si, uma
"viagem da alma".34 Assim, sendo o êxtase diversas vezes descrito como um "abandono do corpo
pela alma",35 é possível dizer com segurança que doenças e sonhos são exemplos daquilo que
Eliade define como "experiências extáticas". Outra experiência geralmente descrita como um
abandono do corpo pela alma e também presente no "esquema tradicional das cerimônias de

32
Eliade (1998:49-50).
33
Sobre o xamanismo asiático, por exemplo, Eliade afirma: "Se o tratamento xamânico exige êxtase, é justamente
porque a doença é concebida como uma alteração ou uma alienação da alma." (Eliade 1998:244). Ver também
Eliade (1998:20, 49, 76, 233, 243, 332, 335, 337, 359-60, 382, 478, 320, 406, 484-5). Violação de "tabus",
introdução de "objetos patogênicos" no corpo e "possessão por espírito" também são muito citados como causas
das doenças em diferentes culturas, mas, no geral, Eliade sustenta (com bastante confirmação etnográfica) que a
"concepção de doença [...] do xamanismo" é a "fuga da alma" (Eliade 1998:406).
34
"É em sonhos que se atinge a vida sagrada por excelência e que se restabelecem relações diretas com os deuses, os
espíritos e as almas dos antepassados. É sempre nos sonhos que o tempo histórico é abolido, recuperando-se o
tempo mítico, o que possibilita ao futuro xamã assistir ao começo do mundo e, assim, tornar-se contemporâneo
tanto da cosmogonia quanto das revelações míticas primordiais. [...] É sempre em sonhos que se recebem as regras
iniciáticas (regimes, tabus etc.) e que se fica sabendo quais os objetos necessários à cura xamânica." (Eliade
1998:123). Tratando das "tribos das Montanhas Rochosas da América do Norte", Eliade afirma que "o poder
xamânico também pode ser herdado, mas é sempre através de uma experiência extática (sonho) que se faz a
transmissão" (Eliade 1998:35). Ver também Eliade (1998:4, 26, 32, 49, 76, 132, 137, 256, 298).
35
"Quando é chamado para um tratamento, o xamã tremyugan começa a tocar tambor e guitarra até cair em êxtase.
Abandonando o corpo, sua alma entra nos Infernos e começa a procurar a alma do doente." (Eliade 1998:248). Ver
também Eliade (1998:17, 208, 226, 264, 270, 275, 283, 287, 362, 434-5, 451, 509, 520). Para exemplos deste
mesmo fenômeno, só que descrito como "sair de si mesmo", cf. Eliade (1998:251, 497-8, 506).

124
iniciação" é a de "morte".36 Eliade constata que, para além das diversas variações nas formas de
recrutamento, iniciação e outorga de poderes xamânicos encontradas nas diferentes manifestações
culturais do xamanismo (às quais ele dedica a maior parte dos quatro primeiros capítulos de seu
livro), é na experiência extática da morte ritual que reside a essência do processo iniciático. O
"despedaçamento do corpo" do candidato, sua "descida ao Inferno" e as "revelações" aí obtidas
são as etapas de uma "morte ritual" que, no xamanismo, constitui a essência mesmo da iniciação
nas técnicas do êxtase. Isso porque é a experiência da morte ritual que irá permitir a instrução do
xamã, por espíritos e deuses – "revelações" feitas geralmente através de transformações corporais
diretas, muitas vezes descritas como um "desmembramento"37 ou uma troca/modificação de
membros/órgãos –, quanto às técnicas que permitirão não apenas a sua própria ressurreição mas,
principalmente, a repetição da viagem sempre que necessário – o que exige o conhecimento do
itinerário perigoso e cheio de "pontes" e "passagens perigosas" que toda alma humana deve
percorrer em seu caminho para o "mundo dos mortos".38 A experiência extático-mórbida
iniciática do xamã é, portanto, uma espécie de aprendizado. Mas o conhecimento alcançado nesta
experiência não fica restrito ao ambiente do próprio xamanismo, sendo posteriormente
incorporado na mitologia, nos rituais e naquilo que Eliade chamou de "geografia funerária":39

É graças à sua capacidade de viajar para os mundos sobrenaturais e de ver os seres sobre-humanos
(deuses, demônios, espíritos dos mortos etc.) que o xamã pôde contribuir de maneira decisiva para
o conhecimento da morte. É provável que grande número de características da "geografia
funerária" e que certo número de temas da mitologia da morte sejam resultado das experiências
extáticas dos xamãs. As paisagens que o xamã avista e as personagens que encontra em suas
viagens extáticas para o além são minuciosamente descritas por ele mesmo, durante ou após o
transe. O mundo desconhecido e terrificante da morte toma forma, organiza-se segundo tipos
específicos; acaba ganhando estrutura e, com o tempo, torna-se familiar e aceitável. [...] Aos
poucos, o mundo dos mortos vai-se tornando cognoscível, e a própria morte acaba assumindo o
valor de rito de passagem para um modo de ser espiritual.40

36
A relação entre "êxtase" e "morte" é tão estreita que Eliade chega muitas vezes a tratá-los como sinônimos, como
no seguinte trecho: "O êxtase é apenas a experiência concreta da morte ritual ou, em outras palavras, da superação
da condição humana, profana. E [...] o xamã é capaz de obter essa "morte" por todos os tipos de meios, desde os
narcóticos e o tambor até a "possessão" por espíritos." (Eliade 1998:115). Ver também Eliade (1998:77, 103, 115,
433, 506, 509, 517, 520, 523, 534, 552-3). Tratando do xamanismo norte-americano, Eliade dá um bom exemplo
dessa interpenetração entre êxtase, sonho e morte: "A alma deixa o corpo durante o sono; quando alguém é
acordado bruscamente, pode morrer. Nunca se deve acordar um xamã em sobressalto." (Eliade 1998:332).
37
Um exemplo sul-americano de "desmembramento" iniciático pode ser encontrado em Langdon (1995:116).
38
"A Ponte, na verdade, não é apenas passagem dos mortos; é também [...] caminho dos extáticos" (Eliade
1998:433). "Os xamãs, assim como os mortos, precisam atravessar uma ponte durante sua viagem aos Infernos.
Assim como a morte, o êxtase implica uma 'mutação', que o mito traduz plasticamente por uma passagem
perigosa." (Eliade 1998:523) Eliade dedica uma parte do décimo terceiro capítulo de seu livro ao tema "A ponte e a
'passagem difícil'" (Eliade 1998:523-7).
39
Além de "funerária", esta "geografia" também é chamada por Eliade de "mística" e "mítica". Para exemplos, cf.
Eliade (1998:208, 231, 427, 482).
40
Eliade (1998:552-3).

125
O conhecimento adquirido pelo xamã em suas experiências extático-mórbidas seria, assim, numa
espécie de autopoese escatológica, a própria matéria prima da qual seriam compostos os mitos e
as crenças relativas à morte. É através de um controle técnico sobre a experiência da morte ritual
que os xamãs vão gradual e coletivamente produzindo um conhecimento consistente sobre essa
"geografia funerária", cartografia mítica que vai assim se consolidando enquanto conhecimento
compartilhado nos mitos.41 Dentre as habilidades xamânicas tornadas possíveis por esse controle
técnico do êxtase alcançado pelo xamã, a psicopompia42 se destaca, por envolver justamente o
trabalho de condução de almas através dessa geografia mítica:

O xamã é curandeiro e psicopompo porque conhece as técnicas do êxtase, isto é, porque sua alma
pode abandonar impunemente o corpo e vagar por enormes distâncias, entrar nos Infernos e subir
ao Céu. Ele conhece, por experiência extática pessoal, os itinerários das regiões extraterrenas. Pode
descer aos Infernos e subir ao Céu porque já esteve lá. O risco de perder-se nessas regiões
proibidas é sempre grande, mas, santificado pela iniciação e munido de seus espíritos guardiões, o
xamã é o único ser humano que pode correr esse risco e aventurar-se numa geografia mística. [...] É
[...] graças a essa capacidade extática que o xamã [...] conhece o itinerário e, além disso, é capaz de
controlar e conduzir "almas", sejam elas de pessoas ou de animais.43

Segundo Eliade, para ser capaz de conduzir uma alma ao seu destino final, o "xamã-psicopompo"
precisa: (1) ser capaz de abandonar "impunemente" (ou seja, sem morte definitiva) o próprio
corpo e assim assumir a forma espiritual da alma que deve conduzir; (2) ser capaz de orientar seu
vôo para as regiões superiores ou inferiores44 de acordo com as necessidades; (3) transpor a

41
É nesse sentido que interpretamos as afirmações de Viveiros de Castro, sobre os Araweté, de que "é o xamã, mais
que os 'ancestrais' – e portanto o 'indivíduo' mais que uma tradição impessoal – o responsável pelo estado corrente
da cosmologia", de que os "cantos xamanísticos [...] são propriamente os mitos em ação e em transformação"
(Viveiros de Castro 1986a:63-4), de que os xamãs são "formuladores e divulgadores do saber cosmológico"
(Viveiros de Castro 2002b:215) e de que a "cosmologia prática" "se funda e atualiza no discurso empírico,
altamente produtivo, dos xamãs" (Viveiros de Castro 1985:84 nota 2) e "aparece [...] como o somatório contingente
das versões criadas pelos xamãs e lembradas pela comunidade" (Viveiros de Castro 1986a:252). Cf. ainda Albert
(2000b:250-1).
42
A palavra de origem grega "psicopompo" pode ser traduzida como "guia espiritual" (cf. Kehoe 2000:42) –
"psicopompia" designando o trabalho de condução de almas em uma viagem espiritual. Um exemplo especialmente
eloqüente não apenas da função xamânica da psicopompia mas também da difusão social da "geografia funerária"
pode ser visto no relato que Robin M. Wright oferece da morte pública do pai do xamã Baniwa Mandu, Serafim,
que narrou, para aqueles que o rodeavam no momento de sua morte e contando com o auxílio do filho – que lhe
alertava, por exemplo, para ter cuidado com certos espíritos que "levavam muitos dos que morriam para sua aldeia
de calor e sede eterna" (Wright 1998:170) –, o trajeto que sua alma percorria até as "casas dos mortos" (cf. Wright
1998:201), com diversos encontros e diálogos com seres míticos: "As pessoas escutaram com atenção, pois
Serafim estava evidentemente fazendo sua viagem ao mundo dos mortos" (cf. Wright 1998:170-1).
43
Eliade (1998:208-9). É a psicopompia, enfim que faz dos xamãs "mediadores" entre os humanos e o sobrenatural
(cf. Eliade 1998:20).
44
Eliade insiste em tratar as viagens dos xamãs às regiões superiores e inferiores do cosmos como "ascensões ao
Céu" (no singular) e "descidas aos Infernos" (geralmente no plural), tendência que talvez se explique mais por suas
próprias preferências religiosas do que pelas dos xamãs – Humphrey acrescenta, no entanto, que muitos xamãs

126
"passagem difícil" ou "perigosa" entre este mundo e os "mundos sobrenaturais" do "além",45 que
tradicionalmente prende a alma do morto recente ao mundo dos vivos causando os mais variados
problemas; e (4) conhecer a "geografia mítica" de forma a conduzir a alma, sem transtornos, para
o seu destino adequado. Sendo esses os elementos básicos da psicopompia e sendo esta uma das
funções mais comuns ao xamanismo tradicional, é possível que esses quatro itens correspondam
a uma lista básica daquilo que Eliade chamou de "as técnicas arcaicas do êxtase".
Vimos como o aprendizado, pelo xamã, do controle de seu próprio êxtase e daquele dos
outros, geralmente depende de uma "ruptura" cosmológico-existencial mórbida caracterizada por
muitos como uma "passagem difícil", "perigosa" ou "estreita", além da qual apenas os espíritos
podem ir e da qual apenas xamãs podem retornar. A passagem difícil que o xamã é capaz de
atravessar quando em êxtase para resgatar almas perdidas ou contatar o sobrenatural é a mesma
que ele teve que passar no momento de sua iniciação, quando ainda não conhecia a geografia
funerária e nem dominava as técnicas necessárias para controlar a experiência que se seguiu à sua
ruptura do mundo humano habitual. É o fato de que ele retorna – transformado pelo contato com
os espíritos, pelas novas experiências, pelo seu novo corpo e novos conhecimentos – que o
permite, a partir de então, repetir essa experiência de ruptura de maneira controlada quando
necessário.46 Seria interessante verificar, através de alguns exemplos, como a transformação
sofrida pelo neófito é, acima de tudo, uma metamorfose corporal, caracterizada pela
transferência, por seres sobrenaturais, de técnicas específicas diretamente ao seu corpo, muitas
vezes sem a ocorrência de um aprendizado consciente.

siberianos de fato (mas por motivos que escapavam totalmente à perspectiva de Eliade) descreviam seus êxtases
como "ascensões celestes" já por influência de suas relações com o Estado (cf. Humphrey 1999:197), e o mesmo
pode ser observado em alguns xamanismos sul-americanos a partir do contato com os missionários. Descrevendo
uma sessão de cura dos iacutos, por exemplo, em que o xamã dá saltos que "às vezes chega[m] a ser de quatro pés",
Eliade afirma: "Trata-se, evidentemente, de uma "ascensão" extática ao Céu." (Eliade 1998:259). Em outra ocasião,
o historiador relata: "Quando o manang-chefe [xamã dos dayaks da costa do Bornéu] cai, os presentes jogam uma
coberta sobre ele e esperam pelo resultado de sua viagem extática, pois assim que entra em êxtase o manang desce
aos Infernos para procurar a alma do doente." (Eliade 1998:383). Em diversas tradições a descida do xamã aos
mundos inferiores é descrita como um "mergulho ao fundo do mar", que Eliade insiste em equiparar a uma descida
"aos Infernos", como quando diz que "o xamã iacuto é acompanhado em suas viagens extáticas por uma ave
aquática [...] que simboliza justamente a imersão no mar, ou seja, uma descida aos Infernos" (Eliade 1998:263).
Para outros exemplos de êxtase como "ascensão ao Céu", "ascensão celeste", "ascensão mística" ou "subida às
nuvens", cf. Eliade (1998:17, 68, 157, 251, 259 nota 24, 270, 283, 360, 411, 455, 486, 489-90, 498, 527, 534). Para
outros exemplos de êxtase como "descida aos Infernos" ou "mergulho, cf. Eliade (1998:17, 275, 283, 325, 341,
417, 549).
45
Tratando das "viagens extáticas ao além" realizadas pelo xamã indonésio "para acompanhar as almas dos mortos
aos Infernos ou para procurar as almas dos doentes raptadas por demônios ou espíritos", Eliade define o "além"
como: "terra dos mortos e terra dos espíritos" (Eliade 1998:390). Para outros exemplos de "êxtase" como "viagem
ao além", cf. Eliade (1998:32, 91, 114, 165, 251, 275, 283, 327, 417, 453-4, 506, 552).
46
"Uma das técnicas mais importantes que se aprende durante a iniciação é a habilidade de retornar do êxtase e do
isolamento. O controle sobre o êxtase depende da capacidade de dar um fim ao processo." (Sullivan 1988:404).

127
Xamãs iacutos, por exemplo, contam que, durante a iniciação, o candidato a xamã fica "de
três a sete dias [...] quase sem respirar, como um morto, num local isolado".47 Durante esse
tempo, "os membros do candidato são destacados e separados com um gancho de ferro, os ossos
são limpos, a carne raspada, os líquidos do corpo são jogados fora e os olhos são arrancados das
órbitas. Depois dessa operação, todos os ossos são reunidos e ligados com ferro."48 Outro relato
siberiano de iniciação ao xamanismo que mistura desmembramento e metalurgia é o caso célebre
de Dyukhade,49 cuja experiência extática foi provocada por uma doença (varicela) que o deixou
inconsciente por três dias ("quase morto, a ponto de quase o enterrarem no terceiro dia"50).
Dyukhade disse que o "Grande Senhor do Mundo Subterrâneo" o mandou "seguir a via de todas
as doenças" com dois companheiros e guias espíritos-animais (um arminho e um rato). Nesse
caminho, ficando "louco", Dyukhade encontrou espíritos "canibais" como, entre outros, o "Povo
da Varíola" (que "Cortaram-me o coração e atiraram-no para um caldeirão de água fervente"), o
"Senhor da Minha Loucura", o "Senhor da Confusão" e o "Senhor da Estupidez", de forma que
passou a conhecer "o caminho para as várias doenças do homem". Logo em seguida ele passou
sete dias enfeitiçado pelas pedras que se abriam, uma a uma, contando-lhe "como podiam ser
usadas pela humanidade". Por fim, ele passou por uma abertura em uma pedra e se deparou com
um "homem nu" que "avivava o fogo com um fole".

Quando [o homem nu] me viu, trouxe um par de tenazes do tamanho de uma tenda e agarrou-me.
Pegou na minha cabeça e cortou-a, e a seguir cortou o meu corpo em pequenos bocados e pô-los
num caldeirão, onde os ferveu durante três anos. Em seguida, colocou-me numa bigorna e bateu na
minha cabeça com um martelo e mergulhou-a em água gelada, para a temperar. Tirou do fogo o
caldeirão onde tinha fervido o meu corpo e despejou o conteúdo noutro recipiente. Neste momento,
já todos os meus músculos estavam separados dos ossos. Eis-me aqui, a falar convosco num estado
de espírito normal, e nem consigo dizer em quantos bocados foi dividido o meu corpo. Mas nós,
xamãs, temos vários ossos e músculos extra. Eu vi que eram três as partes que eu tinha, duas para
músculos e uma para ossos. Quando todos os meus ossos foram separados da carne, o ferreiro
disse-me: "A tua medula transformou-se num rio", e no interior da cabana eu vi realmente um rio
com os meus ossos a flutuarem. E disse o ferreiro: "Olha, lá vão os teus ossos rio abaixo!", e

47
Eliade (1998:52).
48
Eliade (1998:52). Entre os esquimós, por exemplo, umas das etapas da iniciação ao xamanismo consiste na visão,
pelo neófito, de seu próprio esqueleto: "Essa experiência exige um longo esforço de ascese física e de
contemplação mental cujo objetivo é a obtenção da capacidade de ver-se como esqueleto. [...] 'Embora nenhum
xamã consiga explicar como nem por quê, é capaz de, graças ao poder que seu corpo recebe do sobrenatural,
despojar seu corpo da carne e do sangue, de tal maneira que só fiquem os ossos. Deve então denominar todas as
partes de seu corpo, mencionar cada osso pelo nome [...]. Ao contemplar-se assim, nu e completamente despojado
da carne e do sangue perecíveis e efêmeros, ele se consagra [...] à sua grande missão, através dessa parte de seu
corpo que está destinada a resistir mais à ação do sol, do vento e do tempo'." (Eliade 1998:81; itálico no original)
49
O relato de Dyukhade foi publicado por A.A. Popov em 1936 ("Tavgiytsy" Trudy Instituta Antropologii i
Etnografii, vol.1, pt.5, Moscou e Leningrado) e aparece com destaque em Eliade (1998:55-9) e Vitebsky
(2001a:60-1).
50
Eliade (1998:55).

128
começou a tirá-los da água com as tenazes. Depois de todos os meus ossos terem sido puxados para
as margens, o ferreiro reuniu-os, e recobriram-se de carne, e o meu corpo voltou a ter a aparência
que tivera. Todavia, a minha cabeça continuava separada. Parecia um crânio esfolado. O ferreiro
revestiu-o de carne e juntou-o ao tronco. Voltei a ter a minha anterior forma humana. Furou-me as
orelhas com o seu dedo de ferro e disse-me: "Conseguirás ouvir e compreender a fala das plantas".
Depois disto, encontrei-me numa montanha e, logo a seguir, acordei na minha própria tenda. Ao pé
de mim, muito preocupados, estavam sentados o meu pai e a minha mãe.51

O "homem nu", espécie de ferreiro mítico, despedaça o corpo de Dyukhade, trabalha


laboriosamente as suas partes e então as encaixa novamente em seus devidos lugares com
pequenas e importantes modificações. O que ocorre aqui é literalmente um processo de
transferência tecnológica entre o ferreiro mítico e o corpo do iniciando – havendo uma nítida
diferença no tratamento dado à sua cabeça e ao resto de seu corpo –, sendo que todo o processo
se dá à revelia deste, que permanece todo o tempo numa espécie de êxtase contemplativo.
Eliade, que apresenta o mesmo relato em seu livro, acrescenta que quando o ferreiro
mítico joga a cabeça de Dyukhade em uma panela com água gelada "para temperar", ele o faz
para ensinar-lhe que "quando o xamã for chamado para tratar de alguém, se a água estiver quente
demais, será inútil recorrer às capacidades de xamã, pois o homem já estará perdido; se a água
estiver morna, ele estará doente, mas ficará curado; a água fria é característica de um homem
são".52 Com isso vemos duas coisas: (1) Dyukhade iria se curar, pois a água estava gelada; (2) a
sensação da temperatura da água em sua cabeça se torna uma técnica de diagnóstico transferida
diretamente para o corpo do iniciando. Evidentemente, em uma sociedade que leva a sério o
trabalho do xamã, técnicas desse tipo representam considerável poder. Rituais xamânicos são
dispendiosos e envolvem toda a comunidade. Decidir quando não vale mais a pena tentar salvar a
vida de uma pessoa é uma decisão emocional e técnica, mas também política e econômica.53
Além disso, vale notar que rituais xamânicos podem muitas vezes envolver o sacrifício de

51
Vitebsky (2001a:60-1).
52
Eliade (1998:58).
53
Outro exemplo de transferência corporal desse tipo de técnica de diagnóstico de casos perdidos é fornecido pelo
relato de Villas Bôas da iniciação xamânica de Sapaim (Xingu): "Para terminar a cerimônia, o mamaé [espírito]
[...] aspirou fortemente a cigarrilha e lançou a fumaça num dos próprios braços e em seguida no outro. Dentro de
um deles, alguma coisa estava se mexendo. Sapaim olhou e percebeu esse movimento. O mamaé explicou: [...]
_'Isto que você está vendo, quando é no braço direito, é sinal de que o doente não vai morrer. Quando é no braço
esquerdo, o doente morre. [...] Onde você quer que eu ponha essa força?' [...] Sapaim respondeu: [...] _'Em meu
ombro.' [...] Daí ficou acertado que um doente tratado por Sapaim, se nele provocasse um movimento no ombro
direito, era sinal de que não morreria; se o movimento fosse no esquerdo, fatalmente o doente morreria." (Villas
Bôas 2000:64-5) Sobre a dimensão política do xamanismo xinguense, cf. Müller (1990:138-45) e Bastos (1985).

129
terceiros, seja para satisfazer o desejo de seres sobrenaturais, seja para resistir a processos de
feitiçaria.54
Outra contribuição de Eliade ao relato de Dyukhade se refere à parte em que sua cabeça,
última parte do corpo ainda deslocada, é colocada no lugar. Além de revesti-la de carne e juntá-la
ao tronco, o ferreiro mítico "[f]orjou sua cabeça e mostrou-lhe como ler as letras que estão
dentro";55 um conhecimento secreto gravado pelo ferreiro mítico dentro do crânio de Dyukhade e
que, como a técnica térmica já citada, o auxiliará em seu novo ofício. Por fim, além de "furar" as
orelhas de Dyukhade a fim de que este possa compreender a fala das plantas, Eliade nos conta
que o ferreiro mítico também "[t]rocou seus olhos e por isso, quando atua como xamã, ele não
enxerga com os olhos físicos, mas com esses olhos místicos".56 O ferreiro mítico, em poucas
palavras, pegou um corpo humano doente e o transformou em um corpo sobre-humano capaz de
curar. Trata-se literalmente de uma transferência direta de técnicas corporais, no sentido dado a
esse conceito por Mauss.57 Toda a violência do processo apenas revela a qualidade disruptiva da
experiência, como se para enfatizar que o nascimento do corpo do xamã exige a morte daquele do
iniciando.
Uma variação desse processo de transferência tecnológica corporal dos espíritos ao
iniciando é a introdução de novos órgãos ou objetos dentro do corpo do iniciando/xamã. Já vimos
isso no caso do ferro usado para religar os ossos do corpo desmembrado do iniciando iacuto e no
caso da troca dos olhos de Dyukhade. Vejamos agora um relato de iniciação australiano em que o
xamã conta como foi atacado por um velho curandeiro que lhe atirou algumas pedras atnongara
(cristais que esses xamãs possuem dentro do corpo e que lhes dão poder):

54
Um exemplo de sacrifício humano atribuído a xamãs e destinado a satisfazer seres sobrenaturais pode ser
encontrado em Reichel-Dolmatoff (1997:90). Sobre as relações entre feitiçaria xamânica e política cf. Salomon
(1983), Granero (1986), Wright (1998:165-76; 2001) e Brown (2001).
55
Eliade (1998:58).
56
Eliade (1998:58).
57
Mauss definiu "técnica" como "um ato tradicional eficaz" (Mauss 1974:217; itálico no original) e "técnicas
corporais" como "as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se
de seus corpos" (Mauss 1974:211), distinguindo o "ato tradicional eficaz" que define as "técnicas corporais" de
todos os outros atos possíveis pelo fato de ser ele "sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou
físico-química" (Mauss 1974:217; itálico no original). Apesar de usar principalmente exemplos cotidianos e de sua
ênfase na imitação, Mauss encerra seu texto ponderando sobre como técnicas corporais direcionadas à
"comunicação com Deus" – "técnicas corporais que não estudamos e que foram perfeitamente estudadas pela China
e pela Índia desde épocas muito antigas" (Mauss 1974:233) – são também "meios para compreender um grande
número de fatos que não compreendemos até agora" (Mauss 1974:233). Parece-nos que são as técnicas corporais
específicas ao xamanismo que melhor explicam afirmações como a de que "[o]s corpos dos xamãs são de uma
natureza diferente do das pessoas comuns" (Langdon 1995:141) ou de que "[o] corpo do xamã é parte de sua
tecnologia" (Sullivan 1988:418).

130
Algumas das pedras o atingiram no peito, outras lhe atravessaram a cabeça de uma orelha à outra e
o mataram. Depois, o velho tirou todos os seus órgãos internos – intestino, fígado, coração e
pulmões – e deixou-o estirado no chão a noite toda. Voltou no dia seguinte, olhou para ele e, depois
de colocar outras pedras atnongara dentro de seu corpo, de seus braços e de suas pernas, cobriu-o
de folhas; em seguida cantou sobre seu corpo até que este ficasse inchado. Encheu-o então de
órgãos novos, depositou nele muitas outras pedras atnongara, deu-lhe tapinhas na cabeça, que o
reanimaram e o fizeram ficar em pé de um salto. Então o velho medicine-man deu-lhe água para
beber e carne para comer, com pedras atnongara. Quando ele acordou, não sabia onde estava.58

Outro exemplo que ilustra bem esse processo de incorporação ritual de técnicas é a iniciação ao
xamanismo dos dayaks (Bornéu), que comporta três cerimônias diferentes das quais a segunda
nos interessa mais diretamente:

Depois de uma noite de encantamentos, os velhos manangs conduzem o neófito até um aposento
isolado por cortinas. "Ali, segundo afirmam, cortam-lhe a cabeça e retiram-lhe o cérebro, que,
depois de lavado, é reposto no lugar, a fim de dar ao candidato uma inteligência límpida para poder
penetrar os mistérios dos maus espíritos e das doenças; em seguida, introduzem ouro em seus
olhos, a fim de dar-lhe uma visão suficientemente penetrante para ver a alma onde quer que ela
possa encontrar-se perdida, a errar. Implantam-lhe ganchos dentados nas pontas dos dedos para
torná-lo capaz de capturar a alma e prende-la com força; finalmente, varam-lhe o coração com uma
flecha para torná-lo compassivo e cheio de simpatia pelos que estão doentes e sofrem".59

A introdução de objetos mágicos no corpo momentaneamente desmembrado do iniciando


obedece, assim, a critérios funcionais. Introduz-se pedras, metais e outros objetos com o objetivo
de dotar esse corpo de novos poderes, de novas capacidades, para que ele funcione de maneira
diferente daquela de antes da iniciação. Um corpo xamânico é um corpo cujas relações com o
mundo foram qualitativamente modificadas por uma certa transferência tecnológica direta dos
seres míticos.
Além da troca/limpeza/transformação de órgãos e da introdução de novos órgãos e objetos
no corpo, muitos outros meios são ainda empregados pelos mestres espirituais para transferir ao
neófito as suas técnicas terapêuticas do êxtase. Não multiplicaremos mais os exemplos, mas vale
citar ainda um último caso, em que o devoramento do corpo do xamã por espíritos responsáveis
por determinadas doenças tem como efeito torná-lo imune a elas e capaz de curá-las tanto em si
mesmo quanto nos outros. Alguns relatos de rituais iniciáticos de xamãs iacutos, por exemplo,

58
Eliade (1998:64-5; itálicos no original). No xamanismo sul-americano, a introdução de farpas, lascas (de pedra ou
madeira) e espinhos no corpo do neófito com a função de lhe servir como armas e recursos terapêuticos também é
uma constante. Entre os Desana, por exemplo o xamã-mestre introduz lascas e espinhos mágicos no antebraço dos
futuros xamãs, com o objetivo de armá-los para suas futuras batalhas com inimigos. "Estas farpas podem ser
atiradas em uma pessoa, independentemente da distância, com um movimento violento do braço" (Reichel-
Dolmatoff 1997:130).
59
Eliade (1998:75; itálico no original).

131
contam que, após a retirada da alma do candidato de seu corpo por uma espécie de mestre-animal
mítico ("Ave-de-Rapina-Mãe"), essa ave mítica:

[t]oma-lhe a alma, leva-a para o Inferno e deixa-a amadurecer sobre o galho de um abeto negro.
Quando a alma atinge a maturidade, a ave volta à terra, corta o corpo do candidato em pedacinhos e
os distribui entre os maus espíritos das doenças e da morte. Cada um dos espíritos devora a parte do
corpo que lhe cabe, cujo efeito é conferir ao futuro xamã a faculdade de curar as doenças
correspondentes. Depois de terem devorado o corpo todo, os maus espíritos se afastam. A Ave-Mãe
recoloca os ossos no lugar, e o candidato acorda como se de um sono profundo.60

O êxtase iniciático já é evidente na idéia de separação entre a alma do candidato a xamã, que
passa por um processo de maturação como se fosse uma cria da ave mítica (ou mesmo um ovo?),
e o seu corpo, que é despedaçado e distribuído para os "maus espíritos das doenças e da morte".
Nesse caso, a transferência de tecnologia terapêutica dos espíritos ao candidato se dá através do
devoramento de diferentes partes de seu corpo por espíritos correspondentes a cada doença
específica. Como uma vacina que torna o organismo imune à doença através da contaminação
controlada dele, os espíritos tornam o futuro xamã imune às doenças que provocam (e capaz de
curá-las) através do consumo controlado de seu corpo.61 Não se trata de um banquete caótico.
Pelo contrário, os pedaços são criteriosamente distribuídos sob a supervisão da ave mítica e
"[c]ada um dos espíritos devora a parte do corpo que lhe cabe". O fim do êxtase iniciático se dá
com a recomposição do corpo do novo xamã pela ave mítica, dando especial ênfase aos ossos.
Acordar do sono profundo é retornar do êxtase. Ser capaz de retornar do êxtase é já ser portador
de determinadas técnicas do êxtase.
O importante, em todos os casos supracitados, é notar que as modificações corporais
operadas pelos espíritos e mestres rituais no corpo dos xamãs durante a iniciação têm como
principal objetivo transferir, diretamente para o corpo do iniciando, técnicas e tecnologias

60
Eliade (1998:52-3). Em outro exemplo de ritual iniciático iacuto, os iniciandos são literalmente "chocados" em um
ovo cósmico pela ave mítica: "Quando a alma sai do ovo, a Ave-Mãe a entrega para ser instruída a uma diaba-xamã
que só tem um olho, um braço e um osso. Esta nina a alma do futuro xamã num berço de ferro e o alimenta com
sangue coagulado. Surgem em seguida três 'diabos' negros que lhe cortam o corpo em pedaços, enfiam-lhe uma
lança na cabeça e jogam nacos de carne em diferentes direções, à guisa de oferendas. Três outros 'diabos' cortam-
lhe a mandíbula, um pedaço para cada doença que ele deverá curar. Se porventura faltar um osso no cômputo final,
um membro de sua família deverá morrer para substituí-lo. Pode acontecer de morrerem até nove parentes. (Eliade
1998:53-4)
61
Outro exemplo, uma variação do relato apresentado acima: "Segundo outra informação de iacutos, os maus
espíritos levam a alma do futuro xamã para o Inferno e lá a encerram numa casa durante três anos [...]. É ali que o
xamã passa pela iniciação: cortam-lhe a cabeça e a deixam de lado (pois o candidato deve ver com os próprios
olhos o seu desmembramento); em seguida, cortam-no em pedacinhos, que são distribuídos aos espíritos das
diversas doenças. Só com essa condição o xamã adquire o poder de curar. Seus ossos são então recobertos de nova
carne, e em certos casos dão-lhe também sangue novo." (Eliade 1998:53)

132
terapêuticas eficazes – são, segundo a fórmula de Eliade, "a técnica e a teoria subjacente a essa
técnica, transmitidas através da iniciação"62. A ênfase nessa transferência corporal deve nos
alertar para o fato de que não se trata de um aprendizado mental, ou mesmo fruto de esforço
consciente – não há aqui a necessidade de decorar fórmulas ou imitar conscientemente ações. Na
maior parte das vezes o iniciando não escolhe as técnicas que quer assimilar, elas simplesmente
lhe são introduzidas no corpo e passam a funcionar para ele.
Vimos, portanto, que o êxtase, o "abandono do corpo pela alma", além de ser comparável
ao sonho e à doença, é essencialmente uma experiência de quase-morte – a morte ocorrendo
quando o doente não resiste à doença, ou quando o sonhador não mais acorda do sonho. Vimos
também que essa experiência extática iniciática da morte ritual é reversível, sendo justamente o
controle modulativo sobre essa reversibilidade que caracteriza as técnicas do êxtase. Vimos,
enfim, que a iniciação xamânica consiste principalmente em uma experiência extático-mórbida
(uma "ruptura", uma "passagem perigosa", onde um limite é traçado e algo do antigo estado fica
de fora do novo estado), que coloca o xamã em contato direto com os mundos e seres
sobrenaturais, quando lhe são transferidas as técnicas do êxtase. É comum que aos êxtases
iniciáticos se siga um treinamento mais ou menos longo e codificado em que xamãs mais
experientes transmitam ao neófito os segredos do oficio. No entanto, parece não haver dúvidas de
que sem o êxtase iniciático, dificilmente haverá algum xamanismo.

Axis mundi, tempo mítico e criação


A cosmologia é um aspecto central do xamanismo, não apenas por serem os xamãs os maiores
responsáveis pela elaboração, a partir de suas experiências extáticas, daquilo que depois será
sedimentado em um discurso mítico e cosmológico coerente, mas também pois é através da
criação de uma espécie de "centro" do universo, de uma perspectiva privilegiada sobre o cosmos,
que o xamã se coloca na posição de mediador entre os seus diferentes níveis. Já vimos como as
técnicas do êxtase definem o xamanismo e também alguns exemplos de como essas técnicas são
transmitidas aos xamãs na iniciação. Cumpre agora ver como esse processo de incorporação de
técnicas do êxtase é, em si, a criação, no corpo do xamã, de um eixo que atravessa os diferentes
níveis cósmicos.

62
Eliade (1998:26-7).

133
A "estrutura do Universo", segundo Eliade, é composta de "níveis" ou "zonas cósmicas"63
que são "interligadas" por um "eixo central". É por este "eixo central",64 na forma de "abertura"
ou "buraco", que os deuses, os mortos e os xamãs "atravessam" as diferentes "zonas cósmicas" e
que a "comunicação" entre elas se torna possível.65 Segundo o "Simbolismo do Centro",66 que
extrapola o domínio do xamanismo e é retomado por Eliade em praticamente todas as suas obras,
o "centro" do universo pode se manifestar das mais variadas formas67 e, em última instância, em
qualquer forma.68 Eliade dedica todo um capítulo de seu livro sobre xamanismo ao tema,69 e
ainda o retoma diversas vezes ao longo do mesmo livro,70 tamanha a sua importância e
complexidade – afinal, o centro do universo é o local onde o sagrado se manifesta, sendo essa
talvez a dimensão mais inefável da experiência religiosa. Essa "coluna universal, Axis mundi, que

63
Sobre isso que poderíamos chamar de "concepção 'folheada' do cosmos" (Viveiros de Castro 1986a:197), Eliade dá
preferência à divisão do cosmos em três níveis (inferno, terra e céu), mas o número de níveis encontrados em
cosmologias xamânicas de todo o mundo pode variar muito – Wright oferece bons exemplos Baniwa da variação
no número de níveis cósmicos entre representações alternativas de uma mesma cosmologia (cf. Wright 1998:66 e
74), inclusive o caso extremo de um xamã que divide o cosmos em 24 níveis precisamente definidos (cf. Wright
2000:4-5).
64
Eliade usa ainda, entre outros, "Centro do Mundo", "eixo cósmico", "Eixo do Mundo" e "axis mundi" para se
referir à mesma noção de "eixo central". Darei preferência ao termo axis mundi. Albert interpreta o papel
mitológico do metal entre os Yanomami como "um tipo de axis mundi metálico" "erigido pelo demiurgo" (Albert
2002b:250, 258). Wright interpreta a "grande árvore do mundo" na qual o herói mítico Kuwai se transforma em um
dos episódios do mito de criação Baniwa como um axis mundi (cf. Wright 2000:9). Por outro lado, é preciso não
reificar o conceito de axis mundi, pois, como notou Viveiros de Castro sobre o xamanismo Araweté, além da "via
principal do cosmos" que "segue o eixo do sol", há "inúmeros caminhos, que levam aos outros mundos e, cada um,
às aldeias das diversas raças de divindades" (cf. Viveiros de Castro 1986a:191-2).
65
"A técnica xamânica por excelência consiste na passagem de uma região cósmica para outra [...]. O xamã conhece
o mistério da ruptura de níveis. Essa comunicação entre as zonas cósmicas é possível graças à própria estrutura do
Universo. Isso porque [...] este é concebido em três níveis [...] interligados por um eixo central. [...] Esse eixo passa
por uma 'abertura', um 'buraco'; é por ele que os deuses descem à terra e os mortos vão para as regiões
subterrâneas; é também por ele que a alma do xamã em êxtase pode subir voando ou descer" (Eliade 1998:287).
66
"O simbolismo do 'centro' não é necessariamente uma idéia cosmológica. Na origem, é 'centro' – possível sede de
uma ruptura de níveis – qualquer espaço sagrado, isto é, qualquer espaço que seja marcado por uma hierofania e
que manifeste realidades [...] não pertencentes ao nosso mundo, provenientes de outro lugar, especialmente do Céu.
Chegou-se à idéia de 'centro' através da vivência de locais sagrados, impregnados de uma presença transumana:
nesse ponto preciso alguma coisa de cima (ou de baixo) manifestou-se. Mais tarde, imaginou-se que a própria
manifestação do sagrado, em si, implicava uma ruptura de níveis." (Eliade 1998:287-8).
67
Alguns dos exemplos citados por Eliade são: "Árvore Cósmica", "Árvore do Mundo" (ou simplesmente "árvore",
ou "bétula"), "Montanha Cósmica", "Montanha Central" (ou simplesmente "montanha"), "Ponte de Cinvat" (ou
simplesmente "ponte"), "Pilar do Mundo" (ou simplesmente "pilar"), "topo do mundo", "ápice", "tambor", "altar",
"mastro", "corda", "cipó", "escada", "corrente de flechas", "cavalo" "barco" e "arco-íris". "Todas essas imagens
simbólicas da ligação entre Céu e Terra não passam de variantes [...] do Axis Mundi." (Eliade 1998:533; itálico no
original).
68
Eliade faz tipificações como "plano macrocósmico" ("Árvore, Montanha, Pilar etc.") e "plano microcósmico"
("pilar central da habitação ou [...] abertura superior da tenda") (Eliade 1998:293) para falar das diversas
manifestações do axis mundi, mas não deixa dúvidas de que "qualquer fragmento do Cosmos pode originar uma
hierofania, em conformidade com a dialética do sagrado" (Eliade 1998:127), o que não deixa de lembrar o
"qualquer coisa pode ser sagrada" de Émile Durkheim (1989:68).
69
Cf. Eliade (1998; cap VIII – Xamanismo e cosmologia).
70
E.g. Eliade (1998:59, 142, 196, 199, 220, 252, 399, 433, 440-1).

134
liga e sustenta o Céu e a Terra, e cuja base se encontra cravada no mundo de baixo"71 é o ponto
específico do cosmos em que a experiência extática se dá. Caminho dos mortos, trajeto da
psicopompia e ponto a partir do qual passa a valer a "geografia funerária", poderíamos dizer que
o conhecimento de seu funcionamento corresponde à própria tecnologia do êxtase:

Essa coluna cósmica só pode situar-se no próprio centro do Universo, pois a totalidade do mundo
habitável espalha-se à volta dela. Temos, pois, de considerar uma seqüência de concepções
religiosas e imagens cosmológicas que são solidárias e se articulam num "sistema", ao qual se pode
chamar de "sistema do Mundo" das sociedades tradicionais: (a) um lugar sagrado constitui uma
rotura na homogeneidade do espaço; (b) essa rotura é simbolizada por uma "abertura", pela qual se
tornou possível a passagem de uma região cósmica a outra [...]; (c) a comunicação [...] é expressa
indiferentemente por certo número de imagens referentes todas elas ao Axis mundi [...]; (d) em
torno desse eixo cósmico estende-se o "Mundo" ("nosso mundo") – logo, o eixo encontra-se "ao
meio", no "umbigo da Terra", é o Centro do Mundo.72

O axis mundi é, portanto, o "eixo do mundo" – transversal que percorre o "Centro do Mundo",
que por sua vez corresponde ao "centro do Universo" –, concebido dentro de uma cosmologia
("sistema do Mundo", "estrutura do Universo") e base de uma idéia de "verticalidade" na qual
diferentes níveis se sustentam/comunicam por uma coluna central. O fato de que essa coluna/eixo
central pode estar em qualquer pedaço do mundo, inclusive em uma pessoa (bastando apenas que
nele haja uma "manifestação do sagrado", uma "hierofania") é o que faz desse princípio
cosmológico também o princípio ritológico do xamanismo.

[A]s hierofanias mais elementares nada mais são que uma separação radical, de valor ontológico,
entre um objeto qualquer e a zona cósmica circundante: uma pedra, uma árvore, um lugar,
justamente porque se revelam sagrados, por terem sido de algum modo "escolhidos" como
receptáculo de uma manifestação do sagrado, separam-se ontologicamente das outras pedras, das
outras árvores e dos outros lugares e situam-se num plano diferente, sobrenatural. [...] [I]mporta
observar a simetria existente entre, de um lado a singularização dos objetos, dos seres e dos sinais
sagrados e, de outro, a singularização pela eleição, pela "escolha", daqueles que vivenciam o
sagrado com uma intensidade que não é a mesma do restante da comunidade, daqueles que de certo
modo encarnam esse sagrado, já que o vivem intensamente, ou melhor, "são vividos" pela "forma"
religiosa que os escolheu (deus, espírito, antepassado etc.).73

Vemos assim que o "centro" é o "centro" porque foi nele que "o sagrado se manifestou", e o
xamã se distingue das demais pessoas pelo fato de que sua iniciação fez dele uma "hierofania
antropomórfica", uma manifestação do sagrado na forma de pessoa. É a experiência extática de
"ruptura" da "morte ritual" que provoca a "hierofania antropomórfica" própria ao xamanismo.

71
Eliade (1995:38).
72
Eliade (1995:38).
73
Eliade (1998:46-7; itálicos no original).

135
Mas o que acontece quando o processo hierofânico transforma o corpo do xamã em um axis
mundi? Sabemos que, nessa nova condição, o xamã entra em contatos controlados com seres e
mundos sobrenaturais, outros níveis do cosmos, e usa estrategicamente esse poder seja para
recuperar almas perdidas, seja para negociar com deuses e espíritos – suas técnicas do êxtase
sendo como que uma "tecnologia das rupturas de níveis ontológicos" e o xamã um "técnico
midiático cósmico". Mas resta ainda considerarmos a especificidade dessa condição hierofânica,
que Eliade tipificou de maneira mais completa na noção de "tempo mítico".
Segundo Eliade, o "tempo mítico" é o regime temporal específico em que se dá a
experiência do sagrado. Trata-se de um regime trans-histórico em que o tempo não passa
linearmente mas sim como que ciclicamente, um tempo que é sempre (re)encontrado pelo xamã
quando ele entra em êxtase. É o tempo do "antes", o tempo em que o "sempre" e o "nunca"
parecem paradoxalmente coincidir, um tempo que todos nós podemos experienciar em maior ou
menor grau em ocasiões como o sonho mas que os xamãs aprendem a conhecer e controlar como
ninguém. Eliade considera a metamorfose xamânica em animal um caso típico de acesso ao
tempo mítico, principalmente pois é no tempo mítico das origens do universo – o tempo relatado,
justamente, nos mitos – que os seres humanos e os outros seres vivos ainda não haviam se
diferenciado totalmente, vivendo numa espécie de realidade pré-individual. Sobre a metamorfose
do xamã em pássaro na psicopompia, Eliade conta:

Os pássaros são psicopompos. Tornar-se pássaro ou ser acompanhado por um deles indica a
capacidade de, ainda em vida, empreender a viagem extática para o Céu e o além. [...] Imitar as
vozes dos animais, utilizar essa linguagem secreta durante a sessão é também sinal de que o xamã
pode circular impunemente nos lugares aos quais só os mortos ou os deuses têm acesso. [...] Em
numerosas tradições, a amizade com os animais e a compreensão da linguagem deles constituem
síndromes paradisíacas. No princípio, ou seja, nos tempos míticos, o homem vivia em paz com os
animais e compreendia sua língua. Foi só depois de uma catástrofe primordial, comparável à
"queda" da tradição bíblica, que o homem se tornou o que é hoje: mortal, sexuado, obrigado a
trabalhar para alimentar-se e em conflito com os animais. Ao preparar-se para o êxtase, e durante o
êxtase, o xamã suprime a condição humana atual e reencontra provisoriamente a situação inicial. A
amizade com os animais, o conhecimento de sua língua, a transformação em animal são todos
sinais de que o xamã recobrou a situação "paradisíaca" perdida na aurora dos tempos.74

Há, portanto, um contraste entre a situação "paradisíaca" do "tempo mítico" – quando "o homem
vivia em paz com os animais e compreendia sua língua"75 – e a "catástrofe primordial" que gera a

74
Eliade (1998:118-9).
75
Eliade fala também de uma certa "solidariedade mística entre o homem e o animal, nota dominante da religião dos
paleocaçadores. Devido a essa solidariedade, certos seres humanos são capazes de transformar-se em animais, de
compreender a língua deles ou de compartilhar sua presciência e seus poderes ocultos." (Eliade 1998:113).

136
"condição humana atual". É o xamã, através de técnicas extáticas de metamorfose,76 que reverte
local e temporariamente essa condição, recobrando a "situação 'paradisíaca' perdida na aurora dos
tempos". Como já vimos em relação à psicopompia, a tecnologia do êxtase consiste basicamente
no conhecimento da "geografia mítica", da sua ligação com o "mundo humano" e das relações
entre corpo e alma – em outras palavras, de como abandonar o corpo e transportar-se para outros
domínios cósmicos sem se perder. Mas ainda não havíamos considerado plenamente o fato de
que essa experiência extática de "passar", pelo "centro", para outro "nível cósmico", não consiste
apenas num deslocamento espacial. É por isso que Eliade fala, por um lado, de uma "catástrofe
primordial", e por outro, de uma "nova dimensão da vida", onde se encontram "espontaneidade,
liberdade, 'simpatia' com todos os ritmos cósmicos e, portanto, bem-aventurança e
imortalidade".77 Não precisamos aceitar todas as implicações da terminologia trágica de Eliade
para apreciar a validade de seu argumento. Basta perceber que há uma diferença de natureza no
regime de funcionamento do tempo mítico e do tempo profano, que a passagem pelo axis mundi
rumo aos outros níveis cósmicos é menos um deslocamento espacial e mais, como queria o
próprio Eliade, uma transformação "existencial".
Se, como já vimos, o axis mundi é o "centro do Universo" porque foi neste ponto que o
sagrado se manifestou, é preciso não perder de vista também que "a cada nova manifestação" o
sagrado "retoma sua tendência primeira de revelar-se total e plenamente".78 Assim, quando
Eliade afirma que, no "êxtase do sonho", o "tempo histórico é abolido", o tempo mítico
"recuperado", e o xamã pode "assistir ao começo do mundo e, assim, tornar-se contemporâneo
tanto da cosmogonia quanto das revelações míticas primordiais",79 ele apenas confirma que toda
hierofania ("até a mais elementar") corresponde, em última instância, à própria cosmogonia – ou
seja, que há criação sempre que há contato com o sagrado. A experiência ritual do tempo mítico,
portanto, não é "temporal", assim como a experiência extática do deslocamento vertical no axis
mundi não é "espacial", pois o tempo mítico, "tempo da criação", precede as próprias
experiências humanas de tempo e espaço e portanto se distingue qualitativamente delas. Êxtase e
tempo mítico coincidem, na verdade, com o contexto primordial em que tanto "tempo" como
"espaço" foram "criados", e passaram a existir na forma como nós os conhecemos.

76
"Sempre que consegue participar do modo de ser dos animais, o xamã reabilita de certa forma a situação que
existia in illo tempore, nos tempos míticos, quando a ruptura entre o homem e o mundo animal ainda não tinha sido
consumada." (Eliade 1998:113; itálico no original).
77
Eliade (1998:498).
78
Eliade (1998:9).
79
Eliade (1998:123).

137
Por meio do paradoxo do ritual, cada espaço consagrado coincide com o centro do mundo, da
mesma forma que a hora de qualquer ritual coincide com o momento mítico do "princípio". [...]
Seja qual for o tipo de ritual, [...] ele se desenvolve não só num espaço consagrado (isto é, num
lugar diferente, em essência, do espaço profano), mas também num "tempo sagrado", "era uma
vez" (in illo tempore, ab origine), ou seja, quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por um
deus, um ancestral, ou um herói.80

Como vimos, uma "ruptura" é condição necessária ao xamanismo: experiência extático-mórbida


iniciática que provoca o rompimento das relações do neófito com o mundo humano/profano e ao
mesmo tempo o coloca em contato com o mundo espiritual/sagrado (hierofania antropomórfica).
Vemos agora que uma "ruptura" é igualmente uma condição necessária ao cosmos: catástrofe que
provoca o rompimento das comunicações fáceis entre o mundo humano e o mundo espiritual e,
ao mesmo tempo, "cria" tanto a existência profana quanto a única forma de superá-la (hierofanias
em geral). Assim, fazendo coincidir (paradoxalmente) a experiência de criador e de criatura no
"tempo mítico" das hierofanias, a tecnologia xamânica das rupturas de níveis ontológicos pode
finalmente começar a ser compreendida como um agenciamento humano concreto e histórico que
manifesta um modo de existência que tem prioridade em relação à história e às suas categorias de
tempo e espaço profanos.
O xamã morreu, subiu pelo caminho dos mortos (axis mundi), acessou o tempo mítico,
aprendeu a geografia mítica, recebeu uma fisiologia extática,81 enfim, toda a tecnologia
xamânica, e assim se tornou um híbrido (homem/espírito, vivo/morto, humano/animal, etc.),
hierofania antropomórfica capaz de simultaneamente sair de seu corpo e viajar pelos diferentes
níveis do cosmos e de colocar estes diferentes níveis do cosmos em contato com o mundo
humano através do retorno ao seu corpo. É o corpo transformado do xamã, em outras palavras,
que opera a mediação orientada e criadora entre os diferentes níveis do cosmos – que sem ele se
comunicam apenas nas experiências fortuitas de doença, morte, sonho etc.
A ruptura que separa o tempo mítico da criação do tempo profano cotidiano é geralmente
concebida como uma "queda" (mas pode também ser vista como uma "ascensão" dos deuses para
fora do mundo humano) e corresponde ao momento crítico do mito cosmogônico em que "algo
dá errado", algum tabu é violado, alguma lei é ignorada, ou alguma divindade é ofendida. Trata-
se, na terminologia de Lawrence E. Sullivan, da "catástrofe" que marca a passagem do "caos
primordial" para o "cosmos", e que poderia ser vista como o contexto "liminar" em que "o

80
Eliade (1992:28-9; itálicos no original).
81
Cf. Sullivan (1988:418-20).

138
sagrado se manifesta" "paradoxalmente" pelo seu próprio recolhimento para fora do alcance do
mundo profano assim criado. O paradoxo aqui reside no fato de que morte e vida, criação e
destruição, passam a ser opostos que se geram mutuamente por um impulso criativo comum, que
antecede a oposição mas que só se manifesta com ela.

***

Eliade permitiu-nos entrar em contato com um modelo típico-ideal de xamanismo. Decidimos


partir dos estudos de Eliade para tratar dos elementos do êxtase iniciático (transformações
corporais, instrução espiritual, aprendizado da geografia mítica/funerária) e da cosmologia
xamânica (o axis mundi e o tempo mítico) pois verificamos que estes são os temas trabalhados
por ele que aparecem com maior freqüência em etnografias, artigos e livros de Antropologia que
tratam do xamanismo.
Este foi nosso primeiro passo, a tipificação do xamanismo a partir daquilo que suas
diversas manifestações têm em comum. Esse xamã típico-ideal que construímos aqui com a ajuda
de Eliade deverá nos servir, na Parte III desta tese, como medida para avaliar o xamanismo da
música eletrônica. Como já dissemos e voltaremos a repetir, nossa intenção com isso não será
julgar o xamanismo da música eletrônica a partir de um padrão que lhe é exterior, mas tão
somente compreender melhor os elementos que esse xamanismo contemporâneo (que existe em
seu próprio direito para além de qualquer julgamento nosso) tem de específico: trata-se de usar o
tipo-ideal justamente para medir o desvio e assim diferenciar o objeto específico sob observação,
destacar sua singularidade.
Antes, porém, de partir para esse segundo passo (a construção do conceito que
corresponde ao nosso objeto), será preciso fazer justamente aquilo que Eliade não quis fazer e
que a Antropologia vem fazendo com crescente competência desde meados do século XX:
encarar o xamanismo em sua dimensão histórica, na sua relação com o Estado, com a sociedade
capitalista e, principalmente, com a tecnologia moderna. Foi a partir das inúmeras referências que
encontramos, nos estudos antropológicos, às relações das sociedades indígenas com as máquinas
dos brancos82 e, em especial, às relações dos xamãs com elas, que percebemos que a produção de

82
A expressão "máquinas dos brancos" pode soar estranha a ouvidos menos acostumados aos debates antropológicos
sobre colonialismo e pós-colonialismo, mas serve para designar, num contexto de disputa entre povos nativos e
colonizadores/exploradores, as tecnologias associadas a estes últimos. Usaremos aqui as palavras "brancos" e
"índios" como par relacional que define as relações entre as sociedades tradicionais e nativas e a sociedade

139
um conhecimento novo sobre o xamanismo da música eletrônica teria que passar por uma
consideração dessas relações. Afinal, se há algum xamanismo na maneira como os DJs trabalham
criativamente com suas máquinas e sua música binária, não teria esse xamanismo alguma relação
com a maneira como xamãs tradicionais trabalham ritualmente com as máquinas e tecnologias
que conheceram através do "homem branco"? Acreditamos que sim, mas não no nível da
comparação superficial e sim no fato de haverem aí dois devires relacionados que, se
considerados em sua relação, podem iluminar-se mutuamente. Retomaremos isso adiante. Por
hora, vejamos o que acontece quando um colonizador, um comerciante, um missionário, um
funcionário do governo, um turista, ou qualquer outro membro da sociedade ocidental capitalista
– enfim, um branco – aparece em sociedades indígenas tradicionais levando, de um só golpe, suas
doenças e suas máquinas.

capitalista global. Sabemos que a idéia de dois grupos homogêneos de "brancos" e "índios" é apenas uma abstração
que elimina as complexidades e conflitos existentes tanto entre os assim chamados "brancos" (que podem ser de
diversas "cores" e possuem interesses os mais divergentes) quanto entre os assim chamados "índios" (que podem
participar de sociedades muito diversas e defender interesses divergentes dentro de uma mesma sociedade) e que
assim pode se tornar inoperante em muitas situações (cf. Hugh-Jones 1999), mas trata-se de uma opção pragmática
pela simplicidade – que é feita também por diversos antropólogos (talvez a maioria) e mesmo pelo discurso político
indígena – cujos benefícios em nosso caso específico parecem ser maiores do que os problemas.

140
Capítulo 5
Tempo mítico hoje

141
142
Antes do mito havia a realidade e antes da
realidade havia o mito.1

1
"Before myth there was reality, and before reality there was myth." (Toop 2000a:91)

143
144
A definição eliadeana de xamanismo como técnica do êxtase nos forneceu um ponto de partida
para a compreensão dessa prática ritual. No entanto, se quisermos compreender o xamanismo da
música eletrônica, será preciso ir além do dualismo trágico e essencialista de Eliade, que vê o
mundo a partir da perspectiva da "queda" e da nostalgia pelo tempo mítico. É preciso agora
colocar em movimento as técnicas xamânicas do êxtase tipificadas pelo historiador, verificar
como elas funcionam em contextos históricos híbridos, no contato dos xamãs com as forças
complexas e heterogêneas de fora de sua sociedade tradicional, contato esse que parece-nos ser a
via de acesso mais consistente aos fenômenos xamânicos contemporâneos. Afinal, o tempo
mítico não ficou para trás, muito menos as técnicas xamânicas que o atualizam a cada ritual.
Antes, se atentarmos para aquilo que os xamãs vêm fazendo em todo o mundo, veremos que o
tempo mítico está mais presente do que nunca e em constante transformação, que os xamãs não
hesitam em sondar suas transformações e atualizar suas próprias técnicas para acessá-lo.
Partamos, então, para além da perspectiva estática e essencialista de Eliade, com uma última
homenagem à sua perspicácia em assuntos relativos ao sagrado, citando sua poderosa fórmula em
favor da realidade dos mitos:

O mito cosmogônico é "verdadeiro" porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da
origem da morte é igualmente "verdadeiro" porque é provado pela mortalidade do homem, e assim
por diante.2

Não poderíamos acrescentar ainda a essa defesa da "veracidade" dos mitos que o mito da origem
da técnica e dos objetos técnicos é verdadeiro pois as máquinas estão aí para prová-lo? Garcia
dos Santos, após contar que "uma tribo da Nova Zelândia acredita que o avião foi criado por seus
ancestrais",3 que "o xavante José Luís Tsereté, ou ainda outros índios do Xingu proclamam que
seus povos foram os verdadeiros inventores de toda sorte de objetos técnicos"4 e que um xamã
Yanomami definiu as longas penas de um de seus adornos rituais como "antenas de rádio",5
constata que, diante de todos esses fatos, "o homem moderno sorri com desdém", um "sorriso do

2
Eliade (1972b:12). A fórmula de Eliade poderia ser criticada por sua lógica retroativa e auto-realizadora, mas sua
potência deriva da homologia que demonstra com o próprio objeto a que se aplica. O fato é que é assim que os
mitos (para não dizer qualquer axioma em sua essência contingente e provisória) recebem sua legitimação, como
quando um Shipibo aponta para as "listras roxas" que um pássaro tem no bico como uma "prova" de que a narrativa
mítica do "Inca malvado" (que "conta que essas listras foram feitas pela bílis que escorreu do fígado do Inca
enquanto o pássaro o devorava") "é verdadeira" (Roe 1988:109).
3
Anita Kechickian (1983. "Sauver l'objet technique – Entretien avec Gilbert Simondon", Esprit 76:147-52) in:
Garcia dos Santos (2003b:70).
4
Cf. Garcia dos Santos (2003b:70-1).
5
Garcia dos Santos (comunicação pessoal).

145
presunçoso e do ignorante".6 Com efeito, por um lado trata-se do sorriso do presunçoso que
acredita saber muito mais do que o índio sobre as máquinas modernas, como se este não
estivesse, com suas afirmações, revelando dimensões ainda desconhecidas dos objetos técnicos. E
justamente por isso, trata-se do sorriso do ignorante, pois revela uma compreensão limitada não
apenas das tecnologias míticas indígenas, mas também das próprias tecnologias modernas que ele
acredita conhecer tão bem.
Argumentaremos neste capítulo, principalmente a partir de casos etnográficos sul-
americanos, que aquilo que Eliade chamou de tempo mítico é, no pensamento indígena,
justamente a fonte de toda a tecnologia (indígena ou não). Afinal, se é a partir do acesso ao tempo
mítico no êxtase iniciático que o xamã recebe os ensinamentos e as tecnologias próprias de seu
ofício, isso sugere já a natureza tecnológica do próprio tempo mítico. Veremos alguns exemplos
de como objetos técnicos considerados "modernos" e exclusivos à civilização Ocidental foram,
segundo muitos povos indígenas, criados pelos seus demiurgos no mesmo processo cosmogônico
que deu origem ao mundo atual. Nosso objetivo será mostrar como o contato dos índios com o
branco e suas tecnologias foi interpretado por aqueles, via de regra, como um retorno do tempo
mítico, tanto em seus aspectos positivos (o poder criativo das tecnologias do branco e a fartura de
riquezas trazidas por eles) quanto negativos (o poder destrutivo das tecnologias do branco e a
agressividade de suas doenças). Consideramos esse um passo necessário para qualquer
compreensão consistente dos xamanismos que atualmente fazem uso da tecnologia moderna, não
através da projeção dos problemas indígenas sobre a sociedade capitalista (que geralmente tem
problemas diferentes), mas sim através do enriquecimento da visão limitada que geralmente
temos de nossas próprias tecnologias.

Mito e tecnologia
Sullivan, que define "tecnologia" como "conhecimento íntimo e sistemático"7 e considera as
tecnologias dos xamãs extáticos a sua "ciência sistemática da alma",8 afirma, ao tratar dos
principais pontos comuns à "variedade de mitos da origem humana na América do Sul", que
neles "[a] capacidade de saber por imitação ou representação simbólica constitui a essência da
tecnologia e serve, nas formas de arte, música, uso de ferramentas e ação ritual, como

6
Garcia dos Santos (2003b:71). Cf. também CTeMe (2005a:15-6; cf. 2005b:173-4).
7
Sullivan (1988:406).
8
"The ecstatic's systematic science of the soul" (Sullivan 1988:652).

146
fundamento da criatividade e da cultura humana".9 O que Sullivan mostra é que nas mitologias
sul-americanas a tecnologia figura como uma ação exemplar, um modelo sobrenatural que é
conhecido através do acesso ao tempo mítico, do contato com deuses, espíritos ancestrais e
mestres animais. É, enfim, através da imitação de procedimentos míticos que a tecnologia é
transferida para os homens, atualizada em cada sociedade – exceto, como já vimos, no caso do
xamanismo, onde ocorre uma transferência direta de tecnologia para o corpo do xamã, sem a
necessidade de mediações conscientes ou imitações de atos exemplares.
Falando sobre os Piaroa (Venezuela),10 Joana Overing conta que o To'pu – que ela traduz
como "tempo mítico"11 – é nitidamente separado do passado histórico, seus "habitantes" não
sendo confundidos com os ancestrais históricos.12 To'pu é o mundo de "antes da ruptura", quando
imperava justamente o "tempo mítico [mythic tense]" e os eventos ainda não obedeciam ao
regime do "tempo presente [today time]" em que eles podem ser diferenciados de acordo com
graus de distância e proximidade no passado, presente ou futuro13 – em outras palavras, "antes da
ordem seqüencial de eventos [before sequentiality]".14 Interessa-nos aqui particularmente saber
que esse tempo mítico se caracteriza por ter sido um período "de rápido desenvolvimento
tecnológico quando os meios para uso dos recursos da terra foram criados" – "jardinagem, caça,
pesca, preparação de alimentos" –, e que foi encerrado por uma "ruptura" provocada pelo
processo extremo de predação que resultou das disputas dos seres míticos pelo controle dessas
mesmas tecnologias míticas.15 Dentre as disputas que levaram ao fim do tempo mítico, se
destacam as batalhas míticas entre Wahari (o demiurgo Piaroa) e Kuemoi (seu sogro, criador das
forças da caça, da jardinagem e da preparação de alimentos, as capacidades predatórias
propriamente humanas), consideradas a principal causa do caos e da destruição que levaram à

9
Sullivan (1988:237).
10
Sempre que possível, localizaremos os povos citados a partir da menção, entre parênteses, do Estado (quando no
Brasil) ou do país (quando fora do Brasil) em cujo território eles estão situados, expediente que tem o inegável
inconveniente de sugerir a existência de um vínculo tácito entre índios e representações estatais (logicamente
equivocado, no mínimo, pois os índios já ocupavam seus territórios antes da existência de qualquer representação
estatal). Esta foi apenas uma saída contingente que encontramos, diante da multiplicidade de maneiras pelas quais
cada antropólogo escolhe localizar o grupo que ele pesquisa, para o problema de localizar geograficamente os
grupos aqui citados. Não custa, de qualquer forma, explicitar a grande diferença que há entre conceber os povos
indígenas como situados em um Estado particular ou como fazendo parte dele, sendo nossa intenção aqui apenas
situar geograficamente os povos indígenas, nunca vinculá-los a este ou aquele Estado. A diferença entre situar e
fazer parte foi inspirada em passagem de Mariza Peirano citada por Viveiros de Castro (1992b:171 nota 2), que
também expressou a mesma idéia quando disse que o Estado "é uma circunstância" para os índios, "e não sua
condição fundante" (Viveiros de Castro 2002b:492).
11
Cf. Overing (1991:23). Em inglês, ela usa a expressão before time, o "tempo do antes" (cf. Overing 1990:607).
12
Cf. Overing (1990:607).
13
Overing (1990:607; 1991:29).
14
Overing (1990:607).
15
Overing (1990:607-8; 1991:23).

147
ruptura do tempo mítico, dando início à morte e à doença.16 Nota-se, assim, que as mesmas forças
criativas que permitiam a produção tecnológica da vida acabaram sendo o objeto das disputas
míticas que resultaram no colapso do tempo mítico e em todos os infortúnios atuais dos humanos;
que criação e destruição não se distinguem nitidamente no tempo mítico, o término da criação
mítica sendo, de fato, parte do próprio ato criativo. Mas se o tempo mítico é desde sempre o
tempo da explosão criativa e destrutiva da tecnologia, o que acontece quando povos indígenas se
deparam com as máquinas modernas?
Em um amplo comentário a respeito das relações entre mito e história em algumas
representações nativas sul-americanas do contato com a "sociedade ocidental", Terence Turner
apresenta diversas "variedades de mitos" das quais duas nos interessam especialmente: os "mitos
messiânicos"17 e os "mitos da desigualdade original".18 Segundo Turner, os "mitos messiânicos"
normalmente vêem as "forças ou formas sociais destrutivas ocidentais" como "transformações
negativas" de um "princípio nativo de reprodução social" e propõem a "inversão das relações
desiguais entre os nativos e a sociedade Ocidental na situação concreta de contato"
principalmente de três maneiras: "a vitória dos nativos sobre os ocidentais em algum tipo de
disputa mágica ou militar"; "a simples integração, em pé de igualdade, da sociedade nativa na
sociedade ocidental"; ou "a integração dos bens e da tecnologia ocidental em forma de cargo na
sociedade nativa".19 Sendo a superioridade da "sociedade ocidental" (geralmente apresentada em
termos técnicos e ambíguos) vista como uma "transformação antitética dos poderes reprodutivos
fundamentais da sociedade nativa",20 esta encontra, nas transformações dos mitos messiânicos,

16
Cf. Overing (1990:615). Justamente por isso, as batalhas entre Wahari e Kuemoi são sempre evocadas nos rituais
xamânicos de cura (Overing 1990:615).
17
Turner considera essa variedade mítica um exemplo de "anti-antimito". Sendo um "antimito" aquele que versa
sobre "a transformação do princípio nativo de reprodução social no princípio de sua própria dominação pela
sociedade ocidental", o "anti-antimito" seria "uma inversão dessa transformação" e portanto uma "negação da
negação" (Turner 1988:278). Segundo Turner, os "mitos messiânicos" são "as mais poderosas e complexas
estruturas de todos os tipos e subtipos identificados" por ele (Turner 1988:278).
18
Turner vincula esse tipo de mito àquilo que ele chama de "individualismo mitológico" devido ao fato de que os
personagens desses mitos são "indivíduos ao invés de sociedades ou relações sociais" (Turner 1988:266). Todavia,
parece-nos apressado afirmar que esse tipo de mito envolva indivíduos "ao invés de" grupos sociais, que neles "a
ação social coletiva não exerce nenhum papel" ou que neles há a "ausência de dinâmica social", que eles "revelam
um certo 'individualismo mitológico', uma contrapartida ideológica primitiva do 'individualismo metodológico',
que desempenha uma função análoga nos mitos de origem das Ciências Sociais ocidentais" e que neles "o
indivíduo antecede a sociedade" (Turner 1988:266, 271), seja pelo fato de que há sempre dois ou mais indivíduos
se relacionando nos mitos, seja, principalmente por considerarmos que qualquer personagem mítico individual é já,
desde o início, uma multiplicidade pré-individual (cf. Viveiros de Castro 2002b:419-20, 2004; Andrello 2006).
19
Turner (1988:262). Outras tipologias são certamente possíveis. Wright, por exemplo, afirma que "[u]m dos temas
mais comuns encontrados nas ideologias dos movimentos messiânicos e milenaristas da Amazônia indígena é a
profecia de uma transformação dos índios em brancos e vice-versa" (Wright 2002:431). Cf. ainda Ertle-Wahlen
(1972).
20
Turner (1988:265).

148
maneiras de reverter, num futuro próximo, um desequilíbrio produzido em algum lugar do
passado. Um bom exemplo desse tipo de mito é o dos "Gêmeos Mágicos Incas" dos Shipibo
(Peru):

Após a batalha mítica em que o "Inca Bom" ("associado ao Céu e ao Sol"), junto com seus espíritos
auxiliares metálicos (o "Jaguar Negro de Ferro" e a "Águia de Aço"), destrói o coração do "Inca
Mau" ("associado à Água e aos domínios subterrâneos da Lua") escondido dentro de um
"Tamanduá de Ferro Gigante", "o espírito do Inca Mau viaja até a longínqua terra dos Gringos,
provavelmente os Estados Unidos". Lá, após "ser apresentado ao Presidente" e "construir uma casa
de ouro debaixo do palácio presidencial", ele "ensinou aos Gringos como construir máquinas,
fábricas e aviões".21 O mito termina então em tom milenarista, com uma declaração do "Inca Bom"
"ao seu povo" sobre a paz que se seguiria à expulsão do "Inca Mau" e vinculando o seu próprio
"retorno" à reincidência das "catástrofes" "originadas" por ele.22

Turner nota que, nesse mito, "os poderes dos ocidentais" são encarados como os "poderes anti-
sociais" do Inca Mau, expulsos pelo Inca Bom no passado mítico e prometidos aos Shipibo atuais
para um futuro próximo, quando do retorno do Inca Bom na forma de um xamã-messias.23
Segundo Peter G. Roe, o mito dos "Gêmeos Mágicos Incas" é uma resposta dos Shipibo para a
"contradição básica"24 envolvida na distribuição desigual de tecnologia (que ficou com os

21
O "Inca Mau" é identificado, nesse relato, a Jesus Cristo, que um missionário norte-americano afirmou
("ignorando" quem ele "realmente era") ser "seu Deus" e ter "dado ao seu povo tudo o que eles tinham" (Roe
1988:125).
22
Nossa síntese da exposição de Roe (1988:124-5; itálicos no original). O mito exposto em Roe (1988) foi coletado
originalmente por Angelika Gebhart-Sayer (1986. "Rabe Incabo: The Two Incas" Ms. Voelkerkundliches Institut.
Teubingen: University of Tuebingen).
23
Cf. Turner (1988:268). Segundo Roe, os Shipibo sempre se consideraram os "modelos de perfeição humana", ao
passo que os outros povos com quem tinham contatos sempre foram considerados "não-humanos" e disponíveis
para serem "mortos" ou como fonte de "mulheres" (Roe 1988:110). Com a chegada de "uma classe de seres
tecnologicamente e socialmente mais poderosos" eles se viram diante de um inimigo que, como nenhum outro
antes, os "subjugava", "explorava ou capturava seu trabalho, seus bens, suas mulheres, suas alianças culturais e
suas almas" (Roe 1988:110). Divididos por "sentimentos ambíguos e conflituosos com relação aos ocidentais",
entre, de um lado, o "reconhecimento da supremacia técnica dos invasores", a "admiração pelas máquinas dos
ocidentais e o desejo pela sua riqueza e potência social" e, de outro, o "sentimento de superioridade sobre os
caucasianos", o "desprezo pela aparência desumana e cabeluda, pelos costumes libidinosos (canibalísticos) e pelas
más maneiras (anticulturais) dos ocidentais", os Shipibo acabam fazendo dos brancos personagens míticos
igualmente ambíguos, ora associados aos deuses "Inca" "bons", ora aos "maus" (Roe 1988:110, 127, 129).
24
"[C]omo podem esses novos seres, que se comportam como os Proto-Humanos fracassados do passado mítico
remoto ou os espíritos maléficos e anticulturais da periferia sagrada atual possuir tanta riqueza e poder? Atributos
como esses deveriam ser posse exclusiva de seres verdadeiramente culturais como os 'Inca' (heróis culturais) e
ancestrais míticos Shipibo." (Roe 1988:110; cf. Turner 1988:267). Ou ainda, numa outra formulação: "Por um lado,
os caucasianos são os 'vencedores' históricos, triunfantes com sua tecnologia e organização social superiores. São,
assim, junto com seus descendentes mestiços, os herdeiros da riqueza indígena da era dourada. Mas eles não
querem compartilhar. Seu caráter desumano (mesquinho, canibalístico) os coloca ao lado dos espíritos 'selvagens'
da periferia sagrada [...aligns them with ogres and the 'untamed' forested, mountainous, or watery sacred
periphery]. Eles são figuras anticulturais, condenadas à superação por um retorno do espaço-tempo mítico [...by a
mythic topological looping, a deformation of mythic time-space]. A periferia atual se torna o passado remoto pré-
cultural; os homens brancos são equiparados a macacos, duendes e gigantes, os proto-humanos fracassados dos
mundos primordiais." (Roe 1988:131)

149
brancos) e humanidade (que ficou com os índios), e ele se destaca pelo seu tom quiliástico,25
promovendo a "expectativa milenarista" do retorno (loop), em um "futuro mítico" próximo, de
um novo início dos tempos como o do "passado mítico".26 Os Shipibo, "[v]erdadeiros humanos",
"triunfarão, mas com as riquezas dos homens brancos", "aceitando alguns e rejeitando outros
elementos da civilização ocidental".27
Outro bom exemplo desse tipo de mito foi encontrado por Janet M. Chernela entre os
Arapaço (Amazonas), um mito de origem étnica que narra como o demiurgo Unurato nasceu da
relação proibida entre uma mulher casada e uma cobra mágica que se transformava em homem.
Além de narrar a origem dos Arapaço através da trajetória de Unurato, o mito narra também
como eles vieram a assumir sua atual condição terrena periférica em relação ao mundo do branco,
indicando também a possibilidade iminente de que essa condição se reverta numa espécie de
"nova era" milenarista.28

Expulso do "centro da terra" pela família do marido de sua mãe, Unurato, que é um híbrido
cobra/humano, vai parar em Manaus, onde se transforma em humano e se diverte bebendo e
dançando. Assumindo definitivamente a forma humana e mutilado (ficando cego de um olho) após
ser atingido inadvertidamente por um tiro de espingarda, ele se torna definitivamente um "humano"
("um mero mortal semicego"29), indo para Brasília trabalhar "na construção de grandes edifícios" e
conhecendo "todo tipo de coisas: casa, mobília, táxis" – "coisas que não temos aqui", completa o
narrador – e andando "no meio de muita gente". Recentemente – "ano passado", segundo o mesmo
narrador –, Unurato retornou na forma de um "enorme submarino [...] com luz elétrica [...] tão
cheio de coisas que é impossível contar quantas caixas tem lá dentro". Ele trouxe ainda muitos
"seres-cobra" (Wai Masa) e "máquinas" – cujo barulho se pode ouvir quando se chega "lá perto" –
com as quais eles estão construindo "uma cidade imensa dentro do rio" e que devolverá aos
Arapaço sua "antiga prosperidade" e sua "grande população".30

25
Segundo Roe, essa perspectiva mítica dos acontecimentos históricos do contato está fortemente ligada a um
movimento milenarista "abortado" ocorrido na região em 1950 sob a liderança da xamã Wasëmea (cf. Roe
1988:112, 128).
26
Roe (1988:112, 128). Essa expectativa envolve "futuras revoltas" lideradas por "xamãs" que "expulsarão os
ocidentais" e revelarão "os intrusivos homens brancos [...] pelo que realmente são, apenas mais uma classe de
proto-humanos fracassados esperando serem superados por suas próprias 'falhas trágicas', ganância e maldade"
(Roe 1988:128).
27
Roe (1988:128-9).
28
A antropóloga menciona também o fenômeno conhecido como "culto cargo" (Chernela 1988:49 nota 10). Apesar
de a maior parte dos movimentos milenaristas indígenas que encontramos na literatura ter algumas características
de cargo (a expectativa de obter, como que por dádiva, grandes quantidades de bens, máquinas e riqueza dos
brancos), há exceções – e.g. os movimentos milenaristas Tukano e Baniwa do final do século XIX, "nenhum dos
quais desejava", segundo Wright, "obter a riqueza do homem branco e nos quais tampouco havia a sugestão de
cargo" (Wright 2000:11).
29
Chernela e Leed (2002:480).
30
Nossa síntese de um mito que pode ser encontrado em português – idioma em que foi originalmente narrado pelo
Arapaço Crispiniano Carvalho – em Chernela e Leed (2002:474-6) e inglês em Chernela (1988:41-3).

150
Se "[c]om a vinda do homem branco, a área Arapaço se tornou periférica", o mito de Unurato
promete fazer dela novamente "o centro político e sobrenatural do mundo" através de um
"retorno" do demiurgo, da apropriação da "tecnologia do homem branco" e da construção de
"uma grande cidade industrial na cidade natal sagrada da nação Arapaço" por "seres-cobra".31 "A
história", Chernela conclui, "é endireitada",32 quando a tecnologia e os bens industrializados,
"historicamente manipulados para atrair os índios para o mundo dos brancos", se tornam o seu
"veículo de independência", uma maneira de "usurpar" o controle dos brancos e usá-lo a favor de
uma "política autônoma".33 Há, portanto, entre os Arapaço contemporâneos, a idéia milenarista
de que Unurato retornou do mundo dos brancos na forma de uma "sucuri-submarino carregada de
mercadorias"34 e também de máquinas e trabalhadores que vêm construindo uma nova cidade
sub-aquática próxima à sua aldeia – um novo axis mundi, poderíamos dizer, para o novo universo
que resultou do mítico contato com o branco. O importante aqui é perceber que o que está em
jogo na devolução, por Unurato aos Arapaço, de uma tecnologia e uma qualidade de vida que os
brancos monopolizaram indevidamente até então, é a devolução mais elementar da "fonte de
poder e geração" dos Arapaço, de sua potência criativa de autonomia e autodeterminação, perdida
a partir de um certo contato histórico.35
Uma outra versão desse mesmo motivo mítico da cobra-demiurgo que se transforma em
submarino foi encontrado por Stephen Hugh-Jones entre os Barasana (Colômbia). Confirmando
mais uma vez que o tempo mítico é a origem de toda tecnologia, os Barasana afirmam que o

31
Chernela (1988:46). A confusão ou a alternância das relações entre centro e periferia no contato com o branco são
comuns nos povos indígenas e parecem refletir diretamente a ruptura da ordem sociocósmica habitual e a
emergência daquilo que chamaremos adiante de um novo axis mundi. No caso dos Waiwai, por exemplo, se por um
lado eles costumam situar as cidades "brasileiras e norte-americanas em distantes domínios periféricos dos quais
chegam visitantes, notícias, aviões, mercadorias, doenças e remédios" e considerar os "brancos como criaturas
peludas, barbudas e bestiais que aparecem para visitar os Waiwai e serem socializadas", por outro, "em certos
contextos jocosos", eles "zombam de si mesmos como pessoas que, como animais, vivem no mato, longe das
cidades populosas onde todos possuem muitas máquinas, dinheiro e conforto" (Howard 2002:42).
32
A antropóloga faz aqui um trocadilho, que é também usado no título de seu texto ("Righting history in the
Northwest Amazon"), a partir da homofonia entre as palavras righting ("endireitando" a história) e writing
("escrevendo" a história).
33
Chernela (1988:48). "Por fim, o herói procura seus irmãos Arapaço para entregar-lhes mercadorias e
conhecimentos adquiridos do mundo dos brancos [...] como um submarino carregado de bens manufaturados. [...]
O herói cultural [...] promete uma retribuição, uma restauração do equilíbrio, um pagamento futuro pelas perdas da
história" (Chernela e Leed 2002:474, 481).
34
Albert (2002a:16).
35
"Um dilema histórico é miticamente resolvido na medida em que uma derrota física e moral frente à tecnologia e
às armas dos brancos são revertidos com a restauração ancestral divina. A divindade de Unurato é restaurada
quando as ferramentas do poder branco são colocadas sob o controle ancestral dos Arapaço e a fonte de poder e
geração é devolvida aos ancestrais." (Chernela 1988:48) Ainda sobre esse mito, cf. Hill (1988:10-2) e Turner
(1988:264-5).

151
demiurgo e "xamã prototípico" Wãribi foi o criador da escrita,36 do revólver,37 do motor de
popa38 e do "poder de criar todos os bens industrializados".39 O antropólogo disse ainda ter
ouvido de um xamã "um episódio do mito de Wãribi no qual o herói, após ser engolido por uma
cobra, faz uma tesoura com duas de suas costelas e corta um buraco em sua lateral, através do
qual dispara uma flecha",40 concluindo: "E foi assim [...] que os brancos conseguiram aquelas
coisas que ele chamam de submarinos. Foi isso que meu avô contou".41
Hugh-Jones, que afirma ter influenciado na criação desse relato mítico ao descrever
criativamente um submarino42 ao mesmo xamã (que "nunca tinha ouvido falar" de submarinos
antes), interpretou o episódio como mais um exemplo da "batalha contra a entropia" na qual "o
xamã, combinando analogicamente o novo com o velho, o desconhecido com o conhecido,
exerce um poder simbólico sobre novos fenômenos", "afirma a extensão de seu conhecimento,
coloca as coisas novas em seu lugar e as domestica reduzindo-as ao familiar e ao mundano – o
poder da escrita reduzido às marcas nas asas da borboleta".43 Trata-se, sem dúvida, de uma

36
Segundo um episódio mítico, Wãribi "capturou borboletas e fez desenhos nas suas asas, que são a origem da
escrita dos brancos" (Hugh-Jones 1988:142).
37
Em diversos episódios míticos Wãribi é descrito criando o revólver que depois seria dado aos brancos (cf. Hugh-
Jones 1988:143-4, 147).
38
Segundo um episódio mítico, a superioridade tecnológica dos brancos se inaugura quando "Wãribi cria um motor
de popa a partir de seu remo" (Hugh-Jones 1988:153 nota 11).
39
Cf. Hugh-Jones (1988:143).
40
Hugh-Jones (1988:148).
41
Depoimento, in: Hugh-Jones (1988:148).
42
"[G]randes canoas submersas repletas de pessoas atirando flechas de seus arcos" (Hugh-Jones 1988:148).
43
Hugh-Jones (1988:148-9). Não devemos duvidar da experiência em primeira-mão do antropólogo, mas podemos
nos perguntar se a sua interpretação do ocorrido não está muito mais próxima da tal "redução" do desconhecido ao
conhecido que ele atribui ao xamã. Afinal, comparar submarinos a cobras míticas e a escrita a borboletas míticas
parece-nos, justamente o contrário de uma "redução", uma radical complexificação dessas máquinas e técnicas.
Dito de outra forma, um submarino criado a partir de uma cobra mítica parece-nos muito mais uma
complexificação da máquina para além do familiar e do mundano do que uma sua redução "ao familiar e ao
mundano". Um belíssimo paralelo desse devir-outro das máquinas e tecnologias dos brancos provocado pelo
contato com o xamanismo e as cosmologias nativas pode ser encontrado em duas belas páginas de um caderno de
campo de Viveiros de Castro fotocopiadas em uma página de sua tese de doutorado, repletas de pequenos círculos
(evidentemente, "pequenos círculos" é aqui apenas um rótulo aproximado para grafismos extremamente variados
em forma e tamanho) feitos por Iwãmayo ("uma mulher séria e sábia") (cf. Viveiros de Castro 1986a:54). Tratava-
se, segundo o antropólogo, de "uma paródia e uma repetição" (Viveiros de Castro 1986a:54) do seu ato de registrar,
por escrito, as longas recitações de nomes de mortos que os Araweté costumavam fazer. Entoando "em voz
monótona" os nomes dos mortos ao mesmo tempo em que traçava os pequenos círculos que mimetizavam a escrita
do antropólogo, o "fazer humorístico" de Iwãmayo foi aos poucos tornando-se "melancólico e reflexivo, à medida
que o papel se cobria daqueles signos", "como se de repente visse que eram tantos; e o papel deixou de ser um
mero suporte de signos, transformando-se no próprio Mai pi, o céu, lugar dos mortos; e cada figura destas, de
simulacro de minhas letras e palavras, tornava-se puro grafismo, traço icônico de cada morto – o próprio morto"
(Viveiros de Castro 1986a:54-5; sublinhado no original). Assumindo o comando da técnica gráfica do antropólogo,
porém à sua maneira, a mulher Araweté não apenas "terminou por desenhar o invisível" (o próprio céu), mas
também revelou uma dimensão extremamente complexa e até então oculta da própria técnica da escrita: a
constatação reflexiva permitida pela visualização sincrônica, numa mesma superfície, de traços correspondendo a
nomes até então apenas recitados oralmente – "muitos, muitos são nossos mortos..." (Iwãmayo, in: Viveiros de

152
inovação xamânica do mito, mais uma prova de que é o xamã (o técnico do êxtase) aquele capaz
de participar do tempo próprio das inovações tecnológicas e torná-lo acessível, em graus
variados, aos demais. Assim, é em dois sentidos que "o poder e o conhecimento dos brancos é
concebido como uma transformação e concentração do poder e conhecimento xamânico que
criou a sociedade indígena e garante sua reprodução atual":44 (1) na capacidade do xamã
prototípico Wãribi de construir, no tempo mítico, toda sorte de objetos técnicos e habilidades
técnicas, inclusive aquelas historicamente concretizadas pela civilização européia, e (2) na
capacidade do xamã atual de participar dessa capacidade mítica e torná-la acessível em graus
variados. A conseqüência disso, como bem notou Hugh-Jones, é que "xamãs contemporâneos
podem restabelecer contato com Wãribi e assim corrigir a desigualdade entre brancos e Índios".45
Vale notar que aqui, assim como nos casos Shipibo e Arapaço, há uma coincidência entre os
poderes míticos pertencentes ao demiurgo e os poderes tecnológicos controlados pelos brancos,46
além de uma possibilidade de apropriação indígena dessa tecnologia por uma reversão
milenarista ou pela imaginação xamânica.47
O segundo tipo de mito que destacamos a partir da análise de Turner são os "mitos da
desigualdade inicial", que normalmente "assumem a forma de uma estória da criação simultânea
dos povos alienígenas e nativos em termos que prefiguram suas subseqüentes relações de
desigualdade na situação de contato".48 Como nota Catherine V. Howard, o "modo como os
estranhos objetos dos brancos foram criados por um demiurgo, por que razão foram atribuídos
exclusivamente aos brancos e como sua posse lhes deu poderes políticos e econômicos especiais"
é "um tema comum nos mitos de muitos grupos amazônicos".49 Nesses mitos, os índios podem

Castro 1986a:55), foi o que ela disse quando parou, sugerindo talvez um certo potencial da escrita de retirar o
prazer da atividade recitativa original. Estamos aqui, note-se, muito longe de uma "redução" da escrita a "pequenos
círculos".
44
Hugh-Jones (1988:150).
45
No final do século XIX, esses esforços xamânicos ocorreram freqüentemente na forma de cultos messiânicos e
milenaristas, que freqüentemente envolviam a visita de "líderes xamãs-profetas" ao "mundo dos mortos", descrito
como sendo "idêntico às cidades dos brancos" (cf. Hugh-Jones 1988:150, 153 nota 6).
46
Segundo Hugh-Jones, Wãribi "personifica a ambigüidade", sendo ao mesmo tempo o criador "da tecnologia e
estilo de vida dos Brancos" e "da cultura material e poderes xamânicos dos índios" (cf. Hugh-Jones 1988:147).
47
Hugh-Jones conta que alguns ritos milenaristas dos Barasana são voltados a "trazer de volta os brancos e seus bens
da periferia do mundo onde Wãribi [que vive com os "espíritos dos brancos" em uma cidade celestial "como a
cidade dos brancos, com muitas casas e sempre iluminada" (Hugh-Jones 1999:68)] os deixou", devolvendo assim
aos Barasana os "machados, facões, roupas e outros bens brancos de que eles precisavam" (cf. Hugh-Jones
1999:68).
48
Turner (1988:266).
49
Howard (2002:35 nota 8). Philippe Erikson nota que, tanto atualmente – ele cita o caso Barasana relatado por
Hugh-Jones (1988) – quanto no século XVI – ele cita o caso Tupinambá relatado por A. Thevet (1978. As
singularidades da França Antártica. São Paulo: Edusp) –, "vários mitos amazônicos explicam a supremacia dos
brancos por um erro de julgamento cometido por ancestrais míticos" que "toma a forma de uma transgressão de

153
assumir a responsabilidade pela sua situação de inferioridade tecnológica ou não, e eles podem
ter desfechos milenaristas ou não.50 Descrito já em 1614 por Claude d'Abbeville "sob a difundida
forma da opção oferecida aos humanos pelo(s) demiurgo(s) entre as armas indígenas e
européias", Viveiros de Castro ressalta que esse tema se relaciona diretamente ao da "vida breve",
no qual "saber técnico e imortalidade" são associados e personificados no branco.51 Vale notar
ainda que, assim como os "mitos messiânicos", os "mitos da desigualdade inicial" geralmente
enfatizam uma certa ambigüidade quanto ao caráter moral dos brancos: superiores em aspectos
técnicos e práticos, os brancos são geralmente vistos como inferiores em aspectos morais e

ordem ética" e que faz com que o nativo, "longe de jogar toda culpa nas costas do invasor, acusa-se a si mesmo
[pela sua atual situação histórica], ou melhor, uma versão anterior de si, cujo erro se promete, implicitamente, não
repetir" (Erikson 2002:193). Stephen G. Baines, por sua vez, nota que "o tema mitológico da flecha e da
espingarda, com muita difusão entre populações indígenas da Amazônia, afirma a superioridade tecnológica e
bélica dos brancos e reflete a influência do esquema de dominação imposto aos índios pela situação colonial e a
internalização cosmológica de sua posição de sujeição ao poder e à violência dos brancos" (Baines 2002:317).
Viveiros de Castro, enfim, nota que o "tema da má escolha" aparece nos "mitos de origem do homem branco, dos
Tupi como de muitos outros ameríndios", "para dar conta da superioridade material dos brancos" (Viveiros de
Castro 2002b:203; itálico no original).
50
Cf. Turner (1988:267-9). Turner oferece como exemplos de mitos em que os índios assumem a responsabilidade
pela sua situação de inferioridade tecnológica os mitos Waurá citado por Ireland (1988) e Barasana citado por
Hugh-Jones (1988), e como exemplo em que eles não assumem essa responsabilidade o mito Shipibo citado por
Roe (1988). Como exemplo de mito que possui desfecho milenarista, Turner menciona novamente o mito Shipibo
citado por Roe (1988), e como exemplo de mito que não possui esse tipo de desfecho, ele menciona o mito Waurá
citado por Ireland (1988).
51
Viveiros de Castro (2002b:203-5; cf. 2000). Viveiros de Castro acrescenta ainda que esse tipo de mito encontra
uma "transformação negativa" no "famoso complexo andino e sub-andino do pishtaco ou pelacara, hipóstase
monstruosa dos brancos que caçam os índios para retirar-lhes a pele do rosto (ou a gordura do corpo) e usá-la para
o rejuvenescimento de seu próprio povo" (Viveiros de Castro 2002b:205; itálicos no original). Mencionaremos
adiante um exemplo desse complexo fornecido por Peter Gow (1995). Por hora, vale mencionar o exemplo
relacionado dos nãkaq, analisado por Peter Gose (1986). Segundo Gose, há uma "conexão indestrutível entre
metais preciosos e a vitalidade corporal" (Gose 1986:308) entre os povos andinos. Tudo gira em torno dos
conceitos andinos de apu – que se refere tanto aos espíritos da montanha que exigem sacrifícios rituais em troca da
exploração de suas riquezas quanto a líderes políticos e "homens brancos poderosos" que são vistos como os
beneficiários dos sacrifícios e mortes causados pela exploração econômica, em especial pela mineração – e nãkaq –
matadores que atacam suas vítimas em busca de sua gordura e óleos corporais e usam "uma máquina especial dos
Estados Unidos" (Gose 1986:297) "colocada na parte de trás do pescoço de suas vítimas para bombear para fora do
corpo a gordura pela espinha dorsal" (Gose 1986:308), gordura essa que é usada, dentre outras coisas, para a
"lubrificação de máquinas" (Gose 1986:297, 307-8) de forma que as "máquinas que precisam de óleo para
lubrificação se tornam um meio de extraí-lo" (Gose 1986:308). A mineração, descrita como "a culminação da
violação da principal manifestação do apu: a própria montanha", um "salto quântico com relação a qualquer outra
atividade na intensidade das relações entre as pessoas e os apus" (Gose 1986:303), leva ao extremo a associação
nativa entre a "extração de gordura de corpos humanos" (princípio vital humano) e a "extração de metal das
montanhas" (princípio vital sobrenatural) (Gose 1986:307), fazendo dos nãkaq os brutais mediadores de um
processo que já não comporta qualquer ritualidade tradicional, mas apenas a extração direta e mortal da gordura
humana necessária à lubrificação das máquinas usadas na mineração (Gose 1986:308). "Assim", conclui Gose, "o
mundo das máquinas servido pelo ñakaq encontra na cultura andina um lugar já bem preparado pelos apus" (Gose
1986:309). Muitos dizem que os nãkaq nutrem uma relação ambígua com os apus, ao mesmo tempo concorrentes
deles pela vitalidade humana e parceiros deles na realização do sacrifício. Os apus, quando deixados para trás pelos
ñakaq, revidam espetacularmente, como quando um apu extremamente poderoso "devorou aviões que o
sobrevoavam", aviões que se acreditava "levavam gordura para o exterior" ou quando "diversos helicópteros que
faziam prospecção para empresas mineradoras foram engolidos" por um "lago selvagem" formado pelas águas das
montanhas (cf. Gose 1986:308).

154
éticos.52 Essa ambigüidade é muitas vezes a justificativa mais imediata para a necessidade de uma
reversão mítica (milenarista e/ou xamânica) em que os índios retomariam posse das vantagens
conquistadas pelos brancos no tempo mítico.
Um exemplo muito conhecido de "mito da desigualdade inicial" foi fornecido por Hugh-
Jones em um artigo intitulado justamente "O Revólver e o Arco",53 onde ele cita a versão
Barasana54 de um mito muito difundido na região dos Vaupés (Colômbia) que narra a origem dos
seres humanos:

O demiurgo Wãribi criou os ancestrais de todos os seres humanos. O ancestral dos brancos, o
último a ser criado (e portanto em situação inferior aos índios), foi no entanto o primeiro a se

52
"Ao encarnarem, pelo avesso, as condições que definem a condição humana – ao serem aquilo que os índios
poderiam ter sido, e que, porque não o foram, tornaram-se propriamente humanos, isto é, nem espíritos, nem
animais, nem brancos –, os brancos oscilam entre uma positividade e uma negatividade igualmente absolutas. Sua
gigantesca superioridade cultural (técnica, ou objetiva) se dobra de uma infinita inferioridade social (ética,ou
subjetiva): são quase imortais, mas são bestiais; são engenhosos, mas estúpidos; escrevem, mas esquecem;
produzem objetos maravilhosos, mas destroem o mundo e a vida... Superculturais e infra-sociais, portanto."
(Viveiros de Castro 2000). Os Waiwai, por exemplo, se por um lado consideravam a conduta dos missionários
"associal ou risível", por outro "ficavam impressionados com seu enorme suprimento de bens manufaturados,
remédios eficazes, máquinas enigmáticas e memória escrita", que consideravam "prova de que os brancos
controlavam algum tipo de poder e conhecimento exóticos que [...] tentavam captar" (Howard 2002:37-8). Como
ocorre na maioria das sociedades indígenas, os Waiwai vêem "os brancos" como provenientes da "periferia do [...]
mundo social", "condutores de energias caóticas" consideradas "naturais e sub-humanas, potentes e sobre-humanas,
perigosas e anti-sociais", e os "poderes da sociedade ocidental" são vistos como "tanto positivos como negativos",
"forças ambivalentes que os Waiwai procuram controlar" através da "manipulação de bens industrializados",
"substitutos dos brancos" e portanto "um modo de subjugar seus poderes e resistir à sua subordinação econômica e
social" (Howard 2002:40). A "superpopulação" dos grandes centros urbanos é vista pelos Waiwai alternativamente
como índice de "algum tipo de apropriação de poderes cosmológicos" – "para que uma população seja saudável e
cresça, ela tem que ser capaz de se proteger de ataques de feitiçaria e de manter boas relações com espíritos
poderosos" – e do "comportamento imaturo e descuidado dos brancos", de sua "sexualidade desenfreada e fora de
controle" (Howard 2002:41-2). Eles oscilam entre uma profunda admiração pelo "engenho tecnológico manifesto
em seus bens industrializados" – índices de "competência técnica", "um pré-requisito da maturidade e do
casamento", "capacidade de transformação" que "evoca atividades dos primeiros personagens míticos quando
criaram as técnicas" e que motivaram diversas especulações sobre "se esses estrangeiros não seriam descendentes
de Mawari, o herói cultural" –, e uma desconfiança sistemática pela "organização do trabalho na sociedade
ocidental", considerada "ilógica, alienígena e espantosa" pelo fato de que "nenhum trabalhador fabrica uma
máquina inteira, poucos entendem o processo completo de fabricação e ninguém conhece a totalidade do repertório
tecnológico" (Howard 2002:42-3). A percepção, pelos Waiwai, de que a "competência tecnológica" dos brancos
manifesta-se apenas "nos produtos acabados, mas não em seus produtores" – a patente inabilidade dos brancos na
realização de "trabalhos físicos" e na produção de "coisas tangíveis" (que os torna alvo de zombarias) parece aos
Waiwai contraditória com o seu acesso regular a "aviões e barcos carregados de riquezas" –, lhes sugere a
existência de um "profundo abismo [...] entre trabalho e produção na economia ocidental", com todos os "riscos
que essa contradição traz para a relação indissociável entre produção e reprodução sociais em sua própria
sociedade" (Howard 2002:43). Um conflito semelhante entre a superioridade tecnológica do branco e a percepção
de que ele não domina de fato sua própria tecnologia foi notado por Narby entre os Ashaninca. Ele conta como a
"fascinação [dos Ashaninca] pela tecnologia industrial" era contrabalançada pela dificuldade que tinham em
acreditar no antropólogo quando este lhes dizia que ele "não sabia como fazer" nenhum dos objetos que possuída
("fitas, isqueiros, botas de borracha, faca militar, baterias etc.") (Narby 1998:28).
53
"The Gun and the Bow: Myths of White Men and Indians" (Hugh-Jones 1988). Este artigo é provavelmente a
referência mais citada no assunto.
54
Ele oferece diversas referências para outras versões do mito: cf. Hugh-Jones (1988:153 nota 7).

155
banhar seguindo a ordem de Wãribi. "O índio ficou com medo da água e não se banhou, tornando-
se inferior aos brancos". Em seguida, Wãribi ofereceu aos índios "um revólver, um arco e alguns
ornamentos rituais". Eles escolheram o arco e os ornamentos, "deixando o Branco com o revólver".
Quando Wãribi ofereceu uma espécie de cera para os ancestrais dos humanos, os índios a
recusaram, mas "as mulheres, cobras, aranhas e os brancos todos comeram a cera, motivo pelo qual
as mulheres menstruam, as cobras trocam de pele e os brancos usam roupas". A habilidade de
"trocar suas peles explica porque cobras nunca morrem, porque mulheres vivem mais do que os
homens e porque os brancos são tão numerosos, saudáveis e de vida tão longa". Por fim, o mito
conta que Wãribi enviou o ancestral dos brancos para o Leste longínquo devido à sua belicosidade,
visto que a guerra era o seu ritual e a sua única maneira de obter riquezas de outras pessoas.55

Esse mito Barasana, além de narrar uma seqüência de escolhas do ancestral dos índios que
explica a sua atual situação de inferioridade tecnológica com relação aos brancos – sua
"fraqueza", seu "status inferior" e sua "população decrescente" –, também explica a origem de
seus poderes rituais xamânicos e de sua superioridade moral – seu método ritual, e não bélico, de
obtenção de riquezas.56 Assim, se por um lado o mito transparece um certo "fatalismo",
atribuindo aos Barasana "a responsabilidade pelo seu próprio destino" e "aceitando a dominação
dos brancos",57 Hugh-Jones também chama a atenção para uma "contracorrente que sugere a
superioridade moral dos Índios", "sua inteligência e seus poderes inventivos", contra "a péssima
memória, a mesquinharia e a agressividade descontrolada dos brancos", o "caráter ganancioso,
incontrolável e irrefletido" que permitiu aos brancos "banharem-se sem medo, pegar o revólver e
não compartilhar suas posses".58 Assim, a opção dos índios pelo arco deixaria de ser uma escolha
errada e passaria a ser uma opção coerente com seu "caráter tranqüilo, reflexivo, controlado e
ritualizado", "epitomizado na pessoa do xamã".59 "Os Índios", assim, "escolheram ser Índios"
pois "rejeitavam os valores pelos quais viviam os brancos".60
Outro exemplo desse tipo de mito pode ser encontrado na última passagem do mito de
criação dos Waurá (Brasil Central, Parque do Xingu) – que eles chamam de "o seu mito
'verdadeiro' ou mais importante"61 –, a única em que o branco é mencionado:

O demiurgo "Sol" oferece "o rifle" aos ancestrais dos Waurá, àquele dos "temidos índios guerreiros
'selvagens'" e ao do "homem branco". Os dois primeiros não sabem o que fazer com o rifle e
acabam recebendo "arcos de madeira", "com os quais eles ficam satisfeitos", ao passo que o último
"imediatamente coloca o rifle contra seu ombro e atira com sucesso, apoderando-se assim da

55
Nossa síntese de exposição de Hugh-Jones (1988:143-4).
56
Cf. Hugh-Jones (1988:146).
57
Hugh-Jones (1988:145). Segundo Hugh-Jones, ao remeter a superioridade dos brancos "ao início dos tempos"
corre-se o risco de encará-la como "inevitável e além da influência humana" (Hugh-Jones 1988:146).
58
Hugh-Jones (1988:146).
59
Hugh-Jones (1988:146-7).
60
Hugh-Jones (1988:147).
61
Ireland (1988:165).

156
tecnologia superior". Logo em seguida, "o Sol" oferece a cada um dos três um recipiente cheio de
sangue, que o "índio selvagem" e o "homem branco" bebem com prazer – demonstrando que sua
"sede de sangue remonta aos primórdios dos tempos" – e o "ancestral dos Waurá" recusa
"horrorizado", motivo pelo qual ele acaba ganhando o mingau de mandioca.62

Segundo Emilienne Ireland, a relação dos Waurá com os brancos, apesar de infreqüente e muito
menos intensa do que a da maioria de seus vizinhos,63 foi desde o início "profundamente
traumática" e marcada pelo sentimento de "medo e impotência" diante das "epidemias
catastróficas"64 e da "percepção súbita de inferioridade tecnológica frente aos bens
industrializados".65 Os Waurá têm uma impressão ambígua e confusa do "homem branco",
geralmente encarado como "contraditório" e duplamente "não-humano": por um lado, ele é visto
como "intelectualmente esperto", dotado de uma "habilidade extraordinária para fazer
ferramentas e objetos" e é geralmente exaltado com a exclamação "Uau! Esse branco, ele não é
humano! Ele realmente sabe fazer as coisas"; por outro, ele é visto como "moralmente
repugnante", "manifestamente incapaz de conviver com os outros sem recorrer constantemente à
violência física" e é repreendido com frases como "O branco não é humano; ele é mau. Ele é
agressivo, violento e perigoso".66 Assim, se no que se refere à tecnologia o "homem branco" é

62
Nossa síntese de exposição de Ireland (1988:166).
63
Segundo Ireland, "a experiência dos Waurá com o exterior foi predominantemente indireta, através de epidemias e
bens industrializados ao invés da subjugação política e econômica cotidiana" (Ireland 1988:158). Tanto pelo difícil
acesso (não existem estradas que levam à aldeia, tampouco pista de pouso nas suas proximidades) quanto por
proibição governamental, visitas do exterior (geralmente médicos, pesquisadores, imprensa e funcionários do
governo) raramente excedem a freqüência de três por ano e a duração de um dia (Ireland 1988:158) e visitas ao
exterior são raras e geralmente se limitam a viagens ocasionais de avião para São Paulo ou Brasília em busca de
tratamento médico ou para comercializar artefatos ou manufaturas (Ireland 1988:159). O contato mais estável dos
Waurá com o "mundo exterior" se dá através da longa viagem a pé (duração aproximada de sete horas) até o "Posto
Leonardo", onde eles geralmente vão "para obter tratamento médico ou quando funcionários estão distribuindo um
carregamento oficial de anzóis, munição ou outros bens industrializados para as tribos locais" (Ireland 1988:158-9).
Por tudo isso, "os Waurá permanecem essencialmente autônomos na gestão de seus assuntos políticos internos" e
são reconhecidos pelas "tribos vizinhas" como "conservadores" e "fiéis aos costumes antigos", apesar de
"ignorantes" quanto à "sociedade brasileira moderna" (Ireland 1988:159).
64
Verdadeiras rupturas traumáticas na vida social Waurá – que dividem o passado em "antes do sarampo" e "depois
do sarampo" (Ireland 1988:162) –, as duas grandes epidemias pelas quais eles passaram (uma no final do século
XIX e outra em 1954) deixaram praticamente todos os sobreviventes sem algum parente e muitos sem um parente
vivo sequer (cf. Ireland 1988:161-2). Ireland cita ainda alguns exemplos de sonhos Mehinaku (muito próximos dos
Waurá, considerados por estes "nossos duplos [apawanau; "our other selves"]") em que os brancos são associados
a "imagens aterrorizantes": "doenças desfiguradoras; incêndios fora de controle; bombas caindo de aviões; brancos
que aprisionam, desmembram, estupram, assassinam e atiram nos sonhadores ou nas suas famílias" (Ireland
1988:165).
65
Ireland (1988:158).
66
Cf. Ireland (1988:159-60). Uma declaração nativa citada por Ireland resume o conflito: "O homem branco não é
como nós. Ele é tão engenhoso na construção de objetos que ele nem parece humano. Como ele consegue fazer
essas coisas? Ele nos supera completamente. Nós não temos essa habilidade. [...] Mas mesmo sendo tão engenhoso,
ele é também muito ignorante. Afinal, os brancos não vivem como seres humanos. Eu estive em suas cidades e vi
crianças famintas sentadas nas ruas implorando por comida. As pessoas passam por elas e não têm pena. [...] Seres
humanos não agem assim." (depoimento, in: Ireland 1988:161)

157
exaltado, "abençoado com quantidades fabulosas de riquezas materiais", no que se refere aos
valores morais ele é desprezado, "ele não sabe compartilhar e, de fato, parece não possuir
nenhuma compaixão humana".67 Isso se evidencia na maneira como o branco figura na passagem
mítica supracitada, na qual se por um lado a "superioridade tecnológica" dos brancos é
contrabalançada pela "superioridade moral" dos Waurá (que nutrem uma "profunda repugnância
moral" por "pessoas guerreiras e agressivas" e pela "sede de sangue" do branco em especial),68
por outro nele os Waurá "têm responsabilidade pelas condições de sua própria subordinação".69
Dominique T. Gallois, que também nota que a "avaliação negativa do 'erro' cometido
pelos antigos no momento da especiação e da instauração de diferenças tecnológicas que
atribuíram o 'arco' aos índios e as 'armas de fogo' aos brancos é muito comum entre povos
indígenas contemporâneos",70 oferece um exemplo Waiãpi (Amapá). Como muitos outros povos
indígenas, os Waiãpi entendem a enorme superioridade tecnológica dos brancos como o resultado
da "péssima escolha feita pelos antepassados que, no tempo do herói criador Janejar, recusaram a
máquina em troca das técnicas indígenas: para os índios, o arco e a vida na mata, para os brancos,
a espingarda e as grandes cidades".71 Além disso, os antepassados dos Waiãpi também
"recusaram a troca de pele (o-jipiro) que lhes daria juventude eterna",72 de forma que "[a]
imortalidade, assim como o acesso direto aos motores, às espingardas e à munição foram
perdidas pela atual, e 'verdadeira', humanidade."73 No entanto, para os Waiãpi, a posse, pelos
brancos, dos "elementos que lhes proporcionam superioridade tecnológica" e que "foram
colocados à disposição da humanidade pelo herói criador" não é definitiva, mas antes uma
contingência do "atual momento do ciclo de criação e destruição da humanidade" que deve
necessariamente ser superada através da "recuperação", pelos Waiãpi, "daquilo que,

67
Ireland (1988:160).
68
Ireland (1988:166-71). Ela conclui: "o modo de vida dos brancos, não importa o quão sedutor na aparência, não
merece ser desejado" (Ireland 1988:171).
69
Turner (1988:267).
70
Gallois (2002:229 nota 17).
71
Gallois (2002:219). A antropóloga já ofereceu uma "tradução resumida" de um relato desse mito por Tsiró em
Gallois (1989:460-1).
72
Gallois (1989:461).
73
Gallois (1989:463-4). Não obstante a "péssima escolha" do ancestral mítico, a "retórica da 'sabedoria'" dos Waiãpi
insiste na superioridade de seu conhecimento dos recursos da floresta e na sua "adaptação não-predatória que,
desde o tempo dos antigos, garantiu a manutenção dos recursos do território", diferentemente dos brancos, que são
"incapazes de 'viver no mato'" pois "destroem o lugar onde vivem e persistem na destruição contínua – vão sempre
adiante – em busca de novas terras para derrubar a floresta e dizimar os animais" (Gallois 2002:218-9). Há aqui
uma "ambigüidade" dos Waiãpi frente aos brancos – "a superposição de uma retórica do pedido com a afirmação
da auto-suficiência" ou da "aceitação da inferioridade numérica e tecnológica com a exaltação da superioridade de
um modo de vida não-predatório" – que, segundo Gallois, é "estrutural" (Gallois 2002:225).

158
primordialmente, foi criado para eles".74 Gallois define esse "profetismo Waiãpi" como uma
inversão da capacidade produtora das máquinas e bens industrializados (enumeradas por um
nativo como: "escrever, fazer carro e fazer avião", "fazer panela", "faca", "machados",
"espingardas", "miçangas", "pão, bolacha, manteiga, tudo"), que após o cataclismo vindouro –
causado principalmente pela depredação dos garimpeiros – passará dos brancos (que então "irão
caçar [...] [s]ó com arco e flecha") para os Waiãpi.75 Da perspectiva Waiãpi, portanto, "aquisição
da tecnologia dos brancos nada tem a ver com o que costumamos definir como 'acréscimo' ou
incorporação de 'inovações'",76 sendo "as máquinas, o ouro, a escrita etc. [...] técnicas e saberes
inventados pelo herói criador Janejar no tempo das origens e que os Waiãpi pretendem agora
recuperar".77
Vale citar ainda um último exemplo Desana (Amazonas), cujo "mito de origem da
humanidade" expressa, segundo Dominique Buchillet, a sua perspectiva da "diferença radical
entre brancos e índios".78

Após ter sido o único capaz de usar "a espingarda que o Criador apresentou a todos os ancestrais da
humanidade", o "ancestral" dos brancos "adquiriu por determinação do ser supremo, o poder de
fabricar, indefinidamente, objetos manufaturados". O mito explica ainda que é pelo fato de seu
ancestral ter sido "o único a não ter medo de consumir o ipadu [...] 'da imortalidade', ou 'da
multiplicação da gente', apesar dos animais e insetos peçonhentos que infestavam a borda da cuia"
"que os brancos 'mudam de pele' (trocam de roupa), multiplicam-se rapidamente e vivem por muito
tempo". Foi por "medo" de tais animais e insetos peçonhentos que "o ancestral dos índios não
ousou sequer aproximar-se da cuia de ipadu, selando, assim, o destino dos índios", que
diferentemente dos brancos – que "gozam de uma extrema capacidade de reprodução, análoga à de
seus objetos e também à de suas doenças" –, é condenado a "uma vida breve e a um perpétuo
declínio demográfico".79

Buchillet vê uma relação direta entre o "poder 'sobrenatural', ou 'mágico'" atribuído pelas
sociedades indígenas às "devastadoras epidemias" dos brancos e à sua "tecnologia".80 Para a
antropóloga, a "natureza exata" do "poder" atribuído pelos índios à "aparente imunidade dos

74
Cf. Gallois (2002:227, 230). Essa recuperação é necessária pois os brancos representam um "perigo [...]
incontrolável por natureza": "derivações anômalas do sistema ideal", eles "possuem 'as máquinas'" mas "não têm o
saber", e assim "desperdiçam, estragam", enfim, "não sabem" (Gallois 2002:227).
75
Cf. Gallois (1989:461-2). Nota-se que o "perigo incontrolável" representado pelos brancos e principalmente pela
destruição dos garimpeiros é não apenas a causa da inversão profética (pois é preciso fazer alguma coisa, algo
precisa acontecer), mas também um sinal de que ela já está em curso (pois tanta destruição assim só pode ser um
sinal do fim deste mundo).
76
Gallois (2002:229).
77
Gallois (2002:230). "O acesso aos bens, às técnicas e à assistência dos brancos", afirma a antropóloga, "seria a
formulação moderna de um tema central na mito-cosmologia Waiãpi, que diz respeito ao destino e ao controle das
posses legadas pelos heróis e pelos ancestrais" (Gallois 2002:228).
78
Buchillet (2002:130).
79
Nossa síntese de exposição de Buchillet (2002:130).
80
Buchillet (2002:130).

159
brancos às doenças infecto-contagiosas", à "sua densidade demográfica", à "sua grande
habilidade técnica" e à sua "opulência" (natureza que, segundo a pesquisadora, ainda está por ser
"explicitada pelos antropólogos"), "fundamenta-se", segundo os Desana, "na exorbitante
capacidade de reprodução e disseminação dos brancos e de suas posses (objetos, doenças)".81
Que esse "poder", essa "exorbitante capacidade" dos brancos parece só poder se expressar "à
custa da própria existência dos índios" parece ser o sentido da "maldição do Criador" da
humanidade que, visando "castigar os índios por sua incompetência no uso da espingarda e por
sua recusa a tomar da cuia de ipadu", profetizou: "Todos vocês morrerão"82. Temos aqui mais um
exemplo de um mito que não apenas atribui aos índios a responsabilidade pela inferioridade que
eles próprios se atribuem em sua relação com os brancos, mas também faz coincidir criação e
destruição na tecnologia mítica desses estrangeiros.
Os exemplos poderiam prosseguir indefinidamente,83 mas o principal, parece-nos, é
perceber os seguintes pontos:

81
Buchillet (2002:131).
82
Cf. Buchillet (2002:131).
83
E.g.: Entre os Waimiri-Atroari (Amazonas e Roraima), o mito assume a forma de uma perda da espingarda
(chamada de "arma mesmo" em detrimento do arco e flecha; cf. Baines 2002:317) para os brancos por parte dos
índios que a possuíam originalmente: "Nós temos espingarda primeiro. Depois 'branco' pegou. Pegou espingarda, aí
deixou flecha com 'índio'. [...] 'Branco' já acertou um pássaro, aí levou. Nós acertamos com flecha mutum. Aí nós
pegamos flecha. Aí 'branco' já foi embora." (Dalmo, in: Baines 2002:316). Segundo Wright, os Baniwa
(Amazonas) explicam a "diferença de conhecimento entre índios e brancos e suas conseqüências" a partir de um
episódio mítico em que o demiurgo Nhiãperikuli pede que um "homem Branco" e um "Índio" (que ele acabara de
"fazer" a partir de duas "larvas" que encontrou sobre o corpo em putrefação da serpente mítica) "peguem um
revólver e atirem": "o revólver do Branco atirou, o do Índio não. Portanto Nhiãperikuli deixou o revólver e o
'conhecimento para fazer mercadorias' com o Homem Branco enquanto o Índio ficou com a zarabatana [blowgun] e
o conhecimento para produzir objetos indígenas" (Wright 2000:7). Miguel A. Menéndez encontrou diversos mitos
Kawahiwa (Amazonas) em que seres míticos submetem ancestrais dos índios a provas específicas (e.g. pular dentro
de um poço para pegar algumas pedras, tomar banhos mágicos; cf. Menéndez 1989:337-8, 350) que têm por
resultado a sua diferenciação entre aqueles que permanecerão índios – ganhando "arcos e flechas, cacetes, facas de
taquaras e estrepes" e permanecendo "tristes, tristes, tristes" no "mato" – e aqueles que se tornarão os brancos –
ganhando "espingardas, machados, terçados, roupas, etc" e partindo "alegres pelo mundo" (cf. Menéndez
1989:337-8, 340, 350). Em todos os casos, o que Menéndez constata é que "o branco é um desdobramento da
própria sociedade Kawahiwa (Menéndez 1989:338), que "para os Kawahiwa não há contato" pois o "branco não é
um ser que vem de fora", mas sim que "surge deste mesmo mundo", sendo, na verdade, "um Kawahiwa
embranquecido" (Menéndez 1989:344). Mas nem sempre o poder sobrenatural do branco é maior do que o do
índio. Em um episódio mítico específico os Kawahiwa fugiam dos brancos (que os perseguiam "em barcos a
motor, carregando espingardas, terçados e metralhadoras") sob a liderança do ser mítico Nhaparundi (que "era
também um pajé 'muito forte'") e este foi capaz de fazer com que grandes cachoeiras "se desmanchassem e
pudessem ser transpostas" pelos índios, voltando a se recompor logo em seguida, para frustração do branco que
"não tinha o mesmo poder" (cf. Menéndez 1989:341-2, 353). Vanessa Lea registrou o mito Txukarramãe da origem
do revólver narrado por Kromari, no qual o demiurgo Iprêrê se depara com uma cobra enquanto corre atrás de uma
anta que acaba de flechar. A cobra interpela o demiurgo e o convence a voltar no dia seguinte para aprender como
construir uma arma capaz de matar o animal imediatamente, eliminando a necessidade de persegui-lo ferido pela
floresta. Iprêrê aceita a oferta e, no dia seguinte, a cobra lhe ensina a construir seu próprio revólver, que ele
constrói imediatamente. Iprêrê ensina então aos brancos como construir o revólver, que permite o abate do animal
"sem sair do lugar", e deixa os índios com o arco e flecha, que só mata alguns dos animais, exige que se persiga o

160
• O tempo mítico é o tempo em que toda tecnologia (indígena ou não) foi não apenas
criada, mas também distribuída desigualmente entre os seres do mundo criado com o seu
término.

• O contato histórico com o branco é freqüentemente vivido pelos índios como um retorno
(efetivo ou latente) do tempo mítico e, portanto, como um período de transição entre uma
ordem anterior que se encontra em colapso e uma ordem futura que está em gestação.

O primeiro ponto parece-nos pacífico, havendo farto material etnográfico que atesta essa
característica tecnológica e distributiva do tempo mítico e de sua transição para o tempo presente.
O segundo ponto merece maiores elaborações, por se basear menos em uma abundância de dados
etnográficos e mais em uma tendência intuída a partir da extrapolação miticamente informada de
alguns casos específicos. Em verdade, não é difícil encontrar relatos sobre sociedades indígenas
em contato com a sociedade capitalista e seus representantes que não fazem nenhuma menção à
reatualização do tempo mítico, a processos milenaristas, messiânicos ou a qualquer ruptura
efetiva ou latente entre uma ordem anterior e outra por vir. Não teríamos como dar conta desses
casos sem uma outra pesquisa. Por hora, podemos apenas oferecer alguns elementos que
corroborem a tendência indicada e que possam servir para futuras re-avaliações desse ponto.
Tentaremos mostrar, a seguir, que o contato dos índios com o branco tende, na maior parte das
vezes, a produzir uma ruptura no modo de vida daqueles, uma ruptura que tende a ser
interpretada por eles como sendo análoga àquela que deu fim ao tempo mítico e inaugurou o
tempo presente (com todos os acontecimentos absurdos e catastróficos que ela implicou) – uma
ruptura que está acontecendo aqui e agora e cujos resultados ainda não se conhece.

O mundo fora dos eixos


"A 12 de outubro de 1492", narra Lúcia H. van Velthem, "ao chegar à ilha Guanahani, Cristovão
Colombo oferece miçangas de vidro e gorros coloridos a seus moradores, inaugurando o escambo
entre os europeus e os habitantes do que se tornaria a América".84 Mesmo sabendo que o padrão

animal ferido e demanda muito mais habilidade. "E foi assim que aconteceu", conclui o narrador. (cf. Wilbert e
Simoneau 1984:257-9).
84
Van Velthem (2002:61). Hugh-Jones é mais dramático: "Se o contato entre culturas é tão antigo quando a própria
sociedade, aquele que se deu entre a Europa e a América depois de 1492 foi, mesmo assim, único. Pela primeira e
última vez duas populações vivendo em mundos físicos e mentais distintos e até então ignorantes uma com relação
à outra se encontraram face a face para se observar e se descobrir." (Hugh-Jones 1988:138)

161
de disseminação das "quinquilharias"85 dos brancos entre os nativos manteve uma certa
autonomia relativa com relação às rotas percorridas pelos próprios europeus,86 o fato é que, para
muitos povos, "a diferença entre o passado e o presente reside na introdução de objetos
manufaturados".87
Logo de início, cumpre notar a tendência ao aumento da violência física e ao abandono
das tradições que acompanha o contato dos índios com a tecnologia dos brancos (em especial as
ferramentas de metal e as armas de fogo). R. Brian Ferguson mostrou como o "fascínio fatal" dos
índios pela tecnologia dos brancos teve freqüentemente como drástica conseqüência o colapso da
sociedade devido à intensificação vertiginosa de disputas internas88 e guerras intertribais.89 O
aumento da violência intra e intertribal que geralmente acompanha o acesso a bens "ocidentais" é
um fato amplamente constatado por Ferguson,90 que conclui que "a introdução de bens

85
"[U]m amontoado de coisas que incluía invariavelmente ferramentas, tecidos, espelhos e miçangas vítreas" (Van
Velthem 2002:61).
86
Os primeiros encontros dos Waiwai (Guiana Francesa e Amazonas) com missionários nos anos 50, por exemplo,
foram "experiências perturbadoras mas não totalmente anômalas", pois se por um lado eles "especulavam se
aqueles seres estranhos e algo grosseiros vindos de longe seriam realmente seres humanos, por outro reconheciam
nos bens que traziam – terçados, facas, machados e miçangas – objetos que há muito vinham adquirindo
indiretamente por meio das redes de trocas intertribais" (Howard 2002:25). Citando registros da primeira metade
do século XIX, Howard constata que "os manufaturados europeus já se haviam infiltrado" na "vasta rede de trocas
intertribais" dos Waiwai "muito antes da chegada dos próprios brancos" (Howard 2002:31). Foi através do controle
sobre as mercadorias já conhecidas que os Waiwai buscaram controlar esses seres desconhecidos.
87
Renault-Lescure (2002:86) atribui essa afirmação a um xamã Kali'na (Guiana Francesa). Os Kali'na, vale notar,
"entraram em contato com os europeus já no século XVI" (Renault-Lescure 2002:86).
88
Ele cita, por exemplo, o depoimento de Jean Jackson (1983. The Fish People: Linguistic Exogamy and Tukanoan
Identity in Northwest Amazonia. New York: Cambridge University Press), que presenciou "a divisão definitiva de
uma casa coletiva Tukano entre duas metades em função de uma disputa sobre a propriedade de um revólver"
(Ferguson 1990:245). Ferguson cita também um experimento de Allan Holmberg (1969. Nomads of the Kong Bow:
The Siriono of Eastern Bolivia. New York: Natural History Press) entre os Sirono em 1942: constantemente
"bombardeado" por pedidos, ele distribuiu seis machados e seis facões, que "instantaneamente mais do que
duplicaram a capacidade produtiva" dos grupos beneficiados e geraram um "aumento na hostilidade interna" em
função daqueles que não foram beneficiados (Ferguson 1990:245). Um exemplo correlato que será retomado
adiante é o do prestígio envolvido na manipulação das tecnologias de vídeo, a respeito do qual Turner elabora sua
"tese central":"uma pessoa de fora que tenta facilitar o uso do vídeo pela comunidade [...] doando uma câmera ou
conseguindo acesso aos equipamentos de edição, logo percebe que não vai escapar da inveja ou da
responsabilidade de 'intervenção' simplesmente dando a câmera a 'eles'. Precisamente a quem entregar a câmera
pode ser uma questão muito delicada, e o pesquisador é responsável pelas conseqüências decorrentes de sua
escolha" (Turner 1993:86; itálico no original). Afinal, uma vez que o vídeo "adquire uma importância política e
social na comunidade indígena, decidir qual membro da sociedade assume o papel de cameraman e qual faz a
valorizada viagem para a cidade que tem os equipamentos de edição" se torna a origem de "conflitos sociais e
políticos" (Turner 1993:84-5; itálico no original)
89
Ele cita casos do século XVII de guerras entre índios amazônicos para a obtenção de objetos de metal (Ferguson
1990:244), o caso dos Munducuru que a partir de 1975 passaram a guerrear com outros índios a serviço de brancos
em troca de "presentes" como "facas, machados e outros bens ocidentais manufaturados" (Ferguson 1990:240) e as
brutais conseqüências do encontro da tradição Jívaro de caçar e encolher cabeças de inimigos com as armas de
fogo (Ferguson 1990:247).
90
Ele cita casos como os dos Akwé-Xavante e os Mehinaku, entre os quais "roubo de itens ocidentais é tratado com
mais seriedade do que aquele de outras coisas" (Ferguson 1990:245), o do antropólogo Napoleon Chagnon, que era
disputado pelos Yanomami em busca de "presentes" e quase foi assassinado por um deles diante da sua recusa em

162
manufaturados ocidentais em sistemas amazônicos de troca gerou hostilidade, confrontos
políticos e violência letal", e que "interesses conflituosos pelas novas tecnologias trazidas por
Europeus têm sido uma causa comum de guerra entre povos não-ocidentais".91 Ferguson, é
verdade, tende muitas vezes a valorizar desproporcionalmente a influência dos "ocidentais" nas
guerras indígenas em detrimento das motivações nativas, quando aqueles parecem ser muito mais
catalisadores de processos e tendências intrínsecos às próprias sociedades indígenas do que suas
causas primeiras.92 Assim, se por um lado não há como negar que "[e]m praticamente todas as
regiões e períodos, povos nativos estiveram dispostos a matar e morrer para obter esses preciosos
meios de produção",93 por outro é preciso notar que todo esse processo não é mais uma derrocada
das tradições diante de influências estrangeiras do que a sua plena efetuação em um contexto
radicalmente novo. No entanto, o fato de a violência e a destruição deflagradas com a chegada da
tecnologia dos brancos serem frutos de uma acolhida tradicional de uma nova situação não
impede que essa mesma acolhida tenha como resultado indireto o abandono de tradições. Em
outras palavras, ao fazerem com as tecnologias dos brancos e com os brancos aquilo que sempre
fizeram com tecnologias vantajosas e estrangeiros prósperos (e.g. incorporação seletiva e
estabelecimento de trocas), os índios geralmente se depararam com conseqüências que
dificilmente sofreriam sem essas novas tecnologias, dentre as quais, notavelmente, o abandono de
certas tradições94 e a crescente dependência95 com relação ao branco e às suas tecnologias que

lhe presentear um facão (Ferguson 1990:245) e o da atribuição do aumento no número de "mortes induzidas por
xamanismo" ao "aumento do número de xamãs tentando acumular riqueza na forma de 'bens dos homens brancos'"
entre os Jívaro nos anos 70 (Michael Harner. 1973. The Jívaro: People of the Sacred Waterfalls. New York:
Anchor Books, in: Ferguson 1990:245-6). Ainda sobre os Jívaro, segundo Harner, o "maior número de adultérios
[entre os Jívaro nos anos 70] é atribuído à tendência dos jovens de trabalhar menos do que nas décadas anteriores e,
ao invés disso, ficar visitando outras casas para beber cerveja, procurar parceiros sexuais e talvez obter bens de
troca através do estabelecimento de 'amizades'" (Harner idem, in: Ferguson 1990:246).
91
Ferguson (1990:247).
92
Cf. Viveiros de Castro (2002b:246).
93
Ferguson (1990:245).
94
Talvez o exemplo mais dramático citado por Ferguson desse abandono de tradições como resultado da inserção de
uma tradição em um circuito tecnológico e capitalista seja o caso Jívaro. Ferguson conta que por volta de 1860 as
tsantsas (cabeças encolhidas) se tornaram um artigo desejado na Europa, passando então a ser trocadas por bens
ocidentais, dentre os quais se destacavam as desejadas armas de fogo. A disposição de norte-americanos por trocar
uma tsantsa por um revólver, somada ao desejo dos Jívaro de possuir essas armas, é assim apresentada por
Ferguson como a principal causa não apenas de um massacre entre os próprios índios – "populações locais foram
dizimadas até que não sobrou o suficiente para continuar a guerrear" (Ferguson 1990:247) –, mas também do
colapso das relações tradicionais de parentesco – "armas de fogo se tornaram tão essenciais que homens passaram a
entregar seus próprios parentes para inimigos em troca de um revólver" (Ferguson 1990:247). A quantidade de
tsantsas produzidas por líderes individuais em 1925 era, segundo Ferguson, totalmente incoerente com qualquer
tradição, mas perfeitamente compreensível em termos de troca por revólveres (Ferguson 1990:247). Ferguson cita
ainda a conclusão de Jean Jackson (idem) de que os Tukano têm preferido manter os bens comerciais dos brancos a
manter suas obrigações familiares tradicionais (Ferguson 1990:245). Os Zo'e contam que "antigamente" eles
"desenterravam" os machados de pedra do "dono da terra" enquanto este "roncava", mas que "já deixaram isso

163
geralmente acompanha o abandono das maneiras tradicionais de subsistência. Como uma
máquina que, vibrando na mesma freqüência fundamental de sempre só que agora com uma
intensidade nunca antes experimentada, começa a desengrenar e literalmente sair dos eixos, as
sociedades indígenas geralmente se defrontam com seu próprio colapso iminente e imanente e
passam a desenvolver novas estratégias (não necessariamente tradicionais) para impedi-lo ou pelo
menos controlá-lo em algum grau.
Segundo Howard, os Waiwai (Guiana Francesa e Amazonas) buscaram, através de uma
"linguagem ritual das trocas", ao mesmo tempo "domesticar" os brancos e "capturar algo de seus
poderes exóticos e ameaçadores", tentando "exercer algum controle simbólico e material sobre os

porque agora os brancos dão machados de ferro" (depoimentos, in: Carelli v1993/1994). Erikson mostra algumas
conseqüências da integração dos Matis, principalmente as novas gerações, à economia e à política capitalista
através da venda de artesanato e da "tomada de consciência [...] do valor mercantil que pode representar uma
tradição, mesmo que folclorizada" (Erikson 2002:194). O artesanato dos Matis é "muito apreciado pelas lojas
Artíndia da Funai", o que, segundo o antropólogo, contribuiu para a "evidente queda de qualidade do artesanato
matis" e a "redução da quantidade de objetos tradicionais disponíveis in loco": "Vende-se tanto que os colares,
zarabatanas e até as flechas às vezes faltam..." (Erikson 2002:180) – problemas com a comercialização de
artesanato pela Artíndia também já haviam sido apontados brevemente por Rafael J. de M. Bastos sobre os índios
xinguanos (cf. Bastos 1985:172-3 nota 14). Quanto à "tendência à folclorização", Erikson nota que as máscaras
Matis, "por serem fabricadas para a venda", não são tratadas mais com o mesmo segredo ritual de antigamente "e
até sofrem transformações estilísticas [...], às vezes com talento, mas desprezando as tradições", e que os "rituais
também se modificaram em razão da freqüência das cerimônias realizadas para nawa [branco] ver" (Erikson
2002:194) – uma foto de um desses "rituais para nawa ver" pode ser vista em (Erikson 2002:204). Ainda sobre o
abandono das tradições, Erikson nota que entre os o Matis "muitas das crenças envolvendo armas tradicionais não
se aplicam aos revólveres", como a de que as vísceras do animal morto devem ser cuidadosamente descartadas sob
pena de perda de eficácia da arma usada (que são ignoradas com o uso do revólver) e a proibição de que mulheres
carreguem a arma de seus maridos (que não se aplica aos revólveres) (Erikson 2001:119). Assim, parece-lhe que "o
grau de atenção ritual dedicada a uma arma é inversamente proporcional ao se grau de proximidade a estrangeiros"
(Erikson 2001:119). Sobre a capitalização dos rituais em especial, Erikson conta como, em 1998, as "coletas do
cipó Strychnos" que ele foi proibido de presenciar doze anos antes por restrições rituais puderam ser, mais do que
presenciadas, filmadas, não por uma "relação de confiança acumulada ao longo dos anos", mas sim por uma
"tendência geral de 'revelar segredos em troca de compensação'" (Erikson 2002:194-5).
95
Como bem notou Ferguson, "[i]ndependentemente da atitude inicial, [...] em poucos anos de acesso constante a um
fornecedor os povos nativos da Amazônia geralmente se tornam dependentes de muitos bens industrializados"
(Ferguson 1990:244). Ao tornarem-se "meios necessários de produção", a obtenção desses bens – Ferguson cita
como exemplos "revólveres, munição, facões, machados, facas, anzóis, fôrmas, panelas, roupas, miçangas,
querosene, lâmpadas, tabaco, fósforos, e mais" (Ferguson 1990:244) – acaba justificando esforços consideráveis e
muitas vezes conflitantes com o bem-estar da sociedade, exigindo longas viagens, transferências definitivas para as
proximidades de fontes fornecedoras e não raro a guerra (cf. Ferguson 1990:244). O impulso espontâneo de
apropriação do branco e de suas tecnologias através de sua inserção cada vez mais intensa na vida cotidiana e no
circuito de trocas intertribais pode muitas vezes (e essa é a tendência histórica) colocar em risco a própria
autodeterminação (quando não a existência física) nativa, transformando o seu controle ativo das potências
estrangeiras em uma crescente dependência dos próprios estrangeiros. Segundo Hugh-Jones, no início do século
XIX os "povos Tukano e Arawak vivendo ao longo do Rio Negro e de seus principais afluentes ocidentais já
tinham um considerável contato com a sociedade colonial" e se encontravam "crescentemente dependentes do
metal [steel] e outros bens estrangeiros" (Hugh-Jones 1999:52-3). Os itens brancos considerados dispensáveis e
aqueles considerados insubstituíveis pelos índios variam, permanecendo constante apenas a tendência à crescente
dependência. Para os Wayana atuais, por exemplo, segundo Van Velthem, as "panelas de alumínio" se tornaram
"indispensáveis" (apesar de "ocasionalmente" substituíveis por panelas de argila) e os "pratos de ágata" se tornaram
"insubstituíveis" (Van Velthem 2002:74).

164
forasteiros vindos das zonas periféricas do seu universo social e assim reafirmar sua própria
posição no centro desse universo".96 Fazendo assim, dariam continuidade à sua prática tradicional
de "cultivar relações com forasteiros sem se deixar dominar por eles",97 de "buscar ativamente
contatos externos, submetê-los a seu próprio controle, assimilar seus poderes e canalizá-los para
seus próprios fins, ou seja aumentar a vitalidade de sua sociedade".98 Mas mesmo diante de
"certas vitórias" alcançadas pelas "estratégias Waiwai" de "adquirir manufaturados sem cair no
jugo da exploração econômica dos brancos", de "pacificar" os brancos e "domesticar e canalizar
os poderes que são inerentes às mercadorias" através da sua inserção na "rede intertribal" de
"trocas recíprocas" a fim de "fortalecer a tessitura interaldeia" numa "sofisticada estratégia de
resistência", "pacificando simbolicamente os próprios bens e, por extensão, aqueles que os
produzem",99 Howard reconhece que essas "tentativas de resolver os problemas causados pelos
brancos, a partir da situação local de contato" permite aos Waiwai apenas "contornar, embora
sem superar, as contradições de seu envolvimento na economia de mercado dos brancos", estando
"minadas por dilemas e contradições" que "permanecem insolúveis e, provavelmente, serão

96
Howard (2002:25).
97
Howard (2002:29).
98
Howard (2002:51). Howard argumenta que as trocas de mercadorias dos Waiwai com os brancos, longe de ser
apenas um processo de "aculturação" e de crescente dependência é também uma arena privilegiada onde os índios
"desafiam a dominação e procuram afirmar suas próprias formas de controle" (Howard 2002:29), estratégias de
"legítima resistência às formas de sujeição que lhe são impostas" (Howard 2002:26). Como "'avatares' do branco"
(Howard remete esse uso da palavra "avatar" a Nádia Farage [1991. As muralhas dos sertões. São Paulo: Paz e
Terra/Anpocs], e usa também a idéia de "metonímios dos brancos" no mesmo sentido; cf. Howard 2002:29, 50),
suas mercadorias podem "circular independentemente destes, inserir-se em novos contextos", suas "propriedades"
podem ser "capturadas" pelos índios "para satisfazer a seus próprios fins" e para "gerenciar o sentido desses
recursos e definir o quadro dentro do qual eles circulam" (Howard 2002:29). Howard defende que es Waiwai
demonstraram até recentemente muita "habilidade política ao jogarem deliberadamente uns brancos contra os
outros, a fim de gerar competição pela sua lealdade" e assim conquistar "novos espaços de manobra" e "preservar
sua própria independência, mobilidade e liberdade para escolher alternativas" (Howard 2002:39-40). Assim,
quando, nos anos 70, os governos brasileiro e guianense tentaram usar os Waiwai como "vitrina de relações
públicas", estes "manipularam ambas as partes com astúcia e geraram uma espécie de leilão entre elas, extraindo
promessas de bens e serviços dos órgãos indigenistas de cada governo" e, no final, "instalaram suas comunidades
onde as queriam a princípio, em ambos os lados da fronteira, mas com a vantagem adicional dos benefícios que
extraíram dos dois governos" (Howard 2002:37-8). Segundo Howard, enquanto os primeiros missionários tentavam
"colonizar a consciência" dos Waiwai, estes "também colonizavam os evangélicos em prol de seus próprios fins
sociopolíticos" (Howard 2002:37), e enquanto aqueles acreditavam operar uma "'cristianização' dos Waiwai", eram
estes na verdade que operavam uma "'Waiwaização' do cristianismo" (Howard 2002:38) – um processo análogo foi
descrito por Viveiros de Castro a respeito dos Tupinambá: "o 'virar branco e cristão' dos Tupinambá não
correspondia em nada ao que queriam os missionários" (Viveiros de Castro 2002b:211, 213-4, 224). Howard
mostra também como, os missionários são tidos pelos Waiwai como "nossos donos de venda", por serem eles os
responsáveis por trazer mercadorias dos centros urbanos e revendê-las aos Waiwai em um comércio desejado por
estes (cf. Howard 2002:40). Um uso estratégico semelhante do branco (aliás, aparentemente muito disseminado)
foi notado por Anthony Seeger entre os Suyá, que chamavam a ele e sua esposa de "nossos brancos", e entre
"outros grupos na região [que] tinham seus próprios 'brancos' que os estudavam e com os quais contavam para
trazer presentes e para atuar como intermediários com o resto da sociedade brasileira" (Seeger 1987:24).
99
Howard (2002:46, 49, 50).

165
intensificadas no futuro, confinando ainda mais os Waiwai" e "que ameaçam corroer seus
esforços de resistência à sociedade dominante".100 Mas não seriam os esforços dos Waiwai por
manterem-se no centro do universo menos uma "resistência" à nova situação e mais uma tentativa
de colocar ativamente o universo de volta nos eixos?101
Outro exemplo particularmente eloqüente das conseqüências dessa tentativa de
domesticação dos brancos através de vínculos de trocas materiais é o dos Araweté (Pará).
Segundo Viveiros de Castro, "os Araweté conhecem o homem branco há muito tempo" e também
"utilizam há muito tempo machados e facões de ferro, que pegavam em roças abandonadas de
moradores 'civilizados' da região", havendo inclusive em sua mitologia "um espírito celeste
chamado 'Pajé dos Brancos'".102 A rapidez com que eles adotaram "toda uma parafernália
tecnológica e simbólica kamarã [do branco]" e a maneira como essa adoção gerou um "complexo
de dependência-hipersolicitação-consumo ritual de bens e serviços 'brancos'" – incluindo aí "uma
solicitação excessiva de medicamentos, e uma intensidade de demanda de atenção dos serviços
do enfermeiro (e de todos os demais brancos) que extrapolava de muito as necessidades reais ou
imaginárias dos índios, revestindo-se assim de uma dimensão político-ritual" – são atribuídos
pelo antropólogo a "um certo mimetismo entusiasmado de tudo o que vem deste mundo".103
Ainda segundo Viveiros de Castro, mais do que simples dependência, a "hiper-solicitação dos
brancos tem um caráter de teste ou prova constante", sendo que o que se elabora nessa relação
com "os brancos enquanto sociedade diferente da sua" (apenas mediada pelos "objetos dos
brancos") é "o conceito da diferença entre eles e nós":104

'Querer ser como os brancos' – tal é a impressão que tudo isto dá a um olhar desavisado – não
exclui absolutamente o inverso, o querer que os brancos sejam como eles.105

100
Howard (2002:45, 50). Os Waiwai são ditos se encontrarem em situação de "crescente dependência do mundo
exterior", dependendo de "produtos ocidentais para caçar, pescar, limpar roças, cozinhar, fazer canoas e obter sal e
miçangas" (Jens Yde. 1965. Material Culture of the Waiwai. Copenhagen: National Museum, in: Ferguson
1990:244). Segundo Howard, desde a primeira metade do século XIX (e antes de entrarem em contato direto com
os brancos) os Waiwai já incorporavam em suas redes de trocas objetos como machados, terçados, facas, tesouras,
miçangas, espelhos, anzóis, pentes, e a partir da segunda metade do século XX passaram também a fazer parte
dessa lista enxadas, formões e panelas, pano, roupa e redes de algodão, linha de pesca, munição, espingardas,
lanternas, sal, sabão, canetas, papel, gravadores, relógios, máquinas de costura e pilhas, que eles passaram a obter,
via de regra, com dinheiro ganho a partir da venda de artesanato, gêneros alimentícios, "produtos da roça" e
"serviços ocasionais" prestados aos brancos (cf. Howard 2002:40).
101
Retomaremos essa questão do "novo axis mundi" adiante.
102
Viveiros de Castro (1992a:24).
103
Viveiros de Castro (1992a:157-8; 1986a:73).
104
Viveiros de Castro (1992a:158; itálico no original; cf. 1986a:73).
105
Viveiros de Castro (1992a:158). Viveiros de Castro cita, como exemplo, uma fala de um trabalhador da Funai: "se
a gente deixasse, ou se eles pudessem, esse povo todo se mudava para Altamira e em uma semana ninguém mais
sabia que negócio era esse de Araweté..." (depoimento, in: Viveiros de Castro 1986a:74 nota 29). A isso, o

166
"Por que, afinal, desejariam os selvagens ser como nós?";106 pergunta Viveiros de Castro em seu
estudo sobre os Tupinambá – estudo que prova a atualidade de questões levantadas já no contato
dos missionários europeus com os habitantes nativos do continente em meados do século XVI.
Mais do que "reconhecimento da superioridade tecnológica dos estrangeiros", mais do que
"[c]oincidência fortuita de conteúdos entre a mitologia nativa e alguns aspectos da sociedade
invasora", Viveiros de Castro nota que essa atitude generalizada do ameríndio para com o
estrangeiro, "supõe uma postura mais fundamental" na qual "[a]finidade relacional, [...] não
identidade substancial, era o valor a ser afirmado".107 O "utilitarismo banal" implicado no
argumento da "superioridade técnica dos implementos europeus" não é inteiramente falso,108 mas
é insuficiente, pois se "ser como os brancos – e o ser dos brancos – era um valor disputado no
mercado simbólico indígena", "além de sua óbvia utilidade, [os implementos europeus] eram
também signos dos poderes da exterioridade, que cumpria capturar, incorporar e fazer
circular".109 E se "incorporar o outro", para os ameríndios, é "assumir sua alteridade" "[à] moda
da casa", então o "problema" é "compreender [...] o objeto desse obscuro desejo de ser o outro
mas, este o mistério, segundo os próprios termos".110

antropólogo opõe: "'[S]e eles pudessem', trariam todo o povo de Altamira, talvez todos os kamarã [brancos], para a
aldeia Araweté..." (Viveiros de Castro 1986a:74).
106
Viveiros de Castro (2002b:193).
107
Viveiros de Castro (2002b:206).
108
Afinal, não se pode ignorar que muitos estudos "indicam que machados de aço são pelo menos três vezes, e às
vezes mais de nova vezes, mais eficientes do que machados de pedra quanto ao gasto de tempo e energia" (cf.
Ferguson 1990:243).
109
Viveiros de Castro (2002b:222-4). Sobre os Yanomami, Albert afirma: "O interesse dos Yanomami pelos objetos
manufaturados, exóticos e profusos, baseia-se, mais do que na utilidade produtiva de alguns [...], no valor de troca
superlativo de todos" (Albert 1992:159 nota 19). Poderíamos, assim dizer que o branco e seus bens aparecem,
acima de tudo, como uma fonte externa e ambígua (perigosa) de poder e riqueza que se deveria domesticar e fazer
circular pelas redes de troca internas ao sistema tradicional de trocas – não como uma propriedade a ser retida, mas
sim como uma capacidade a ser efetivada. Assim, quando Narby afirma que "[t]odos os Ashaninca que encontrei
queriam participar do mercado global, no mínimo através da aquisição de mercadorias que facilitam a vida na
floresta, como facões, machados, facas, panelas, lanternas, baterias e querosene", que "precisavam de dinheiro para
[...] ter roupas, livros escolares, canetas e papel" e que "todo mundo sonhava em ter um rádio ou toca-fitas" (Narby
1998:149), talvez devêssemos ver isso menos como uma vontade simples e unidirecional de tornar-se branco e de
entrar em um mercado global e mais como um desejo complexo e bidirecional (no mínimo) de incorporar no
sistema nativo de trocas e de valores os poderes de um outro sistema ainda pouco conhecido.
110
Viveiros de Castro (2002b:195). Esse "obscuro desejo" parece ter seu motor na "incompletude ontológica
essencial" que Viveiros de Castro encontrou na "filosofia tupinambá". Segundo essa filosofia, "o interior e a
identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença", "o devir e a relação prevaleciam
sobre o ser e a substância" e "os outros são uma solução, antes de serem [...] um problema" (Viveiros de Castro
2002b:220-1) – daí as afirmações: "os Tupinambá nunca foram mais si mesmo que ao exprimirem seu desejo de
'ser christianos como nosotros'" (Viveiros de Castro 2002:223); e "os Tupinambá sempre foram uma sociedade de
consumo" (Viveiros de Castro 2002:224). Por isso os europeus, assim como os inimigos e os deuses, eram "uma
alteridade que atraía e devia ser atraída" (Viveiros de Castro 2002b:207) não para reduzi-la à identidade, mas sim
por um desejo de "absorver o outro e, neste processo, alterar-se" (Viveiros de Castro 2002b:207), um desejo pelo

167
Entre os Araweté, assim como entre os Tupinambá, "o Devir é anterior ao Ser, e a ele
insubmisso",111 e se os Tupinambá aceitavam facilmente a fé que os missionários lhes impunham
apenas para aproveitar-se deles112 também os Araweté assumiam o "lugar dos dominados" no
"sistema de comunicação vigente" entre índios e brancos a fim de conseguir "o que queriam:
querosene, uma caixa de fósforos, pólvora".113 Assim, o desejo dos Araweté pelos brancos e seus
objetos não indica uma "perda" de sua cultura mas, muito pelo contrário, "um movimento e um
momento essenciais" dela de "elaborar e domesticar a situação histórica em que se encontram".114
Que "nem todos os kamarã [brancos] são domesticáveis"115 é apenas um dos obstáculos a esse
movimento. Outros são os imperativos econômico e ecológico,116 que envolvem negociações
duvidosas com madeireiras (o mogno de seu território é muito cobiçado e freqüentemente
furtado), o desenvolvimento de novos padrões de subsistência117 e o "domínio de conceitos e
aspectos fundamentais da cultura envolvente – dinheiro, Estado, propriedade, tabus sexuais,
divisão do trabalho, miséria, dominação –", que ainda "é extremamente precário".118
Em sua convivência com os Araweté, Viveiros de Castro constatou a sua crescente
dependência de produtos como querosene, sal, fósforos, panelas, roupas, sabão, tabaco, pilhas,
lanternas, motores (para transporte e geração de energia), facas, machados, facões, ferramentas,

outro "em sua alteridade plena", "como uma possibilidade de autotransfiguração, um signo da reunião do que havia
sido separado na origem da cultura, capazes portanto de vir alargar a condição humana, ou mesmo de ultrapassá-la"
(Viveiros de Castro 2002b:206). O contato com o branco como uma reatualização do tempo mítico, o acesso
possível à sua tecnologia como uma reversão atual da sua perda por acontecimentos do passado mítico, a sua
assimilação nos termos nativos ("este o mistério, segundo os próprios termos") como possibilidade de
transformação desejada pelos próprios nativos deles mesmos por eles mesmos. Viveiros de Castro, que encontrou
"numerosas afinidades" entre os Araweté e os Tupinambá – "inclusive na centralidade da figura dos xamãs como
formuladores e divulgadores do saber cosmológico" (Viveiros de Castro 2002b:215) – vivenciou em primeira mão
esse "desejo radical do outro" durante sua pesquisa de campo. Segundo o antropólogo, o "desejo radical do outro"
levava os Araweté, por um lado, a "querer a todo custo ser como ele (isto é, nós)", e por outro a "puxá-lo (isto é, a
mim) para dentro de si", e "o mais difícil [...] sempre foi resistir ao poder de sucção ou sedução exercido por eles
no sentido de me transformar em um dos seus" (Viveiros de Castro 1992a:154; cf. 1986a:65-6).
111
Viveiros de Castro (1986a:28).
112
"Os Tupinambá souberam também, é óbvio, aproveitar-se dos missionários", e estes logo perceberam que "o tipo
de crença depositada nos karaiba não era exatamente aquele que gostariam fosse votado a eles e à sua doutrina"
(cf. Viveiros de Castro 2002b:211, 213-4, 224).
113
Viveiros de Castro (1992a:156).
114
Viveiros de Castro (1992a:159).
115
Viveiros de Castro (1992a:159).
116
"Afinal, porque deveriam os Araweté receber 'de graça' objetos e serviços kamarã [de "branco]? Até quando, de
qualquer modo, esta situação pode se manter – não teriam eles que ir 'se preparando' para se 'auto-sustentarem'?"
(Viveiros de Castro 1992a:165)
117
Segundo o antropólogo, as "armas de fogo foram introduzidas em 1982, e seu uso tem levado à diminuição da
população animal nos arredores, obrigando os Araweté a cobrirem um raio maior de território" (Viveiros de Castro
1992a:41-2).
118
Viveiros de Castro (1992a:166). Trata-se de um obstáculo considerável, principalmente se o que se passa ali é
"uma micro-gênese do Estado", "a penetração microscópica do Estado brasileiro na sociedade Araweté" (Viveiros
de Castro 1986a:75).

168
tesouras, pentes, espelhos, açúcar, óleo de cozinha, ferragens (trincos e dobradiças) espingardas,
munição e remédios,119 "hoje indispensáveis ao seu modo de vida".120 "O grau de dependência de
cada um destes itens é variável" e o antropólogo ressalta a "alta capacidade de improvisação" dos
Araweté, que "sabem passar sem quase todos eles, se necessário".121 No entanto, espantou-lhe "a
rapidez (entre 1981 e 1983) com que a maioria destes bens foram introduzidos e adotados".122
Talvez a melhor síntese da situação dos Araweté frente ao branco seja a seguinte anotação do
antropólogo em seu diário:

Essa exuberância voraz Araweté, essa 'expansividade predatória' que os faz querer tudo dos
brancos, o tempo todo [...] me fazem pensar que eles (os Araweté) têm nos dentes uma presa bem
maior do que podem engolir, e não descobriram isso ainda.123

São muito instrutivos os casos de contato entre sociedades indígenas em diferentes etapas do
contato com os brancos,124 pois eles revelam que aquela que já tem uma longa história de contato
geralmente demonstra um esforço para se diferenciar dos brancos e dos demais grupos indígenas
através da afirmação étnica enquanto aquela de contato mais recente está geralmente mais

119
Cf. Viveiros de Castro (1986a:71; 1992a:12, 156).
120
Viveiros de Castro (1992a:12).
121
Viveiros de Castro (1992a:157).
122
Viveiros de Castro (1992a:157; cf. 1986a:71-2).
123
Viveiros de Castro (1986a:76 nota 30; sublinhado no original). Hugh-Jones expressou uma preocupação
semelhante com relação à perspectiva mítica que os Barasana elaboram do contato com o branco: "Brancos não são
apenas mais um grupo indígena, a bíblia não é apenas mais um mito, revólveres não são apenas uma alternativa
para arcos e a escrita é muito mais do que padrões nas asas de uma borboleta. Por isso, cada vez que o sistema do
mito é aplicado a novas experiências ele é transformado e os valores de seus elementos mudam de forma que, no
fim, todo o sistema é questionado por outras formas de explicação que coexistem com ele." (Hugh-Jones 1988:152)
Parece-nos, porém, que diferentemente da perspectiva de Hugh-Jones, para quem os pólos indígenas das oposições
são sempre diminuídos ("apenas...") e minorados ("a escrita é muito mais...") a partir de uma espécie de vantagem
epistemológica do antropólogo, aquela de Viveiros de Castro abre possibilidades mais simétricas de produção de
conhecimento.
124
Um exemplo privilegiado dessa multiplicidade de contextos interativos possíveis para as relações entre brancos e
índios foi oferecido pelo relato analítico que Gallois e Carelli fizeram de uma das diversas experiências de
intercâmbio entre sociedades ameríndias tornadas possíveis pelo projeto Vídeo nas Aldeias, envolvendo os Waiãpi
(Amapá) e os Zo'e (Pará) (cf. Carelli e Gallois v1993). Diversos mal-entendidos entre os representantes de cada
etnia foram explicados pelos antropólogos como resultando do fato de que os grupos se encontravam em diferentes
fases do contato com os brancos. Enquanto os Waiãpi – "[e]ncontrados pela Funai em 1973, mas em contato há
mais de duzentos anos" (Gallois e Carelli 1995:215) – valorizavam as tradições dos Zo'e e o fato de que eles eram
"como seus ancestrais", os Zo'e – que estabeleceram "convívio permanente" com os brancos apenas em 1983
(Gallois e Carelli 1995:214, 216) – estavam mais interessados nas novidades que os Waiãpi poderiam lhes trazer
(principalmente as novidades industrializadas dos brancos; cf. Gallois e Carelli 1995:236) – os antropólogos
contam que os Zo'e foram "apresentados ao mundo" em 1989 quando "uma dezena de equipes de televisão
nacionais e estrangeiras" foram "captar imagens dos últimos momentos de uma 'raça em extinção', como afirmava
uma reportagem" (Gallois e Carelli 1995:216). Outros exemplos são as relações entre os Krahô e os Parkatêjê
(colocados em contato no mesmo programa Vídeo nas Aldeias), que "[a]pontavam para vias opostas" (Gallois e
Carelli 1995:254), e as relações entre os Waurá e as "tribos vizinhas, que hora admiram sua fidelidade aos
costumes dos antigos e hora os menosprezam por sua ignorância com relação à sociedade brasileira moderna"
(Ireland 1988:159).

169
interessada em assimilar as novidades, em obter dos brancos sua tecnologia e adotar sua
aparência, do que em afirmar sua diferença.125 A "primeira fase" do contato com os brancos, que
pode durar anos, é "uma fase certamente delicada, mas extremamente produtiva, de ampliação e
revisão dos parâmetros tradicionais de sua própria existência e de suas relações com os
'outros'"126 que, como vimos, se por um lado tenta domesticar os brancos, inseri-los na rede de
trocas e incorporar seus poderes, por outro gera uma crescente dependência com relação a esses
próprios poderes e, portanto, com relação aos próprios brancos, situação essa que pode
transformar o desejo de "tornar-se branco à moda da casa" no medo de "deixar de ser índio" e
fazer do processo produtivo de auto-diferenciação do devir uma escolha drástica entre dois
modos de ser excludentes.127
Esse acirramento das tensões imanentes da sociedade levando a uma ruptura iminente foi
notado por Philippe Erikson, entre os Matis (Amazônia), que não têm "nenhuma lembrança da
época anterior ao surgimento dos brancos", fazendo estes "parte da paisagem física e mental
[daqueles] desde tempos imemoriais".128 Mesmo quando ainda evitavam o contato direto com os
brancos, os Matis sabiam, "por experiência própria", que esses estrangeiros, "cujas ferramentas
cobiçavam e cujas doenças temiam", "lhes eram tecnologicamente superiores e representavam

125
Cf. Gallois e Carelli (1995:216-7). Essa transição de uma primeira fase "assimiladora" para uma segunda fase
"diferenciadora" (se bem que ambas diferenciantes, como vimos no caso Tupinambá-Araweté) tem um paralelo
curioso (talvez mais "curioso" do que "paralelo") na própria história da Antropologia, na passagem do paradigma
evolucionista para o paradigma da resistência. Segundo Edward M. Bruner, enquanto nos anos 30 e 40 a
Antropologia via "o presente dos índios como desorganização, seu passado como glorioso e seu futuro como
assimilação" – uma Antropologia voltada para o passado, em que a "época dourada" das sociedades indígenas era o
"passado" e seu "futuro" era assumido como uma "extinção" que o antropólogo deveria apenas registrar com a
ajuda de "informantes nativos" – e usava palavras como "aculturação e assimilação", nos anos 70 e 80 ela passou a
ver "o presente dos índios como um movimento de resistência, seu passado como exploração e seu futuro como re-
emergência étnica" – uma Antropologia voltada para o futuro, em que a "época dourada" passou a ser o "futuro" e
o antropólogo passou a assumir papel ativo na "resistência nativa" ao lado de "ativistas nativos" – e a usar palavras
como "exploração, opressão, tribalismo, identidade, tradição e etnicidade" (cf. Bruner 1986:139-40). Segundo
Viveiros de Castro, a "virada histórica" da etnologia se deveu, entre outras coisas, ao fato de que "a incorporação
maciça da região [amazônica] à economia mundial, a partir dos anos 70, não se traduziu na extinção ou assimilação
generalizada dos povos nativos, como se antecipava; ao contrário, eles estão em crescimento demográfico, têm
mantido sua distintividade sociocultural, e emergiram como atores políticos importantes nos cenários nacional e
internacional" (Viveiros de Castro 2002b:339). Wright, por sua vez, atribui à Declaração de Barbados para a
Libertação dos Índios (1971) um papel importante nessa "revolução na perspectiva antropológica" (cf. Wright
1988).
126
Gallois e Carelli (1995:214).
127
De fato, quando "ser índio" passa a equivaler a "tornar-se branco", estamos numa situação análoga àquela da
"síndrome transcontextual" que Gregory Bateson chamou de double bind: "uma situação na qual, não importa o
que a pessoa faça, ela 'perde'" (Bateson 1987:201, cf. p.272). Trata-se aqui igualmente de uma situação dilacerante
que pode promover tanto a debilitação do sistema (seja uma pessoa, seja um grupo social) quando a sua evolução
criativa e criadora (cf. Bateson 1987:278).
128
Erikson (2002:187-8).

170
um risco", sendo "tão indispensáveis quanto perigosos",129 e atualmente duas alternativas se
apresentam aos Matis fixados em Postos da Funai: "voltar para a floresta, longe do Posto onde a
caça diminuía, e retomar a vida à moda antiga, mas correr o risco de morrer por causa das
doenças, ou ficar no Posto, suportar [...] a submissão, tornar-se cada vez mais como os nawa
[brancos], mas sobreviver".130 A urgência e complexidade dessa situação de dependência foi
exemplificada por Erikson a partir do caso da decisão de Iba (líder de uma das facções Matis
instalada no Posto da Funai), após discutir com um atendente de enfermagem, de voltar ao local
"onde viviam antes". Quando essa atitude foi comparada a um "suicídio", Iba respondeu: "vamos
morrer, se preciso for, virar brancos, nunca".131
Outro exemplo desse tipo de situação extrema a que pode chegar a relação dos índios com
os brancos pode ser vista a partir do caso dos Waiãpi (Amapá). Segundo Gallois, no contexto das
"falas duras" Waiãpi (sua oratória política endereçada aos brancos), a "interação com os brancos"
é manipulada "por via das coisas", através dos constantes pedidos por serviços, máquinas,
mercadorias132 e, mais recentemente, pelo "acesso aos conhecimentos dos brancos" visando
"garantir num futuro próximo a auto-suficiência em relação aos brancos".133 As "falas duras"
Waiãpi "se inscrevem numa estratégia social e cultural [...] relacionada com um projeto de
resistência política" que, "ao retrabalhar as concepções mítico-históricas do contato no contexto
do enfrentamento", vem permitindo-lhes construir "novas versões da imagem do branco" a partir
de uma perspectiva privilegiada: a "posição que eles [os Waiãpi], como verdadeiros humanos,
pretendem manter".134 Mas se por um lado os Waiãpi usam "falas duras" para manter a posição

129
Erikson (2002:189-90). A ambigüidade da relação dos Matis com os brancos pode ser percebida a partir do
conceito nativo de sho, "a substância característica – e mesmo a fonte de poder – dos xamãs e dos homens
importantes" (Erikson 2002:180). "Ambivalente por excelência", o sho pode assumir uma "forma benéfica" – o
bata sho, "doce", protetor, "feminino" transmitido em rituais ou "por contágio" – ou "patogênica" – o sho
propriamente dito, perigoso, "masculino", "enviado voluntariamente (por meio de pequenas zarabatanas), ou
involuntariamente, pela exalação" (Erikson 2002:181). Segundo a teoria nativa, a responsabilidade dos brancos
pelas epidemias, associada à sua "relativa 'imunidade' às doenças", se explica pelo fato de eles consumirem muito
sal, pimenta e açúcar, e portanto serem ricos em sho e bata sho, um equilíbrio inexistente entre os Matis, que
privilegiam o sho amargo patogênico (cf. Erikson 2002:181).
130
Erikson (2002:184).
131
Iba, in: Erikson (2002:185). Erikson conta que eles acabaram permanecendo no posto.
132
Gallois (2002:217-8). "Precisamos de motosserra, motor de popa, espingarda, chumbo, panela, enfermeiro,
professora..." (depoimento, in: Gallois 2002:217).
133
Gallois (2002:218). Segundo Gallois, os Waiãpi atuais "querem escola para ter professores e enfermeiros índios,
querem ferramentas e equipamentos de garimpo para não depender do dinheiro escasso da Funai etc." (Gallois
2002:218).
134
Gallois (2002:232). Segundo Gallois, os Waiãpi construíram, ao longo da história de contato – apesar de os
primeiros contatos dos Waiãpi com os brancos remontarem ao século XVII, "a memória wayãpi identifica os
primeiros representantes conhecidos da população regional com os balateiros vindos do baixo rio Jari [...] na
segunda metade do século XIX" (Gallois 2002:207) –, duas "versões" daquilo que ela chama de a "teoria [Waiãpi]
do branco". Uma "primeira versão" dessa teoria, "construída na fase de contatos intermitentes com regionais",

171
de sujeito na relação com o branco, por outro inúmeros outros discursos estimulam um "retorno à
vida antiga, na qual não se precisa 'nem de sabão, nem de bombril', na qual 'só se caça com arco e
flecha' etc.", e muitas famílias de fato voltaram a usar a "tecnologia tradicional no cotidiano".135
Na formulação do Chefe Waiwai: "agora, nós vamos morrer no mato...";136 o que indica tanto um
"distanciamento em relação aos brancos" e suas tecnologias ("matar bicho com flecha e lavar
panela com areia") quanto "o risco de morrer por falta de assistência".137
A iminência da ruptura da ordem social tradicional está, parece-nos, diretamente ligada à
percepção do poder sobrenatural do branco e de suas tecnologias, potência criativa e destrutiva do
tempo mítico cuja presentificação é um índice do colapso dos canais que separavam o mundo

"enfoca, principalmente, a violência guerreira dos karai-ko [brancos] a quem se atribui o uso de 'armas' poderosas,
como venenos mortíferos, responsáveis pela morte de aldeias inteiras" e da "violência sexual" (Gallois 2002:207).
Na "segunda versão" da teoria, "mais recente" e ligada aos "efeitos permanentes da presença dos brancos, agora
considerada definitiva", são enfatizadas "a destruição do meio ambiente, o alastramento contínuo de doenças" e o
"impacto dos garimpos", considerados "a síntese daquilo que passou a ser denominado karai ra'y, o 'mal' dos
brancos" (Gallois 2002:207). A transição da primeira para a segunda versão ocorreu durante os anos 70, quando a
construção da rodovia Perimetral Norte trouxe para a região um Posto da Funai e os garimpeiros. Os Waiãpi
aceitaram se transferir para as proximidades do Posto da Funai principalmente devido aos "equipamentos
impressionantes" que esses brancos possuíam: "canoas com motores de popa, motosserras, armas de fogo, caixas e
caixas contendo os bens outrora conseguidos com dificuldade junto aos regionais ou a outros grupos indígenas"
(Gallois (2002:208). "Durante mais de dez anos", conta Gallois, "quase todos os grupos locais Waiãpi atenderam às
determinações de funcionários da Funai, [...] sendo atraídos pelas facilidades de acesso às mercadorias, sempre
desejadas, e pelas promessas de proteção contra as epidemias que não cessavam de se alastrar na área." (Gallois
2002:209). Por outro lado, os garimpeiros se tornaram uma "ameaça [...] permanente", deixando "marcas
definitivas" como "a destruição dos sítios de ocupação tradicional", "a rarefação da caça de grande porte", "o
incessante barulho de aviões [...] e a propagação contínua de doenças", "sinais cotidianos de confirmação do caráter
destruidor dos brancos" (Gallois 2002:208-9).
135
Gallois (2002:218). Gallois nota, porém, que essa volta às tecnologias tradicionais se deu menos por idealismo e
mais pela "precariedade dos recursos do posto da Funai e a dificuldade de comercializar artesanato e produtos do
trabalho extrativista" (Gallois 2002:218).
136
Waiwai, in: Gallois (2002:218).
137
Gallois (2002:218). Nesse aspecto, a situação dos Waiãpi da Guiana Francesa, pesquisados por Pierre e Françoise
Grenand, parece ainda pior. Segundo os antropólogos a "autonomia" dos Waiãpi da Guiana Francesa "se encontra
minada em aspectos tão importantes quanto o nascimento (os primeiros partos são todos feitos em hospitais de
Caiena), a morte (os doentes graves são levados de helicóptero e são raros os velhos que morrem entre os seus), a
liderança política (todo novo chefe deve ser confirmado pelas autoridades francesas), os padrões de assentamento
(a sedentarização é uma constante da política indigenista francesa), as relações intercomunitárias e a guerra (os
'gendarmes' 'garantem a ordem' em território waiãpi)" (Grenand e Grenand 2002:160), para não falar da
subsistência diária. Um nativo, após conceber a possibilidade de "retomar nossas antigas técnicas para fazer fogo e
fabricar sal", afirmar que "todo mundo ainda sabe caçar e pescar com arco e todos sabem fazer arcos e flechas", e
avaliar que, apesar de serem "uma grande perda", poderiam "passar sem [...] os anzóis e os fios de pesca [...], o
pano vermelho, as miçangas, as panelas", conclui, sobre as "ferramentas": "Não poderíamos mais ficar sem elas.
Nada de facas, nada de terçados, nada de machados! Seria impossível: não poderíamos viver sem essas
ferramentas" (Miso, in: Grenand e Grenand 2002:171). Seja na busca por uma "aliança digna desse nome com a
sociedade branca" ("Os brancos conseguirão um dia tornar-se cunhados aceitáveis?"), seja na expectativa
milenarista de "uma terceira destruição da humanidade para reverter a situação", seja na conclusão de que "será
preciso desistir de ser Waiãpi" (considerada a alternativa "mais traumatizante de todas" e que, significativamente, é
o que "dizem cada vez mais os jovens"), são essas as "questões cruciais que os índios [...] tentam responder com
todos os recursos oferecidos por seu universo cultural", "o pano de fundo de sua interação com os brancos" e o
ponto de partida para imaginar "o seu futuro" (cf. Grenand e Grenand 2002:171).

172
humano dos outros mundos controlando suas comunicações (reunidos na imagem de um axis
mundi). A associação dos brancos a divindades nativas é muito comum, principalmente nas
primeiras fases do contato, geralmente pelos seus poderes extraordinários de criação e destruição
e pela sua aparência física assustadora e costumes incompreensíveis.138 Segundo Viveiros de
Castro foi André Thevet, já em 1575, provavelmente "o primeiro a perceber a generalidade da
associação ameríndia entre a chegada dos brancos e a volta de heróis míticos ou divindades".139
Falando sobre os Tupinambá de meados do século XVI, Viveiros de Castro nota que os
missionários souberam se aproveitar bem dessa associação:

Os missionários, em particular, foram vistos como semelhantes aos karaiba,140 e souberam utilizar-
se disso. Sua errância e seu discurso hortativo aparentava-os desde o início àqueles. Passaram
também a adotar a pregação matinal, à moda dos xamãs e chefes [...]; usaram liberalmente do canto
como instrumento de sedução, aproveitando o alto conceito de que gozavam a música e os bons
cantores (entre eles os karaiba) junto aos Tupinambá, provavelmente beneficiando-se da mesma
imunidade que protegia os profetas errantes e demais "senhores da fala" [...]. Atenderam ainda,
com as devidas reservas mentais, à demanda nativa, prometendo vitória sobre os inimigos e
abundância material [...]. Aos pedidos de cura e longa vida, respondiam com o batismo e a

138
Os Baniwa, por exemplo, que conheceram os brancos a partir dos primeiros contatos com "militares portugueses"
na primeira metade do século XIX (seguidos por "representantes do governo", de "ordens religiosas" e de
"interesses econômicos") (cf. Wright 2002:435-6; 1998:106-7), os assimilaram desde cedo a divindades
"importantes e poderosas [...] relacionadas a um complexo simbolismo de criação e destruição cósmicas", dentre as
quais está Kuwai – "Homem Branco", "Senhor das doenças", "filho do criador" – e sua mãe Amáru – "a primeira
mulher" e "Mãe dos brancos" (cf. Wright 2002:432-4, 445, 447; 1998:98-100, 147). O fato de a casa celeste do
demiurgo Iaperikuli (pai de Kuwai com Amáru) já ter sido comparada por um importante xamã local à "cidade dos
brancos, só que muito mais bonita" (depoimento, in: Wright 1998:291) e de o mito de Kuwai o representar "como
um homem branco" através de seus "atributos físicos e materiais" – cor da pele, "corpo coberto de 'cabelo'",
"sapatos, cinto, chapéu, espingarda", "revólveres" e "relógio" (Wright 2002:447, 452) – é representativo do poder
mítico atribuído ao branco e às suas tecnologias. Mesmo sabendo que "a complexidade e variedade das estratégias
Baniwa com relação ao contato impedem qualquer generalização" (Wright 1998:293), pode-se dizer que o poder
mítico atribuído aos brancos na mitologia é, geralmente, diretamente proporcional à ambigüidade e à ambivalência
das relações entre eles e os nativos. Num padrão que, como já vimos, é muito comum, se por um lado "os Baniwa
têm profundo interesse na habilidade dos brancos de produzir bens úteis, como que por mágica, sem a floresta que
eles achavam seria necessária" (Wright 1998:98), por outro "desde meados do século XX muitos Baniwa
concluíram que os brancos em geral eram emissários da morte, feiticeiros que traziam doenças e destruição, como
os espíritos animais e aquáticos associados ao mundo periférico exterior ao seu território" (Wright 1998:255). Vale
notar, no entanto, que a associação de brancos a "divindades" não é de forma alguma universal, pelo simples
motivo que o conceito de "divindade" não o é. Um bom exemplo disso é o caso dos Wari', entre os quais Vilaça
encontrou uma "ausência absoluta, na cosmologia tradicional, de figuras divinas" (Vilaça 1999:140): enquanto os
Tupinambá "associaram a chegada dos europeus à volta das divindades" e mais tarde passaram a vê-los como
humanos, os Wari' viram os brancos como "animais" e só posteriormente como "humanos" (cf. Vilaça 1999:140-1).
Mas mesmo não sendo universal a associação de brancos à categoria específica de divindades, é generalizada a
atribuição de poderes sobrenaturais (divinos ou não) aos brancos. Segundo Gow, "povos amazônicos atribuem
poderes notáveis aos brancos": "De quanto mais longe vier branco, mais bizarros e intimidadores serão os poderes
atribuídos a eles" (Gow 1999:98). Sobre a atribuição de poderes sobrenaturais aos brancos pelos Arara (Pará),
Teixeira Pinto conta como "um jovem índio" se impressionou, no início dos anos 80, quando viu "um dos homens
'brancos' parando um trator imenso com alguns berros e movimentos das mãos" (Teixeira Pinto 2002:415).
139
Viveiros de Castro (2002b:202).
140
"[T]ermo que qualificava os demiurgos e heróis culturais, dotados de alta ciência xamânica" (Viveiros de Castro
2002b:201).

173
pregação da vida eterna [...]; e aceitaram, levemente constrangidos, até mesmo imputações de
presciência".141

Se por um lado os poderes sobrenaturais atribuídos pelos nativos aos brancos se expressam no
desejo de incorporá-los e a seus objetos ao seu modo de vida e às suas trocas rituais como um
parceiro privilegiado (quando não divino), por outro eles se expressam no imperativo de
distanciar e controlar suas doenças e o poder destrutivo de sua tecnologia e de seus costumes (sua
feitiçaria).142 A associação entre doença e tecnologia já parece consolidada no pensamento
indígena muito antes do contato com as tecnologias e doenças dos colonizadores europeus, o que
é perfeitamente compreensível se considerarmos que as técnicas xamânicas do êxtase adquiridas
pela transferência tecnológica no tempo mítico são a origem prática de toda mitologia. Mas se a
relação tecnologia-doença antecede o contato dos índios com os brancos, isso não quer dizer que
a relação permaneça a mesma após esse contato. Justamente por isso, é preciso não menosprezar
o papel determinante que as epidemias143 assumiram na "conquista e colonização do Novo
Mundo", seja pelo impacto que tiveram na "constituição demográfica" e na "desestruturação
sociocultural e econômica" das populações nativas, seja pelos "benefícios políticos e

141
Viveiros de Castro (2002b:210). Um exemplo bem mais recente (e de um outro contexto histórico, geográfico e
étnico) desse tipo de aproveitamento missionário dos poderes excepcionais a eles atribuídos pelos nativos foi a
atribuição, pelos Baniwa (Amazonas), de "poderes sobrenaturais" xamânicos à evangélica norte-americana Sophie
Muller (que pregou entre eles de 1949 a 1953; cf. Wright 1998:236-44), que por sua vez afirmou ter ficado
"assustada" com a possibilidade dessas atribuições se voltarem contra ela (cf. Wright 1998:256) apesar de ter delas
se beneficiado (cf. Wright 1998:241, 255-6, 278-9). Wright chegou a afirmar que os Baniwa viam Sophie como
uma transformação da personagem mítica Amáru, mais especificamente na forma de uma "mulher xamã" (Wright
1998:279; cf. p.294), título que ela nunca pôde aceitar seja por considerar xamãs entidades demoníacas (cf. Wright
1998:271-4) seja por rejeitar totalmente a existência dos poderes xamânicos a ela atribuídos (como, por exemplo,
fazer uma horta crescer) – e.g.: "ninguém no mundo pode fazer essas coisas, apenas Deus" (Muller, in: Wright
1998:302 nota 6).
142
"As sociedades indígenas, muitas vezes, associam as devastadoras epidemias à tecnologia ocidental; ambas
manifestam um tipo de poder 'sobrenatural', ou 'mágico' dos brancos" (Buchillet 2002:130).
143
Dominique Buchillet cita as seguintes "doenças infecciosas de origem viral ou parasitária" "introduzidas no Novo
Mundo pelos europeus e escravos africanos" (o "pesado tributo pago pelos ameríndios"): "varíola, gripe, sarampo,
malária, febre tifóide, difteria, cólera, peste bubônica" (Buchillet 2002:113 nota 1). Buchillet analisou a etiologia
Desana para algumas das principais doenças que os afligiram a partir do contato. O sarampo e a varíola, por
exemplo, têm como causa as "contas de vidro" trazidas pelos brancos. Segundo Buchillet, a "similaridade entre a
forma do enxantema provocado por essas duas infecções virais e a das contas de vidro que passaram a ser um bem
importante nas suas trocas econômicas com os brancos nas primeiras fases do contato" (primeira metade do século
XVIII; Buchillet 2002:115) levou os Desana a estabelecerem uma "relação entre as duas doenças" através de um
mito que explica suas relações com as contas de vidro (cf. Buchillet 2002:122-3). A gripe, segundo os Desana,
"vem dos objetos dos brancos" (depoimento, in: Buchillet 2002:124). A maioria dos xamãs explica a febre da gripe
como resultando de "várias camadas de roupa dos brancos postas sobre o doente" e muitos deles interpretam a dor-
de-cabeça que normalmente acompanha a doença como a "existência de um motor funcionando dentro da cabeça"
(Buchillet 2002:125). Diversos encantamentos xamânicos de cura da gripe evocam adereços que pressionam partes
da cabeça como a "coroa de Cristo", "grampos [...] que trespassam o cérebro", as "hastes dos óculos que
comprimem as orelhas", as "lentes dos óculos que pressionam a retina", todos esses encantamentos tendo por
objetivo, antes de qualquer coisa, "retirar do corpo do paciente todos os objetos dos brancos" (Buchillet 2002:126).

174
econômicos" que os europeus "auferiram com a ocupação de territórios esvaziados" pela "guerra
biológica".144
Um aspecto particularmente bem explorado por Bruce Albert do poder destrutivo da
tecnologia do branco é o tema, "muito freqüente na Amazônia", "dos manufaturados
patogênicos".145 O antropólogo mostrou bem como objetos industrializados, em especial a
fumaça que eles exalam na combustão e os vapores que eles emanam (principalmente de objetos
de metal) – mas também o ruído das máquinas –, são centrais para a teoria Yanomami
(Amazonas e Roraima) das doenças.146 Segundo Albert, a "ligação entre surgimento dos brancos,
aquisição dos objetos manufaturados e epidemias",147 a "co-incidência" do fato de que, nos
primeiros contatos com os brancos no início do século XX, epidemias ocorriam
"sistematicamente após as expedições aos acampamentos dos brancos para conseguir objetos
manufaturados" promoveram o desenvolvimento de sua "teoria etiológica" da boobë wakëshi,
"fumaças das ferramentas, fumaça do metal".148 Trata-se, em verdade, de uma teoria bastante
disseminada149 na qual, via de regra, os brancos são vistos como "agentes etiológicos" e seus bens

144
Buchillet (2002:113). Os tais "benefícios" auferidos pelos europeus não se resumiam de forma alguma às terras
deixadas pelas populações nativas dizimadas, mas se estendiam também àqueles que sobreviviam. Buchillet cita
como europeus exploravam a seu favor o medo que os nativos tinham de suas doenças para torná-los obedientes e
servis (cf. Buchillet 2002:125).
145
Albert (2002b:251 nota 36).
146
Cf. Albert (1990, 1992, 2002a, 2002b). "Os Yanomami têm interpretado os fatos e efeitos do contato através do
crivo simbólico de sua teoria política dos poderes patogênicos, à qual subordinam a identificação dos brancos e dos
objetos manufaturados." (Albert 1992:153) O "status etiológico e patogênico dos brancos" se estendeu e
transformou ao longo da primeira metade do século XX, quando os "objetos manufaturados patogênicos [...] se
transformaram em armas sobrenaturais de espíritos xamânicos brancos" e "a fumaça deletéria associada a seu
cheiro tornou-se [...] a manifestação material de seu vôo agressivo" (Albert 1992:171). "Xamãs brancos", "espíritos
da tosse" (tokoribë), "facões sobrenaturais que cortavam a garganta de suas vítimas", "peças de algodão vermelho
cobertas de inscrições perfumadas, que lhes apertam o peito para sufocá-las, provocando uma febre violenta" e
"fumaças translúcidas" (geralmente "produto de combustão") passaram a compor essa nova etiologia Yanomami do
contato (cf. Albert 1992:171). A partir da metade do século e principalmente da década de 70, os "contatos
simultâneos e caóticos com brancos de todas as origens [missionários, garimpeiros, turistas, comerciantes, agentes
governamentais etc.], circulando por seu território [com o avanço das telecomunicações e dos transportes], e uma
contaminação generalizada, desligada de qualquer situação de conflito, provocaram uma nova transformação do
modelo etiológico yanomami" (Albert 1992:179). Essa nova transformação se caracterizou por um retorno à
"equação inicial entre brancos e espíritos maléficos" (nabëribë), que passaram a se dividir em quatro classes
principais, cada uma associada a uma substância ou objeto patogênico: os "espíritos do sarampo" (seraboribë),
associados à "fumaça de gasolina"; os "espíritos da malária" (huraribë), associados ao "gás" e à "água do
escapamento de motores de popa"; os "espíritos da diarréia" (shuuribë), associados ao "óleo de motor e emanações
de sua decomposição"; e os "espíritos da tosse" (tokoribë), associados a "facões e tecidos perfumados" (Albert
1992:179-80)
147
Albert (1992:161).
148
Albert (1992:166).
149
Albert cita ainda os Wakuénai e Yaminahua como exemplos de povos em que foi encontrada "uma associação
entre objetos manufaturados e doenças brancas" (Albert 1992:153 nota 6). Os Zo'e acreditam que os garimpeiros
"matam 'pelo cheiro e pelo barulho' de suas coisas" (Gallois e Carelli 1995:233). Os Baniwa, por sua vez,
"explicam a origem das doenças dos brancos como o resultado de uma fumaça produzida pelas 'fábricas de

175
(ou suas emanações) como "objetos patogênicos".150 Como nota Albert, os brancos e seus
"poderes tecno-patogênicos [...] trazem uma dimensão de diferença e de virulência até então
inédita" aos índios,151 e o "desafio fundador" das relações de contato é "enfrentar o enigma e o
perigo de estabelecer relações sociais e trocas materiais com os brancos, entes 'selvagens',
incompreensíveis e poderosos, e escapar de sua imprevisível virulência".152
Talvez a dimensão mais explícita desse retorno Yanomami ao tempo mítico na forma de
uma imersão no caos primordial de destruição descontrolada seja a "profecia apocalíptica" de
Davi K. Yanomami,153 com suas visões de "crise escatológica e de um movimento brutal de
entropia cosmológica" sintetizado na imagem de uma "queda do céu" devido à destruição do axis
mundi metálico que o sustenta pela garimpagem.154 Segundo Albert, a profecia de Davi é um
"milenarismo de baixa intensidade" cujo motor é o "fracasso do xamanismo" atual em combater
eficientemente os "poderes patogênicos liberados pelos brancos", em especial pela "corrida do
ouro", que representa uma "irrupção de forças destrutivas tão incontroláveis no interior da
floresta e do universo que só podem ser associadas à memória mítica das transformações erráticas
dos ancestrais animais".155 Trata-se de "uma reviravolta escatológica na qual a gênese se
reproduz como ameaça de apocalipse" e no qual o xamanismo, como "um ver-saber estratégico

Amaru'" espalhadas "nos quatro cantos do mundo" onde "tinham 'potes de metal'" dos quais "saiu 'fumaça' ["que
produz as doenças do branco"] que os aviões, e os barcos, os carros trazem de volta (enfim, a poluição) junto com a
mercadoria para o 'centro do mundo' onde os Baniwa moram" (Wright 2002:457). As "fábricas de Amaru" são ao
mesmo tempo a "origem de todas as mercadorias do Homem Branco" e a "origem de todas as doenças do Homem
Branco", motivo pelo qual "quando alguém sonha com um avião, é sinal de que uma doença do homem branco é
iminente", e pelo qual as orações Baniwa orientadas para a cura das "doenças dos brancos" privilegiam as "coisas
de Amaru", "suas fábricas, seus tecidos, aviões, barcos, carros e cachaça" (Wright 2000:6-7). A teoria comporta
também variações como a encontrada por Bastos entre os xinguanos, para quem "a sensação de frio causada pela
febre é associada ao contato com metal": "os antigos xinguanos não desejavam a introdução ali de instrumentos de
metal com receio do frio febril que eles provocavam" (Bastos 1985:153).
150
Albert (1992:161). Entre os Yanomami, matihibë é o nome que se dá tanto a "objetos e armas patogênicos"
quanto a "bens considerados preciosos, tais como ossadas humanas, adornos de penas e [...] objetos
manufaturados" (Albert 1992:159, 167)
151
Albert (2002a:13).
152
Albert (2002a:12). Relativizando o caso ameríndio, Albert cita a Polinésia e a Melanésia como exemplos de
outros lugares em que a "equação branco-espíritos maléficos (inimigos, canibais, 'demônios')" se aplica (Albert
2002a:12 nota 9).
153
Davi Kopenawa Yanomami ficou órfão com a morte da mãe em uma epidemia de sarampo e foi alfabetizado e
catequizado por missionários. Após tornar-se intérprete da Funai, passou a ter "sonhos enigmáticos" que foram
interpretados como "apelos de uma vocação xamânica promissora". Lourival, "estrategista sagaz" e líder de uma
comunidade Yanomami, entendendo que "seria fundamental garantir ao seu grupo acesso não apenas às
ferramentas, como no passado, mas também aos remédios dos brancos", aproximou-se do posto onde Davi
trabalhava, fazendo dele, de uma só vez, seu genro e seu aprendiz de xamanismo. Com isso, além de garantir o
acesso de sua comunidade aos benefícios do posto e fazer de Davi seu dependente, Lourival também fez dele o
porta-voz xamânico dos Yanomami frente aos brancos (cf. Albert 2002b:244-5).
154
Albert (2002b:254-5).
155
Albert (2002b:255).

176
para a contenção dos poderes entrópicos da alteridade cosmológica e social",156 se aplica a uma
"espécie de homeopatia simbólica generalizada".157
Iniciamos este capítulo verificando como os mitos indígenas que retratam os brancos e
suas tecnologias explicitam a sua natureza freqüentemente sobrenatural e ambígua: por um lado
benéficos e portadores de um poder tecnológico criativo desejado e associado ao tempo mítico,
por outro maléficos e portadores de um poder patogênico destrutivo indesejado associado à
feitiçaria. Se os mitos da tecnologia podem nos ajudar a compreender melhor as próprias
tecnologias que neles figuram, é porque eles revelam um tipo de eficácia funcional dessas
tecnologias que é normalmente oculto ao pensamento moderno, por não se resumir ao
utilitarismo banal, antes envolvendo também todo um circuito de trocas e alianças no qual elas
entram muito mais como peças de uma máquina social do que como objetos técnicos em si. Em
seguida, verificamos como os impasses e dilemas vividos pelos índios a partir do contato com o
branco e suas tecnologias só parecem plenamente compreensíveis se levarmos em conta o fato de
que eles freqüentemente são vividos como uma reimersão, para o bem ou para o mal, no tempo
mítico.
Como já vimos, no tempo mítico os poderes criativos e destrutivos dos deuses e de suas
tecnologias coincidem em figuras ambíguas e é apenas com a ruptura primordial que caracteriza
o início do tempo presente que eles se separam em domínios específicos e passam a circular pelo

156
"Nós, Yanomami, que somos xamãs, sabemos. Vemos a floresta. Depois de tomar o poder alucinógeno de suas
árvores, nós vemos. Fazemos os espíritos da floresta, os espíritos xamânicos, dançarem suas danças de
apresentação. Vemos com nossos olhos. Depois de 'morrer' sob o poder do alucinógeno, vemos a 'imagem
essencial' da floresta. Vemos o céu sobrenatural. Nossos ancestrais o viam antes e nós continuamos a vê-lo." (Davi
K. Yanomami, in: Albert 2002b:248-9)
157
Albert (2002b:255-6). Omama, o demiurgo Yanomami, "escondeu os metais embaixo da terra, a fim de proteger
os humanos de suas propriedades patogênicas" (Albert 2002b:249). Segundo Davi K. Yanomami, essa foi uma
atitude deliberada do demiurgo, que "[s]ó deixou de fora aquilo que comemos...Esses minérios ninguém os come,
são coisas perigosas." (Davi K. Yanomami; in: Albert 2002b:250) Conta o mito que Omama enterrou esse "metal
perigoso nas profundezas da terra" ("com exceção de algumas ferramentas que fez com ele e deixou para os
ancestrais yanomami"), transformando-o em "um tipo de axis mundi metálico" ("a ossatura da terra", "os pés/raízes
do céu") (Albert 2002b:250). Daí o perigo intrínseco à garimpagem: enquanto permanece soterrado, o metal é
"inofensivo", servindo como sustentação do cosmos; uma vez extraído do solo, queimado, exposto ao Sol, o metal
libera uma "fumaça pestilenta [a tal "fumaça do metal"] que se propaga em todas as direções", um "calor
patogênico [que] afeta não só os seres humanos, mas também a floresta, que vê seu 'sopro' esvair-se e seu 'princípio
de fertilidade' fugir, tornando-se inabitável para seus donos, os espíritos xamânicos" (que então a abandonam
gerando um colapso cósmico) e queimando "o peito do céu" (que então murcha "como um saco de plástico
derretendo no calor") (Albert 2002b:251-2). Segundo Davi, se o céu já caiu uma vez "nos primeiros tempos",
matando todos os que viviam "naquela época", após o que "nós tomamos o seu lugar" (Davi K. Yanomami, in:
Albert 2002b:255), quem morrerá agora somos todos nós: "Ninguém escapará à queda do céu." (Davi K.
Yanomami, in: Albert 2002b:255). Uma escatologia semelhante à Yanomami foi encontrada por Gallois entre os
Waiãpi, que por sua vez puderam constatar a "sintonia" dos discursos em um encontro com Davi (cf. Gallois
2002:220 nota 10). Os paralelos entre as profecias Waiãpi e Yanomami podem ser verificados em Michiles (v1993)
e Gallois (v1994).

177
mundo de maneira controlável pelos xamãs. A dimensão mítica das tecnologias dos brancos é,
assim, não apenas uma afirmação de seu poder e de sua ambigüidade, mas também da
possibilidade de que a ruptura primordial seja revertida e os poderes criativos e destrutivos do
tempo mítico voltem a operar no regime caótico e pré-social dos primórdios. Nesse processo, os
xamãs assumem um destaque especial, visto serem eles aqueles melhor situados para lidar
justamente com esses poderes simultaneamente criativos e destrutivos. Veremos, no próximo
capítulo, como esse importante papel dos xamãs nas situações de contato é uma via privilegiada
(e talvez a mais consistente) para a compreensão de xamanismos contemporâneos como aquele
da música eletrônica.

178
Capítulo 6
Técnicas contemporâneas
do êxtase

179
180
Encontrar sempre o bom ponto de vista, ou
sobretudo o melhor, aquele sem o qual só haveria
desordem e mesmo o caos.1

1
Deleuze (1991:39).

181
182
Segundo Overing, o xamã Piaroa (ruwang) é o especialista nas relações entre o tempo atual e o
tempo mítico e seu trabalho é "lidar com todas as forças perigosas que ameaçam diariamente a
existência de sua comunidade".2 Segundo Anthony Seeger, "[x]amãs são indivíduos que entram
em contato direto com espíritos, viajam para os mundos espirituais e freqüentemente trazem de lá
músicas, experiências e às vezes as almas de pessoas doentes que eles estão curando".3 Segundo
Paulo Santilli, "a figura do xamã é carregada de ambigüidade", "seja pela longa iniciação que lhe
fornece conhecimento especializado e habilidades para além do comum dos homens [a
"experiência de separação inerente à atividade xamanística [que] confere-lhe papel intermediário
e, portanto, ambíguo, diante da sociedade"], seja pela perigosa familiaridade que, de modo
correlato, adquire com as esferas não-humanas do universo", com "mundos diversos, conectando-
os".4 Segundo Viveiros de Castro, "[a] separação original entre os Mai [deuses] e os homens é a
condição e a razão do xamanismo" Araweté, sendo o xamã aquele que "religa as esferas
separadas" por meio de "caminhos".5 Segundo Beth A. Conklin, enfim, as "habilidades"
tradicionais dos xamãs como "mediadores por excelência, negociando as relações entre a
sociedade humana e o mundo espiritual" estão, atualmente e "à medida em que o conhecimento,
as perspectivas e o imaginário xamânico são empregados na mediação das relações com o
Estado", "penetrando nos novos domínios da política interétnica".6
Argumentaremos neste capítulo que quando o contato com o branco e suas tecnologias
atualiza o tempo mítico não é apenas o tempo mítico que muda; também mudam o branco e suas
tecnologias. Proporemos aqui uma leitura do contato entre índios e brancos que não apenas
procura seus impactos também no branco e em sua tecnologia, mas o faz a partir de elementos
levantados pelos próprios xamãs tradicionais, levando a sério aquilo que eles dizem sobre as
máquinas. Note-se que não se trata de afirmar que os xamãs "já sabiam" coisas que o homem
moderno só veio a descobrir depois, tampouco de dizer que os xamãs sejam ignorantes quanto à
tecnologia moderna, ambas as afirmações contradizendo dados etnográficos. Buchillet, por
exemplo, a partir de seu estudo da nosologia Desana, nota que há uma "relação entre
representações xamânicas e dados biomédicos" e que essa relação "não é aleatória", antes se
baseando numa "observação minuciosa e exaustiva das características objetivas

2
Overing (1990:607-8).
3
Seeger (1988:32).
4
Santilli (2002:501).
5
Viveiros de Castro (1986a:191).
6
Conklin (2002:1051).

183
(epidemiológicas)" de suas "diversas patologias".7 De fato, a idéia de que o xamã seria uma
espécie de proto-cientista (ou seja, que ele teria chegado às mesmas descobertas da medicina
ocidental só que por outras vias e muitas vezes antes desta) é pelo menos tão antiga quanto o
conceito lévi-straussiano de "pensamento selvagem"8 e é muitas vezes vista como a última
palavra no assunto.9 No entanto, quando nos deparamos com afirmações como a de que xamãs
Shipibo-Conibo comparam o conceito nativo de nihue (entre outras coisas, a origem de doenças)
a "uma nuvem de bactérias",10 isso nos parece muito mais uma possibilidade de transformação do
nosso conceito de bactérias do que uma confirmação de que aqueles xamãs conhecem o conceito
científico de bactérias. Muito diferente de negar a cientificidade do xamanismo, com isso
questionamos o pressuposto de que qualquer ciência xamânica tenha que ter o mesmo mundo da
ciência moderna como objeto de conhecimento.11 Assim, no contato entre médicos e xamãs,12

7
Buchillet (2002:130).
8
Cf. Lévi-Strauss (1989 [1962]).
9
Jean-Pierre Chaumeil, por exemplo, já propôs que o conceito amazônico de "dardo-mágico" pode ser compreendido
como parte de um "complexo 'etnovirológico'" que coincide "em linhas gerais" com o conhecimento da "medicina
ocidental" mas independe dela (cf. Chaumeil 2001), e este é o subtexto geral da última parte da retrospectiva de
Narby e Huxley (2001) sobre o estudo do xamanismo. Vale citar aqui o diálogo entre um Narby deslumbrado e seu
irônico informante Ashaninca: "'Tio', eu disse, 'tenho algo importante para dizer. Lembra-se de todas aquelas coisas
que você explicava para o gravador e que eu tinha dificuldade em entender? Então, depois de pensar durante anos e
estudar o assunto, eu acabei descobrindo que tudo o que você me disse é cientificamente verdadeiro'. Pensei que
ele ficaria satisfeito e estava prestes a prosseguir quando ele me interrompeu. 'Por que você demorou tanto?' ele
disse" (Narby 1998:151-2). O problema desse tipo de interpretação do xamanismo é o pressuposto muito mal
esclarecido de que o conhecimento produzido pelo xamanismo se dá sobre os mesmos objetos sobre os quais
trabalha a ciência, como se estivessem ambos numa mesma pista de corrida do conhecimento, uns mais adiante,
outros mais atrás. Essa perspectiva é evidente no discurso de Narby em sua performance Amazonia Ambient
Project (apresentado em São Paulo em 2004): "A biologia molecular como um todo é uma demonstração da nossa
semelhança para com as demais espécies. Os povos animistas e xam[â]nicos do mundo têm sido destacados por
esse parentesco por milênios, enquanto a biologia contemporânea apenas começou a descobrir sua manifestação
física. [...] A biologia agora trem[u]la o duplo helix [sic] como sua bandeira, o símbolo de novas curas. Mas este
mote é o mais antigo símbolo da vida e cura no mundo. A escada tran[ç]ada, duas serpentes entrelaçadas, o axis
mundi, o símbolo dos xamãs nos cinco continentes por milênios." (Narby, in: Matias *2004c; correções nossas
entre colchetes) Ora, a idéia de que a ciência está seguindo o xamanismo parece-nos uma falsa questão, pois eles
têm objetivos e objetos diferentes.
10
Illius (1992:64).
11
Não dizemos que os mundos do xamã e do cientista "devem" ser diferentes, pois eles podem coincidir e fatalmente
coincidem em muitos aspectos. Criticamos apenas o pressuposto disseminado de que para além das visões de
mundo particulares de cada sociedade haveria um único e mesmo mundo físico, idéia que parece-nos estar na base
do pensamento lévi-straussiano: "Não existe, jamais existiu senão um único mundo físico, cujas propriedades
permaneceram as mesmas em todos os tempos e lugares, enquanto que no curso dos milênios, aqui e acolá,
nasceram e desapareceram milhares de mundos humanos, com um fulgor efêmero." (Lévi-Strauss 1993:315) A
esse "multiculturalismo", que "supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma
natureza externa, uma e total, indiferente à representação" (Viveiros de Castro 2002b:379), desejamos opor, a partir
do xamanismo, um "multinaturalismo" no qual "todos os seres vêem ('representam') o mundo da mesma maneira –
o que muda é o mundo que eles vêem" (Viveiros de Castro 2002b:378; itálicos no original).
12
A dependência dos índios com relação aos remédios e à medicina dos brancos gerou os mais variados
compromissos entre médicos e xamãs, mas também as mais elaboradas contribuições. Os Waiãpi da Guiana
Francesa, por exemplo, evitam "a todo custo qualquer situação de conflito entre médicos e xamãs, raramente em
concorrência", por desejarem poder contar com os "talentos" de ambos, os xamãs estabelecendo "laços

184
interessaríamo-nos sobretudo pela maneira como estes incorporam as técnicas e tecnologias
daqueles em suas próprias práticas rituais não para confirmar aquilo que a medicina moderna já
sabe, mas sim para revelar dimensões ainda pouco conhecidas de suas próprias técnicas e
tecnologias. Um bom exemplo disso é o caso da apropriação xamânica dos poderes (benéficos e
maléficos) atribuídos à seringa hipodérmica.13
Segundo Shane Greene, o xamanismo Aguaruna (Jívaro) é, em grande parte, centrado em
torno do conceito de penetração corporal patológica de dardos mágicos emitidos por feiticeiros e
da sua retirada terapêutica pelos xamãs.14 Greene conta que a biomedicina é tida em alta conta
pelo xamã Aguaruna e seus clientes principalmente por dois motivos: pois a introdução
subcutânea de remédios "inverte" a etiologia tradicional segundo a qual são as doenças mortais, e
não as curas, que penetram no interior do corpo; e também pois as seringas representam ao
mesmo tempo um "paralelo" dessa etiologia quando passam a ser vistas como causadoras de
doenças – como quando cientistas que coletam amostras de sangue dos índios (ou seja, retiram
substâncias corporais vitais com seringas) são comparados por eles aos pishtacos, criaturas
sobrenaturais cujos ataques são temidos e podem levar à morte.15 Seringas médicas acabam assim

["individuais"] de convivência baseados numa relação de amizade eletiva" com os médicos, que por sua vez são
considerados "culturalmente receptivos" (Grenand e Grenand 2002:165). Segundo Villas Bôas, a presença de um
médico entre os "índios do Xingu" "não frustra o pajé curador; ao contrário, o pajé soma o benefício" e "capitaliza
a cura" (Villas Bôas 2000:18-9). No entanto, diferentemente do pajé, o "ervatário curador, que conhece a força e o
socorro das plantas, acompanha a cura, mas não se manifesta", pois "[s]ua participação implicaria a ingestão por
parte do doente de mezinhas da farmacopéia indígena e isso poderia contrariar o 'colega caraíba'" (Villas Bôas
2000:19). O importante é notar que os xamãs geralmente sabem "distinguir com tranqüilidade o que é do que não é
'doença de índio'", que "seu saber não se pretende hegemônico" (Pereira 1989:47).
13
O poder simbólico da seringa foi freqüentemente assimilado pelas teorias etiológicas nativas. Entre os Waimiri-
Atroari, por exemplo, o "conceito [nativo] de lançar um agente patogênico para dentro do corpo" contribuiu para
que as mortes decorrentes da administração incorreta de vacinas por médicos da Funai, assim como outras doenças,
fossem atribuídas à "feitiçaria dos civilizados", que "flechavam" os índios com seringas transmissoras de "feitiços
que agiam como um veneno em seus corpos" (cf. Baines 2002:324-7). O fato de que muitas mortes foram de fato
provocadas absurdamente por overdoses de vacinas vencidas (cf. Baines 2002:324-5) apenas confirmou a etiologia
nativa e suas acusações dos brancos por feitiçaria. Segundo Buchillet, os xamãs Desana comparam o uso de
"objetos intermediários" para a "transferência do encantamento ao paciente" à função da "injeção" na transferência
do remédio para dentro do corpo (cf. Buchillet 1992:218-20). Os Suyá, que aparentemente não possuem tradição
xamânica própria mas consultam regularmente xamãs de outros "grupos locais" e representantes da "medicina
ocidental", possuem "invocações profiláticas" que funcionam pela "inserção de um atributo de um animal, planta
ou outro objeto natural dentro do corpo de um humano com o objetivo de fornecer a uma parte ou função particular
do corpo as propriedades do animal" ("algo poderoso que os humanos não tinham era invocado, e o atributo era
soprado e [en]cantado para dentro do corpo do paciente") (Seeger 1987:35). Segundo Seeger, o "melhor paralelo
ocidental" para essas invocações "é uma injeção hipodérmica" (Seeger 1987:35).
14
Greene (1998:645). Com isso, tanto os dardos assumem um estatuto ambíguo – pois eles são a causa da doença,
mas também da cura – quanto os xamãs um estatuto ambivalente – pois a sua eficácia terapêutica está diretamente
ligada à eficácia patogênica da feitiçaria (Greene 1998:654).
15
Greene (1998:649-51). Assim, o poder ambivalente da seringa médica acaba aproximando-a definitivamente das
também ambivalentes fontes tradicionais de poder mágico dos Aguaruna, tão ligadas à cura xamânica quanto aos
ataques de feitiçaria e dos pishtacos (cf. Greene 1998:651-2). Felipe F.V. Velden conta como os Karitiana
(Rondônia), por duas vezes alvo de coletas inescrupulosas (classificadas como "roubo") de amostras de seu sangue

185
tornando-se objetos privilegiados – por serem simultaneamente um análogo da feitiçaria e um
representante do poder sobrenatural atribuído aos brancos – através dos quais os xamãs Aguaruna
se apropriam do poder médico e sócio-político da medicina ocidental, um poder especialmente
valorizado por sua natureza estrangeira.16
Em seu artigo, Greene transcreve uma sessão terapêutica comandada por Yankush, um
xamã Aguaruna, na qual este "traz o poder estrangeiro da biomedicina para os Aguaruna [através
de diversas referências a "seringas" e "remédios" ("ocidentais" ou "mestizo")], canalizando-o em
seu próprio repertório xamânico de conhecimentos e práticas" e assim "aumenta o poder de suas
próprias técnicas xamânicas ao obter benefícios da fonte desse poder".17 Greene conclui que
"Yankush xamaniza a ciência (na forma de biomedicina) através da apropriação do poder
ambivalente da seringa e da incorporação de remédios em suas curas"18 produzindo assim um
movimento inverso àquele que a própria ciência tenta impor ao xamanismo através de esforços de
"cientificização" etno-bio-médica.19 Essa xamanização da Biomedicina20 feita pelo xamã
Aguaruna é vista por Greene como um passo essencial na reversão do papel "imperialista" que a

por pesquisadores estrangeiros, encontram nesse "deslocamento da conduta propriamente humana" uma
justificativa para classificar brancos como "vampiros, canibais, bebedores de sangue, ávidos comedores, criaturas
amorais" (Velden 2005). Com efeito, "[s]ubscrevendo a crítica cultural indígena, é fundamental que também
olhemos com mais cuidado para o que as ciências e práticas vêm fazendo com nossa sociedade." (Velden 2005)
16
Greene (1998:652). As fontes de poder xamânico Aguaruna são, via de regra, exteriores e distantes ao seu mundo
social. São seres socialmente distantes (naturais e sobrenaturais) os mais propensos a se tornarem fontes de poder
xamânico – difícil então dizer se a ambigüidade dessas fontes é causa ou conseqüência de sua distância social. Daí
o poder conferido à medicina Ocidental, que além de emular procedimentos mágicos nativos ainda provém de seres
socialmente distantes, ambíguos e (provavelmente por isso) vistos como poderosos (Greene 1998:650). Outro
exemplo de incorporação de objetos médicos como índice de poder xamânico pode ser encontrado numa fotografia
de um xamã Sora que "aumenta o seu prestígio fazendo uso do estetoscópio de um médico" (cf. Vitebsky
2001a:143).
17
Greene (1998:650). A sessão contava ainda com a presença das duas pacientes, seus maridos, a mulher de
Yankush e um certo público, além dos antropólogos Margaret Van Bolt e Michael Brown – este último foi quem
publicou a transcrição usada por Greene (Brown, M. 1988. "Shamanism and Its Discontents" Medical
Anthropology Quarterly 2:102-20). Na transcrição de Greene, o relato possui 169 linhas numeradas (cf. Greene
1998:646-8). Sobre o potencial terapêutico da seringa, o xamã diz repetidamente: "Dê a ela uma injeção. Ela se
recuperará." (linha 30); "Você pode dá-la três injeções. Ela ficará boa." (linha 34); "Com muitas injeções ela ficará
boa." (linha 36; itálico no original); "Receba uma injeção, e você melhorará." (linha 67); "Depois você deve tomar
uma injeção, mas se recuperará lentamente." (linhas 99-100). O xamã faz ainda uma referência ao potencial
patogênico das seringas: "Talvez você tenha recebido uma injeção. Isso faz seu estômago doer." (linhas 48-9;
itálico no original). Quanto aos remédios, o xamã ingere e administra aquilo que foi identificado como "mestizo
medicine" (cf. linhas 16, 41, 74) e são feitas referências a remédios supostamente ocidentais ou "farmacêuticos"
(cf. linhas 33, 34, 35, 59, 71, 89, 129, 149 e 150).
18
Greene (1998:653; itálico no original; cf. p.650).
19
Greene (1998:652-3). Encontramos alguns exemplos dessa supervalorização da dimensão farmacopéica do
xamanismo em detrimento de outros aspectos do ritual em Plotkin (1993), Narby (1998 e 2001), Davis (2001) e
Shepard (2001).
20
Um "profundo simbolismo do procedimento biomédico de injetar medicamentos no corpo como uma atualização
de poder médico" que, segundo Greene, não é restrito nem aos Aguaruna e nem à América do Sul Greene
(1998:650).

186
medicina (junto com o cristianismo, a tecnologia e o capitalismo) tradicionalmente exerce em
situações de contato com povos indígenas.21 A ênfase de Greene é na substituição de uma
imagem conservadora e essencialista de xamanismo por outra que atente para o seu dinamismo e
suas práticas históricas subversivas,22 uma crítica que é freqüentemente feita a Eliade e com a
qual concordamos inteiramente. Gostaríamos porém, além disso, de ressaltar que esse dinamismo
do xamanismo em situações de contato com os poderes tecnológicos do branco é também
responsável por uma transformação desses próprios poderes. Como bem notou Viveiros de
Castro, "[n]ão há alteridade sem alteração",23 e se Yankush "xamaniza" a ciência, então a ciência
dificilmente permanecerá a mesma. Gostaríamos de sugerir aqui que se há um devir-medicina do
xamanismo quando este se associa ao poder dos medicamentos ocidentais e das seringas – um
processo em que o xamanismo se transforma ao se associar a potências curativas e patogênicas
que lhe parecem ser da mesma natureza que as outras forças sobrenaturais que ele se esforça por
controlar – então é porque há simetricamente um devir-xamanismo da medicina no qual esta se
transforma ao entrar em contato com o xamanismo. Mas o que acontece com a medicina quando
ela é incorporada no ritual xamânico? Em que ela se transforma?24
O devir-medicina é apenas um dos vários devires em que entra o xamanismo tradicional
nas situações de contato com o branco, e sua importância reside no fato de que a medicina é, de
fato, um dos principais domínios modernos a partir do qual o xamanismo pode ser compreendido.
Mas o xamanismo também entra em um devir-psicanálise,25 um devir-neurologia,26 um devir-
arte,27 um devir-religião,28 um devir-política,29 e quantos outros devires puderem ser encontrados,
sempre lembrando que devir não é nunca imitar ou se identificar mas sim um processo de
transformação e alteração mútua dos dois processos antes separados (assim, o devir-medicina do

21
"[É] criticando os falsos juízos míticos e ideológicos da etnomedicina ocidental e ao mesmo tempo ressaltando as
práticas etnomédicas que os contradizem localmente que podemos repensar o desenvolvimento da medicina e
evitar mais exploração" (Greene 1998:653-4).
22
Greene propõe principalmente a superação de uma imagem essencialista do xamanismo (segundo a qual esse tipo
de apropriação xamânica de objetos estrangeiros não passaria de uma modificação superficial de uma essência
cultural tradicional a ser preservada; cf. Greene 1998:642-4; 655 nota 10) através da percepção de que "o
xamanismo não é estático e conservador, mas sim uma combinação criativa e dinâmica de conhecimento e prática"
(Greene 1998:653).
23
Viveiros de Castro (2001:17).
24
Encontramos uma contribuição notável para a resposta a essas questões em Achterberg (1996). Seria, porém
descabido avançar nessa direção nesta tese.
25
E.g. Lévi-Strauss (1973:215-36), Dobkin de Rios (2002).
26
E.g. Reichel Dolmatoff (1997:213-40), Sell (1996), Winkelman (2002).
27
E.g. Flaherty (1988), Müller (1996), Schechner (1994).
28
E.g. Viveiros de Castro (2002b:181-264; 470-2), Wright (1989, 1998, 2000).
29
E.g. Albert (2002b), Conklin (2002), Boyle (*2001).

187
xamanismo tem como contraponto necessário um devir-xamanismo da medicina etc.).30 Veremos
agora um devir do xamanismo muito pouco pesquisado até agora e que parece-nos central para
uma compreensão mais ampla da tecnologia moderna, um capítulo ainda por ser escrito da
Antropologia da Tecnologia: o devir-máquina do xamã.31

Os xamãs e as máquinas
Vimos que algo típico ocorre quando povos indígenas entram em contato com os brancos e suas
tecnologias: o tempo mítico é atualizado pelas potências tecno-patológicas e processos
milenaristas e xamânicos são deflagrados para controlar essas potências. "Observou-se muitas
vezes", confirma Manuela Carneiro da Cunha, "o extraordinário florescimento do xamanismo em
situações de dominação de tipo colonial, ou mais exatamente quando povos são capturados nas
engrenagens do sistema mundial".32 Parece-nos que esse "extraordinário florescimento do
xamanismo" é em grande parte a conseqüência da derrocada do mundo conhecido até então e da
subseqüente busca por uma nova ordem, por um novo ponto de vista a partir do qual fazer sentido
da nova situação e organizar a ação. Os processos criativos e destrutivos colocados em
movimento no contato com o branco e suas tecnologias parecem ser diferentes de tudo o que já se
viveu e exigem ser interpretados como um retorno coletivo ao tempo mítico, o contexto em que
processos análogos se desenrolaram originalmente. Nesse retorno, são os xamãs aqueles que se
encontram melhor situados para controlar as forças em jogo e para guiar os demais ao longo da
"passagem perigosa". Para isso "há caminhos", entre os quais figura com destaque a captura do
poder das máquinas modernas pelos xamãs em seus rituais (quando não a transformação do xamã
em máquina, numa espécie de "tecno-hierofania antropomórfica").
Já vimos, através de alguns exemplos fornecidos por Eliade, como a iniciação xamânica
consiste, entre outras coisas, numa radical transformação do corpo do xamã, envolvendo a troca
de órgãos e membros, a inserção de objetos e a aquisição de novas capacidades e poderes.33 A
natureza dessas transformações, os objetos inseridos no corpo, nada disso é arbitrário, sendo
antes uma maneira de colocar o xamã diretamente em contato com fontes de poder atuais,
operantes e eficazes, de fazê-lo coincidir com o axis mundi (perspectiva privilegiada a partir da
qual interagir com o cosmos e seus elementos). Se durante sua iniciação o xamã Siona se depara

30
Essa teoria do devir é evidentemente deleuze-e-guattariana (cf. Deleuze e Guattari 1997a).
31
Boa parte da seção que se segue foi publicada no periódico eletrônico Alegrar (cf. Ferreira 2005b).
32
Carneiro da Cunha (1998:8).
33
Cf. Capítulo 4, acima.

188
com uma "imensa máquina trituradora que devora tudo" (inclusive ele mesmo, que "vê a si
mesmo sendo triturado e arremessado em pedaços"34) e com uma "cobra yagé" que "avança num
movimento lento e rítmico com o som de um motor pesado",35 se um xamã Baniwa afirma que o
seu vôo extático (e mais especificamente o som desse vôo) sob o efeito do pariká é "como um
avião" ou "como uma lancha [motorboat]",36 se durante sua iniciação um xamã Assurini teve um
lampião introduzido dentro de sua barriga e foi transportado por um helicóptero e um caminhão
até o local onde receberia suas instruções,37 deveríamos nos perguntar: por que tantas máquinas?
O mesmo se deveria perguntar dos objetos que os xamãs manipulam (concreta ou
simbolicamente) em seus rituais, em especial os de metal. Se nos encantamentos xamânicos
Desana atenção especial é dedicada aos objetos materiais considerados "quentes" – dentre os
quais se destacam os objetos metálicos ("facões, machados, anzóis etc.") devido ao seu processo
de fabricação envolver "o derretimento e a modelação a altas temperaturas"38 –, se nos rituais
anti-feitiçaria Wakuénai o espírito do "papel de Amáru [rupápera sru Amáru]" é invocado para
combater todas as doenças causadas pelo branco – pois tanto o papel quando as ferramentas de
metal são consideradas "'coisas quentes' (tsímukáni) trazidas pelos brancos" e associadas à
personagem mítica Amáru39 –, se um xamã mestizo peruano usa um encantamento chamado
"icaro do aço [icaro del acero]" para "tornar seu corpo forte o bastante para suportar tempestades
e ventos fortes",40 se o nível hierarquicamente mais elevado da cosmologia Siona (o quarto céu) é

34
Langdon (1992b:56; 1995:116).
35
Langdon (1992b:57).
36
Mandu, in: Wright (1998:80).
37
"Andei por um caminho e cheguei numa casa abandonada. Não haviam luzes, apenas um lampião no meu
estômago. Fui operado para que o lampião permanecesse dentro de meu estômago. Tive que escalar uma corda e
chegar até o topo da árvore para esperar por um helicóptero. A porta abriu e eu entrei. O helicóptero atravessou o
rio, aterrizou, e eu entrei no caminhão. Segui viagem e cheguei ao local onde me ensinariam a curar." (depoimento,
in: Müller e Valadão v1997) É muito interessante comparar esse relato com o de um outro xamã no mesmo vídeo,
que não faz nenhuma referência a nenhuma máquina, apenas a jaguares e pássaros, apesar de descrever eventos
análogos. Tudo se passa como se, para o xamanismo indígena contemporâneo, a máquina assumisse o papel do
animal. Voltaremos a isso adiante.
38
Buchillet (1992:221).
39
Para os Wakuénai, os brancos são "seres semi-humanos cujas almas assumem a forma de livros e papel" – "a alma
dos missionários aparece como uma bíblia, a dos comerciantes como um registro comercial, a dos antropólogos
como um caderno de campo" – e assim são vulneráveis a feiticeiros que podem atacá-los "rasgando seus livros ou
papéis" (Hill e Wright 1988:92; cf. Hill 1998:6). O efeito simultaneamente "alienante", "artificial", "anti-social",
"perigoso", "destrutivo" e "poderoso" das "'coisas quentes' (tsímukáni) trazidas pelos brancos" – dentre as quais se
destacam as "ferramentas de metal usadas pelos Wakuénai na jardinagem, na pesca, na caça, na construção das
casas e em outras atividades" e a "escrita" – faz com que o espírito do "papel de Amáru [rupápera sru Amáru]" seja
invocado nos rituais anti-feitiçaria para combater todas as doenças causadas pelo branco (cf. Hill e Wright
1988:93).
40
Luna (1992:238; itálico no original). Luna conta que muitos xamãs mestizos peruanos aprendem, além dos
encantamentos (icaros) tradicionalmente associados a "plantas professoras" específicas, outros associados a objetos
de metal – "deixando um pedaço de pedra ou metal em um copo de água por vários dias e depois bebendo a água

189
chamado de "pequeno céu de metal" e os outros níveis são ligados por um "enorme pilar de
metal"41 e se, enfim, os metais preciosos são concebidos pelos Waiãpi e pelos Yanomami como
uma espécie de "axis mundi metálico" que sustenta o céu – e que portanto pode ruir como
resultado da exploração descontrolada do garimpo42 –, nada disso parece-nos poder ser
dissociado da importância (política, econômica, ecológica ou, para resumir sem simplificar,
cosmológica) que o metal assume para todos esses povos, como material precioso, poderoso e
perigoso que é obtido a altos custos de seres muitas vezes concebidos como sobrenaturais.
O mesmo se deveria dizer da importância assumida pelos objetos dos brancos nos
períodos de resguardo pós-parto. Se entre os Wapishana (Roraima), durante a couvade – período
do "resguardo de nascimento", quando, devido ao "vínculo de substância" entre os pais e o bebê,
todos os atos daqueles "afetam diretamente o recém-nascido" –, "é vedado aos pais, em
particular, inflar o pneu de bicicletas – o umbigo da criança incha, o que pode levar à morte –,
bater pregos – 'a criança chora até tirarem o prego' –, lidar com motores – 'motor trabalha rápido,
a criança fica tonta' –, ligar rádios, utilizar tesouras, ou, de modo geral, ter contato físico com
metais",43 se entre os Wakuénai (Venezuela) é vedado aos pais em couvade, entre outras coisas,
atirar com armas de fogo, trabalhar com ferramentas de metal e operar máquinas com motores
barulhentos (como geradores elétricos, moedores de mandioca e motores de popa), sempre
devido ao alto potencial patogênico das "coisas quentes de Amáru" associadas aos brancos,44 não
seria a periculosidade e o alto risco atribuídos a esses objetos e atividades, mais do que amostras
da perspectiva indígena sobre o branco e suas tecnologias (o que certamente são), vias de acesso
a dimensões ainda pouco compreendidas do próprio branco e de suas tecnologias?
O mesmo se deveria perguntar, enfim, do uso de objetos dos brancos por xamãs como
auxiliares em seus rituais. Os xamãs Waiãpi, por exemplo, possuem algumas "armas" para
"agredir" e para "retirar a doença do corpo de seus pacientes", como flechas, pedras, espingardas
e anzóis, e alguns meios de transporte "[p]ara se locomover", como "avião, carro ou ainda
bicicleta".45 Os xamãs Shipibo-Conibo, por sua vez, têm entre seus espíritos auxiliares os "Inca",
que vivem em cidades celestes onde possuem "equipamentos e armas impressionantes, como

mantendo a dieta ritual, é possível assimilar certas qualidades desses objetos" – ou mesmo combustíveis como
gasolina – "através de inalação, mantendo a dieta ritual" (Luna 1992:238).
41
Langdon (1995:110).
42
Cf. Michiles (v1993), Albert (2002b:250) e Gallois (2002:220; v1994).
43
Cf. Farage (2002:522).
44
Cf. Hill (1998:106).
45
Gallois (1996:41). Um xamã em particular afirmou possuir "permanentemente à disposição", além de uma
"bicicleta", um "revólver", um "carro" e "algemas", "igual polícia" (K., in: Gallois 1996:49 nota 8).

190
ferramentas de metal, metralhadoras [...] e outras máquinas modernas, que eles usam em
benefício dos Shipibo",46 e muitos xamãs atribuem à essência vital (nihue) da "grande cobra
mítica" um "poder eletrizante e magnetizante" cujo som ("que dizem ser audível quando ele é
liberado de algum lugar") é expresso pela sílaba "rin",47 motivo pelo qual o gravador do
antropólogo chegou a ser invocado nos encantamentos de alguns xamãs na forma de uma "força
elétrica da poderosa máquina".48 Uma xamã Shipibo-Conibo em particular afirma "se conectar"
ao "mundo das plantas [ráo néte]" ("o 'mundo luminoso' dos ráo ["uma luz viva 'como uma luz
elétrica'"], que é a fonte do poder e do conhecimento49) e ao doente através daquilo que ela chama
de "cabos elétricos", formando assim "'uma máquina' que extrai a doença (medicina maquina)".50
Não estariam esses xamãs dizendo, além de algo sobre si mesmos, também algo sobre essas
máquinas e tecnologias?51
Um caso particularmente rico da apropriação xamânica de máquinas modernas é o do
devir-máquina do ayahuasca. Segundo Peter Gow, "[n]a região do Alto Ucayali, no leste do Peru,
as pessoas referem-se jocosamente ao alucinógeno ayahuasca como el cine de monte, o cinema
da floresta".52 Ele conta que "[a] origem mais óbvia da metáfora 'cinema da floresta' para o
ayahuasca são as alucinações visuais e, de fato, comenta-se muito a semelhança entre as

46
Illius (1992:73).
47
Illius (1992:74).
48
Encantamento, in: Illius (1992:74). Ainda sobre o uso xamânico da eletricidade, Regina A.P. Müller conta que o
auxiliar (vanapy) do xamã Assurini (Pará) descreve a sensação de "passar suas mãos pelas dos xamãs, absorvendo
a energia ali acumulada" como sendo igual à de "um choque elétrico" (cf. Müller 1990:147, 158).
49
Colpron (2005:108). "Algumas vezes, objetos introduzidos há alguns séculos pelos europeus (livros, metal, ímãs e,
mais recentemente, pilhas) são classificados como ráo, pois exibem um poder particular (a saber, o conhecimento,
a resistência, a força de atração, a energia elétrica) e podem influenciar o comportamento humano" (Colpron
2005:122 nota 16).
50
Colpron (2004:38; itálico no original).
51
Vale ainda citar aqui uma nota "exótica" publicada no periódico Man em 1950, na qual Williams-Hunt conta que
um xamã (wayang) Mai Sengoi (Malaya) muito requisitado na região construiu um "modelo de avião" (análogo às
figuras tradicionalmente usadas em rituais de cura) especialmente para "influenciar a polícia local a libertar um
homem de seu grupo que havia sido detido". O autor da nota afirma ainda que o modelo seria "obviamente uma
cópia do avião Sunderland, o tipo usado pela Força Aérea Real nessa região", "equipado com uma sub-
metralhadora para 'atirar' em qualquer espírito que tentasse impedir a sua passagem", e que a inovação havia sido
um "sucesso", pois "o homem foi libertado quase instantaneamente" (Williams-Hunt 1950:116).
52
Gow (1995:38; itálico no original). Segundo Gow, ao assistir aos filmes Fitzcarraldo (Werner Herzog) e Burden of
Dreams (Les Blank), rodados na mesma região do Peru em que ele desenvolveu seu trabalho de campo, ele viu
"[a]li na tela, ao lado de atores famosos e equipes de filmagem, [...] uma paisagem que conheci bem, indivíduos
que conheci pessoalmente, ou de ouvir falar, e formas de comportamento e linguagem com as quais eu havia me
familiarizado": "Tal familiaridade conferiu à atividade aparentemente comum de 'ir ao cinema' um aspecto estranho
e misterioso. Por que estávamos todos sentados nessa grande sala escura, calmamente atentos a uma luz colorida e
trêmula e ao som que saía da parede? O hábito de ir ao cinema havia se tornado estranho a mim" (Gow 1995:38).
Juntando essa experiência de estranhamento com a "metáfora" nativa do "ayahuasca como el cine de monte", o
antropólogo se propôs então a elaborar uma "etnografia fenomenológica do cinema" (Gow 1995:40).

191
experiências visuais do cinema e do ayahuasca".53 Além de a droga ser sempre tomada "no
escuro", "[a]s alucinações hacen ver, 'fazem ver': tanto as origens da doença, como objetos de
feitiçaria brilhando no corpo de um doente, países distantes, parentes mortos ou distantes etc."54
"Assim", conclui Gow, "o ayahuasca é uma planta da floresta que permite o acesso à verdadeira
identidade visual da floresta, como o cinema, um produto estrangeiro, permite acesso visual a
países distantes, ao 'lado de fora'".55 No entanto, enquanto o ayahuasca "se dirige ao interior", o
cinema "faz um movimento na direção do exterior.56 Assim, enquanto o ayahuasca lida com
potências interiores autônomas e sobrenaturais, o cinema lida com potências exteriores
produzidas e humanas, "uma diferença central entre o cinema e o ayahuasca"57 que Gow mostra
ter implicações consideráveis para o xamanismo.
É o "consumo regular de ayahuasca [que] torna o usuário um xamã com poderes
transformadores progressivamente maiores", o "consumo constante" podendo "transformá-lo
completamente num ser poderoso [...] em completa e constante alucinação [...] no qual o interior
do corpo é o interior da floresta".58 Essa situação extrema é "um dos perigos constantes do
xamanismo do ayahuasca, pois significa o colapso dos poderes da floresta em uma forma pura,
excluindo a vida social corrente e destruindo-a".59 A ambigüidade do poder xamânico se revela
assim na possibilidade de que esse acesso ao interior sobrenatural da floresta comprometa a
existência social humana do xamã, transformando-o permanentemente num ser sobrenatural e
portanto perigoso para a sua própria sociedade. Por outro lado, Gow concebe a "possibilidade
lógica de que o cinema também possa entrar em colapso", tornando-se a "forma pura de
exterioridade" da floresta,60 e exemplifica essa possibilidade a partir do boato que circulou entre
os nativos durante as filmagens de Fitzcarraldo de que seu diretor (Herzog) "tinha vindo para
matar pessoas da região e roubar suas peles faciais para usá-las em cirurgias plásticas na
Alemanha".61

53
Gow (1995:44).
54
Gow (1995:44; itálico no original).
55
Gow (1995:47).
56
Gow (1995:48). "Diferentemente da floresta, que é o produto espontâneo do conhecimento de seres poderosos, as
coisas finas que vêm de fora exigem contribuição humana, tanto o conhecimento dos gringos, estrangeiros brancos,
como todos os produtos locais." (Gow 1995:47; itálico no original)
57
Gow (1995:47).
58
Gow (1995:49-50).
59
Gow (1995:50).
60
Gow (1995:50).
61
Gow (1995:50). Trata-se do "complexo andino" a que nos referimos anteriormente. Segundo Gow, há um
"imaginário generalizado" na região do Alto Ucayali no qual "[o] mundo de fora é pura exterioridade, e seus
habitantes só são capazes de se reproduzirem ao acrescentar a si próprios os produtos retirados do Alto Ucayali"

192
Como análogo da pura interioridade etnológica e produtora do xamã que se torna um ser
sobrenatural através do consumo excessivo de ayahuasca, temos assim a pura exterioridade
apenas lógica e produzida de alguém que se tornaria um ser totalmente destituído de interioridade
sobrenatural através do consumo excessivo de cinema: um ser totalmente artificial, construído, e
dependente de outras fontes para se reproduzir. Se não há dúvidas de que isso nos diz algo sobre
o xamanismo de ayahuasca, gostaríamos de insistir que isso também pode nos dizer muito sobre
um possível xamanismo do cinema, que seria então baseado justamente na ausência de
interioridade sobrenatural e no uso de outras fontes de interioridade. Um devir-xamanismo do
cinema próprio ao contexto urbano contemporâneo como contrapartida do devir-cinema do
xamanismo próprio da floresta igualmente contemporânea.
As relações entre o ayahuasca e as tecnologias audiovisuais são muito comuns. Segundo
Luis E. Luna, os xamãs mestizos do Peru ocasionalmente comparam as visões provocadas pelo
ayahuasca a "um tipo de fenômeno eletromagnético ondulatório que pode ser atraído, modulado
ou repelido" por encantamentos específicos, como se os icaros de atração (icaros para subir
mareación) e de repulsão (icaros para sacar mareación) das visões fossem análogos às funções
de sintonização de um sinal por um receptor de TV.62 Entre os Ashaninca (Peru), o ayahuasca
também é visto como uma espécie de televisão. Segundo Ruperto Gomez, o iniciador de Jeremy
Narby nos segredos da planta, o ayahuasca é, "[n]a verdade", "a televisão da floresta", através da
qual "[v]ocê pode ver imagens e aprender coisas".63 Depois de experimentar a bebida, o
antropólogo confirmou ter visto "seqüências de imagens alucinatórias em altíssima velocidade,
como se fossem de fato transmitidas de fora do meu corpo e captadas dentro da minha cabeça",64
e chegou a usar a mesma "metáfora" para explicar o atual estado da compreensão neurológica do
mecanismo alucinatório.65 Nota-se que as diferenças entre cinema e televisão são secundárias
aqui; o que importa é o fato de que tanto o ayahuasca quanto essas tecnologias servem como

(Gow 1995:51), o exterior-cidade-sociedade dependendo necessariamente do interior-floresta-sobrenatureza para a


sua reprodução. Essas relações de dependência sobrenatural são normalmente mediadas por um "sistema
hierárquico de trocas da economia mercantil extrativista", mas numa situação de colapso dessas relações (que Gow
concebe como sendo justamente a situação extrema de um cinema que se torna pura exterioridade) torna-se
concebível a idéia de que "gringos podem aparecer diretamente na região [...] para retirar os órgãos corporais dos
nativos", "uma imagem horripilante do que poderia dar errado" (Gow 1995:51; itálico no original).
62
Cf. Luna (1992:242).
63
Ruperto Gomez, in: Narby (1998:4). Cf. Matias (*2004c).
64
Narby (1998:109).
65
"[A]tualmente sabemos de onde vem a eletricidade e onde está o plug, mas ainda não sabemos como a televisão
funciona" (Narby 1998:124). Narby cita ainda Michael Harner dizendo que "índios Jívaro e Shipibo-Conibo que já
conhecem o cinema me disseram que as experiências com ayahuasca são comparáveis às de assistir filmes, e
minha própria experiência corroborou essas comparações" (Harner, in: Narby 1998:191).

193
meio para que imagens exteriores, antes não visíveis, se tornem visíveis e penetrem no corpo da
pessoa.
Mas se não devemos nos ater às diferenças entre cinema e televisão, tampouco é
determinante a diferença entre visão e audição. O informante Ashaninca de Narby contou-lhe
certa vez, por exemplo, que as almas são como "ondas de rádio voando por aí": "Isso quer dizer
que você não as vê, mas elas estão lá, como ondas de rádio. Quando você liga o rádio, você pode
captá-las. É a mesma coisa com as almas; com ayahuasca e tabaco você pode vê-las e escutá-
las."66 Ele ainda comparou o mesmo processo ao funcionamento de um toca-fitas: "É como um
toca-fitas, você coloca ele lá, liga ele, e ele começa a cantar".67 "Para Carlos", Narby concluiu,
"os espíritos estavam firmemente enraizados no mundo material, [...] voando como ondas de
rádio e cantando como toca-fitas".68 Luna também cita um xamã Campa afirmando que "os
espíritos se comunicam entre si por ondas de rádio".69 Se antes o ayahuasca era como um cinema
ou uma televisão que permitia à pessoa ver o invisível, agora ele é como um rádio ou um
gravador que permite à pessoa escutar o inaudível. E se as diferenças entre as máquinas evocadas
é secundária, também a comparação com o ayahuasca não é o principal, como mostra o caso dos
xamãs Desana, para quem são as diferentes faces dos cristais usados em seus rituais que
funcionam como "telas de televisão [...] nas quais eles podem assistir não apenas a pessoas e suas
ações, mas também seus respectivos recursos animais e vegetais".70
Evidentemente, há motivos para que um xamã use um gravador, e não uma televisão,
como analogia para seus poderes e procedimentos rituais, e que os compare a uma substância a
ser ingerida, e não a um objeto a ser observado. Seria um erro ignorar a importância dessas
escolhas, que se referem às particularidades de cada xamanismo em especial e às contingências
de sua história. Porém, seria preciso muito mais informação do que dispomos sobre cada xamã
individual (e provavelmente uma pesquisa empírica dedicada ao assunto) para que essas escolhas
singulares fossem adequadamente compreendidas. Essa seria, de fato, outra pesquisa. O que
propomos aqui é uma maneira transversal de encarar todo um devir-máquina do xamanismo.
Gostaríamos de esboçar uma espécie de princípio geral das relações entre os xamãs e as máquinas
que pudesse eventualmente contribuir para um avanço na compreensão de cada um dos casos

66
Carlos Perez Shuma, in: Narby (1998:31; cf. p. 125).
67
Carlos Perez Shuma, in: Narby (1998:31).
68
Narby (1998:31).
69
Luna (1992:247) se refere aqui a Jacques Chevalier (1982. Civilization and the stolen gift. Toronto: University of
Toronto Press, pp.352).
70
Reichel-Dolmatoff (1997:152). É verdade que os xamãs Desana usam o alucinógeno yagé em seus rituais. No
entanto, eles associam as faces dos cristais, e não o yagé, a telas de televisão.

194
particulares em que essas relações se observam. O que nos interessa em todos esses casos, enfim,
é menos aquilo que os distingue (se é uma televisão ou um rádio, um cinema ou um toca-fitas, se
é visível ou audível, se é uma substância a ser ingerida ou um objeto a ser percebido) e mais o
que os une, i.e., um certo princípio operacional que permite a comparação direta e recorrente dos
poderes e processos técnicos exclusivos dos xamãs aos poderes e processos técnicos acessíveis
através de máquinas modernas. A máquina pode até mesmo ser comparada não mais às
substâncias, objetos ou entidades com que o xamã se relaciona, mas ao próprio xamã, como entre
os Araweté, para quem "o xamã é um rádio".71
O xamanismo Araweté consiste principalmente no canto noturno dos xamãs, a "música
dos deuses [Mai marakã]". Trata-se de um ritual diário (ou antes, que ocorre todas as noites) em
que o xamã relata, em forma de música, uma visão onírica do mundo dos espíritos e, via de regra,
estabelece um contato atual com ele em benefício da comunidade. São canções cuja
complexidade reside no "agenciamento enunciativo ali estabelecido", um "solo vocal" que,
lingüisticamente, se revela uma "polifonia" de deuses.72 Quando Viveiros de Castro pediu
permissão aos Araweté para gravar uma sessão de "música dos deuses", ouviu que eles "nada
tinham a decidir quanto a isso" pois a música não era daquele que a entoava, mas sim daqueles
que falavam através dele (i.e., os deuses).73 Ou seja, a "música dos deuses" não pertence ao xamã
(não é "criação" dele), que é apenas o "veículo" da voz de um "corpo-sujeito" que está alhures,
"que não está dentro do xamã".74
Esse papel puramente midiático do xamã encontra um paralelo na preferência geral dos
Araweté por ouvir a voz do "outro", em oposição à sua própria, sempre que o antropólogo
reproduzia gravações em seu toca-fitas.75 Justamente por isso, o gênero musical cuja reprodução
técnica os Araweté mais apreciavam escutar era a "música dos deuses": enquanto nos outros
gêneros as músicas seguem fórmulas reprodutíveis, só interessando pelo que não era a música, na
"música dos deuses" a música em si é o irreprodutível (exceto, notavelmente, pelo gravador),
"materialização de uma singularidade individual e histórica", ocasião única e singular em que o

71
Viveiros de Castro (1986a:543; cf. 1985:63; 1986b:19; 1992a:140).
72
Viveiros de Castro (1986a:548).
73
Viveiros de Castro (1986a:543).
74
Viveiros de Castro (1986a:543; sublinhado no original). "'[M]úsica das divindades', é uma expressão tanto genitiva
quanto possessiva. Isto é: as canções são 'dos [...] ["deuses"]', o xamã não as aprende de outro xamã, e não tem
controle sobre elas." (Viveiros de Castro 1986a:543)
75
Segundo Viveiros de Castro, o gravador – chamado alternadamente de "aquilo que fala", "aquilo que canta", "caixa
das almas" e "caixa (da voz) dos espíritos" – sempre foi "a diversão favorita dos Araweté", disputado
"ciumentamente" sobretudo para escutar "a voz dos outros, o que os outros cantavam", em lugar da própria voz, o
que remete à sua dinâmica social centrífuga (Viveiros de Castro 1986a:78).

195
"outro" (os "deuses") se manifesta, como numa transmissão de rádio de uma outra dimensão.76 A
gravação de uma "música dos deuses" seria, assim a única maneira de reviver o momento do
contato entre os dois mundos, assim como uma gravação da transmissão radiofônica seria a única
maneira de revivê-la que não implicaria nem em paródia e nem em degenerações. O que nos
parece especialmente importante aqui é o fato de que o gravador torna essa experiência acessível
a qualquer um, ao passo que antes dele a presença do xamã e de suas técnicas do êxtase era
indispensável.
Outro exemplo de xamã-rádio pode ser encontrado no xamanismo feminino Shipibo-
Conibo, que já vimos usar "cabos elétricos" na construção de uma verdadeira medicina
máquina.77 Segundo Anne-Marie Colpron, além de se referirem a "cabos e postes elétricos" as
xamãs usam freqüentemente a palavra "máquina" em seus "cantos xamânicos" quando se
transformam em máquinas como "ventilador" ("que afasta os 'maus ares'"), "motor" ("que
reaquece o doente") e "rádio" ("que emite 'cantos benéficos'"), entre outras.78 No caso do rádio, as
xamãs se transformam nessa máquina pois, de maneira comparável aos xamãs Araweté, não são
elas a fonte do "canto", mas sim seus "'aliados' que cantam através de seus corpos"79 – uma xamã
em especial, que tem entre os "acessórios" fornecidos por seu "auxiliar" um "gravador invisível"
que lhe permite reter facilmente os 'cantos xamânicos'",80 se refere à sua "coroa" ritual justamente
como "antena de rádio", por ela lhe permitir "ligar seu pensamento [...] àquele de seus auxiliares"
e assim alcançar uma "'recepção melhor' de seus 'cantos'".81
Máquinas por todo lado: máquinas que os xamãs ingerem, máquinas que eles manipulam,
máquinas nas quais eles se transformam. Mas se é verdade que há um devir-máquina do xamã,
então há necessariamente um devir-xamã simétrico das máquinas. Em sua etnografia dos

76
Viveiros de Castro (1986a:545). "Quando pediam para reproduzir cantos-danças [como a "música dos inimigos"],
o interesse se voltava para o que não era música – as vozes faladas em segundo plano, os comentários, barulhos,
que permitiam uma rememoração daquele momento. Já quando se tratava de ouvir uma fita com canto xamanístico,
o interesse era poder assistir a uma re-atualização da emissão vocal – era ela em si que respondia pela singularidade
do momento." (Viveiros de Castro 1986a:545 nota 57; sublinhado no original)
77
Cf. Colpron (2004:38).
78
Cf. Colpron (2004:38 nota 99).
79
Colpron (2004:39). O mesmo princípio também opera no xamanismo Guajiro (Venezuela e Colômbia), no qual o
xamã em ação é considerado um "outro", um "bocal, um mediador" que "obtém o diagnóstico de um terceiro, seu
espírito auxiliar" e "não controla aquilo que diz, faz ou pede" (Perrin 1992:109). Nesse caso, no entanto, a
comparação feita pelo próprio xamã é com um telefone, e não um rádio: "é como um telefone que entra na nossa
cabeça..." (Too'toria Püshaina, in: Perrin 1992:110). Vale mencionar aqui ainda o caso dos Desana, cuja definição
de xamã (verégë mahsë ou vererí mahsë) pode ser traduzida como "pessoa-comunicação" e "[o] xamã ele mesmo é
um transmissor" à moda de um "telefone" ou um "rádio" (Reichel-Dolmatoff 1997:233).
80
Colpron (2004:82).
81
Colpron (2004:47).

196
Wakuénai, Jonathan D. Hill82 oferece um precioso exemplo desse devir-xamã das máquinas, no
qual seus equipamentos de pesquisa, ao serem incorporados no ritual xamânico, tornaram-se
outra coisa além daquilo que eram anteriormente. Hill conta que, certa vez, enquanto ele e um
xamã Wakuénai armavam suas parafernálias para um ritual (cadeira, microfones, câmera, e
caderno para registrá-lo, no caso de Hill; folhas de palmeira, tabaco, alucinógenos, pedras e
outros objetos sagrados para realizá-lo, no caso do xamã), ele "sentiu", pela primeira vez, que
suas atividades, ao invés de criarem uma distância entre o observador e o observado, "haviam se
tornado uma parte necessária e desejável do processo ritual".83 O antropólogo conta que se sentiu
"emocionalmente 'plugado' aos circuitos de energia ritual".84
Segundo Hill, desde então ele não precisou mais pedir informações sobre os eventos
rituais – ele era espontaneamente informado sobre eles – e nem permissão para registrá-los – sua
presença, junto com seu gravador, seus cadernos e sua câmera, era requisitada. Ele conta ter tido
a nítida impressão de que no exato momento em que passou a desempenhar papel ativo no ritual,
também os Wakuénai passaram a desempenhar um papel ativo em sua pesquisa, e então se
perguntou: "A que se deveu este processo duplo de travessia transcultural?"85 A primeira
explicação encontrada pelo antropólogo foi o desejo dos Wakuénai de "obter um registro
permanente de suas manifestações culturais mais valorizadas, frente a séculos de pressões
externas de missionários, comerciantes e outros que as denegriram, extirparam e desrespeitaram
sem a menor vontade de compreender, muito menos de apreciar, o seu valor".86 Mas esta resposta
não satisfez o antropólogo, que então foi buscar na lógica interna do ritual uma explicação mais
consistente para o acontecimento.
Em primeiro lugar, Hill nos conta que a "viagem musical do xamã" é um processo de
"busca e recuperação do espírito corporal do doente", que foi perdido ou roubado por
"possuidores de veneno" ou "espíritos causadores de doença". A captura do "espírito corporal"
perdido é realizada com as "penas de seus chocalhos sagrados" ou com "fumaça de tabaco", e a
sua devolução é operada "soprando fumaça de tabaco sobre o topo da cabeça do paciente".87
Segundo Hill, este "espírito corporal" foi descrito como sendo análogo à "compressão dentro de
um motor". Assim, na busca pelo "espírito corporal" perdido, o xamã sopra fumaça de tabaco

82
Cf. Hill (1998).
83
Hill (1998:3).
84
Hill (1998:3).
85
Hill (1998:4).
86
Hill (1998:4).
87
Hill (1998:4).

197
sobre as cabeças de todos aqueles presentes com o intuito de conectar seus "espíritos corporais"
na forma de uma "força coletiva" que o auxiliaria a "atrair o espírito corporal do paciente de volta
do mundo inferior dos espíritos dos mortos para o mundo dos vivos".88 A explicação nativa
avança ainda mais, relacionando os poderes xamânicos ao gravador e à escrita do antropólogo,
revelando que "assim como o gravador e os cadernos puxam os sons e sensações do ritual,
também o canto e a fumaça de tabaco do xamã são maneiras de puxar o espírito corporal do
paciente".89 As ações do antropólogo ganhavam assim um novo espaço compartilhado dentro do
ritual, transformando sua pesquisa "de um processo de acumulação de conhecimento baseada em
suposições e questões alienígenas em um processo de criação coletiva de conhecimento dentro
das estruturas e suposições indígenas", colocando-a "dentro de sua esfera de controle".90 Mas Hill
ainda não havia compreendido um ponto: Afinal, "por que todas estas analogias com máquinas e
escrita?"91 A resposta foi bastante reveladora.
Para os Wakuénai, os brancos, mestiços e outras pessoas não originárias do seu "mundo
social" não são 'incluídos na' e nem 'afetados por' sua dinâmica ritual. Falta-lhes uma "alma
onírica coletiva em forma de animal" como as dos Wakuénai, de forma que, diferentemente
destes, um estrangeiro pode retomar suas atividades cotidianas logo após o nascimento de seu
filho, sem nenhuma restrição ou obrigação ritual. Mas isto não quer dizer que os estrangeiros não
tenham "almas oníricas coletivas", como explica Hernan Yusrinu (líder ritual Wakuénai e irmão
do xamã):

Os brancos possuem almas oníricas coletivas, [...] mas elas assumem a forma de livros e papéis. A
alma do missionário é a Bíblia, a alma do comerciante é seu registro financeiro e a alma do
antropólogo é seu caderno. [...] Um feiticeiro pode atacar a alma onírica de um Branco à noite,
enquanto ele dorme, matando-o ao rasgar o seu caderno, assim como um feiticeiro rasga a alma-
em-forma-de-animal das vítimas Wakuénai. [...] Meu irmão temia que as canções dele quebrariam

88
Hill (1998:5).
89
Hill (1998:5). A analogia entre o poder de captura espiritual de técnicas como a escrita e máquinas como os
gravadores é bastante disseminado. Viveiros de Castro afirma que os Araweté comparam o "princípio vital" (i) com
uma fotografia (Viveiros de Castro 1985:72) e também como uma gravação da voz (Viveiros de Castro
1986a:514), e o "princípio vital [ynga]" dos Assurini do Xingu (Pará) também recebe comparações análogas:
"Quando se grava a voz de alguém ou se fotografa uma pessoa, está se retirando seu ynga, pois a voz e a imagem,
suas manifestações, passam para o gravador ou para a fotografia." (Müller 1990:168-9) Vale mencionar também a
semelhança entre um dos nomes que os Assurini deram para a televisão ("caixa de almas"; cf. Müller e Valadão
v1997) e um dos nomes que os Araweté deram para o gravador ("caixa das almas"; Viveiros de Castro 1986a:78).
E se para os Assurini a televisão é a "caixa de almas", a câmera não poderia deixar de ser "aquilo que captura nossa
alma e a guarda no interior" (depoimento, in: Müller e Valadão v1997).
90
Hill (1998:7).
91
Hill (1998:4).

198
o seu gravador. Mas quando você começou a gravar as canções e escrever em seus cadernos, ele
sentiu que seu trabalho era bom para você e que o auxiliava na acumulação de compressão.92

Apesar de deixarem o antropólogo um tanto temeroso pela segurança de seu material, estas
observações revelaram pontos centrais na relação do xamã com as suas máquinas. Para os
Wakuénai, todos os elos de parentesco e obrigações rituais que constituem as suas "almas
oníricas coletivas em forma de animal" estão, para os brancos, materializadas em objetos de
trabalho. Assim, a parafernália de Hill, muito mais que um conjunto de instrumentos passivos e
neutros à sua disposição, era a materialização de sua "alma onírica coletiva", e enquanto tal
estava sujeita à destruição pelas forças espirituais manipuladas pelo xamã. A "alma onírica
coletiva" dos brancos se define, assim, não pelo mundo animal, mas sim pelo mundo tecnológico,
um deslocamento de perspectiva do animal para a máquina que nos parece central para a
compreensão das técnicas contemporâneas do êxtase.
O ponto a ser destacado aqui é a explicitação da dimensão ritual da tecnologia, tanto por
parte do xamã, que incorpora gravadores, cadernos e câmeras no processo ritual, como por parte
do antropólogo, que passa a ver sua parafernália como uma manifestação objetiva de uma parte
espiritual de sua própria existência. O fato de que a alma do antropólogo estava materializada e
acessível à manipulação xamânica na forma de seus objetos mostrava ao mesmo tempo que os
brancos são diferentes dos índios – pois suas almas são objetos materiais exteriores e não
espíritos da floresta, como já havíamos visto no caso da diferença entre o ayahuasca e o cinema –
e que há um terreno comum entre eles – pois as almas dos brancos continuam sendo vulneráveis
às forças manipuladas pelo xamã e têm sua origem no tempo mítico. O fato de que a alma
antropológica de Hill envolvia desde seus gravadores e microfones até seus cadernos de campo
sugere que as máquinas e tecnologias mobilizadas pelos xamãs em seus rituais têm em comum
não o uso da eletricidade, do metal, ou qualquer outra essência, substância ou matéria, mas sim
um certo procedimento operatório: a captação de forças até então ocultas e dispersas e sua
canalização para determinado fim. Um último exemplo, agora fotográfico, pode contribuir para a
compreensão desse ponto central.
Carlos Perez Shuma, informante Ashaninca de Narby, disse ao incrédulo antropólogo que
as cobras vistas sob o efeito da ayahuasca poderiam ser fotografadas, "pois suas cores são tão

92
Hernan Yusrinu, in: Hill (1998:6). Numa curiosa ressonância com essa idéia Wakuénai da materialização
tecnológica da alma dos brancos, Dale A. Olsen conta como um xamã Warao (Venezuela) permitiu que ele
gravasse um feitiço destinado a "destruir completamente o gravador Nagra III da UCLA" e o seu próprio "gravador
barato Concord", evitando porém destruí-los imediatamente por temer que o próprio antropólogo fosse destruído
também. Olsen confirma que ambos os gravadores de fato quebraram semanas depois do ritual (Olsen 2001:214-5).

199
brilhantes".93 Porém, ao invés de ver na afirmação de seu informante uma via de acesso a uma
dimensão ainda desconhecida da máquina fotográfica, o antropólogo desperdiçou a oportunidade
assumindo que suas fotos revelariam apenas "escuridão".94 Piers Vitebsky nos coloca numa
posição muito melhor quando publica, "pela primeira vez com a permissão dos xamãs" uma
"fotografia única" na qual se vêem cinco xamãs tamus (Nepal) sentados (e rodeados por o que
parecem ser músicos e público) realizando um ritual Moshi Tiba ("destinado a acalmar o
fantasma de uma pessoa que tinha morrido de modo não natural e de mau agouro").95 Na
fotografia (cf. Imagem 6) figuram listras e manchas luminosas e coloridas, que se espalham de
maneira curiosa pela cena e dão a nítida impressão de participarem efetivamente dela. Segundo o
antropólogo, todos envolvidos no ritual esperavam que uma ave atada a uma "casa-espírito"
adejasse as asas, indicando a chegada das almas dos mortos. Vitebsky conta que, diante da
fotografia, um xamã exclamou:

É precisamente assim que se parecem o deus, os feiticeiros e os antepassados. Na verdade, eles não
têm o aspecto com que são representados nos desenhos, com caras. Estas são as cores exatas que eu
vejo, e precisamente nas mesmas posições. Mas como é que uma máquina fotográfica consegue ver
aquilo que só eu vejo? Isto é conhecimento secreto, as pessoas vulgares não conseguem ver estas
coisas. Tem de ser uma câmara fotográfica muito boa.96

Um fotógrafo poderia dizer que as listras e manchas luminosas que se distribuem de forma
fantasmagórica pela fotografia não diferem, em essência, das manchas de luz provocadas por uma
abertura muito prolongada do diafragma da máquina fotográfica. Além disso, dois

93
Carlos Perez Shuma, in: Narby (1998:19).
94
Apesar de seu esforço em "levar ao pé da letra as falas dos xamãs" (cf. Narby 1998:108), o fato é que Narby está
demasiadamente preso à visão de mundo tecnocientífica implicada em seu paradigma etnobiológico, como se seu
esforço para reconciliar ciência e xamanismo esbarrasse no pressuposto implícito de uma espécie de unidade
original entre eles que foi rompida e que precisa ser redescoberta. Por exemplo, justamente no capítulo em que
Narby se propõe a "desfocalizar a visão" para tentar assim enxergar melhor as relações entre xamanismo e ciência,
ele afirma sumariamente: "Quando uma pessoa alucina, não há nenhum estímulo visual exterior, o que é,
obviamente, o motivo pelo qual câmeras não podem captar imagens alucinatórias." (Narby 1998:49) Segundo nos
parece, sua proposta altamente promissora de "desfocalizar a visão" para ver, como nos estereogramas, uma
terceira imagem diferente daquelas que se pode ver com o olhar habitual, acabou sendo seriamente comprometida
pelo seu pressuposto tácito (mas mal assumido) de que os xamãs falavam do mesmo mundo físico que a ciência. O
resultado desse mal-entendido pode ser visto principalmente nos capítulos seis e sete de seu livro, onde as
serpentes normalmente vistas nas alucinações de ayahuasca são comparadas de maneira sumária a serpentes de
toda e qualquer mitologia que Narby pôde encontrar e até mesmo a qualquer imagem ligeiramente retorcida que ele
pudesse remeter, seja a uma serpente, seja àquele que parece ser o seu "santo graal", a dupla hélice de DNA, num
esforço que lembra repetidamente o de um outro livro tão curioso quanto duvidoso (cf. Von Däniken 1968). Outra
ocasião em que a confusão de Narby se evidenciou foi numa entrevista em que disse que "há diferenças
fundamentais " entre "a ciência e o xamanismo", que "[n]ão dá pra misturá-los", pouco depois de ter dito que o seu
próprio trabalho "nos últimos dez anos" foi dedicado a "reunir culturas", que "[a] questão não é ciência ou
conhecimento indígena e sim os dois ao mesmo tempo" (Narby, in Matias *2004b).
95
Vitebsky (2001a:20).
96
Depoimento, in: Vitebsky (2001a:20).

200
instrumentistas aparecem na fotografia tocando pratos de metal reluzente em posições facilmente
associáveis aos espectros luminosos. Mas se as manchas fossem assim explicadas como o efeito
de uma exposição prolongada do filme aos reflexos dos pratos, o que seria do depoimento do
xamã? Seria então a explicação do fotógrafo mais "verdadeira" do que a do xamã? Não seria
possível responder tais questões com facilidade, principalmente se quisermos dar crédito às
palavras do xamã, afinal, ele foi capaz de fornecer ao antropólogo uma explicação coerente para
cada detalhe da distribuição dos traços e manchas coloridos e luminosos da fotografia. Pouco
adiantaria, por outro lado, relacionar as visões do xamã à manifestação de fosfênios,97
substituindo assim as explicações técnicas do fotógrafo por aquelas de neurologistas ou
oftalmologistas. É preciso investigar de onde estas visões retiram a sua força e eficácia e como
uma fotografia é capaz de reproduzi-las tão fielmente. Em outras palavras, é preciso compreender
plenamente as implicações da afirmação do xamã: ao dizer que a máquina fotográfica "deve ser
muito boa", pois foi capaz de captar um "conhecimento secreto" que só ele é capaz de ver-
conhecer, não estaria o xamã revelando estar diante de uma materialização contingente e histórica
de uma tecnologia mítica dominada por ele mas que, até então, era restrita aos iniciados?
Objetos de metal, armas de fogo, relógios, máquinas trituradoras, caminhões,
helicópteros, lanchas, aviões, bicicletas... como se justifica a importância que esses objetos e
máquinas assumem nos rituais indígenas? Rádio, gravador, telefone, televisão, cinema,
fotografia, cabos elétricos, escrita... como se explica a freqüência com que essas máquinas e
tecnologias são mobilizadas pelos xamãs em seus rituais e em suas descrições de seus próprios
poderes? Num primeiro momento, em todos esses casos aceitamos estar diante de um mesmo
princípio: a apropriação ritual de poderes sobrenaturais associados à tecnologia dos brancos com
o objetivo de reverter seu efeitos negativos ou de aumentar o poder dos índios frente aos brancos.
Que isso nos diz muito sobre a perspectiva nativa do contato com os brancos já é, parece-nos,
senso comum antropológico (um avanço, vale notar, com relação à idéia de que esse tipo de
apropriação seria uma degeneração de uma perspectiva nativa pura do mundo). Resta ainda,
porém, considerar as conseqüências que esse tipo de apropriação pode trazer para a perspectiva

97
Imagens provocadas por estímulos nervosos internos ao mecanismo ocular, tão comuns em experiências com
alucinógenos. Sobre as relações entre fosfênios e xamanismo, cf Ripinsky-Naxon (1993:148-50), Reichel-
Dolmatoff (1997:243-59) e Hodgson (2000).

201
dominante sobre a própria tecnologia que é apropriada. Afinal, o que os xamãs estão nos dizendo
sobre nossas próprias máquinas que ainda não sabemos?98
Vimos que o tempo mítico pode ser acessado por qualquer um através de êxtases
espontâneos (como nos sonhos, nas doenças etc.) mas que apenas os xamãs podem, uma vez
iniciados, nele se instalar voluntariamente e de maneira controlada. Vimos também que, segundo
a perspectiva indígena, é no tempo mítico que todas as tecnologias (indígenas ou não) foram e
são constantemente criadas e distribuídas. Vimos, enfim, que diante da tecnologia dos brancos, os
índios tendem a viver uma vertiginosa atualização do tempo mítico, seja pelos processos
incontroláveis nos quais se vêem inseridos, seja pela perspectiva de uma redistribuição mais
vantajosa das tecnologias. O que vemos agora é que o xamã, sendo o técnico do êxtase capaz de
lidar com esses processos míticos, é justamente por isso aquele que se encontra melhor situado
para se apropriar das potências míticas mobilizadas pelas máquinas e tecnologias dos brancos
para fins específicos (que geralmente não coincidem com aqueles dos brancos). Mas, resta ainda
considerar: se os xamãs encontram nas máquinas e tecnologias modernas análogos tão precisos
de suas próprias capacidades e operações, não estariam eles ao mesmo tempo evidenciando que,
em um mundo em que todos podem manipular essas máquinas, o xamanismo sofre
necessariamente uma transformação radical?
Faz-se necessário considerar esse último ponto com cautela. Vai contra todas as nossas
intenções afirmar que o xamanismo esteja superado na modernidade. No entanto, parece-nos
difícil sustentar que o xamanismo possa sobreviver inalterado ao contato com essas máquinas que
tão fielmente reproduzem suas próprias técnicas e seu próprios procedimentos. Se
tradicionalmente o xamanismo encontra em processos naturais e sobrenaturais os análogos de
seus poderes, principalmente nas potências incontroláveis e totalmente determinantes do mundo
animal, em contextos de contato com os brancos as atenções se deslocam da floresta para a
cidade como fonte dessas mesmas potências. Vimos isso explicitamente no caso dos Wakuénai –
que se distinguem dos brancos por possuírem almas oníricas coletivas na forma de animais
enquanto estes possuem almas oníricas coletivas na forma de objetos e máquinas –, mas
implicitamente o processo parece ocorrer em todos os casos em que xamãs, em lugar de

98
Se "[q]uando os índios dizem que 'as onças são gente', isto nos diz algo sobre o conceito de onça e também sobre o
conceito de gente" (Viveiros de Castro 2002b:484), então quando os índios dizem que "o xamã é um rádio"
(Viveiros de Castro 1986a:543) isto não deveria nos dizer algo sobre o conceito de xamã e também sobre o
conceito de rádio? Parafraseando ainda Viveiros de Castro (substituí "pecari" por "xamã" e "humano" por "rádio"):
Se o xamã é um rádio então o rádio poderia ser um xamã? O que é "ser um xamã" quando o xamã é um rádio? O
que é "ser um rádio" quando o rádio é um xamã? "Quais as conseqüências disto?" (cf. Viveiros de Castro
2002a:135-6)

202
mobilizarem as potências do mundo animal em seus rituais, passam a mobilizar as potências da
tecnologia do branco. Nesse deslocamento, uma mudança importantíssima se observa: enquanto
as potências animais da floresta eram, na maior parte, inacessíveis aos demais e portanto um
domínio técnico exclusivo do xamã, as potências tecnológicas do branco parecem ser acessíveis a
praticamente qualquer um que saiba operar um rádio, um televisor etc. Quando nos deparamos
com tamanha e tão generalizada incorporação de máquinas a rituais xamânicos, sentimo-nos
diante de um processo de transição do xamanismo, no qual este manipula as potências
contemporâneas que mais fortemente determinam o seu atual devir social justamente declarando
que suas técnicas do êxtase, antes exclusivas e obtidas com grandes dificuldades, agora se
encontram materializadas em circuitos e mecanismos automáticos à disposição de qualquer um
que se disponha a aprender a usá-los.99
Não se trata de afirmar que qualquer um que tire uma foto, que sintonize uma estação de
rádio, que ligue a televisão, que vá ao cinema, esteja envolvido em um ritual xamânico, da
mesma forma que sabemos que nem todo nativo que se depara com o sobrenatural o está. O fato
de que xamãs encontram nas máquinas e tecnologias modernas uma concretização de seus
poderes e de suas operações não significa que essas máquinas e tecnologias substituem o
xamanismo pelo mesmo motivo que a manifestação concreta de espíritos (realidade vivida
igualmente por xamãs e não-xamãs nas sociedades indígenas) não o faz. Muito pelo contrário, da
mesma maneira que a existência concreta do sobrenatural em contextos tradicionais é justamente
o motivo da eficácia do xamanismo tradicional, parece-nos que a existência concreta do
sobrenatural nas máquinas e tecnologias modernas pode ser a base da eficácia de um outro
xamanismo ainda pouco conhecido. Seria preciso ver aqui o xamanismo menos como uma
essência fixa, uma propriedade de tal ou qual indivíduo, e mais como uma operatória, como uma
maneira de colocar em contato realidades distintas mas intimamente relacionadas. Daí a
importância secundária que atribuímos às diferenças entre as máquinas escolhidas por cada xamã

99
Evidentemente, a disposição em aprender a usar a máquina é um detalhe importante nesse argumento. Vale
lembrar aqui o caso do juiz que questionou a legitimidade de Payakan em representar os interesses dos Kaiapó e
mesmo a sua autenticidade indígena a partir do fato de que ele, articulado e educado em escolas normais, sabia
operar um videocassete, ao passo que nem ele próprio o sabia. Payakan respondeu: "o único motivo pelo qual eu
sei operar um videocassete e vossa excelência não é o fato de que eu me esforcei para aprender". (Payakan, in:
Conklin 1997:715; itálico no original) Mokuka, editor de alguns vídeos Kaiapó, incentiva seus companheiros a
aprenderem a fazer vídeos: "Não são os brancos que estão fazendo esse trabalho [de edição], mas eu, um Kaiapó,
que estou fazendo, como vocês podem ver. [...] Só os brancos têm capacidade de operar este equipamento? Não!
Nós, Kaiapó, todos nós, temos inteligência. Nós temos as mãos, os olhos, as cabeças necessárias para fazer este
trabalho." (Mokuka, in: Turner 1993:91). A idéia de que a materialização dos poderes xamânicos em máquinas leva
à perda de sua exclusividade depende, certamente, desse tipo de iniciativa, sem o que ele permanece sendo
exclusividade de um indivíduo privilegiado.

203
ou à maneira como elas figuram em cada ritual particular e a ênfase na operação que lhes é
comum, i.e., a captação do imperceptível (tornando acessível aos sentidos e ao intelecto aquilo
que até então lhes era inacessível) e a modulação do difuso (canalizando para fins específicos
forças que até então eram incontroláveis). Com isso, acreditamos não apenas nos aproximar
daquilo que os próprios xamãs estão dizendo, mas principalmente avançar na compreensão de
dimensões ainda praticamente desconhecidas da tecnologia moderna. O xamanismo indígena
contemporâneo como meio de acesso a possíveis xamanismos contemporâneos não-indígenas.

Um novo axis mundi?


Tratando da domesticação das mercadorias pelos Waiwai, Howard percebeu que se
tradicionalmente os xamãs e os líderes conquistavam seguidores através de sua "capacidade para
controlar recursos materiais, humanos e espirituais provenientes de domínios externos e canalizá-
los para dentro do grupo", no contexto do contato permanente com os brancos esse mesmo
procedimento passou a ser assumido por todos os membros da sociedade, que passaram a
"explorar o acesso privilegiado aos recursos dos missionários, de modo a pender a seu favor a
balança das relações políticas regionais".100 Se antes o exterior sobrenatural da sociedade era
desviado de maneira controlada para o seu interior pelo xamã, agora são os Waiwai como um
todo que tentam "captar" o "poder e conhecimento exóticos"101 dos brancos, desviar esse novo
sobrenatural para o interior de uma nova sociedade. Sobre os Wari', Aparecida Vilaça notou que
o processo de contato com os brancos é pensado por eles "pela ótica do xamanismo", que
"[a]ssim como os xamãs [são] simultaneamente humanos e animais, os Wari' hoje possuem uma
dupla identidade: são Brancos e Wari'".102 Assim, "[s]e antes aos Wari' cabia a experiência
indireta [através do xamã] de uma outra posição, a posição do inimigo, hoje experimentam-na em
seus corpos" através da adoção de tecnologias dos brancos.103 Os Wari' como um todo "vivem
hoje uma experiência análoga à de seus xamãs".104 O que se observa nesses dois casos é uma
tendência que acreditamos ser mais geral105 e que parece-nos estar relacionada ao poder

100
Howard (2002:38).
101
Howard (2002:38).
102
Vilaça (2000:57).
103
Além do uso das roupas (que, como hábitos, são uma tecnologia em si), a antropóloga menciona machados,
remédios, gravadores, teclados eletrônicos, jogos de futebol e televisão ("filmes de porrada") (Vilaça 2000:69).
104
Vilaça (2000:69).
105
Lembremos que, entre os Barasana, "o poder e o conhecimento dos brancos é concebido como uma transformação
e concentração do poder e conhecimento xamânico que criou a sociedade indígena e que garante sua reprodução
atual" (Hugh-Jones 1988:150).

204
sobrenatural atribuído pelos índios às tecnologias dos brancos: uma transformação do
xamanismo, que ao encontrar em máquinas e tecnologias acessíveis aos demais alguns dos
poderes que antes lhe eram exclusivos, parece tender a se descentralizar do indivíduo e se
distribuir pelo grupo. A atualização tecnológica do tempo mítico tendo como contrapartida uma
distribuição tecnológica do xamanismo.
Já vimos como, para os Wakuénai, a parafernália do antropólogo era não apenas a
materialização de sua alma mas também um poderoso auxiliar ritual; que o gravador, em
especial, funcionava pelo mesmo princípio das técnicas xamânicas de cura, "capturando os sons e
as sensações do ritual" assim como o xamã "capturava a alma do paciente" e ajudando a
"aumentar a compressão", como num "motor".106 Concluímos que o poder ritual do gravador
vinha, acima de tudo, de sua capacidade, vista como xamânica e compartilhada com outras
máquinas normalmente evocadas por xamãs, de tornar perceptível o imperceptível e de tornar
manipulável o intangível. Trata-se agora de perguntar como essa capacidade xamânica do
gravador transforma o próprio xamanismo.
Hill conta o lamento de Hernan, líder Wakuénai e cantador ritual, a respeito da ausência
de aprendizes para a sua arte, o complexo canto ritual málikai: "Quem vai cantar sobre a comida
dessas crianças quando eu for embora?"107 Siderio, o único filho de Hernan, quando finalmente
decidiu começar a aprender a arte do pai encontrou sérias dificuldades para decorar toda a
taxonomia e assimilar toda a complexidade envolvida no málikai e por isso pediu o gravador do
antropólogo emprestado.108 Hill, que estava feliz por ver que a tradição sobreviveria ao seu
último detentor ainda vivo, logo ensinou Siderio a operar o gravador,109 que aprendeu
rapidamente pois já tinha experiência com gravadores. Em troca pelo empréstimo, o antropólogo
pediu que Siderio também gravasse outros rituais que ocorressem no período.
Segundo Hill, o uso das gravações permitiu que Siderio fizesse "notável progresso no
aprendizado do málikai", além de oferecer ao antropólogo "valiosos insights" sobre o processo
pedagógico – principalmente quando, durante uma séria doença de Hernan, da qual ele mesmo
pensou que nunca mais se recuperaria, seu filho realizou uma série de gravações especiais nas
quais os cantos eram recitados claramente e lentamente, sem entonação melódica.110 Apesar de

106
Hill (1998:4-5).
107
Hernan, in: Hill (1998:30).
108
Cf. Hill (1998:30).
109
"No dia seguinte eu fui trabalhar com Siderio, mostrando-lhe como trocar as pilhas, ligar microfones externos e
fones de ouvido, limpar a cabeça de gravação, ajustar o volume, e assim por diante." (Hill 1998:30).
110
Hill (1998:31).

205
concordarmos com Hill quanto ao fato de o gravador ter "adicionado um novo elemento ao
processo de transmissão oral do málikai de uma geração para a seguinte" (ele fez precisamente
isso), consideramos arriscada a sua afirmação de que o gravador "não mudou o padrão básico e
subjacente" a esse processo.111 Afinal, o fato de que essa transmissão depende agora de um objeto
técnico do branco, concebido como uma materialização de sua alma, não muda radicalmente a
sua natureza? Em outras palavras, se Siderio agora depende do gravador para aprender o málikai,
não estaria a sua alma um pouco mais próxima da do branco do que a de seu pai? Por outro lado,
se antes Hernan temia que a arte do málikai morresse com ele, agora "dezenas de horas"112 de
seus cantos estão gravados em fitas que podem ser livremente escutadas por muitas gerações
ainda por vir. O fato de que o canto sobreviveu ao cantor não faria do próprio canto algo diferente
daquilo que ele era quando morria com aquele? 113
Essas são questões que parecem envolver justamente a materialização, em objetos
técnicos autônomos e acessíveis a qualquer um, de capacidades e habilidades antes restritas a
indivíduos específicos. Não podemos respondê-las apenas com as informações de que dispomos,
mas somos obrigados a apontar a sua generalidade. Quando o líder Parkatêjê (Pará) comemora o
fato de que o registro de suas danças em vídeo permitirá aos seus descendentes aprendê-las;114
quando um xamã Desana contrapõe a dificuldade de aprender os encantamentos pelo método
tradicional à facilidade que a antropóloga encontra para aprendê-los com suas técnicas e

111
Cf. Hill (1998:31).
112
Cf. Hill (1998:31).
113
Arriscaríamo-nos a perguntar: agora que dezenas de horas de cantos rituais málikai foram gravados, não seria
concebível que um bom aparelho de som substituísse, para as novas gerações, a própria função do cantador, numa
espécie de málikai-playback? Evidentemente, a proliferação de cantadores é também um futuro igualmente
plausível, mas igualmente transformador da dinâmica social tradicional. Um outro caso relacionado é o de um
Assurini que não aprendeu a realizar a "celebração dos mortos" e lamenta não ter nenhum registro de seu pai, o
último que sabia realizá-la: "Eu não gravei meu pai. Agora eu quero escutá-lo e não posso. [...] Eles gravaram meu
pai, mas perderam a fita." Outro Assurini acrescenta: "Faz tempo que eu queria ver televisão, ver como ela é. Você
pode filmar nossos cantos, para que nossas crianças vejam como eram nossas cerimônias quando morrermos."
(depoimentos, in: Müller e Valadão v1997) O líder Waiãpi também declara o potencial preservador da televisão:
"Quando eu morrer, meus netos me verão na televisão. Eu não tive as imagens dos meus avós. Agora os jovens
verão os velhos na TV, para aprender." (Carelli e Gallois v1990). O Ashaninka (Acre) Issac Pinhanta, enfim,
imagina: "Daqui a 50 anos [...] vai ser muito bom a gente ver a imagem dos nossos velhos que morreram há muito
tempo. Imagine ver a imagem de um velho contando uma história de maneira tradicional daqui a 60 anos." (Issac
Pinhanta, in: Fontes *2004). Em todos os casos, a idéia de que o som e a imagem de uma pessoa sobreviverá à sua
morte é o fato novo cujo impacto na dinâmica ritual dos povos indígenas ainda não parece ter sido plenamente
percebido. Para um bom comentário sobre as relações entre gravação e morte, cf. Sterne (2003:287-333).
114
"Aquele que quiser aprender a cantar como eu, ele olha a TV e sabe o que fazer" (Kokrenum, 1987; in: Gallois e
Carelli 1995:241; cf. Carelli v1988). O mesmo princípio se observa entre os Tuyuka, que, preocupados em
"garantir a continuação de práticas rituais tradicionais e ensiná-las às novas gerações", "passaram a registrar suas
músicas": "Assim, todos poderão aprender as seqüências musicais que compõem os rituais de acordo com os
ensinamentos dos bayas [cantores]" (Cabalzar, Cabalzar e Macedo *2000).

206
tecnologias;115 quando os "homens sem espírito" Suyá vêem suas estadias espirituais nos mundos
sobrenaturais para o aprendizado de canções serem substituídas pelas viagens a centros urbanos
de jovens portando gravadores;116 quando uma moça Araweté declara que o antropólogo que
gravou muitos depoimentos dos idosos é agora um "sábio" a quem as crianças recorrerão no
futuro;117 ou quando a escrita desse mesmo antropólogo é comparada ao "'treinamento' dos xamãs
mediante a intoxicação por tabaco",118 o que vemos não é justamente uma distribuição
tecnológica de conhecimentos, habilidades e capacidades antes laboriosamente concentrados em
indivíduos especiais?119

115
"Para você, com seu gravador e seus cadernos, é fácil aprender esse encantamento. Para mim foi muito difícil. Eu
tive que jejuar e ficar acordado uma noite inteira para aprendê-lo" (depoimento, in: Buchillet 1992:214).
116
Os Suyá, segundo Seeger, não possuem xamãs, apesar de possuírem um repertório de encantamentos para
procedimentos terapêuticos específicos e recorrerem a xamãs de grupos vizinhos quando necessário – ademais,
como já disse Viveiros de Castro, "não é preciso ter xamãs para se viver em uma cosmologia xamanística"
(Viveiros de Castro 2002b:483). Eles possuem, no entanto, uma categoria de pessoa que pode ser interpretada
como um técnico do êxtase: os "homens sem espírito [mê katodn kïdi]", "figuras liminais" que, por efeito de
feitiçaria, vivem simultaneamente no mundo humano e no mundo de algum outro animal e assim adquirem algum
poder ritual para se tornarem "mestres de cerimônia". Segundo Seeger, nesses casos "[o] corpo da pessoa estava
vivo na aldeia", mas o seu espírito "vivia com alguma espécie natural, acompanhava suas atividades e aprendia
suas canções" (Seeger 1987:55). As músicas aprendidas dependeriam, assim, da espécie animal ou vegetal em cujo
mundo o espírito da pessoa estivesse morando (e.g. dos pássaros, dos peixes, das abelhas, das árvores etc.), que era
sempre, vale notar, um mundo perfeitamente humano, só que visto de uma perspectiva corporal não-humana – um
homem, por exemplo, cujo espírito havia visitado o mundo dos urubus, disse ter se alimentado de carniça como
quem se alimenta de uma "comida cerimonial gostosa" (depoimento, in: Seeger 1987:56). Segundo Seeger, "as
características sobrenaturais dos mundos espirituais e animais eram tão reais [...] quanto o são a Europa ou a China
para americanos que nunca estiveram lá" (Seeger 1987:57), o que explica a relação entre o declínio no número de
"pessoas sem espírito" entre os Suyá (em 1982 só havia um caso) e o surgimento de fontes alternativas de poder
ritual "exterior à aldeia", como os estrangeiros que passaram a visitá-la constantemente e as viagens igualmente
constantes de jovens Suyá a "outros grupos indígenas assim como a Brasília e São Paulo", das quais eles
retornavam "com novas canções – geralmente gravadas em fita cassete" (Seeger 1987:58). A assimilação de
"músicas de fora", um meio tradicional privilegiado de "incorporação de poder e conhecimento estrangeiro" pelos
Suyá (Seeger 1987:58-9), pode sempre ter envolvido dois tipos de exterioridade – o "fora do mundo humano",
como no caso dos "homens sem espíritos", e o "fora da sociedade Suyá", no caso das músicas trazidas por
estrangeiros ou pelos viajantes Suyá –, mas sofre necessariamente uma transformação radical quando passa a ser
interiorizado por jovens Suyá retornando com fitas cassete de viagens ao exterior. Se no primeiro caso a
incorporação de poder e conhecimento estrangeiro era privilégio seja dos "homens sem espírito", seja de cantores
habilidosos e capazes de aprender canções novas, no segundo ela é acessível a qualquer um que tenha acesso a
máquinas como barcos a motor, automóveis, aviões, rádios, gravadores etc.
117
Viveiros de Castro, que havia gravado diversos depoimentos de Meñã-no, "um dos homens mais velhos da aldeia,
querido e respeitado por todos", ouviu de uma moça que "quando os velhos da aldeia morressem, as crianças teriam
de recorrer a mim para aprender os nomes e as estórias dos antigos; pois afinal eu era agora um [...] verdadeiro
sábio, que ouvira, escrevera e sabia aquilo tudo" (Viveiros de Castro 1986a:62).
118
Viveiros de Castro (1986a:79). Tratava-se, em ambos os casos, de "saber-aprender", os xamãs "comendo" tabaco
e o antropólogo escrevendo, ambos lidando com a "técnica" subjacente a suas próprias magias (cf. Viveiros de
Castro 1986a:79-80). A mesma comparação entre a escrita e a iniciação xamânica foi mencionada (com relação aos
Yanomami e aos Piro) em Viveiros de Castro (2004:5-6).
119
Vale citar aqui outro bom exemplo dessa concretização tecnológica das técnicas do êxtase. Roe encontrou muitas
associações entre aviões e os deuses Inca entre os Shipibo. Segundo um relato coletado por ele, muitos "aviões
misteriosos" sobrevoam as casas dos deuses Inca localizadas nas proximidades de um lago local (Tsoaya Ihan), e o
narrador oferece inclusive um testemunho desse fenômeno: "[Eu] fui [lá] de noite e enquanto eu estava lá eu vi
aviões a voar. [Mesmo] sendo muito tarde, no meio da noite, os aviões voavam sem luzes. Apenas o rugido [roar]

207
Não se trata aqui apenas de uma desqualificação do trabalho especializado, mas
principalmente de uma redistribuição tecnológica de qualificações e especializações; não uma
substituição de seres humanos e suas funções pelas máquinas, mas sim uma transformação deles
por elas. Quando uma máquina pode substituir um xamã, o que vemos não é a eliminação do
xamanismo mas sim a sua migração para outro lugar – o surgimento de novas técnicas do êxtase
e de um novo axis mundi. Gow, em sua "etnografia fenomenológica do cinema", diante da radical
autonomia entre o sentido dado pelo "povo do Alto Ucayali" aos filmes ali produzidos e
reproduzidos e os seus sentidos originais,120 tirou uma conclusão relevante: "a indústria global de
produção, distribuição e exibição do cinema pode funcionar com sucesso sem significados
compartilhados enquanto os agentes do sistema assumirem que os significados são comuns. Esta
possibilidade deveria estimular a imaginação antropológica."121 De fato, essa possibilidade seria
uma boa maneira de interpretar o modo de funcionamento das máquinas modernas nos rituais
xamânicos tradicionais. Justamente, nesse caso o principal deixa de ser o significado que a
máquina ou o xamanismo têm em seus contextos históricos originais e passa a ser a maneira
como eles funcionam juntos, o que permite esse funcionamento. Sugerimos aqui que se trata de
uma transformação mútua, um devir no qual tanto o xamanismo quanto as máquinas se
transformam, aquele se externalizando e se distribuindo em mecanismos automáticos e estas
assumindo funções e capacidades xamânicas específicas.

de seus motores, ROON, era ouvido. Era muito misterioso. Eles eram diferentes dos aviões que voam por aqui."
(Manuel Rengifo, in: Roe 1988:120; colchetes no original) Outras referências ao uso de "aviões mágicos" pelos
deuses Inca, assim como de sua intenção de ensinar os Shipibo a usá-los, foram encontrados por Roe: "Esses Incas
ainda estão vivos. Eles possuem aviões e tudo mais. Eles estão no céu e se escondem na floresta. Eles queriam nos
ensinar a voar nos aviões" (depoimento citado por Gebhart-Sayer [1986. "Inca Tales of the Shipibo-Conibo" Ms.
Voelkerkundliches Institut. Tuebingen: University of Tuebingen], in: Roe 1988:121). Sabendo que certos pássaros
são conhecidos como "os 'aviões' que xamãs tradicionais usavam para atingir o Sol" (Roe 1988:121), Roe concluiu
que essas máquinas são, para os Shipibo-Conibo, uma nova versão não apenas para as capacidades míticas de vôo
dos deuses Incas, mas também da capacidade de vôo dos xamãs. O que acontece quando o êxtase xamânico, que
antes era comparado ao vôo de certos pássaros com poderes sobrenaturais, passa a ser comparado ao vôo de
máquinas como o avião, parece ser justamente uma distribuição tecnológica das técnicas do êxtase, que agora se
baseiam no acesso a certas máquinas e não mais numa iniciação tradicional. Outro exemplo relevante disso foi
fornecido por Jon C. Crocker, que conta que um índio Bororo, aterrorizado pelo seu primeiro vôo de avião,
revelou: "Era exatamente como o sonho de bari [xamã]" (depoimento, in: Crocker 1985:201). Isso se explica pelo
fato de que a primeira indicação de que um Bororo se tornará um xamã vem através de sonho, e geralmente "um
sonho em que se sobrevoa a terra de bem alto, 'como um urubu', acompanhado pela alma de algum parente vivo"
(geralmente um xamã), uma perspectiva a partir da qual "o sonhador percebe um mundo curiosamente alterado mas
vívido em que 'as coisas estão bem pequenas e próximas umas das outras'" (Crocker 1985:201). O importante a
notar aqui, porém, é o fato de que a experiência de voar em um avião era "exatamente" como o êxtase xamânico
iniciático, o terror do índio demonstrando claramente que algo de muito importante acontece quando uma
experiência dessas passa a ser acessível a não-xamãs.
120
Ele cita dois exemplos de filmes (Piranha II e Fitzcarraldo) que se baseiam em pressupostos sobre a floresta e os
povos do terceiro mundo que não são compartilhados pela população local – que, por outro lado, encontra nos
filmes dimensões dificilmente imagináveis pelos seus criadores.
121
Gow (1995:52; itálico no original).

208
Carneiro da Cunha aborda essas transformações quando afirma que se os xamãs sempre
foram "viajantes por excelência" (geralmente a bordo de alucinógenos), viagens "mais conformes
à nossa definição usual" podem não apenas aumentar seu prestígio mas mesmo, em alguns casos,
substituir a aprendizagem de tipo tradicional.122 Ela cita o caso de Crispim, cuja "reputação
xamânica" se explicaria por suas viagens e estadias em lugares particularmente relevantes para a
economia local e o comércio indígena e seringueiro como Ceará e Belém. Nota-se aqui que a
materialização das técnicas do êxtase tradicionais em objetos técnicos, longe de diminuir a força
do xamanismo, antes provoca mudanças em seus conteúdos. Tudo se passa como se o xamanismo
mudasse (das viagens aos mundos dos deuses e espíritos que determinam a vida dos humanos,
por exemplo, para viagens ao mundo urbano dos brancos que determinam a vida dos povos da
floresta) para permanecer o mesmo, mudando de forma e de conteúdo para manter a mesma
função operatória, que seria, segundo Carneiro da Cunha, a de "interpretar o inusitado, conferir
ao inédito um lugar inteligível, uma inserção na ordem das coisas".123

Para o xamã de um mundo novo, de pouca valia serão seus antigos instrumentos, as escadas
xamânicas que lhe dão acesso aos diversos planos cosmológicos [...], sua aprendizagem, seus
espíritos auxiliares, suas técnicas. Montagens de outras técnicas podem ser preferíveis. Mas, ainda
assim, cabe-lhe "por dever de ofício", mais do que pelos instrumentos conceituais tradicionais,
reunir em si mais de um ponto de vista. Pois, apenas ele, por definição, pode ver de diferentes
modos, colocar-se em perspectiva, assumir o olhar de outrem [...]. E é por isso que, por vocação,
desses mundos disjuntos e alternativos, incomensuráveis de algum modo, ele é o geógrafo, o
decifrador, o tradutor.124

Carneiro da Cunha se refere aqui à teoria do perspectivismo ameríndio,125 que define o


xamanismo como "a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as

122
Carneiro da Cunha (1998:12).
123
Carneiro da Cunha (1998:12). Essa função parece estar ausente entre os Waiãpi da Guiana Francesa, se
interpretamos corretamente um texto dos Grenand sobre a "aliança impossível" entre os Waiãpi e os brancos, no
qual os antropólogos contam como os poucos Waiãpi que fizeram a "viagem iniciática em direção à cultura
francesa", quando retornam à comunidade, se sentem "geralmente desorientados e incompreendidos", incapazes de
"partilhar suas experiências", de explicar a estupefação" que sentem diante do mundo branco e, "principalmente, a
servidão a que é preciso curvar-se durante a viagem" (Grenand e Grenand 2002:159). Diante da "arrasadora
dificuldade de traduzir a incompatibilidade entre esses universos", os Waiãpi se "calam" (Grenand e Grenand
2002:159).
124
Carneiro da Cunha (1998:17).
125
Segundo Viveiros de Castro, a teoria do perspectivismo ameríndio foi elaborada a partir da "generalização" de
descobertas que ele havia feito em suas próprias pesquisas etnográficas enriquecidas pela etnografia de Tânia
Stolze Lima sobre os Juruna (cf. Viveiros de Castro 2002b:480). A teoria – apresentada principalmente em
Viveiros de Castro (2002b:345-399 [1996]; 2002a; cf. 2006), mas também em Lima (1996) – consiste basicamente
na "concepção [...] extremamente difundida nas culturas ameríndias [...] segundo a qual as diferentes subjetividades
que povoam o universo são dotadas de pontos de vista radicalmente distintos [...], [...] que a visão que os humanos
têm de si mesmos é diferente daquela que os animais têm dos humanos, e que a visão que os animais têm de si
mesmos é diferente da visão que os humanos têm deles", concepção "cujos fundamentos se encontram na mitologia

209
barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de modo a
administrar as relações entre estas e os humanos".126 Segundo Viveiros de Castro, a operação
xamânica mais geral seria aquilo que Alfred Gell chamou de "abdução de agência",127 com o que
se quer dizer que o xamanismo opera pela atribuição de um "máximo de intencionalidade"128 ao
outro – que pode ser um objeto, uma planta, um animal, ou qualquer outra alteridade. O xamã,
ocupando a perspectiva do "outro", é capaz de ver o mundo como este o vê e assim se encontra
em posição privilegiada para prever ou controlar ações deste outro, ou pelo menos para direcionar
as suas próprias ações em função do conhecimento assim adquirido.
No caso do xamanismo tradicional, o outro privilegiado é o animal.129 Isso é
perfeitamente compreensível, visto que é com os animais que os povos da floresta têm que lidar
cotidianamente, seja durante a caça, seja em encontros inesperados e perigosos. Os animais são,
poderíamos dizer, "o outro que importa" para os índios vivendo na floresta sem muito contato
com os brancos, pois é na relação com esse outro que eles podem planejar melhor suas ações.
Justamente por isso, é transformando-se em animal que o xamã pode melhor contribuir para a
solução dos problemas que lhe são propostos pela vida na floresta. Se é o animal quem
determina, na maior parte das vezes, a qualidade da vida nativa, então é assumindo o seu ponto
de vista sobre o mundo que o xamã pode conhecer melhor suas tendências e intenções (um saber
oculto, perceptível apenas aos próprios animais e aos xamãs), coordenar as forças produtivas e
criativas de sua sociedade. Mas o que acontece quando os índios passam a conviver com o branco
e suas tecnologias? Pelo que vimos, tudo indica que o animal dá lugar ao branco, que passa a ser
então "o outro que importa" nessa nova situação. Com isso, parece natural que os xamãs passem
a incorporar máquinas em seus rituais, ou mesmo que se transformem em máquinas. Afinal, não é
a máquina o dispositivo que coloca aquele que a manipula na perspectiva do branco, que revela

– na idéia de que o fundo originário comum à humanidade e à animalidade é a humanidade [...] –" e que "está
pressuposta em muitas dimensões da praxis indígena, mas vem ao primeiro plano no contexto do xamanismo"
(Viveiros de Castro 2002b:467-8). Retornaremos ao perspectivismo adiante.
126
Viveiros de Castro (2002b:358).
127
Cf. Viveiros de Castro (2002b:359-61). Segundo Gell, a abdução "cobre uma área cinzenta na qual a inferência
semiótica (de sentido a partir de signos) se funde com inferências hipotéticas não-semióticas (ou não
convencionalmente semióticas)" (Gell 1998:14) e a abdução de agência é "o procedimento através do qual
formamos uma noção da disposição e das intenções de 'outros sociais'" a partir de "um grande número de abduções
de índices que não são nem 'convenções semióticas' e nem 'leis da natureza', mas algo de intermediário" (Gell
1998:15).
128
Cf. Viveiros de Castro (2002b:487-8).
129
É assim que entendemos a "valorização simbólica da caça" que Viveiros de Castro encontra no perspectivismo
xamânico ameríndio: "Nesse sentido, a espiritualização das plantas, meteoros e artefatos talvez pudesse ser vista
como secundária ou derivada diante da espiritualização dos animais: o animal parece ser o protótipo extra-humano
do Outro, mantendo uma relação privilegiada com outras figuras prototípicas da alteridade, como os afins."
(Viveiros de Castro 2002b:357)

210
para aquele que assume a sua perspectiva o mundo como o branco o vê?130 Definido pela mesma
operação perspectivista (assumir o ponto de vista do outro que importa para assim produzir um
conhecimento útil para a ação), o xamanismo se transforma radicalmente na forma (pois mudam
os procedimentos rituais formais) e no conteúdo (pois mudam os seres e objetos com que ele se
relaciona). Assumir a perspectiva daquele que vê o mundo através das máquinas. Não é isso que
temos visto ocorrer com os xamãs nos inúmeros exemplos citados até aqui? Mas se com essa
manobra perspectivista o xamanismo também se transforma, se à atualização tecnológica do
tempo mítico corresponde uma distribuição tecnológica do xamanismo, como essa transformação
distributiva vem se dando na prática?
Waiwai, líder Waiãpi (Amapá), disse para os Z'oe (Pará), sobre tê-los visto "na televisão":

Ah! Eu achei que vocês eram como nossos ancestrais, que estávamos vendo as imagens dos
antigos! É! Vocês me fizeram lembrar tudo o que os antigos nos ensinaram [...] No futuro, ao rever
suas imagens na televisão, vocês dirão: "Ah! É assim que viviam nossos ancestrais!".131

Ver os Zo'e pela televisão foi para Waiwai, como podemos ver, uma viagem no tempo, quase
como abrir uma janela para o tempo mítico.132 Mas uma janela tecnológica para o tempo mítico
não se abre sem que por ela penetrem também as forças disruptivas que ameaçam constantemente
as sociedades indígenas.133 A partir de sua experiência com o programa Vídeo nas Aldeias134 (que

130
Acreditamos ser essa a idéia expressa pela frase dita por um Ashaninka sobre o uso nativo do vídeo: "Você vê o
mundo do outro e olha para o seu" (Issac Pinhanta, in: Fontes *2004).
131
Waiwai, in: Gallois e Carelli (1995:213).
132
Encontramos um acontecimento análogo no relato de Seeger sobre quando se deparou com uma gravação de
cantos Suyá (feita por Harald Schultz em 1960) que lhe pareceram mais graves do que o normal. Ele tinha certeza
de que havia algo de errado com a gravação e sua suspeita inicial, de que "uma fita gravada em 60 ciclos havia sido
copiada em 50 ciclos, e assim ralentada", acabou sendo confirmada através da aceleração da gravação e
subseqüente comparação com outras gravações "corretas" do próprio antropólogo (cf. Seeger 1987:98). Porém,
para sua surpresa, quando ele reproduziu a gravação para os próprios Suyá, ao invés de ouvir uma confirmação de
que a gravação era defeituosa, recebeu o comentário desconcertante: "É lindo. É justamente assim que os Suyá
cantavam nos velhos tempos" (Kaikwati, in: Seeger 1987:98). Seeger explicou a reação inusitada como sendo um
misto de "idealização do passado" (quando "a vila era maior, os homens eram mais altos, as mulheres eram mais
femininas e todo mundo cantava mais e se comportava melhor"; Seeger 1987:99) e da "estética Suyá" da "garganta
grande" ou "bonita" (valorizando o canto grave e gutural, representando "força, masculinidade e agressividade";
Seeger 1987:97): "A gravação defeituosa confirmou as atitudes Suyá. Homens velhos deveriam sempre cantar mais
grave do que homens jovens, e aqueles do passado podiam cantar mais graves do que os de hoje" (Seeger
1987:101). A máquina atualizou o passado mitificado e assim abriu uma nova via de acesso a ele.
133
Turner cita casos em que a captação da TV ocidental por comunidades nativas é vista como um "problema" (cf.
Turner 1993:82) e Gallois e Carelli citam o caso do líder Parkatêjê que "relaciona a falta de entusiasmo dos jovens
pelas tradições ao peso que o mundo dos brancos tem sobre eles", entre outras coisas "devido à sua veiculação
pelas emissoras de TV do Sul do país" e pelo "impacto das novelas sobre os padrões de comportamento adotados
pelos jovens, padrões opostos àqueles que ele tenta implantar na comunidade" (Gallois e Carelli 1995:242; cf.
Carelli v1988).
134
O projeto Vídeo nas Aldeias – que teve como ponto de partida a experiência de Carelli entre os Nambikwara em
1987, fez parte do Centro de Trabalho Indigenista (São Paulo) até 2000 e depois tornou-se uma ONG sediada em

211
foi responsável pelo encontro entre os Waiãpi e os Zo'e), Dominique Gallois e Vincent Carelli,
observaram que os índios utilizavam o vídeo principalmente de duas maneiras: "para preservar
manifestações culturais próprias a cada etnia, selecionando-se aquelas que desejam transmitir às
futuras gerações e difundir entre aldeias e povos diferentes" e "para testemunhar e divulgar ações
empreendidas por cada comunidade para recuperar seus direitos territoriais e impor suas
reivindicações".135 Poderíamos dizer que o uso preservativo do vídeo teria uma orientação mais
interna e reprodutiva ao passo que o uso testemunhal teria uma orientação mais externa e
transformativa. No entanto, em ambos os casos observa-se um ponto em comum: a câmera
oferece aos índios um ponto de vista privilegiado sobre o mundo. Como uma espécie de "novo
axis mundi" a partir do qual o cosmos e seus elementos normalmente invisíveis podem ser
conhecidos e controlados, a câmera assumiria, nesse novo contexto, a função de produzir o ponto
de vista, diríamos, do "outro que importa".136
Segundo Conklin, foi nas décadas de 70 e 80 que a "disseminação das tecnologias de
comunicação que refletiam novas auto-imagens", em especial os "eletrônicos compactos,
portáteis e a bateria", "ofereceram novos meios de auto-representação" e "possibilitaram aos
povos nativos da Amazônia participar pela primeira vez da produção de imagens e informações

Recife (cf. Fontes *2004) –, foi "idealizado no contexto do movimento de reafirmação étnica ao qual assistimos
entre os povos indígenas do Brasil nas últimas décadas" e "[c]oncebido como um programa de intervenção direta"
(Gallois e Carelli 1995:206). O objetivo conceitual do projeto é "promover o encontro do índio com a sua imagem"
(Carelli v[s.d.]), o que deveria levantar a questão: de onde vem a necessidade de "promover" esse "encontro" senão
do fato de que atualmente a "imagem que importa" do índio não é aquela que lhe é acessível pela sua própria
perspectiva, tampouco aquela que lhe é proporcionada pelo perspectivismo tradicional de seus xamãs, mas sim a
perspectiva da máquina do branco? É instrutivo ver Waiwai, líder Waiãpi e já habituado à televisão, convidando
um Zo'e confuso e ainda inexperiente com relação à perspectiva da máquina para "olhar as nossas imagens" (cf.
Carelli e Gallois v1993). Algumas amostras do projeto Vídeo nas Aldeias a que tivemos acesso através da
biblioteca do IFCH-Unicamp foram: Carelli (v1993/1994, v[s.d.]); Carelli e Gallois (v1990, v1993); Gallois
(v1994).
135
Gallois e Carelli (1995:207).
136
De fato, quando Mokuka (editor nativo de alguns vídeos dos Kaiapó) gravou "uma explicação do seu trabalho de
edição e da importância [dele] para o povo Kaiapó como um todo", a ênfase recaiu predominantemente sobre o seu
papel na criação de uma imagem dos índios para os brancos: "Por todo o mundo, as pessoas estão vendo esses
vídeos que fazemos sobre nós mesmos. [...] Esses vídeos serão vistos em todos os países. [...] Daqui nossos vídeos
são mandados para longe, para as terras dos brancos, para que nossos parentes (brancos) possam ver como
realmente somos [...] Todos vocês em todos os países que vêem os filmes que eu faço podem, assim, conhecer
nossa cultura" (Mokuka, in: Turner 1993:91). Vale notar que "o outro que importa" não parece ser necessariamente
o branco, apenas contingentemente, sendo antes aquele que estiver assumindo a perspectiva da câmera (branco ou
não). O importante aqui, em outras palavras, não é o ser ou o sujeito, mas sim a perspectiva que o constitui. "É esse
o fundamento do perspectivismo. Este não significa uma dependência em face de um sujeito definido previamente:
ao contrário, será sujeito aquele que vier ao ponto de vista, ou sobretudo aquele que se instalar no ponto de vista."
(Deleuze 1991:36) Numa outra formulação: "A idéia básica (que não é uma idéia simples) do perspectivismo, tanto
o indígena como seu análogo ocidental, é que toda posição de realidade especifica um ponto de vista, e que todo
ponto de vista especifica um sujeito – nessa ordem." (Viveiros de Castro 2001:8)

212
sobre si mesmos que circulam além de suas comunidades",137 e Ailton Krenak conta que foi a
partir dos anos 70 que as tecnologias de comunicação permitiram a troca de experiências entre os
próprios índios e entre os índios e a sociedade envolvente, possibilitando "a emergência de uma
verdadeira voz indígena".138 Além de mudar a maneira como os índios vêem a si mesmos, a
tecnologia vem mudando também radicalmente a dinâmica da política interétnica ao facilitar a
cooperação entre índios e fontes longínquas de apoio e financiamento, geralmente
internacionais.139 Circulando pelas "arenas de diálogo intercultural", ativistas indígenas
encontraram "sistemas de valores e tecnologias de representação ocidentais que lhes ofereceram
novas perspectivas sobre suas próprias culturas e novos meios de comunicar suas preocupações a
estrangeiros influentes".140
Segundo Turner, o uso ativo do vídeo por grupos indígenas "para seus próprios objetivos"
se observou principalmente entre os aborígines australianos, os Inuit canadenses e os índios da
região amazônica, sendo que dentre estes últimos ele destaca os Kaiapó.141 Os Kaiapó são, de
fato, um caso à parte no uso indígena do vídeo, pela habilidade com que "fizeram rapidamente a
transição do vídeo como um meio de gravar os eventos para um evento a ser gravado".142 Conklin
nota que "[d]esde 1989143 a mídia global vem disseminando inúmeras fotos dos cameramen
Kaiapó – magnificamente vestidos com cocares, pintura corporal, braceletes com penas e brincos
– no ato de filmarem", e que "'[o]cidentalizar' o visual do cameraman [ou seja, se ele se vestisse
com roupas "ocidentais", "que é como os Kaiapó se vestem no cotidiano"] seria privá-lo de sua
força simbólica e de seu apelo midiático".144 Mas se a possibilidade de "transformar imagens
corporais exóticas em armas políticas eficazes" foi percebida pelos Kaiapó pelo menos desde
1988,145 por outro lado essa espécie de estetização da política indígena também tem suas
conseqüências debilitadoras.

137
Conklin (1997:718). Cf. Turner (1993:82).
138
Ailton Krenak (citado por: Susanna Hecht e Alexander Cockburn. 1989. The Fate of the Forest: Developers,
Destroyers and Defenders of the Amazon. New York: Verso, pp.212-3), in: Conklin (1997:717).
139
Cf. Conklin (1997:720).
140
Conklin (1997:712).
141
Turner (1993:82). Cf. Ginsburg (2002).
142
Turner (1993:87; cf.86-8).
143
Segundo Turner, entre 1985 (quando os Kaiapó ganharam sua primeira câmera de vídeo) e 1990, "o vídeo Kaiapó
permaneceu no nível do 'filme caseiro'" (Turner 1993:88).
144
Conklin (1997:715-6).
145
Quando mais de 400 deles ("guerreiros dramaticamente vestidos e mulheres quase nuas") realizaram "'danças de
guerra' brilhantemente teatrais" perante policiais armados e diante de equipes de televisão e conseguiram evitar o
julgamento de Payakan e Kube-i, acusados de "contrariarem os interesses nacionais" ao negociarem diretamente
com empresas estrangeiras assuntos relativos à construção de uma hidroelétrica em seu território (Conklin
1997:720). "Em reuniões internacionais, jornalistas se amontoam para fotografar representantes amazônicos com

213
Turner conta o caso de um jovem líder Kaiapó que, em dezembro de 1991, solicitou-lhe
que filmasse a criação de uma nova aldeia sob sua liderança. Chegando na nova aldeia, o
cameraman enviado por Turner foi solicitado a filmar diversas encenações dos "aspectos da vida
da aldeia que [os Kaiapó] achavam adequados à boa comunidade que pretendiam representar".146
Segundo Turner, eram "os Kaiapó representando a si próprios, para eles mesmos" não apenas
como "gravação passiva ou uma reflexão de fatos já existentes", mas sim com uma "função
performativa", como "algo que ajuda a estabelecer os fatos que ela grava":147

Atos e eventos políticos que na vida política normal dos Kaiapó permaneceriam relativamente
contingentes e reversíveis, afirmações ou reivindicações subjetivas de um indivíduo ou grupo que
permaneceriam abertas a desafios de outro grupos com objetivos ou interpretações diferentes (por
exemplo, um jovem líder que reivindica autoridade máxima) podem ser exprimidos em video na
forma de realidades objetivas e públicas.148

O vídeo estaria sendo usado pelos Kaiapó (mas não apenas por eles), portanto, como "um meio
poderoso que confere, a atos privados e contingentes, o caráter de fatos públicos instituídos".149
Gostaríamos de sugerir aqui (talvez apressadamente, mas não sem alguma base nos dados) que
essa "tentativa de investir esses eventos de uma realidade mais potente e da permanência histórica
conferida aos eventos políticos ocidentais por meio da telemídia ocidental"150 é diretamente o
resultado de uma percepção, pelos índios, de que o ponto de vista "que importa" – i.e., o ponto de
vista a partir do qual os fatos ganham realidade – na sua nova situação histórica pós-contato é
aquele que se alcança através das máquinas.151 O fato de que muitas gravações sejam feitas pelos

seus cocares dramáticos, e suas causas acabam ganhando cobertura proporcional pela imprensa." (Conklin
1997:721) Turner conta que em 1988, "na constituinte brasileira, os Kaiapó não apenas mandaram uma delegação
para o lobby que debatia os direitos indígenas, mas filmaram a si mesmos neste momento, e foram devidamente
fotografados por todos os jornalistas fotográficos que cobriam o evento", e que no "grande comício em Altamira
contra a represa da hidrelétrica no rio Xingu", em 1989, as câmeras dos Kaiapó "não apenas gravaram o evento,
mas foram elas próprias um dos eventos mais gravados por fotojornalistas da imprensa mundial" (Turner 1993:87-
8). Algumas imagens de performances rituais-políticas altamente eficazes dos Kaiapó em assembléias em Brasília,
diante do tribunal em Belém, diante de policiais armados e em hidrelétricas, podem ser vistas em Carelli (v[s.d.]).
146
Turner (1993:101).
147
Turner (1993:101).
148
Turner (1993:101). "Se não gravar as imagens na TV", afirma o líder Waiãpi, "não fica nada" (Carelli e Gallois
v1990).
149
Turner (1993:102).
150
Turner (1993:102).
151
Celebrações Xikrim atuais, segundo César Gordon, "precisam ser registradas em cassete e fotografadas pelos
índios", garantindo (junto com coca-cola, calções coloridos e miçangas de plástico) que sejam "grande[s] e bela[s]
de verdade" (Gordon 2005:14). Um caso célebre dessa encarnação tecnológica da perspectiva dominante é o da
utilização de um gravador por Juruna, o "índio eletrônico" Xavante, para registrar promessas políticas e reproduzi-
las quando elas não eram cumpridas (a prática acabou se tornando usual na política indígena, um "instrumento de
luta nas negociações com o governo, registrando as promessas das autoridades", e eventualmente o vídeo, que
"além de palavras, pode documentar fatos e revelar a cara de quem promete", veio a substituir o gravador; cf.

214
índios para os índios não muda esse fato, visto que se trata, de qualquer forma, de uma manobra
perspectivista: ver-se do ponto de vista do "outro que importa" e assim participar de seu poder
concretizador.152 Que em alguns casos a objetificação dessa perspectiva dominante num objeto
técnico pode conduzir a uma reificação ou a um fetichismo da máquina, descolando a sua
perspectiva de qualquer realidade social, isso é apenas uma das conseqüências das possibilidades
abertas pela própria máquina, às quais ademais estamos todos expostos.153

Carelli v[s.d.]). Como nota Garcia dos Santos, nas mãos de Juruna o gravador "funciona como o analisador de uma
situação onde a prepotência e a manipulação exercidas por um dos interlocutores sobre o outro só podem se manter
em segredo, sem testemunhas, num espaço onde, socialmente a fala de um cai sob a tutela da fala do outro" (Garcia
dos Santos 1989:39). A importância de assumir a perspectiva do branco através da máquina para alcançar os
objetivos indígenas foi explicitada pelo próprio Juruna: "O governo só prometendo, só prometendo. Então eu
resolvi comprar o gravador para gravar tudo o que eles diziam. E resolvi também procurar a imprensa, a televisão.
Foi a vida que me ensinou que eu devia procurar. Se não fosse a imprensa, ninguém saberia da vida da gente.
Parecia brincadeira, não adiantava nada. Mas, depois que usei o gravador, acabei conseguindo a demarcação"
(Juruna, in: Garcia dos Santos 1989:40). Assim como o xamã manipula as forças ocultas da floresta colocando-se
no ponto de vista de quem as determina (vendo a floresta da perspectiva do outro que se quer controlar), Juruna
passou a manipular as forças ocultas do mundo do branco colocando-se no ponto de vista de quem as determina
(vendo este mundo da perspectiva do outro que se quer controlar). Outro bom exemplo dessa analogia funcional
entre as máquinas reprodutoras e o xamanismo é a "função essencialmente política" que, segundo Carelli, lhe dão
os Ticuna. Registrando suas "peregrinações pelas capitais do país" para denunciar "os massacres de que foram
vítimas" e exigir a "demarcação de suas reservas", eles podem "transmitir aos que ficam nas aldeias os
encaminhamentos e as dificuldades encontradas por seus representantes" (cf. Carelli v[s.d.]), como xamãs que
transmitem aos demais uma dimensão oculta mas determinante da realidade através de suas viagens extáticas. Vale
citar ainda a declaração do Ashaninka Issac Pinhanta: "Os instrumentos que a gente tem de fora, para poder nos
defender e para segurar nossa cultura são a escrita – ter algumas pessoas que aprendam a dialogar, falar e escrever
o português – e a câmera, porque você transmite a sua imagem sem precisar sair todo mundo de lá. Sai uma pessoa
e transmite o que está acontecendo, para as pessoas te ajudarem te respeitar. É daí que vão sair nossos aliados não-
indígenas, as pessoas que vão combater esse preconceito". (Issac Pinhanta, in: Fontes *2004) Tudo se passa como
se a relação entre o mundo indígena e o mundo dos brancos assumisse um lugar análogo àquele da relação entre o
mundo humano e o sobrenatural, as pessoas que manipulam as tecnologias dos brancos (escrita e vídeo, no caso)
assumissem uma função análoga às dos xamãs, e os brancos que se tornam aliados dos índios por intermédio desse
novo xamanismo assumissem um papel análogo ao dos espíritos-auxiliares.
152
É assim que entendemos o fato de uma mulher Assurini dizer que "ia comprar uma televisão só para pegar a
cultura da gente mesmo" (depoimento , in: Müller e Valadão v1997). Afinal, se, como diz outra mulher Assurini
(que define a câmera como "aquilo que captura nossa alma e a guarda no interior") apontando para a câmera, "o
branco coloca nossa imagem aí dentro" (depoimento, in: Müller e Valadão v1997), então é da perspectiva da
máquina que agora o índio procura retomar o poder sobre sua própria "cultura". Turner parece tratar justamente
dessa questão quando reclama da pouca atenção dos antropólogos à discussão sobre "quem acaba por ter ou
controlar o acesso aos filmes ou vídeos no nível da comunidade" (Turner 1993:85). Segundo Turner, entre os
Kaiapó, "ser um câmera de vídeo ou, ainda mais valorizado, um editor de vídeo, significa acumular um papel de
prestígio dentro da comunidade e uma forma de mediação importante, política e culturalmente, com a sociedade
ocidental", motivo pelo qual "estas atividades são usadas para promover a carreira política de algumas pessoas"
(Turner 1993:85-6). Ora, se "[m]uitos dos chefes mais jovens dos grupos atuais foram câmeras de vídeo durante
sua ascensão à chefia" e "muitos dos jovens mais ambiciosos adotaram o vídeo, pelo menos em parte, na esperança
de seguir os passos desses líderes" (Turner 1993:86), isso não se deveria à percepção de que é da perspectiva da
câmera que o acesso ao poder político atualmente determinante é alcançado?
153
Um caso relevante é o de Kokrenum, líder dos Parkatêjê. Empolgado com o vídeo em que ele vê os "Nambikwara
retomarem a furação do beiço diante da câmera de vídeo" (que aliás já era em si um ritual feito, senão para a
câmera, pelo menos em função de sua presença; cf. Carelli v1996), ele "promoveu a furação de beiço de todos os
jovens, e o câmera da aldeia documentou esse momento histórico. Mas, hoje, Kokrenum se queixa porque a
maioria dos rapazes retirou os botoques labiais pouco depois do rito, deixando os furos cicatrizarem." (Gallois e

215
O célebre caso dos Nambikwara é paradigmático. Assistindo à gravação de um ritual de
iniciação feminino que haviam acabado de realizar, eles não aprovaram o resultado, julgando
estarem excessivamente vestidos e muito pouco pintados. Resolveram então realizar o ritual
inteiro novamente para a câmera, agora com menos roupa e mais pinturas corporais, e então
finalmente aprovaram o resultado, considerado "mais autêntico".154 O fato de que nesse segundo
take os Nambikwara ainda vestiam shorts, apenas um pouco menores, motivou Vilaça a
interpretar esse como mais um exemplo de "dupla identidade" xamânica – branca e indígena,
muitas vezes ao mesmo tempo – desenvolvida por muitos ameríndios após o contato com o
branco.155 Mas talvez fosse o caso de acrescentar que o que o caso específico dos Nambikwara
mostra é que essa "dupla identidade" dos índios se explicitou justamente quando o vídeo lhes
permitiu ver a si mesmos da "perspectiva que importa", aquela produzida pelas máquinas.156
A insatisfação dos Nambikwara com sua própria imagem não surgiu durante o ritual
tradicional, mas sim durante um novo ritual, o de ver a si mesmos a partir da perspectiva da
câmera. Como aponta Conklin, "tecnologias estão imersas em contextos sociais", e "essas
pessoas que valorizavam a cultura indígena eram nitidamente de alto status – bem educados e
geralmente de pele clara, com acesso a tecnologias sofisticadas, bens comerciais e conexões
políticas".157 Se durante décadas os Nambikwara se acostumaram com brancos que
desvalorizavam sua cultura e suas tradições, agora eles pareciam estar aprendendo a lidar com um
outro tipo de branco, um branco que valorizava suas tradições, seus rituais, geralmente com uma
câmera na mão. Conklin nota que são geralmente os representantes da mídia internacional
aqueles que trazem mais retorno político (através da divulgação de suas reivindicações) e
econômico (através de agências e organizações internacionais) aos índios, e simultaneamente

Carelli 1995:241) Tudo não passou, nesse caso, de um ato para a câmera – o que não quer dizer que não tenha sido
eficaz (para além da insatisfação de Kokrenum), é bom lembrar, sendo essa a perspectiva dominante.
154
Cf. Conklin (1997:719). O caso, ocorrido em 1987, foi apresentado em Carelli (v1996) como "o encontro dos
Nambikwara com a sua imagem", o que deve ser entendido, acreditamos, como sinal de que havia, antes dele, um
"desencontro".
155
Cf. Vilaça (2000:57-8).
156
Vale citar aqui o trabalho de Sylvia C. Novaes, que usa a imagem do "jogo de espelhos" para tratar de uma
questão próxima à que estamos aqui abordando. Segundo Novaes, "[q]uando uma sociedade focaliza um outro
segmento populacional, ela simultaneamente constitui uma imagem de si própria, a partir da forma como se
percebe aos olhos deste outro segmento", "como se o olhar transformasse o outro em um espelho, a partir do qual
aquele que olha pudesse enxergar a si próprio" (Novaes 1993:107; itálico no original). Assim, "[c]ada outro, cada
segmento populacional, é um espelho diferente, que reflete imagens diferentes entre si", e a vida social se torna, de
fato, um "jogo de espelhos" (Novaes 1993:107; itálico no original). A câmera poderia ser vista como uma espécie
de espelho no qual os índios se vêem de uma maneira particular. No entanto, propomos aqui que a câmera não é
apenas mais uma perspectiva entre outras possíveis, mas sim "a perspectiva que importa" num contexto de contato
permanente dos índios com os brancos. Nesse sentido, ela seria menos um espelho ao lado de outros e mais uma
lente que distorce de uma maneira particular aquilo que se vê em todos eles.
157
Conklin (1997:719).

216
aqueles que mais valorizam a sua imagem "tradicional" e "autêntica".158 Os índios, por sua vez,
rapidamente aprendem o "vocabulário estético ocidental" da "autenticidade primitiva"
representado pela perspectiva da câmera, que valoriza alguns elementos – semi-nudez,
ornamentos coloridos e pintura corporal, todos caracterizados pela "impermanência", por
elementos que podem ser "facilmente colocados e tirados" – e desvaloriza outros, muitas vezes
mais comuns no cotidiano dos índios – pinturas mais permanentes, adereços menos coloridos e
vistosos, certos cortes de cabelo e, notavelmente, odores –, um equilíbrio sutil entre "diferenças
que atraem e diferenças que ofendem, agridem, ameaçam".159
Evidentemente, esse uso estratégico dos estereótipos de autenticidade indígena em
benefício próprio tem suas desvantagens, dentre as quais a mais evidente seria a assimetria
envolvida no fato de que a autenticidade indígena só é autêntica quando coincide com a idéia de
autenticidade do não índio, o que acaba tendo como resultado uma autenticidade inautêntica.160
Apesar de isso não representar um grande problema quando a autenticidade não é o valor a ser
preservado mas sim um valor a ser usado como moeda política,161 o fato é que essa assimetria
acaba fazendo com que alianças sejam baseadas em mal-entendidos162 e que muitos grupos

158
Conklin (1997:721-2). Assim, os Tuyuka (Amazonas), após décadas sem praticar suas cerimônias "devido às
pressões da ação missionária e à difusão de festas com músicas de fora", passaram a usar tecnologias digitais (CD e
CD-Rom) para "apresentar, divulgar e valorizar sua cultura para os mais jovens e para os de fora" (Cabalzar,
Cabalzar e Macedo *2000). Quando a "valorização" da cultura se dá a partir da perspectiva da máquina (pois
aqueles que a "valorizam" o fazem da perspectiva da máquina), a máquina passa a ser um meio de "valorização" da
cultura.
159
Conklin (1997:723).
160
Cf. Conklin (1997:729).
161
Seeger faz uma distinção relevante entre "o 'índio' dos brasileiros" (Brazilians' 'Indian') e os "índios brasileiros"
(Brazilian Indians), dizendo que aqueles são uma imagem "genérica" criada pela sociedade ocidental e em grande
parte assimilada por muitas sociedades indígenas na luta por seus direitos e que, "enquanto houver alguma
vantagem em ser 'índio' ao invés de camponês, penas e músicas farão parte da estratégia política de sobrevivência
indígena" (Seeger 1987:136-7). Seeger certamente tem razão, mas seria agora o caso de perguntar se há, afinal,
uma distância tão grande assim entre "o 'índio' dos brasileiros" e os "índios brasileiros". Num contexto em que
assumir a perspectiva do "outro que importa" – interpretando o branco e suas tecnologias na chave do tempo mítico
e do xamanismo – é simplesmente continuar fazendo o que sempre se fez, num contexto em que "tornar-se branco"
é justamente a maneira mais tradicional que os índios encontram de lidar com uma situação histórica nova, então os
"índios dos brasileiros" acabam sendo apenas uma versão politicamente construída pelos próprios "índios
brasileiros" a partir da percepção de que é vendo-se da perspectiva que os brancos os vêem que eles conseguem
canalizar as suas forças de maneira que melhor lhes convêm. Por isso, se por um lado é verdade que "[a] imagem
do índio, sobretudo na TV, é ester[e]otipada" (Mari Corrêa, in: Fontes *2004), por outro colocar uma câmera nas
mãos do índio talvez não diminua a estereotipia, apenas demonstre um outro uso dela (um desvio de função), o que
ainda assim será "um novo olhar sobre os povos indígenas, o mais precioso deles", "[o] que possuem sobre si
mesmos [acrescentaríamos apenas, da perspectiva do outro]" (Fontes *2004).
162
Os exemplos mais típicos desses mal-entendidos se verificam no terreno da ecologia, no qual entidades
internacionais acreditam estar financiando defensores incondicionais e puros de uma floresta nativa a ser
preservada, enquanto os índios por sua vez têm seus próprios interesses de autonomia e de exploração de seu
próprio território. Talvez o caso mais conhecido desse tipo de "mal-entendido interétnico" tenha sido a análise de
Albert da relação do discurso de Davi K. Yanomami com o "indigenismo ambientalista" (cf. Albert 2002b).
"[I]deologicamente simpático" ao discurso de Davi, o discurso ecológico é "culturalmente equivocado" (Albert

217
indígenas sejam prejudicados simplesmente por não aderirem ao jogo das imagens midiáticas.163
Esse é, de fato, um problema. No entanto, gostaríamos de mostrar que o problema não é apenas
dos índios, mas também de todos nós, contemporâneos deles. Argumentamos aqui que a
perspectiva do outro que importa para os índios após o contato é a perspectiva produzida pela
máquina, que é ela que transforma em sujeito da ação e de enunciação aquele que a partir dela
agir ou se pronunciar. No entanto, o fato é que essa não é uma situação exclusiva aos índios,
antes sendo a situação que caracteriza a sociedade capitalista contemporânea pelo menos desde
que o homem se tornou, na expressão precisa de Marx, um "apêndice vivo" da máquina.164 Mas
com isso já introduzimos temas que serão abordados na terceira parte desta tese.

2002b:257) quando pressupõe que a "natureza", o "meio-ambiente" e a "ecologia" de que fala correspondem às
mesmas coisas que o xamã designa pelas mesmas palavras. O problema aqui parece ser o mesmo que Viveiros de
Castro diagnosticou quanto aos "conceitos piro e ocidental de corpo": o conceito Yanomami de natureza, por
exemplo, não seria "outra visão" de uma mesma natureza conceitualizada pelo nosso discurso ecológico, mas sim
"um outro conceito" de natureza, "cuja dissonância subjacente à sua 'homonimia' com o nosso é, justamente, o
problema" (cf. Viveiros de Castro 2002a:140). Seria útil acrescentar apenas que o "mal-entendido" notado por
Albert parece-nos apenas contingente, e não necessário, visto que já possuímos ferramentas conceituais para pensar
(ou ao menos interagir de maneira mais produtiva) com as categorias nativas, e.g.: o conceito de "natureza" de
Bergson (2005) e Whitehead (1971); o conceito de "milieu" de Simondon (1992); e o conceito de "ecologia" de
Guattari (1995) e Bateson (1987; quanto a Bateson, vale considerar a crítica perspicaz, apesar de um pouco
exagerada, de Friedman 1979).
163
Um caso bem conhecido dessa deslegitimação da autenticidade de certos índios por outros índios baseada em
critérios performáticos de indianidade foi a recusa do então deputado federal e Xavante Mario Juruna em aceitar
que os Pataxó (Bahia) fossem índios – "Índio não tem barba, nem bigode, nem cabelo no peito" (Juruna, in:Vilaça
2000:61) – após o que eles passaram a usar publicamente adereços "indígenas" (cf. Conklin 1997:727). Outro caso
relevante foi o impedimento de índios vestidos com roupas "ocidentais" de participarem de uma das reuniões da
conferência internacional Rio-92 (Earth Summit) por índios Kaiapó e posteriormente autorizados quando
apareceram com "colares e penas" (cf. Conklin 1997:727). Se Conklin (1997) chama a atenção para a adoção de
estereótipos corporais de indianidade pelos próprios índios e Vilaça (2000) chama a atenção para o fato de que essa
adoção condiz perfeitamente com a lógica nativa de hábitos corporais, nós aqui chamamos a atenção para o fato de
que essa prática perfeitamente tradicional se dá a partir da adoção da perspectiva da máquina.
164
Cf. Marx (1988:41). Seria ainda preciso considerar aqui o fato de que Marx falava daquilo que Donna Haraway
chamou de "máquinas pré-cibernéticas". "Nossas máquinas" pós-revolução cibernética, a autora nota, "são
perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes" (Haraway 2000:46). Deleuze e Guattari
apontaram a mesma distinção quando falaram de uma "segunda" e "terceira" idade da máquina técnica, aquela
representada pelas máquinas motrizes (às quais o ser humano se sujeita) e esta pelas cibernéticas (pelas quais ele é
submetido) (cf. Deleuze e Guattari 1997b:156-9). Retomaremos o tema adiante.

218
Parte III
Música Eletrônica e Xamanismo
220
Capítulo 7
Devires

221
222
O devir [...] não tem termo, porque seu termo [...]
só existe tomado num outro devir do qual ele é o
sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o
primeiro.1

1
Deleuze e Guattari (1997a:18).

223
224
Vimos na Parte II que os xamãs parecem encontrar análogos perfeitos de seus próprios poderes e
capacidades no poder e na capacidade de certas máquinas de produzir (por meios controlados e
precisos e pela captação e mobilização de forças e processos ocultos como espectros
eletromagnéticos e eletricidade) sons e imagens que pertencem a uma outra dimensão da
realidade, diversa daquela na qual esses sons e essas imagens se tornam manifestos (aquela
determinante, e esta determinada). Dizer que os xamãs mistificam as máquinas ao lhes atribuírem
poderes sobrenaturais seria apenas metade da estória – a metade que menos nos interessa aqui,
pois apenas reafirma aquilo que acreditamos já saber sobre essas máquinas. A outra metade, a
mais interessante e a que nos permite ampliar nosso conhecimento sobre as máquinas evocadas, é
aquela que encontra nas afirmações dos xamãs não uma mistificação das máquinas, mas sim uma
tecnologização da mística,2 uma concretização tecnológica de suas técnicas do êxtase.3 Segundo
essa perspectiva, ao "xamanizar" as máquinas o que os xamãs fazem é menos mistificar a
tecnologia do que "tecnologizar" suas próprias operações rituais. Comparando-se a máquinas que
têm por função revelar um mundo que até então era oculto e que permitem canalizar forças até
então difusas para fins específicos, os xamãs afirmam não apenas serem de fato os primeiros
técnicos4 – aqueles que, antes de qualquer rádio, televisão, gravador etc., já trabalhavam com as
forças que hoje são controladas e tornadas acessíveis por essas máquinas –, mas também serem
uma fonte privilegiada de conhecimento sobre as dimensões míticas (ou, numa linguagem menos
desrealizante para a mentalidade moderna, determinantes) das próprias máquinas. Afinal, o que
os xamãs estão nos dizendo sobre nossas próprias máquinas que ainda não sabemos?
As máquinas parecem assumir, no mundo contemporâneo, a mesma função que o axis
mundi assumia no mundo tradicional. Parecem ser elas não apenas aquilo que sustenta a ordem
atual da vida, mas também aquilo que permite a comunicação controlada e direcionada dessa
ordem com uma outra ordem difusa e normalmente imperceptível, inconsciente, desejante. Os
xamãs tradicionais parecem perceber claramente a centralidade da máquina para o mundo
contemporâneo, assim como a sua função ritual, ao compará-la a seus próprios poderes e assim
transformá-la em um meio de comunicação com os espíritos. Em verdade, não é preciso ser um
xamã tradicional para perceber as relações da tecnologia com o sobrenatural. Se no início do

2
Fazemos aqui uma homenagem a Bergson (1978 [1932]).
3
Assim como, na iniciação, o xamã sofreria uma transferência tecnológica corporal a partir dos seres do tempo
mítico, no retorno desse tempo provocado pelo contato com o branco o xamã receberia uma espécie de
"atualização" de suas técnicas do êxtase, como uma espécie de download, a partir do tempo mítico, de um novo
plug-in para seu software xamânico (a imagem "pragmática" do plug-in foi inspirada em Latour, in: Barron
2003:78-9).
4
Cf. Garcia dos Santos (2003b:70) e CTeMe (2005a:15-6; cf. 2005b:173-4).

225
século XX Marcel Mauss e Henri Hubert acreditavam que "as técnicas são como germes que se
desenvolveram no terreno da magia e que a despojaram",5 trinta anos depois Walter Benjamin já
afirmava com mais cautela que "a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente
histórica".6 Atualmente, já é possível afirmar com propriedade que "a evolução das técnicas
consagra a relação entre a tecnologia de hoje e o mito primitivo", que a tecnologia moderna é "a
realização cada vez mais intensa de virtualidades inscritas no mito".7 Por viverem visceralmente
o contato brusco com essa nova fonte de poder sobrenatural e, mais ainda, por serem já
conhecedores desse poder e capazes de compreender plenamente as suas implicações, os xamãs
tradicionais são sem dúvida aqueles melhores situados para nos instruir sobre essas relações.
Tendo nos revelado a dimensão mítico-ritual da tecnologia moderna, a sua função "axial" como
perspectiva privilegiada a partir da qual o conhecimento do cosmos e o controle de seus
elementos e forças ocultas se torna possível – para benefício de alguns e prejuízo de outros,
necessariamente –, o conhecimento xamânico tradicional pôde nos colocar em condições de
verificar como tudo isso se reflete no xamanismo da música eletrônica.

O devir-xamanismo da música eletrônica


De imediato, é preciso admitir que há um descompasso entre o xamanismo de que falam os DJs e
o xamanismo indígena como este é apresentado pela Antropologia. Já vimos a ironia com que
Toop tratou a idéia de que possa haver algo de xamânico na música eletrônica,8 e de fato é difícil
não questionar a legitimidade daquilo que parece ser, à primeira vista, um misticismo excessivo
do discurso nativo. Essa resistência foi notada também entre DJs e artistas,9 entre admiradores de

5
Mauss e Hubert (1974:170).
6
Benjamin (1994:95).
7
Garcia dos Santos (2003b:186). Como mostra a "terceira lei de Clarke" – "Qualquer tecnologia suficientemente
avançada é indistinguível da magia." (Clarke 1991:xii) –, a situação praticamente se inverteu em um século. Mas
vale notar que mesmo concebendo a magia como uma proto-técnica a ser superada, o texto de Mauss e Hubert
ainda assim evidencia a relação perene entre ambas.
8
Cf. na Introdução a terceira parte da seção "A definição do tema desta pesquisa", acima.
9
Encontramos alguns exemplos de DJs e artistas que se opõem em maior ou menor grau à aproximação entre DJs e
xamãs. A DJ e produtora australiana Loizou, por exemplo, afirma: "Eu conheci muitos DJs que enfiaram na cabeça
que o fato de serem DJs faz deles semi-deuses ou qualquer outra bobagem que começou com o livro Cyberia de
Douglas Rushkoff [cf. Rushkoff *1994] e sua teoria do tecnoxamanismo. Aquela teoria deveria ser abandonada
como uma noção histórica dos anos 90." (Loizou *2005). Segundo o videomaker Don Foresta: "Tecnoxamanismo é
[...] uma idéia hipertrofiada do poder mágico do artista. Ainda estou para ver algum de nós que trabalhamos no
campo das artes e das novas tecnologias andar sobre a brasa ou curar os doentes. Não deixemos que esse tipo de
hipérbole e distorção da linguagem confunda ainda mais o papel extremamente importante do artista frente às
novas tecnologias." (in: Scott *1995; cf. Green 2001:2) O DJ de Illbient Spooky constata que "[m]uitos vêem o DJ
como um xamã", mas acredita "que ele é mais um pós-xamã", pois "[a] narrativa se torna tão refratada e difusa que
cada pessoa na sala se torna seu próprio guia" (DJ Spooky, in: Radio-V *1999). O DJ de Techno Camilo Rocha,

226
música eletrônica e outras pessoas em geral10 e entre alguns teóricos atentos às complexidades do
tema.11 À primeira vista, somos forçados a concordar com os críticos dos neo-xamanismos: se

quando questionado sobre o assunto, disse considerar "meio viagem essa associação" entre DJs e xamãs: "O xamã
é alguém que tem poderes de cura, e tudo mais. É uma coisa mais mística, acho que... é exagerado [chamar o DJ de
xamã]... Acho que o DJ consegue fazer uma conexão espiritual com as pessoas no sentido de tocar uma música que
as pessoas gostam, se emocionam com essa música... [...] Nada de começar a ficar muito místico na história... Os
psicodélicos é que devem gostar dessa associação de DJ-xamã [risos]. Mas eu não sei... [...] Acho que o DJ não
deve se considerar nenhuma entidade mística." (Camilo Rocha, entrevista 10 de maio de 2003). Outro DJ refratário
à idéia é o superstar Moby, que não acredita ter o poder atribuído aos xamãs e para quem "não há nenhum mito
envolvido na prática" (Moby, in: Ross et al. 1995:72).
10
É fácil encontrar na Internet depoimentos como: "algo me diz que [a música Techno] é um ataque à experiência
xamânica", "uma profanação e trivialização dos ritmos sagrados e dos sentimentos associados a eles" (depoimento,
in: Clarke et al. *1995); "Espiritualidade não tem nada a ver com a cena rave. São apenas pessoas pirando e
achando que estão tendo uma experiência espiritual quando na verdade provavelmente nunca tiveram uma na vida.
[...] [N]ão dá pra comparar [...] culturas usando drogas como religião [...] com pessoas pagando para entrar em um
clube ou indo para uma rave no campo e escutando o batidão do Techno ou da House." (Krispy, in: Lang 1996:8);
"qualquer relação entre tecnologia e espiritualidade é construída por hippies do passado que agora querem disfarçar
seu sentimento de culpa pela sua atual relação com o capitalismo" (Florian Rötzer, in: Scott *1995); "Música
Techno é apenas dança e diversão [...] O que me incomoda é toda essa verborragia absurda e pretensiosa dos
músicos de Techno sobre espiritualidade, xamanismo e parapsicologia, coisas que eles evidentemente não
conhecem e sobre a quais eles tampouco se importam. Se eles querem descobrir mais sobre sua própria natureza
espiritual, eles deveriam ir em frente. Mas se querem apenas se divertir, então eles deveriam ir em frente e parar de
fingir que enfiar três notas em um seqüenciador e ficar mexendo no botão de regulagem é uma experiência
profunda e cheia de significado." (Martin Wilson, in: Clarke et al. *1995)
11
Becker e Woebs, por exemplo, atribuem a tendência a associar DJs a xamãs à "sentimentalização norte-americana
da cena dos DJs, com sua necessidade de um modelo controlador que elabore cerimônias especiais e padrões de
comportamento" (Becker e Woebs 1999:59). Sobre a "privatização do êxtase e a disponibilização fácil da opção
xamânica para o cultuador socialmente irrelevante", Hermínio Martins afirma: "A privatização do êxtase (junto
com a privatização de todo o resto), [...] a disseminação daquilo que se poderia chamar êxtase em pronta entrega
[ecstasy on demand] para todos, é uma das principais indústrias de nossos tempos atuais", e o "fenômeno das
'raves'" parece "revelar a necessidade permanente de um mínimo de compartilhamento das solidões extáticas afinal,
mesmo em uma época de individualismo radical. [...] Em certo sentido, qualquer um hoje pode ser um xamã, mas
um xamã sem uma comunidade, um tipo paradoxal de auto-xamã [...] [que] não precisa se envolver com ninguém
ou assumir responsabilidade por qualquer um ou qualquer coisa" (Martins 2005; itálicos no original). Massimo
Canevacci também se mostra cético sobre o assunto: "Uma rave na metrópole não produz alteração xamânica",
"[n]enhum 'alterado' das nossas metrópoles pode reviver a viagem xamânica" exceto como "metáfora empoeirada
sem sentido e cheia de mal-entendidos; ou pior, como difusão de uma higiênica New Age" (Canevacci 2004:8).
Vale mencionar ainda a entrevista de Narby a um jornalista musical em ocasião de sua apresentação sonora
Amazonia Ambient Project (em conjunto com o grupo de Rock eletrônico The Young Gods, que já havia servido
como trilha sonora para as experiências teóricas do antropólogo; cf. Narby 1998:172 nota 1; Matias *2004a,
*2004b) em São Paulo (Sesc Paulista, dias 3 e 4 de julho de 2004), na qual ele fez os seguintes comentários
(baseados, vale notar, numa sinopse improvisada do argumento central de Narby e Huxley 2001): "Acho que é
muito importante [...] tomar cuidado com as palavras. Se você pegar a palavra 'xamã', verá que é uma palavra bem
complicada: ela vem da Sibéria e [...] foi apropriada por ocidentais que não tinham xamanismo em sua cultura.
Xamanismo vem de culturas sem texto. São pessoas de culturas com texto que pegaram essa palavra e colocaram
em seus textos, e a transformaram num rótulo transcultural sobre práticas que eles viam em outras culturas – na
verdade, as práticas menos ocidentais que eles encontraram. As pessoas que primeiro começaram a usar as palavras
'xamã' e 'xamãnismo' [sic] em linguagens ocidentais foram padres, que o viam como atividades do demônio. A
palavra 'xamã' entrou no vocabulário ocidental como algo negativo. Uma das primeiras definições racionais da
palavra xamã surgiu em uma enciclopédia do século 18, que definia 'xamã' como 'um impostor que diz conversar
com o demônio'. Finalmente, a palavra começou a ser usada de forma mais neutra por antropólogos no século 20
como 'uma pessoa que, por profissão e em nome da comunidade, entra em contato com espíritos'. Músicos de
rock'n'roll não agem em nome da comunidade nem entra[m] em contato com espíritos, mas trabalham com estados
de transe. Os xamãs também fazem isso, mas isso não quer dizer que Mick Jagger seja um xamã. [...] Mick Jagger
cura as pessoas? [...] Ou mesmo [...] ele diz comunicar-se com espíritos? Porque é isso que os xamãs fazem. Por

227
nos basearmos naquilo que já sabemos sobre o xamanismo tradicional, então o discurso dos
defensores do xamanismo da música eletrônica parece ser um discurso inconsistente sobre
práticas que não possuem o poder que lhes é atribuído. Essa poderia bem ser a conclusão desta
tese, caso nos contentássemos em comparar discursos (o nativo sobre o xamanismo na música
eletrônica com os indígena e antropológico sobre o xamanismo tradicional). Essa é de fato, a
conclusão a que muitos chegaram, e certamente teríamos muito respaldo acadêmico e teórico.
Não obstante, apesar do fato incontestável de que as funções de um DJ não podem ser
equiparadas àquelas de um xamã indígena sem distorcer tanto estas quanto aquelas,
consideraríamos esta pesquisa de pouca valia se ela se limitasse a confirmar essa conclusão, que,
como vimos, já era senso comum entre os críticos da relação desde muito antes de começarmos a
pesquisá-la. Seria preciso ir além disso que já se sabe sobre o fenômeno, motivo pelo qual
decidimos, ao invés de deslegitimar um discurso que contraria uma teoria estabelecida, levá-lo a
sério, ou seja, aceitar a sua realidade, o que implicou assumir que se num primeiro momento ele
pode parecer incongruente com a teoria de uma realidade conhecida, isso é na verdade um sinal
de que ele se refere a uma realidade ainda por ser descoberta pela teoria.12 Para isso, pareceu-
nos útil conhecer o que o xamanismo indígena contemporâneo tinha a dizer sobre a tecnologia
moderna.
Existe uma farta literatura favorável à relação entre música eletrônica e xamanismo:
pesquisadores, teóricos e nativos muito mais interessados em construir algo a partir da relação do
que em deslegitimá-la com base em algum conhecimento já estabelecido.13 No entanto, apesar

que não chamar um músico de rock de músico de rock, ou alguém que trabalha com estados de transe de alguém
que trabalha com estados de transe? Assim, xamãs são pessoas na sociedade indígena, uma pessoa que comunica-
se com os espíritos em nome da comunidade. E você tem os neo-xamãs, que são as pessoas que bebem ayuasca nas
cidades, que não atuam em nome da comunidade, que dizem falar com os espíritos e que podem estar até mesmo
curando pessoas. São rótulos diferentes e eu acho importante usá-los com cuidado." (Narby, in: Matias *2004b)
12
Lembramos aqui de uma valiosa fórmula antropológica exposta por Mauro W. Barbosa de Almeida em um
contexto diverso (sua ótima crítica a Sokal), mas muito oportuna também aqui: "quando ouvimos do interlocutor
algo que parece obviamente um absurdo, [...] devemos adotar a hipótese provisória de que o interlocutor diz algo,
sob a condição de que nos esforcemos para descobrir as condições sob as quais a fala do interlocutor faz sentido"
(Barbosa de Almeida 1999:6).
13
Na bibliografia aqui pesquisada, referências diretas (e favoráveis) à relação entre música eletrônica e xamanismo
foram encontradas em: Ross et al. (1995:72); Toop (1995:221, 225-38, 250-1 e 277-80); Bull (1997:2); Palomino
(1999:140-1); Becker e Woebs (1999:64-5); Reynolds (1999:35, 150-6, 216, 306); Fritz (1999); Hutson (1999,
2000); Shapiro (2000d:61); Marcus (2000:161, 164); Reighley (2000:11); Brewster e Broughton (2000:5-7, 62,
373, 409); Green (2001); Jouvenet (2001:5, 9); Vitebsky (2001a:153); Neill (2002:6); Saldanha (2002:51, 54-5);
McAteer (2002); Duarte de Souza (2001:64-8); Farrugia (2004:241); Ferla (2004:41); Inkinen (*1994); Rushkoff
(*1994:118, 121, 124-5, 131-6); Scott (*1995); Mizrach (*1996a, *1996b, *[s.d.]); Vianna (*1997); Castle
(*1998); Lopiano-Miscom (*1998); Fry (*1999a, *1999b); Miller (*2001); além da seção "Technoshamanism:
Spirit of Raving archive" do site Hyperreal: <http://www.hyperreal.org/raves/spirit/Technoshamanism.html>. Não
incluímos aqui as muitas outras referências favoráveis indiretas à relação (por exemplo, à experiência do êxtase, do
transe, ou à função ritual da música e das técnicas dos DJs).

228
dessa literatura confirmar a força persuasiva da relação entre xamanismo e música eletrônica, não
encontramos nela nenhuma pesquisa realmente aprofundada sobre as complexidades do
xamanismo indígena. Sem exceção, essa literatura favorável à relação entre música eletrônica e
xamanismo, quando se dá ao trabalho de fazer alguma referência ao xamanismo indígena, limita-
se a citar superficialmente fontes recorrentes (geralmente Eliade ou antropólogos como Victor
Turner, Michael Harner ou Carlos Castañeda), sem nunca questioná-las seriamente, tampouco
elaborar qualquer teoria acerca da própria relação (feita à revelia das próprias fontes) entre elas e
a música eletrônica. Tudo se passa como se o xamanismo indígena fosse uma instituição arcaica
do passado (apesar de presente no mundo todo) cujas relações com a música eletrônica não são
um problema a ser pesquisado, mas sim uma verdade a ser legitimada ou contestada. Já vimos
acima como a visão do discurso nativo sobre o xamanismo indígena se limita a uma imagem
estereotipada de índios entrando em transe ao redor da fogueira sob o efeito de drogas e música
repetitiva para satisfazer a alguma necessidade universal e primordial da humanidade.14 Dissemos
então que nosso interesse não era avaliar a consistência desse discurso frente ao discurso
antropológico sobre xamanismo, mas sim compreender a experiência concreta que lhe dá sua
própria consistência. Mas agora não falamos mais do discurso nativo e sim das teorias que
procuram analisá-lo. Parece-nos insuficiente a maneira como o xamanismo indígena aparece na
literatura sobre o xamanismo da música eletrônica, como se o xamã fosse uma espécie de
"ancestral longínquo" do DJ, as suas técnicas do êxtase sendo análogos "arcaicos" daquelas
mobilizadas pelos DJs e sem nenhuma relação com as máquinas e tecnologias modernas, e seus
objetivos e funções sendo facilmente (pois superficialmente) equiparados.
Um bom exemplo desse tratamento insuficiente do xamanismo indígena são os textos de
Scott R. Hutson nos quais o antropólogo defende a necessidade de "estudos sérios" sobre a
dimensão ritual das raves.15 Em um artigo intitulado "Tecnoxamanismo: cura espiritual na
subcultura rave",16 Hutson assume que "o DJ age como um xamã que, auxiliado por símbolos-

14
Cf. Quadro 6, acima.
15
Hutson (2000:37).
16
"Technoshamanism: Spiritual Healing in the Rave Subculture" (cf. Hutson 1999). Aproveitamos para registrar que
a invenção do termo "tecnoxamanismo [technoshamanism]" é normalmente atribuída ao tecnoxamã auto-
proclamado Fraser Clark (cf. Hutson 2000:38), que assinou a seguinte declaração: "Eu inventei a palavra
[tecnoxamanismo] (em 1987, eu acho) [...]. Naquele ano eu usei tecnoxamã para descrever o papel do DJ na rave.
[...] Basicamente, o DJ se encarrega do clima/estado de espírito do grupo. Ele sente quando chega o momento de
elevar o clima, de abaixá-lo etc., assim como o xamã fazia nos bons e velhos tempos da tribo [in the good ol' tribal
days] (que estão bem vivos, é claro, fora do ocidente). [...] Tecnoxamanismo é usar a tecnologia, a mídia [...] para
ajudar a espalhar a vibe, o meme, mapeando a tendência do caminho a seguir" (Fraser Clark, in: Schneider et al.
*1993).

229
chave, guia os ravers em uma viagem extática ao paraíso – um estado pré-social não-diferenciado
de communitas" – e que ele "serve como um modelo do lugar das máquinas no mundo e de como
a alma pode ser integrada a elas".17 No entanto, é frustrante constatar que a única referência ao
xamanismo indígena que se pode encontrar em seu artigo é a afirmação sumária de que "o papel
do tecnoxamã é consistente com a definição antropológica do xamã".18 Em outro artigo,
publicado no Anthropological Quarterly, ele afirma que "a rave pode ser conceitualizada como
uma forma de cura comparável tanto à cura xamânica extática documentada em etnografias de
sociedades não-ocidentais de pequena escala quanto a experiências espirituais em subculturas
ocidentais modernas".19 No entanto, essa documentação etnográfica só aparece numa breve
discussão sobre a neurofisiologia do transe (que mistura estudos de laboratório com ligeiros
exemplos etnográficos) e em um parágrafo no qual rituais Huichol (México) e raves são
colocados lado a lado com o objetivo de mostrar as suas semelhanças.20 Apesar de concordarmos
quanto à possibilidade dos paralelos (afinal, eles são baseados no próprio discurso dos ravers,
que têm motivos para fazer a relação), acreditamos que os Huichol (e outros povos xamânicos)
têm muito mais a oferecer do que apenas uma legitimação etnográfica do discurso dos ravers.
Outro exemplo que parece-nos representativo dessa literatura sócio-antropológica sobre o
xamanismo da música eletrônica é uma apresentação de Dave Green sobre "tecnoxamanismo", na
qual ele pretendeu "explorar as conexões entre trajetórias culturais contemporâneas, xamanismo
tradicional e tecnoxamanismo". Argumentando que o "tecnoxamanismo se baseia no mesmo tipo
de inspiração espiritual e artística que sustenta o xamanismo tradicional", que se resume à
"dissolução de fronteiras" através de um "estado xamânico de consciência", ele conclui que
"tecnoxamãs parecem ir além de retradicionalizações superficiais da prática xamânica pré-
moderna, antes [...] deslocando essas práticas através do uso da tecnologia [...] como um portal
para os estados discursivos e cognitivos alterados da matriz antropológica pré-moderna".21 Aqui,
como em Hutson, apesar de não discordarmos, a princípio, da proposta do autor, não vemos

17
Hutson (1999:54, 74).
18
Hutson (1999:43). Ele se refere aqui ao clássico do neo-xamanismo de Michael Harner, The Way of the Shaman
(New York: Harper and Row, 1980).
19
Hutson (2000:36).
20
"Em suas viagens, os Huichol e os ravers se tornam 'Um' com o mundo. Fronteiras entre jovens e velhos, homens
e mulheres, líder e seguidores são quebradas. [...] Assim como ravers voltam da festa com transformações
espirituais positivas, os Huichol que completam a caça ao peyote alcançam unidade e comunidade [...] e se
asseguram, através de visões, de que o mundo é um lugar feliz. [...] Em suma, tanto ravers quanto os Huichol
recebem visões cheias de esperança e positividade sobre a vida em tempos desconjuntados." (Hutson 2000:44)
21
No original: "a gateway into the altered discursive and cognitive states of the premodern anthropological matrix"
(cf. Green 2001:1, 11).

230
como o "xamanismo tradicional" pôde contribuir com ela senão como uma maneira de confirmar
(novamente, por referências sumárias e definições genéricas) aquilo que já se sabia desde o início
através do próprio discurso dos tecnoxamãs e legitimar esse discurso com um lastro etnográfico
que consideramos pouco produtivo por ser baseado em uma visão estática do xamanismo, como
se xamãs contemporâneos não usassem tecnologias análogas às usadas pelos tecnoxamãs em seus
rituais. Em suma, acreditamos que um "estudo sério" sobre o xamanismo da música eletrônica
deveria fazer mais do que estabelecer paralelos sumários e superficiais entre práticas xamânicas
indígenas tradicionais e práticas xamânicas não-indígenas contemporâneas. Afinal, se por um
lado o xamanismo dos DJs nunca precisou de nenhuma confirmação etnográfica tradicional, por
outro as transformações do xamanismo indígena contemporâneo provam que ele já está muito
mais próximo daquilo que esses autores chamam de "tecnoxamanismo" do que eles parecem
perceber.
Não haveria no xamanismo praticado atualmente pelos povos indígenas nada a ser
buscado além de uma confirmação do discurso nativo? Não poderia uma pesquisa mais
aprofundada das relações dos xamãs indígenas com a tecnologia e as máquinas modernas
contribuir para a compreensão do xamanismo da música eletrônica, não apenas confirmando a
sua consistência mas indo mesmo além do seu discurso atual, explorando suas virtualidades,
experimentando com ele? Desde que superamos a busca equivocada por "avaliar" o xamanismo
da música eletrônica a partir do conhecimento antropológico sobre o xamanismo indígena, nossa
pesquisa deste último se tornou um meio de colocar aquele em perspectiva, de experimentar com
ele, de explorar novas conexões. Com isso, o próprio xamanismo indígena deixou de ser um
padrão com relação ao qual o xamanismo da música eletrônica pudesse ser avaliado e passou
também a ser colocado em perspectiva. Ambos foram colocados em variação a partir do próprio
esforço em relacioná-los, o xamanismo da música eletrônica passando a ser considerado em um
contexto mais amplo do que o habitual na teoria e o indígena sendo visto não mais como um
traço do passado que viria legitimar o presente, mas sim como a mais avançada técnica indígena
para lidar com o presente e prosseguir rumo ao futuro.
Os xamãs indígenas contemporâneos nos ajudaram a conhecer um lado de nossas próprias
máquinas que normalmente nos escapa: as máquinas como concretização e distribuição da
capacidade xamânica de captar forças imperceptíveis, difusas e incontroláveis e torná-las
perceptíveis e direcionáveis, de maneira controlada, para fins específicos. Criando
simultaneamente uma distância do operador com relação às forças que ele manipula e uma
conexão controlada com elas, as máquinas assumem, no discurso e na prática dos xamãs
231
contemporâneos, a função de um novo axis mundi: uma perspectiva privilegiada sobre o novo
mundo no qual eles se encontram, capaz de organizar suas partes numa disposição
particularmente apropriada à ação desejada. Mas se o devir-máquina do xamã nos propõe um
novo conceito de máquina, ele também nos propõe um novo conceito de xamanismo. Uma vez
rodeado por máquinas – empregando-as para acumular energia espiritual, comunicar-se com o
mundo espiritual, receber suas mensagens sonoras e visuais – e, não raro, transformando-se nelas,
o xamã revela um aspecto muito especial de sua operatória: o fato de que aquilo que
normalmente chamamos de sobrenatural ou espiritual, os outros níveis cósmicos com os quais o
xamã se comunica, são domínios tão reais e concretos quanto o são os pólos emissores e
receptores de mensagens eletromagnéticas (televisões, câmeras, rádios, microfones etc.), ou
mesmo as diferentes cidades e países colocados em contato por máquinas movidas a motores
(lanchas, automóveis, aviões etc.). Em outras palavras, no contato dos xamãs com as máquinas,
as suas técnicas do êxtase se mostraram muito mais próximas do cotidiano urbano moderno do
que jamais se poderia imaginar. De técnicas místicas e misteriosas "que a mentalidade moderna,
dessacralizada, dificilmente imagina"22 exceto pela chave da religiosidade arcaica, elas passam a
ser técnicas para colocar em contato regiões específicas do espaço e do tempo, um contato
necessário para a realização de fins específicos como a cura, a previsão e o controle – enfim, um
acesso técnico a um poder socialmente relevante sobre a realidade.
Pode ser estranho afirmar que um sinal de televisão de um país distante tem a mesma
natureza que uma mensagem recebida do mundo dos espíritos, ou que uma viagem de avião a um
país longínquo é comparável a um vôo extático iniciático, mas tudo depende da maneira como
essas experiências são vividas. Elias Canetti já disse que nós, modernos, não temos mais mitos;23
mas o motivo disso não poderia ser o fato de que vivemos, como os próprios índios o dizem, para
o bem ou para o mal, no tempo mítico ele mesmo? Se, como argumentamos, o xamã indígena

22
Eliade (1998:497).
23
"Com efeito, reconhece-se, entre outras coisas, que tudo já fora preconcebido nos mitos: o que hoje, com
desembaraço, tornamos realidade são idéias e desejos antiqüíssimos. No entanto, no que toca nossa capacidade de
inventar novos desejos e mitos, estamos deploravelmente mal servidos." (Elias Canetti, in: Garcia dos Santos
2003b:71-2). Garcia dos Santos continua, sintetizando uma das principais idéias que norteiam esta pesquisa: "Se
estamos, na verdade, concretizando aquilo que a humanidade imaginou lá para trás, e se não conseguimos ter
nenhum mito novo, temos um problema aí para o futuro. [...] Por que não tentar olhar para o lado e, se
conseguirmos diminuir nossa arrogância, perceber que poderíamos fazer pontes positivas, conexões
interessantíssimas e novas relações com os conhecimentos de todos esses povos de culturas tradicionais que ainda
existem e são tesouros vivos da humanidade? E como fazer isso se fazemos genocídio com eles [...], se tiramos
deles as condições para continuarem se desenvolvendo? [...] É interessante perguntar: se não somos mais capazes
de inventar nenhum mito [...], por que acabar com aqueles que têm o pensamento mítico? [...] [E]staremos
destruindo possibilidades de construção de mundos possíveis." (Garcia dos Santos, in: CTeMe 2005a:15-7; cf
2005b:173-5)

232
encontrou nas máquinas concretizações parciais e tecnicamente manipuláveis de suas
capacidades e poderes que passam a ser acessíveis aos não-xamãs, então o que se observa é,
como já vimos, uma atualização tecnológica do tempo mítico através da distribuição tecnológica
do xamanismo. Nessa nova forma, o xamanismo não deixa de existir e nem perde sua
importância, apenas passa a funcionar de outra maneira, distribuída e geralmente parcial: cada
máquina materializando diferentemente técnicas do êxtase que antes eram concentradas em seu
corpo individual. Há, sem dúvida, um devir-xamanismo da música eletrônica. Porém,
diferentemente da tendência dominante no estudo do tema (e no próprio discurso nativo), que
tende a procurar o nexo desse devir na equiparação formal entre o indivíduo DJ e o indivíduo
xamã tradicional – como se já soubéssemos o que é um "DJ" e o que é um "xamã" mesmo antes
de saber o que é o xamanismo da música eletrônica –, parece-nos que ele reside muito mais na
maneira como a música eletrônica faz, de uma transformação específica da operatória xamânica,
um meio de tornar-se xamânica ela mesma. Trata-se, em suma, de um devir no qual a música
eletrônica se torna xamânica na medida em que o xamanismo se torna outra coisa e que não pode
ser reduzido àquilo que seus elementos significam fora de sua relação.

O devir-máquina do xamã
A definição perspectivista de xamanismo é particularmente elucidativa quanto à qualidade da
relação dos xamãs com as máquinas. O fato é que se o xamanismo pode ser definido como um
conjunto de técnicas de "comutação de perspectivas"24 radicadas no corpo concebido como
habitus ("um conjunto de maneiras ou modos de ser"), "feixe de afecções e capacidades",
"origem das perspectivas",25 então ao incorporarem máquinas e tecnologias modernas aos seus
"equipamentos distintivos"26 e às suas "tecnologias"27 tradicionais os xamãs acabam se
aproximando muito mais dos ciborgues modernos do que estamos acostumados a aceitar.28 Para

24
Cf. Viveiros de Castro (2002b:468).
25
Cf. Viveiros de Castro (2002b:380).
26
Cf. Viveiros de Castro (2002b:393-4).
27
Cf. Viveiros de Castro (2004:16).
28
David J. Hess (1995) e Delphi Carstens (2003) exploraram essa relação entre xamãs e ciborgues numa linha
semelhante à que aqui propomos, distanciando-se de nossa proposta apenas por repetirem aquilo que já apontamos
como sendo o principal limite de todas as pesquisas sobre xamanismo contemporâneo: o pressuposto (geralmente
implícito) de que o xamanismo indígena não trabalha com as máquinas e tecnologias modernas, como se ele fosse
um antepassado do ciborgue e do tecnoxamã e não já um ciborgue tecnoxamânico em pleno direito – o que não
quer dizer que ele seja igual aos tecnoxamãs não-indígenas, apenas que a sua diferença com relação a estes não é
aquela do passado e do presente, mas sim a de duas maneiras contemporâneas de avançar rumo ao futuro que
podem se alterar mutuamente.

233
compreender esse ponto, basta comparar a seguinte passagem do texto inaugural do
perspectivismo ameríndio:

Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal que
ativar os poderes de um corpo outro. As roupas animais que os xamãs utilizam para se deslocar
pelo cosmos não são fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de mergulho
ou aos trajes espaciais, não às máscaras de carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é
poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha.
Do mesmo modo, as roupas que, nos animais, recobrem uma 'essência' interna de tipo humano não
são meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afecções e capacidades que
definem cada animal.29

...com a seguinte passagem do texto inaugural da ciborgologia:

Se um peixe desejasse viver em terra firme, ele não poderia fazê-lo imediatamente. Porém, se
pudéssemos conceber um peixe particularmente inteligente e bem dotado, que tivesse estudado
bastante bioquímica e engenharia, fosse um mestre engenheiro e ciberneticista e tivesse à sua
disposição um excelente laboratório, esse peixe poderia ser capaz de projetar um instrumento que
lhe permitisse imediatamente viver em terra firme e respirar o ar. [...] Da mesma forma, tudo indica
que em breve30 seremos capazes de projetar sistemas de controle instrumental que permitirão aos
nossos corpos fazerem coisas igualmente difíceis.31

É verdade que enquanto os "sistemas de controle instrumental" dos ciborgólogos são conquistas
culturais que permitem ao ser humano habitar um ambiente não-humano sem que para isso tenha
que mudar sua natureza (paradigma multiculturalista), as "roupas animais" do perspectivista são
conquistas naturais que permitem ao ser humano habitar um ambiente não-humano justamente
através da transformação de sua natureza (paradigma multinaturalista). Mas o interessante aqui é
perceber como a relação dos xamãs com as máquinas está muito mais próxima da construção de
sistemas cibernéticos de comunicação e controle do que de um misticismo mimético e
representativo da tecnologia. Afinal, se, por um lado a tecnologia cibernética é usada para
permitir ao ser humano existir em ambientes não-humanos "enquanto ser humano",32 i.e., na
condição de humano, por outro o tal peixe cibernético capaz de viver e respirar em terra firme
parece muito mais próximo de um ser que, para si mesmo, é humano (com todos os

29
Viveiros de Castro (2002b:393-4).
30
Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline escreveram isso em 1960, pouco antes do primeiro vôo tripulado ao espaço
(o russo Gagarin passou quase duas horas em órbita em Abril de 1961) e cinco anos antes do primeiro passeio
"livre" no espaço (o russo Leonov ficou vinte minutos fora da nave em Março de 1965).
31
Clynes e Kline (1995:29-30).
32
Clynes, in: Gray (1995:47).

234
conhecimentos científicos, laboratórios e verbas de pesquisa de um cientista humano33), e que se
torna capaz de existir em um mundo que antes lhe parecia não-humano da mesma maneira como
vivia embaixo d'água, i.e., "enquanto humano", do que um peixe capaz de existir em um
ambiente não-pisciano "enquanto peixe".34 Os ciborgólogos podem até ter um discurso relativista,
mas a própria ciborgologia, pelo menos na sua revitalização política por Donna Haraway35
dezessete anos depois do texto inaugural de Clynes e Kline, parece ser uma ciência
perspectivista, i.e., a elaboração de técnicas e tecnologias voltadas para a ocupação de um ponto
de vista privilegiado a partir do qual é possível ver o mundo como o não-humano o vê quando o
vê como humano.
Já foi dito que os xamãs se assemelham aos ciborgues por serem, assim como estes,
"transgressores de fronteiras"36 (entre o humano e o não-humano, o natural e o cultural, a
máquina e o organismo etc.), mas pouca atenção foi dada até agora ao fato de que essa
transgressão se dá não por uma eliminação pura e simples de fronteiras, mas sim por "uma
experiência íntima" delas, de sua "construção e desconstrução".37 Como notou Haraway, a
cosmologia cibernética não propõe um mundo sem fronteiras, mas sim um mundo "subdividido
por fronteiras diferencialmente permeáveis à informação",38 uma "arquitetura de sistema" na qual
"qualquer componente [humano ou não] pode entrar em uma relação de interface com qualquer
outro desde que se possa construir o padrão e o código apropriados, que sejam capazes de
processar sinais por meio de uma linguagem comum".39 Em outras palavras, as fronteiras podem
ser transgredidas, "desde que" se descubra a lógica dessa transgressão, a "linguagem comum"
capaz de traduzir os limiares diferenciais de permeabilidade de cada uma delas. Tudo isso parece
muito próximo da definição perspectivista de mito como "lugar, geométrico por assim dizer, onde
a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e exacerbada",40 "ponto de fuga

33
E mais do que humano, o tal peixe seria provavelmente um xamã, visto que "[o] equivalente funcional do
xamanismo indígena é a ciência", "[é] o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de
partículas" (Viveiros de Castro 2002b:489).
34
Isso seria um relativismo – onde cada animal acha que todos os outros animais são, para si mesmos, iguais a ele
(um porco acharia que todos os animais se vêem como porcos, os pássaros achariam que todos os animais se vêem
como pássaros, os humanos também e assim por diante) – e não um perspectivismo – onde todos os animais são,
para si mesmos, humanos (porcos, pássaros e humanos são sempre, para si mesmos humanos) (cf. Viveiros de
Castro 2002b:485).
35
Cf. Haraway (2000 [1987]).
36
Cf. Green (2001:9), Carstens (2003:24-5).
37
Haraway (2000:107).
38
Haraway (2000:71).
39
Haraway (2000:68).
40
Viveiros de Castro (2002b:354).

235
universal",41 "origem virtual de todas as perspectivas",42 "vértice onde a separação entre Natureza
e Cultura se radica",43 "meio pré-subjetivo e pré-objetivo [...] cujo fim, justamente, a mitologia se
propõe a contar".44 Já vimos como o tempo mítico foi um tempo de criação mas também de
destruição, um tempo cuja criatividade só se manifestou após a trágica ruptura de seu fim. O que
vemos agora é que, se é no tempo mítico que as perspectivas se comunicam e se diferenciam (se
comunicando justamente porque e na medida em que vão se diferenciando, e não apesar disso),
então ele é o análogo perspectivista da "linguagem comum" cibernética que permite a
transgressão, pelas máquinas, das fronteiras ontológicas não apenas entre os seres vivos, mas
também entre estes e as máquinas. Se para o xamã trata-se de usar o acesso ao tempo mítico
como conversor de perspectivas e assim transitar entre elas "sem perder sua própria condição de
sujeito",45 para o ciborgue trata-se de fazer de uma "linguagem comum" uma "linguagem
política" que lhe permita "agir de forma potente".46
Por outro lado, se na ciborgologia, assim como no xamanismo, a máquina é "um aspecto
de nossa corporificação",47 isso não se deve a uma eliminação das diferenças entre o organismo e
o mecanismo, mas sim à descoberta de uma "linguagem" ou de um "conversor" capaz de deslocar
diferencialmente essas diferenças, o híbrido máquina-organismo resultante sendo sempre uma
construção histórica e contingente: assim como, enquanto ciborgues, "somos responsáveis pelas
fronteiras; nós somos essas fronteiras",48 o xamã "utiliza – e, literalmente, encarna – as diferenças
de potencial inerentes às divergências de perspectivas que constituem o cosmos: seu poder, e os
limites de seu poder, derivam dessas diferenças".49 No perspectivismo, o corpo é a origem atual
de todas as perspectivas cuja origem virtual é o mito, ele é "o lugar de emergência da diferença",
"o lugar da perspectiva diferenciante" e, por isso mesmo, "deve ser maximamente diferenciado
para exprimi-la completamente".50 Na ciborgologia as máquinas e mecanismos que utilizam uma
"linguagem comum" não apenas fornecem a chave virtual das fronteiras diferencialmente
permeáveis à informação mas são, em si, a construção e desconstrução atual constante dessas
mesmas fronteiras. Por isso, vemos na "função performativa" dada ao vídeo pelos índios (o papel

41
Viveiros de Castro (2002b:355).
42
Viveiros de Castro (2002b:398).
43
Viveiros de Castro (2002b:398).
44
Viveiros de Castro (2002b:355).
45
Viveiros de Castro (2002b:397).
46
Haraway (2000:107).
47
Haraway (2000:106).
48
Haraway (2000:106).
49
Viveiros de Castro (2002b:469).
50
Viveiros de Castro (2002b:388).

236
de "realizar" os eventos videografados)51 um análogo do "caráter performado mais que dado" do
corpo indígena:52 em ambos os casos, trata-se de partir de um dado excessivamente genérico (um
esquema corporal humano ainda abstrato, ainda sem equipamento distintivo, ou uma virtualidade
social ainda abstrata, ainda sem lastro na realidade social atual) e diferenciá-lo, singularizá-lo,
introduzi-lo na realidade de um mundo específico. Assim como o xamã tradicional atualiza as
potências virtuais do tempo mítico acoplando-se a um "equipamento" corporal diferente e
diferenciável que permite ao seu "esquema corporal humano" constante viver em diferentes
ambientes e o xamã indígena contemporâneo faz o mesmo com as máquinas modernas, o índio
não-xamã contemporâneo acopla-se a um sistema videográfico, torna-se um ciborgue, e assim
efetiva eventos que sem esse acoplamento correm o risco de não terem sua realidade reconhecida
no novo contexto relacional em que esses eventos se dão. Este é, propomos, um exemplo do
xamanismo tecnologicamente distribuído da contemporaneidade.53
Nota-se que não estamos aqui afirmando que o ciborgue faz com a tecnologia e as
máquinas aquilo que o xamã "fazia" com a natureza e os animais, mas sim que xamãs e ciborgues
fazem coisas análogas tanto com a tecnologia quanto com a natureza, tanto com os animais
quanto com as máquinas. Quando xamãs incorporam máquinas e tecnologias modernas em seus
rituais, incorporando assim a capacidade de assumir a perspectiva daqueles que vêem o mundo
através dessas máquinas, eles deixam de ser apenas os antepassados dos ciborgues e passam a ser
os parceiros contemporâneos deles, participando ativamente da construção e transformação de
seus poderes. Com isso, o processo de distribuição tecnológica do xamanismo anteriormente
notado ganha um novo sentido: uma vez associando-se às máquinas modernas, o xamã passa
também, como os demais ciborgues, a se misturar a elas numa ciberneticização do tempo mítico
que, ao fazer das máquinas análogos funcionais das técnicas do êxtase, transforma o componente
corporal do xamã (suas técnicas corporais) em apenas mais um componente intercambiável do
sistema. Ou talvez fosse mais correto dizer: se antes o equipamento corporal distintivo que

51
Cf. Turner (1993:101). Cf. no Capítulo 6 a seção "Um novo axis mundi?", acima.
52
Viveiros de Castro (2002b:390).
53
Se os alucinógenos são "um instrumento básico da tecnologia xamânica", uma espécie de "prótese visual"
(Viveiros de Castro 2004:16), então o ayahuasca é evidentemente "o cinema da floresta" (cf. Gow 1995; cf. no
Capítulo 6 a seção "Os xamãs e as máquinas", acima) e a câmera é possivelmente uma concretização parcial de
poderes xamânicos disponível a não-xamãs. Seria o caso de encarar o cinema como o faz Dziga Vertov, para quem
ele é a "captação da 'sensação do mundo' através da substituição do olho humano ('o olho inaperfeiçoável') pela
câmera, 'o olho aperfeiçoável'" (Michelson 1979:20), e portanto uma "investigação epistemológica" capaz de
"destruir a ilusão" de nossa percepção limitada do mundo através de recursos técnicos como o corte, a justaposição,
a alteração da velocidade do filme ou de sua seqüência (cf. Michelson 1979). Vertov transforma os híbridos
humanos-máquinas do cinema (seja o cameraman, seja o espectador, seja o produtor) em verdadeiros ciborgues
xamânicos.

237
permite ao xamã assumir a perspectiva do outro que importa era indissociável da transferência
tecnológica durante a sua iniciação, agora esse equipamento exteriorizou-se em concretizações
parciais que podem ser usadas para objetivos análogos sem qualquer transferência tecnológica
iniciática (a transferência já está como que materializada no objeto, aguardando apenas ser
ativada), bastando apenas a disposição efetiva em assumir a perspectiva da máquina.
Incorporando as máquinas e tecnologias modernas em seus rituais, os xamãs continuam fazendo
o que sempre fizeram, só que agora num contexto diferente, no qual o tempo mítico passa a ser
povoado por uma nova sobrenatureza. Se antes eram o animal e a floresta o protótipo do "outro",
se antes eram as "roupas animais" os equipamentos distintivos que os xamãs incorporavam para
manter a condição de sujeito nas relações de poder com a alteridade, agora o protótipo do "outro"
passa a ser o branco e seu mundo tecnológico e é na incorporação de máquinas como gravadores,
rádios, televisões, câmeras de vídeo, motores etc. que os xamãs alcançam o mesmo objetivo
anterior de manter a sua condição de sujeito nas relações de poder com essa nova alteridade.
Um xamã-rádio, um xamã-televisão, um xamã-cinema, um xamã-gravador, são todos
híbridos xamã-máquina, um devir-máquina do xamã. Tentamos mostrar que se por um lado esse
devir nos revela uma dimensão pouco conhecida das máquinas – que se revelam concretizações
parciais de técnicas do êxtase –, por outro ele também faz o mesmo com o xamanismo. Quando o
xamã encontra na máquina uma maneira automática de assumir a perspectiva de outrem, de
modificar suas capacidades e predisposições corporais (metamorfose) pela acoplagem de seu
corpo habitual a um objeto técnico, de ver o mundo como outros corpos o vêem sem que para
isso se tenha que fazer mais do que acionar um mecanismo automático, ele também faz do
xamanismo uma tecnologia distribuída e acessível aos não-xamãs, ou, poderíamos dizer, aos
ciborgues. Com a máquina, seria possível assumir a perspectiva de não-humanos enquanto
humanos, capacidade essa antes restrita aos xamãs conhecedores de técnicas exclusivas.54

54
Sandy Stone conta uma experiência curiosa que ilustra esse tipo de ciberperspectivismo: "Eu conectei os eletrodos
implantados no ouvido interno do gato a um mini-transmissor FM preso à sua coleira. Eu deixava o gato passear
pelos gramados e depois pegava meu receptor, colocava os fones de ouvido e 'me tornava' o gato. Gatos não
escutam como os humanos. Sua curva de resposta auditiva é completamente diferente e eles escutam bem no
campo ultra-sônico. Por isso, é claro que eu não estava realmente escutando aquilo que o gato escuta, pois minha
audição não chega até o ultra-som, mas eu tampouco estava escutando como um humano. Na região das
freqüências mais agudas de meu campo auditivo, tudo estava muito claro e alto. Dava para ouvir cada folha de
grama. Dava para ouvir cada inseto caminhando. E, é claro, dava para ouvir os ratos à distância, em estéreo. Eu
vim a entender algo da subjetividade felina." (Sandy Stone, in: Stryker 1996) Poderíamos dizer que Stone não se
tornou um gato, mas sim entrou em um devir-gato, que a transforma na mesma medida em que transforma o
(pobre) gato. Outra experiência interessante foi a de Andra McCartney, que usou um sistema de microfone,
amplificador e fones de ouvido para produzir uma espécie de corpo sem órgãos (ou, como ela preferiu definir, "um
tipo de inseto ciborgue demente"): "Enquanto gravo e monitoro nos fones de ouvido, eu tenho uma perspectiva

238
Segundo os xamãs, diferentemente deles que só alcançam essas perspectivas outras com muita
dificuldade através de técnicas específicas e restritas, através de uma certa metamorfose corporal,
as máquinas permitem que qualquer um atinja o mesmo resultado,55 bastando para isso que se
acople à máquina. Assim como o rifle dispensa o caçador contemporâneo de correr atrás de sua
caça,56 as máquinas dispensariam o xamã contemporâneo de se metamorfosear para assumir
outras perspectivas. Percebe-se que não é o xamã que assume a perspectiva das máquinas. É
justamente o contrário. É a máquina que assume a perspectiva do xamã, ou melhor, a perspectiva
que o xamã assume quando está ocupando uma perspectiva outra que a dele. Justamente por
isso, os poderes xamânicos se distribuem e se tornam acessíveis a qualquer um que se
predisponha a ativar esse potencial materializado nas máquinas, a ocupar a sua perspectiva.57 Há,
portanto, um devir-máquina do xamã, em que este se torna máquina (pois os poderes que o
definem são capturados pelo mecanismo automático) e aquela, por sua vez, se torna outra coisa
do que aquilo que entendemos por máquina, assumindo a capacidade de transportar de maneira
mecânica e automática seu operador para um ponto de vista outro que o do seu corpo habitual.
Técnicas corporais de produção do êxtase se tornam assim máquinas automáticas de produção do
êxtase. Com isso, muda o nosso conceito de máquina, mas também nosso conceito de
xamanismo. Julgar essa mudança não é trabalho para esta tese, que se limita a propor que se os

ampliada de meu entorno – mais próxima do ambiente, pois tudo está amplificado, e ao mesmo tempo separada
dele, pois minha experiência é mediada pela perspectiva do microfone. É interessante imaginar que tenho ouvidos
em outras partes do meu corpo, e tentar ouvir de lá. Já usei microfones no meu cinto, nas minhas botas, e estendi
eles até o limite de seus cabos sobre minha cabeça, como uma antena." (McCartney 2002:22). Um caso
curiosamente relacionado à visão que os próprios xamãs têm do gravador é o da gravação de vozes espirituais:
"Levando um gravador para uma região rural da Suécia para gravar o canto de pássaros [no final dos anos 50], [o
músico e produtor cinematográfico Friedrich Jürgenson] também captou vozes quase inaudíveis [...]. Em 1971, a
gravadora Pye Records [...] participou de experimentos que [...] [envolveram] uma gravação de dezoito minutos,
[durante a qual] [...] o marcador de voltagem indicava sinais constantes [...] apesar de o engenheiro não ouvir nada
nos fones de ouvido [...]. Quando a gravação foi tocada, aqueles que estavam presentes escutaram mais de duzentas
'vozes'. Essas vozes 'psicofônicas' soam como ondas de lixo aural, a conversa etérea dos peixes subliminares
capturada no murmúrio das transmissões radiofônicas da cidade morta que preenche o nosso assim chamado
silêncio [swarms of aural garbage, the aether talk, of subliminal toadfish captured in the global babble of dead city
radio transmission that fills our so-called silence]. Talvez sejam espíritos tentando nos dizer alguma coisa. Mas o
que?" (Toop 1995:269-70) Nota-se, pela dúvida de Toop, que se os poderes xamânicos são agora acessíveis a todos
através das máquinas, ainda são poucos os que sabem o que fazer com eles.
55
Seria muito apressado (e duvidoso) afirmar aqui que qualquer um que ligue o rádio escute as "músicas dos deuses"
Araweté ou que qualquer um que olhe uma fotografia veja os espíritos do xamã do Nepal (cf. no Capítulo 6 a
seção "Os xamãs e as máquinas", acima). No entanto, seria igualmente apressado ignorar as comparações feitas
pelos próprios xamãs. Nosso esforço aqui é para ir além da simples comparação e permitir a modificação dos
próprios termos em que ela se dá.
56
Referimo-nos ao mito Txukarramãe da origem do revólver (cf. Wilbert e Simoneau 1984:257-9) citado na seção
"Mito e tecnologia" do Capítulo 5 (nota de rodapé 83), acima.
57
Encontramos pelo menos uma formulação dessa idéia no discurso nativo, mesmo que na forma de uma opção que
não consideramos necessária: "É realmente possível que sejamos todos xamãs? Ou nenhum de nós é, e o impulso
xamânico agora está materializado em nossas máquinas?" (Chris Caines, in: Scott *1995)

239
híbridos humano-máquina já são uma realidade incontestável no xamanismo indígena
contemporâneo, isso já nos sugere um lugar possível da tecnologia no xamanismo da música
eletrônica: diferente do que habitualmente se pensa, as máquinas modernas não vêm substituir as
técnicas arcaicas do êxtase, mas sim disponibilizar o acesso a técnicas efetivamente
contemporâneas do êxtase.

240
Capítulo 8
O som de uma máquina

241
242
111111111111111111111111111111110000
111111111111111111111111111111110000
11111111.1

1
"[M]úsica eletrônica [...] [é] a contradição (ou seja, tensão e relaxamento) entre a pulsação repetida e a não
pulsação. [...] Se [você] ler cada 'um' como um bumbo, e cada zero durando o equivalente a quatro bumbos, vai
sentir a estória da pulsação ou não. Cada 'um' é um bumbo, cada zero é um compasso sem bumbo, onde a música
'flutua'." (EAR *2001).

243
244
Uma vez alerta ao discurso nativo e também à dimensão xamânica das máquinas, foi preciso
fazer uma imersão na experiência da música eletrônica de pista para compreender a
especificidade de seu xamanismo. Essa fase da pesquisa exigiu um distanciamento estratégico do
conhecimento já estabelecido sobre o tema e uma abertura aos potenciais imanentes da música. O
que acontece quando se ouve música eletrônica de pista underground? Foi necessário um esforço
metódico para desbloquear o pensamento e o corpo, para se deixar afetar por essa música, pela
experiência de dançá-la e ser movido por ela, para deixar com que a própria experiência de
dançar música eletrônica conduzisse o pensamento e a reflexão por rumos inesperados e
inacessíveis por quaisquer outros meios. Foi preciso, enfim, deixar de pensar sobre a música
eletrônica e se deixar pensar por ela:2 sendo afetado pelas suas intensidades, sendo acelerado e
desacelerado por suas velocidades, sendo modulado por suas freqüências, sendo capturado por
seus ritmos. Logo de início uma característica extremamente importante desse tipo de música se
destacou: sua qualidade maquinal, artificial. É comum ouvir que a música eletrônica de pista
parece o som de uma "panela de pressão", de uma "máquina de lavar roupas", de uma
"betoneira", ou que as pessoas que dançam esse tipo de música parecem "robozinhos".3 Tais
comparações têm geralmente uma função crítica e irônica, como se a intenção fosse ridicularizar
pessoas que abrem mão de sua própria humanidade, confundindo sons inexpressivos de máquinas
automáticas com música dançante.4 Bergson não deixa dúvidas quanto à lógica desse tipo de
crítica irônica: trata-se de uma tentativa de corrigir, pela ridicularização e o riso, um
comportamento mecânico que, aos olhos da coletividade, parece ir contra toda a flexibilidade e
adaptabilidade que caracteriza a vida (cf. Imagem 7).5

2
Uso aqui a formulação dificilmente traduzível de Murphy e Smith (2001): "O que eu ouço também está pensando
[What I hear is thinking too]".
3
Desde pelo menos a breakdance dos anos 80, conhecida como a "dança do robozinho" (DJ Hum, in: Assef
2003:90), até os "movimentos robóticos" comuns do Techno (cf. Jerrentrup 2000:71), música feita com máquinas
parece sempre ter motivado movimentos corporais repetitivos e aparentemente puramente mecânicos. Mas
Guattari, também nos anos 80, logo percebeu que "a música e a dança break, todas essas danças que são hiper-
territorializadas e hiper-corporais [...], ao mesmo tempo, nos fazem descobrir espectros de possíveis utilizações,
traços de corporalidade nunca antes imaginados" (Guattari, in: Stivale 1985).
4
O uso de onomatopéias para descrever o som das músicas é apenas um dos exemplos do potencial cômico do
encontro da tecnicidade sonora não-humana da música eletrônica com a expressividade inevitável de nossos
recursos comunicativos humanos orais e verbais. Ao longo dessa pesquisa encontramos várias, dentre elas: "putz
putz putz putz"; "tum-tss tum-tss tum-tss tum-tss"; "chak chak chak chak"; "tchok tchok tchok tchok"; "pah-shhhh
klack pah-shhhh klack pah-shhhh klack pah-shhhh klack"; "tum tum tum tum"; "pá pá pá pá"; "turududumts
turududumts turududumts turududumts"; "tum-tchi-tum-tchi-tum-tchi-tum-tchi"; "ch-ch-ch-ch"; "doof-doof-doof-
doof" etc.
5
"O rígido, o estereótipo, o mecânico, por oposição ao flexível, ao mutável, ao vivo, a distração por oposição à
atenção, enfim o automatismo por oposição à atividade livre, eis em suma o que o riso ressalta e gostaria de
corrigir." (Bergson 2001:97-8) A valorização da criatividade vital característica da filosofia bergsoniana não deve,
no entanto, ser confundida com uma desvalorização da criatividade técnica, tendo sido ele um constante defensor

245
Muitos tentam corrigir esse aparente "defeito" da música eletrônica através da sua
"humanização" superficial (substituindo timbres "mecânicos" por timbres "orgânicos", ou mesmo
introduzindo deliberadamente "imperfeições" expressivas na precisão técnica espontânea das
máquinas) ou da substituição pura e simples de máquinas por instrumentistas humanos, e é
perfeitamente possível adequar a música eletrônica de pista aos parâmetros tradicionais da
melodia, harmonia e expressividade da música tradicional, como mostram as suas vertentes mais
"humanistas" e "musicais". Eshun chega a distinguir duas tendências na música eletrônica de
pista, opondo o "humanismo gospel da 'canção'" à "música da máquina metálica da 'track'",6 e
Reynolds fez a mesma distinção opondo as "expressões sentimentais derivadas do
Rhythm'n'Blues [R&B-derived tradition of soulful expression]" das "canções" ao "funcionalismo
impessoal [depersonalized functionalism]" das "tracks".7 Poderíamos mesmo localizar o início da
música eletrônica de pista atual no momento de bifurcação da musicalidade ainda convencional
que a Disco desenvolveu ao longo dos anos 70 (com seus grupos, vocalistas, artistas, melodias,
letras, refrões etc.) nessas duas vertentes distintas da House que surgiram no início dos anos 80,
uma ainda centrada na forma-canção e outra mais interessada na produção de faixas (tracks):
"discos [...] sem vocais, sem mudanças e sem estrutura de canção", "[a]penas um groove no qual
as pessoas podiam entrar".8 Nessa fase de bifurcação, as tracks ainda eram normalmente
intercaladas com canções tradicionais, que então tinham a função de resolver a tensão maquínica
que elas criavam,9 mas a partir da segunda metade dos anos 80 as tracks já passavam a delinear
uma tendência autônoma da música eletrônica de pista: elas deixavam de ser um mecanismo
complementar à canção e se consolidavam, como veremos adiante, como um novo processo de
individuação da relação som-movimento.

da necessidade de "fabricar uma mecânica que triunfasse do mecanismo" (Bergson 2005:286): "Se há um erro
quanto ao maquinismo, é o de não ser empregado suficientemente para ajudar o homem" (Bergson 1978:253).
6
Eshun (2000b:78; 1999:-6). Ele chama a primeira tendência de Soulful, que pode ser traduzido como "cheio de
alma" mas também como "plenamente de acordo com a tradição da música negra", e a segunda de Postsoul, que
pode ser traduzido como "pós-alma", "sem alma" ou como "abandonando a tradição da música negra".
7
Reynolds (1999:27, 31). Reynolds cita "Love Can't Turn Around" e "Jack Your Body" como exemplos seminais
dos lados "canção" e track da House, respectivamente, e "Acid Tracks" (cf. Exemplo Sonoro 21) e "Washing
Machine" (cf. Exemplo Sonoro 22) como exemplos da evolução do "lado maquínico, indutor do transe, da House"
(Reynolds 1999:31). Colocaríamos "House Nation" (cf. Exemplo Sonoro 23) ao lado dessas últimas duas.
8
DJ Terrence Parker, in: Fritz (1999:70).
9
"Quando a cultura House explodia em Chicago, o objetivo do DJ era levar os dançarinos a estados de furiosa
hipnose rítmica, usando tracks intermináveis de ritmos trovejantes para conduzir a pista de dança rumo ao orgasmo
da grande canção vocal. Esse estilo exigia uma constante fonte de tracks rítmicas repetitivas" (Brewster e
Broughton 2000:306).

246
Apesar de o Techno ser o estilo tradicionalmente mais ligado à tendência mais maquínica
da música eletrônica de pista,10 é possível dizer que todos os estilos podem ter vertentes mais ou
menos maquínicas, bastando para isso que a ênfase recaia sobre a funcionalidade da música na
produção da dança, e não na sua força expressiva ou narrativa.11 O que caracteriza as tracks é o
fato de serem geralmente "longas e estendidas repetições de padrões" numa "reorientação
intencional da música rumo à simplicidade e ao primitivismo".12 O próprio termo usado para
designar essas "longas e estendidas repetições de padrões" (tracks) é revelador, pois se trata
justamente de uma "pista" ou de "faixas" em uma pista, como uma auto-estrada cuja única função
é servir de suporte para uma viagem maquínica.13 Com as tracks, como já se disse, "[p]ela

10
É nesses termos que o Techno é normalmente distinguido da House: "A House é mais melódica e baseada em
estruturas musicais tradicionais com um refrão, uma ponte etc. O Techno não tem estrutura de canção, é apenas
uma track que pode passar por três ou quatro mudanças que não têm nada a ver com a melodia. House é algo que
meus pais poderiam escutar e entender, pois tem vocais. Techno não tem vocais, é instrumental e usa mais sons
eletrônicos. Outra grande diferença é que a House tentava imitar a Disco enquanto o Techno queria apenas ser
Techno e tinha uma vibe completamente diferente. Ele pegou a House e levou ela para o futuro." (DJ Terrence
Parker, in: Fritz 1999:84). De fato, Juan Atkins, um dos criadores do Techno, declarou: "Eu quero que minha
música soe como computadores conversando entre si [...]. Eu não quero que ela soe como uma banda 'de verdade'."
(Juan Atkins, in: Brewster e Broughton 2000:335). "O amor do Techno pela máquina", afirmam Brewster e
Broughton, "gerou sua obsessão por sons e não pela música, por textura e timbre e não pela forma musical"
(Brewster e Broughton 2000:335) e Reynolds comprovou que a música realmente "soa inorgânica: máquinas
conversando entre si num espaço acústico irreal" (Reynolds 1999:30). Palomino, que disse ter demorado a se
acostumar ao "som pesado" do Techno pois tinha "a House e os vocais no sangue", mostra claramente como a
"cena" paulista se dividiu, ao longo dos anos 90, entre o Techno "pesado" e "sem vocal" e a House "animada" e
"com vocais" (cf. Palomino 1999:10, 62, 88, 151, 192, 200). Fontanari propõe uma classificação dos principais
estilos de música eletrônica de pista da "cena eletrônica de Porto Alegre" que também opõe a House ao Techno
como vertentes "humana" e "maquínica" respectivamente (cf. Fontanari 2003:123).
11
É possível, por exemplo, opor as vertentes mais maquínicas da House e do Techno às vertentes mais expressivas
do Trance: "Goa Trance não é feita para mixar, pois é muito complicada [...], é mais parecida com música clássica,
com começo e fim e cheia de camadas [...]. Já as tracks de Techno e House são relativamente simples e você
precisa ter duas fontes tocando ao mesmo tempo para conseguir um som cheio" (DJ Chika, in: Fritz 1999:72).
Apesar do consenso geral quanto à tendência do Trance a seguir os padrões tradicionais de musicalidade, sendo
freqüentemente comparado ao Rock Progressivo e tendo freqüentemente "ex-roqueiros" como produtores (cf.
Zanetti *2003:15; Pimenta *2003a:21) – "Dentro de todo produtor de Trance há um roqueiro progressivo tentando
se expressar." (Reynolds 1999:203) – o estilo ainda assim tem suas próprias vertentes maquínicas, como o Hard
Trance e o Acid Trance (contra o Happy Trance e o Goa/Psy Trance) (cf. Fritz 1999:90).
12
Becker e Woebs (1999:59).
13
A idéia da track como literalmente uma "pista" ou "faixa" de movimentação foi plenamente percebida por Fritz:
"A Acid House [...] se distanciou bastante das suas raízes musicais na Disco e evoluiu para uma forma musical
interativa que criou um movimento irresistível [irresistible momentum], transportando os dançarinos numa viagem
interior" (Fritz 1999:69); "A música é cíclica e contínua e age mais como um catalisador de sua própria viagem
interior, mais um sistema de transporte do que um fim em si [...], seu efeito intencional é inspirar uma reação
física", "especialmente concebida para fazer seu corpo se mexer" (Fritz 1999:76, 79); e como disse o DJ Dave
Ralph: "Essas faixas realmente te levam a algum lugar e um bom DJ organiza esses elementos e cria uma viagem"
(in: Fritz 1999:81). Reynolds, que considera as tracks "veículos, motores rítmicos que levam o dançarino para
passear", compara as técnicas de mixagem a "dirigir um carro", e as técnicas de turntablism à "direção acrobática
[stunt driving]" (Reynolds 1999:30, 271-2). Mas além de ser uma música viajante, o Techno também pode ser visto
como "a música perfeita para viajar, [...] seus ritmos repetitivos, melodias minimalistas e modulações timbrísticas
sendo perfeitas para as constantes mudanças de perspectiva oferecidas pela viagem em alta velocidade", "seus sons
reproduzindo fielmente o disparar das sinapses forçadas a processar o fluxo incessante de informação" (Savage

247
primeira vez na história da música popular ocidental, letras, melodia e a voz humana foram
eliminadas e a música foi dominada por aquilo que as máquinas fazem de melhor: repetir padrões
rítmicos que podem prosseguir indefinidamente [that could go on and on]".14 "On And On" (algo
como "o tempo todo" ou "sempre em frente"), foi justamente o título dado àquela que é
normalmente considerada a primeira track.15 Lançada pelo DJ Jesse Saunders em 1983, a faixa
transformou em um produto aquilo que até então era um processo, o hábito do DJ de usar o pulso
constante, preciso e simples de um sintetizador de ritmos como base sobre a qual sobrepor
trechos específicos de músicas.16
Mas enquanto algumas vertentes da música eletrônica de pista se voltaram mais para a
estética maquínica e a eficácia funcional na produção da dança, outras, mais fortemente ligadas à
forma canção, caracterizaram-se por um resgate de valores musicais tradicionais e expressivos.
Nas vertentes menos maquínicas da House, por exemplo, mais ligadas à estética da Disco17 (que
sempre foi marcada pelas letras, pelos vocais e por instrumentação convencional), pode-se
elogiar um disco dizendo que ele soa "orgânico" e que é "praticamente o disco de uma banda".18
O Drum'n'Bass, um estilo surgido nos anos 90, também possui vertentes menos maquínicas,
fortemente ligadas às estéticas Funk e Reggae dos anos 60 e 70 (com presença forte de vocais,
letras e instrumentação convencional19), nas quais é um elogio dizer que uma música soa

1993:2) Não custa considerar também o fato de que o termo disc jockey (cuja primeira menção em registro é uma
matéria jornalística de 1941; cf. Brewster e Broughton 2000:27) significa, entre outras coisas, o "condutor" dos
discos (como um jockey conduz um cavalo; cf. Thornton 1996:61-2; Brewster e Broughton 2000:27-8), e que os
erros de mixagem são freqüentemente descritos como "desastres ferroviários [train wrecks]" (Reighley 2000:2,
110).
14
Jones (*1994:7).
15
Cf. Reynolds (1999:36), Brewster e Broughton (2000:306-9), Reighley (2000:109), Shapiro e Lee (2000:5), Eshun
(2000b:75).
16
Ele conta que "freqüentemente levava a bateria eletrônica para o clube e deixava ela tocando a mesma batida o
tempo todo enquanto eu colocava e tirava coisas" (DJ Jesse Saunders, in: Brewster e Broughton 2000:307).
17
O DJ Jesse Saunders, por exemplo, coloca a House numa linhagem que parte de um Rhythm'n'Blues cheio de
sentimento e passa pela Disco ("House comes from a soulful, R&B-gospel-based background, and, of course,
disco"; Jesse Saunders, in: Reighley 2000:138), e segundo Brewster e Broughton a forte presença de "vocalistas
treinados em igrejas" em Chicago explica o fato de essa cidade ser "o exemplo mais claro de continuação
apaixonada da Disco sob um outro nome" (Brewster e Broughton 2000:317).
18
Pimenta (*2004a:19-20) comenta aqui a produção do disco do DJ brasileiro de House Anderson Soares. As
experiências do grupo de "brazilian electronic music" M4J com instrumentos como berimbau, repinique, surdo,
reco-reco e agogô também vão nessa direção: "Um fator fundamental é que não usamos samplers de instrumentos
brasileiros. Gravamos cada instrumento de escola de samba em separado, nós mesmos" (Franco Jr., in: Palomino
1999:125). Nas apresentações do M4J, "os solos são feitos ao vivo e as mixagens [...] rolam na hora [...] 'Cada um
tem uma função ativa no palco para não ficar só fingindo'" (depoimentos, in: Palomino 1999:125).
19
Sobre o papel dos vocalistas e suas letras no Drum'n'Bass, cf. Noys (1995) e Gerard e Sidnell (2000).

248
"realista" pois é possível "imaginar um baterista tocando ela".20 No Drum'n'Bass brasileiro,
certamente o estilo de música eletrônica de maior sucesso comercial no país, ocorre o mesmo: o
DJ Patife, por exemplo, cria melodias que depois são executadas por músicos e que são então
gravadas e usadas pelo próprio DJ como matéria prima para suas músicas;21 a dupla brasileira
Drumagick, que quer "falar a mesma língua dos músicos",22 arregimentou uma banda completa
para tocar suas composições eletrônicas em apresentações e até mesmo fazer as transições entre
elas "como se fosse um DJ mixando" sem o uso de bases pré-gravadas;23 na apresentação da
dupla brasileira de Drum'n'Bass Marky e XRS no Skol Beats 2003, eles manipulavam notebooks
acompanhados por uma banda e oscilavam constantemente entre a ênfase na repetição hipnótica
própria à música eletrônica e a ênfase nas variações e improvisações constantes de estilos como o
Jazz, sem no entanto concretizar plenamente nenhuma delas e tampouco uma fusão
convincente.24
Reynolds interpreta essa tendência de produtores de música eletrônica a "valorizar
excessivamente noções convencionais de musicalidade" e "falar sobre sua atividade usando a
linguagem aparentemente inapropriada da arte humanista tradicional – 'expressão', 'alma',
'autenticidade', 'profundidade'" – como resultado de um "descompasso (a retórica sendo incapaz
de acompanhar a tecnologia)", de uma "dependência por parte da indústria e da mídia de gênios-
autores singulares (em oposição às cenas criativas coletivas)" e de uma "tentativa de contradizer
aqueles críticos que denigrem a música eletrônica como uma música de máquina fria e
desumana".25 Com efeito, os exemplos do DJ Jesse Saunders – que apesar de ter criado aquela
que é normalmente considerada a primeira track, disse ter se sentido "culpado" por ter feito algo

20
LTJ Bukem, in: Reynolds (1999:345). Ele diz "imaginar" pois o Drum'n'Bass é notavelmente uma música de
laboratório, feita apenas de colagens digitais, o que explica, segundo Reynolds, o seu "complexo de inferioridade
secreto" (Reynolds 1999:342; cf. Berk 2000:198-9).
21
Cf. Alexandre (*2002:25).
22
Cf. Pimenta (*2004b:17).
23
Cf. Simões (*2004).
24
Uma situação análoga e igualmente pouco convincente pode ser vista no improviso coletivo de Drum'n'Bass com
Max de Castro, Fernanda Porto e Mad Zoo em Telles (v2004). Diversas apresentações em grandes festivais
brasileiros de música eletrônica (que, como já comentamos, mesmo se aproveitando da legitimidade underground
dos artistas convidados, são desde o início empreendimentos comerciais e publicitários) são de grupos musicais
que assumem o rótulo de música "eletrônica". Notamos também que a valorização cada vez maior de "grupos" e
"artistas" que assumem uma postura mais tradicional com relação à criação e à apresentação de suas músicas
parece ser uma tendência das revistas brasileiras de música eletrônica concomitante às suas tentativas de
sobrevivência mercadológica (as revistas pesquisadas foram: DJ World, Beatz, DJ Sound e Volume 01), sugerindo
uma relação entre a linguagem musical tradicional e o comércio mainstream que, como vimos, é oposto ao
xamanismo da música eletrônica. "É por isso", já disse DJ Mantrix, "que é tão difícil vender e-music [música
eletrônica underground] à mídia" (DJ Mantrix *2001: item 16).
25
Reynolds (1999:51).

249
tão simples, algo que não poderia ser chamado de música26 – e do DJ Pierre – outro pioneiro das
tracks, que disse ter mudado das tracks para as canções devido à "ausência de alma" e à "falta de
emoções" daquelas, que se resumiam, segundo o DJ, a "nada além de pular para cima e para
baixo"27 – mostram que se por um lado a música eletrônica de pista possui uma vertente
explicitamente mais expressiva, mesmo DJs e produtores mais distantes dela ainda insistem numa
retórica expressiva.28 Entre aqueles que assumem a vertente mais funcionalista, no entanto, é
mais comum que a não-musicalidade das tracks seja não só assumida mas mesmo exaltada como
sua qualidade distintiva.29 Reynolds, por exemplo, traça um filo que parte das "formas mais
maquínicas de House" – "música de máquina sem piedade, música de máquina que te transforma
numa máquina", cuja força está ligada à "fisicidade da dança" e à "aproximação funkionalista
direta [no-nonsense funkionalist approach]" das tracks ("e não canções") e cuja "repetição
anuladora de pensamento [mind-nullifying repetition] oferece libertação através do transe da
dança" – e chega aos estilos contemporâneos que ele rotula como Hardcore30 e defende que
"cenas Hardcore na cultura dance são o verdadeiro motor criativo da música". Ele considera "a
paixão das partículas subatômicas" das tracks, com sua "eliminação de todo resíduo de alma e
humanidade", "mais interessante" do que a das "canções", que "rapidamente colapsam numa
afirmação de valores musicais tradicionais e sentimentos humanistas felizes".31 Um produtor do

26
Cf. Reighley (2000:186).
27
Cf. Reynolds (1999:33). DJ Pierre lançou em 1987, junto com o grupo Phuture, a faixa "Acid Tracks" (cf.
Exemplo Sonoro 21), que se resumia a sons distorcidos extraídos da máquina Roland TB-303 sobrepostos a uma
base percussiva de pulso constante e deu início ao sub-gênero Acid House (cf. Poschardt 1998:285-7; Reynolds
1999:32-4; Eshun 1999:95; 2000b:76; Fritz 1999:68-9, 88; Sicko 1999:104; Palomino 1999:280; Brewster e
Broughton 2000:315-6).
28
Langlois, por exemplo, em sua pesquisa com DJs ingleses no início dos anos 90, conta que "todos os DJs com
quem falei tinham absoluta certeza de que estavam expressando a si mesmos" (Langlois 1992:234; itálico no
original).
29
E.g.: "Na pista de dança é o ritmo que move o seu corpo", e "quanto mais significado, quanto mais letras e quanto
mais musicalidade, menos as pessoas gostam" (JM Silk, produtor de House, in: Poschardt 1998:259-60); "As
pessoas que fazem dance music não estão escrevendo canções [...] que serão tocadas daqui a 50 anos; elas estão
apenas fazendo tracks para dançar [dance tracks; que poderíamos traduzir também como "pistas de dança"]"
(Vince Clarke, produtor de Technopop, in: Semrow 1999:168); "Lamento, mas isso simplesmente não é música"
(frase no encarte do disco Beats+Pieces do Coldcut, in: Reynolds 1999:42); "A House [...] se livra dos músicos
humanos [...], deixando apenas o produtor e suas máquinas. Operando como uma fábrica de fundo de quintal
altamente produtiva de tracks, o produtor de House substitui a assinatura do artista pela marca industrial. Mais
próximo do arquiteto ou do projetista, o produtor de House está ausente de sua própria criação; tracks de House são
menos obras de arte, no sentido expressivo, do que veículos, motores rítmicos que levam o dançarino para
passear." (Reynolds 1999:30)
30
Ele menciona os estilos Bleep-and-Bass, Breakbeat House, Belgian Hardcore, Jungle, Gabba, Speed Garage e Big
Beat (cf. Reynolds 1999:8).
31
Reynolds (1999:6, 27-8, 33, 113). Segundo o autor, as vertentes Hardcore "pegaram a essência do Acid e do
Techno (repetição esvaziadora da mente, sintetizadores estroboscópicos, freqüências sub-graves retumbantes) e a
engrossaram e intensificaram" (Reynolds 1999:129).

250
estilo não deixa dúvidas: "A melhor coisa do Hardcore é que não tem nenhuma alma. Tivemos
200 anos de elemento humano na música e já é hora de mudar".32
O importante aqui é saber que, em certo ponto de sua história, a música eletrônica de pista
bifurcou-se em duas tendências diferentes, uma mais voltada aos valores musicais tradicionais, à
expressividade e à narrativa, e a outra mais voltada ao imperativo da dança, à funcionalidade e à
repetitividade, e que o xamanismo da música eletrônica está muito mais ligado a esta vertente do
que àquela. Em outras palavras, quanto mais exclusivamente voltada para a experimentação
consistente com os estados de transe específicos à música eletrônica de pista (e quanto menos
voltada para a expressividade individual), mais xamânica tende a ser uma música. Assim,
encontramos no desejo concreto de dançar ao som de máquinas como "robozinhos", de ser
maquinado pela música, não apenas uma confirmação daquilo que todos já perceberam mas que
muitos ainda insistem em reduzir a ironias ou a renegar pura e simplesmente – que a música
eletrônica é, em sua mais alta especificidade, o som de uma máquina –, mas também um critério
estético para a identificação de vertentes musicais mais próximas ao xamanismo – músicas que,
além de underground (experimentais), valorizem a repetitividade e a funcionalidade acima da
narrativa e da expressividade.

Estética maquínica
Música eletrônica de pista, principalmente estilos mais sintéticos como o Techno e as vertentes
Hardcore, soam, de fato, como máquinas em funcionamento.33 Essa semelhança não se dá, no

32
Caspar Pound, in: Reynolds (1999:128). Um integrante do grupo de Terrorcore australiano Nasenbluten, cujo
primeiro disco foi intitulado "100% No Soul Guaranteed" (algo como "Garantido 100% Sem Alma", ou, numa
leitura mais polêmica, "Garantia total de nenhuma relação com a tradição da música negra"), confirma que gosta
dos estilos pesados justamente por serem "frios e desagradáveis" e responde àqueles que reclamam que eles são
"monótonos, desumanos, sem alma": "É claro que são!" (Mark Newlands; in: Reynolds 1999:292) É possível fazer
uma leitura dessa atitude anti-alma das vertentes mais maquínicas da música eletrônica de pista como racismo
(anti-Soul como anti-negro), e os estilos mais rápidos e pesados (em especial o Gabba) são de fato freqüentemente
associados ao neonazismo (cf. Reynolds 1999:227-9, 285-7, 293, 367; Verhagen et al. 2000:151), mas isso seria
perder de vista aquilo que nos parece o principal e que Eshun chamou, fazendo referência ao pseudônimo Model
500 do DJ Juan Atkins, de um "repúdio a qualquer designação étnica" (cf. Eshun 1999:124; Brewster e Broughton
2000:325). Muito mais do que um conflito étnico, trataría-se de um abandono da própria etnicidade, como se diante
de uma música completamente desumanizada as questões étnicas se tornassem secundárias e as categorias raciais
perdessem sua operacionalidade. Em um estudo cuidadoso sobre o Techno centrado na etnicidade (o estilo é, de
fato, o resultado da influência da música européia branca comercial e sintética sobre negros norte-americanos de
periferia), Ben Tausig (2003) acaba mostrando, involuntariamente, que tentar aplicar categorias pré-existentes
sobre um fenômeno histórico sem precedentes é o primeiro passo para perder de vista toda a sua novidade e fazer
dele apenas "mais do mesmo".
33
Cinco exemplos dessa vertente mais maquínica da música eletrônica podem ser escutados nos Exemplos Sonoros
24, 25, 26, 27 e 28.

251
entanto, exceto raras exceções, ao nível da imitação superficial, como se pudéssemos reconhecer
sons de máquinas concretas nessas músicas. Outros estilos musicais se prestariam melhor a esse
tipo de comparação formal, como o Industrial ou o Noise, que muitas vezes se baseiam em
colagens de gravações de sons de máquinas ou até mesmo no uso efetivo de máquinas em
apresentações,34 e algumas manifestações da música erudita35 – temos, na Itália do começo do
século XX, o caso célebre do músico futurista Luigi Russolo que já experimentava diretamente
com os sons das máquinas através de seus "tocadores de barulhos" (intonarumori),36 e na
Alemanha dos anos 90 o caso polêmico do músico eletroacústico Karlheinz Stockhausen que
compôs "Helikopter Streichquartett" (1992-3) para um quarteto de cordas e quatro helicópteros
(audível apenas com o uso de toda uma parafernália eletrônica de captação, transmissão e
amplificação sonora e visual, visto que os instrumentistas tocam seus instrumentos um em cada
helicóptero).37 Todos esses casos extrapolam, porém, o objeto desta pesquisa, pois além de não
terem a dança como objetivo determinante, eles se esforçam muito mais para tornar "musicais" os
sons concretos das máquinas (um devir-música da máquina) do que para tornar maquínica a
própria música (um devir-máquina da música). Por isso, quando dizemos que a música eletrônica
de pista parece o som de uma máquina, referimo-nos não ao som de uma máquina concreta, mas
sim ao efeito maquínico provocado por esse som repetitivo, preciso, impessoal, sintético.

34
Cf. Shapiro (2000d), Reynolds (2000), Czukay e Schmidt (2000), P-Orridge (2000), Tagg e Collins (2001),
Monteiro et al. (2004). A partir de uma pesquisa extensa, Tagg e Collins constataram que os sons "não-musicais"
mais comuns no gênero Industrial (sons mecânicos e elétricos em geral) normalmente remetem a ambientes de
construção civil e fábricas e que "[e]scutar sons industriais geralmente traz à mente a imagem da própria máquina"
(cf. Tagg e Collins 2001:4-5, 7).
35
Um curto mas instrutivo estudo sobre a presença das máquinas na história da música erudita ocidental desde o
século XV até a década de 1940 pode ser encontrado em Hughes (1946).
36
Segundo Barclay Brown, Russolo foi "não apenas o inventor do primeiro sintetizador mecânico, mas também o
primeiro grande expoente da síntese musical em si" (Brown 1982:48), e Rodney J. Payton confirma o lugar dos
músicos futuristas na origem da síntese sonora apresentando-os como "ancestrais espirituais dos mais recentes
sintetizadores" (Payton 1976:25; cf. Pinch e Bijsterveld 2003:544). Stravinsky, que conheceu a música futurista
através de uma apresentação de Russolo e Pratella com cinco fonógrafos que tocavam gravações dos intorarumori,
considerou-a "bastante parecida com a musique concrète" (Stravinsky, in: Payton 1976:28). Assim, pode-se dizer
(junto com a narrativa que chamamos de erudita) que a música futurista realmente trabalhou de maneira pioneira
(mas, a perspectiva maquínica exige notar, com objetivos muito diferentes) com os dois procedimentos técnicos
que ainda são a base da música eletrônica contemporânea: a síntese e a colagem.
37
Sobre o sonho no qual concebeu seu quarteto de cordas e hélices, Stockhausen conta: "Eu ouvi e vi os quatro
instrumentistas em quatro helicópteros voando e tocando. Ao mesmo tempo, eu vi pessoas no chão, sentadas em
uma sala audiovisual [...]. Na frente delas haviam quatro torres de televisões e alto-falantes [...]. Em cada uma
delas um dos instrumentistas podia ser visto e ouvido de perto. [...] Na maior parte do tempo, os instrumentistas
tocavam tremolos que se misturavam tão bem com os timbres e ritmos das hélices que os helicópteros soavam
como instrumentos musicais." (Stockhausen *[s.d.])

252
Em um ótimo texto sobre o "estilo maquinista de Francis Picabia",38 William A. Camfield
notou uma relação análoga entre máquina concreta e maquinismo abstrato no papel que as
máquinas desempenharam nas obras desse pintor. Camfield notou que "a função da máquina é
freqüentemente um elemento vital da [sua] pintura",39 estando Picabia muito mais interessado em
"analogias funcionais" entre as máquinas representadas em suas pinturas e os temas a que se
referem40 do que na representação de qualquer máquina técnica concreta. Segundo Camfield, as
máquinas de Picabia "funcionam" tanto quanto qualquer máquina técnica (suas peças primando
não pela "expressividade", mas sim pela obtenção de um "efeito"), desde que não se confunda o
funcionalismo desta com o daquelas.41 Diríamos que se num caso estamos diante de um
funcionalismo mecânico, no outro estamos diante de um funcionalismo maquínico. O mesmo
princípio parece estar por trás da afirmação de Joel Dinerstein de que as Big Bands norte-
americanas das primeiras décadas do século XX, eram "uma máquina feita de humanos". Com
isso ele não pretendeu afirmar que o Jazz e o Swing que elas tocavam soavam como o barulho de
máquinas, mas sim que, enquanto um conjunto, as Big Bands funcionavam como máquinas:
"entre quatorze e dezoito homens em roupas idênticas sentados calmamente em seções atrás de
partituras carimbadas com o nome da companhia esperando para explodir de maneira
controlada".42 Dinerstein viu nessa "estética da máquina" uma maneira encontrada pelas pessoas
de "participar das paisagens tecnológicas" que se disseminavam inexoravelmente naquele início
de século, "dançando para dentro de seus sistemas individuais as mudanças industriais geradas
pelas máquinas Big Band",43 máquinas verdadeiramente desejantes cujas peças humanas
"geralmente pareciam adorar seu trabalho".44 É, portanto, mais pela afecção maquínica
promovida pelas Big Bands do que por qualquer comparação formal que os seus sons acabavam
por se ligar, como que por maquinações inconscientes, aos sons das máquinas técnicas do

38
Picabia passou a se dedicar ao estilo em 1915, após uma viagem aos Estados Unidos na qual ele percebeu que "o
gênio do mundo moderno está na maquinaria" (Picabia, in Camfield 1966:309) e o abandonou oito anos depois,
numa das diversas rupturas que marcaram sua vida artística (cf. Camfield 1966:321).
39
Camfield (1966:309).
40
Camfield (1966) cita diversos exemplos: "Voilà Haviland" (1915), que retrata Paul Haviland como uma lâmpada
sem soquete; "Ici, c'est ici Stieglitz" (1915), que retrata Alfred Stieglitz como uma máquina fotográfica quebrada;
"Voilà Elle" (1915), que retrata uma mulher como uma "máquina de amor automática"; "Portrait de Marie
Laurencin" (1916-7), que a retrata como uma espécie de ventilador, e muitos outros. Em seu auto-retrato
"L'Homme" (1918), a foto de um batedor de ovos, Man Ray parece usar o mesmo princípio funcional analógico
dos retratos de Picabia (cf. Zabel 1989:79).
41
Camfield (1966:316-7).
42
Dinerstein (2001:19). Dinerstein não inventa essa analogia, mas a encontra no próprio discurso da época, do qual
ele fornece vários exemplos (cf. Dinerstein 2001:13-6).
43
"How could people participate in Technoscapes? By dancing the industrial changes generated by big band swing
machines into their individual systems." (Dinerstein 2001:36)
44
Dinerstein (2001:20; sublinhado no original).

253
ambiente da época, fenômeno ilustrado por um crítico musical que, após sair de uma
apresentação de Benny Goodman na Nova Iorque de 1936, "ainda podia escutar a música 'soando
logo acima' e pulsando sob seus pés, 'como se ela viesse do solo americano sob esses prédios,
ruas e automóveis (o que é verdade)'".45
Há, tudo indica, um devir-máquina coletivo muito mais amplo envolvido no ritual
xamânico da música eletrônica, que se observa nitidamente desde pelo menos o início do século
XX, com a disseminação generalizada das mais variadas máquinas no cotidiano.46 Uma
importante dimensão dessa disseminação maciça da máquina foi a radical transformação que ela
trouxe para a paisagem sonora.47 Diversas fontes comprovam o contínuo aumento da intensidade
de ruídos a partir da Revolução Industrial,48 em especial os ruídos mais graves (abaixo de 60Hz e
freqüentemente na região subgrave) e constantes, típicos dos motores de combustão interna e dos

45
"Upon leaving a Benny Goodman show in New York in December 1936, Ferguson recalled that he could still hear
the music 'ringing under the low sky' and pulsating beneath his feat, 'as if it came from the American ground under
these buildings, roads, and motorcars (which it did).'" (Otis Ferguson, in: Dinerstein 2001:12) Mas o devir-música
da paisagem sonora urbana da Nova Iorque das primeiras décadas do século XX não era apenas a contra-partida de
um devir-máquina das Big Bands, participando também do devir-máquina da pintura de Man Ray, que mudou-se
para Manhattan no final dos anos 10: "Eles estavam construindo o metrô da avenida Lexington e o barulho das
betoneiras e britadeiras era constante. Era música para mim, e mesmo uma fonte de inspiração" (Man Ray, in:
Zabel 1989:73). Pudemos constatar na música eletrônica de pista (em primeira mão e através de depoimentos) o
mesmo efeito relatado por Ferguson para Benny Goodman: nas horas que se seguem à saída de festas é comum que
se escute uma música eletrônica murmurante nos sons urbanos comuns (motores, metrôs, elevadores etc.).
46
Apesar da crescente presença das máquinas no cotidiano desde o final do século XIX, estudiosos da arte moderna
notam que foi apenas a partir da segunda década do século XX que elas passaram a figurar com destaque como
objeto de inspiração e reflexão estética sistemática: "Os sinais da aceleração da Revolução Industrial não deixaram
de estimular alguns artistas do século XIX, mas foi apenas no século XX que as plantas industriais, as máquinas e
produtos industrializados do mundo moderno foram assumidos pelos artistas como temas realmente importantes –
temas que, ademais, foram percebidos como fontes de novos sistemas estéticos e associados a atitudes
fundamentais perante a vida." (Camfield 1966:309). Robert L. Herbert sugere que "o rápido aumento do
maquinário na vida cotidiana" apenas a partir de 1910 foi um dos principais motivos para esse despertar tardio da
arte para o tema da máquina (Herbert 1997). Ainda sobre o tratamento da máquina pela arte moderna a partir de
1910, cf. Hughes (1946:31) e Zabel (1989:67).
47
O conceito de "paisagem sonora" , ligado às pesquisas pioneiras do compositor canadense R. Murray Schafer a
partir de 1971, foi definido por ele em seu manifesto The Tuning of the World (publicado originalmente em 1977)
como "qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos" (Schafer 2001:366, cf. Poissant
2001:263). "As diversas manifestações da tecnologia na passagem do século XIX para o XX mudaram
drasticamente o ambiente sonoro da sociedade ocidental. Os sons de fábricas, trens, bondes, automóveis, ônibus,
motocicletas, aviões, telefones, rádios, britadeiras, furadeiras, e de milhares de buzinas, freios, amortecedores e
embreagens acompanharam aqueles dos sinos das igrejas, chicotes, músicos de rua, batedores de carpete, latas de
leite e pessoas gritando." (Bijsterveld 2001:60) "A paisagem sonora de Mozart não era livre apenas de máquinas a
vapor. Ele também nunca ouviu motores de combustão interna, aviões, perfuradoras, ventiladores, ar condicionado,
humidificadores, refrigeradores, transformadores ou centrais de energia. Esses são os sons de nossa cultura urbana
industrializada, aqueles que a distinguem sonicamente das outras culturas." (Tagg 1990:5)
48
Segundo Schafer "o ruído ambiental da cidade moderna está aumentando cerca de meio decibel por ano" (Schafer
2001:263), um efeito que foi chamado de "gerador de ruído [Noise Generator]" (cf. Wrightson 2000:12).

254
geradores elétricos.49 Segundo a terminologia da Ecologia Acústica,50 passou-se então de uma
paisagem sonora hi-fi (i.e., de "alta fidelidade") – caracterizada pela distinção (quando "sons
separados podem ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental") e pela
perspectiva (quando "os sons se sobrepõem menos freqüentemente "), na qual "o 'horizonte
acústico' podia se estender por muitas milhas" –, para uma paisagem sonora lo-fi (i.e., de "baixa
fidelidade") – caracterizada pela indistinção (quando "a razão sinal/ruído é de um por um, e já
não é possível saber o que deve ser ouvido") e pelo mascaramento (quando "os sinais se
amontoam, tendo como resultado [...] a falta de clareza"), na qual "o indivíduo não pode ouvir
seus próprios passos".51
Um mundo mediado por máquinas não é, porém, apenas um mundo mais barulhento; ele
também é um mundo com temporalidades específicas, onde o ritmo da vida passa a ser cada vez
mais ditado pelo ritmo automático e impessoal das máquinas. Dinerstein mostrou como a
"estética da máquina" das Big Bands norte-americanas do início do século tinha como base
"poder, velocidade, repetição, precisão, eficiência e fluxo rítmico",52 todas características da linha
de montagem industrial que determinava o ritmo da produção, e Philip Tagg, tratando da
diferenciação do Blues urbano do Blues rural norte-americano na década de 20, quando
trabalhadores rurais migravam para a cidade para trabalhar nas fábricas, afirmou:

Obrigados a viver em conjuntos habitacionais geométricos, tomar o ônibus ou o trem em horários


específicos através da grade quadriculada das ruas da cidade até o prédio retangular da fábrica onde
linhas de montagem se moviam em velocidade regular e máquinas faziam barulhos
metronomicamente regulares, tendo que bater o cartão na entrada e na saída, voltar para casa
novamente em um horário específico através da grade das ruas e semáforos, o trabalhador

49
Cf. Cook (1987:92) Wrightson (2000:11), Schafer (2001:131, 146), Leventhall (2003:54). "O ruído do ambiente
moderno poderia ser brevemente caracterizado como contínuo e pesado, com poucas flutuações, difíceis de
identificar e localizar, pois esse tipo de ruído tende a nos envolver." (Michel P. Phillippot, in: Schafer 2001:169)
50
Schafer definiu a Ecologia Acústica como "o estudo dos efeitos do ambiente acústico, ou paisagem sonora, sobre
as respostas físicas ou características comportamentais das criaturas que nele vivem" (Schafer 2001:364).
51
Cf. Schafer (2001:71, 107, 365), Wrightson (2000:11). A Ecologia Acústica, pelo que pudemos verificar tanto na
obra de Schafer quanto no periódico Soundscape, tende a ver a substituição de uma paisagem sonora hi-fi por uma
lo-fi apenas da perspectiva negativa de um "desaparecimento" de "paisagens sonoras únicas" (Wrightson 2000:10-
1), da "diminuição da diversidade acústica" e do "aumento da inaptidão e da ignorância da atenção auditiva em
geral" (Breitsameter e LaBelle 2002:3), o que necessariamente limita a sua contribuição para a compreensão da
estética maquínica que surge justamente com a paisagem sonora industrial lo-fi. Não se trata de desprezar as
paisagens sonoras perdidas (pelo contrário, a manutenção da diversidade sonora é a tarefa positiva da Ecologia
Acústica), mas sim de se abrir para as novas paisagens sonoras que se gestam nesse novo contexto. Afinal, se para
Schafer "[a] máquina perfeita seria uma máquina silenciosa" (Schafer 2001:290), é preciso concordar com
Jonathan Sterne que "[d]esejar a eliminação do barulho da máquina sugere um desejo de eliminar o barulho da
sociedade" (Sterne 2003:259), um projeto que nos parece mais higienista do que ecológico.
52
Dinerstein (2001:11; sublinhado no original).

255
imigrante afro-americano exigia uma música que refletisse essa nova vida em um nível perceptivo
afetivo.53

Em seus textos, Tagg mostrou com clareza excepcional não apenas a maneira como a paisagem
sonora tecnológica, junto com as temporalidades a ela associadas, influenciaram diretamente a
estética musical de estilos musicais baseados no ruído amplificado e no ritmo extremamente
marcado como o Rock,54 o Heavy Metal,55 o Industrial56 e o Techno,57 mas também como essa
estética acabou assumindo uma função ativa na transformação da relação das pessoas com essa
própria paisagem e suas temporalidades. Por um lado, ele percebeu como, na nossa sociedade
tecnológica, a sujeição social produzida pelas relações entre barulho e poder (o fato de que
"quanto mais alto o som, maior o espaço acústico [...] ocupado pelo proprietário do som e maior
o poder dessa pessoa nesse contexto social"58) e entre temporalidade e poder (a importância de
estar "no lugar 'certo' na hora 'certa'"59) está diretamente ligada à importância ritual atribuída a

53
Tagg (1997:13).
54
Cf. Tagg (1990).
55
Cf. Tagg (1994b).
56
Cf. Tagg e Collins (2001).
57
Cf. Tagg (1994a).
58
Tagg (1990:5). "[A]lguns dos barulhos mais altos de nossa sociedade são produzidos por ou para aqueles que
possuem quantidades desproporcionais de poder econômico, social ou político na esfera não-acústica. Portanto,
aviões a jato, helicópteros e sirenes de polícia fazem com impunidade muito mais barulho do que um grupo de
adolescentes barulhentos na rua ou uma gangue de motociclistas. Estes últimos, porém, são oficialmente
considerados os mais perturbadores, não tanto pelo barulho real que fazem, que não é maior do que o de jatos e
helicópteros, mas sim porque esse barulho ameaça a ordem socioacústica dominante de uma maneira que jatos e
helicópteros não o fazem." (Tagg 1994b:7; 1990:5-6) Na cidade de São Paulo, que é tida como a quarta cidade
mais barulhenta do mundo com nível de ruído médio de 80dB (uma pesquisa do Instituto de Pesquisas
Tecnológicas que mediu o nível de ruído de 75 pontos da cidade concluiu que todos excediam os valores máximos
recomendados), os principais responsáveis pela poluição sonora são o trânsito e as construções (cf. Casagrande
*1998; Tavares e Diniz *2004). Quanto às construções, diante das reclamações dos vizinhos, um mestre de obras
esclareceu que "não podemos parar o serviço no meio" e um representante do governo resumiu: "O bom senso deve
compatibilizar a convivência entre o silêncio exigido pelo cidadão comum e o ruído proveniente da construção, que
garante o sustento do trabalhador e o progresso da cidade" (cf. Zapparoli *1998). Schafer chamou esse "ruído
prodigioso livre de proscrição social" de "Ruído Sagrado": "A associação entre Ruído e poder nunca foi realmente
desfeita na imaginação humana. Ele provém de Deus, para o sacerdote, para o industrial e, mais recentemente, para
o radialista e o aviador. O que é importante perceber é que: ter o Ruído Sagrado não é, simplesmente, fazer o ruído
mais forte; ao contrário, é uma questão de ter autoridade para poder fazê-lo sem censura." (Schafer 2001:113; cf.
pp.368) Para Schafer, "o ruído é tão importante como meio de chamar a atenção que, se tivesse sido possível
desenvolver uma maquinaria silenciosa, o sucesso da industrialização poderia não ter sido tão completo" e "se os
caminhões fossem silenciosos, nunca teriam sido utilizados na guerra" (Schafer 2001:115). Karin Bijsterveld
retoma o tema quando mostra que mesmo sendo possível construir aspiradores de pó mais silenciosos "os
fabricantes afirmam que os consumidores não aprovariam, pois isso sugeriria que eles não têm poder de sucção"
(Bijsterveld 2001:41; cf. pp.42), e Jacques Attali também o faz em outros termos quando vê o barulho como um
simulacro da violência que deve ser canalizada pelo sacrifício da música (cf. Attali 1999:24-31).
59
"Quanto eu era jovem, o som dos relógios e do sino da escola me dizia se eu deveria me sentar e ficar quieto ou
correr e fazer barulho. Eu não tinha controle sobre essas recorrências regulares de sons em meu ambiente, nenhum
controle sobre o controle que eles exerciam sobre mim. [...] Porém, sentimento de ritmo robótico implacável, quase
desumano, em nossa sociedade (cuja expressão musical mais extrema pode ser o uso indiscriminado de baterias
eletrônicas ou metrônomos) não pode ser atribuído a sons extra-musicais do ambiente, pois o relógios digitais não

256
sons eletronicamente amplificados, distorcidos e com ênfase na faixa grave do espectro60 e
também isócronos, lineares e repetitivos.61 Por outro lado, pareceu-lhe que essas características,
além de derivarem de uma percepção da sujeição social ao poder das máquinas barulhentas e de
sua temporalidade, foram também uma maneira encontrada pelas pessoas de reverter (pelo menos
temporariamente) essa mesma situação de sujeição através da apropriação dessa mesma potência
sonora pela amplificação e distorção (que contraria os critérios de legitimidade de quem pode e

fazem barulho e poucas pessoas trabalham com máquinas que fazem barulhos metronomicamente regulares. Não,
as conexões entre o pulso musical metronômico e a sociedade podem ser mais facilmente encontradas no interesse
aparentemente insaciável da sociedade industrial por certos tipos de coordenação e planejamento em detrimento de
outros." (Tagg 1990:6) Man Ray parece ter abordado o tema em "Object to Be Destroyed" (1923), obra na qual ele
colocou uma fotografia de um olho humano no braço de um metrônomo. Segundo Barbara Zabel, a obra é um
comentário "sobre como a máquina acabou determinando o andamento da vida no século XX da mesma maneira
como determina o andamento na produção musical" (Zabel 1989:78). Apesar de certamente envolver o tema da
vigilância, a justaposição do olho humano ao mecanismo metronômico parece também confirmar que, nesse novo
regime temporal, a diferença entre o humano e a máquina é apenas uma questão de perspectiva (afinal, é o olho que
pertence ao metrônomo ou o metrônomo que pertence ao olho? Falsa questão, se ambos estão sendo maquinados).
60
"Amplificação", "distorção" e "espectro de freqüências" são todos termos técnicos que recebem diversas definições
de acordo com o recorte analítico escolhido. No nosso caso, queremos dizer que as músicas ritualmente valorizadas
em sociedades com paisagens sonoras tecnológicas são geralmente amplificadas acima de 90dB, distorcidas pela
saturação não-linear da transdução e com grande ênfase nas freqüências abaixo de 200Hz (retomaremos o tema
adiante). A relação entre amplificação eletrônica e ruído ambiente foi percebida ironicamente por Schafer nos
termos da Ecologia Acústica: "ao mesmo tempo em que a alta fidelidade (hi-fi) estava sendo criada, a paisagem
sonora mundial estava resvalando permanentemente para uma condição lo-fi." (Schafer 2001:131; itálicos no
original) Schafer também notou, sempre ironicamente, que "[e]nquanto, durante a década de 1960, os quadros de
compensação dos operários estavam introduzindo limites para os ruídos do ambiente industrial (85 a 90 decibéis é
o limite recomendado para sons contínuos), as bandas de rock estavam produzindo picos de 120 decibéis" (Schafer
2001:166; itálico no original). Segundo Schafer, o som eletronicamente amplificado foi usado "com sucesso" pela
primeira vez num "comício político, quando Woodrow Wilson discursou na Liga das Nações em 20 de setembro de
1919" (Schafer 2001:166).
61
Entendemos o isocronismo, a linearidade e a repetitividade das músicas ritualmente valorizadas em sociedades
com paisagens sonoras tecnológicas como sendo diretamente relacionadas ao uso de metrônomos (seja por
bateristas humanos, seja diretamente na forma de seqüenciadores e sintetizadores de ritmo) e de registros sonoros
(que, como bem notou Tagg, mesmo no caso do arquivamento digital físico não-linear ainda são reproduzidos de
maneira linear; cf. Tagg 1997:3 nota 4). Segundo Paolo Rossi, "[a]té a primeira metade do século XVI, o tempo é
ainda o 'tempo vivido', aquele tempo do senso comum segundo o qual a vida passa de acordo com as medidas
naturais do dia e da noite, ou dos movimentos da abóbada celeste", sendo "somente na metade do século XVI, em
correspondência com o crescimento da riqueza urbana e a vitória da vida urbana sobre a camponesa, que se nota a
necessidade de uma medida mais exata do tempo" (Rossi 1989:43). Adrian Mackenzie, em seu estudo sobre a
crescente precisão técnica na medição do tempo desde o pêndulo no século XVII até o átomo de Césio-133 na
segunda metade do século XX, nota que "um importante aspecto daquilo que hoje experienciamos como a
globalização é o efeito cumulativo da sincronização de oscilações dispersas" (Mackenzie 2001:246). Alguns vêem
essa crescente sincronização negativamente como uma eliminação da "diversidade temporal" em nome de
"paisagens temporais monoculturais [monocultural timescapes]", como uma luta entre o "ritmo" da vida e a
"métrica" da tecnologia (cf. Geibler 2002:134-5). Mas não haveria um ritmo vital na própria métrica da tecnologia?
Não haveria no tempo metronômico do relógio, como sugere Mackenzie (2001:254), uma "contínua modulação de
matéria e forma", uma "incorporação de realidades divergentes em conjuntos temporais" através da qual
"coletividades provisoriamente estabilizam seus pontos de contato com aquilo que as excede e também se abrem a
uma diferenciação em processo"? Acreditamos ser essa uma das lições que poderemos tirar da música eletrônica de
pista.

257
quem não pode fazer barulho62), pela "subversão da exatidão implacável da ciência, dos
computadores e do tempo do relógio" através de uma "humanização" do ritmo pela síncope
(antecipações e sutis deslocamentos de acentos, uma "estilização" e uma "resocialização" do
tempo63) e pela emergência de "heróis" que assumem o papel de "montar e domar os animais
selvagens do ritmo e do som em seu ambiente natural" e assim permitem aos demais "saber como
é vencer a batalha contra todos esses sons e ritmos que normalmente parecem controlá-los" (os
"heróis do Rock" são os vocalistas e os solistas, mas também os motociclistas64). Assim, se por
um lado os sons intensos, constantes, implacáveis, métricos e graves das máquinas são "os sons
de uma máquina social inexorável sobre a qual nós temos pouco ou nenhum controle", por outro,
"se você é sujeitado a esses barulhos e ritmos que parecem simbolizar o poder real em seu
ambiente, eles podem se tornar menos dominadores se você se apropriar deles, recriá-los e 'fazê-
los soar' à sua imagem".65

62
"[A] construção social da paisagem sonora urbana pode evidentemente ser interpretada de muitas maneiras
diferentes, dependendo da relação do ouvinte com as diversas atividades que geram os elementos constituintes da
paisagem sonora. Como ilustração, imagine primeiro que você desempenha um papel positivamente ativo e audível
na paisagem sonora, por exemplo, que você aprecia o ruído distinto do motor do carro caro que você dirige até um
trabalho bem pago e gratificante ou que você liga a luz (com seu ruído branco) e a ventilação (com seu ruído lo-fi)
de sua loja bem sucedida num shopping center. Em seguida, imagine que você é um jovem desempregado, sem seu
próprio carro, sem nenhum lugar para ir, a pé no meio do barulho do tráfego ou do ruído da ventilação do shopping
center. Essas duas relações com a paisagem urbana podem bem resultar em interpretações afetivas diametralmente
opostas de seus barulhos constituintes, interpretações ligadas ao poder de cada indivíduo sobre os barulhos." (Tagg
1994b:6) "Eu não posso mudar ou parar os sons permanentes do tráfico, dos geradores, dos aviões etc. sem parar os
efeitos produzidos pelas fontes desses sons. Portanto, os sons simplesmente continuam como se eu não existisse,
como se eu não fosse parte dele. Eu preciso gritar para ser ouvido ou fugir (se eu tiver os recursos) para outra
paisagem sonora." (Tagg 1990:6) Um exemplo dos recursos necessários para fugir do barulho urbano é o do
paulistano que gastou R$ 10 mil para reduzir em 10dB o ruído de sua casa, localizada em uma avenida
movimentada (cf. Zonta e Freitas *2004). Mas no caso mais comum de não haver recursos, é preciso então que a
voz seja "mais alta que o barulho ambiente", "mais aguda", "mais afiada [sharper] no timbre" e "mais próxima dos
ouvidos do interlocutor" (cf. Tagg 1994b:6; itálicos no original). O gosto de jovens sócio-economicamente
desprivilegiados pelo Rock, pelo Heavy Metal e por motocicletas barulhentas é assim explicado por Tagg como
uma maneira encontrada por eles de sobrepujarem o barulho que expressa a sua situação de sujeição e controlá-lo a
seu modo (cf. Tagg 1994b:7-11).
63
Cf. Tagg (1990:8). "É evidente que o tempo do relógio (o tempo linear, 'absoluto') é a temporalidade dominante
em nossa sociedade." (Tagg 1997:14) "[E]u sou sujeitado a um ritmo que eu, na melhor das hipóteses, aceito como
necessário, mas sobre o qual eu tenho pouco ou nenhum controle. [...] Confrontado com essa escravidão e essa
paisagem sonora do relógio, eu posso escolher entre fugir ou permanecer e lutar." (Tagg 1990:6) O gosto de jovens
sócio-economicamente desprivilegiados (obrigados a "permanecer e lutar") pelo Rock é assim explicado pelo fato
de que, em seus ritmos, "o andamento temporal 'normal' é saltado, torcido e virado: ele é puxado para cá e para lá e
convertido em uma versão revista e socialmente aceita do sentido temporal dominante, um fenômeno sobre o qual
os usuários da música não têm nenhum controle no trabalho ou em outros domínios oficiais de poder, mas sobre os
quais eles alcançam algum controle através de sua expressão musical" (Tagg 1997:15).
64
Cf. Tagg (1990:8-9; 1994b:10-1). A fórmula "a engrenagem que range é a que ganha óleo" (ou a versão brasileira:
"quem não chora não mama", também considerada por Tagg 1990:5; 1994b:1-2) é útil aqui: "gritar, berrar, andar
por aí com um aparelho de som portátil poderoso [a large ghetto-blaster], pilotar uma motocicleta barulhenta ou
atividades similares de alto-volume são fonte de poder pois se está controlando o ambiente acústico" (Tagg e
Collins 2001:7).
65
Tagg (1994b:9; itálico no original).

258
Em diversos textos Tagg compara a função social do Rock à função social da "magia
antropológica" (ou "magia visual") das pinturas rupestres pré-históricas,66 um "ato simbólico"
através do qual "os caçadores parecem ter criado o sentimento de como é o encontro com esse
grande animal que precisa ser morto para que eles e seus dependentes tenham comida suficiente e
roupas para sobreviver", "uma encenação emocional ou uma preparação para uma parte
particularmente dramática e difícil, mas de qualquer forma absolutamente essencial, da vida
naquela comunidade de caçadores":67

Os jovens de hoje não precisam superar as forças da "natureza" para sobreviver. Ao invés de matar
um bisão e correr pela floresta, eles precisam tornar-se escravos do relógio, permitir que sejam
digitalmente quantificados e atomizados (valendo tanto por hora, merecendo ou não um
empréstimo no banco etc.) e precisam encarar os perigos de uma floresta social e sônica cujas
forças eles não controlam. [...] Seria estranho se esses humanos não desenvolvessem estratégias
específicas que permitissem a apropriação individual e coletiva das forças aparentemente
incontroláveis do ambiente. [...] O controle simbólico temporário sobre os sons do poder [...] [é]
parte de uma estratégia de sobrevivência e preparação emocional para um estado de poder real,
mesmo que temporário. [...] Se você é sujeitado aos barulhos e ritmos que simbolizam o poder real
no seu ambiente, eles podem se tornar menos dominadores se forem apropriados nos seus próprios
termos.68

Assim como a diferenciação do Blues urbano com relação ao Blues rural – aquele muito mais
barulhento e métrico do que este – entre os trabalhadores negros norte-americanos do início do
século XX foi explicada por Tagg como uma reação ativa aos novos sons e temporalidades dos
centros urbanos e industriais, com sua métrica abstrata e seus barulhos mecânicos,69 também a
preferência dos jovens sócio-economicamente desprivilegiados pelo Rock a partir dos anos 50 e
pelo Heavy Metal a partir dos 70 (para não falar do "uso roqueiro" da motocicleta) foi explicada
por ele da mesma forma, como uma maneira de se apropriar ativamente dos sons e
temporalidades associados às máquinas que corporificam o poder ao qual eles se encontram
sujeitados. Uma espécie de magia simpática através da qual pessoas procuram alcançar algum
controle sobre aquilo que as controla.

66
Os exemplos recorrentes são as pinturas rupestres de Lascaux e Dordogne; cf. Tagg (1990:7; 1994b:11; 1997:13,
15).
67
Tagg (1990:7). Não empreendemos aqui um estudo sobre a função ritual da arte rupestre européia, mas não é
preciso um profundo conhecimento do tema para desconfiar que a interpretação de Tagg é, no mínimo
reducionista. Proporíamos considerá-la aqui nos mesmos termos em que consideramos a interpretação do
xamanismo indígena típica do discurso nativo da música eletrônica: um discurso que vale mais pelo que está
querendo dizer de novo sobre um outro tema do que pela sua adequação a um conhecimento já estabelecido sobre o
tema a que se refere diretamente. Só consideramos esse expediente válido ainda no caso de Tagg pois acreditamos
que seus textos contribuem de fato para a produção de algum conhecimento novo sobre o papel ritual da música
amplificada na sociedade tecno-capitalista.
68
Tagg (1990:7).
69
Cf. Tagg (1997:12-3).

259
Acreditamos estarmos aqui muito próximos daquilo que chamamos anteriormente de "o
outro que importa": trata-se sempre de ver a sua própria realidade como determinada em maior
ou menor grau pelas dinâmicas que se desenrolam em um outro nível da realidade, normalmente
acessível apenas através de técnicas específicas que então são usadas em favor de uma melhor
relação com as contingências dessa situação de dominação. Ou seja, sabendo que sua realidade é
determinada em graus variados por uma outra realidade determinante mais ampla, é preciso lidar
com essa determinação através de técnicas que permitam o conhecimento dessa outra realidade,
técnicas capazes de mostrar o mundo a partir desse nível determinante da realidade e assim
permitir uma orientação mais vantajosa da ação, um conhecimento maior do seu alcance e de
suas implicações. No caso do xamanismo indígena tradicional, trata-se de assumir a perspectiva
dos animais e seres da floresta, realidade não-humana mais ampla que determina em graus
variados a realidade social humana. No caso do xamanismo contemporâneo das sociedades
indígenas em contato intenso com a sociedade capitalista, trata-se geralmente de assumir a
perspectiva daquele que manipula as máquinas, realidade não-humana mais ampla que agora
determina cada vez mais a realidade social humana. Mas e no caso do xamanismo da música
eletrônica? Seria ele também uma tentativa de assumir o controle das forças normalmente
inacessíveis que controlam a sociedade, como parece ser o caso do Rock e do Heavy Metal?

Transe maquínico
Em um esforço louvável para estimular um debate sociológico sobre as dimensões propriamente
sonoras da música eletrônica de pista (e não, por exemplo, sobre o significado de suas letras,
sobre o discurso dos artistas ou sobre a sua economia70), Tagg nota que ela "difere do Rock em
elementos tão básicos de estruturação musical que os velhos modelos para explicar como a

70
O recorte propriamente sonoro do argumento de Tagg (1994a) é ao mesmo tempo a força de sua argumentação e
também o motivo dos mal-entendidos que abundam na crítica de Hesmondhalgh (1995) ao seu comentário sobre
música eletrônica. Hesmondhalgh critica Tagg por ter tomado o discurso nativo "pelo seu valor de face", por ter se
deixado levar pela sua celebração da coletividade contra o individualismo e da imersão contra o dualismo
artista/público, mas não percebe que o discurso nativo aqui não é contraposto por Tagg a algo que lhe é exterior,
mas sim à experiência sonora da qual ele emerge. Como veremos, acreditamos que o esforço de Tagg não vai longe
o bastante, mas é preciso reconhecer que ele vai muito mais longe na direção de uma sociologia da música (e não
de uma sociologia dos discursos e instituições a ela relacionados) do que a crítica de Hesmondhalgh ou mesmo
seus escritos sobre o tema – seu artigo sobre a "indústria britânica da música eletrônica de pista" (cf.
Hesmondhalgh 1998b), por exemplo, é extremamente útil como fonte de informações sobre a macropolítica das
gravadoras, mas ignora totalmente qualquer especificidade micropolítica da experiência sonora propiciada pela
música eletrônica, tratando-a como apenas mais um produto da indústria fonográfica (o que ela não deixa de ser,
mas que está longe de esgotar a contribuição específica que ela pode fazer ao avanço de nosso conhecimento sobre
a sociedade contemporânea).

260
música popular interage com a sociedade exigem uma revisão radical".71 No Techno, ele nota,
"não há o herói da guitarra ou a estrela do Rock ou uma figura musical-estrutural correspondente
com a qual se identificar", apenas a "imersão coletiva".72 Levantando questões que não se diz
capaz de responder, Tagg então pergunta: "Estaremos realmente diante de uma expressão musical
radicalmente diferente de uma estratégia de socialização radicalmente nova entre certos grupos
de jovens em nossa sociedade? [...] Ou seriam os organizadores de rave apenas mais uma
variação do velho tema capitalista e os DJs uma mera variação do velho tema da figura central
contra o fundo genérico?"73 Em estudos posteriores, Tagg parece ter pendido para a segunda
alternativa, afirmando que enquanto no Rock os "gritos de protesto e de auto-celebração" buscam
"vencer o barulho de fundo da máquina da sociedade" e a síncope representa um "desvio" da
temporalidade dominante e uma tentativa "subversiva" de "controlá-la", no Techno "o indivíduo é
incorporado como parte do maquinário atual" devido à imersão da "figura" (o vocalista, o solo
etc.) no "fundo" e o pulso metronômico constante e explícito representa "um grau mais elevado
de aceitação afetiva e identificação com o tempo do relógio, com o ritmo digitalmente exato e,
portanto, com o sistema no qual esse sentido temporal domina".74 Em outras palavras, Tagg
parece ter concluído que enquanto os estilos musicais mais barulhentos desde o início do século
XX até os anos 70 sempre estiveram ligados a esforços pela apropriação e controle, pela parcela
excluída da população, dos índices sônicos e temporais do poder socialmente dominante, o estilo
musical mais barulhento do final daquele mesmo século estaria ligado a uma assimilação desse
mesmo poder, a uma aceitação da sujeição aos seus sons e temporalidades.
Infelizmente, parece que toda a sensibilidade e atenção de Tagg para perceber a função
ritual subversiva do Rock e do Heavy Metal não foram suficientes para que ele visse na música
eletrônica de pista nada além de assimilação e sujeição social. Mesmo percebendo que o
"potencial emancipatório" da "estratégia de socialização monocêntrica" (com "figuras" centrais e
"estilizações" individualizantes) que ele encontrou nos estilos roqueiros pode facilmente
"degenerar no egoísmo empreendedor da era Tatcher e Reagan" demonstrado em solos de
guitarra libertários usados para vender produtos nos comerciais de televisão,75 que "desde os anos
70 [...] muita coisa aconteceu na música, nos sons, na tecnologia, na sociedade e nas estratégias
dos jovens" e que "a romantização da rebelião e da emancipação do Rock [...] pode ter

71
Tagg (1994a:209-10).
72
Tagg (1994a:219).
73
Tagg (1994a:219).
74
Cf. Tagg (1997:15), Tagg e Collins (2001:2).
75
Cf. Tagg (1994a:218).

261
contribuído para a ideologia reacionária" que se desenvolveu a partir dos anos 80,76 ele não quis
ver na ausência de "figura" central e na extrema metricidade impessoal da música eletrônica de
pista muito mais do que uma manifestação sonora da submissão conformista à ordem social
dominante. Mas se quisermos levar a sério o discurso nativo sobre o xamanismo da música
eletrônica de pista então teremos que entender aquilo que a análise de Tagg provavelmente está
deixando de fora e que parece-nos ser a diferença significativa, apontada por Deleuze e Guattari,
entre sujeição social e servidão maquínica.
Apesar de ocorrerem "ao mesmo tempo" na sociedade capitalista contemporânea "como
duas partes simultâneas que não param de se reforçar e de se nutrir uma à outra",77 Deleuze e
Guattari, remetem a servidão maquínica "por excelência" à "formação imperial arcaica", na qual
"os homens não são [...] sujeitos, mas peças de uma máquina que sobrecodifica o conjunto" numa
"escravidão generalizada",78 e a sujeição social ao Estado moderno capitalista, no qual "o capital
age como ponto de subjetivação, constituindo todos os homens em sujeitos, mas uns, os
'capitalistas', são como os sujeitos da enunciação que formam a subjetividade privada do capital,
enquanto os outros, os 'proletários', são os sujeitos do enunciado, sujeitados às máquinas técnicas
onde se efetua o capital constante".79 Ora, a situação analisada por Tagg e cuja solução ritual ele
sagazmente definiu como uma espécie de magia-simpática-roqueira parece ser justamente a de
sujeição social do capitalismo industrial, na qual sujeitos (capital variável) se relacionam através
das máquinas (capital constante) e têm seu lugar social definido a partir da posição que ocupam
com relação a elas: dominantes se forem aqueles que controlam as máquinas, dominados se
forem aqueles que obedecem a elas.80 Mas se, principalmente após a década de 70, sujeição
social e servidão maquínica passaram a ocorrer simultaneamente, isso se deve, nos termos de

76
Cf. Tagg (1994b:11-3).
77
Deleuze e Guattari (1997b:158).
78
Deleuze e Guattari (1997b:156). "Lewis Mumford parece estar certo ao designar os impérios arcaicos sob o nome
de megamáquinas, precisando que, ali também, não se trata de metáfora: 'Se, mais ou menos de acordo com a
definição clássica de Reuleaux, pode-se considerar uma máquina como a combinação de elementos sólidos, tendo
cada um sua função especializada e funcionando sob controle humano para transmitir um movimento e executar
um trabalho, então a máquina humana era bem uma verdadeira máquina'." (Deleuze e Guattari 1997b:156; itálico
no original)
79
Deleuze e Guattari (1997b:157). "Certamente, é o Estado moderno e o capitalismo que promovem o triunfo das
máquinas e, notadamente, das máquinas motrizes (ao passo que o Estado arcaico tinha no máximo máquinas
simples); mas estamos falando, então, de máquinas técnicas, extrinsecamente definíveis. Justamente, não se é
submetido à servidão pela máquina técnica, mas, sim, sujeitado. Nesse sentido, parece que, com o desenvolvimento
tecnológico, o Estado moderno substitui a servidão maquínica por uma sujeição social cada vez mais forte."
(Deleuze e Guattari 1997b:156-7; itálico no original)
80
Daí o anacronismo do humanismo no capitalismo: "não, o homem não é uma máquina, nós não o tratamos como
uma máquina, certamente não confundimos o capital variável e o capital constante..." (Deleuze e Guattari
1997b:157)

262
Deleuze e Guattari, ao fato de que passamos da segunda para a terceira "idade das máquinas", do
regime de sujeição social das "máquinas motrizes" para o "regime de servidão generalizado" das
"máquinas da cibernética e da informática", no qual "'sistemas homens-máquinas', reversíveis e
recorrentes, substituem as antigas relações de sujeição não reversíveis e não recorrentes entre os
dois elementos" e "a relação do homem e da máquina" passa a se fazer "em termos de
comunicação mútua interior e não mais de uso ou de ação".81 Nesse novo contexto, ao mesmo
tempo em que no nível macropolítico da representação Estatal é preservado o predomínio dos
processos de subjetivação-sujeição mediados pelas máquinas, no nível micropolítico da produção
desejante há uma reinvenção, "sob novas formas tornadas técnicas", de "todo um sistema de
servidão maquínica" no qual as pessoas não se colocam em lados opostos da máquina, mas sim
funcionam todas como peças dela: "a reinvenção de uma máquina da qual os homens são as
partes constituintes, em vez de serem seus trabalhadores e usuários sujeitados".82
Nota-se que esse novo regime de servidão maquínica difere da servidão voluntária
imperial, pois não se está mais aqui "sob a transcendência de uma Unidade formal" (o déspota, a
lei), mas sim "na imanência de uma axiomática",83 num contexto em que a "alta tecnologia do
sistema mundial de [...] servidão maquínica abunda em proposições e movimentos [...] que, longe
de reenviar a um saber de especialistas juramentados, dão armas ao devir de todo mundo, devir-
rádio, devir-eletrônico, devir-molecular..."84 Retornamos aqui, através da referência dos autores
ao movimento das rádios livres, ao devir-rádio do xamã Araweté,85 que ao encontrar na máquina
um análogo de seus poderes fez de si mesmo uma peça dessa máquina ao mesmo tempo em que
mostrava na máquina a possibilidade macropolítica de um novo processo de subjetivação

81
Deleuze e Guattari (1997b:157-8). Haraway distingue as "máquinas pré-cibernéticas" – máquinas que "não eram
vistas como tendo movimento próprio, como se autoconstruindo, como sendo autônomas" – das "máquinas do final
do século XX" – que "tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o
corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado" –, uma "divisão orgânica do trabalho" de
uma "ergonomia/cibernética do trabalho" (Haraway 2000:46, 65). Garcia dos Santos chamou a transição de um
regime para o outro de "virada cibernética" (cf. Garcia dos Santos 2003a).
82
Deleuze e Guattari (1997b:157).
83
Deleuze e Guattari (1997b:157). A axiomática se distingue do código na medida em que este é um "modelo de
realização" daquela. Assim, enquanto a axiomática "considera diretamente os elementos e as relações puramente
funcionais cuja natureza não é especificada, e que se realizam imediatamente e ao mesmo tempo em campos muito
diversos", os códigos são "relativos a esses campos, enunciam relações específicas entre elementos qualificados,
que não podem ser reconduzidos a uma unidade formal superior (sobrecodificação) a não ser por transcendência e
indiretamente" (Deleuze e Guattari 1997b:153). "Ora, a sujeição social, como correlato da subjetivação, aparece
muito mais nos modelos de realização da axiomática do que na própria axiomática." (Deleuze e Guattari
1997b:157) Em outras palavras, lidamos aqui com a diferença entre a axiomatização a-significante de fluxos
descodificados e as codificações e sobrecodificações subjetivantes dos fluxos.
84
Deleuze e Guattari (1997b:177).
85
Cf. no Capítulo 6 a seção "Os xamãs e as máquinas", acima.

263
indígena. As duas possibilidades são exemplificadas por Deleuze e Guattari a partir do caso da
televisão:

[S]omos sujeitados à televisão na medida em que fazemos uso dela e que a consumimos, nessa
situação muito particular de um sujeito do enunciado que se toma mais ou menos por sujeito da
enunciação ("os senhores, caros telespectadores, que fazem a televisão..."); a máquina técnica é o
meio entre dois sujeitos. Mas somos submetidos pela televisão como máquina humana na medida
em que os telespectadores são não mais consumidores ou usuários, nem mesmo sujeitos que
supostamente a "fabricam", mas peças componentes intrínsecas, "entradas" e "saídas", feed-back ou
recorrências, que pertencem à máquina e não mais à maneira de produzi-la ou de se servir dela. Na
servidão maquínica há tão-somente transformações ou trocas de informação das quais umas são
mecânicas e outras humanas.86

Num caso, "a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se reporta a um objeto
tornado exterior, seja esse objeto um animal, uma ferramenta ou mesmo uma máquina: o homem,
então, não é mais componente da máquina, mas trabalhador, usuário..., ele é sujeitado à máquina,
e não mais submetido pela máquina".87 No outro caso, "os próprios homens são peças
constituintes de uma máquina, que eles compõem entre si e com outras coisas (animais,
ferramentas), sob o controle e a direção de uma unidade superior",88 sendo essa unidade agora
não mais transcendente (como era o caso da servidão na megamáquina sobrecodificante
imperial), mas imanente. Assim, se por um lado "ao constituir uma axiomática dos fluxos
descodificados [...] o capitalismo aparece como uma empresa mundial de subjetivação",89 por
outro "quando o capital constante cresce proporcionalmente cada vez mais, na automação,
encontramos uma nova servidão, ao mesmo tempo que o regime de trabalho muda, que a mais-
valia se torna maquínica e que o quadro se estende à sociedade inteira".90 O importante aqui
parece-nos ser o fato de que Tagg ignorou a diferença relevante entre uma situação na qual
sujeitos do enunciado mediado pelas máquinas tentam encontrar meios de se tornarem sujeitos de
enunciação e outra na qual há uma suspensão temporária dos processos de subjetivação em nome
de um apagamento temporário da subjetividade por uma servidão maquínica generalizada,
servidão essa que não se dá com relação a uma instância transcendente ao próprio processo, mas

86
Deleuze e Guattari (1997b:158-9; itálico no original).
87
Deleuze e Guattari (1997b:156; itálicos no original).
88
Deleuze e Guattari (1997b:156).
89
Deleuze e Guattari (1997b:157).
90
Deleuze e Guattari (1997b:158).

264
a uma axiomática que lhe é imanente: num caso, estamos diante de processos de subjetivação, no
outro diante de maquinações.91
Não se trata aqui de defender um ou o outro, mas sim de perceber que a dimensão
xamânico-ritual da música eletrônica se explica muito mais pelos processos sociais mais recentes
ligados à servidão maquínica cibernética (nos quais a diferença entre humanos e não-humanos é
perspectivista) do que pelos processos sociais mais ligados à sujeição social das máquinas
mecânicas (nos quais a diferença entre humanos e não-humanos é mais essencialista). A
diferença é importantíssima, e nos remete à diferença entre o relativismo dos primeiros
ciborgólogos – baseado na homeostase, nos processos de subjetivação conscientes que são a
contrapartida da sujeição do inconsciente corporal à máquina – e o perspectivismo da
ciborgologia defendido por Haraway – baseado na metaestabilidade, nos maquinismos que
atravessam, conectam e transformam os diferentes níveis do sistema bio-cibernético.92 Se para
aqueles o ciborgue era um sistema conservador preocupado com a adaptação do humano ao

91
Há, certamente, maquinações também nos transes do Rock, do Heavy Metal, e notavelmente do motociclismo, mas
elas foram totalmente ignoradas por Tagg, que preferia prestar atenção apenas aos seus traços expressivos – e.g. a
ênfase de Tagg nos braços estendidos em "V" dos metaleiros, centrais para a sua argumentação sobre a "vitória
temporária" sobre a sujeição, em detrimento do gesto maquínico muito mais freqüente do headbanging, totalmente
ignorado por ele e que ajuda a entender a curiosa proximidade (bem documentada por Reynolds 1999:124, 139,
284, 292-3, 295, 303, 368, 387) do estilo com muitas variações da música eletrônica de pista. Quanto ao
motociclismo, basta comparar a imagem do som do motor promovida pela prática do tuning – "a motocicleta é um
instrumento de sopro em potencial, visto que 'afinando' [tuning] a nota do motor ao seu gosto [...] o piloto pode
fazê-la 'cantar' uma canção com o acelerador" (Thompson 2000:109) – e aquela descrita por Pirsig: "Este velho
motor tem um som peculiar, como se houvesse um monte de moedas soltas chacoalhando dentro dele. Parece
horrível, mas é apenas o ruído normal que fazem as válvulas. Uma vez acostumada com ele, a gente
automaticamente percebe qualquer diferença. Se não se distingue nada, é porque está tudo bem." (Pirsig *1984:55)
Num caso, a máquina é um objeto exterior que media uma enunciação musical do sujeito-motociclista-músico; no
outro, a máquina inclui o próprio motociclista, que interage com o som espontâneo do motor num sistema dinâmico
no qual "sua variação de ritmo, sua mudança de freqüência ou de timbre, sua alteração das transitoriedades [...]
traduzem uma modificação do funcionamento" (Simondon, in: Garcia dos Santos 1994:49).
92
Clynes e Kline diziam: "Se o homem no espaço, além de pilotar sua nave, precisar continuamente verificar coisas e
fazer ajustamentos a fim de permanecer vivo, ele se torna um escravo da máquina. O objetivo do Ciborgue, assim
como de seus próprios sistemas homeostáticos, é fornecer um sistema organizacional no qual esses problemas de
tipo robótico [robot-like problems] são resolvidos automaticamente e inconscientemente, deixando o homem livre
para explorar, criar, pensar e sentir." (Clynes e Kline 1995:31) Nota-se que o homem deixa de ser o "escravo da
máquina" quando faz desta um escravo-robô-inconsciente. A perspectiva da máquina como "escravo" é, parece-
nos, aquilo que distingue as tendências subjetivantes que se desprendem da estética tecnológica de grupos como
Kraftwerk – que oscilam entre a subjetivação de "I'm the operator with my pocket calculator" e a sujeição de "we
are the robots" (cf. Kraftwerk a2005[vol.2]:7, 9; a1978:1; Eshun 1999:86-7) – das tendências dessubjetivantes
estimuladas pelas vertentes mais maquínicas do Techno – que abandonam totalmente o dualismo operador/máquina
em nome de uma maquinação generalizada. Como disse Garcia dos Santos, "pensar a questão [da relação entre
humanos e máquinas] em termos de oposição é muito ruim porque, ou você está antropomorfizando a máquina ou
mecanizando o humano, e [...] todo pensamento que pensa em termos de oposição acaba considerando a máquina
como um estrangeiro, quer dizer, como um escravo. Não é isso o que interessa, mas sim saber em que medida nós
podemos ter um tipo de individuação que se dá junto com o processo de individuação das máquinas. Ou seja: de
que maneira, ao nos individuarmos, atualizamos uma potência virtual com as máquinas, que então também
atualizam virtualidades que pertenciam ao terreno do pré-individual." (Garcia dos Santos, in: CTeMe 2005a:9-10;
2005b:166; itálicos no original)

265
ambiente não-humano através da adaptação da máquina ao humano, para esta o ciborgue é "um
ponto de vista privilegiado" híbrido e heterogêneo a partir do qual olhar para a vida e orientar
melhor a ação.93 Falando sobre o costume de artistas de Techno assumirem personas
cibernéticas,94 Eshun nota que "ciborguificar-se é dar a si mesmo o nome de um equipamento
técnico, tornar-se um gerador elétrico, um canal, um meio para transmitir emoções elétricas",
"tornar-se um componente do mundo futuro das máquinas ainda por ser construído", um "vetor
numa rede de forças".95 Um "ciborgue oposicionista",96 enfim, não usa a máquina para cumprir
uma função pré-determinada, homeostática, adaptativa, mas sim para sondar as virtualidades da
própria função, a margem de indeterminação da máquina: não se sujeitar a uma máquina técnica
determinada com relação à qual se é um sujeito, mas sim explorar o estado de servidão a uma
máquina social determinante da qual se é, de fato, uma peça.
Não há necessariamente exclusão entre as duas propostas, mas sim implicações mútuas
com diferentes conseqüências políticas, uma dedicando-se à construção macropolítica de

93
É assim que entendemos a analogia feita por Haraway entre os ciborgues-astronautas de Clynes e Kline e o
ciborgue-Gaia de Lovelock, aqueles sendo versões "miniaturizadas" e "auto-contidas" deste (cf. Haraway 1995:xv).
Evidentemente, não haveria o ciborgue-Gaia sem as suas "versões miniaturizadas e auto-contidas", pois são estas
que permitem a ocupação objetiva do ponto de vista privilegiado a partir do qual aquele se revela, mas isso não
elimina a grande diferença que há entre o próprio ponto de vista/fuga privilegiado sobre a vida (um novo axis
mundi/axioma) e os meios objetivos e contingentes de assumi-lo.
94
Apesar de não ser uma regra, é comum encontrar referências a máquinas técnicas (atuais ou virtuais) em nomes de
grupos e artistas – alguns exemplos aleatórios são Kraftwerk, Mantronix, Cybotron, Model 500, Cyborg X, Black
Box,C+C Music Factory, Noise Factory, Factory Kids, Turntable Orchestra, D-Train, Motorbass, 808 State, LFO,
Atari Teenage Riot, Powerline, Boom Boom Satellites, Cybersonik, Circuit Breaker, Cosmonautics, Magnum
Force, Dynamo City, Aphex Twin, Anvil FX, Apollo 9, DD Chip, RAM Science, Scanner, DJ T-1000, Galaxie,
Machine, Wrecked Machines –, músicas e discos – alguns exemplos aleatórios são Maestro Mecânico (DJ Grego),
Mechanically Replayed (Virgo), Electric Dreams (Giorgio Moroder), Machines (Laurent X), It is Man or Machine
(Aux 88), Answer Machine (Green Velvet), Washing Machine (Mr. Fingers), Smoke Machine (MP4 DJ), The
Secret Life of Machines (Sterac), Cosmic Cars (Cybotron), Horsepower (CJ Bolland), Diesel Power (The Prodigy),
Full Throttle (The Prodigy), Speedway (The Prodigy), Driver (Daz Sound), Renaut/Peugeot (Otto), Pneu (Zzino),
Love Train (O'Jays), Yellow Train (Resonance), Friendship Train (Gladys Knight), Station (Camilo Rocha), Next
Station (Renato Cohen), Testone (Sweet Exorcist), X-Ray Ok (Star Power), Sonar System (Meng Syndicate),
Android (The Prodigy), Technarchy (Cybersonik), Machine Gun (Cybersonik), Jackhammer (Cybersonik), Caça-
Andróide (Stra), The Factory (The Soundman), The Bomb (Phil Kieran), Atom Bomb (Doomsday), The Helicopter
Tune (Deep Blue), Desktop Robotics (Bochum Welt), Hard Tech (Rezonate), Steamliner (Dave the Drummer e
Jerome), Chainsaw Massacre (Ant e Chris Liberator), Hydraulix (Dave the Drummer), Clawhammer (Temperature
Drop), Antimonium (Schild), Music Box (Roni Size & DJ Die) Artificial Intelligence (vários), 30Hz (Dillinja),
Remote Control (Phantom Audio), TV a Cabo (Otto), O Celular de Naná (Otto), Telefone (Musicology),
Soundsystem (Kektex), Guncheck (Ed Rush) Push the Button (The Chemical Brothers) além de todos os discos e
músicas do Kraftwerk –, casas noturnas e festas – e.g. Music Box (Chicago, EUA), Power Plant (Chicago, EUA),
Power House (Chicago, EUA), Sound Factory (Nova Iorque, EUA), NASA (Nova Iorque, EUA), 30Hz (São Paulo,
Brasil) – e gravadoras – e.g. Assault Rifle, Basic Channel, Data Bass, Disfunction, Interdimensional
Transmissions, Metroplex, Position Chrome.
95
Eshun (1999:106).
96
"A idéia de 'rede' evoca tanto uma prática feminista quanto uma estratégia empresarial multinacional [e,
acrescentaríamos, uma operação xamânica] – tecer é uma atividade para ciborgues oposicionistas." (Haraway
2000:84).

266
identidades e a outra à produção micropolítica de diferenças. Se por um lado Tagg parece ter
falhado na percepção do papel ritual da música eletrônica de pista em particular, por outro ele de
qualquer forma percebeu um ponto que nos parece crucial para a compreensão do papel ritual da
música eletricamente amplificada em geral no mundo contemporâneo: o fato de que sua função
ritual está necessariamente ligada à sua capacidade de trabalhar com potências e qualidades
sonoras que são mais ou menos conscientemente percebidas como sendo aquelas da própria
máquina social. Não é, como já vimos, salvo raras exceções, o som "audível" das máquinas
técnicas que dominam a paisagem afetiva de nossa sociedade que escutamos na música eletrônica
de pista, mas sim um outro som tão real quanto aquele mas "inaudível" sem essa música. É o
som, diríamos, de uma máquina social particularmente bem sucedida na produção de máquinas
técnicas, uma máquina pela qual somos maquinados junto com muitas outras pessoas, objetos e
máquinas técnicas. É um efeito perspectivista. Não estamos mais olhando a máquina de fora.
Estamos dentro dela. Somos como que uma de suas peças.97
O discurso nativo encontra algumas maneiras de expressar essa experiência. Lemos num
depoimento encontrado na Internet, por exemplo, que o Techno "é muito parecido com uma
máquina" que "junta, mói, vira e mistura para criar um produto", que "quando escuto Techno eu
me sinto parte dessa máquina, a música se torna a minha respiração, energia, movimento e afeta
meu estado emocional e minha aparência" e que as "sutis variações nos sons produzidos pelas

97
A sensação de que dançar ao som de música eletrônica é ser uma peça de uma máquina foi, de fato, comprovada
em primeira mão por nossa pesquisa em algumas festas. Reynolds, durante uma festa na Holanda, também concluiu
que a música, assim como os videogames, "estão recalibrando o sistema nervoso e preparando ele para a inserção
no domínio virtual", que numa festa"tudo é planejado para fazer o adolescente sentir que ele está realmente dentro
de um videogame" (Reynolds 1999:285; itálico no original). Circulou com bastante sucesso pela Internet uma
declaração atribuída a um diretor da Nintendo Inc. (Kristian Wilson) que vai na mesma direção: "Videogames não
influenciam crianças. Se o Pac-Man [jogo de computador desenvolvido por Tohru Iwatani na empresa Namco
(Japão) em 1981-2 no qual o jogador comanda um personagem que deve "abocanhar" ícones dispersos em um
labirinto ao mesmo tempo em que foge de "fantasmas" que o perseguem] tivesse nos influenciado quando éramos
crianças estaríamos todos correndo em salas escuras, comendo pílulas mágicas e escutando músicas eletrônicas
repetitivas". A ironia da declaração é que o ano em que ela teria sido feita (1989) é justamente o marco do início da
explosão global das raves, que podem ser descritas estereotipadamente como pessoas correndo em salas escuras
comendo as "pílulas mágicas" do ecstasy e escutando músicas eletrônicas repetitivas. Talvez o que pesquisas
recentes sobre a influência benéfica de videogames na agilidade de raciocínio lógico de crianças esteja provando é
que mais do que "influenciar" as crianças, os videogames lhe oferecem um treinamento para a servidão maquínica
generalizada da sociedade capitalista pós-industrial. Mesmo assim, como não poderia deixar de ser, abundam
processos de subjetivação no campo dos videogames. Um exemplo privilegiado dessa "desmaquinação" é o caso da
bifurcação dos estilos de uso do Dance Dance Revolution – jogo cuja interface é uma superfície quadriculada sobre
a qual o jogador dança em sincronia com uma música e de acordo com instruções que são mostradas em tempo real
na tela; vence quem acertar o maior número de passos e tiver a melhor sincronia com a música, ou seja, quem
melhor formar máquina com o videogame – em Tech e Freestyle, aquele tendo como objetivo a maior pontuação (e
portanto uma submissão às instruções e ritmos da máquina) e este, normalmente chamado de "dança de verdade",
tendo como objetivo "apresentar uma coreografia original", dançar "para a platéia, e não para a máquina" (cf.
Smith 2004:75). Parece-nos que há uma perda de potência toda vez que uma atividade que se caracteriza por um
devir-máquina é desviada para fins expressivos.

267
máquinas mexem em algo muito profundo dentro de mim em que nenhuma outra música
mexe".98 Num texto sobre a história do Techno, lê-se que "[n]ós nos esquecemos que estamos
cansados, que a pessoa na nossa frente está invadindo o nosso espaço com seus braços
balançando" e "[d]e repente, estamos lá", "presos no transe, a energia maior", e "junto com
milhares de outros, nós decolamos".99 Um jornalista nativo conclama: "liberte-se e dance", "[s]eja
com o corpo ou com a alma, dance sem parar as infinitas combinações de átomos se
movimentando daquela partícula que gerou a água para gerar a correnteza que gerou uma
hidrelétrica que gerou eletricidade para gerar música nas caixas de som que estão gerando
movimentos em você".100 Outro depoimento encontrado na Internet fala sobre a sensação de ser
"uma ferramenta ligando os DJs ao público": "era como se seus pensamentos, vibrações e batidas
entrassem diretamente em mim e eu dançava da maneira como eles queriam. Eu não pensava em
nada. Eu sabia como a música iria mudar antes que ela tocasse, como se a música estivesse dentro
de mim, fazendo-me mover. Eu não tinha controle sobre meus próprios movimentos. Eu havia
dado o meu corpo aos DJs em nome de uma causa maior".101 Reynolds conta em seu livro que foi
"instantaneamente capturado por um novo tipo de dança – [...] a agitação de corpos reduzidos a
componentes separados e então reintegrados no nível da pista de dança como um todo": "Cada
parte (um membro, uma mão em forma de pistola) era uma peça de uma 'máquina desejante'
coletiva, engrenada nos graves e riffs seqüenciados do sistema de som."102 Ralf Hütter, enfim,
membro fundador do grupo Kraftwerk, constata que "todos procuram o transe na vida" e que "as
máquinas produzem um transe absolutamente perfeito",103 um transe que poderíamos certamente
chamar de maquínico.

98
"[T]he subtle variations in machine-produced sound stir something deep inside of me that not all other music
does.[...] Techno meshes, grinds, turns and blends to create a product. It is very similar to a machine. When I listen
to Techno I feel like I am part of this machine, the music becomes my breath, energy, movement and affects my
emotional state and outlook." (Michalski *1999) Outra conexão tecno-afetiva com a máquina da música eletrônica
foi sugerida por Jari Nousiainen: "Eu me conecto com a música e deixo que ela jogue minhas emoções para lá e
para cá. [I just plug in to the music and let it sway my emotions back and forth]" (Jari Nousiainen, raver finlandês,
in: Fritz, 1999:82).
99
Savage (1993:1). O tema da viagem é talvez o mais comum, como quando a pessoa se sente "viajando num túnel
ondulante que pulsa no ritmo do bumbo com luzes que piscam em minha direção" (Michael Elewonibi, promoter
canadense, in: Fritz 1999:48) ou "viaja nas ondas da música" rumo ao "espaço" (Henao *1995).
100
Croppo (*2002). Uma nativa também vai nessa direção: "Você se conecta em um nível molecular com todos e
com tudo" (Jane, artista canadense, in: Fritz 1999:52)
101
Weisberg et al. (*1996). "Esse tipo de som tem poder sobre mim, ele é hipnótico", diz ainda a estudante paulista
Raquel Vendi, de 19 anos (in: França e Okky de Souza 1998:85).
102
Reynolds (1999:5). Reynolds fala ainda, por exemplo, de uma garota que "se contrai e pula mecanicamente, seus
membros largados traçando padrões repetitivos no ar, como se ela fosse animada por uma vontade outra que não a
dela" (Reynolds 1999:350).
103
Ralf Hütter, in: Savage (1993:1).

268
Segundo Tim Becker e Raphael Woebs, é justamente a "periodicidade implacável [...] e a
divisão mecânica e exata do tempo ('não-humanizado')" na música eletrônica de pista que "torna
possível a sua dimensão mítica".104 É a "estruturação exagerada e ilimitada do tempo" que "cria a
sensação de atemporalidade", é a "desumanidade" do "tempo musical 100% estruturado" que leva
ao "transe", "um 'deixar-se levar' pela lógica de um ritmo hipnótico que flui em movimentos
'controlados por outrem'".105 O papel do DJ é então estimular o transe coletivo através da
coordenação desse som "desumanamente preciso" com os movimentos do público.106 Mas se a
precisão absoluta do tempo musical está diretamente ligada à experiência do transe maquínico, o
mesmo se pode dizer da repetitividade do som tecnicamente reproduzido. Como bem nota Tony
Langlois, a "extensa repetição de um único ritmo" produz uma "ambiência 'extraordinária'
['other-worldly' ambience]" que estimula cada pessoa a "refugiar-se em seu próprio 'mundo
dançante' [sensual 'danceworld']", a "perder-se na música".107 De fato, um mundo sensório-motor
extraordinário, caracterizado pela precisão técnica e pela sincronização entre som e movimento
parece ser produzido pela música eletrônica de pista. Já vimos na primeira parte desta tese como
a repetitividade foi repetidamente apresentada como o principal elemento do xamanismo da
música eletrônica pelo seu papel central na produção do transe. O que tentamos mostrar agora é
que essa repetitividade é marcada por uma tecnicidade (seqüenciadores) e uma intensidade
(amplificadores) que a distingue daquela, por exemplo, da música ritual indígena, e que faz dela o
som de uma máquina social específica, conhecida ritualmente através de um transe também
específico.108
Se o procedimento da magia simpática roqueira proposta por Tagg consistia
principalmente em assumir a posição de controlador de uma máquina que era normalmente vista
como controladora, o procedimento do xamanismo da música eletrônica de pista parece consistir

104
Becker e Woebs (1999:63).
105
Becker e Woebs (1999:63-4). "As técnicas do êxtase são elementos irrefutáveis de todas as culturas, e o ritmo
invariável do Techno e suas danças se provam particularmente apropriados para alcançar estados de transe."
(Becker e Woebs 1999:64). Esses pesquisadores chamam a atenção ainda para o papel das "luzes estroboscópicas"
na produção do transe, ao criarem "espaços virtuais que parecem congelar os movimentos das pessoas e assim
evocar interdependências permanentes entre os aspectos do tempo e do espaço rituais e de sua desintegração"
(Becker e Woebs 1999:65). De fato, seria preciso outra pesquisa para dar conta do papel da iluminação na
produção do transe, em especial das luzes estroboscópicas – cujos efeitos alteradores já são comprovados desde a
década de 30 e se popularizaram com os controversos estudos de Andrew Neher nos anos 60 (cf. Rouget 1985:172-
5; Becker 1994:48; Achterberg 1996:49-50; Harrah-Conforth 1992) –, visto que a combinação entre luzes
estroboscópicas e o pulso marcado da música eletrônica é de fato muito explorada nas festas.
106
Becker e Woebs (1999:64).
107
Langlois (1992:235-6). Como dizia um panfleto de uma festa: "Para se achar, antes é preciso se perder".
108
Como bem notou Fontanari, "o transe que ocorre nas raves é o transe particular das raves, cuja experiência só é
possível nesse meio e em mais nenhum lugar" (Fontanari 2003:167).

269
principalmente em assumir a posição da própria máquina, que deixa então de ser um
intermediário entre dois sujeitos e passa a ser uma espécie de maquinação universal que se
preocupa menos com os produtos do que com os processos, menos com o destino e mais com a
própria viagem. Mesmo nos casos em que essa maquinação se dá pela dominação dos
movimentos corporais por instâncias exteriores, ainda assim a ênfase é menos na sujeição e mais
na maquinação, pois os movimentos não são forçados contra alguma resistência, mas sim
assumidos pelo corpo: há como que uma "ressonância natural" do sistema.109 Por isso, quando
Eshun distingue o Funk do Techno afirmando que enquanto aquele, com suas sinuosidades,
"estimulava você a dançar para fora de sua constrição", com este "você dança para dentro de sua
constrição", ele não está criticando o Techno (como Tagg), mas sim apontando o fato de que ele
cria "novas expectativas", um novo "sentimento abstrato".110 O tempo metronômico não é um
instrumento de sujeição, mas de maquinação: "A batida do coração é capturada e clonada pelo
tempo sintetizado em impactos. Você se torna uma extensão da máquina que gera o tempo.
Deslize pelos espaços entre as seqüências."111
Reynolds nota que apesar dessa idéia de "libertação pelo abandono da subjetividade e da
vontade própria" surgir na House associada a uma "imagética hiperssexual" e "homoerótica" da
"submissão ao gozo vigoroso", ela é logo suplantada pelo "delírio pós-sexual" do jacking,112 a
dança repetitiva e maquínica estimulada pelas tracks. Se com a Disco "a dança gradualmente
deixou de servir como ritual de acasalamento e se abriu para a expressão livre e individual", o
jacking "levou o processo ao próximo estágio, substituindo o rebolado e o sacolejo com um
frenesi do corpo todo com tiques polimorficamente perversos e uma puladeira convulsiva".113
"Plugado no sistema de som, o House jacker se parece um pouco com um robô epilético" e a

109
Daí a aparente contradição da constante justaposição das experiências de "libertação" e de "servidão" no discurso
nativo: trata-se justamente de uma liberdade na imanência de um axioma, como "uma máquina realmente feliz,
feliz porque livre [a truly joyous machine, by joyous I mean free]" (cf. Deleuze e Guattari 1976:505).
110
Eshun (1999:107-8; itálico no original).
111
Eshun (1999:95). Segundo Eshun, o século XXI começa a ser audível com "a Queda da música negra da graça da
tradição gospel na linha de montagem metronômica" (Eshun 1999:-6).
112
Cf. Reynolds (1999:28-9). Jack é uma palavra extremamente polissêmica, sendo muitos de seus sentidos ligados a
máquinas. Reynolds dá especial atenção ao seu sentido "conector" (cf. Reynolds 1999:29), que poderíamos traduzir
como "soquete" ou "tomada elétrica". Segundo Poschardt, jack é "um groove que é o ancestral de todos os grooves
e que [...] toma posse do corpo das pessoas" (Poschardt 1998:245-6). Cláudio Manoel propõem ainda uma versão
brasileira criativa para o termo: "Enfiar o pé na jack é mesmo pesar o som, pesar o máximo até esgotar a pista com
a dança veloz. Hard." (Duarte de Souza *[s.d.]a).
113
Reynolds (1999:29). Se na Disco ainda se podia dizer que a dança "implica e insinua sexo fantástico depois num
lugar mais apropriado", "[a] promessa [...] de coisas melhores, depois, prazer adiado" (Byrne 2002:8), nas vertentes
mais maquínicas da música eletrônica pós-Disco a dança poderia ser considerada um sexo não-humano fantástico
explícito em ato, o prazer aqui-e-agora.

270
música "toma diretamente posse do sistema nervoso através da interface bio-grave".114 No transe
maquínico do jacking a música não é mais uma forma de "auto-expressão" e sim "um campo de
forças no qual a consciência individual é suspensa e apagada",115 "uma orquestra de metrônomos,
todos subordinados à condução tirânica do bumbo", uma seqüência de pulsos programados cuja
previsibilidade "é o que permite à mente se desligar e 'entrar em transe'".116 Dessubjetivação pela
maquinação do som técnico, uma servidão maquínica que não obedece mais a uma lei tirânica
transcendente, mas sim à ressonância interna ao sistema sensório motor estimulado pela
"condução tirânica do bumbo".117 Um "tornar-se menos humano"118 que se confunde com um
poderoso devir-máquina.
Foi difícil encontrar alguma teoria do transe que iluminasse a experiência específica do
transe maquínico. Gilbert Rouget, por exemplo, apesar do indiscutível mérito de ter consolidado
definitivamente o princípio de que não há transe sem predisposição ao transe,119 pareceu-nos
muito mais preocupado em classificar os diferentes tipos de transe do que em compreender
efetivamente o seu funcionamento.120 No afã de desbancar as teorias universalistas, automáticas e

114
Reynolds (1999:29; "the bass-biology interface").
115
Reynolds (1999:123; itálico no original). Reynolds se refere aqui ao Hardcore Techno e não à House, mas o efeito
produzido em ambos é análogo, sendo aquele um desenvolvimento da vertente "pós-humana" da música eletrônica
iniciado pelas House tracks.
116
Reynolds (1999:203). Reynolds se refere aqui em especial ao estilo Trance, bem distinto, para um nativo, das
House tracks (estas são muito mais minimalistas), mas que de qualquer forma trabalham com o mesmo tipo de
transe maquínico.
117
Por isso não concordamos com uma idéia como a de que "o paradoxo temeroso da era tecnológica, de que as
máquinas criadas como escravos artificiais vão de alguma forma escravizar e mesmo mecanizar os seres humanos,
é ritualmente encenado na discoteca" (Walter Hughes, in: Bacal 2003:117; cf. Poschardt 1998:115-6): quando as
máquinas não são mais escravas, o "paradoxo temeroso" deixa de existir. Como notou um nativo, o Techno "exige
que dancemos com abandono, que nos rendamos à batida que vem tanto de dentro quanto de fora" (Casey *1993).
A música "Free State" do DJ e produtor Chris Liberator é clara: "não há leis aqui exceto a lei da droga e da música"
(Chris Liberator a2000:2); e o disco Internal Empire de Robert Hood (a1998) não deixa dúvidas: o "império" agora
é o da imanência.
118
Reynolds (1999:29).
119
"A técnica funciona apenas pois está a serviço de uma crença e porque o transe constitui um modelo cultural
integrado em uma certa representação geral do mundo. [...] É por isso que a entrada no transe sempre parece
depender de uma cláusula restritiva: não importa o quão preparado se possa estar, fisicamente e psicologicamente,
é preciso ainda estar preparado intelectualmente e ter feito a decisão (mais ou menos inconscientemente) de
sucumbir ao transe." (Rouget 1985:321) Daí a tese central de Rouget, de que o papel da música no transe é de
"socializá-lo" (e portanto diferente em diferentes culturas) e não de provocá-lo (como desejaria uma teoria mais
determinista) (cf. Rouget 1985:xviii, 323). No xamanismo em especial, "o papel da música é muito menos produzir
o transe do que criar condições favoráveis para a sua ocorrência, regularizar sua forma e garantir que ele deixe de
ser um fenômeno individual, imprevisível e incontrolável e passe a ser um comportamento previsível, controlado e
a serviço do grupo" (Rouget 1985:320).
120
"Em cada caso uma lógica diferente determina as relações entre a música e o transe. É essa lógica que eu tentarei
elucidar" (Rouget 1985:xviii). Infelizmente, Rouget não parece elucidar essa "lógica", antes ele parece se
complicar indefinidamente com preocupações terminológicas que se provam insustentáveis seja com relação aos
pesquisadores nos quais ele se baseia, seja com relação às culturas a que ele se refere, seja, enfim, à própria
consistência interna de seu estudo – um exemplo particularmente gritante disso é o seu esforço em distinguir

271
deterministas que insistem em explicar o transe por mecanismos neurofisiológicos ele acabou se
privando de perceber as contribuições que muitas dessas teorias podem oferecer quando
interpretadas de uma maneira não determinista.121 Se ele mesmo confirma que "[a] principal
função da música [...] parece ser manter o transe da mesma maneira como uma corrente elétrica
manterá a vibração de um diapasão se calibrada na sua freqüência de ressonância",122 então por
que insistir num relativismo absoluto que nega à música qualquer papel no transe que não o de
mera comunicação de convenções sociais? Se "nenhum sistema rítmico está especificamente
relacionado ao transe",123 então o que fazer das inúmeras e constantes referências nativas a essas
relações? Se a música, como "um estímulo à dança", "parece ser capaz de modificar
profundamente a relação do self consigo mesmo ou, em outras palavras, a estrutura da
consciência",124 então qual é a vantagem em fechar os olhos (e os ouvidos) para o fato de que,
uma vez havendo a predisposição para o transe através da dança, existem sim inúmeros
mecanismos musicais que o estimulam, provocam e controlam?125 Por que, enfim, negar o poder
que as próprias pessoas atribuem à música? Tudo indica que a função da música eletrônica de
pista na produção do transe está, de fato, intimamente relacionada ao fenômeno de ressonância
mencionado por Rouget e depende, como já vimos, da predisposição inicial por ele advogada.
Mas diferentemente daquilo que ele insiste em afirmar, uma vez havendo a predisposição, tudo
indica que há sim mecanismos propriamente musicais ou sonoros que determinam a qualidade do
transe e o seu desenvolvimento.

radicalmente "transe" e "êxtase" (para se dedicar apenas àquele) através de critérios comportamentais totalmente
ambíguos e contra todas as evidências de que elas são experiências relacionadas (cf. Rouget 1985:3-12),
obrigando-o a contradizer a maior parte da bibliografia que ele mesmo utiliza, como quando ele passa por cima de
todas as referências ao "êxtase" pelos autores que servem de base às suas considerações sobre o xamanismo (dentre
os quais Eliade figura com destaque) (cf. Rouget 1985:125-33, 318-20), ou quando insiste em traduzir o termo
árabe wajd como "transe" quando toda a literatura especializada o traduz como "êxtase" (cf. Rouget 1985:258-62).
121
Sobre explicações mecânicas e deterministas como as do "reflexo condicionado" e as das "perturbações do ouvido
interno", ele declara: "ou elas existem e de fato induzem o transe, tendo o mesmo efeito em todas as circunstâncias,
ou elas não têm sempre o mesmo efeito e então não se sabe por que se deveria tomá-las como explicação, quando
não passam de hipóteses. É melhor descartar tudo." (Rouget 1985:179) Deparamo-nos aqui novamente com a
opção extrema entre explicar tudo ou não explicar nada. Rouget acaba aqui sendo mais determinista do que os
deterministas que ele critica.
122
Rouget (1985:325).
123
Rouget (1985:90).
124
Rouget (1985:121).
125
Não concordamos, por exemplo, que "[s]e a um ritmo particular é atribuído o poder de disparar o transe em uma
região e em uma outra um ritmo muito diferente desempenha a mesma função, o motivo deve ser que qualquer
ritmo ou sistema rítmico [...] pode fazer o serviço tão bem quanto qualquer outro" (Rouget 1985:90). Com isso, não
se chegará nunca a compreender por que aquele ritmo, e não qualquer outro, funciona naquela região e não em
qualquer outra, o que nos parece mais interessante do que qualquer tipologia discursiva. Como já disse Anthony
Jackson em seu ensaio sobre "som e ritual", "a decisão de usar certos tipos de som é empírica e baseada na
produção dos efeitos desejados" (Jackson 1968:297).

272
Alfred Gell, ao tirar proveito de estudos relevantes de psiquiatria, neurologia, fisiologia e
ciências cognitivas na construção de uma "teoria vestibular da indução do transe",126 acaba
contribuindo muito mais para a compreensão do transe maquínico da música eletrônica. Partindo
de uma análise de procedimentos rituais dos Muria (Índia) voltados para o contato com
divindades através da produção de estados de desequilíbrio corporal, Gell propõe, na forma de
um pós-escrito, uma teoria que pretende jogar alguma luz sobre comportamentos variados como
o gosto dos bebês por serem embalados, das crianças por balanços e brinquedos de playground
em geral, de adolescentes por bicicletas, de jovens por skates e de adultos por atividades como
pular de pára-quedas, além de distúrbios mentais como o autismo e, é claro, os mais variados
rituais tradicionais do mundo todo envolvendo a produção do transe.127 Poderíamos resumir a
teoria de Gell na seguinte fórmula: se entre as ações que partem normalmente das intenções de
uma pessoa e as suas conseqüências, na forma como são normalmente percebidas por ela, for
inserida uma etapa intermediária não habitual, ocorrerá uma desautomatização temporária da
sua integração sensório-motora e uma reestruturação das relações entre essa pessoa e o mundo
(cf. Imagem 8). No caso dos Muria, essa reestruturação assume um caráter religioso, pois se dá
no âmbito de rituais nos quais, através de diversas técnicas, pessoas suspendem temporariamente
o seu senso de equilíbrio e assim não apenas "se tornam" divindades, mas permitem às
divindades "se realizarem".128 No ritual anga,129 por exemplo, uma estrutura pesada de madeira é
apoiada sobre os ombros de dois ou quatro jovens e, ao som de percussão "alta e rápida", começa
a se mover.130 Gell faz questão de notar que seria um erro atribuir o movimento da estrutura aos
jovens, que apenas a sustentam. Antes é o deus anga que se manifesta através do desequilíbrio
provocado nos jovens pela estrutura, ele é "a presença invisível que coloca o conjunto em
movimento":131

Os jovens não estão, como indivíduos separados, simplesmente sustentando uma porção constante
do peso total do anga; eles estão em interação contínua mas em grande parte involuntária uns com
os outros através de empurrões, puxões, e movimentos inclinados iniciados pelos outros e
multiplicados pelas propriedades inerciais do próprio anga. No começo, esses movimentos são
sutis e se cancelam mutuamente; mas à medida em que a dança continua, um padrão parece se
estabelecer, uma ritmicidade que 'não é desejada' e que parece se originar – e de fato se origina – na
massa animada do anga. Logo, o anga, aparentemente assumindo controle total da situação, se

126
Gell (1980:219).
127
Cf. Gell (1980:246).
128
Cf. Gell (1980:227, 233).
129
Gell traduz anga como "log-gods".
130
Gell (1980:224-5).
131
Gell (1980:225).

273
lança numa feroz dança rodopiante e cheia de mergulhos. Os jovens [...] estão 'fora de si mesmos'
pois seu equilíbrio físico, seu centro de gravidade, está agora alojado na ponderosa, mas ao mesmo
tempo sensitiva, estrutura do deus. A passagem do anga pelo espaço é o resultado de um jogo
infinitamente complexo de forças, uma equação na qual a contribuição desse ou daquele indivíduo
é indistinguível, e aquilo que os jovens perderam em autonomia individual, o anga ganhou.132

Gell oferece uma explicação cibernética para o fenômeno evocando as oscilações "destrutivas"
produzidas quando mecanismos destinados a corrigir um desequilíbrio no sistema acabam
contribuindo para o aumento do próprio desequilíbrio.133 Assim, se em situações normais os
jovens são perfeitamente capazes de manter o equilíbrio, uma vez tendo seus centros de
gravidade ritualmente transmitidos para o anga surge um intervalo (gap) não-habitual entre cada
movimento que realizam e as suas conseqüências percebidas no mundo, dando início a uma
oscilação "destrutiva" que provoca a dança e que pode eventualmente fazer todo o sistema
colapsar.134 "O senso de equilíbrio do jovem, ao invés de automático e inconsciente, precisa ser
definido e preservado não apenas com relação ao seu corpo, seus movimentos e intenções, mas
também com relação à sua participação no conjunto total do anga."135 Gell encontrou o mesmo
princípio em outros rituais dos Muria, nos quais pessoas dançam de maneiras variadas, com
vários objetos, ou oscilam em balanços. Trata-se, em todos os casos, de "ir contra o estado
normal de integração que existe entre ações e suas conseqüências no mundo exterior", de "ajustar
seus movimentos como que a uma compulsão exterior".136 Mesmo que a atitude inicial da pessoa
que entra em transe seja conscientemente desejada (o que nos remete ao imperativo da
predisposição enfatizado por Rouget, mas que mesmo o discurso nativo já constata), uma vez
criado o intervalo (gap) entre as suas ações e a percepção de suas conseqüências (intervalo que
Gell chama de "a ponta da cunha do transe"137) já não se pode mais falar em um controle da
pessoa sobre suas próprias ações, mas sim de uma reestruturação de suas relações com o mundo.

132
Gell (1980:225).
133
Gell evoca o conceito de "oscilação 'caçadora' ['hunting' oscillation]" (ele cita Norbert Wiener, que fala ainda em
"oscilação selvagem"; Wiener 1948:14) para falar de "uma situação de feedback positivo na qual movimentos
compensatórios iniciados pelos carregadores para estabilizar o conjunto tendem inexoravelmente a contribuir para
a instabilidade geral do sistema" (Gell 1980:226).
134
Cf. Gell (1980:226). O fato de que os participantes sabem exatamente o momento de parar antes do colapso não
compromete em nada a eficácia do fenômeno, antes, é o que o torna possível.
135
Gell (1980:226).
136
Gell (1980:226-7). Em um curto comentário sobre o transe em Bali, Bateson propõe uma interpretação paralela à
de Gell, também baseada na produção intencional e ritual de um desequilíbrio. Para Bateson, é a produção do
clonus – fenômeno no qual um músculo passa a se contrair e relaxar repetidamente e involuntariamente, que ele
compara ao "circuito zumbidor [buzzer circuit]" no qual ordens contraditórias mantêm o sistema em perpétua
oscilação – que fornece o modelo para a criação do intervalo entre o sujeito e seu próprio corpo (cf. Bateson
1975:152-3).
137
Gell (1980:237).

274
A divindade na religião Muria, Gell conclui, é tão somente "um certo tremor, uma certa
intoxicação vertiginosa": "Sempre que há um 'intervalo' entre intenção e experiência, um
deslocamento das relações de entrada e saída na consciência, estamos em presença da divindade
em estado puro."138
Não podemos julgar aqui as conclusões de Gell quanto à religião dos Muria, mas
podemos dizer que a sua interpretação dela certamente permite uma melhor compreensão do
transe maquínico na música eletrônica de pista. O que acontece quando a música toma posse do
corpo da pessoa, quando os sons que ela escuta parecem comandar os seus movimentos, quando
ela se sente uma peça de uma máquina que é produzida na pista de dança e cujo som é a própria
música? Poderíamos dizer que se trata, também aqui, da instauração de um intervalo entre as
ações e as conseqüências percebidas dessas ações: a música, a partir de um certo momento, passa
a fazer parte do aparelho sensório-motor através do qual a pessoa percebe o mundo e sua ação
nele.139 Como o anga transforma a relação do jovem Muria com seus próprios movimentos, a
música transforma a relação daquele que dança com os seus próprios movimentos, transformando
com isso a sua relação com o mundo. A pessoa não se move como se moveria sem a música; ela
passa a ser movida pela música como uma marionete cujos cordões se conectam com cada
compasso da música, cada batida, cada freqüência, até o indiferenciado.140 A "ponta da cunha" do

138
"For what else is the divinity but a certain trembling, a certain vertiginous intoxication? [...] Where there arises
the 'gap' between intention and experience, a dislocation of input-output relations in consciousness, we are in the
presence of divinity in its raw state." (Gell 1980:238; itálico no original)
139
Eshun vê na música eletrônica de pista uma "guerra cinestésica" na qual diferentes partes do corpo em "diferentes
estados evolutivos" se digladiam e "trocam de lugar enquanto ainda estão dentro de você" (Eshun 1999:149): "a
hierarquia sensorial colapsa drasticamente e se reorganiza", a pele passa a ouvir e o ouvido passa a tatear, "o
traseiro, o cérebro e a coluna trocam de lugar", a cabeça se mantendo "bem atrás do resto do corpo" e os "reflexos
sensório-motores do corpo" estando "séculos à frente das mentes ainda presas a tradições mortas" (Eshun 1999:22,
71-2, 76-7, 150, 182). O corpo se torna um "cérebro distribuído", "um grande cérebro que pensa e sente uma
matemática sensorial por toda a superfície de sua mente distribuída" por "tipos ainda desconhecidos de inteligência
corporal" e as batidas "percorrem novos caminhos pelo cérebro", "abrindo novas sinapses pela matéria da mente"
(Eshun 1999:22, 71). Dessa perspectiva, a música eletrônica é "a ciência que toca o sistema nervoso, orquestrando
mixagens sensoriais de emoções elétricas" e "o papel do cientista do tom é projetar novos humanos através da
eletrônica", "reformando por batidas [...] o sistema nervoso [...] para um novo estado, para um novo tipo de
condição sensorial", produzindo "o sistema nervoso do século XXI" (Eshun 1999:161, 182, -1). Eshun (2000a)
chega mesmo a propor uma teoria do uso musical, pelo Drum'n'Bass, dos limiares de excitação do instinto de
sobrevivência que ele localiza no tálamo, algo que Reynolds (1999:125) também menciona com relação à interface
drogas-música.
140
Inspiramo-nos aqui em Deleuze e Guattari: "Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade,
não remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das fibras nervosas que
formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras" e pelas quais os fios
da marionete "mergulham através de uma massa cinza, a grade, até o indiferenciado..." (Deleuze e Guattari
1995a:16; itálico no original). Remeter os cordões da marionete a qualquer operador em particular seria novamente
fechar os ouvidos para a música (cf. Imagem 7) e afirmar-se "mais ou menos orgulhosamente, tendendo a
considerar a outra pessoa como uma marionete cujos cordões segura" (Bergson 2001:147): "Toda seriedade da vida
advém de nossa liberdade. Os sentimentos que aprimoramos, as paixões que nutrimos, as ações por nós

275
transe maquínico seria a intromissão dessas espécies de cordões de marionete que ligam as
articulações da pessoa ao som, que concretizam essa sinergia maquínica entre som e
movimento.141 Como o elo perdido de Heinrich Von Kleist entre a marionete e o deus,142 a pessoa
que dança a música eletrônica atualiza um desvio das relações habituais de sujeição que a ligam
ao mundo por relações de maquinação que a inserem nos próprio processos imanentes de
produção desse mundo. Mas como isso funciona?

deliberadas, assentadas, executadas, enfim, o que vem de nós e o que é só nosso, isso é o que confere à vida seu
aspecto às vezes dramático e geralmente grave. O que é preciso para transformar tudo isso em comédia? É preciso
imaginar que a liberdade aparente encobre uma trama de cordões, e que somos neste mundo, como diz o poeta, [...]
...pobres marionetes [...] cujo fio está nas mãos da Necessidade." (Bergson 2001:58)
141
Rouget, em seus melhores momentos – significativamente, justo quando ele "perdão" ao leitor por "penetrar no
domínio dos lugares-comuns e verdades básicas" –, é um forte defensor da importância da sinergia entre som e
movimento para o transe: "A música é, em essência, movimento. Ela tem sua origem em movimentos corporais [...]
e é por sua vez um estímulo ao movimento. [...] Mesmo em seu aspecto mais imaterial – som totalmente isolado de
sua fonte – a música é percebida como movimento sendo realizado no espaço. Isso é particularmente verdadeiro
quando ela é feita ao mesmo tempo que a dança, ou com o objetivo de fazer as pessoas dançarem. Dançar é
inscrever a música no espaço, e essa inscrição é realizada através de uma constante modificação da relação entre as
diferentes partes do corpo. A consciência que o dançarino tem de seu próprio corpo é totalmente transformada
nesse processo. Sendo um estímulo à dança, a música parece ser capaz de modificar profundamente a relação do
self consigo mesmo ou, em outras palavras, a estrutura da consciência." (Rouget 1985:121)
142
"No mundo natural, percebemos que a graça é mais forte e vigorosa quanto mais fracos e débeis são os poderes da
razão. Mas assim como uma linha, quando cruza outra, surge subitamente do outro lado do ponto de cruzamento
depois de passar pelo infinito; ou assim como a imagem em um espelho côncavo, depois de recuar ao infinito,
reaparece subitamente diante de nossos olhos, também a graça reaparecerá após a passagem do conhecimento pelo
infinito. Dessa forma a encontraremos em sua mais pura forma em um corpo totalmente privado de consciência ou
em outro que a possui infinitamente; isto é, na marionete ou no deus." (Von Kleist 1983:184)

276
Capítulo 9
Como funciona?

277
278
...você está tocando,
se não estão dançando você vai mudar.1

1
Camilo Rocha (entrevista, 10 de maio de 2003), sobre a influência do público na sua apresentação.

279
280
Foi na segunda metade dos anos 70 que o DJ começou a ser comparado aos xamãs.2 Não por
acaso, foi nessa mesma época que novas tecnologias passaram a permitir que o DJ não apenas
selecionasse as músicas que correspondem aos movimentos de seu público, mas também
modificasse sistematicamente essas músicas através da modulação de parâmetros técnicos
(intensidade, freqüência e velocidade) e da síntese sonora (mixagens, remixagens, edições etc.).
Dentre essas tecnologias se destacam: o desenvolvimento comercial de subwoofers, alto-falantes
capazes de reproduzir as freqüências sub-graves tão valorizadas na música eletrônica de pista por
seu potencial imersivo e vibratório;3 o desenvolvimento comercial, a partir de 1975, do formato
single de 12 polegadas (o software do DJ, segundo Reynolds4), no qual as músicas passaram a ser
prensadas em sulcos mais profundos, mais espaçados e a 45rpm, permitindo uma qualidade de
som superior e um tempo de gravação maior do que no single de 7 polegadas (abrindo espaço
para versões mais experimentais das músicas e um uso mais completo das intensidades e do
espectro de freqüências), além de ser muito mais facilmente manipulável (permitindo ao DJ
localizar visualmente os pontos específicos da música e acessá-los com precisão);5 e o
lançamento, em 1979, do "toca-discos de preferência do DJ profissional",6 "objeto do desejo de
dez entre dez DJs",7 o modelo SL-1200Mk2 da Technics (o hardware do DJ, segundo
Reynolds8), com seu controle de velocidades (pitch) e seu alto torque, duas exigências para que
os DJs pudessem sincronizar precisamente dois discos diferentes e manipulá-los livremente com

2
O DJ Larry Levan, que tocou no Paradise Garage em Nova Iorque a partir de 1977, consta como sendo o primeiro a
receber essa definição (cf. Reynolds 1999:35). Brewster e Broughton, que fazem um trocadilho com o DJ Terry
Noel, que tocava em Nova Iorque nos anos 60, dizendo que ele era "part showman, part shaman" (Brewster e
Broughton 2000:62), confirmam que foi a partir dos desenvolvimentos ocorridos na arte e técnica da discotecagem
ao longo da primeira metade dos anos 70 que surgiu a "nova figura" do DJ como entidade religiosa (cf. Brewster e
Broughton 2000:164).
3
Cf. Anet (2003:1). Reynolds atribui ao uso estratégico dos graves por Levan parte de seu status xamânico (cf.
Reynolds 1999:35). Desenvolveremos o tema da importância dos graves adiante.
4
Cf. Reynolds (1999:271).
5
Cf. Reynolds (1999:271). Brewster e Broughton contam que o desenvolvimento do single de 12 polegadas foi não
apenas fruto das experimentações dos DJs com novas versões estendidas das músicas que faziam sucesso nas pistas
de dança, mas também fruto de um acidente: a empresa na qual Tom Moulton (modelo fotográfico nova-iorquino e
pioneiro dos remixes) costumava prensar seus remixes estava sem material para os habituais 7 polegadas e o
funcionário, diante da decepção de Moulton com sua proposta de prensar um 12 polegadas, resolveu compensar o
formato esdrúxulo espaçando os sulcos e aumentando o volume da gravação. "Evidentemente", conta Moulton,
"quando ouvi a gravação, eu quase morri" (cf. Brewster e Broughton 2000:178-9). Segundo Brewster e Broughton,
"até agora, o single de 12 polegadas foi o único formato de gravação que resultou de uma demanda do consumidor
e não de estratégias de marketing da indústria fonográfica", e parece-lhes que ocorre algo parecido atualmente com
o formato MP3 (cf. Brewster e Broughton 2000:180).
6
Reynolds (1999:271).
7
DJ Môpa (e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 15 de janeiro de 2002).
8
Cf. Reynolds (1999:271).

281
as mãos.9 Outras tecnologias igualmente importantes para a transformação ocorrida nessa época
na prática do DJ já existiam antes, mas passaram então a ser usadas sistematicamente por eles sob
um novo regime, como: o mixer, que já era disponível comercialmente e usado em casas noturnas
desde o início dos anos 7010 e com o qual os DJs podiam não apenas "misturar" (i.e., mixar, tocar
simultaneamente) de maneira controlada duas fontes sonoras mas também escutá-las
independentemente do público (um sistema de monitoramento por fones de ouvido11 que permite
ao DJ preparar o som antes de abri-lo para o público); o gravador de rolo, que já era disponível
comercialmente e usado em estúdios e por artistas de musique concrète desde o final dos anos
4012 e com o qual os DJs passaram a fazer versões editadas de músicas sob medida para a sua
pista de dança (os remixes);13 e os sintetizadores, disponíveis comercialmente desde o início dos
anos 70,14 capazes de sintetizar tanto tons quanto sons percussivos15 e usados pelos DJs tanto
como acompanhamento ou base em suas apresentações quanto como recurso de composição. A
confluência de todas essas técnicas e tecnologias nas pistas de dança da segunda metade dos anos
70 representou um salto no grau de controle efetivo do DJ sobre a sua relação com o público: se
antes ele era obrigado a trabalhar com um material contingente, com músicas que eram o
resultado dos processos mais diversos visando os fins mais variados (a promoção de

9
Cf. Reynolds (1999:271). Um exemplar do toca-discos Technics SL-1210Mk2 (praticamente idêntico ao modelo
SL-1200Mk2) figurou numa exposição do London Science Museum dedicada aos "150 objetos mais importantes e
influentes dos últimos 250 anos" (cf. <http://www.panasonic-europe.com/technics/index.asp?s=1&mode=long>).
10
Cf. Brewster e Broughton (2000:140).
11
Os fones de ouvido, também essenciais, são tão antigos quanto a fonografia mecânica. Uma genealogia do fone de
ouvido como "técnica de audição [technique of listening]" que se inicia com os estetoscópios médicos do século
XIX pode ser encontrada em Sterne (2003:87-136).
12
Cf. Young (2000), Berk (2000:191).
13
Além de buscar músicas particularmente adequadas na forma (longa, com seções percussivas) e no conteúdo
(dançantes) para animar seu público, o DJ também passou a "reconstruir músicas" através da edição física de fitas
magnéticas – muitas vezes usando apenas o botão pause de um toca-fitas cassete comercial, mas geralmente
usando estilete, fita adesiva e as fitas rolo de melhor qualidade –, estendendo algumas partes e eliminando outras, e
alterando a sua ordem, tudo em função da sua eficácia na pista de dança (cf. Brewster e Broughton 2000:175). Tom
Moulton é creditado como o criador desse tipo de prática, tendo feito suas primeiras re-edições em 1972 (cf.
Reighley 2000:33; Brewster e Broughton 2000:174-7), mas já se sabe que DJs jamaicanos faziam coisas
semelhantes desde os anos 60 (cf. Brewster e Broughton 2000:108-22). No Brasil, a prática da re-edição esteve
desde o início mais ligada ao rádio e à música Pop do que à pista de dança, começando na segunda metade dos
anos 70 e ganhando força como estratégia comercial do Pop-Rock nacional nos anos 80 (cf. Assef 2003:112-3,
125-8).
14
O primeiro sintetizador a receber esse nome foi o RCA Mark II Synthesizer, desenvolvido no Columbia-Princeton
Electronic Music Center (Nova Iorque) na segunda metade dos anos 50 (cf. Shapiro e Lee 2000:6; Young 2000:18;
Pinch e Bijsterveld 2003:548), e sintetizadores modulares já eram disponíveis comercialmente desde a primeira
metade dos anos 60 (cf. Pinch e Bijsterveld 2003:547), mas foi apenas a partir dos anos 70, em especial a partir do
lançamento do Mini-Moog em 1970 – "o primeiro sintetizador portátil, barato e realmente popular" (Berk
2000:191); "um dos marcos mais importantes da história do sintetizador" (Pinch e Bijsterveld 2003:553) –, que a
sua interface se aproximou daquela que hoje conhecemos (cf. Berk 2000:191; Moog 1999; 2000:207).
15
O DJ Grandmaster Flash incorporou um sintetizador analógico de ritmos chamado de beatbox em seu show no
final dos anos 70 (cf. Poschardt 1998:173-4; Brewster e Broughton 2000:225-6).

282
personalidades financiadas pela indústria fonográfica com o objetivo de vender produtos sendo o
principal motor desses processos), a partir de então ele passou a contar com um material
produzido especificamente para a sua atividade e muitas vezes produzido por ele mesmo.16 Em
outras palavras, durante a segunda metade dos anos 70 o DJ passou da condição de simples
receptor e reprodutor de gravações que tinham inúmeras outras funções além daquela específica à
sua relação direta com o seu público para a de produtor especializado de gravações voltadas
especificamente para essa relação.17 E qual era a especificidade dessa relação? Uma certa sinergia
entre som e movimento que, quando bem conduzida, pode produzir experiências extraordinárias e
não raro consideradas xamânicas.
Já vimos como a criatividade individual do DJ está, na música eletrônica de pista
(underground ou mainstream18), subordinada ao imperativo funcional da dança.19 Nisso o DJ não

16
A mudança se reflete, por exemplo, nos dois verbetes dedicados ao DJ no The New Grove Dictionary of Music and
Musicians, o primeiro tratando da função dos DJs de rádio que desde os anos 50 "tocam e ajudam a selecionar os
sucessos populares do dia" e que atualmente é desempenhada também por VJs da MTV (i.e., apresentadores de
videoclipes) (cf. Buckley 2001) e o segundo tratando da função dos DJs que a partir do final dos anos 70 "criam
música contínua para a dança através da manipulação de faixas pré-gravadas pela mixagem e sobreposição" e que
ganharam fama internacional a partir dos anos 90 (cf. Peel 2001). Vale notar que, quanto ao primeiro tipo de DJ, o
mais comum é que sua história seja contada a partir de Reginald A. Fessenden – que no Natal de 1906 fez uma
transmissão radiofônica das proximidades de Boston (EUA) na qual tocou uma gravação de "Largo" (Handel)
tornando-se, por isso, "o primeiro DJ" (cf. Poschardt 1998:40-1; Brewster e Broughton 2000:20-1) – e mencione
também alguns DJs de rádio e de eventos que se destacaram antes dos anos 50 (cf. Poschardt 1998:40-52; Brewster
e Broughton 2000:20-34). Além disso, entre os DJs de rádio e os DJs de música dançante dos anos 70, houve toda
uma história dos DJs de festas e clubes que, provavelmente pelo fato de serem vistos como substitutos mais baratos
para bandas de baile, ainda mantinham uma relação representativa com as gravações (i.e., tratando-as como
produtos acabados, que devem ser tocados do início ao fim e eventualmente seguidos de palmas do público; cf.
Assef 2003:23), mas que já iniciavam uma relação mais direta com o público centrada na dança (cf. Poschardt
1998:57-65, 101-7; Brewster e Broughton 2000:34-6, 44-72; Assef 2003:19-34). Segundo Andrew Ross, "no final
dos anos 70 [...] os DJs abandonaram sua posição de intermediários, promotores e divulgadores da indústria e
ocuparam a posição de produtores e criadores em pleno direito" (in: Ross et al. 1995:67), e na linguagem mais
enfática de Brewster e Broughton: "Uma vez tendo saído do rádio e entrado na pista de dança, o trabalho do DJ
mudou radicalmente. Ele agora deixava de ser apenas um simples seletor de discos e formador de gostos, pois
passava a ter que lidar com o dado essencial da reação do público. Agora que a relação entre a música e o público
era interativa, o público se tornava parte do evento – em certo sentido, o público era o evento, e o DJ um
controlador atento de seu prazer." (Brewster e Broughton 2000:71; itálico no original).
17
Uma mudança análoga, diríamos, àquela representada pela engenharia genética, através da qual estamos deixando
de ser meros seletores de fenótipos e passando a ser produtores de genótipos. Como disse o tecnoxamã
autoproclamado Mark Heley: "Cada faixa de House é [...] um novo pedaço do padrão de DNA. Uma nova
informação. Precisamos criar uma onda sincronizadora para o planeta. House é engenharia de sincronização."
(Mark Heley, in: Rushkoff *1994:130) A analogia é precisa pois foi através da retroalimentação entre alterações
cirúrgicas das músicas (re-edições feitas em fitas magnéticas) e a experimentação do resultado na pista de dança
que os DJs chegaram ao "código genético" ideal para a concretização do "corpo" coletivo e motor da pista de
dança. Como notam Brewster e Broughton, "o corpo faz exigências diversas daquelas do ouvido" e "as
necessidades do dançarino não são as mesmas do ouvinte de música Pop": o dançarino quer "entrar numa levada e
ficar lá até exaurir sua invenção ou seu corpo" (Brewster e Broughton 2000:174). Os DJs "sabiam o tipo de música
que animava seus discípulos e o que especificamente em cada faixa realmente os ligava", e a partir de então eles
"podiam reformular faixas com suas próprias contribuições" (Reighley 2000:32).
18
A diferença entre o underground e o mainstream parte da necessidade comum de que as pessoas estejam
dançando, um enfatizando a experimentação e o outro a satisfação. Sem a dança não há música eletrônica de pista.

283
se distinguiria dos conjuntos de baile e de música dançante (e, de fato, muitos DJs acabam sendo
apenas substitutos mais baratos de grupos musicais20), não fosse o fato de que, diferentemente
destes, o DJ não toca instrumentos musicais, ele opera máquinas que reproduzem gravações. Não
se trata apenas de uma mudança de instrumento, como quem deixa de tocar músicas numa
guitarra e passa a tocar músicas em um toca-discos, mas sim de uma mudança de procedimento:
num caso, toca-se um instrumento, no outro, opera-se uma máquina. A diferença entre tocar um
instrumento e operar uma máquina poderia ser compreendida como a diferença entre a
transmissão de energia entre dois sistemas e a liberação de energia de um sistema por outro.21
Em um caso, há transferência de energia de um sistema para o outro, como quando um
instrumentista transfere a energia de seu corpo para o seu instrumento. No outro caso, há
transmissão de informação, como quando um operador liga ou desliga uma máquina que obtém
energia alhures. Evidentemente, há transmissão de informação entre o instrumentista e seu
instrumento (aquele está sempre modulando seus próprios movimentos em função do som), assim
como há transferência de energia entre o operador e sua máquina (aquele está sempre apertando
os botões e deslizando os potenciômetros). Além disso, se por um lado o fato de o som de um
instrumento passar por diversas máquinas processadoras do sinal pode afastá-lo cada vez mais

19
Cf. no Capítulo 3 a seção "Estratégias do underground", acima. Ainda sobre o imperativo da dança, vale
mencionar o grande número de DJs que são ex-dançarinos profissionais, muitos famosos como Terry Noel
(Brewster e Broughton 2000:62), Francis Grasso (Brewster e Broughton 2000:130-1), Kool Herc (Brewster e
Broughton 2000:210) e os brasileiros Mau Mau (cf. Assef 2003:147, 149, 214, 227; Fortino *2003) e Ramilson
Maia (cf. Naves et al. *2002). O produtor Marcelo Martins revela que "sempre que estou compondo danço, porque
parece inevitável" (Marcelo Martins, in: Duarte de Souza *[s.d.]c), e os DJs Arlequim e Cláudio Manoel sugerem a
dança como a melhor técnica para "identificar um ritmo de uma determinada música": "Para identificar o ritmo de
uma música basta você dançar, isso mesmo. Você dança no ritmo da música, certo?!" (DJ Arlequim e Duarte de
Souza *2003; itálicos no original)
20
Desde as discothèques francesas dos anos 40 que mantiveram o formato da discotecagem mesmo após a
desocupação nazista porque "empregar um DJ era mais barato do que empregar uma orquestra" (Reighley 2000:21)
até o Brasília Music Festival que em 2005 "perdeu patrocínios por causa da crise política que assola o planalto
central e teve de realizar, na última hora, uma edição mais barata, voltada à música eletrônica" (Gola *2005b), DJs
sempre foram usados por empresários como substitutos mais econômicos (e não raro mais eficazes) para grupos
musicais.
21
"Na vida cotidiana, existem tipicamente dois sistemas energéticos em interdependência: um é o sistema que usa
sua energia para abrir ou fechar a torneira ou o portão [...]; o outro é o sistema cuja energia 'flui através' da torneira
ou da grade quando elas estão abertas. [...] A combinação dos dois sistemas (a maquinaria de decisão e a fonte de
energia) leva a uma mobilidade parcial em cada um dos lados da relação. Você pode levar um cavalo para a água,
mas você não pode fazê-lo beber. Beber é assunto dele. Mas mesmo se o cavalo estiver com sede, ele não poderá
beber a não ser que você o leve até a água. Levá-lo lá é assunto seu." (Bateson 1985:113-4; cf. 120-1). O que
Bateson mostra aqui é que o cavalo é a fonte da energia necessária para o ato de beber, ao passo que o condutor do
cavalo é apenas a maquinaria de decisão que o leva até a água. O fato de que, mesmo com sede, o cavalo só pode
beber se for conduzido até a água, mostra que maquinaria de decisão do cavalo (beber ou não) está aqui
subordinada àquela do seu condutor (levá-lo ou não). O fato de que, mesmo diante da água, o cavalo só pode beber
se estiver com sede, mostra que a fonte de energia do condutor (levá-lo até a água) está aqui subordinada àquela do
cavalo (beber). No caso do DJ, é ele quem comanda a maquinaria de decisão, mas não é ele a fonte de energia
determinante para o funcionamento do sistema.

284
das variações expressivas do instrumentista, por outro a proliferação dos parâmetros através dos
quais o som de uma máquina pode ser modulado pode aproximá-lo cada vez mais das variações
expressivas do maquinista.22 Não obstante, do ponto de vista do som produzido em ambos os
casos, é preciso notar a enorme diferença que há entre escutar diferentes execuções de uma
mesma música por instrumentistas (sempre diferentes, mesmo quando executadas pelo mesmo
instrumentista) ou escutar diferentes execuções de uma mesma gravação por uma máquina
(sempre iguais, mesmo quando executadas em máquinas diferentes), radicada no fato de que
enquanto a energia sonora do instrumento provém principalmente do instrumentista, a energia
sonora da máquina provém principalmente da rede elétrica. No caso do DJ, o fato de ele ser o
operador de uma máquina e não um instrumentista faz toda a diferença na sua relação com o
público: ele não é a fonte da energia, ele apenas a modula de maneira específica.23

22
Há ainda o caso dos híbridos instrumentos-máquina. O órgão pneumático, por exemplo, foi descrito por Max
Weber como "aquele instrumento que traz em si de modo mais forte o caráter de máquina", pois seja enquanto
máquina social – Weber conta como as catedrais de Magdeburg e Winchester exigiam 22 e 70 "calcantes" (pessoas
que pisavam em foles) respectivamente para funcionar –, seja enquanto máquina técnica – quando esse "problema
técnico dos foles contínuos" (que a organologia compartilhava com a metalurgia) foi resolvido pela substituição
progressiva do "trabalho físico por dispositivos maquinais" –, "aquele que se serve dele está ligado de modo mais
intenso às possibilidades objetivas, dadas tecnicamente, da configuração do som, não tendo liberdade para falar sua
linguagem pessoal" (cf. Weber 1995:144-5). Em última análise todos os instrumentos e máquinas são híbridos em
algum grau e a diferença proposta aqui é de tendência, e não de fato: uma tendência à máquina de um lado e uma
tendência ao instrumento de outro, que podem ser mais ou menos claramente distinguidas em casos específicos.
Sobre a mesma oposição máquina/instrumento no caso dos sintetizadores eletrônicos, cf. Pinch e Bijsterveld
(2003:551, 555).
23
Daí a freqüente desconfiança de um público mais ligado a uma estética do instrumentista quanto ao verdadeiro
papel do DJ em uma performance de música eletrônica, magistralmente explicitada pela controvérsia suscitada pela
apresentação do artista inglês Richard D. James (conhecido como Aphex Twin) no festival Free Jazz de 2001 (São
Paulo), certamente intensificada por ter sido antecedida pela apresentação do grupo inglês de Drum'n'Bass
Reprazent que "debulhou o drum'n'bass com instrumentos ao vivo, vocalistas cheios de manha e grooves animais"
(Matias *2001; outro repórter detalhou que o grupo contava com "um cantor de rap, uma cantora soul
competentíssima, um baterista infernal [...] e um baixista"; Ivanov *2001). Em uma entrevista prévia, Aphex Twin
havia respondido a uma pergunta sobre o que esperar de sua apresentação dizendo: "Vou estar lá na frente do
palco, com um par de fones de ouvido na cabeça. Haverá, talvez, uma leve rotação de quadris." (Aphex Twin, in:
Assef *2001) No entanto, para frustração da maioria (especialmente dos fotógrafos, que foram embora "com uma
expressão desolada"; Ivanov *2001), ele permaneceu "escondido" durante a maior parte daquilo que foi chamado
de uma "não-apresentação, com aquelas não-músicas e aquelas não-luzes" ("Nem sei direito se eu estava lá"
completa Ribeiro *2001) – a mídia repetiu à exaustão o fato de ele ter ficado "atrás de um notebook, escondido no
fundo do palco" (Moura*2001), "escondido atrás da mesa e no escuro" (Nascimento *2001), "escondido atrás de
um toca-discos, no escuro" (Maia *2001), numa apresentação do tipo "Onde está o Wally?" (Ivanov *2001) pois
todos perguntavam "cadê o DJ?" (Folha Online *2001). A frustração foi expressa por um jornalista nativo: "qual a
diferença entre ouvir as músicas deles em casa ou no show??? [...] Você mal vê os caras no palco. Esses shows são
muito frios e apáticos. [...] Não precisava eles terem vindo da Inglaterra pra tocar, bastava chamar um DJ local e
pronto. [...] Em 98 fui num show do Daft Punk (banda que amo!) mas achei o show uma merda. As pessoas não
tinham pra onde olhar! Outros shows em que isso também ocorreu foram o do Chemical Brothers e do Crystal
Method; os caras ficavam lá no palco atrás de um monte de parafernália, cheio de fios pra tudo quanto é lado, e
eles mal olhavam pra platéia. [...] Ninguém merece pagar pra ver dois operários mexendo em botões. Falta emoção,
falta calor humano. [...] [O] show de eletrônica do Free Jazz desse ano que parece que mais agradou a galera foi o
do Roni Size, que tinha bateria e baixo no palco (um outro exemplo é o Prodigy, que tem dois frontmen, um
baterista e um guitarrista nos seus shows)." (Candle *2001) Ou, como disse outro nativo para quem "situações

285
O turntablism é extremamente instrutivo quanto a essa diferença entre o instrumento e a
máquina no caso específico do DJ. Iniciando-se com a invenção do scratch – técnica de
"arranhar" o disco de vinil, usando a mão para fazer com que um mesmo trecho de menos de um
segundo passe repetidamente sob a agulha gerando os mais variados sons – no final dos anos 70 e
tornando-se, ao longo dos anos 80, uma modalidade competitiva com campeonatos regionais e
mundiais,24 o turntablism voltou-se cada vez mais para as habilidades do DJ (em detrimento do
público dançante) e acabou se dissociando de seu contexto festivo original,25 o que motivou
muitos DJs, principalmente a partir dos anos 90, a formarem grupos de turntablists (nos quais
cada DJ se torna um "multi-instrumentista" tocando vários instrumentos através de seus discos26)

como essa do Aphex [T]win acabam comprovando" a "tese imbecil" de que na música eletrônica "é só apertar um
botão que a máquina faz tudo": "só o som não basta", "ir num show onde o cara nem ao menos 'bate o pezinho'...
fala sério... fico em casa escutando o CD ou compro outro CD com o dinheiro do ingresso", afinal, "é um artista ou
um jukebox?" (Tonny, e-mails enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 1 de novembro de 2001) Mas nem todos
tentam avaliar maquinistas a partir de parâmetros adequados a instrumentistas. Um nativo, por exemplo,
respondeu: "Quando [você] ouve dizer que um dj vai tocar, [você] ainda espera que ele execute algum
instrumento? [D]j toca???? Conceitos....conceitos que precisam ser revistos." (André Silva, e-mail enviado à lista
"Pragatecno Brasil" em 1 de novembro de 2001) E um DJ notou que "o [mais] engraçado é q[ue] toda essa
discussão sobre o [R]ichard [J]ames tem uma cobrança para o artista fazer movimentos físicos, mostrar
coordenação motora, 'tocar algo', aplicando um termo bastante conservador" (DJ Dolores, citado por DJ Sanctus
em e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 3 de novembro de 2001). Sobre uma apresentação da dupla The
Chemical Brothers, uma jornalista relatou num inglês dificilmente traduzível: "on stage, [...] it becomes a body-
moving, ass-shaking, internal organs-rupturing, precision-bombing, mile-wide wall of extreme funk terror that
seems to exist quite independently of the highly unremarkable-looking dudes fiddling about under the spotlights"
(Braddock *1999). Um dos integrantes da dupla enfatizou em uma entrevista que nunca tocaria com bateristas pois
"os ritmos que usamos não são fisicamente reprodutíveis", são o resultado de um controle propiciado pelas
máquinas: "Nós gostamos das máquinas. Nós gostamos do controle que elas nos dão." (Tom Rowlands, in: Rule
1999a:14) Justamente por não serem instrumentistas, porém, eles já se viram em situações indesejáveis, como
quando um dançarino descuidado esbarrou na fonte de energia do mixer e "[d]e repente não havia mais nada": "se
você tem uma banda e o microfone do bumbo cai ou algo do gênero, pelo menos o vocalista pode contar alguma
piada – ou pular para um número acústico. Mas com a gente, se alguém puxa a tomada, é desastre na certa." (Tom
Rowlands, in: Rule 1999:15) Resumindo, o motivo pelo qual, em música eletrônica, é difícil associar o som que sai
dos alto-falantes às pessoas que estão no palco, é o fato de que elas não estão transmitindo a energia que sai dos
alto-falantes, mas apenas liberando-a de maneira controlada (se ela estiver lá).
24
Cf. Webber (2000), Reighley (2000:167-82), White (1996), Brewster e Broughton (2000:204-65, especialmente
256-64) e Snapper (2004). Um documento histórico dos primórdios daquilo que viria a ser o turntablism (a
invenção do termo turntablism é creditada ao DJ inglês Supreme, que o teria usado originalmente em 1994) em seu
contexto histórico na Nova Iorque do início dos anos 80, quando o grafite, o breakdance, e o Rap confluíam na
criação do Hip Hop, é o filme Wild Style (Ahearn v2002[1982]).
25
Ele tornou-se, segundo Brewster e Broughton, "uma arte quase totalmente dissociada de sua função original na
pista de dança" (Brewster e Broughton 2000:257). Grandmaster Flash (cujo nome artístico faz referência
justamente às suas habilidades, comparando-as às dos "grandes mestres" de Kung Fu como Bruce Lee; cf. Brewster
e Broughton 2000:216), conta como, já em meados dos anos 70, "quando eu começava a fazer minhas manobras as
pessoas paravam de dançar e me rodeavam como se eu fosse fazer uma palestra" (cf. Toop 2000b:71-2; Reighley
2000:54).
26
DJ Lethal contou alguns anos atrás, por exemplo, que pretendia fazer "uma coisa muito maluca": "Eu quero fazer
uma banda apenas com DJs: um baterista, um baixista e um guitarrista. [...] [E]u quero formar uma banda de
verdade, com canções de verdade. Estou falando de fazer nossos próprios discos com nossos próprios sons de
guitarra, todos afinados, e não apenas usar coisas que já estão por aí." (DJ Lethal, in: Reighley 2000:196)
MixMaster Mike, cujo virtuosismo já lhe rendeu uma comparação com o guitarrista Jimmie Page (apesar de ele se

286
ou a participarem de grupos musicais convencionais (como um instrumentista ao lado de outros).
A prática alcançou tamanha erudição que em 2000 o músico e produtor premiado Stephen
Webber (que desenvolveu um curso superior de turntablism para o Berklee College of Music,
EUA) já podia afirmar que "o toca-discos pode ser considerado um instrumento musical de
enorme profundidade e versatilidade", exercendo as funções de "instrumento percussivo",
"sampler analógico", "sintetizador" e de "instrumento melódico também", suas técnicas de
manipulação podendo ser comparadas àquelas do "violão clássico".27 Webber, como a maioria
dos turntablists, faz grande caso da aparente "estranheza" de se considerar a "evolução" do toca-
discos, normalmente visto como "um dispositivo inventado para tocar música", para a condição
de "um instrumento expressivo",28 como se se tratasse evidentemente de alguma forma de
revolução. Mas apresentar o toca-discos como um instrumento expressivo não é uma idéia tão
inovadora assim. Em 1913 Thomas A. Edison já insistia em apresentar o seu fonógrafo como "o
maior instrumento musical do mundo" (querendo dizer, justamente, que ele "não era mais uma
máquina, mas sim um instrumento musical"),29 e o principal argumento de um anúncio
publicitário do fonógrafo Aeolian-Vocalian de 1916 acerca da superioridade do aparelho era
justamente o fato de que seu inovador controlador de volume o transformava num "verdadeiro
instrumento musical – um instrumento para controlar, para tocar, um instrumento que qualquer
um pode usar para exercitar o instinto natural de expressividade musical com o qual todos foram

identificar mais com Miles Davis) e que toca no grupo de turntablism Invisibl Skratch Piklz, já é familiar com a
idéia: "[No grupo] eu sou o responsável por tocar a bateria nos toca-discos. Não apenas deixar a bateria tocar, mas
tocar o bumbo e a caixa em tempo real. Como banda, QBert, Apollo e eu fomos responsáveis por realmente fazer
do toca-discos instrumentos diferentes. Pegar acordes de guitarra e efetivamente tocá-los como guitarra. Pegar
flautas e metais. Tocar o saxofone e fazer scratchs com um sax de forma que soe realmente como um saxofone."
(MixMaster Mike, in: Webber 2000:107) QBert, parceiro de MixMaster Mike e que já foi chamado de "o Jimi
Hendrix e Eddie Van Halen dos toca-discos", completa dando uma idéia das vantagens do toca-discos com relação
aos instrumentos convencionais, justamente aquilo que parece se perder com essa ênfase excessiva na simulação da
musicalidade convencional: "Quando se toca [...] num grupo de turntablists, é como se você fosse todos os
instrumentos. Você pode pular para a bateria, depois pular para a guitarra, depois para o baixo, depois para peidos,
para galinhas cacarejando, o que for. Então cada um é o instrumento que quiser ser a cada momento." (QBert, in:
Webber 2000:99) Fica a pergunta: se o turntablist pode tocar qualquer som (que possa ser gravado), então o que
faz com que ele tente simular sons de instrumentos convencionais e veja nessa simulação alguma vantagem?
27
Webber (2000:9, 26).
28
Webber (2000:10). Cf. Langlois (1992:231). Segundo o turntablist canadense A-Trak, "o turntablist está mais
próximo do músico [do que o DJ de festa]" (DJ A-Trak, in: Webber 2000:108), e o célebre turntablist nova-
iorquino Rob Swift resume a sua abordagem musical e expressiva do turntablism: "É preciso encarar o toca-discos
como se ele fosse um instrumento musical, e não um mecanismo para tocar discos. Você pode se expressar através
deles." (Rob Swift, in: Reighley 2000:170-1) Swift ilustra o seu argumento com o caso do turntablist Cash Money:
"Cash Money me disse que quando faz seus scratchs ele assume a atitude de um cantor. O que ele tenta fazer é soar
como um cantor soaria, mas através dos scratchs. Ás vezes, enquanto ele está fazendo scratchs sobre uma batida,
ele [...] pode estar pensando numa velha canção de Gladys Knight e tentando traduzir seus vocais, de alguma
maneira, para os scratchs. Isso é muito profundo." (Rob Swift, in: Reighley 2000:176)
29
Cf. Thompson (1995:141-2).

287
dotados em algum grau".30 Seja nos esforços para transformar o toca-discos em um instrumento
musical expressivo, seja nos esforços para transformar a música eletrônica em uma música
convencional, estamos sempre diante de tentativas de fazer da máquina um meio de transmitir
uma energia que se assume vir do próprio operador, de usá-la como um meio de subjetivação ou
sujeição (em todo caso, como matéria expressiva), como na magia roqueira de Tagg.31 Mas,
como já vimos, esse tipo de relação com a máquina não parece estar ligado ao transe maquínico
que encontramos na base do xamanismo da música eletrônica.
Não insistiremos em tipologias que tentem opor absolutamente DJs e músicos, pois vemos
que DJs podem ser músicos e instrumentistas se quiserem. No entanto, é preciso notar que se o
xamanismo da música eletrônica é baseado tanto no experimentalismo do underground (em
oposição às fórmulas do mainstream) quanto na estética da repetição (em oposição às estruturas
narrativas),32 então é justamente nas vertentes mais maquínicas da música eletrônica, nas quais o
experimentalismo underground e a estética da repetição encontram o terreno mais fértil para se
desenvolver, que nos aproximamos mais dele. Indo contra a tendência à estabilização midiática
de personalidades e carreiras (tendência que observamos na valorização da musicalidade e da
genialidade individual nos megafestivais e nas revistas especializadas) e da expressividade
musical, a música eletrônica maquínica underground não tem rosto e nem continuidade narrativa,
reduzindo-se a uma ferramenta sônica sempre parcial e mutante (forma seguindo a função)
através da qual o DJ pode promover o transe em seu público. Por isso, sem pretender negar à
música eletrônica a sua possível musicalidade ou ao DJ a sua possível expressividade, propomos
aqui a investigação de um outro trajeto, mais interessado na música eletrônica como o som de
uma máquina de transe e no DJ como um operador que a produz e conduz a partir da
manipulação de parâmetros específicos.33

30
Cf. Rothenbuhler e Peters (1997:262 nota 22), Thompson (1995:160). Se, como bem notou Charles Mudede, ver
um DJ manipulando discos de vinil como já se fazia há vinte anos e na mesma SL-1200Mk2 da Technics é já, em
si, "assistir a algo do passado" (Mudede 2003), então vê-lo afirmar que com isso ele está "se expressando" é
realmente a prova da persistência de certos processos de subjetivação relacionados à gênese dos toca-discos.
31
O DJ e performer alemão Alec Empire chegou mesmo a comparar esse conservadorismo pouco percebido do
turntablism aos complicados solos de guitarra dos metaleiros, centrados na virtuosidade e muitas vezes fazendo
referências à música clássica (cf. Reynolds 1999: 367; Reighley 2000:180-1).
32
Cf. Parte I, acima.
33
É importante notar que ao opor o instrumentista ao maquinista não dizemos em nenhum momento que este último
seja substituível por uma máquina técnica. Trata-se, de "usar as novas tecnologias para fazer aquilo que apenas as
máquinas são capazes de fazer" (Kramer 1988:74) ou, na linguagem de Norbert Wiener, de "[d]ar ao homem o que
é do homem e à máquina o que pertence à máquina" (Wiener 1973:27), discernimento notavelmente ausente das
tentativas cada vez mais comuns de construir "DJs automáticos" – máquinas que "nunca dormem e podem tocar
por dias" (Casacuberta 2004:262) e pretendem "substituir o trabalho realizado por DJs humanos" (Cliff 2000:10) –
que parecem ignorar o fato de que o DJ é, desde o início, um operador que se intromete em um mecanismo que

288
Já vimos como o ouvinte-dançante de música eletrônica se percebe como uma peça de
uma máquina através do transe maquínico. Veremos agora como o DJ assume o papel de um
operador-produtor dessa máquina composta pelo seu público, pela música e pelas máquinas
técnicas. Para isso, consideraremos primeiro os dois mecanismos básicos que produzem essa
máquina e que determinam o seu funcionamento – o break, que tem a função de capturar o
movimento, e o pulso constante, que tem a função de mantê-lo e modulá-lo – e em seguida os
parâmetros técnicos através dos quais ela é operada – a intensidade sonora, que produz um
ambiente imersivo e vibratório, as freqüências, que trabalham as densidades relativas desse
ambiente, e a velocidade, que diferencia e reorganiza essas densidades relativas em diferentes
regimes.

O break e o pulso constante


Ao longo desta pesquisa, deparamo-nos com dois elementos básicos que podem ser encontrados,
em algum grau, em qualquer música eletrônica de pista, e que concluímos ser a base de seu
funcionamento: (1) o break e (2) o pulso constante.

O BREAK
Existem muitas maneiras de definir o break: "uma célula percussiva internamente complexa";34
"a parte da música na qual a bateria assume";35 "a parte de uma faixa de Funk ou Disco que traz
apenas percussão, o pico no qual os dançarinos disparam e realizam seus passos mais
impressionantes";36 a parte do disco na qual "o nível de energia da sala inteira disparava";37 a

antes era automático e não a crescente automatização de uma função expressiva, como alguns insistem em
acreditar. Brewster e Broughton já disseram bem que "a profissão dos DJs foi automatizada antes mesmo de vir a
existir" ("[s]eu predecessor mais evidente já existia desde 1889 e era uma máquina", "a jukebox"; Brewster e
Broughton 2000:46-7), e sobre as tentativas de construir um "DJ Robô" eles são enfáticos: "Ele poderia economizar
uma fortuna em cachês e não ficaria pedindo drogas de cortesia ou paquerando a namorada do patrão, mas é muito
pouco provável que esse tipo de software seja algum dia usado para expandir o gosto do público, recontextualizar
um pedaço de música ou justapor dois discos improváveis com sucesso." (Brewster e Broughton 2000:406) Em
suma, o DJ que nos interessa aqui pode não ser expressivo, mas precisa ser extremamente intuitivo, o que o torna
insubstituível.
34
Toop (2000a:92).
35
Toop (2000b:14).
36
Reynolds (1999:252; cf. p.120). Porém, o conceito de break parece ter surgido muito antes do Funk e da Disco; já
nos discos de Jazz dos anos 20 ele era usado para designar os solos de percussão e bateria (cf. Brewster e
Broughton 2000:207; Toop 2000b:142-3; Shapiro 2000e:152). A diferença é que os breaks de Jazz não serviram
como material de trabalho dos DJs. Foi só com os breaks de Rock, Funk, Disco e outros estilos já dos anos 60 e 70,
em especial os discos de James Brown, que os DJs passaram a trabalhar.
37
Brewster e Broughton (2000:208).

289
parte da música que "te agarra"38 etc. Toop distinguiu os DJs de discoteca dos DJs de festas de
periferia na Nova Iorque dos anos 70 afirmando que enquanto aqueles criavam um contexto para
o break – toda uma seqüência musical que culminava nessa parte da música e que partia dela para
um outro break mais adiante – estes faziam da repetição ininterrupta de breaks um contexto para
a exibição de movimentos espetaculares da dança (o breakdance), da fala (o Rap) e, mais tarde,
do próprio DJ (turntablism).39 No entanto, seja como uma quebra contextualizada, seja como um
contexto para (re)quebrar, o break é sempre uma parte curta da música (que pode ser repetida
tornando-se a base de uma nova música mas que, em si, é apenas um "sinal de diferença"40) que
se sobressai pelo seu efeito motor e transitivo (um estímulo à dança ou à mudança do movimento
que pode ser permanente ou periódico).41
De uma perspectiva histórica, a descoberta da função de captura do movimento pelo break
foi fruto da experiência direta e repetida de DJs, em meados da década de 70, com a maneira
como certos trechos de certas músicas tinham um potencial maior para provocar explosões de
euforia e dança no público. As músicas eram geralmente aquelas com influências africanas ou
latinas e os trechos eram geralmente aqueles em que os instrumentos harmônicos saíam de cena
abrindo espaço para solos percussivos. Essa parte da música foi chamada de break – o ponto em
que a música "quebrava", espécie de "articulação" da música que tinha o poder de estimular as
articulações corporais do público – e os padrões percussivos que a caracterizavam foram
chamados de breakbeats (cf. Exemplos Sonoros 11, 12, 13, 14 e 15). O caso arquetípico dessa
evolução histórica do break e do breakbeat foi o uso que os DJs fizeram dos discos do performer
James Brown, cujo maior trunfo parece ter sido a sua habilidade em encontrar bateristas capazes
de capturar o movimento de seu público através da síntese, em seus corpos individuais e em seus
kits percussivos, de ritmos antes executados por diversas pessoas que tocavam e dançavam em
festas populares como o Mardi Gras.42 Assim como os movimentos dessas pessoas eram

38
DJ Afrika Bambaataa, in: Poschardt (1998:162 nota 43).
39
Cf. Toop (2000b:13-4, 60-2).
40
Referimo-nos aqui ao conceito batesoniano de informação, que retomaremos adiante. Aproveitamos, porém, para
mencionar a ressonância entre o uso que faremos aqui dos conceitos relacionados de diferença, repetição e
informação e aquele feito por Bacal na interpretação do funcionamento da música eletrônica (cf. Bacal 2003:82-4,
117-8).
41
Apesar de demonstrar preocupações muito mais abrangentes do que as nossas, Needham (1967) chegou a
conclusões análogas sobre a relação entre percussão e transição.
42
Dinerstein nota que "tocar um kit de bateria é como concentrar em si mesmo todo um conjunto percussivo
tradicional" e que os bateristas de Jazz dos anos 20 assumiram o papel de "três ou quatro" pessoas nos conjuntos
percussivos africanos tradicionais (cf. Dinerstein 2001:25). O baterista Earl Palmer conta que criou sua batida para
um Rhythm'n'Blues gravado em 1953 ("Tipina") a partir dos ritmos de festa de rua, misturando "o que os tocadores
de caixa estavam tocando e aquilo que os tocadores de bumbo estavam tocando com uma coisa funky mais atual"

290
simultaneamente dança e música, os movimentos dos bateristas que concentravam em seus
corpos individuais esses ritmos distribuídos eram determinados não por um impulso expressivo
individual, mas sim por uma conexão estreita entre cada um de seus movimentos, cada som que
eles geravam, e os movimentos do público que dançava junto com esses sons.43 Os ritmos,
concentrados no corpo individual do baterista e redistribuídos entre seus membros, não eram
mais feitos pelas mesmas pessoas que dançavam (o baterista precisava permanecer sentado, pois
cada um de seus membros estava ocupado com ritmos complexos), mas ainda tinham essa dança
como origem e destino. Tudo se passa como se os movimentos molares do público e do baterista
– aqueles de seus corpos individuais, um no palco e os outros na platéia – passassem a ser a
dimensão visível de um movimento molecular invisível que os englobava e relacionava – aquele
de um novo corpo sonoro-motor que se formava justamente a partir da disjunção entre o som
(que passava a ser feito pelo baterista) e o movimento (que passava a ser feito pelo público). Daí
talvez a curiosa relação, percebida por Reynolds, entre o "movimento browniano" descoberto por
Richard Brown no início do século XIX e o "movimento browniano" descoberto pelos bateristas
de James Brown nos anos 70 (cf. Imagem 9).44 Uma vez registrado em vinil, o "movimento
browniano" dos bateristas de James Brown se transformou no "movimento browniano" do
breakbeat, efeito molar de um movimento molecular que conecta certos sons a certos

(Earl Palmer, in: Stewart 2000:300). O estudo de Alexander Stewart (2000) é de grande valia para a compreensão
musicológica da contribuição dos bateristas de James Brown para a consolidação do breakbeat; cf. também
depoimentos em James Brown (v2004). Elaboramos, em outra ocasião (cf. Ferreira 2005c), um estudo sobre essa
perspectiva mais musicológica do potencial cinético do breakbeat – i.e., de sua capacidade de estimular o
movimento – baseada principalmente nas dinâmicas de sobreposição de ritmos binários, ternários e quaternários.
Optamos por privilegiar aqui uma perspectiva que parece-nos ser complementar àquela e menos baseada em
conceitos tradicionais de andamento musical.
43
Como disse o baterista de Swing Jimmy Crawford nos anos 20: "[Se] eu não olhasse para os pés do público [...] eu
não acertaria aquelas transições." (Jimmy Crawford, in: Dinerstein 2001:28).
44
Cf. Reynolds (2000:29). Schafer usa o mesmo conceito de movimento browniano para falar da paisagem sonora
urbana pós-industrial: "A principal característica da paisagem sonora da cidade é o movimento fortuito, e ele pode
ser ouvido com maior nitidez de certa distância nas horas tardias da noite. É o murmúrio contínuo em baixa
freqüência que se ouve de uma montanha próxima ou através da janela aberta às primeiras horas da manhã. Isso é
pedesis, movimento browniano, ruído gaussiano. É composto por um milhão de Mr. Browns e Ms. Smiths,
correndo em seus próprios círculos privados ou deslizando entre rotinas casuais, raramente sincronizando suas
atividades, raramente levando uns aos outros em consideração. [...] [A] vida social moderna é desprovida de
definição rítmica." (Schafer 2001:325) Segundo nossa proposta, a ausência de "definição rítmica" diagnosticada
por Schafer seria o resultado de uma falta de resolução adequada de sua própria percepção: há uma enorme
ritmicidade nos movimentos cotidianos dos milhares de Mr. Browns e Ms. Smiths, mas é preciso saber distingui-la
(encontrar o limiar no qual ela emerge, "quando o corpo suspenso se torna notavelmente suscetível aos impactos
dos movimentos [...] das moléculas circundantes e começa a realizar uma 'dança' incessante e irregular em torno de
sua posição de equilíbrio"; Schrödinger 1992:16), uma tarefa na qual se especializaram os bateristas da era da
máquina (cf. Dinerstein 2001) e à qual se dedicam atualmente os DJs.

291
movimentos, uma conexão que não é necessária, mas sim empírica (cf. Imagem 10).45 Essa
verificação empírica, por parte dos DJs, de que certos breaks tinham esse efeito explosivo no
público, somada à possibilidade que eles tinham de fazer experiências repetidas e controladas
(pois que baseadas na reprodução técnica) com os efeitos causados por diversas combinações
diferentes de breakbeats, foi o que consolidou essa técnica como uma espécie de aparelho de
captura do movimento.46
Essa atitude empírica está na base da eficácia das técnicas desenvolvidas pelos DJs de
breaks. Kool Herc, por exemplo, DJ jamaicano que toca em Nova Iorque desde 1973 e que é
normalmente apontado como o "descobridor" do breakbeat,47 conta como, certa vez em 1974,
decidiu tocar apenas as partes dos discos que faziam as pessoas dançarem com mais empolgação:
"Buuum! Bum bum bum. Tentei fazer com que soasse como um disco. O lugar enlouqueceu.
Adoraram. [...] Decolou!"48 A partir de então, ele passou a comprar duas cópias de cada disco
para poder repetir o mesmo trecho quantas vezes o público quisesse e sem interrupções (enquanto
um disco tocava, o outro era preparado), e deu à parte de sua apresentação dedicada aos
breakbeats o nome de "Carrossel [The Merry Go Round]": "Quando você ouve, você pula pra

45
Segundo o produtor Bob Drake, as músicas de James Brown são "a coisa mais sampleada do universo", "o lugar de
onde a música Pop moderna veio", "a música Funk definitiva" (cf. Cutler 1993:14), o DJ Afrika Bambaataa afirma
que "James Brown é o artista mais sampleado de todos os tempos" (in: James Brown v2004) e para Tricia Rose
James Brown é "a fundação do breakbeat" (in: Stewart 2000:305). Reynolds chega a considerar James Brown uma
"corporação Funk", uma "fábrica de polirritmos dos anos 70, produzindo breakbeats, linhas de baixo, toques de
metais e levadas rítmicas de guitarra – componentes de máquina de tamanha qualidade e durabilidade que ainda
estão sendo canibalizados atualmente por engenheiros e produtores" (Reynolds 1999:53). Segundo o produtor
inglês de Drum'n'Bass LTJ Bukem, a maioria dos breaks vem dos anos 70 (cf. Shapiro e Lee 2000:38), e o DJ
inglês de Hip Hop Andy Smith confirma que é em gravações dos anos 70 que os melhores breaks podem ser
encontrados (cf. Reighley 2000:86). Aparentemente não são apenas os eletrodomésticos dos anos 70 que duram
mais do que os posteriores: as máquinas de captura do movimento (os breaks) também.
46
O poder de captura do break já era usado por músicos, portanto, antes de se tornar uma ferramenta dos DJs. Gary
Burns, que definiu o efeito do "gancho [hook]" musical como aquele de "ser pego ou preso, como quando um peixe
é fisgado", notou que "[s]e uma passagem mais longa de ritmo alterado intervém entre passagens do ritmo
dominante, o momento quando o ritmo dominante é restabelecido pode ter um poderoso efeito de gancho [...],
como se o ritmo voltasse a ser explícito após ter se mantido implícito durante algum tempo" (Burns 1987:7). A
"tipologia de ganchos" (ou ganchologia) de Burns traz ainda outras categorias relevantes para a compreensão da
captura e manutenção do movimento na música eletrônica de pista, como os ganchos de velocidade, dinâmica,
efeitos, edição, mixagem, pan e distorção (cf. Burns 1987:14-8). Concordamos, nesse sentido, que "a história da
música eletrônica de pista é a história da criação de clichês potentes", "sons e efeitos tão bons que outras pessoas
não resistiam copiar" (Reynolds 1999:386), desde que se distinga a potência da criação que caracteriza as suas
vertentes underground da simples cópia dessas criações que caracteriza o mainstream.
47
Cf. Poschardt (1998:162), Eshun (1999:58), Reynolds (1999:252, 257-8), Reighley (2000:44-5), Brewster e
Broughton (2000:213), Shapiro (2000e:152), Webber (2000:93), Toop (2000b:60), Dr Schmidt (*2003), Rocha
(*2004c).
48
"Boom! Bom bom bom. I try to make it sound like a record. Place went beserk. Loved it. [...] Took off!" (DJ Kool
Herc, in: Brewster e Broughton 2000:208; itálicos no original).

292
dentro. Não tem volta, você vai adiante".49 Outros DJs passaram a fazer o mesmo que Herc –
notavelmente Grandmaster Flash, que se celebrizou pelas suas técnicas de mixagem, e Afrika
Bambaataa, que se celebrizou pelo uso criativo de um repertório eclético50 – e em pouco tempo, a
habilidade dos DJs para achar o breakbeat certo para a hora certa seria realimentada na produção
de novas músicas, que então passariam a incorporar em suas próprias estruturas esse
conhecimento empírico, e também na produção de coletâneas compostas apenas por montagens
de breakbeats isolados ou já concatenados para uso dos DJs.51 Foi Eshun quem mostrou melhor
como funciona a captura do movimento pelo break, aquilo que ele chamou de "a ciência do
breakbeat [Breakbeat science]":52

A ciência do breakbeat [...] é quando Grandmaster Flash e DJ Kool Herc e todos aqueles caras
isolam o breakbeat, quando eles literalmente vão para o ponto do disco no qual a melodia e a
harmonia são suprimidas e as batidas da bateria e do baixo vêm para o primeiro plano. Ao isolarem
isso, eles ligaram um tipo de eletricidade, tornando a batida portátil, extraindo a batida. Eu chamo
isso de captura do movimento [Motion Capture]. Em filmes como Jurassic Park e todos os grandes
filmes com animação por computador, a captura do movimento é o dispositivo através do qual eles
sintetizam e virtualizam o corpo humano. Eles pegam um cara dançando lentamente e fixam luzes
em cada uma de suas articulações que depois são mapeadas numa interface e pronto, você
literalmente captura o movimento de um humano e agora pode virtualizá-lo [cf. Imagem 11]. Eu
acho que foi isso que Flash e os demais fizeram com a batida. Eles pegaram uma batida em
potencial que sempre esteve lá isolando-a do motor Funk [funk motor53] e materializando-a como

49
"The Merry Go Round. See, once you hear it, you got to hop on. You're not comin' back, you're goin' forward."
(DJ Kool Herc, in: Brewster e Broughton 2000:209) São mencionados como peças freqüentes no Carrossel de Kool
Herc: "Give It Up Or Turn It Loose" (James Brown; cf. Exemplo Sonoro 14), "Bongo Rock" (Michael Viner) e
"The Mexican" (Babe Ruth) (cf. Channel 4 *1999).
50
Brewster e Broughton, que consideram Herc, Flash e Bambaataa a "santíssima trindade do Hip Hop", atribuem a
cada um deles um mérito diferente: "Herc tinha o pioneirismo e o volume, Flash tinha a técnica, mas Afrika
Bambaataa tinha os discos" (Brewster e Broughton 2000:219-21).
51
Esse tipo de coletânea já era comum no final dos anos 70 e continua sendo lançada atualmente (cf. Reynolds
1999:145, 252; Brewster e Broughton 2000:222, 239; Reighley 2000:47; Toop 2000b:67). Sobre a história de um
break em especial, desde a sua gravação pelo baterista Gregory C. Coleman do grupo The Winstons em sua versão
do gospel "Amen My Brother" (cf. Exemplo Sonoro 11) no disco Color Him Father (1969) até suas mais recentes
versões vendidas atualmente em CDs de breakbeats, cf. Harrison (v2004).
52
Segundo Eshun, a "ciência do breakbeat" é uma "ciência de intensificação das sensações", uma "ciência de
engenharia sensorial" que "mistura a lógica causal, abre uma nova ilógica da hipercussão e supercussão [opens up a
new illogic of hypercussion and supercussion]": "a física do ritmo", "o futuro fugido [runaway future] da música de
computador, no qual o som alfanumérico escapa do laboratório, replicando em estúdios de quarto [bedroom
studios] numa série de operações ocultas", "a tecnologia secreta de ordenar geneticamente o som [gene-splicing
sound], a ciência não-oficial de quebrar o ritmo do break até que ele se torne uma passagem para a viagem-bateria
e o truque-bateria [a passage into the drumtrip and the drumtrick], uma escalada de timbrefeitos rítmicos [an
escalation of rhythmic timbreffects]" e o cientista é aquele que "atravessa o limiar do baterista humano para
investigar as hiperdimensões do breakbeat desmaterializado" (Eshun 1999:68, 70, 177). Evidentemente, no final
dos anos 70, ainda estamos nos primórdios mecânicos dessa ciência de que fala Eshun, antes mesmo de ela se
tornar uma ciência computacional, o que ocorrerá principalmente nos anos 90 com o Jungle e o Drum'n'Bass,
quando "as batidas são digitalizadas" e se tornam "informação a ser manipulada" (Eshun 1999:177). Mais sobre a
"ciência do breakbeat" em Reynolds (1999:253-4, 257-8, 360-1, 373-4), Berk (2000:198) e Sharp (2000:140-1)
53
Ele fala também de "motoritmo [Rhythmengine]" e de "motores cinestéticos que capturam o seu movimento"
(Eshun 1999:14, 18).

293
uma porção de vinil que poderia ser repetida. Eles ligaram o potencial material do break, que
permaneceu adormecido durante muito tempo54

Poderíamos, assim, resumir a "ciência do breakbeat", em duas etapas: (1) a verificação empírica
e repetida de que certos trechos de certas músicas têm um potencial maior para provocar o
movimento da dança no público; (2) a experimentação sistemática com a reprodução técnica
desses trechos visando o controle dos movimentos que a eles são associados. Temos então uma
seqüência de capturas do movimento na qual bateristas capturam o movimento de seu público ao
capturarem os híbridos som-movimento das festas populares e DJs capturam o movimento de seu
público ao capturarem o som daqueles bateristas. Mas como funcionam essas capturas do
movimento? De onde vem esse potencial cinético do break?
Tudo indica que o break estimula o movimento pois ele trabalha com a transposição
estratégica de limiares de tendências latentes ao movimento. Se concentrarmo-nos na própria
experiência de captura, veremos que ela é, em seu nível mais geral e abstrato, uma experiência
motora da diferença. É como a diferença que experienciamos, por exemplo, quando nosso
automóvel passa de uma rua secundária – onde podemos andar lentamente (ou até mesmo parar
para conversar com alguém na rua), estacionar com tranqüilidade, onde há, enfim uma margem
de liberdade maior para os movimentos – para uma grande avenida – onde uma grande
quantidade de carros impõe uma certa velocidade média e também uma série de limites aos
nossos movimentos espontâneos –, quando é preciso não apenas esperar o momento certo para
entrar, mas também avaliar a velocidade que devemos rapidamente assumir. É como a
experiência de aterrizagem em um avião, quando se passa do movimento predominantemente
suave e contínuo do vôo para os movimentos mais bruscos e descontínuos do deslocamento
terrestre, passando pelo período intermediário de trepidações gerais da descida e dos impactos
iniciais e abruptos das rodas do avião com a pista. O importante aqui não é a situação inicial ou a
final (se passamos da estrada principal para a secundária ou o contrário, se decolamos ou
aterrizamos), mas sim a passagem entre elas, quando um certo regime de movimento é
substituído por outro através de uma série de diferenciações específicas a cada caso. Trata-se de
um fenômeno de atrito, como numa derrapagem (que pode ocorrer numa freada ou numa

54
Eshun (1999:176). Eterno opositor da "escuta retroa[udi]tiva [[r]earview hearing]", Eshun propõe a interpretação
do breakbeat como um dispositivo de captura do movimento como alternativa à interpretação retrógrada que faz
dele um "retorno da percussão africana": "O breakbeat deveria ir para frente. Pense nele como um dispositivo de
captura do movimento feito de vinil, antes que existissem os equipamentos digitais usados atualmente. Se pudesse,
Grandmaster Flash teria sido um designer gráfico; se ele tivesse sido um desenhista de animação, ele estaria
fazendo captura do movimento. Ele apenas fez tudo antes no vinil." (Eshun 1999:181)

294
arrancada), em que uma relação antes não percebida (pois que inconsciente) entre dois meios
distintos (o pneu e a rua) emerge para a percepção (na forma de um som e de um híbrido pneu-
asfalto que permanece como rastro) através de uma mudança nas suas relações.
O break captura o movimento, enfim, pois ele é um índice eficaz de uma mudança de
regime do próprio movimento. É uma sensação motora de diferença, uma espécie de impulso ou
empurrão que afeta o corpo e desloca o seu centro de gravidade, levando com ele todo o resto do
corpo.55 Assim como a mancha comprida no asfalto é uma marca visível da interpenetração da
borracha do pneu e da pista, a diferença de cor dos sulcos do vinil que trazem o break da música
é uma marca visível e facilmente localizável pelo DJ de uma interpenetração do som daquele
trecho específico do disco e de um movimento muito especial de seu público (cf. Imagem 15).
Mas mais do que uma diferença de grau na cor do asfalto ou do vinil, essas marcas visíveis
indicam uma diferença de natureza na qualidade do movimento que a elas está associada, uma
informação relevante acerca do estado do sistema cujas relações elas indicam, uma "diferença
que faz uma diferença".56 Tais marcas indicam, acima de tudo, as articulações naturais e
profundas que unem os dois meios que entram em relação. São pontos de inflexão, pontos em que
algo de novo surge, em que um novo processo motor efetivamente se inicia. O break, quando
eficaz, divide a música em um antes e um depois: muito mais do que uma fórmula empregada por
DJs para produzir suas músicas, ele é uma articulação natural do corpo que se produz através
dela.
Mas uma vez iniciado o movimento, é preciso mantê-lo e modulá-lo, uma passagem que é
magistralmente exemplificada pelos progressos que o DJ nova-iorquino Grandmaster Flash
introduziu a partir de 1975 na "ciência do breakbeat" inaugurada por Kool Herc no ano anterior.

55
Como a marionete de Von Kleist, controlada idealmente a partir de seu centro de gravidade, "alcançava um tipo de
movimento rítmico que lembrava a dança" quando o seu centro de gravidade era afetado por um "pequeno choque
involuntário" (Von Kleist 1983:179-80), como "a nova cinestética [kinaesthetic] do século XX" de Hillel Schwartz,
baseada no torque a que o movimento que parte do centro do corpo submete suas diferentes partes (cf. Schwartz
1992:102-8), o movimento causado pelo break pode ser entendido como o resultado de um deslocamento do centro
de gravidade daquele que se move por um choque sonoro capaz de atravessar um certo limiar de excitação motor.
Eshun vai nessa mesma direção quando define o ritmo como "intensidades" que "atravessam uma série de limiares
em seu corpo" que "te agarra[m]": "Quando você ouve uma batida, ela aterriza nas suas articulações ela se instala
na junção de suas articulações e se articula nelas, ela captura um músculo, ela te dá essa tensão, ela te captura, e de
repente você vê sua perna se levantar apesar de sua cabeça." (Eshun 2000a) O som, é aqui "mais rápido do que sua
cabeça" pois ele age como um deslocamento de seu centro de gravidade e ele "se instala" nas articulações pois
estas são submetidas ao centro de gravidade, como quando se é jogado para trás numa arrancada automotiva ou
jogado para cima em um quebra-mola. Poderíamos dizer ainda que o anga dos Muria (cf. Gell 1980) é um
dispositivo de captura e modulação do movimento.
56
Bateson definiu informação como "uma diferença que faz uma diferença" (cf. Bateson 1985:78, 110, 242;
1987:271-2). A informação produzida no break envolve, entre outras coisas, um despertar da "memória cutânea" e
"carnal", uma "janela para o tempo psicoafetivo" (Eshun 1999:58), ela é do tipo performativa pois informa o estado
de um sistema do qual se é parte, contribuindo para a transformação desse mesmo sistema.

295
Flash, percebendo que Herc apenas tocava um break atrás do outro sem se preocupar com as
interrupções e com as diferenças de velocidade (o que lhe parecia atrapalhar a fluidez dos
movimentos de seu público), decidiu dar um passo adiante e não apenas repetir os breaks mas
fazê-lo "no tempo" e "com precisão", ou seja, repetir um mesmo trecho de poucos segundos de
uma gravação a partir de duas cópias idênticas dela de maneira que o final de uma emendasse tão
perfeitamente no início da outra que o público não percebesse a transição e pudesse "dançar o
quanto quisesse" (cf. Exemplo Sonoro 16).57 Flash conta que sua busca pelas técnicas e
tecnologias que lhe permitissem realizar a proeza só começou a progredir após a descoberta, por
intermédio de um DJ de Disco (Pete Jones), do sistema de monitoramento por fones de ouvido e
mixer que permitia aos DJs que tocavam esse estilo musical de pulso constante sincronizarem
duas músicas diferentes e emendá-las de maneira ininterrupta.58 Uma vez descoberto o truque,
Flash se dedicou à elaboração da tecnologia, das técnicas e da filosofia59 que não apenas
concretizaram a maquinação da pista de dança mas também serviram de plataforma para os novos
processos de subjetivação do turntablism.60

57
"Herc tocava os breaks dos discos, mas ele não levava em conta o tempo [...]. Ele tocava um disco que tinha talvez
90 BPM, e depois tocava outro de 110BPM. O tempo não era importante, ele tocava os discos fora do tempo. [...]
Porém, o tempo era importante, porque muitos desses dançarinos eram muito bons. Eles faziam seus movimentos
no tempo. Por isso eu disse para mim mesmo que tinha que ser capaz de ir para a parte certa do disco, o break, e
estendê-la, mas no tempo. Eu tinha que descobrir como pegar essas seções desses discos e editá-las manualmente
de forma que a pessoa na minha frente nem percebesse que eu tinha pegado um trecho de talvez quinze segundos e
feito com que durasse cinco minutos. Assim, essas pessoas que realmente dançavam poderiam dançar o quanto
quisessem." (Grandmaster Flash, in: Brewster e Broughton 2000:214-5; itálicos no original)
58
Brewster e Broughton contam que Flash, que já tinha ouvido DJs de Disco mixar discos de maneira suave e
sincronizada, queria "combinar os melhores elementos dos dois estilos de discotecagem", o dos DJs de break e o
dos DJs de pulso constante (Brewster e Broughton 2000:214), e Kurt B. Reighley afirma que "o objetivo de Flash
era combinar o domínio de Herc sobre o breakbeat com a mixagem fluida e contínua de [Pete] Jones" (Reighley
2000:50).
59
Flash teve que construir seu próprio mixer com peças avulsas para que pudesse monitorar com fones de ouvido a
música que estava sendo preparada e também teve que pesquisar parâmetros técnicos para encontrar o melhor
modelo de toca-discos para seus objetivos e ficou alguns meses só ensaiando e refinando técnicas cuja dificuldade
residia na necessidade de editar, ao vivo e fluentemente, trechos curtos de gravações em vinil, elaborando uma
série de "teorias" e "sistemas" que davam uma dimensão conceitual às suas novas técnicas. Os sistemas e teorias
mais célebres são: a "Teoria do Torque [Torque Theory]", que definia o torque mínimo necessário a um toca-discos
para que suportasse as manobras que Flash estava elaborando; o "Sistema da Espiadela [Peek-a-Boo System]",
sistema de monitoramento prévio da música pelo DJ por fones de ouvido; a "Teoria da Mixagem Rápida [Quick
Mix Theory]", que fundamentava as técnicas para juntar e rearranjar trechos de menos de 30 segundos de
gravações; a "Teoria do Relógio [Clock Theory]", que permitia a localização visual rápida de pontos estratégicos
no vinil através de marcas no selo central; e as teorias do "Cachorrinho [Dog Paddle]" e do "Discador de Telefone
[Phone Dial Theory]", que fundamentavam as técnicas de manipulação do disco com a mão pela borda e com os
dedos pelo centro (cf. Brewster e Broughton 2000:215-6; Morris *2002; Cibula *2002). Segundo Eshun (1999:14-
5), Flash inaugurou a "mitologia maquínica do toca-discos" com seus "conceitéchnics [conceptechnics]" (composto
de "conceitos", "técnicas" e "Technics", a marca do toca-discos que ele ajudou a tornar padrão entre os DJs).
60
Cf. Poschardt (1998:167-75), Eshun (1999:13), Reighley (2000:50-1), Toop (2000b:62-7), Webber (2000:94),
Brewster e Broughton (2000:213-7). Apesar de ter sido Flash o primeiro a levar a sério os malabarismos do toca-
discos (e.g. sua demonstração em Ahearn v2002), é a invenção do scratch por Grand Wizard Theodore entre 1977

296
Bill Brewster e Frank Broughton notam que "[a]s técnicas revolucionárias de
discotecagem de Flash eram baseadas tanto nas fusões contínuas da Disco quanto nos breaks
suados de Funk de Herc", e "a cena Disco já havia desenvolvido o protótipo do estilo de
mixagem de Flash antes mesmo que este comprasse um par de toca-discos".61 Além disso, DJs de
Disco já experimentavam com breakbeats desde antes de 1974, o caso mais célebre sendo o de
Walter Gibbons, que além de criar montagens de passagens rítmicas de gravações já em 1972 no
clube Galaxy 21 (Nova Iorque) ainda contava com a presença do baterista Françoise Krevorkian
improvisando ao vivo e do meio do público.62 Não foi por acaso, portanto, que a chave para a
manutenção do movimento explosivo iniciado pelo break foi descoberta por Flash justamente
graças a um DJ de Disco. O fato é que Flash estava tentando fazer com trechos de poucos
segundos de som aquilo que DJs de Disco já estavam fazendo com músicas inteiras desde o início
dos anos 70: criar novas músicas voltadas para as necessidades de sua relação com o seu público
a partir da re-edição de músicas pré-existentes, eliminando suas partes desnecessárias (ou
ineficientes), estendendo suas melhores partes (aquelas que estimulavam a dança), modificando a
sua ordem na seqüência final (conduzindo o público), e mixando essas músicas umas nas outras
de forma a não interromper o movimento já existente na pista de dança.63

e 1978 que define o início oficial do turntablism (cf. Reighley 2000:52; Brewster e Broughton 2000:224-5; Webber
2000:93-4; Snapper 2004:9). Conta a lenda que Flash guardava seu equipamento na casa de um amigo cujo irmão
mais novo – Grand Wizard Theodore, então com treze anos – aproveitava para praticar algumas manobras, tendo
eventualmente descoberto o potencial performático do scratch. Segundo Brewster e Broughton, "Flash concebeu o
scratch primeiro, mas o grande mago [Grand Wizard] superou o grande mestre [Grandmaster] na manobra"
(Brewster e Broughton 2000:225), mas preferimos ver a coisa por outro ângulo: enquanto Flash usava o scratch
para outra coisa (i.e., sincronizar ou concatenar de maneira precisa duas gravações diferentes), o ruído sendo o
efeito colateral do processo, Grand Wizard Theodore fez dele um fim em si, o ruído sendo o próprio fim almejado.
61
Brewster e Broughton (2000:255).
62
Cf. Brewster e Broughton (2000:158-9).
63
As técnicas de edição e mixagem que os DJs norte-americanos começaram a praticar com vinil e fitas magnéticas
nos anos 70 já eram conhecidas por DJs jamaicanos desde a década anterior (cf. Brewster e Broughton 2000:108-
22; Shapiro 2000c; Prochak 2001:12) e passariam a ser praticadas através de mídias digitais por DJs de todo o
mundo a partir dos anos 80. Flash se encontra, assim, numa situação análoga à de um pintor realista na época em
que a câmera fotográfica estava sendo desenvolvida: ele representa a manifestação mais acabada daquilo que as
novas tecnologias em breve tornariam obsoleto. Em um ótimo ensaio sobre o devir-máquina de Andy Warhol,
Thierry de Duve mostra como "[d]esde que Delaroche, Champfleury ou Baudelaire expressaram o medo, inspirado
pela fotografia, de que o pintor fosse substituído pela máquina, pintores modernos – os grandes, aqueles que
merecem ser chamados de vanguarda – responderam com a manifestação de seu desejo de ser uma", de "se
tornar[e]m, no desejo e na prática, não o fotógrafo, mas o seu instrumento" (De Duve 1989:10-1). Andy Warhol,
que "queria ser uma máquina" é, para De Duve, "a máquina tornada perfeita", a realização da "necessidades
histórica do pintor de querer ser uma máquina", pois "[e]le sabia não apenas como se comportar como uma
máquina pintora, mas também como uma máquina filmadora, uma máquina impressora, uma máquina gravadora, e
como a máquina registradora do mercado de arte" (De Duve 1989:3, 12-3). Poderíamos dizer que depois de Flash,
enquanto alguns DJs passaram a tratar a máquina como um instrumento, outros passaram a tratar a si próprios
como partes de uma máquina. É nesses últimos que estamos interessados.

297
No entanto, diferentemente do enfoque funcionalista (ou funkionalista, como dizem
Eshun e Reynolds) de Herc, Flash e Bambaataa que tocavam discos apenas pelos segundos de
break que eles tinham (músicas que o público nunca chegava a conhecer para além do break), os
DJs de Disco valorizavam acima de tudo a continuidade e não tocavam músicas que não
valessem a pena de serem ouvidas também em sua integridade.64 Por isso, apesar de não terem
sido os primeiros a explorarem o potencial dos breaks, os DJs de break foram aqueles que
elevaram essa exploração ao nível de uma "ciência" experimental e metódica, pautando a escolha
de suas músicas apenas pela sua "eficácia como componentes sônicos e seu efeito na pista de
dança"65 e assim anteciparam o enfoque funcionalista da maioria dos DJs de música eletrônica de
pista a partir dos anos 80.66 O fato de que pouco tempo depois essa "ciência do breakbeat" se
tornaria mais interessada nas suas próprias técnicas do que nos resultados de sua pesquisa não
diminui o seu mérito, apenas coloca um limite a partir do qual ela deixa de interessar à nossa
investigação: quando os esforços de Flash para manter o movimento da dança disparado pelo
break dão lugar aos esforços exibicionistas dos turntablists.67 A importância da "ciência do
breakbeat" iniciada por Herc e aperfeiçoada por Flash para o nosso trajeto reside, assim, não nas
habilidades corporais que ela exigiu dos DJs, mas sim no fato de que ela representa a
convergência histórica do estágio mais desenvolvido até então da captura do movimento pelo
break com a técnica que passaria a partir de então a ser a base do trabalho do DJ de música
eletrônica de pista: a transição contínua e imperceptível entre duas ou mais gravações.

O PULSO CONSTANTE
O DJ de Disco Francis Grasso, que tocou em Nova Iorque de 1968 a 1981, é tido como o
primeiro DJ a sincronizar duas gravações diferentes ainda em 1969, uma época em que o sistema
de monitoramento por fones de ouvido e os controles contínuos de velocidade do toca-discos
ainda não eram desenvolvidos e as músicas ainda eram todas gravadas por conjuntos musicais e,

64
Cf. Toop (2000b:60-2). Bambaataa conta que enquanto "outros DJs tocavam seus melhores discos por quinze,
vinte minutos ou mais, nós mudava [we was changing; sic] os nossos em segundos" (Afrika Bambaataa, in:
Brewster e Broughton 2000:221).
65
Brewster e Broughton (2000:223).
66
Em sua pesquisa com DJs ingleses do início dos anos 90, Langlois notou que, contra os ideais mais centrados na
integridade musical da maioria dos DJs dos anos 70, "[u]m disco é bom apenas na medida em que um DJ o torna
bom no ato de tocá-lo; é a sensação, e não uma falsa integridade, que se busca" (Langlois 1992:237).
67
Ou, poderíamos dizer também, quando o scratch deixa de ser o som não intencional do processo de sincronização
de dois ou mais discos a serviço da dança e passa a ser o som intencional de um instrumentista tentando se
expressar.

298
portanto, repletas de oscilações no andamento.68 O seu objetivo era produzir um fluxo
ininterrupto de música capaz de manter as pessoas "presas na sua levada [locked in its groove]",69
numa época em que DJs ainda deixavam intervalos entre as músicas e freqüentemente impunham
quebras de ritmo na euforia do público.70 Falando sobre aquilo que o distinguia dos DJs que o
antecederam, ele afirmou:

Ninguém jamais havia de fato mantido a batida constante [...]. Eles faziam o público dançar, daí
mudavam o disco e você tinha que entrar no ritmo novamente. Nunca fluía. Eles não sabiam como
levar o público a um pico, trazê-lo de volta para baixo, e elevá-lo novamente.71

Nota-se que estamos aqui lidando não mais com a captura do movimento ("entrar no ritmo"),
procedimento que os DJs de breakbeat aperfeiçoaram, mas sim com a manutenção desse
movimento ("levar o público"). Depois de Grasso a mixagem de músicas sincronizadas tornou-se
cada vez mais comum e outros DJs ainda na primeira metade dos anos 70 se celebrizaram pela
habilidade com que realizavam essa manobra voltada, acima de tudo, para a manutenção de um
movimento já existente na pista de dança (e.g. Michael Capello, Walter Gibbons e Tee Scott72).
Mas foi principalmente na segunda metade daquela década, com o pulso marcado e cada vez
mais preciso que passou a caracterizar as músicas rotuladas como Disco,73 que a prática de

68
Cf. Brewster e Broughton (2000:135-7). Segundo o DJ Steve D'Acquisto (que junto com Michael Cappello é
conhecido como discípulo de Grasso; cf. Brewster e Broughton 2000:137-40), o monitoramento era feito de
maneira extremamente habilidosa e sutil: pequenos trechos da música em preparação eram emitidos a volumes
muito baixos pelos alto-falantes, de forma que quem estava dançando não percebesse e apenas o DJ, que sabia
exatamente aquilo que queria ouvir, escutava (cf. Reighley 2000:25).
69
Brewster e Broughton (2000:137).
70
Essa era a crítica de Grasso ao DJ Terry Noel (que ele acabou substituindo no clube Salvation Too numa noite de
1968): "Ele fazia coisas estranhas. Tipo, ele tinha a pista de dança inteira dançando e aí colocava Elvis Presley",
quebrando o clima (DJ Francis Grasso, in: Brewster e Broughton 2000:131). Essa era também a crítica de
D'Acquisto ao também DJ nova-iorquino David Mancuso ("Você nunca deveria deixar a música parar"; Steve
D'Acquisto, in: Brewster e Broughton 2000:145), cuja insistência na integridade de cada música (ele se recusava a
mixar as músicas e tocava todas do início ao fim) casava bem com sua declaração schaferiana de que "você quer
escutar a música, e não o sistema de som" (David Mancuso, in: Brewster e Broughton 2000:143; cf. Schafer
2001:290). Brewster e Broughton notam que a ênfase de Grasso nas técnicas promotoras da dança contínua, e não
num discurso musical que servia de trilha sonora para outras interações sociais, fez dele um DJ mais ligado ao
futuro daquilo que viria a ser a música eletrônica de pista (cf. Brewster e Broughton 2000:131), idéia com a qual
concordamos principalmente por considerarmos a dança uma parte indissociável do "sistema" (da máquina social)
tornado audível pelo DJ, i.e., a música não como algo que se toca para o público e sim como algo que emerge da
relação entre o público e o DJ.
71
DJ Francis Grasso, in: Brewster e Broughton (2000:131).
72
Todos tocando em Nova Iorque. Michael Capello era conhecido por estender as curtíssimas introduções das
músicas, Walter Gibbons é tido como o criador de muitas técnicas que depois seriam desenvolvidas pelos DJs de
Hip Hop e Tee Scott ficou conhecido por suas longas sobreposições precisas e ensaiadas de músicas diferentes que,
é sempre bom lembrar, ainda traziam variações de velocidade inerentes a instrumentistas humanos (cf. Brewster e
Broughton 2000:159, 161, 255).
73
Até o final dos anos 70, o rótulo Disco indicava qualquer música que fizesse as pessoas dançarem em uma
discoteca (Rock, Blues, Soul, Funk, músicas latinas, africanas etc.), fossem elas baseadas em pulsos constantes ou

299
misturar de maneira sincronizada duas gravações construindo assim uma continuidade sonora foi
ganhando consistência.
Poderíamos definir o pulso constante – também conhecido como ritmo 4x4, four to the
floor ou ainda como "reto" ou "quadrado" – como a explicitação, por um som forte, dos tempos
inteiros que definem a métrica de uma música.74 O pulso constante é geralmente acompanhado de
outros sons percussivos e ritmados, geralmente mais agudos e menos intensos do que ele, que lhe
adicionam algumas síncopes e que compõem a "levada" da música, o seu groove, mas a presença
de tempos deixados implícitos ou de sons fortes e graves em subdivisões do tempo principal da
música já indicaria a presença de um ritmo diferente daquele que estamos aqui chamando de
pulso constante (cf. Imagem 12). Na música dançante tocada por DJs, o pulso constante começou
a ser usado de maneira sistemática principalmente a partir da primeira metade da década de 70,
na forma da emissão de um som grave e forte (geralmente o bumbo da bateria ou outro som
análogo) em todos os tempos do compasso.75 Durante a segunda metade da década de 70, a
disseminação do uso de sintetizadores conhecidos como "baterias eletrônicas"76 garantiria às
músicas uma precisão metronômica antes inexistente (mesmo quando seguiam metrônomos,
bateristas ainda oscilavam em torno do pulso metronômico77) e assim tornaria habitual a

não. Foi apenas no final daquela década, com o sucesso comercial de filmes que privilegiavam músicas com o
pulso constante, que essa passou a ser uma característica distintiva da música Disco (cf. Ross et al. 1995:77;
Poschardt 1998:109; Shapiro 2000b:46; Brewster e Broughton 2000:194; Reighley 2000:31).
74
"Uma batida 4x4 é um padrão rítmico que traz quatro batidas por compasso. É o pulso rítmico repetitivo e regular
da House e do Techno. Breakbeats diferem dele por usarem síncopes e por não serem tão regulares, tão estáticos."
(Shapiro e Lee 2000:216)
75
Segundo Brewster e Broughton, a primeira música com o formato típico da Disco – a presença do pulso constante
do bumbo da bateria (o four on the floor) e de um break (o breakdown) – foi "Girl You Need A Change Of Mind",
lançada por Frank Wilson em 1973 (cf. Brewster e Broughton 2000:175).
76
Eshun elabora uma crítica contundente do hábito retroativo – que ele chama de "[r]earview hearing" (Eshun
1999:15; colchetes no original) – de chamar os sintetizadores de ritmo de "baterias eletrônicas" quando "são
freqüências, e não bumbos" que escutamos: "Não existem baterias eletrônicas, apenas sintetizadores de ritmos
programando novas intensidades a partir do ruído branco, freqüências, ondas [...]. A bateria eletrônica nunca soou
como uma bateria pois não é percussão: é uma corrente elétrica, percussão sintética, percussíntese [syncussion].
[...] Chamar o sintetizador de ritmos de bateria eletrônica é apenas mais um exemplo de escuta retroa[udi]tiva
[[r]earview hearing]. Toda vez que a mídia desacelerada escreve sobre caixas, chimbais, bumbos, ela fielmente
escuta para trás. A música eletrônica ignora essa esperança vã de emular a bateria, e ao invés disso programa
ritmos a partir da eletricidade, intensidades rítmicas que não são reconhecíveis como bateria. Não há caixas –
apenas ondas sonoras sendo alteradas. Não há bumbos, apenas velocidades de ataque." (Eshun 1999:78-9; itálicos
no original; cf. pp.15, 105, 186) Poderíamos dizer do hábito de chamar sintetizadores de ritmo de "baterias
eletrônicas" o mesmo que o personagem principal de Cosmópolis disse do hábito de chamar os terminais bancários
de "caixas eletrônicos": "O termo fazia parte do processo que o dispositivo por ele designado visava substituir. Era
antifuturista, uma almanjarra mecânica verbal." (Delillo *2003:58) Com efeito, se "[q]uem controla o sintetizador
controla o som do futuro" (Eshun 1999:160), nada mais antifuturista do que tomá-lo por um instrumento
convencional. Os primeiros sintetizadores de ritmo foram lançados comercialmente em 1969, mas apenas em 1975
surgiram os primeiros modelos comerciais programáveis (cf. Poschardt 1998:222).
77
O DJ inglês Danny Tenaglia comenta que "as pessoas não percebem o quão difícil é mixar [...] discos com
bateristas humanos" (in: Brewster e Broughton 2000:161), o DJ norte-americano Peter Calandra conta que "não há

300
sobreposição, sincronização e execução ininterrupta de músicas diferentes.78 A acoplagem direta
dessas duas máquinas (o metrônomo e o toca-discos) através da eliminação da mediação que
impedia a sua plena sinergia (o baterista humano) abriria assim um novo campo de
experimentações sistemáticas com a relação som-movimento.
A rigor, o cálculo da velocidade de uma música é possível desde que seja possível contar
quantos pulsos ocorrem nela no intervalo de um minuto – as batidas por minuto, ou BPM.79 Se
considerarmos que o relógio de pêndulo de Huygens foi construído no século XVII, essa
possibilidade existe desde pelo menos três séculos antes dos primórdios da música que aqui
pesquisamos, e de fato metrônomos são usados por músicos desde então. Porém, mesmo
instrumentistas extremamente precisos e atentos ao pulso metronômico são incapazes de
sincronizar perfeitamente os seus movimentos aos da máquina. Estudos de laboratório
comprovam que os esforços para manter a velocidade constante na produção de algum ritmo
geralmente produzem, ao longo do tempo, acelerações e ralentamentos que apesar de sutis o
bastante para não serem percebidos em um contexto musical são suficientemente acentuadas para
impedir qualquer sincronização entre duas músicas diferentes.80 Daí a diferença (muitas vezes

batida computadorizada [em discos antigos]" e que o DJ precisa "ter muita familiaridade com cada tempo e
entender as nuances em cada ritmo" (in: Reighley 2000:108) e o DJ pioneiro da House Jesse Saunders afirma que
"o baterista tenta, mas ele ainda não consegue manter o tempo exato por todo o disco, ele oscila", "[é] um
pesadelo" (in: Reighley 2000:108). Cf. Brewster e Broughton (2000:136).
78
Daí as declarações nostálgicas dos DJs pioneiros da mixagem de que "hoje em dia os discos fazem todo o trabalho
sozinhos" (declaração atribuída ao DJ Francis Grasso em Brewster e Broughton 2000:139) e de que "não há
potência na maneira como as pessoas estão juntando as coisas quando você começa a tocar a partir de batidas por
minuto" (Steve D'Acquisto, in: Reighley 2000:26). O que esse tipo de declaração demonstra é não apenas uma
transformação do próprio "trabalho" do DJ (que deixou de ser a sincronização habilidosa de ritmos irregulares e
passou a ser a sobreposição habilidosa de ritmos regulares) e de sua "potência" (que deixou de residir na
sobreposição de músicas que não haviam sido concebidas para esse fim e passou a residir na sobreposição de
músicas concebidas para esse fim), mas também o fato de que os DJs que estão na origem dessa transformação não
se reconhecem no seu resultado.
79
Encontramos, por exemplo as seguintes velocidades típicas em fontes variadas: Rock (100 a 140BPM); Ragtime
(120BPM); Marcha (120BPM); Swing (75 a 100BPM ou 150 a 200BPM); Foxtrot (110 a 150BPM), Valsa (85 a
130BPM); Polka (105 a 130BPM); Mambo (80 a 100BPM) (e.g. BPM *2003). O importante aqui é notar que essas
são velocidades "típicas", abstrações, que além de não serem determinantes para os estilos (são apenas
preferências) são raramente encontradas em valores precisos e constantes (e.g. um Ragtime pode até ter uma
velocidade média de 120BPM, mas o baterista certamente varia a velocidade em torno desse valor ao longo da
música).
80
Cf. Clynes e Walker (1983:176-7). Mesmo quando uma velocidade constante é mantida através o uso de
metrônomo, uma análise detalhada revela que há uma constante oscilação em torno dessa velocidade média (às
vezes ultrapassando-a, às vezes ficando atrás dela, um descompasso anulando a irregularidade do descompasso
anterior, mas nunca havendo a sincronização perfeita; cf. Clynes e Walker 1983:176-7), oscilação essa que ainda
impede qualquer sincronização precisa entre duas músicas, pois mesmo que o pulso abstrato das velocidades
médias delas seja o mesmo, o baterista que toca em uma delas pode estar ralentando no momento em que o outro
acelera, gerando descompasso entre os seus pulsos concretos. Bob Ostertag conta que "[c]om a evolução do Jazz, a
discrepância entre a grade ideal [do tempo metronômico] e aquilo que as pessoas efetivamente tocavam veio a ser
conhecida como swing, mas não havia nenhuma música no mundo que não tivesse algum swing" (Ostertag 2002:1;
itálico no original). Jonathan D. Kramer relata estudos que comprovam que um instrumentista solicitado a tocar

301
inconsciente, mas inegável) introduzida pela música eletrônica de pista quando as máquinas
passaram a substituir os bateristas na produção dos ritmos:81 a partir de então, a precisão técnica
na velocidade alcançou um grau inimaginável para um instrumentista humano, o que teve efeitos
decisivos tanto na prática dos DJs – que passaram a experimentar sistematicamente com
sobreposições sincronizadas e transições imperceptíveis entre músicas diferentes – quanto na de
seu público – que passou a se diferenciar a partir de preferências por velocidades específicas que
antes eram praticamente inexistentes enquanto realidade empírica estável (cf. Imagem 13).82
Junto com a simplificação rítmica trazida pelo pulso constante da Disco veio, portanto,
uma crescente automação do ritmo, trazida primeiro pela submissão do baterista ao metrônomo e
depois pelo uso direto de sintetizadores de ritmo. Os dois casos arquetípicos dessa transição de
ritmos complexos e oscilantes para ritmos simples e precisos são as experiências eletrônicas do
grupo alemão Kraftwerk83 e do produtor italiano Giorgio Moroder.84 Ambas as experimentações

uma mesma peça de maneira metronômica realiza oscilações de andamento análogas àquelas que ele faz quando
solicitado a tocá-la de maneira expressiva, apenas em menor grau (cf. Kramer 1988:74).
81
"Com a música eletrônica de pista, a grade mental que permaneceu implícita durante milênios de música humana
foi colocada em primeiro plano, no centro, e tornada audível. [...] Isso é revolucionário." (Ostertag 2002:11) Eshun
nota que apesar de "toda a percepção rítmica das pessoas ter mudado" com a introdução dos sintetizadores de
ritmo, elas "evidentemente fingem que nada aconteceu" (Eshun 1999:186).
82
A precisão metronômica permite, entre outras coisas, a diferenciação de estilos musicais, de qualidades de
movimento na pista de dança e de público. Quanto à criação de estilos musicais pela simples alteração da
velocidade de reprodução da gravação, basta ver os casos do New Beat – resultado da reprodução de gravações
feitas originalmente em 45rpm na velocidade mais lenta de 33rpm –, do Jungle – resultado do aumento de mais de
60% da velocidade original de breakbeats usados no Hip Hop – e do Trip Hop – resultado da diminuição da
velocidade desses mesmos breaks (cf. Reynolds, 1999:124; Fritz 1999:98; Sharp 2000:136). Quanto à
diferenciação de qualidades de movimento na pista de dança, trata-se da possibilidade de organização metronômica
do repertório, na qual as músicas passaram a ser organizadas por faixas de velocidade e o DJ passou a escolher a
música de acordo com a velocidade exigida pela pista de dança (cf. Rule 1999a:12; Reighley 2000:110). Por fim,
quanto à diferenciação do público em si, temos o caso histórico da faixa "Acid Tracks", lançada em Chicago em
1987 pelo grupo Phuture na velocidade de 130BPM, que foi ralentada para 120BPM para que se adequasse às
preferências do público nova-iorquino (Brewster e Broughton 2000:316), revelando assim que o público de Nova
Iorque era 10BPM mais lento do que o de Chicago (uma diferença imperceptível sem a alta precisão da
sintetização metronômica do ritmo).
83
Os membros originais do Kraftwerk, Ralf Hütter e Florian Schneider (ambos com formação musical clássica),
começaram a tocar juntos nos anos 60 como expoentes de um estilo conhecido como Krautrock e lançaram o
primeiro disco como Kraftwerk em 1970, mas foi principalmente a partir do disco Autobahn de 1974 (cf.
Kraftwerk a1974) que eles assumiram uma linguagem totalmente eletrônica (cf. Sicko 1999:23-4; Reynolds
2000:33-4; Arango 2005:134-47). Sediados em Düsseldorf, Hütter conta que eles estavam "perto de Cologne, onde
se situava o estúdio eletrônico usado por Stockhausen e não muito longe dos estúdios franceses onde Pierre Boulez
estava trabalhando", que "era comum que jovens fossem escutar Stockhausen" e que ele sempre considerou seu
grupo "a segunda geração de exploradores eletrônicos, depois de Stockhausen" (Hütter, in: Dery *1991) – isso,
evidentemente, sem o aval do próprio Stockhausen que considera o Kraftwerk "muito simples", "uma coleção
atmosférica de eventos, mas de envergadura muito, muito pequena" e, enfim, "ruim" (Stockhausen, in: Negromonte
*2001). O impacto do Kraftwerk na periferia negra norte-americana foi explicado algumas vezes como o resultado
de uma ressonância entre a não-humanidade alienígena sugerida pela precisão metronômica de seus ritmos e pela
sua estética tecnológica e um sentimento de exclusão social dessa periferia (cf. Sicko 1999:88; Eshun 1999:100,
178). Em Nova Iorque, DJs de breakbeats encontraram já prontas em suas músicas as edições e manobras que eles
eram obrigados a fazer constantemente nas outras gravações – "não havia muito a fazer", dizem os DJs da época, o

302
tiveram como território de origem a Alemanha de meados da década de 7085 e como
reterritorialização estratégica os Estados Unidos do final da mesma década – os ritmos mais
sincopados do Kraftwerk se popularizando entre os DJs de breakbeat e influenciando
definitivamente o desenvolvimento do Hip Hop86 e o pulso constante das músicas de Moroder se
popularizando entre os DJs de Disco e influenciando definitivamente o desenvolvimento da
House e do Techno87 – tendo em comum a precisão metronômica que permitia aos DJs a
realização de experiências antes impossíveis de sincronização, sobreposição e transição de
músicas.88 Experimentações com ritmos sintetizados como as de Kraftwerk e Moroder se
tornaram comuns ao longo da segunda metade da década de 70, trazendo para o primeiro plano

disco fazia tudo sozinho (cf. Dery *1991; Poschardt 1998:227; Eshun 1999:17; Toop 2000b:130). Em Detroit, DJs
pioneiros do Techno foram cativados principalmente pela precisão metronômica não-humana do grupo (cf. Sicko
1999:71; Eshun 1999:105; Brewster e Broughton 2000:324). O grupo Kraftwerk continua ativo atualmente (cf.
Kraftwerk a2005).
84
Segundo Reynolds, Moroder inventou a Eurodisco em Munique e pode ser considerado parte da pré-história da
House: "Moroder é o responsável por três inovações que estão na base da House. Primeiro, o megamix
dramaticamente estendido [...]. Segundo, o ritmo pulsante 4x4 da Disco: Moroder usou uma bateria eletrônica para
simplificar os ritmos do Funk e torná-los mais acessíveis ao público branco. Terceiro a mais crucial foi a criação,
por Moroder, da música de pista puramente eletrônica." (Reynolds 1999:253) Brewster e Broughton, que encaram
a Eurodisco como "o apogeu comercial" e "o nadir musical" da Disco, consideram (junto com outros defensores
das vertentes mais "humanas" e musicais da música eletrônica de pista) as produções de Moroder um "pastiche"
"clorado" do som negro norte-americano da época, "perfeito para pessoas sem nenhum senso rítmico" (Brewster e
Broughton 2000:194). Os maiores marcos de Moroder na história da música eletrônica de pista foram as músicas
"Love To Love You Baby" (1975; cf. Exemplo Sonoro 17) e "I Feel Love" (1977; cf. Exemplo Sonoro 19),
ambas de pulso constante e cantadas por Donna Summer (cf. a2004:1, 3), tendo a primeira uma sonoridade
orgânica mais próxima da Disco e a segunda uma sonoridade sintética e inovadora (cf. Reynolds 1999:24-5). Como
produtor, Moroder ganhou muitos prêmios e teve muitos outros projetos além da música eletrônica de pulso
constante (cf. Giorgio Moroder a2001), em especial produções de Pop-Rock e trilhas sonoras para longas-
metragens como Metropolis (Fritz Lang, versão de 1984), Midnight Express (Alan Parker, 1978), American Gigolo
(Paul Schrader, 1980), Cat People (Paul Schrader, 1982), Flashdance (Adrian Lyne, 1983), Top Gun (Tony Scott,
1986), e atualmente se dedica à "arte computacional" (cf. Moroder 2000, a2001).
85
O fato de que Kraftwerk e Moroder, os dois marcos das vertentes sintéticas (sincopadas e "retas") da música
dançante dos anos 70, emergiram de países do norte da Europa onde o inverno é rigoroso e as relações cotidianas
com as máquinas são uma questão de sobrevivência não escapou ao músico e teórico David Byrne, que encontrou
aí uma certa relação geo-tecno-etno-esteto-cômica entre música maquínica e sociabilidade nórdica da terceira idade
da máquina (cf. Byrne 2002).
86
Grandmaster Flash, por exemplo, guardava sua cópia de Trans Europe Express (lançado por Kraftwerk em 1977)
na caixa dedicada aos breaks (cf. Poschardt 1998:172) e as músicas do grupo eram usadas freqüentemente como
bases para Raps, como no caso célebre da música "Planet Rock" (1982; cf. Exemplo Sonoro 20) do DJ nova-
iorquino Afrika Bambaataa, que consiste basicamente numa reprodução exata de melodias de "Trans Europe
Express" sobre o ritmo de "Numbers" (música do disco Computer World, lançado pelo Kraftwerk em 1981) (cf.
Poschardt 1998:217-8, 227, Reynolds 1999:14; Baker 2000; Toop 2000b:130-1; Brewster e Broughton 2000:242-5;
Fink 2004:9).
87
Apesar de incomparavelmente mais simples do que os breakbeats usados pelos DJs nova-iorquinos da época, os
ritmos sintetizados do grupo Kraftwerk ainda assim eram mais complexos do que aqueles das músicas de
produtores como Moroder, principalmente pois enquanto estes normalmente traziam pulsos graves (os "bumbos")
em todos os tempos do compasso e apenas neles, aqueles variavam a posição desses pulsos – uma diferença
análoga à já exibida na Imagem 12.
88
Vale notar ainda que apesar de serem exemplos contemporâneos do pioneirismo sintético, Kraftwerk e Moroder
pertenciam a circuitos de distribuição e consumo distintos, aquele muito mais ligado ao Rock Progressivo e a um
público heterossexual e este muito mais ligado à música Disco e a um público homossexual.

303
aquilo que as experimentações dos DJs com ritmos originalmente tocados por instrumentistas
humanos (como era o caso dos breakbeats) ainda eram capazes de disfarçar: a estética maquínica
da música eletrônica de pista. Os esforços de Flash e dos DJs de Disco ao longo dos anos 70 para
sincronizar gravações oferecendo ao público um fluxo sonoro contínuo para seus movimentos
eram bem sucedidos apesar da irregularidade inerente à expressividade musical dos bateristas
humanos que nelas tocavam.89 Já os mesmos esforços realizados por DJs posteriores,
principalmente ao longo da década de 80 mas já no final da anterior, seriam bem sucedidos
devido à regularidade inerente às máquinas que passaram a ser responsáveis pela base rítmica
das músicas. Mas se os ritmos frios e metronômicos do Kraftwerk eram mais fáceis de mixar do
que os ritmos suados e irregulares de James Brown, eles ainda assim esbarravam freqüentemente
na assimetria da síncope, fator de descontinuidade (breaks variam indefinidamente e muitas vezes
se tornam incompatíveis numa mixagem, mesmo quando metronomicamente sincronizadas) que
ia contra os objetivos dos DJs de Disco e satisfazia muito mais aos DJs de break. O pulso
constante e metronômico de Moroder, por outro lado, além de preciso, era facilmente
sincronizável com qualquer outra música que também tivesse um pulso constante. Por isso, muito
mais do que uma opção estética deliberada dos compositores e produtores, o pulso constante que
passou a dominar a maior parte dos estilos de música dançante a partir dos anos 70 deve ser visto
como uma conseqüência direta da sua eficácia na manutenção, pelo DJ e com as tecnologias de
que ele dispunha, do movimento de seu público.90

89
Assim, quando Grandmaster Flash afirmava que o fato de Kool Herc tocar uma música com 110BPM logo após
tocar uma de 90BPM quebrava o ritmo do público (cf. Brewster e Broughton 2000:214), ou que ele realizava
ascensões planejadas de 102 a 118BPM em seus próprios sets (cf. Toop 2000b:73), ele estava necessariamente
usando valores aproximados, pois as músicas que ele reproduzia eram tocadas por bateristas humanos. O mesmo
não ocorre com um DJ atual, que quando fala "135BPM" quer dizer exatamente isso.
90
Desde que a "ciência do breakbeat" desembocou no exibicionismo expressionista do turntablism e do Rap, as suas
conquistas (i.e., a sua ciência da captura do movimento) passaram a ser usadas de maneira muito comedida pela
música eletrônica de pista, que tradicionalmente restringe os breaks a curtas passagens, privilegiando na maior
parte do tempo o pulso constante. Até o final dos anos 80, com a explosão mundial das raves, a música eletrônica
de pista era chamada exclusivamente de House ou Techno (geralmente considerados sinônimos; cf. Reynolds
1999:119-20), ambos estilos de pulso constante. A "ciência do breakbeat" passaria por uma nova revolução apenas
na primeira metade da década de 90, com o Jungle, o Drum'n'Bass e as novas ferramentas digitais de edição de
som. Observou-se então a incorporação das batidas quebradas (principalmente por produtores ingleses e numa
velocidade muito maior do que as praticadas nos estilos tradicionais norte-americanos) na música eletrônica de
pista e também uma multiplicação exponencial de estilos, sub-estilos, sub-sub-estilos etc., cada pequena variação
estética bastando para criar uma nova "cena" – a classificação de estilos de Fritz, por exemplo, traz, entre quase
cinqüenta estilos diferentes, dez variações de House além da original: Acid, Progressive, Deep, Hard, Funky,
Chicago, Oriental, Hip, Diva e Amyl (cf. Fritz 1999:88-95; outro esquema classificatório particularmente prolífico
pode ser encontrado em Ishkur *2004). Essa segunda revolução da "ciência do breakbeat" extrapola, porém, nosso
tema presente. Interessa-nos aqui apenas saber que há uma tensão entre os estilos de música eletrônica de pista
mais voltados para o pulso constante e aqueles mais voltados para os breakbeats (que pode ser encontrada também
em estilos de música dançante mais antigos; cf. Stewart 2000:311), radicada principalmente nas suas tendências

304
Poderíamos, assim, sintetizar a evolução do pulso constante em duas etapas: (1) a
percepção de que havia uma qualidade de movimento continuado na pista de dança que estava
sendo desperdiçado pelas interrupções do fluxo sonoro pelas músicas convencionais e pelo
próprio DJ; (2) a experimentação sistemática com músicas mais propícias à manutenção desse
movimento, através da criação deliberada desse tipo de música e do uso de técnicas e tecnologias
que permitissem a produção de um fluxo ininterrupto de som, tudo isso convergindo na redução
do ritmo principal das músicas a um pulso constante e metronômico. Mas se há uma associação
histórica entre a automação e a simplificação rítmica na música eletrônica de pista, seu pulso de
base tornando-se simultaneamente mais preciso (com o emprego de sintetizadores e
seqüenciadores) e mais explícito (com o bumbo nos quatro tempos do compasso) ao longo dos
anos 70 em prol da possibilidade efetiva de sincronização de músicas e da produção de um fluxo
contínuo de som pelo DJ, resta ainda entender onde reside a eficácia desse tipo de ritmo na
manutenção do movimento. Já vimos que o break é a transição, a mudança, o início e o reinício
do movimento, a articulação natural de uma seqüência sonora que tem o poder de estimular as
articulações naturais de um sistema motor, a captura de um movimento. Será preciso agora
entender a diferença entre a transição e aquilo que transita, entre a mudança e aquilo que muda,
enfim, entre o controle do movimento e o próprio movimento.
Segundo Bergson, o mundo como nós o conhecemos é apenas um recorte contingente,
reversível e manipulável, que estabelecemos para fins práticos de controle e sobrevivência, de um
fluxo indiviso de processos irreversíveis que vão muito além dele.91 Bergson chama esse fluxo de

opostas na condução do movimento: uma mais voltada para a sua estabilização e a outra para a sua desestabilização
(cf. Poschardt 1998:117, 124-5; Reynolds 1999:253, 301, 314; Sicko 1999:167). Segundo Reynolds, as batidas
quebradas do Jungle que se popularizaram nos anos 90 ameaçam a segurança e a previsibilidade do pulso constante
(provocando até mesmo "ânsia de vômito" em alguns), foram consideradas por muitos "simplesmente funky demais
para serem dançadas" e foram chamadas de "o toque fúnebre da rave" (cf. Reynolds 1999:253, 301; itálicos no
original; cf. Sicko 1999:167; Sharp 2000:136), e Fritz nota que o uso de breakbeats está mais ligado à "filosofia do
estado-de-sítio da cultura Hip Hop" do que ao "etos paz-e-amor da cultura rave" (cf. Fritz 1999:74). Como disse o
DJ brasileiro de Drum'n'Bass Marky sobre o sucesso duradouro de ritmos "4x4" em oposição a ritmos quebrados:
"O 4x4 é muito mais fácil de entender. É mais fácil de dançar." (DJ Marky, in: Brandão *2004:29). De fato,
estudos recentes de análise musical empregando o método DFA (Detrended Fluctuation Analysis) ofereceram
evidências quantitativas para essa observação empírica (cf. Jennings et al. 2004; Streich e Herrera 2005).
91
"Como se explica [...] a irresistível tendência a constituir um universo material descontínuo, com corpos de arestas
bem recortadas, que mudam de lugar, isto é, de relação entre si? [...] Ao lado da consciência e da ciência, existe a
vida [... ] [, a] necessidade que temos de viver, ou seja, em realidade, de agir. [...] Seja qual for a natureza da
matéria, pode-se afirmar que a vida estabelecerá nela já uma primeira descontinuidade, exprimindo a dualidade da
necessidade e do que deve servir para satisfazê-la. [...] [C]ada uma dessas necessidades leva a distinguir, ao lado de
nosso próprio corpo, corpos independentes dele, dos quais devemos nos aproximar ou fugir. Nossas necessidades
são portanto feixes luminosos que, visando a continuidade das qualidades sensíveis desenham aí corpos distintos.
Elas só podem satisfazer-se com a condição de se moldarem nessa continuidade um corpo, e depois de delimitarem
aí outros corpos com os quais este entrará em relação como com pessoas. Estabelecer essas relações muito
particulares entre porções assim recortadas da realidade sensível é justamente o que chamamos viver." (Bergson

305
duração, não havendo, por princípio, duas durações, durações maiores ou menores, anteriores ou
posteriores, mas apenas uma só duração englobando todos os processos da realidade. No entanto,
sendo já corpos no espaço e encontrando-nos já imersos nas mais variadas espacializações
contingentes de nossa existência material, é-nos impossível experienciar diretamente essa
duração primordial – a própria base de nossa existência individual depende da criação de um
descompasso com relação a ela. O máximo que podemos fazer nesse sentido são exercícios
introspectivos através dos quais nos distanciamos momentaneamente de nossas necessidades
contingentes de ação individual no mundo e imergimos em maior ou menor grau nesse fluxo. Um
corpo humano divide a duração de maneira diversa daquela que a divide um corpo de um pássaro,
recortando diferentemente o fluxo do real, deparando-se com objetos, sons, imagens e forças
diferentes e que coincidem, em maior ou menor grau, apenas por emergirem de um mesmo fundo
virtual da duração – e.g. tanto o homem quanto o pássaro vêem a árvore, mas a árvore do pássaro
é radicalmente diversa da árvore do humano pois ela resolve problemas muito diferentes no
mundo do pássaro e no mundo do humano, sendo por isso mesmo dividida e circunscrita de
maneiras muito diferentes em cada um deles – e o mesmo ocorre com os demais seres vivos e até
mesmo com os corpos materiais (afinal, a matéria age sobre si mesma).92 Ademais, um corpo
humano sonhando divide a duração de maneira bem diversa daquela que ele mesmo a divide
quando em vigília, existindo portanto uma margem de liberdade variável nesse processo. O sonho
é, com efeito, um exemplo clássico de reorganização de recortes específicos da duração a partir
de um afastamento involuntário e temporário das necessidades individuais urgentes da vigília.93
O método intuitivo desenvolvido por Bergson é outra maneira de chegar ao mesmo resultado,

1999:232-3; itálico no original) Em resumo, "a primeira e a mais evidente operação do espírito que percebe" é
"traçar divisões na continuidade da extensão, cedendo simplesmente às sugestões da necessidade e aos imperativos
da vida prática" (Bergson 1999:246). Por isso parece-nos que "não existe conhecimento sobre o limite sem que haja
já um limite para o pensamento" (Ferreira 2005a:19): não se trata de limitar o pensamento, mas sim de lhe oferecer
alguma matéria.
92
"A rigor, poderia não existir outra duração além da nossa, como poderia não haver no mundo outra cor além do
alaranjado, por exemplo. Mas, da mesma maneira que uma consciência à base de cor, que simpatizaria
interiormente com o alaranjado em vez de percebê-lo de fora, se sentiria entre o vermelho e o amarelo, assim
também a intuição de nossa duração, bem longe de deixar-nos suspensos no vazio [...] nos põe em contato com
toda uma continuidade de durações que devemos tentar seguir, seja para baixo, seja para o alto: [...] nos dois casos
nós nos transcendemos a nós mesmos. No primeiro, vamos em direção a uma duração cada vez mais distendida,
cujas palpitações mais rápidas do que as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem a qualidade em
quantidade: no limite seria o puro homogêneo, a pura repetição pela qual definimos a materialidade. Na outra
direção, encontramos uma duração que se contrai, se concentra, se intensifica cada vez mais: no limite seria a
eternidade. [...] uma eternidade de vida." (Bergson 1974:36; itálico no original; cf. pp.138-9)
93
"[O] sonho seria sempre o estado de um espírito cuja atenção não é fixada pelo equilíbrio sensório-motor do
corpo", uma "distensão do sistema nervoso" (Bergson 1999:204). O sonho, como já o disse Guattari, é um
"mergulho periódico no caos".

306
dessa vez fruto de um esforço voluntário.94 Técnicas do êxtase são outras tantas maneiras de fazê-
lo, com graus maiores ou menores de controle sobre o processo. O perspectivismo xamânico, por
exemplo, parece trabalhar justamente com a margem de liberdade inerente a cada grau específico
de contração da duração: trata-se de sintonizar a "resolução do real" de outro ponto de vista,
modular a contração da duração de forma que se conheça o mundo como ele existe da perspectiva
desse outro, "simpatizar" com ele, o que quer dizer compartilhar da sua duração, experienciar a
maneira singular com que ele divide o fluxo em si mesmo indiviso da duração.95 O importante
aqui é perceber que em todos esses casos, o máximo a que chegamos é à experiência de outras
contrações da duração diversas daquelas que nos são habituais, e nunca da duração pura em si.
Contrações da duração são, portanto, diferentes maneiras de dividir "a unidade múltipla da
duração",96 resultado de escolhas contingentes e diferencialmente variáveis que cada corpo
individual faz em sua relação com seu meio. Chamamos essas diferentes maneiras de dividir a
duração de "contrações" pois elas são, de maneira mais geral, "seleções" ou "graus de resolução"
que se alcança de um mesmo dado primordial (a duração).97 Em um conto fantástico escrito na
mesma época em que Bergson elaborava sua metafísica, Herbert G. Wells oferece um ótimo

94
"Chamamos aqui intuição a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o
que ele tem de único e, conseqüentemente, de inexprimível." (Bergson 1974:20; itálico no original) "O artifício
desse método [intuitivo] consiste simplesmente [...] em distinguir o ponto de vista do conhecimento usual ou útil e
o do conhecimento verdadeiro. A duração em que nos vemos agir, e em que é útil que nos vejamos, é uma duração
cujos elementos se dissociam e se justapõem; mas a duração em que agimos é uma duração na qual nossos estudos
se fundem uns nos outros, e é lá que devemos fazer um esforço para nos colocar pelo pensamento no caso
excepcional e único em que especulamos sobre a natureza íntima da ação" (Bergson 1999:217-8; itálicos no
original). A exposição mais didática do método intuitivo pelo próprio Bergson parece ter sido alcançada em
"Introdução à Metafísica" (Bergson 1974:17-45), e a exposição deleuziana merece ser consultada (cf. Deleuze
1999:7-26, 77, 130-1).
95
Nossa aproximação entre o perspectivismo e o método intuitivo parte de uma aproximação entre a simpatia e a
abdução de agência, como quando Viveiros de Castro distingue a epistemologia xamânica da científica afirmando
que enquanto naquela "[c]onhecer bem alguma coisa é ser capaz de atribuir o máximo de intencionalidade ao que
se está conhecendo" nesta "[c]onhecer [...] é dessubjetivar tanto quanto possível" (cf. Viveiros de Castro
2002b:487; itálico no original) e Bergson distingue a filosofia da ciência afirmando que "[e]nquanto o cientista [...]
é obrigado a astuciar com a natureza, a adotar em relação a ela uma atitude de desconfiança e luta, o filósofo a trata
como camarada", "não obedece nem comanda; ele procura simpatizar" (Bergson 1974:72).
96
Bergson (1974:24). Bergson deixa claro, porém, que se trata de uma "unidade movente, mutável, colorida, viva,
[que] não se parece de maneira alguma com a unidade abstrata, imóvel e vazia, que o conceito de unidade pura
circunscreve", e que "os termos desta multiplicidade, em lugar de se distinguirem como os de uma multiplicidade
qualquer, penetram uns nos outros [...], que esta multiplicidade não se parece com nenhuma outra" (Bergson
1974:25). A duração, segundo Bergson, "se assemelha em certos aspectos à unidade do movimento que progride,
em outros, a uma multiplicidade de estados que se espalham, e nenhuma metáfora pode dar conta de um desses
aspectos sem sacrificar o outro" (Bergson 1974:22-3).
97
"[O] que é uma sensação? É a operação de contrair em uma superfície receptiva trilhões de vibrações. Delas sai a
qualidade [...], e esta é tão-somente a quantidade contraída. Assim, a noção de contração (ou de tensão) nos dá o
meio de ultrapassar a dualidade quantidade homogênea-qualidade heterogênea, e nos permite passar de uma à outra
em um movimento contínuo." (Deleuze 1999:58) Deleuze nota aqui que o conceito de contração resolve a
passagem da quantidade homogênea (diferença de grau) para a qualidade heterogênea (diferença de natureza).

307
exemplo dessas diferentes contrações da duração.98 No conto, Wells ingere uma substância
sintetizada pelo seu amigo químico e fisiólogo "Professor Gibberne" chamada de "o novo
acelerador", capaz de acelerar vertiginosamente o metabolismo do corpo e assim fazer o resto do
mundo passar como que em câmera lenta. Com isso, Wells passa a perceber, com riqueza,
dimensões da realidade que normalmente escapavam à sua percepção: pequenas diferenças e
detalhes, múltiplas percepções que eram até então contraídas em uma só percepção simples.
Enquanto o resto do mundo vivia o intervalo temporal de um segundo, Wells vivia um intervalo
temporal de trinta minutos, o fascínio de seu texto residindo justamente no fato de colocar o leitor
em contato com uma perspectiva do mundo a partir da qual eventos que ocorrem no intervalo de
um segundo são percebidos com a mesma resolução com que normalmente percebemos eventos
que ocorrem no intervalo de trinta minutos.99 Atualmente, o fotógrafo alemão Michael Wesely
faz algo parecido, só que no sentido inverso, quando usa a fotografia para congelar em um só
"momento fotográfico" um intervalo de até três anos. Com isso, ele nos oferece perspectivas do
mundo para as quais eventos ocorridos durante intervalos de mais de um ano são contraídos em
um só instante e para as quais apenas eventos que durem pelo menos alguns meses têm alguma
resolução visual (cf. Imagem 14). A idéia de contrações da duração implica já, portanto, na idéia
de uma duração infinitamente dividida que pode então ser percebida com maior ou menor riqueza
de detalhes de acordo com o grau em que cada corpo contrai suas infinitas partes. O importante
aqui, porém, é nunca perder de vista que o que se contrai é apenas o aspecto espacial, divisível,

98
Cf. Wells (*1901).
99
Logo nos primeiros instantes sob o efeito do "novo acelerador", por exemplo, Wells escutou um "tamborilar
semelhante ao som de chuva caindo sobre diferentes coisas" que Gibberne logo definiu como "sons analisados", e
ao longo do texto ele repetidamente descreve os sons como seqüências rítmicas de vibrações e percussões. Wells
estava, em outras palavras, ouvindo cada uma das vibrações individuais que são normalmente contraídas em uma
só sensação auditiva. Sua duração havia sido, nos termos bergsonianos, dilatada: "Não podemos conceber, por
exemplo, que a irredutibilidade de duas cores percebidas se deva sobretudo à estreita duração em que se contraem
trilhões de vibrações que elas executam em um de nossos instantes? Se pudéssemos estirar essa duração, isto é,
vivê-la num ritmo mais lento, não veríamos, à medida que esse ritmo diminuísse, as cores empalidecerem e se
alongarem em impressões sucessivas, certamente ainda coloridas, mas cada vez mais próximas de se confundirem
com estímulos puros? Ali onde o ritmo do movimento é bastante lento para se ajustar aos hábitos de nossa
consciência – como acontece para as notas graves da escala musical, por exemplo –, não sentimos a qualidade
percebida decompor-se espontaneamente em estímulos repetidos e sucessivos, ligados entre si por uma
continuidade interior?" (Bergson 1999:238-9) Se "o novo acelerador" fosse ainda mais poderoso, é possível que a
luz passasse pelo mesmo processo que Wells descreveu para o som, as qualidades contínuas tornando-se
quantidades descontínuas e os corpos passando a piscar em freqüências diferentes correspondendo às diferentes
cores. No limite, teríamos provavelmente a situação descrita por Bergson como um mundo sem consciência: "se
você suprime minha consciência, o universo material subsiste tal qual era: apenas, como foi feita abstração do
ritmo particular de duração que era a condição de minha ação sobre as coisas, essas coisas retornam a si mesmas
para se separarem na infinidade de momentos que a ciência distingue, e as qualidades sensíveis, sem
desaparecerem, espalham-se e dissolvem-se numa duração incomparavelmente mais dividida. A matéria converte-
se assim em inumeráveis estímulos, todos ligados numa continuidade ininterrupta, todos solidários entre si, e que
se propagam em todos os sentidos como tremores." (Bergson 1999:144-5)

308
reversível, sobre o qual se pode agir, de algo que, em si, permanece mutável, indiviso e
irreversível.
Consideramos essa teoria relevante para a compreensão do papel do pulso constante na
música eletrônica de pista pois se ele é de fato a explicitação da métrica da música, então
poderíamos dizer que é ele que determina a sua contração particular da duração. Sendo o pulso
constante de uma música eletrônica de pista a métrica que determina a sua unidade mínima de
duração, então é ele que determina o intervalo temporal dentro do qual qualquer fenômeno motor
referente ao corpo maquínico por ela formado deve ocorrer. Ele determina, em outras palavras, os
pontos privilegiados do fluxo sonoro nos quais movimentos e eventos devem prioritariamente
ocorrer para que alcancem uma resolução ideal (mesmo que estes, na realidade, possam ocorrer
em qualquer outro momento). Trata-se de uma grade abstrata que é determinada, até certo ponto,
pela dinâmica dos sons e movimentos concretos que ela divide, mas que goza também de uma
certa margem de liberdade com relação a eles, determinando mais ou menos maneira como eles
irão se articular em cada situação empírica.100 Como a visão que cria os limites do mundo que vê
a partir do próprio mundo a ser visto, o pulso da música cria os limites do corpo sonoro-motor
que ela produz a partir da explicitação experimental de seus limiares imanentes.
Poderíamos comparar o pulso constante de uma música eletrônica de pista ao mecanismo
automático de uma câmera de cinema, que transforma o movimento do mundo em imagens
seqüenciadas imóveis e depois devolve o movimento a essas imagens através da adequação da
velocidade de exposição delas ao limite de resolução do aparelho visual do ser humano.
Contraindo mais de um quadro imóvel do filme em cada instante indivisível da nossa percepção
visual, reintroduzimos nos intervalos entre eles o movimento que eles haviam excluído desde o
início.101 Quando o filme é reproduzido em câmera-lenta é possível ver os quadros imóveis pois
eles então duram por mais do que cada um dos instantes mínimos em que nossa visão contrai a

100
Diríamos que o pulso constante, quando eficaz, é um "traço imóvel que a mobilidade da duração deixa atrás de si"
(Bergson 1974:25), "uma abstração ou um símbolo, uma medida comum, um denominador comum que permite
comparar entre si todos os movimentos reais" (Bergson 1999:238), "destinad[o] a facilitar a comparação entre as
diversas durações concretas, a permitir que contemos as simultaneidades e meçamos um escoamento de duração
em relação a um outro" (Bergson 1974:31-2). Mas os movimentos que esse pulso ajuda a sincronizar "são
indivisíveis que ocupam duração, supõem um antes e um depois, e ligam os momentos sucessivos do tempo por um
fio de qualidade variável" (Bergson 1999:238). A metrificação é, já disseram Deleuze e Guattari, "como uma
máscara", que pode sufocar mas "sem a qual não poderia haver respiração" (Deleuze e Guattari 1997b:194), o que
nos remete mais uma vez às relações entre xamanismo e ciborgologia.
101
Schwartz mostrou bem como o princípio comum por trás de invenções tipicamente modernas como a escada
rolante, o cinema, a linha de montagem, o fonógrafo e o zíper foi a busca da continuidade a partir da
descontinuidade: "Em todos os casos, buscou-se uma transição fluida e natural entre os passos, quadros, tarefas e
compassos." (Schwartz 1992:89)

309
duração. Da maneira análoga, a seqüência de pulsos constantes da música eletrônica de pista seria
uma maneira de adequar blocos mínimos indivisíveis de som aos limiares motores imanentes de
um corpo. Modificar a velocidade dos pulsos seria colocar em risco essa simpatia, mas seria
também explorar a criação de outras maneiras de relacionar sons e movimentos (assim como a
câmera lenta é usada para provocar efeitos de solenidade e a câmera acelerada é usada para
provocar efeitos de comicidade, a variação da velocidade de uma música tem efeitos sobre os
movimentos a ela associados).
Propomos, assim, que o pulso constante estabelece a unidade mínima de duração de uma
música, o intervalo temporal mínimo que deve ser transposto pelo som e pelo movimento de
forma a alcançar a resolução própria a um corpo sonoro-motor que então se concretiza. Como
quando as lajotas de uma calçada obrigam o pedestre que quer sobre elas andar a esticar ou
diminuir a amplitude espontânea de seus passos, ou quando tentamos permanecer no mesmo
ponto em uma escada rolante andando no sentido contrário ao seu movimento e somos obrigados
a sincronizar nossos passos com a velocidade da escada e com a distância entre os degraus, o
pulso constante constrange o movimento a se adequar à sua métrica e, justamente por isso, lhe
propõe um regime específico de funcionamento. O pulso constante é uma grade abstrata que pode
ter um coeficiente de afinidade maior ou menor com aquilo que ela divide, uma métrica à qual o
ritmo do movimento é convidado a se submeter (cf. Imagem 12).102 O fato de que ninguém sofre
dançando música eletrônica de pista é a prova de que foi possível alcançar um alto coeficiente de
afinidade entre a grade abstrata do pulso constante e o movimento que a ela se submete, entre o
som que captura e modula o movimento e o próprio movimento capturado e modulado.
Na primeira metade dos anos 80 o pulso constante e metronômico se tornou cada vez mais
padronizado na música eletrônica de pista, fazendo da sincronização precisa de músicas e da
transição suave entre elas uma parte essencial do trabalho do DJ. Como uma "linguagem comum"
entre as músicas, o pulso constante e metronômico fez delas menos entidades individuais e mais
componentes de um sistema de comunicação envolvendo som e movimento e coordenado pelo
DJ. Em Chicago, DJs como Farley Jackmaster Funk e Frankie Knuckles, que há muito tempo já
alimentavam sua pista de dança com versões editadas de músicas especialmente eficazes na
produção da dança com o objetivo de intensificar seu potencial motor, passaram, no início dos

102
Poderíamos dizer que, no caso da música eletrônica de pista, a eficácia de uma maneira determinada de dividir o
movimento é diretamente proporcional à capacidade que essa divisão tem de estimular um novo movimento como
contraponto. Em outras palavras, é a dança do público que indica ao DJ se o som que ele propõe é adequado ou não
ao seu movimento.

310
anos 80, a usar sintetizadores de ritmo ao vivo.103 Sincronizando os pulsos constantes sintetizados
com as gravações de seus sets, esses DJs não apenas operavam uma espécie de "tradução" de
músicas que ainda não eram produzidas com pulsos metronômicos constantes, mas também
intensificavam o potencial transcodificante das músicas que já eram gravadas com os mesmos
sintetizadores de ritmo que eles estavam usando, pois o pulso constante do sintetizador garantia
uma continuidade maior nas transições. No pulso metronômico constante da música eletrônica de
pista todos os sons podiam ser sincronizados e concatenados e o DJ passava a ter à sua disposição
um arsenal sempre crescente de recursos sonoros com os quais modular os movimentos de seu
público. A digitalização generalizada da música a partir do final dos anos 80 veio intensificar
esse processo através da automação cada vez maior da sincronização de músicas, aquilo que os
DJs da primeira metade dos anos 70 faziam apenas com muito esforço.104 Mas se o pulso
metronômico alcançado pelos sintetizadores de ritmo se consolidou como uma "linguagem
comum" da máquina operada pelo DJ, isso se deve principalmente ao fato de que esse pulso foi
capaz de concretizar um corpo sonoro-motor maquínico na pista de dança através da proposição
de uma grade abstrata para os movimentos, a contração particular da duração desse corpo, o
limiar preciso no qual suas quantidades e qualidades se implicam mutuamente.

***

Se as técnicas de captura do movimento pelo breakbeat chegavam ao seu primeiro ápice em


meados dos anos 70, as técnicas de modulação do movimento capturado apenas se consolidariam

103
Farley Jackmaster Funk (Farley Keith Williams), que já era conhecido por suas mixagens e edições em programas
de rádio desde 1981 e se celebrizou com a música "Love Can't Turn Around" (1986), passou experimentar, no
clube Playground, com a sincronização de discos gravados por bateristas humanos com ritmos sintetizados pela
máquina Roland 808. Farley conta que tocava a máquina junto com os discos "para que a galera pudesse realmente
sentir aquela pisada bem, bem pesada [that heavy, heavy foot; o pulso constante da máquina ficou conhecido como
Farley's Foot, o pé/pedal de Farley]", e que tocar músicas que não tivessem "uma pisada realmente forte" era
motivo de deboche: "Você tinha que conduzi-los com sua batida. Pode me chamar de o doutor pisada [Call me the
foot doctor]." (Farley Jackmaster Funk, in: Brewster e Broughton 2000:305) Frankie Knuckles, que começou a
discotecar em Nova Iorque em 1971 e se mudou para Chicago em 1977, quando começou a tocar no clube
Warehouse – que deu nome ao estilo House –, apesar de privilegiar as edições em fita magnética (que ele passou a
fazer a partir de 1979; cf. Rule 1999b:218) também se destacou por usar um sintetizador de ritmos em suas
apresentações. Knuckles usava o modelo Roland 909, e preferia sincronizá-lo com músicas que já eram gravadas
com ritmos sintetizados (de preferência pela mesma máquina) (cf. Brewster e Broughton 2000:156, 294-98, 305-6;
cf. Reynolds 1999:23, 26; Eshun 2000b:75). Farley e Knuckles são apenas os dois pioneiros célebres no uso de
sintetizadores de ritmo por DJs em suas apresentações em conjunto com gravações, a prática rapidamente se
disseminando.
104
Não será possível abordar aqui a questão da digitalização do som e suas conseqüências na resistência de muitos
DJs às mídias digitais, um assunto que já abordamos alhures (cf. Ferreira 2004a) e que ainda merece ser retomado,
pois se relaciona intimamente com as micropolíticas do underground.

311
na primeira metade da década seguinte com a disseminação do uso de sintetizadores de ritmo
(garantindo a métrica perfeita para a sincronização de duas gravações) e do pulso constante
(garantindo a fluidez das mixagens). Na música eletrônica de pista atual é possível verificar a
consolidação de um mecanismo bastante eficaz de alternância entre breaks e passagens de pulso
constante que é já o resultado de pelo menos trinta anos de coevolução entre som e movimento
(cf. Imagens 15 e 16). "Breaks", conta uma nativa, "são bons de morrer: muito dramáticos e
excitantes, pois todos param e começam novamente".105 Outro nativo descreve o break como
sendo um momento em que "[você] flutua, mas tudo [o que] espera dentro de [você] é a volta do
bumbo pelamordedeus [sic]", e usa uma linguagem musical tradicional para descrever o break
como "tensão" e o pulso constante como "relaxamento".106 Segundo o DJ Camilo Rocha, que
confirma que "98%" das músicas eletrônicas de pista atuais já trazem breaks em sua estrutura,
eles são paradas estratégicas que aliviam o público e ao mesmo tempo criam uma expectativa
pela volta do pulso constante explícito, uma tensão que é resolvida por esse retorno.107 Em todos
esses casos, estamos diante de um mecanismo específico de coevolução entre som e movimento
cujos primórdios nós localizamos nos anos 70 e que funciona pela captura e modulação do
movimento pelo som, os breaks sendo momentos específicos em que aqueles que já estavam se
movendo renovam suas energias e aqueles que ainda não estavam se movendo recebem um
estímulo adicional para iniciarem o movimento e os blocos de pulso constante sendo momentos
em que o movimento capturado durante o break é trabalhado, intensificado, modulado, e
eventualmente dissipado até uma nova captura.108

105
"Breaks are dead good: quite dramatic and exciting, because everybody stops and starts again." (Maria Tagg, in:
Tagg 1994a:216)
106
Na música eletrônica, segundo o nativo, "[a] 'harmonia' tensão e relaxamento [...] se dá pela presença ou não do
bumbo" (depoimento, in: EAR *2001).
107
Segundo Camilo Rocha, o momento de uma faixa Techno em que o pulso constante desaparece é o break, "[q]ue
dá aquela parada. Eu acho necessária essa parada porque... alivia um pouco. A pessoa tá dançando e... alivia, ela
respira, e de repente ela... sabe que a música vai voltar, então... [...] Cria uma tensão na música, entendeu? [...] E aí
volta. Tensão que vai... às vezes a tensão sobe rápido e 'bum', aí extravasa de novo, aí volta." (Camilo Rocha,
entrevista, 10 de maio de 2003)
108
Ao longo desta pesquisa nos deparamos repetidamente com fórmulas e estruturas típicas da música eletrônica de
pista, como nesses depoimentos nativos: "Eu faço uma lenta introdução [...] nos primeiros dois minutos.
Eventualmente, a batida entra depois de um minuto durante a introdução, e então eu construo um clímax e
introduzo a seção seguinte. Essa próxima seção geralmente dura de dois a três minutos. O último minuto dessa
seção é geralmente o gancho que eu já venho construindo desde os minutos anteriores. Daí vem o break. Isso dura
geralmente apenas um minuto. Eu detesto breaks longos. Daí eu volto para o gancho. Depois eu deixo o gancho e
faço uma transição para uma saída que é similar mas diferente e que geralmente dura um ou dois minutos. Isso
geralmente deixa minha música entre oito e nove minutos." (depoimento, 2002, in:
<http://www.futureproducers.com/forums/showthread/threadid/23075>); "Tenho duas maneiras de trabalhar: ou
uma construção lenta e progressiva até um final animado com apenas um break no meio; ou introdução lenta, entra
batidas, break, corpo principal da faixa, break, corpo principal da faixa de novo com algo de novo adicionado,
saída." (DJ Dunleavy, 2002, in: <http://www.futureproducers.com/forums/showthread/threadid/23075>); "uma

312
É possível que a natureza rítmica do break seja vista como oposta à idéia de um break
caracterizado pela supressão temporária do principal elemento percussivo (o "bumbo"). Alguns
chegam mesmo a distinguir radicalmente dois tipos de break, um como um trecho mais
percussivo de uma música e outro como um trecho de uma música de pulso constante no qual
esse pulso é suprimido, afirmando que enquanto aquele tem por função servir de base para uma
nova música através de sua repetição, este tem como função facilitar a mesclagem de músicas
diferentes num fluxo contínuo de som.109 No entanto, a oposição é secundária da perspectiva do
transe maquínico, pois encontramos em ambas o mesmo princípio da captura do movimento
através da quebra rítmica da linearidade métrica. Apesar de o break depender de um conteúdo
rítmico, é importante notar que o que qualifica o ritmo é menos o seu conteúdo e mais a diferença
que ele introduz no fluxo sonoro: é a diferença que é a essência do ritmo. Breaks são
eminentemente percussivos pois é na percussão que reside o maior potencial sonoro para a
ruptura do fluxo que captura o movimento (tons privilegiam a continuidade), e em estilos
musicais de pulso constante é a supressão temporária desse pulso (geralmente acompanhada de
curtos trechos de ritmos sincopados) que cumpre a função de romper o fluxo e capturar o
movimento.110 A diferença proposta por Deleuze entre "ritmo" e "metro" é útil para esclarecer
definitivamente a relação entre o break e o pulso constante.

música de pista de eletrônica obedece normalmente a uma regra básica: a cada 4, 8, 16 ou 32 batidas entra ou sai
um timbre na composição. Essa música chega a seu ápice com 5, 6, 7 minutos de som, com todos os timbres juntos,
batidas e sons percussivos em contratempo, texturas, vocais etc. Logo depois, entra um trecho preparado para a
mixagem, com menos elementos, menos timbres, normalmente um beat (batida de bumbo e caixa) marcando o
ritmo para o DJ já ir entrando com a outra música, mixando" (Duarte de Souza *2002b); "uma faixa típica de
House começa com oito compassos de percussão, depois oito compassos de percussão mais baixo, depois oito
compassos de percussão, baixo e vocais, depois um break de oito compassos apenas com um teclado, depois oito
compassos de... você já entendeu." (DJ Miles B *2002) Os exemplos poderiam prosseguir indefinidamente (uma
estrutura típica de Trance foi fornecida por Taylor 2001:194), e um estudo aprofundado da variedade de
possibilidades estruturais dessas fórmulas é na verdade um desdobramento natural desta nossa pesquisa. O
importante aqui é notar que essas fórmulas são o resultado de um processo de coevolução do som proposto pelo DJ
e do movimento realizado pela pista de dança, e que a alternância entre trechos variados de pulso constante e
breaks estratégicos é a sua característica mais elementar. "Sim", explicita Cláudio Manoel, "a música eletrônica de
pista obedece a uma estrutura, a uma 'fórmula'" que é o "resultado da necessidade dos próprios DJs de encontrarem
no formato das músicas alguns 'momentos' para a mixagem" (Duarte de Souza *2002b), e como comenta outro
nativo: "Quase sempre, o [que] faz o set e as mixagens de um DJ serem boas, é [que], mesmo [que] intuitivamente,
ele trabalhe segundo essas regrinhas simples." (cf. EAR *2001)
109
Cf. Shapiro e Lee (2000:217).
110
Nos estilos que não se baseiam em pulso constante (que não poderemos abordar aqui), o mecanismo de captura e
manutenção do movimento funciona pela alternância entre loops repetidos e loops diferenciados (que seriam os
breaks dos breakbeats), ou entre a presença e a ausência de sons percussivos fortes (cf. EAR *2001). Segundo os
DJs Arlequim e Cláudio Manoel, os breaks – que eles também chamam de "Pontos de mixagem" por serem eles
"os melhores pontos de mixagem" – "são caracterizados pela ausência de melodias e vocais" (DJ Arlequim e
Duarte de Souza *2003; itálicos no original).

313
Ritmo e metro são complementares, mas diferem por natureza. Ritmo é a repetição-
diferença, incomensurabilidade, transformação, devir, enquanto metro é repetição-medida,
isocronismo, continuação, ser. Segundo a ritmologia de Deleuze, a "repetição-
medida/nua/superficial" ("uma divisão regular do tempo, um retorno isócrono de elementos
idênticos") se distingue da "repetição-ritmo/vestida/profunda" ("desigualdades,
incomensurabilidades"), pois a primeira é "apenas a aparência ou o efeito abstrato da segunda",111
e com Guattari, ele disse: "A medida é dogmática, mas o ritmo é crítico, ele liga os instantes
críticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele não opera num espaço-tempo
homogêneo, mas com blocos heterogêneos."112 A música eletrônica de pista trabalha, acima de
tudo, com diferença e repetição: repetindo uma diferença, tendência cujo exemplo extremo é o
pulso constante, mas que envolve também a repetição de padrões mais complexos na forma de
loops; e diferenciando suas repetições, tendência cujo exemplo extremo é o break, mas que
envolve também o uso de efeitos e filtros nas modulações e mixagens.113 Seria útil lembrar aqui
dos dois passos rituais do DJ Arlequim, pois o ritmo do break não faz outra coisa do que trazer as
pessoas para dentro da música e de seu movimento imanente, incentivá-las a "se fechar" para o
mundo extra-sonoro e "abrir a cabeça" para as "freqüências" que "vão se acumulando" e "gerando
efeitos diferentes",114 e o metro do pulso constante não passa de um dispositivo extremamente
eficaz de manter o movimento capturado no break para que se possa experimentar com ele, uma
maneira certeira de "entrar na cabeça" do público através da produção de um transe maquínico
pela repetitividade hipnótica: trata-se sempre de alternar momentos de repetição rítmica com
momentos de repetição métrica, i.e., momentos de ruptura com momentos de transformação
gradual.115 Enquanto as diferenças e variações produzidas pelos breaks são como as "fórmulas"
que garantem ao DJ a captura do movimento de seu público, a continuidade e a linearidade
produzidas pela repetição de um mesmo pulso (ou mesmo de loops mais complexos) são aquilo
que transforma esse "ponto de fuga" em uma "porta de entrada" para um novo mundo que é a
contrapartida do novo corpo sonoro-motor coletivo produzido na pista de dança através da

111
Cf. Deleuze (1988:51-2, 449-51).
112
Deleuze e Guattari (1997a:119). Estamos aqui retomando, em outro nível, o tema bergsoniano da duração em si e
de suas contrações particulares.
113
O ritmo, num sentido mais geral, pode mesmo ser definido como "a repetição de um padrão básico de diferença"
(Burns 1987:3), e na formulação precisa de Murphy e Smith: "irregularidade métrica em intervalos curtos de tempo
se torna regularidade rítmica em intervalos mais longos ou em níveis mais elevados da escala" (Murphy e Smith
2001:25).
114
Termos usados pelo DJ Camilo Rocha (entrevista, 10 de maio de 2003) para descrever o transe no Techno.
115
Encontramos uma linha de interpretação do funcionamento da música eletrônica de pista semelhante a esta em
Bacal (2003:82-4).

314
sondagem sensível e intuitiva, pelo DJ, de seus limiares de resolução. Perceber-se como peça da
máquina, entrar no transe maquínico, é assumir espontaneamente, por resolução sonoro-motora,
uma das diversas funções que compõem esse corpo.
Se o break é a captura do movimento e a sua aceleração explosiva, como um turbilhão
que captura um objeto para depois jogá-lo à distância, o pulso constante é a manutenção de um
movimento já existente, a sua continuação e perpetuação. Um é como o despertar do coração (no
feto ou na vítima de parada cardíaca) enquanto o outro é como a continuação de seus batimentos
garantindo a continuação da vida. Um é a partida do motor, o outro é o seu funcionamento
regular. Um é a superação da inércia de um sistema, o outro é a manutenção de seu movimento.
Na prática, os DJs de música eletrônica de pista usam esses elementos de maneira complementar,
os breaks servindo para incentivar o início ou a retomada da dança (momentos de captura, em
que, de uma hora para a outra, as pessoas começam a dançar) e o pulso constante servindo para
manter esse movimento enquanto o DJ trabalha com outros parâmetros. É um equilíbrio instável
esse da captura e da manutenção do movimento. É preciso ter muita técnica, mas também muita
intuição. Tendo visto como o break e o pulso constante se complementam enquanto dois
procedimentos elementares que dão partida e mantêm o funcionamento da máquina do transe da
música eletrônica de pista, resta agora ver como, uma vez funcionando, ela é operada pelo DJ.

Intensidades, freqüências, velocidades


Uma vez compreendido que os DJs trabalham muito mais com a sondagem dos limiares de
resolução do corpo sonoro-motor de uma máquina de transe do que com a apresentação de uma
narrativa musical, cumpre conhecer os três parâmetros elementares através dos quais eles operam
essa máquina, todos baseados nos efeitos sensório-motores do som: (1) os efeitos da altíssima
intensidade (geralmente medida em decibéis; dB) do som eletronicamente amplificado,
caracterizados pela experiência de imersão corporal em um ambiente vibratório; (2) os efeitos
particulares de diferentes faixas de freqüências (geralmente medidas em hertz; Hz) e de suas
combinações quando produzidas em altíssimo volume e controladas de maneira precisa,
caracterizados pela experiência de diferenciação entre sons que penetram no corpo, que colidem
sobre ele e que o dissolvem; (3) os efeitos de diferentes velocidades (geralmente medidas em
batidas por minuto; BPM) do tempo musical metronomicamente controlado, caracterizados pela
sincronização de ritmos infra-, intra- e inter-corporais.

315
INTENSIDADES
Para sermos rigorosos no uso das palavras, a música eletrônica de pista não se "escuta", ela se
"sente" (o melhor mesmo seria dizer que ela se "dança").116 A experiência própria à música
eletrônica de pista é a imersão completa em um meio vibratório que pulsa e faz vibrar o corpo
inteiro comprometendo qualquer tipo de comunicação verbal (uma espécie de isolamento
compartilhado).117 Mesmo quando não se dança, o corpo vibra em simpatia com o som em
altíssima intensidade. Não obstante os problemas auditivos causados pela intensidade sonora com
que a música eletrônica é normalmente experienciada,118 há um consenso no discurso nativo e até

116
Essa é, provavelmente , a dimensão corporal da experiência da música eletrônica mais facilmente percebida por
qualquer um, e a diferença entre "ouvir" e "sentir" é freqüentemente evocada pela literatura (e.g. Langlois
1992:236, 238 nota 3; Tagg 1994a:13; Bull 1997:3; Malbon 1998:271; Poschardt 1998:115; Reynolds 1999:255,
283, 341, 349; Brewster e Broughton 2000:367; Jerrentrup 2000:69; Jouvenet 2001:12; Shapiro e Lee 2000:148;
Bacal 2003:5-6, 119).
117
Malbon cita um depoimento típico: "Eu adoro ficar ali na frente e deixar aquela coisa viajante me atravessar
[letting that little trancey stuff sear straight through me]. Meus ouvidos já estavam completamente estourados. Eu
acho que já tinha perdido a noção, mas o DJ não nos deu trégua. [...] Eu estava prestes a ser morto pela música
naquela noite e ele começava a crescer, crescer – estávamos enlouquecendo ali [...]. Freqüências insanas estavam
crescendo em minha cabeça, freqüências perfurando meus tímpanos, eu perdi a noção...Luzes, lasers, ritmos
estridentes e doloridos. Eu realmente estava totalmente em outra dimensão. (depoimento, in: Malbon 1998:275)
Baldelli nota que há "um certo incentivo a um desligamento do 'externo'" quando se dança música eletrônica de
pista: "Para esta 'dedicação auditiva' poderia se justificar o volume alto da música em uma pista de dança. Na pista
de dança a linguagem é corporal, e o máximo que se realiza de comunicação é feito com um sinal, um sorriso, um
abraço, mas o objetivo ali é responder com o corpo aos impulsos emanados pelo som que sai das caixas, que
geralmente tem um grave bastante acentuado." (Baldelli 2004:5) É comum que o fato de ser possível "conversar"
no ambiente seja usado como argumento nas reclamações sobre o "baixo volume do som" de festas de música
eletrônica (cf. Pinheiro e Passarelli *2003b; Zioni *2004; Angelo *2004:31) e Malbon vê nisso "a criação de
espaços sociais micro-aurais nos quais a conversa não pode ser escutada nem por pessoas bem próximas" (Malbon
1998:283 nota 8). Preferimos, porém, ver nessa dificultação da comunicação verbal (tanto pela necessidade de
gritar quanto pela dificuldade de ouvir) a sugestão de que o ambiente ideal para música eletrônica é algo próximo
daquilo que Deleuze chamou de "vacúolos de não-comunicação" (cf. Deleuze 1992:217). Basta lembrar que,
segundo o DJ Arlequim, a ruptura com a intersubjetividade (e não a criação de micro-intersubjetividades) é o
primeiro passo do ritual xamânico da música eletrônica.
118
Numa pesquisa com 23 DJs ingleses, Bray et al. concluíram que três deles tinham perda evidente de audição e
74% sofriam de tinnitus, e que a exposição média deles ao ruído era comparável à de trabalhadores que lidam com
maquinaria agrícola, perfuração de concreto e serralharia (cf. Bray et al. 2004). Numa pesquisa com 188 "jovens
músicos poloneses" que acusou perda auditiva de 10dB em 70% deles, de 30dB em 10% deles e concluiu que
"menos de 10%" não mostrava "nenhuma marca de superexposição" ao ruído, uma das principais causas
encontradas para essa situação "alarmante" é o hábito de freqüentar "discotecas" (cf. Jaroszewski 2000:23).
Médicos australianos notaram um aumento considerável na ocorrência de tinnitus entre jovens, médicos ingleses já
falam em "uma epidemia de perda de audição entre jovens" (cf. Soundscape 2001) e Poschardt, que afirma haver
uma relação comprovada entre o aumento no nível de barulho ambiente e a diminuição expectativa de vida,
constata: "Se dependesse dos médicos, jovens só usariam walkmans durante 4,8 minutos por dia e muitos clubes e
raves teriam que exibir avisos dizendo que seus sistemas de som são 'prejudiciais à saúde'." (Poschardt 1998:423)
Bacal propôs a ótima fórmula "[o]s DJs, além de serem bons ouvintes, são também surdos" (Bacal 2003:110), e
Camilo Rocha, que chegou a ficar surpreso quando um exame de audiometria acusou que sua audição era "normal"
("Nem eu esperava isso. Juro por Deus."), confirma conhecer "DJs que já tão meio ensurdecendo mesmo" (Camilo
Rocha, entrevista 10 de maio de 2003). Curiosamente, como mostra o próprio caso de Camilo Rocha, muitas vezes
não há relações diretas entre a exposição prolongada e a ocorrência de problemas de audição. Bray et al., que de
fato não encontraram uma relação direta entre a duração da exposição ao ruído e o grau de perda da audição em sua
pesquisa com DJs, concluíram que "há uma margem de suscetibilidade entre indivíduos que permite certas pessoas

316
em estudos laboratoriais de que ela (ou mesmo o Rock, que também é normalmente
experienciado em altos volumes) perde parte relevante de sua eficácia abaixo de um limiar
mínimo de intensidade.119 Quanto a isso, Tagg já mostrou que o potencial ritual da música está
intimamente ligado à relação entre a sua própria intensidade e a intensidade do som da máquina
social que ela produz, reproduz ou transforma, e o som da máquina capitalista contemporânea é,
de fato, o som intenso e grave da paisagem sonora pós-Revolução Industrial (cf. Quadro 8).

agüentar exposições significativas sem danos à audição" (Bray et al. 2004:125). A ironia aqui, de qualquer forma, é
notar que problemas auditivos não são apenas as conseqüências da reprodutibilidade técnica, mas também estão
intimamente ligados à sua origem histórica. Como mostra Sterne, um dos objetivos por trás das pesquisas pioneiras
de Alexander G. Bell era a criação de uma máquina que ouvisse para a pessoa surda ("A machine to hear for
them"), produzindo um registro gráfico do som "ouvido" a partir do qual a pessoa surda pudesse modular
visualmente a sua própria voz e assim aperfeiçoar a sua articulação das palavras – uma "delegação da audição" que,
por ser o mesmo princípio de base de toda a tecnologia de reprodução sonora, coloca a surdez bem na sua origem
("a surdez estava na origem da reprodução do som"; cf. Sterne 2003:37-41). O fato de que o aparelho que mais
perto chegou dos objetivos Bell tenha usado como peça transdutora um ouvido médio (o tímpano e o mecanismo
ósseo que concentra as suas vibrações) amputado de um cadáver, mostra exemplarmente como a reprodutibilidade
técnica do som está geneticamente ligada à "delegação da audição", pelo ouvinte (que então passa a ser um surdo,
pelo menos em potencial), a uma máquina (cf. Sterne 2003:31-5): "As tecnologias de reprodução do som estavam
ligadas a um projeto permanente de tornar os surdos mais parecidos com os que escutam. Mas elas acabaram
tornando os que escutam um pouco mais parecidos com os surdos. Em 1878, já era possível pensar que ouvidos
eram (pelo menos potencialmente) versões imperfeitas de um mecanismo timpânico que podia ser imitado e
amplificado. A audição exigia uma suplementação, e assim agora nós estamos rodeados por mídias que escutam
por nós." (Sterne 2003:347) Vale citar aqui ainda o caso de Thomas A. Edison, inventor do fonógrafo (1877),
sempre à frente do controle de qualidade das gravações de sua companhia e, ele mesmo, "bastante surdo", o que lhe
parecia ser uma vantagem: "Eu escuto esplendidamente através de meu crânio e de meus dentes [Edison escutava
seu próprio fonógrafo com os dentes, mordendo a sua base de madeira]. As ondas sonoras vêm quase diretamente
ao meu cérebro, passando antes apenas pelo meu ouvido interno, que é maravilhosamente sensível (muito mais do
que o de qualquer outra pessoa) pois por mais de cinqüenta anos permaneceu em silêncio, protegido dos milhões de
barulhos que enfraquecem a audição daqueles que ouvem tudo" (Thomas A. Edison [Allan L. Benson. "Edison's
Dream of New Music". Cosmopolitan 54:798, May 1813], in: Thompson 1995:169 nota 88).
119
Diante da predominância de sons graves em altas intensidades na música eletrônica de pista, Todd e Cody
concluíram que "outras sensações acusticamente evocadas além da audição normal estão sendo buscadas nesses
ambientes", algo que já vem sendo chamado de "o limiar do Rock'n'Roll [the rock and roll threshold]" (i.e., o fato
de que esse tipo de música parece só "funcionar" quando tocada acima de 96dB). A explicação proposta por Todd e
Cody é a "sensação prazerosa de auto-movimento" provocada pela estimulação acústica do sistema vestibular
(principalmente de um órgão chamado sacculus, filogeneticamente ligado às origens dos vertebrados; cf. Todd
2005) por sons entre 100 e 500Hz (médio-grave) e entre 90 e 120dB, uma sensação comparável à da oscilação em
um balanço (cf. Todd e Cody 2000). Apesar de concordarmos com Rouget (1985) que não é possível reduzir a
explicação de fenômenos de transe apenas a mecanismos psicofisiológicos, não vemos motivos para ignorar esse
tipo de estudo quando ele pode contribuir para a avaliação de explicações mais complexas (cf. Bateson 1975; Gell
1980). E quanto aos eternos lamentos da Ecologia Acústica sobre o fato de que "hoje é esperado que tanto público
quanto músicos usem tapa-ouvidos amarelos para proteção", algo que seria análogo a "contemplar arte ou assistir
um filme de óculos escuros" (cf. Karlsson 2000:10), só resta constatar que existem "motivos não-musicais para
explicar porque tantos jovens se expõem voluntariamente a intensidades sonoras que chegam a 115dB" (Hall
1991:77) e motivos não contemplativos, poderíamos acrescentar ("como vovó já dizia"; cf. Raul Seixas a1998:17),
para se freqüentar museus e salas de cinema de óculos escuros.

317
Intensidade Exemplos Quadro 8 – Intensidade sonora (dB).
(dB) Tabela com valores normalmente
empregados para comparar intensidades
160 -mísseis, foguetes sonoras comuns do cotidiano, incluindo
- turbina de avião aquelas em que a música eletrônica de
- túnel aerodinâmico pista é normalmente tocada (entre 90 e
- grandes explosões 130 dB) – vale notar que esses valores
140 - explosões são comuns também a qualquer outro
130 - fogo de metralhadora a curta distância estilo musical amplificado (Rock, Axé,
- limiar da dor Pop etc.) mudando apenas o fato de que
- festa de música eletrônica (picos) o DJ usa gravações e portanto pode
- decolagem de avião a jato manter a intensidade sonora estável por
120 - pista de aeroporto mais tempo, ao passo que
(ECMR*: - festa de música eletrônica (intensa) instrumentistas geralmente produzem
0 minutos) uma amplitude dinâmica maior e menos
110 - trovão controlada. Os valores são aproximados,
(ECMR*: - serra elétrica pois sua medição depende de muitos
30 minutos) - festa de música eletrônica (normal) parâmetros que variam de acordo com
100 - metrô, tráfego intenso de caminhão os métodos e objetivos de cada pesquisa
(ECMR*: - britadeira – segundo Todd e Cody (2000), por
2 horas) - casa de máquinas exemplo, medições de intensidade
- festa de música eletrônica (baixa) sonora feitas próximas aos alto-falantes
- orquestra sinfônica (picos) de clubes londrinos freqüentemente
90 - água no fundo de grandes cataratas ultrapassavam 130 dB. Os sons mais
(ECMR*: - metrô, tráfego pesado intensos encontrados na bibliografia
8 horas) - cortador de grama foram o do lançamento de um foguete
- cinema com 194 dB (cf. Everest 2001:32) e o
- festa de música eletrônica (aquecimento) recorde de intensidade sonora de
80 - tráfego pesado equipamento de som automotivo, com
- limiar da ressonância corporal 170 dB (cf. Boulware *2000). Vale
- limiar de audição do subgrave notar ainda que o decibel é uma relação
- fábrica entre dois valores, e dizer que uma festa
- máquinas em geral de música eletrônica expõe seus
70 - rua movimentada freqüentadores a uma intensidade sonora
- ambiente comercial de até 130dB significa dizer que ela os
- aparelho de ar condicionado expõe a uma intensidade sonora até cem
60 - conversa normal trilhões (1013) de vezes maior do que o
- escritório comum limiar da audição – ou dez mil vezes
50 (103) maior do que a intensidade
- restaurante tranqüilo
máxima recomendada para uma
40 - conversa suave
exposição contínua de até duas horas
- ruídos domésticos
(100dB).
- bairro residencial à noite
Fontes: Stevens e Warshofsky (1968:173),
30 - escritório silencioso Woram (1982:30), Sundberg (1991:21), Hall
- cinema vazio (1991:74, 76), Bronzaft (2000:25), Boulware
- biblioteca (*2000), Todd e Cody (2000:499),
20 - sala de estar silenciosa Jaroszewski (2000:15-6), Schafer (2001:114,
- sussurro, respiração 166-7, 259-60), Everest (2001:32),
- farfalhar de folhas Soundscape (2001, 2002:15), Sciencescope
- estúdio de gravação silencioso (*2003), Raju (2003), Bray et al. (2004:123,
10 125).
- respiração normal *ECMR: Exposição Contínua Máxima
0 - limiar da audição Recomendada.

Segundo Morgan Jouvenet um "som poderoso" é "a garantia de que [o DJ] dispõe de um terreno
de atuação mais amplo, no qual nem mesmo as mais ínfimas variações impressas no disco são

318
perdidas",120 e o "volume sonoro elevado 'envolve' os ouvintes de tal maneira que a música só
pode lhes agarrar, as vibrações sentidas a alguns metros dos 'muros de alto-falantes' lhes
provando de maneira espetacular que eles estão literalmente imersos".121 "Imersão", constata com
propriedade Toop, "é uma das palavras-chave do final do século XX", e podemos dizer que o
mesmo vale para o início do século XXI, quando a música continua a ser "sentida em seu nível
vibratório, permeando todas as células, chacoalhando todos os ossos, desgovernando a mente
analítica e consciente".122 O poder disruptor das altas intensidades sonoras é muitas vezes visto
como um obstáculo à razão123 e como um estímulo ao transe, e não por acaso Rouget encontrou
(mas não quis pesquisar124) paralelos inegáveis entre as "modificações sensoriais na
autoconsciência" provocadas pelo "impacto físico" do som eletronicamente amplificado da
música Pop e "o tipo de efeito que algumas formas de música de possessão estão buscando".125
Por tudo isso, parece certo que alta intensidade sonora desempenha um papel importante na
produção do transe em festas de música eletrônica de pista.

120
O turntablist Grand Wizard Theodore conta que a potência fenomenal do sistema de som do DJ Kool Herc (o
"Herculords") fazia com que discos que ele escutava todos os dias soassem diferente: "Era como se você escutasse
instrumentos no disco que você nunca pensou que estivessem lá" (Grand Wizard Theodore, in: Brewster e
Broughton 2000:212).
121
Jouvenet (2001:9, 12).
122
Toop (1995:273). Outra "palavra-chave", segundo Reynolds, é "fisicamente sentido" (Reynolds 1999:255; itálico
no original). Em seu comentário sobre a música eletrônica, Tagg faz uma crítica direta àquilo que ele chamou de
"preceitos corporalistas da rockologia [corporealist precepts of rockology]", caracterizados por idéias como as de
que "a música excita movimentos automáticos do corpo", de que seus efeitos "não são necessariamente
significantes" tampouco "envolvem a transmissão, produção, estruturação ou mesmo a destruição de sentido", que
é "corporal e 'invasivo'", que "o volume puro e ritmos repetitivos do Rock produzem um prazer material real para
seus fãs" e que "em muitas apresentações, a vibração pode mesmo ser comparada ao uso de um vibrador" (Tagg
cita aqui J. Lull [1992. Popular Music and Communication. Newbury Park] e L. Grossberg [1990. "Is there rock
after punk", in: S. Firth e A. Goodwin (ed.). On Record. London, pp.111-23]; cf. Tagg 1994a:211). Evidentemente,
concordamos com Tagg quanto ao expediente duvidoso que é apoiar qualquer teoria consistente sobre os efeitos do
Rock à "experiência íntima do leitor com vibradores" ou a "universais bio-acústicos" como "volume puro", assim
como à pouca utilidade em recusar qualquer relação entre a música e o seu significado (cf. Tagg 1994a:212). No
entanto, parece-nos que a solução para o problema que ele corretamente aponta não deve ser buscada no abandono
das evidências de que há sim um certo "efeito-vibrador" na música amplificada (existem provas demais de que isso
é uma dimensão concreta da experiência), mas sim num esforço maior para dar consistência a essa evidência; por
exemplo, mostrando que o tal "efeito-vibrador" não é algo exclusivo a shows de Rock e sex shops, mas sim uma
experiência cotidiana com vibrações de baixa freqüência (menos de 200Hz) e alta intensidade (mais de 80dB, ou
mesmo com menos intensidade sonora mas em contato direto com o corpo) produzida, entre muitas outras coisas,
pelos meios de transporte em geral (e.g. carros, caminhões, trens, metrôs, aviões, elevadores, escadas rolantes etc.).
123
"A volumes massivos", afirma Reynolds, "o saber é visceral" (Reynolds 1999:349), e para Eshun "[n]ão há
distância com volume, você é engolido pelo som" (Eshun 1999:188).
124
A navalha de Ockham de Rouget eliminou de seu estudo os transes observados na música Pop, junto com aqueles
observados em seitas cristãs européias ou americanas e em "adeptos da bioenergia" (cf. Rouget 1985:xviii).
125
Rouget (1985:129-1).

319
Apesar de sempre alto, o volume sonoro da música não é constante. O DJ deve saber usar
o controle do volume (através de seu mixer) na condução da experiência do público.126 Há
normalmente uma tendência ao aumento gradual do volume sonoro ao longo de uma festa, seja
pelo efeito acumulado de "abafamento" do som produzido pelo aumento do número de pessoas
no ambiente, seja pela busca de uma intensificação gradual da experiência, à medida em que o
público vai se aquecendo e se habituando ao volume geral do som. É possível dizer que uma festa
de música eletrônica começa com a intensidade sonora de 90dB e chega, nos momentos de maior
intensidade, a picos de 130dB, permanecendo a maior parte do tempo entre esses dois
extremos.127 Esses valores demonstram que as intensidades utilizadas na música eletrônica de
pista são muito superiores àquelas encontradas na música não amplificada – os picos de
intensidade de uma orquestra sinfônica, por exemplo, não passam de 100dB, sendo raros os
momentos em que seu som supera os 95dB – e também que a margem de variação dinâmica da
música eletrônica de pista (50dB) é muito menor do que a de outros estilos musicais – a da
música orquestral tradicional, por exemplo, é normalmente de 80dB.128 Isso quer dizer que
enquanto em estilos não amplificados, ou mesmo em outros estilos baseados em instrumentistas,
a intensidade sonora global sofre grandes variações de acordo com a dinâmica expressiva do
conteúdo musical – alternando trechos de baixa intensidade com trechos de alta intensidade e
com muitas intensidades intermediárias –, na música eletrônica de pista a tendência é a
manutenção de uma intensidade constante, quebrada apenas brevemente em certos pontos
estratégicos que já conhecemos como breaks (cf. Imagem 17). As maiores variações de
intensidade na música eletrônica de pista (por exemplo, entre 90dB e 130dB), diferentemente
daquela dos gêneros musicais mais expressivos, ocorrem não dentro de cada música, de minuto a
minuto, e nem de maneira alternada (alternando trechos de alta e baixa intensidade), mas sim ao

126
A importância do controle, pelo DJ, do volume geral do som foi bem ilustrada pela disputa entre o DJ Walter
Gibson e George Freeman, o dono da Galaxy 21 (a casa noturna onde ele tocava na Nova Iorque dos anos 70).
Quando este decidiu instalar um controle de volume na sua sala "para limitar o volume geral do sistema de som"
sem falar com aquele, Gibbons abandonou imediatamente o clube e seu público o seguiu, de forma que Freeman
foi obrigado a voltar atrás e deixar o volume sonoro sob controle total do DJ (cf. Brewster e Broughton 2000:160).
127
Cf. Sundberg (1991:21), Todd e Cody (2000:499), Jaroszewski (2000:15-6), Sciencescope (*2003), Soundscape
(2001), Bray et al. (2004:126).
128
Schafer nota esse mesmo estreitamento da dinâmica no rádio: "Um gráfico de nível de gravação de uma estação
de rádio popular mostrará como o material programado é construído para se chegar ao máximo grau permissível,
numa técnica conhecida como compressão porque a tessitura dinâmica permitida fica comprimida em limites
realmente estreitos. Por isso a radiodifusão não mostra nuança ou fraseados. Ela não descansa. Não respira.
Tornou-se uma parede sonora." (Schafer 2001:141) De fato, a função do aparelho processador de sinais conhecido
como compressor é justamente aumentar o volume quando o sinal estiver abaixo de um mínimo estipulado e
diminui-lo quando o sinal estiver acima de um máximo estipulado, reduzindo assim a amplitude dinâmica do sinal
original (cf. Ord-Hume et al. 2001:18; Prochak 2001:138).

320
longo de todo um set ou de toda uma festa, de hora em hora, e de maneira predominantemente
unidirecional (sempre aumentando a intensidade, nunca diminuindo).
Assim, além dos prováveis problemas auditivos,129 o principal efeito da altíssima
intensidade e da pequena dinâmica que caracterizam a música eletrônica de pista é, sem dúvida, a
produção de um efeito corporal de intensa e contínua imersão em um meio vibratório, no qual o
som é menos escutado com os ouvidos do que sentido com o corpo. Numa festa de música
eletrônica, todos estão imersos em um mesmo meio sonoro, submetidos às mesmas vibrações e
intensidades.130 Mas apesar de sempre intenso, o ambiente não vibra de maneira homogênea: o
efeito vibratório do som amplificado a altas intensidades varia de acordo com a sua freqüência.

FREQÜÊNCIAS
É possível tipificar os efeitos vibratórios do som a partir da divisão do espectro de freqüências
sonoras em três grandes faixas: agudas, médias e graves (cf. Quadro 9 e Exemplos Sonoros 31,
32 e 33).131 A diferença entre essas três faixas de freqüência e a importância relativa delas para
música eletrônica de pista foi muito bem ilustrada por um episódio contado por Grandmaster
Flash envolvendo as disputas entre equipes de som comuns nos bairros de periferia da Nova
Iorque dos anos 70.132 Sobre uma visita que fez a uma festa promovida pela equipe do DJ Kool
Herc, famoso por possuir o sistema de som mais potente de todas as equipes da época,133 Flash
conta:

Ele disse, "Grandmaster Flash na área" no microfone, e daí cortou todos os agudos e graves de seu
sistema, deixando apenas os médios. "Flash", ele disse, "para ser um DJ qualificado, você precisa
ter uma coisa... agudos!" Daí ele aumentou os agudos no máximo e os chimbais ficaram tinindo. "E
acima de tudo, Flash", ele continuou, "você precisa ter graves!" Bem, quando o grave do Herc

129
E outros, que Schafer faz questão de listar: "O ruído intenso pode causar dores de cabeça, náuseas, impotência
sexual, redução da visão, debilitação das funções cardiovascular, gastrintestinal e respiratória." (Schafer 2001:260)
130
Bacal comparou o ambiente sonoro da festa de música eletrônica a um "muro de som em que todos os 'tijolos são
sonoros'": "à medida que você se afasta das caixas de som [...] você passa a ter uma sensação definitiva de estar
saindo de um ambiente, e quanto maior a proximidade das caixas de som maior a sensação de estar entrando no
ambiente sonoro" (Bacal 2003:119; itálicos no original).
131
Muitas vezes o espectro de freqüências é dividido apenas em duas faixas principais com comportamentos
claramente distintos – a grave (sons que atravessam os corpos) e a aguda (sons que são refletidos pelos corpos), a
média sendo considerada uma espécie de transição entre elas (cf. Hall 1991:60, 463; Schafer 2001:171; Prochak
2001:161; Everest 2001:236, 324-6). Consideramos a divisão tripartida mais apropriada em nosso caso tanto por
ser mais próxima das categorias nativas quanto por considerarmos a faixa média de transição tão importante quanto
as faixas extremas entre as quais ela se situa.
132
Cf. Brewster e Broughton (2000:234-7). A disputa entre equipes de som pela maior potência sonora também foi
mencionada por Vianna nos bailes de Funk carioca da segunda metade dos anos 80 (cf. Vianna 1988:35-6).
133
Ele apelidou seus alto-falantes de "Herculords", e também os chamava de "não-responsabilizáveis [Not
Responsible]", visto que eram tão potentes que "sempre que você os usava em algum lugar, alguma merda
acontecia, alguma disputa" (DJ Kool Herc, in: Brewster e Broughton 2000:213).

321
entrou, todo o lugar começou a chacoalhar. Eu fiquei tão embaraçado que tive que ir embora. Meu
sistema não tinha chance.134

Além de um exemplo concreto da operacionalidade da divisão do espectro de freqüências em


faixas aguda, média e grave na prática dos DJs, esse episódio também mostra o peso desigual e
relativo de cada uma dessas faixas, sendo a média aquela menos valorizada e a grave a mais
valorizada. É importante notar que, da perspectiva das próprias freqüências, a sua distribuição em
faixas diferentes é arbitrária pois há uma variação contínua das menores freqüências até as
maiores. Essa distribuição se baseia não em limites intrínsecos às próprias freqüências (que não
mudam de natureza entre as diferentes faixas), mas sim na relação entre essas freqüências e os
sistemas específicos pelos quais elas passam. Assim, se de todo o espectro de freqüências
acústicas possíveis135 destacarmos o intervalo entre 0,1Hz e 200kHz como contendo todas as
freqüências de alguma forma biologicamente significativas,136 se dentro deste o intervalo entre
20Hz e 20kHz for destacado como contendo todas as freqüências diretamente audíveis pelo ser
humano137 e se dentro deste último destacarmos o intervalo entre 200Hz e 3kHz como contendo
as freqüências mais diretamente relacionadas à comunicação humana,138 então estaremos
seguindo um processo de individuação do sistema comunicacional humano (a sua maneira muito
particular de "resolver" o complexo de vibrações atmosféricas), centrado justamente numa faixa
de freqüências médias que divide o espectro de freqüências audíveis entre aquelas abaixo, acima,
e dentro do seu limiar de preferência (cf. Imagem 18). Mas a bioacústica é repleta de exemplos
de outras individuações possíveis, cada organismo biológico desenvolvendo suas próprias
maneiras de resolver as complexas vibrações atmosféricas que nós aprendemos a interpretar
como o som. Trata-se, acima de tudo, de um processo de resolução de tensões, de problemas que
são particulares a cada ser vivo, ou a cada sistema. Assim, quando propomos a divisão do
espectro de freqüências sonoras em três faixas, estamos sugerindo que, dentro do sistema humano
de resolução sonora, é útil diferenciar três subsistemas com seus próprios "problemas" (ou
"tensões") específicos.

134
Grandmaster Flash, in: Brewster e Broughton (2000:235).
135
Sabe-se que diversos fenômenos atmosféricos produzem sons de menos de 0,1Hz (comprimento de onda de
3,44km; cf. Cook 1987:91) e já foram obtidas experimentalmente ultra-sons de até 2,5THz (2,5x1012Hz;
comprimento de onda de 0,137nm) (cf. Galloway 1987:22; Mason 1987:38-9).
136
Correspondendo a comprimentos de onda de 3,44km a 1,72mm (cf. Camhi 1984:161).
137
Correspondendo a comprimentos de onda de 17,2m a 1,72cm. Esses limites são aproximados e arredondados, pois
freqüências abaixo de 30Hz só são audíveis a altas intensidades e poucos realmente escutam freqüências acima de
15kHz.
138
Correspondendo a comprimentos de onda de 1,72m a 11,4cm.

322
FAIXA CARACTERÍSTICAS EFEITOS
AGUDA Situam-se nessa região geralmente os Sons agudos são refletidos pelo corpo
Freqüências acima de harmônicos que conferem o timbre e, a altas intensidades, parecem espetar
3kHz (comprimento de diferenciado a cada som particular. Os ultra- regiões da cabeça e especialmente os
onda de menos de sons (freqüências acima de 20kHz; ouvidos, como raios pontiagudos e
11,4cm) comprimento de onda de menos de 1,72cm), perfurantes. A perda auditiva típica da
apesar de diretamente inaudíveis, podem idade (presbiacusia) e dos traumas por
contribuir indiretamente para a qualidade dos intensidade ataca principalmente essa
sons audíveis através de seus subharmônicos. faixa de freqüências.
MÉDIA Situam-se nessa região a maior parte dos sons Sons médios são parcialmente
Freqüências de 200Hz fundamentais da fala humana e da maior parte refletidos e parcialmente absorvidos
a 3kHz (comprimento dos instrumentos musicais acústicos pelo corpo, percebidos geralmente
de onda de 1,72 a tradicionais. Esta é a faixa de freqüência onde como superfícies ou corpos vibratórios
0,114m) se concentra a maior parte da comunicação que o atacam intermitentemente.
sonora humana cotidiana.
GRAVE Situam-se nessa região sons provocados pelo Sons graves atravessam o corpo, são
Freqüências abaixo de deslocamento de grandes massas de ar sentidos tanto na sua superfície quanto
200Hz (comprimento (geralmente fenômenos naturais como no seu interior como uma massagem
de onda de mais de trovões, vento, terremotos e erupções vibratória. Estudos diversos
1,72m) vulcânicas, mas também fenômenos demonstram a suscetibilidade variada
tecnológicos como explosões, aviões de partes do corpo humano à
supersônicos e som amplificado ressonância por freqüências graves e
eletronicamente) e também sons ligados à subgraves (entre 2 e 60Hz) assim como
locomoção e a movimento corporais. Os sons a percepção das vibrações sonoras pela
subgraves (freqüências abaixo de 20Hz; pele (entre 5 e 400Hz). Estudos não
comprimento de onda de mais de 17,2m, encontraram efeitos negativos do som
podendo chegar a milhares de quilômetros) subgrave na audição humana, mas sim
praticamente não projetam sombras acústicas, no sistema cardiovascular (hipertensão)
atravessando prédios, árvores, acidentes e nervoso (náusea, incômodo,
naturais etc., e se propagando por milhares de sonolência).
quilômetros sem perda substancial de energia.
O subgrave é audível a altas intensidades
(acima de 75dB), mas apenas na forma de
uma vibração, e não de tom (a transição do
som descontínuo para o tom se dá entre 16 e
20Hz).
Quadro 9 – Faixas de freqüência do espectro sonoro, suas características e efeitos. O importante aqui não são
os valores exatos que as pesquisas oferecem (eles podem variar de acordo com os objetivos e parâmetros de cada
uma), mas sim o fato de confirmarem que o corpo é um complexo sistema de ressonância que se comporta
diferentemente de acordo com a freqüência e a intensidade dos estímulos. Fontes: Swainson (1931:394), Hueter e
Bolt (1955:2-3), Camhi (1984:161), Cook (1987), Galloway (1987:22), Mason (1987:38-9), Morse (1987:186),
Yoxen (1987:289), Hall (1991), Genta (1993:xvi), Griffin (1990:228-9), Jourdain (1998:38-42), Mills (1999),
Everest (2001), Schafer (2001), Tagg e Collins (2001:9), Prochak (2001), Wilson e De Kerckhove (2002:17), Brüel
& Kjaer (2002:4-5), Anet (2003), Leventhall (2003).

A faixa de freqüências agudas é, tudo indica, uma espécie de "arte final" do quadro acústico, uma
última mão que dá brilho, ressalta contrastes e enfatiza perspectivas. Apesar de haver, de fato,
produção de som nessa faixa de freqüência (sinos, sons sintetizados, as notas mais agudas de
alguns instrumentos musicais e os sons de diversos animais e insetos), na maior parte das vezes
ela é preenchida pelos harmônicos dos sons que se encontram nas outras faixas. O curto
comprimento das ondas que ocupam essa faixa faz com que elas se comportem como jatos

323
direcionados de som que, ao encontrar algum obstáculo, são desviados por reflexão (o que faz
dessa faixa do espectro o terreno das tecnologias naturais e artificiais de localização e
mapeamento sonoros139). Não por acaso, é justamente na faixa aguda do espectro que se encontra
a informação sonora que dá "brilho" ao som, um fenômeno de reflexão tanto no campo visual
quanto no auditivo. Durante festas de música eletrônica, os sons pertencentes a essa faixa de
freqüência tendem a "chover" sobre o público, sendo sentidos, a altíssimas intensidades, como
"picadas" transitórias ou "penetrações" duradouras, especialmente no ouvido.
A faixa de freqüências médias é aquela na qual a maior parte da comunicação sonora
humana se concentra; a dimensão das "figuras" acústicas. A voz humana, a maioria dos
instrumentos acústicos tradicionais e aparelhos reprodutores de pequeno porte (e.g. walkmans,
rádios de pilha, pequenas televisões etc.) tendem a concentrar a maior parte de sua energia sonora
nessa faixa, de forma que é possível se comunicar usando apenas ela, situação da qual nos
aproximamos quando falamos com alguém ao telefone.140 Praticamente todo som médio (exceto
os eletronicamente sintetizados) possui harmônicos nas faixas aguda e grave, mas o importante é
perceber que, quando se trata de comunicação humana habitual, as freqüências agudas e graves
servem principalmente como complementação para a informação transmitida pelas freqüências
médias.141 Os comprimentos das ondas sonoras incluídas nessa faixa são compatíveis com as
dimensões corporais humanas, sendo refletidas em graus variados não apenas pelos objetos de
nosso cotidiano, mas também pelo nosso próprio corpo. Nas festas de música eletrônica os sons
médios são geralmente percebidos diferencialmente pelas diferentes partes do corpo: eles tendem
a "atacar" o corpo como objetos ou superfícies voadoras que ora rebatem sobre suas partes, ora
parecem penetrá-las.142

139
Ultra-sons são usados por alguns animais (e.g. morcegos) e também por máquinas (e.g. sonar, tomografia) para a
localização de objetos e a produção de imagens (cf. Hueter e Bolt 1955:2-3; Camhi 1984:161; Morse 1987:186;
Yoxen 1987:289). Sons hipersônicos (acima de 500MHz, comprimento de onda de menos de 688nm, podendo
chegar a menos de um nanômetro) podem interagir com ondas térmicas e também danificar estruturas celulares.
140
Não por acaso, foi justamente às freqüências médias que Herc reduziu o sistema de som de Flash no episório
relatado acima.
141
Daí a declaração do DJ Felipe Venancio sobre o equipamento de som ideal para as suas apresentações nas festas
da ValDemente no Rio de Janeiro dos anos 90: "Eu queria um som que tivesse os graves dos bailes funk, mas que
tivesse os médios como os de uma boate, porque eu precisava tocar os vocais." (DJ Felipe Venancio, in: Palomino
1999:200)
142
Segundo o DJ e performer alemão de Hardcore Techno Alec Empire, "[n]o Techno e no Jungle as freqüências
médias são eliminadas, é tudo grave e agudo", "[m]as as freqüências médias são as freqüências da guitarra do
Rock, é de onde vem a agressão" (Alec Empire, in: Reynolds 1999:368) O DJ alemão Westbam confirma:
"Historicamente, foi o grave que fez as pessoas dançarem [...]. Mas atualmente são as freqüências médias que
fazem as pessoas gritarem... No Techno, os médios têm aparecido cada vez mais... Eles são também os sons mais
agressivos" (DJ Westbam, in: Reynolds 1999:128-9).

324
A faixa de freqüências graves é, sem dúvida, a mais valorizada pela música eletrônica de
pista; ela é, poderíamos dizer, o "fundo" acústico no qual tudo acontece. Antes do
desenvolvimento do som eletronicamente amplificado, a faixa grave do espectro sonoro era
ocupada basicamente por fenômenos meteorológicos e naturais, sendo raramente ocupada de
maneira controlada por seres humanos. Porém, como já vimos, a partir do início do século XX as
máquinas passaram a inundar a paisagem sonora não apenas com sons graves produzidos pelos
seus motores e geradores, mas também, com a amplificação eletrônica, com um novo universo
musical de graves e subgraves.143 Na música eletrônica de pista, é na faixa grave do espectro que
se concentra a maior quantidade de energia sonora,144 e é nela que figura um dos principais
elementos distintivos do gênero: o pulso constante do bumbo. O comprimento de onda dos sons
graves excede as dimensões corporais humanas e, por isso, normalmente atravessa os objetos de
nosso cotidiano assim como nossos próprios corpos.145 Durante festas de música eletrônica, sons
graves produzem a sensação de "imersão":146 eles não caem sobre as pessoas, tampouco as
atacam, eles as "submergem" em um meio vibratório que tende a suspender os limites entre o
interior e o exterior do corpo.147

143
Emily Thompson mostra que foi a partir de 1925, com a competição do som eletronicamente amplificado do rádio
e, principalmente, com a "demanda" que ele gerou por "mais graves, mais volume", que os aparelhos de
reprodução mecânica do som foram abandonados como opção comercial – não sem tentativas como a do
sugestivamente intitulado "Dance Reproducer" da Edison Company, que tinha a função de amplificar o som de
seus fonógrafos e assim satisfazer à demanda da nova sensibilidade eletroacústica (Thompson 1995:161, 170 nota
116).
144
Após muitas pesquisas do grupo LFO (sigla que significa, justamente, "oscilador de baixas freqüências"; Low
Frequency Oscillator) em busca de uma maneira de tornar o grave "mais pesado", foi quando uma de suas músicas
começou a "chacoalhar o bar", literalmente, que "eles perceberam que tinham chegado lá" (Steve Beckett, in:
Reynolds 1999:117), objetivo alcançado periodicamente em apresentações musicais no Pacaembu (São Paulo) que
fazem as janelas das residências vizinhas "tremerem" e até mesmo "trincarem" (cf. Bastos *2004). Essa espécie de
"catexia do grave" é explicitada numa passagem de um "Manifesto Raver" que se disseminou pela Internet gozando
de grande aceitação entre os nativos: "em algum lugar próximo a 35Hz nós podemos sentir a mão de Deus em
nossas costas, nos empurrando pra frente, [forçando-nos] a fortalecer nossas mentes, nossos corpos e nossos
espíritos" (Anônimo *[s.d.]). Por outro lado, animadas discussões sobre supostos orgasmos provocados por sons
sintetizados a 33Hz, possíveis armas sônico-vibratórias que soltam o intestino a 7 ou 9Hz ou "sentimentos
estranhos" provocados pelos sons de 17Hz de um órgão de igreja podem ser encontradas em:
<http://www.trashclub.co.uk/talk/viewtopic.php?id=1083>;
<http://www.totse.com/em/fringe/fringe_science/synsex.html>; <http://www.infrasonicmusic.co.uk>;
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/science/nature/3087674.stm>; Willmot (*1999); Boulware (*2000).
145
Daí a reclamação comum de quem mora próximo a festas ou casas noturnas: "Você não ouve a melodia, só aquele
tum-tum-tum" (depoimento, in: Zonta e Freitas *2004). Freqüências médias e agudas são refletidas ou absorvidas
pelas paredes e outros objetos, as graves atravessam paredes e objetos.
146
Reynolds não deixa dúvidas, o grave "se torna um ambiente no qual você nada" (Reynolds, in: Shapiro e Lee
2000:148): "As freqüências graves são tão densas e envolventes que é possível nadar nelas" (Reynolds 1999:349).
Schafer confirma: "A localização da fonte sonora é mais difícil quando se trata de sons de baixa freqüência, e a
música que enfatiza esses sons é [...] menos direcionada no espaço. Em vez de estar diante da fonte sonora, o
ouvinte parece estar imerso nela." (Schafer 2001:168)
147
Fritz nota que a música eletrônica de pista experimenta tanto com ultra-sons quanto com sons sub-graves, mas
que a ênfase é maior nestes últimos, que "podem vibrar através de nossos corpos sem seres escutados e podem ser

325
O importante aqui não é concordar com as imagens particulares por meio das quais
diferenciamos a experiência sensorial de diferentes faixas de freqüências,148 mas sim
compreender que apesar da diferença entre sons graves, médios e agudos ser, a princípio, uma
diferença quantitativa e de grau (freqüências de mesma natureza, apenas mais ou menos rápidas),
há uma inegável diferença qualitativa e de natureza na maneira como cada uma das três principais
faixas de freqüência é percebida pelo corpo: acima de 3kHz as vibrações são resolvidas pelo
sistema num regime de reflexão e rebatimento, abaixo de 200Hz num regime de imersão e fluxo e
entre os dois elas caem num regime de cortes e desvios.149 Diríamos que os sons agudos são

parcialmente responsáveis pela forte reação emocional das pessoas": "Os sons profundos do grave que parecem
penetrar e reverberar através de nossa pele podem estar massageando nosso coração, ou mesmo estimulando
alguma memória genética primitiva" (Fritz 1999:78; a hipótese de mutações genéticas provocadas pelo som foi
levantada por Schinn 2003:68). Marshall Jefferson (produtor pioneiro de House) conta que em sua primeira
experiência com música eletrônica de pista (no Music Box, Chicago, no início dos anos 80) sentiu o som
"penetrando através de meu peito e se apossando do meu coração": "em qualquer lugar do clube, o grave te movia
fisicamente" (Marshall Jefferson, in: Brewster e Broughton 2000:301-2). Reynolds fala sobre uma "Ciência do
Grave", fruto da "experiência em primeira mão do DJ no trabalho com o público e seus reflexos bio-graves [a
crowd's bass-biology reflexes]": "O refluxo vibrador de intestinos das freqüências graves [The bowel-tremor
undertow of low-end frequencies] impactava sobre o corpo como um iceberg (90% da devastação se dava abaixo
do limiar da percepção)." (Reynolds 1999:114, 117; cf. p. 255) Segundo Steve D'Acquisto (DJ em Nova Iorque nos
anos 70) os graves da casa noturna Paradise Garage "feriam" ("Larry me feria com o grave"; in: Reighley 2000:36),
e o músico pioneiro no gênero Industrial Genesis P-Orridge conta uma antiga experiência com o potencial
vibratório disruptivo dos graves: "Nós produzimos freqüências realmente profundas com alto-falantes
customizados no sub-solo de concreto de uma fábrica. Descobrimos que as freqüências se tornaram tão intensas
que nossas roupas começaram a se mover, mesmo não havendo nenhuma corrente de ar. O som, sozinho, fazia tudo
se mover. [...] Enfim, após cerca de uma hora, nossa visão se afunilou e ficamos cegos." (Genesis P-Orridge, in:
Shapiro e Lee 2000:66) De fato, a altas intensidades os graves chegam a ser biologicamente nocivos: além de
náusea e perturbações do movimento, estudos mencionam até mesmo o perigo de que sons subgraves entre 7 e
10Hz a altas intensidades possam causar "sangramento interno a partir da fricção entre os órgãos" (Hall 1991:94;
cf. Troiani et a. 2004; Leventhall 2003). Sabendo que "[a] propriedade e exigência mais essencial para um
subwoofer [alto-falante especializado na emissão de sons subgraves] é a sua capacidade de mover o ar" (Anet
2003:2), não é surpreendente que a intensidade necessária à plena percepção dos sons graves e subgraves acabe
danificando alto-falantes (cf. Willmot *1999), o que faz dos avisos estampados nas capas de discos de música
eletrônica como "Perigo. Graves Ultra Baixos – Pode danificar os alto-falantes [Danger – Ultra Low Bass – May
damage speakers]" (DJ Magic Mike e Techmaster P.E.B a1998) ou "Cuidado com o Grave – Atenção: Tommy
Boy Music, Inc., seus afiliados e licenciados, se ausentam de qualquer responsabilidade por danos nos alto-falantes
resultando da reprodução dessa gravação sonora [Beware of bass. Warning, Tommy Boy Music, Inc., its affiliates,
and licensees disclaim any and all liability for speaker damage resulting from the playback of this sound
recording]" (adesivo colado pela gravadora nas capas de disco do grupo LFO; cf. Sicko 1999:166) mais do que
mera imaginação.
148
Outras fenomenologias dos agudos, médios e graves podem ser encontradas em Tagg e Collins (2001:8-9),
Schafer (2001:171) e Vickhoff e Malmgren (2004:17), além de depoimentos nativos como este: "Num sistema de
som adequado, a música é tão alta que você pode senti-la em todas as partes do seu corpo. As notas graves do
baixo te conectam com a terra e nos lembram o quão físicos e animais nós todos somos. As melodias e as
freqüências mais altas nos estendem para além de nós mesmos rumo a um estado de consciência mais elevado.
Abraçamos tanto a terra quanto o céu e atingimos o mais libertador dos êxtases." (Vix, músico e promoter inglês,
in: Fritz 1999:86)
149
A transição entre as três faixas de freqüências pode ser vista no quarto sonograma (4) da Imagem 1, no qual os
três tons simples de 10kHz (agudo), 1kHz (médio) e 100Hz (grave) se sobrepõem na forma de uma onda complexa.
Enquanto nos três primeiros sonogramas cada freqüência simples oscila em torno de um centro estável, no quarto
sonograma algumas freqüências são "carregadas" por outras, como se a oscilação de uma freqüência mais baixa

326
infra-antropométricos, os médios são antropométricos e os graves são extra-antropométricos, com
isso querendo dizer que é a partir das medidas humanas que as três faixas do espectro de
freqüências sonoras se diferenciam e que é apenas com relação a essas medidas que elas fazem
sentido: o mundo sonoro humano, com suas três faixas de freqüências, é a resolução contingente
do problema particular colocado pela inserção de um corpo específico em um meio vibratório, e é
trabalhando com os limiares desse mundo sonoro que o DJ opera a produção de um novo corpo
sonoro-motor.

VELOCIDADES
Se partirmos da vibração acústica mais veloz que o ouvido humano pode perceber e formos
gradualmente diminuindo a sua freqüência, escutaremos um tom contínuo que passa da faixa
aguda do espectro para a faixa média e depois para a faixa grave. A partir de 20Hz, no entanto, se
continuarmos a diminuir a freqüência da vibração, o som deixará de ser percebido como um tom
e passará a ser percebido como uma vibração, como impulsos sonoros discretos que, apesar de
ainda não serem nitidamente distintos uns dos outros, já não compõem mais um tom contínuo.150
Prosseguindo com a diminuição da freqüência da vibração para menos de 10Hz, os impulsos
sonoros discretos que a compõem passarão a se individualizar cada vez mais e o som deixará de
ser percebido como uma vibração para ser percebido como uma seqüência de pulsos individuais
distintos.151 Diminuindo ainda mais a freqüência da vibração até 0,5Hz, esses pulsos individuais
distintos ainda serão percebidos como isócronos (ou seja, como uma seqüência de pulsos que se
repetem a intervalos constantes de tempo), mas abaixo desse limiar, mesmo que a vibração ainda
seja isócrona, ela deixará de ser assim percebida: os pulsos se sucederão em intervalos
aparentemente aleatórios de tempo (cf. Exemplo Sonoro 34).152 Assim, para que uma seqüência

assumisse o lugar do ponto central de equilíbrio de uma freqüência mais alta: a freqüência de 100Hz "carrega" a
freqüência de 1kHz, que por sua vez "carrega" a freqüência de 10kHz. Assim, podemos dizer que a representação
sonográfica diferencia as freqüências: as mais graves carregam as mais agudas e as médias são ao mesmo tempo
carregadas pelas graves e carregadoras das agudas.
150
Diferentes pesquisadores encontraram diferentes valores para a freqüência na qual o tom constante dá lugar à
vibração, mas o valor de 20Hz é uma boa aproximação (cf. Everest 2001:74; Anet 2003:60-1; Jennings et al. 2004).
151
Cf. Clynes e Walker (1983:175).
152
Leon Van Noorden e Dirk Moelants sugerem que o fato de o "momento presente" da percepção consciente ter
uma duração aproximada de 2 ou até 4 segundos ajuda a entender esse limite inferior da percepção rítmica, pois um
pulso periódico só pode ser percebido como tal se pelo menos dois pulsos se mantiverem dentro de um mesmo
"momento presente", o que só ocorre se o intervalo entre eles for menor do que a metade da duração desse
"momento presente". Assim, para um "momento presente" de 3 segundos, o intervalo máximo entre dois pulsos
percebidos como periódicos deve ser de 1,5 segundos (0,66Hz) e a nossa freqüência mínima proposta de 0,5Hz
corresponde a um intervalo de 2 segundos entre os pulsos, o que nos mantêm dentro de um "momento presente" de
4 segundos. (cf. Van Noorden e Moelants 1999:54-5; Vickhoff e Malmgren 2004:3).

327
de sons periodicamente repetidos seja percebida enquanto tal (e não como pulsos isolados sem
relação entre si ou como pulsos indiscerníveis que compõem uma vibração) ela deve
necessariamente se dar a uma freqüência entre 10 e 0,5Hz.153
Passamos então de uma situação em que milhares, centenas ou dezenas de vibrações por
segundo eram percebidas como qualidades contínuas, meios vibratórios, superfícies e linhas, para
uma outra em que não mais do que dez vibrações por segundo passam a ser percebidas como
qualidades discretas, pulsos, objetos e pontos. Entre as duas situações, uma zona de transição
rugosa, áspera demais para compor uma superfície, contínua demais para se decompor em
objetos. Mas a partir do momento em que os sons passam a ser percebidos individualmente como
pulsos discretos, surge a possibilidade de diferenciação entre a sua freqüência fundamental
(dimensão sincrônica, suas repetições internas, contraídas) e a sua freqüência de repetição
(dimensão diacrônica, suas repetições sucessivas, escandidas), de forma que um som de 10kHz
pode se repetir a uma freqüência de 5Hz. Torna-se útil, assim diferenciar as freqüências
relacionadas à altura daquelas relacionadas à repetição, e para isso usaremos a unidade padrão na
música eletrônica de pista, as batidas por minuto (BPM).154 Não se trata apenas de uma conversão
formal, mas sim de uma exigência da própria mudança de regime de resolução do mundo
sonoro:155 um pulso que se repete periodicamente a uma freqüência de 10Hz é também um pulso

153
Não há valores absolutos para a percepção da repetição periódica de sons, pois são muitas as variáveis envolvidas.
O valor aqui proposto é baseado em nossas próprias experiências, e se aproxima de valores encontrados na
literatura: Van Noorden e Moelants (1999:54-5) identificaram os limites superior e inferior para a coordenação
consciente de movimentos corporais com pulsos periódicos como sendo de 4,16 e 0,66Hz (250 e 1500ms, ou 250 e
40BPM), uma determinação mais específica do que a nossa (que não exige a coordenação consciente dos
movimentos); Clynes e Walker (1983:174-5) propõem que os limites superior e inferior para a percepção das
"relações temporais" que eles definem como "ritmo musical" são 8 e 0,1Hz (480 e 6BPM) (parece-nos obscura,
porém, a origem do valor excessivamente baixo do limite inferior); José M. Wisnik (1989:17-9, 205 nota 3)
confirma a freqüência na qual o pulso se transforma em vibração como 10Hz (600BPM) e permite concluir que o
limite mínimo para que dois pulsos sejam relacionados ritmicamente é de 0,6Hz (36BPM). O importante aqui é
saber que há uma transição que vai aproximadamente de 20 a 10Hz entre sons cujas freqüências são altas demais
para serem percebidas individualmente e que portanto são contraídas em apenas uma percepção e sons cujas
freqüências são lentas o suficiente para serem percebidas individualmente e escandidas em percepções sucessivas,
e outra que se dá por volta de 0,5Hz entre sons repetidos a freqüências constantes e percebidos como tais e sons
que mesmo quando repetidos a freqüências constantes deixam de ser percebidos como tais. Segundo uma tipologia
proposta por Donald E. Hall (1991:17-8), diríamos que a primeira transição se dá entre eventos de curta e média
escalas, e a segunda entre eventos de média e longa escala.
154
Sendo o hertz (Hz) a unidade que designa o número de ocorrências de um fenômeno em um período de um
segundo e as batidas por minuto (BPM) a unidade que designa o número de ocorrências de um fenômeno em um
período de um minuto, a conversão entre eles se dá pela multiplicação do valor em hertz por 60 ou pela divisão do
valor em BPM por 60.
155
Wisnik, que vincula esse limiar ao "ritmo alfa" (entre 8 e 13Hz), acredita ser ele "a nossa medida no turbilhão das
vibrações cósmicas": "O ritmo alfa, pulsação situada no coração da música (como linha divisória e ponto de
referência implícito entre a ordem das durações e das alturas), seria o nosso diapasão temporal, o ponto de
afinação do ritmo humano frente a todas as escalas rítmicas do universo, e que determinaria em parte o alcance do
que nos é perceptível e imperceptível." (Wisnik 1989:20; itálico no original)

328
que se repete periodicamente a uma velocidade156 de 600BPM; mas enquanto no primeiro caso
ele se situa no extremo mais lento do espectro de freqüências, no segundo ele se situa no extremo
mais veloz do intervalo de velocidades. Assim, definiremos os dois limites de velocidade entre os
quais há a percepção de uma repetição periódica de sons individuais como 600 e 30BPM (10 e
0,5Hz).157
Assim como entre os limites extremos de freqüências identificamos limiares
intermediários correspondendo a faixas qualitativamente distintas, também o campo das durações
possui limiares de diferenciação interna. Vimos como, no caso das freqüências, era a maneira
como um sistema específico (o corpo humano) resolvia as tensões imanentes do espectro que o
diferenciava nas faixas aguda, média e grave (menores, iguais e maiores do que as medidas
humanas, respectivamente). No caso das velocidades o princípio é o mesmo, mas o sistema não é
mais apenas o das medidas corporais humanas, envolvendo também as suas predisposições ao
movimento: quais são as velocidades mais propícias para a produção do movimento numa pista
de dança? Encontramos nas próprias músicas eletrônicas de pista a resposta a essa pergunta, visto
que a velocidade em que são feitas é já o resultado de uma verificação empírica de sua eficácia na
produção da dança. Podemos dizer que, excetuando-se os casos extremos (estilos muito lentos
como o Trip Hop, o Downtempo e o Ambient ou estilos muito rápidos como o Drum'n'Bass e o
Gabba), há uma preferência clara na música eletrônica de pista por velocidades maiores do que
120BPM e menores do que 150BPM, em especial pelo intervalo entre 130 e 140BPM. Dessa
forma, destaca-se do intervalo contínuo de 600 a 30BPM de velocidades rítmicas possíveis, uma
região média – diríamos, "antropomotora" – dentro da qual se verifica uma predisposição
especialmente grande ao movimento em comparação com velocidades que seriam ou lentas ou
rápidas demais para serem tomadas como o pulso da música (cf. Imagem 19 e Quadro 10).158

156
Nosso uso da palavra "velocidade" aqui não se refere, obviamente, à velocidade do som – que corresponde à
distância percorrida pelo som no espaço por unidade de tempo (aproximadamente 344m/s em situações cotidianas)
–, mas sim à velocidade do tempo musical. Nesse sentido, "velocidade" e "freqüência" se tornam praticamente
sinônimos, sendo "freqüência" nada mais que a velocidade de uma repetição. É útil distinguí-las, porém, usando
"freqüências" (e a unidade "Hz") para repetições que não podem ser percebidas individualmente (que ocorrem
numa velocidade acima de 10Hz) e "velocidades" (e a unidade "BPM") para repetições que podem ser percebidas
individualmente (que ocorrem numa freqüência abaixo de 600BPM). Assim, 600BPM e 10Hz são perspectivas
opostas de uma mesma mudança de regime na percepção da repetição.
157
Como vimos acima, estes são valores muito próximos daqueles propostos por Wisnik (1989:17-9, 205 nota 3).
158
Segundo Fritz, por exemplo, a velocidade da música eletrônica de pista "pode variar de 115 a 300BPM, mas a
maioria das músicas se situa entre 120 e 140BPM" (Fritz 1999:72), e Tagg afirma que ela varia entre 116 e
144BPM, "a velocidade mais comum sendo 132BPM" (Tagg 1994a:213). Em uma vasta pesquisa sobre a relação
entre a velocidade da música e os movimentos corporais que ela provoca, Van Noorden e Moelants descobriram,
com relação à música eletrônica de pista em especial, que a maioria das músicas se concentra por volta dos
135BPM e que há "uma clara preferência por um intervalo estreito de tempos rápidos, tempos que permitem um

329
FAIXA CARACTERÍSTICAS
RÁPIDA Uma música a mais de 150BPM tende a desenvolver um sub-tempo na metade do
Velocidades acima de tempo principal, pois os pulsos individuais passam a ser mais facilmente
150BPM (2,5Hz) agrupados de dois em dois do que contados de um em um. Esse fenômeno está na
base do duplo tempo de estilos baseados em breakbeats como Jungle e
Drum'n'Bass, que não raro alternam entre velocidades principais em torno de
160BPM e velocidades alternativas em torno de 80BPM. São raros os casos de
músicas de mais do que 200BPM (geralmente relacionados ao estilo Gabba) mas
encontramos menção na literatura a músicas de até 300BPM e ao caso extremo de
uma música a 1000BPM (correspondendo a 16,6Hz, um pulso nessa velocidade é
já uma vibração).
MEDIANA Apesar de ser uma faixa de velocidades relativamente altas (pois se referem a
Velocidades de 120 a músicas dançantes), esta é considerada a faixa mediana pois é nela que se
150BPM (2 a 2,5Hz) concentra a grande maioria das músicas eletrônicas de pista. Os principais estilos
de música eletrônica de pulso constante (e.g. House, Techno, Trance) estão
incluídos nessa faixa, sendo que a maior parte deles se concentra entre 130 e
140BPM, os extremos da faixa sendo geralmente considerados quase lentos ou
rápidos demais.
LENTA Músicas entre 120 e 100BPM não seriam consideradas lentas fora de uma pista de
Velocidades abaixo de dança, mas são geralmente consideradas lentas demais para a manutenção da
120BPM (2Hz) dança em uma festa. Músicas entre 90 e 60BPM podem ser usadas como
contraponto a músicas no dobro da velocidade (entre 180 e 120BPM), mas
raramente têm algum outro papel na pista de dança (exceto talvez em festas
dedicadas a certas vertentes mais lentas da música eletrônica, como o Trip Hop, o
Downtempo ou o Ambient).
Quadro 10 – Faixas de velocidade da música eletrônica de pista e suas características. Este quadro busca
evidenciar que existem faixas de velocidade privilegiadas para músicas destinadas à manutenção do movimento em
uma pista de dança. Existem, evidentemente, exceções a essa divisão, mas o fato de que ela emergiu da própria
relação histórica entre o DJ e seu público garante que as possibilidades de se escutar músicas fora da faixa de
velocidades medianas em um set de música eletrônica que não seja exclusiva a estilos mais lentos ou mais rápidos
são mínimas. Fontes: Tagg (1994a:213), Palomino (1999:280-3), Fritz (1999:72, 88-95), Van Noorden e Moelants
(1999:57), Reynolds (1999:120, 135-6, 150, 227-9, 283, 285, 295), Sicko (1999:155, 190), Shapiro e Lee
(2000:216-34), Duarte de Souza (2001:74-6), Prochak (2001:75), Ferla (2004:90-4), Rushkoff (*1994:83), Mizrach
(*1996b:3), Duncan (*1997), EAR (*2001).

Muitos sugerem que essa preferência "antropomotora" por certas velocidades se deve,
principalmente à sua coincidência com certas velocidades e freqüências naturais do corpo
humano, em especial com o batimento cardíaco.159 Assim, é muito freqüente a atribuição de

movimento livre e animado e que não exige muito das pessoas" (Van Noorden e Moelants 1999:57). Vale lembrar
que estamos lidando já com músicas cujo andamento é totalmente sintetizado, e que portanto os valores
mencionados pela literatura devem ser assumidos como correspondendo efetivamente à velocidade das músicas.
159
Segundo Tagg, "o tempo musical está diretamente relacionado ao pulso do coração humano", que varia entre 40 e
200BPM – 40BPM são alcançados por atletas em profundo repouso e 200BPM são alcançados (e ultrapassados)
por crianças pequenas em estado de grande excitação – o que corresponde aos pólos do metrônomo convencional
(cf. Tagg 1997:2, 2 nota 2; 2002:5 nota 10). Segundo Schafer, "[a] batida do coração nada mais é do que um
módulo rítmico que divide grosseiramente os ritmos percebidos pelo homem em rápidos e lentos", o centro se
localizando entre 60 e 80BPM (cf. Schafer 2001:316; cf. p.319). Em sua "investigação etnomusicológica do
Techno", Mizrach descobriu que há um esforço por sincronizar o pulso da música aos "ritmos infracircadianos do
corpo e o EEG do cérebro" (Mizrach *1996b:6). Vale notar, porém, que tomando os ritmos corporais como um
padrão para a divisão dos ritmos musicais entre rápidos e lentos, então o intervalo de velocidades medianas da

330
poderes especiais (desde a simples predisposição ao movimento até a produção automática do
transe160) a velocidades específicas dentro do intervalo de 120 a 140BPM com base nas suas
relações com os ritmos naturais do corpo humano.161 E uma vez havendo relações entre os ritmos
humanos naturais e os seus ritmos musicais de preferência, então é de se esperar que velocidades
fora da média sejam relacionadas a ritmos humanos fora do normal, como quando músicas a mais
de 150BPM ou a menos de 100BPM são associadas a estados de ânimo exaltados ou
letárgicos.162 Mas se é verdade que há alguma relação entre esses ritmos biológicos e as
velocidades de preferência para a música eletrônica de pista, talvez seja menos o caso de explicar
essas preferências "culturais" a partir de uma base "natural" e mais de procurar, na própria
coincidência, a base de um sistema que se forma justamente a partir da relação entre o som e o
movimento. Leon Van Noorden e Dirk Moelants, por exemplo, propõem que comparemos os
movimentos corporais da dança a um "oscilador ressonante": "É como se estivéssemos ressoando
no tempo da música".163 Assim como um sistema físico possui uma freqüência natural de
ressonância (uma freqüência na qual, se estimulado, ele vibra de maneira especialmente forte),
um fator de resistência (uma intensidade mínima abaixo da qual a vibração não causa efeito) e
uma margem de tolerância (um intervalo maior ou menor de freqüências capazes de estimulá-lo),

música eletrônica de pista (entre 120 e 150BPM) pode ser considerado de ritmos rápidos (cf. James 1952:405;
Tagg 1997:2).
160
Reynolds conta que, segundo Genesis P-Orridge, 125BPM é "a velocidade primordial que induz ao transe e
estimula as ondas alfa e conecta as músicas árabe, indiana e aborígine" (Reynolds 1999:150), e segundo um nativo
"um ritmo forte entre 130 e 150BPM alterará automaticamente a consciência [will alter consciousness by default]"
(Duncan *1997).
161
Sobre 120BPM, que Mizrach (*1996b:3) afirma ser a velocidade "perfeita" para música eletrônica de pista:
"Alguns ravers dizem que preferem músicas a 120BPM pois elas simulam o som das batidas do coração como
escutadas por um feto no útero" (Fritz 1999:72); "a música, tocada a exatos 120BPM, a velocidade dos batimentos
cardíacos de um feto, nos conduz a um estado de conexão atemporal com o útero maior – Gaia" (Rushkoff
*1994:83; cf. 115, 118-9, 126, 130). O DJ nova-iorquino Frankie Bones, que se popularizou no final da década de
80 com suas Storm Raves (cf. Reynolds 1999:144), defende a velocidade ideal de 133BPM: "A velocidade capaz
de manter a pista de dança em movimento a noite toda é 133BPM. Eu toco mais rápido do que isso, mas essa é a
velocidade para um público normal. Há pessoas drogadas, pessoas bebendo, mas na média a pessoa vai querer
dançar a 133BPM. Foi isso que aprendi após dez anos tocando toda semana. Mantendo essa velocidade, você
mantém a pista de dança até de manhã. Se você começa a tocar Jungle, Happy Hardcore, Gabba, ou coisas do tipo
[todos estilos acima de 150BPM], você consegue alguns picos de testosterona, mas depois você perde a pista."
(Frankie Bones, in: Shapiro e Lee 2000:125)
162
Segundo Fritz, "Gabber Techno, com suas velocidades de até 300BPM, podem representar o batimento cardíaco
de um rato epilético sendo atacado por um gato": "A essas velocidades, tudo o que a pessoa pode fazer é vibrar no
mesmo lugar." (Fritz 1999:72) A cantora irlandesa Björk também elabora uma teoria musical sanguínea para a
música eletrônica de pista: "Batidas por minuto [...] estão completamente ligadas com o coração e com quanto
sangue é bombeado no nosso corpo. 120BPM é feliz, somos humanos felizes e você tem a Happy House. 160BPM,
que é a velocidade do Drum'n'Bass, é geralmente visto como bravo. E quando estamos bem bravos, nosso coração
vai até 160. Quando estamos calmos, queremos música para relaxar [chill-out music] ou Ambient. Nosso coração
desce até 70, ou mesmo 60. De certa forma, as batidas representam a rede sanguínea do nosso corpo" (Björk, in:
Swenson e Rule 1999:70).
163
Van Noorden e Moelants (1999:43).

331
também aquele que dança tem preferência por certos tempos musicais, exigências quanto à sua
intensidade sonora e uma margem de tolerância a variações.164 Já no campo das freqüências
havíamos nos deparado com o fenômeno da ressonância, quando distinguimos o espectro em três
faixas justamente a partir da maneira como o corpo é afetado pelo som: a aguda indicando a
ausência de ressonância, a média indicando a presença de ressonâncias localizadas e a grave
indicando a ocorrência de ressonâncias generalizadas.165 O que vemos agora é a formação de um
sistema de ressonância baseado não na vibração passiva do corpo sob o efeito de um som mas
sim na sua vibração ativa (dentro de certos limiares) em conjunto com um som, um corpo que
não apenas é vibrado mas que, acima de tudo, vibra.

***

Nossa resposta à pergunta que deu título a este capítulo parte, portanto, da constatação de que a
música eletrônica de pista funciona através da modulação, pelo som, do movimento, e propõe que
essa modulação se dá a partir de dois mecanismos básicos – a captura do movimento e a sua
manutenção – e de três parâmetros principais – a intensidade, a freqüência e a velocidade.
Tudo começa com a captura do movimento, operação que, como vimos, foi aperfeiçoada
pela "ciência do breakbeat". Sem essa captura, sem a ruptura que ela representa entre dois
regimes de movimento muito diferentes (um indiferente ao som e outro em correspondência
direta com ele), não teremos as condições mínimas essenciais para a concretização de um corpo
coletivo sonoro-motor. O movimento imperceptível do som se torna perceptível pela dança à
medida em que o som imperceptível da dança se torna perceptível na música. Mas vimos também
que há uma grande diferença entre a captura do movimento e a sua manutenção, e uma
experimentação controlada com o corpo sonoro-motor concretizado pela captura do movimento
só é possível se esse movimento puder ser mantido pela proposição de uma grade abstrata que
distribuirá pontos privilegiados nos quais uma sincronização entre som e movimento deve
ocorrer. O pulso constante metronômico foi a solução encontrada historicamente para o problema
da manutenção do movimento, caracterizando a contração da duração específica ao corpo sonoro-

164
"[H]á um tempo ótimo e limiares superiores e inferiores para a repetição de movimentos corporais junto com
música" (Van Noorden e Moelants 1999:43). Todd et al. também corroboram a teoria da ressonância quando
afirmam, com base em cálculos relativos à mecânica do corpo humano, que "o torque é mínimo quando a
freqüência desejada corresponde à freqüência natural do sistema": "Há, portanto, razões óbvias para que o sistema
prefira manter-se o mais próximo possível de sua freqüência natural ou de preferência." (Todd et al. 1999:9)
165
Não estamos nos referindo neste momento ao aparelho auditivo – que é baseado na ressonância e portanto ressoa
sempre que há a percepção de som –, mas sim ao corpo em geral (cabeça, tronco e membros).

332
motor concretizado graças à sincronização entre a música e a dança e entre músicas diferentes.
Uma vez capturado e mantido, o movimento se presta assim às experimentações que distinguem a
música eletrônica underground da mainstream e que são realizadas principalmente através dos
três parâmetros básicos propostos.
Quanto à intensidade, o fato de que a música eletrônica de pista não funciona a menos do
que 90dB coloca um limite mínimo para que o processo de individuação do corpo sonoro
coletivo na pista de dança se inicie. Existem pelo menos dois motivos para isso: (1) abaixo desse
limiar de intensidade as relações intersubjetivas provavelmente permanecem ainda muito
presentes através das conversas; e mais importante ainda, (2) abaixo desse limiar de intensidade o
som (principalmente as freqüências mais graves) deixa de ter o impacto físico no corpo que
promove a imersão no meio vibratório préindividual. A intensidade tem, portanto, esse duplo
papel de contribuir para o rompimento da pessoa com o mundo comunicacional humano através
da dificultação da comunicação verbal e de imergir o corpo em um meio vibratório préindividual
do qual surgirá o novo indivíduo coletivo sonoro através do transe maquínico. Muitos outros
estilos musicais amplificados eletronicamente (notavelmente o Rock) também dependem de altas
intensidades para funcionar, igualmente isolando as pessoas em um mundo sonoro imersivo,
porém, como já vimos, há uma grande diferença entre instrumentistas e maquinistas, entre ser a
fonte energética que produz o som ou ser a maquinaria de decisão que o libera. No primeiro caso,
o som produzido está diretamente relacionado às constantes variações expressivas do
instrumentista, no segundo, o som liberado não depende dessas variações.
No caso das freqüências, essa especificidade maquínica da música eletrônica radica no
fato de que, enquanto para o instrumentista faz toda diferença tocar um instrumento percussivo,
de corda ou de sopro, para o DJ todos eles se igualam enquanto manifestações de um mesmo
espectro sonoro. Em outras palavras, na relação com o seu público, o DJ de música eletrônica de
orientação maquínica não trabalha com notas, acordes, melodias, harmonias, todo o vocabulário
musical do instrumentista que precisa produzir sons específicos através da manipulação de seu
instrumento, mas apenas com a liberação controlada de freqüências. Para o DJ, aquilo que
realmente importa em um som é o seu efeito no público quando amplificado a altas intensidades.
Por isso, a modulação cuidadosa das três faixas de freqüências, às vezes suprimindo-as, às vezes
intensificando-as (cf. Imagem 20), é muito mais importante do que uma seqüência de notas ou
um campo harmônico em particular. Evidentemente, existem DJs mais interessados na linguagem
musical do que outros e há toda uma dimensão harmônica e melódica na música eletrônica de
pista que pode ser trabalhada pelo DJ em suas mixagens, mas tudo isso é secundário da
333
perspectiva do transe maquínico que está muito mais ligado aos efeitos de sons extremamente
intensos e de diferentes freqüências sobre o corpo.
No caso das velocidades, a especificidade da música eletrônica reside no duplo processo
de automação e simplificação da base rítmica. Como vimos, a partir de meados da década de 70,
as músicas destinadas às pistas de dança foram rapidamente desenvolvendo uma espécie de
linguagem comum baseada na precisão metronômica e no pulso constante que culminou, na
primeira metade dos anos 80, na criação da House e dos estilos mais maquínicos de música
eletrônica, baseados em faixas (tracks) mais do que em canções. Ao mesmo tempo em que o
baterista (quando não toda a banda) era eliminado junto com suas oscilações expressivas de
velocidade, a própria base da música era reduzida a um pulso constante e impessoal que guarda
muito mais parentesco com um sinal sincronizador de máquinas do que com um ritmo musical.
Isso permitiu não apenas a sincronização precisa de duas ou mais gravações diferentes pelos DJs
(cf. Imagem 21),166 mas também a especialização crescente do público em faixas de velocidade
particulares (cf. Imagem 22), fazendo da dança (i.e., da sincronização dos movimentos do
público com o som) a porta de entrada para um transe exclusivo à sociedade tecnológica e que
chamamos de maquínico.
Se, como vimos, o transe maquínico pode ser compreendido como a introdução de um
elemento disruptor nas relações habituais entre o sujeito e o mundo – uma intromissão capaz de
colocar em suspenso as suas relações habituais e permitir a experimentação temporária com
relações alternativas –, então parece-nos que no caso da música eletrônica de pista a captura do
movimento poderia ser descrita como a introdução de uma mediação ativa entre certos sons e
certos movimentos, a manutenção do movimento como a manutenção eficaz dessa mediação e a
modulação do movimento pelos parâmetros básicos de intensidade, freqüência e velocidade como
um acesso controlado ao movimento a partir do som e através dessa mediação eficaz. Trata-se
efetivamente de um transe, pois uma vez capturado o movimento coloca a pessoa em uma relação
alterada com o mundo, determinada por outras contrações da duração. Trata-se de um transe
maquínico, pois essa relação alterada com o mundo se caracteriza pela explicitação da submissão
aos imperativos de uma máquina da qual se é uma parte (uma máquina que, como vimos, não é
determinada por nenhuma instância transcendente à sua própria dinâmica produtiva).

166
Uma vez que as duas gravações têm como base um pulso constante e metronômico, basta que as suas velocidades
sejam igualadas pelo controle da velocidade da máquina reprodutora (o pitch do toca-discos) para que ambas
possam ser reproduzidas simultaneamente de maneira sincronizada. Como já vimos, isso seria impossível no caso
de músicas cuja base é produzida por instrumentistas humanos, pois as velocidades relativas das duas gravações
oscilariam constantemente.

334
Tornando-se linguagem de máquina, "computadores conversando entre si",167 a música
eletrônica de pista se tornou ela mesma o som de uma máquina cujas peças são, entre outras
coisas, pessoas em movimento, dançando em transe maquínico. Poderíamos dizer que enquanto o
break e o pulso constante condicionam a formação do corpo dessa máquina – capturam e
concretizam seus componentes e lhes impõe um modo particular de existência –, os três
parâmetros básicos constituem os controles pelos quais ela pode ser operada e conduzida numa
determinada direção – o controle das intensidades, como um motor que determina os limiares de
potência da máquina (o mínimo, de 90dB, abaixo do qual ela não funciona, e o máximo, de
130dB, acima do qual ela ameaça destruir suas próprias peças técnicas e orgânicas); o controle
das freqüências, como uma caixa de câmbio que coordena o engate de suas diferentes peças (as
três faixas correspondendo a três níveis possíveis e diferentes de engate); e o controle das
velocidades, como um pedal de aceleração que controla a sua velocidade de funcionamento (cada
estilo com suas próprias velocidades máxima e mínima, a maioria se concentrando entre 120 e
150BPM). A energia dessa máquina de transe vem tanto da rede elétrica que alimenta as
máquinas técnicas quanto do metabolismo das pessoas maquinadas, o DJ limitando-se a liberar e
modular essa energia através dos seus parâmetros de controle. O importante é perceber que o DJ
é um maquinista maquinado, que o seu controle sobre a máquina não é maior do que o controle
que a máquina tem sobre ele. Isso pois a máquina da música eletrônica é uma máquina desejante,
seu funcionamento coincidindo com sua formação e o seu produto sendo apenas a sua própria
auto-produção contínua, i.e., a contínua coevolução entre som e movimento. E é justamente sobre
essa coevolução que encerraremos nosso trajeto.

167
DJ Juan Atkins, in: Brewster e Broughton (2000:335).

335
336
Considerações
Finais

337
338
Pô, deixa eu pegar umas coisas diferentes aqui,
vamos fazer umas experiências.1

1
DJ Arlequim, no momento em que decide partir das "musiquinhas que têm umas formulazinhas mais prontas, que
você sabe que você toca e o pessoal dança", para uma música mais "grossa" e "indigestível", que então "foi
entrando nas pessoas" e "fechou um ciclo": "parece que eu tinha entrado na música, e a música entrou na pista e a
pista entrou em mim" (DJ Arlequim, entrevista por telefone 1, novembro de 2001; cf. no Capítulo 2 a seção "As
dinâmicas rituais do DJ Arlequim", acima).

339
340
Na Parte I desta tese entramos em contato com o discurso nativo sobre a relação entre
xamanismo e música eletrônica (cosmologias) e sobre certas técnicas xamânicas usadas na
música eletrônica (ritologias). Poderíamos sintetizar esse discurso nos seguintes dois pontos:

• Quanto aos aspectos cosmológicos, tudo se baseia na idéia de que a realidade é composta
por dois níveis, um determinante e oculto e outro determinado e manifesto, o xamanismo
consistindo num conjunto de técnicas capazes de operar uma mediação particularmente
produtiva entre os dois níveis, trazendo para a realidade manifesta novos conhecimentos e
potências (criação, transformação) e levando para a realidade oculta novas experiências
(introspecção, concentração). O underground, o mainstream e o overground entram aqui
como análogos da dimensão oculta da realidade, da sua dimensão manifesta e de uma
mediação ideal entre elas, respectivamente.

• Quanto aos aspectos ritológicos, tudo se baseia na produção de um estado de transe, que
além de envolver uma série de fatores contingentes, exige necessariamente uma
predisposição do DJ em se esforçar para conduzir o público através de experimentações
musicais (geralmente enfatizando a repetição hipnótica) e do público em se deixar levar
por essas experimentações.

Vimos também que a especificidade da música eletrônica de pista frente à música popular
tradicional revela-se na ausência de um sujeito formal de enunciação (a ausência do pop-star, a
"dissolução do ego", o anonimato etc.), na ênfase na repetitividade e na tecnicidade em oposição
a uma estrutura narrativa e expressiva (a natureza "mântrica" da música eletrônica, sua relação
com o transe) e na sua maior universalidade estética (sua percebida transculturalidade). Além
disso, vimos que apesar da ênfase no DJ, apesar de seu papel central no ritual da música
eletrônica, não é ele o pólo indispensável da relação xamânica que caracteriza esse ritual, mas
sim o público. Em outras palavras, pode haver xamanismo na música eletrônica mesmo quando o
DJ não é xamânico (isso pode ocorrer, por exemplo, quando fatores contingentes diversos, a
qualidade das músicas em si ou a predisposição do público bastam para provocar uma
experiência considerada xamânica), mas não sem um público predisposto a ser xamanizado, de
forma que mesmo sendo um tema comum no discurso nativo e na literatura e mesmo sendo
verificada em muitos casos, a associação direta entre o DJ e o xamã não deve ser considerada
essencial ao xamanismo na música eletrônica. Essa foi uma descoberta surpreendente, que mudou
radicalmente a idéia que tínhamos inicialmente sobre o tema: afinal, se podemos falar de
xamanismo na música eletrônica mesmo quando o DJ não é considerado um xamã, então quem é
"o xamã" do ritual quando o DJ não é xamânico?

341
Na Parte II, entramos em contato com a clássica teoria de Eliade do xamanismo como
um conjunto de "técnicas arcaicas do êxtase" e também com a maneira como a Antropologia
(principalmente aquela que trabalha com ameríndios) aborda as complexidades do contato dos
povos indígenas com a tecnologia da sociedade capitalista, enfatizando o impacto desse contato
nos mitos e nos rituais xamânicos. Poderíamos sintetizar nossas descobertas nessa segunda parte
nos seguintes três pontos:

• O xamanismo consiste em um conjunto de técnicas do êxtase capazes de colocar o mundo


humano em contato controlado com outros níveis do cosmos e assim mediar suas inter-
relações, como na comunicação ritual entre o tempo mítico (perspectiva determinante do
outro que importa) e o tempo presente (perspectiva determinada humana habitual) através
do axis mundi (conversor de perspectivas).

• Segundo o discurso indígena, o branco e suas tecnologias foram criados no tempo mítico
junto com todos os outros grupos humanos e suas respectivas tecnologias e o contato
histórico com eles é, por isso, vivido pelos índios como um retorno do tempo mítico: um
período de transição cheio de perigos e promessas entre uma velha e uma nova ordem que
ameaça se consumar em uma ruptura análoga à primordial (tendências milenaristas e
messiânicas).

• O contato com o branco tende a gerar uma intensificação do xamanismo e os xamãs, por
sua vez, tendem a incorporar máquinas e tecnologias modernas em seus rituais em seu
esforço tradicional de "domar" as forças cósmicas liberadas pelo retorno descontrolado do
tempo mítico. A maneira como essa incorporação é feita, no entanto, sugere que as
técnicas do êxtase, antes concentradas no corpo do xamã, passam a ser assumidas pelas
máquinas,2 e que o xamanismo contemporâneo se distingue do tradicional pelo
deslocamento da ênfase, do controle individual das potências sobrenaturais através de
relações com os seres da floresta, para o controle distribuído das potências sobrenaturais
através de relações com as máquinas.

Consideramos essa segunda parte de nossa pesquisa de extrema importância para o trabalho que
desenvolvemos na Parte III, visto que foi a partir dela que o xamanismo da música eletrônica
conhecido na primeira parte pôde ser colocado em perspectiva e compreendido em um contexto
mais amplo, talvez com menos pressupostos. Poderíamos sintetizar nossas descobertas nessa
terceira parte nos seguintes três pontos:

2
Ocorre-nos que a imagem que os xamãs fazem das máquinas que eles incorporam em seus rituais se aproxima mais
daquilo que Haraway chamou de "nossas melhores máquinas" – que "são feitas de raios de sol; elas são, todas,
leves e limpas porque não passam de sinais, de ondas eletromagnéticas, de uma secção do espectro" (Haraway
2000:48) – do que daquilo que Michael Taussig chamou de o "recentemente ultrapassado [recently outdated]" (cf.
Taussig 1993:230-3).

342
• O xamanismo da música eletrônica é muito melhor compreendido quando deixa de ser
buscado em sua relação com alguma essência xamânica tradicional e passa a ser visto
como uma manifestação particular da distribuição tecnológica do xamanismo
contemporâneo em geral: um devir-xamanismo da música eletrônica de pista como
contrapartida de um devir-máquina do xamanismo indígena.

• O transe que está na base do xamanismo da música eletrônica de pista tem como elemento
distintivo a sua qualidade maquínica e se define pela experiência de maquinação pelo
som: a pessoa se percebe como uma peça de uma máquina sonoro-motora.

• A máquina sonoro-motora formada pelo transe maquínico da música eletrônica de pista


pode ser analisada a partir dos dois mecanismos básicos que a produzem e que
determinam o seu funcionamento – a captura do movimento pelo break e a sua
manutenção pelo pulso constante – e pela maneira como são usados os principais
parâmetros técnicos através dos quais ela é operada – os valores da intensidade sonora
geral, de cada faixa de freqüência em particular e da velocidade da música, assim como a
maneira como eles variam.

Os dois primeiros pontos retomam questões levantadas nas duas primeiras partes desta tese,
indicando (mais do que explicitando) que é na convergência do devir-máquina do xamanismo e
do devir-xamanismo da música eletrônica que este último é aqui compreendido – o transe
maquínico como a base do xamanismo da música eletrônica, permitindo a mediação entre a
realidade determinante dos maquinismos moleculares inconscientes e a realidade determinada
dos mecanismos molares conscientes. O terceiro ponto é o esboço de uma metodologia para
pesquisas futuras sobre as técnicas do êxtase na música eletrônica de pista baseada nessa teoria
maquínica. Poderíamos mesmo dizer que a pesquisa que resultou nesta tese foi, principalmente,
um longo trajeto rumo à proposição dessa metodologia e do campo ao qual ela poderia ser
aplicada. Nossa proposta poderia ser sintetizada na idéia de que a música eletrônica de pista (ou
pelo menos suas vertentes mais voltadas para a produção do transe pela estética da repetição) é o
som de uma máquina, em si mesma a manifestação possível de um xamanismo distribuído, que
se concretiza em graus variados na pista de dança à medida em que os movimentos das pessoas
são capturados pelo som da música e modulados pelo DJ através desse som. O estudo desse tipo
de música eletrônica seria, assim, o estudo dessa máquina (coletiva, sonoro-motora, desejante e
xamânica) e de seu modo de funcionamento a partir da localização de seus mecanismos de
captura, de seus limiares de concretização, de sua dinâmica de intensidades, de sua distribuição
de freqüências e de suas velocidades. Tal método poderia ser usado para analisar, entre outras
coisas, samples e loops como peças e mecanismos disponíveis para a construção de máquinas
sonoro-motoras, uma música como peça de máquina ou como uma máquina em seu próprio

343
direito, um set como uma dinâmica de concretização e modulação de uma máquina, uma festa
periódica como a evolução de concretização de uma máquina mais consistente através de suas
repetidas concretizações contingentes, um DJ como um maquinista mais ou menos hábil na
concretização de sua máquina etc. Em todos esses casos, a inovação de nosso método seria tomar
a própria máquina sonoro-motora, seus graus de concretização e seu modo de funcionamento,
como objeto de estudo, todo o resto contribuindo como meio de acesso a ela, como seus vários
aspectos. Seria preciso, porém, uma outra pesquisa para verificar a eficácia desse método, visto
que aqui pudemos apenas elaborar as suas linhas gerais.
Gostaríamos, de qualquer forma, de encerrar esta etapa de nosso trajeto com uma breve
consideração acerca de um conceito nativo que parece não apenas sintetizar a experiência de
transe maquínico mas já indicar a produtividade da orientação conceitual que aqui propomos.
Trata-se do conceito de vibe.

A máquina ressonante da música eletrônica


Vibe é, literalmente, vibração, e designa um fenômeno de ressonância coletiva do público a partir
do som tocado pelo DJ, análogo à ressonância de um objeto material qualquer com um som
específico.3 É comum encontrar DJs falando sobre como é importante sentir a vibe4 da pista no
momento de definir o seu set (ao invés de tocar um set pré-estabelecido), sobre como a vibe da
pista é uma das principais fontes de informação a partir da qual ele poderá planejar sua entrada e
o desenrolar de sua apresentação e sobre a centralidade da vibe enquanto parâmetro a partir do
qual julgar o sucesso de sua apresentação.5 É comum também encontrar referências à ausência de

3
Ou, em termos nativos: "Vibe é a abreviação de vibração, seria tu conseguir pegar [...] no ar as ondas [...] de
vibração da música, do ambiente, e conseguir entrar em sintonia, isso é a vibe" (Francisco, in: Fontanari 2003:131).
4
Encontramos na literatura e no discurso nativo o uso do termo inglês vibe tanto no masculino (o vibe) quanto no
feminino (a vibe). Empregamos aqui, para manter a consistência com o trabalho de Fontanari, a sua versão
feminina.
5
E.g.: segundo Reighley, o DJ deve "se ligar na vibe da galera [hook up with the vibe of the crowd]" (Reighley
2000:148), e de fato o princípio é declarado por DJs dos mais diversos estilos: o DJ de Drum'n'Bass Marky
comenta que "se você faz um set na sua casa, não sente a vibração da pista, das pessoas" (DJ Marky, in: Assef
2003:192); o DJ de Drum'n'Bass Jumping Jack Frost conta que "confere a vibe da festa e segue aquela vibe que já
foi gerada" (Jumping Jack Frost, in: Reighley 2000:134-5); o DJ de Disco David Mancuso revela que escolhe qual
disco tocar "seguindo a trilha sônica nas vibrações" (David Mancuso, in: Reighley 2000:140); o DJ de Black Music
Luizão considera o "grande barato do verdadeiro discotecário [...] a sensação de ter apertado o botão certo e ter
criado aquela vibração" (DJ Luizão, in: Assef 2003:89); e o DJ Terence Parker conta que o princípio funcional que
orientava a escolha das músicas pelos DJs de Garage da Nova Iorque dos anos 80 era a manutenção da vibe, pois
"desde que a mesma vibe fosse mantida, a música funcionaria" (DJ Terence Parker, in: Fritz 1999:70). Como disse
o músico Chico Correa: "O DJ [...] vê a vibração que está na pista e muda o BPM" (Chico Correa, entrevista por
telefone, dezembro de 2001).

344
vibe em clubes e raves comerciais,6 em eventos menos comprometidos com uma cena específica7
ou em situações de bifurcação estilística.8 Considerando o delicado equilíbrio entre inovação e
redundância encontrado na música eletrônica de pista, Reynolds concluiu que a previsibilidade
normalmente encontrada nesse tipo de música se explica não pelo medo de inovar, mas sim pelo
"desejo de criar uma vibe: um clima cheio de sentido e emoção que materializa uma certa visão
de mundo e postura perante a vida".9 A vibe é, segundo Thornton, um dos principais elementos
legitimadores da autenticidade de um DJ,10 e segundo Fritz, além de ser o principal parâmetro a
partir do qual é avaliado o sucesso de uma festa, "a vibe é o eixo central em torno do qual tudo
gira", o índice eficaz de uma "dinâmica coletiva positiva" e "um epicentro a partir do qual as
poderosas vibrações positivas geradas na festa se espalham para toda a sociedade".11
Já nos deparamos diretamente com o conceito de vibe nas referências de Cláudio Manoel
ao "xamã cibernético" que "mixa, mistura, aumenta e diminui as bpms, as velocidades das
batidas, o ritmo dos sons repetitivos e minimalistas", "controla o êxtase, a vibração (vibe), a
energia" do "ritual coletivo da dança" e "procura criar o clima, o vibe, para o prolongamento de
um estado de espírito comum aos dançarinos",12 na referência de Fraser Clark ao uso da
tecnologia pelo tecnoxamã "para ajudar a espalhar a vibe, [...] mapeando a tendência do caminho
a seguir"13 e na declaração do DJ Terrence Parker de que o Techno tem "uma vibe
completamente diferente" daquela da House.14 Indiretamente e de maneira implícita, o conceito
apareceu em diversas outras ocasiões, em especial: nas referências de Fry às diferenças entre a
música popular tradicional e a música eletrônica de pista (que seriam vibes completamente
diferentes), à "batida contínua [que] nos força a nos sintonizar com nosso próprio ritmo e humor,
agindo como uma ponte que nos conecta a nós mesmos e a cada um de nós" e à música em alto

6
Fontanari cita um nativo falando de um clube noturno "[nem um] pouco alternativo" cujos organizadores "gastam
grana" para trazer DJs de renome "só que os DJs [...] nem gostam de tocar ali, porque não tem vibração nenhuma"
(Juliano, in: Fontanari 2003:109). Palomino fala como "top-ravers" deixaram de freqüentar os "megaeventos" em
que se transformaram as raves comerciais do final dos anos 90 afirmando que com tanto "gigantismo" o
movimento "perdeu o vibe" (Palomino 1999:140).
7
Reynolds afirma que o público "descompromissado" mais interessado em avaliar a apresentação do que em dançar
e em se vangloriar de sua individualidade do que se misturar à coletividade "não tem vibe" pois falta-lhe a
"energia" das cenas Hardcore (cf. Reynolds 1999:372-3).
8
Como quando o aumento vertiginoso da velocidade e a preferência por breakbeats das vertentes Hardcore de
música eletrônica de pista durante a primeira metade dos anos 90 fez dos gêneros ligados ao Jungle e ao
Drum'n'Bass os grandes responsáveis pela "perda da vibe" das raves (cf. Noys 1995:325).
9
Reynolds (1999:372). Cf. Langlois (1992:233).
10
Cf. Thornton (1996:65).
11
Fritz (1999:206).
12
Duarte de Souza (2001:64; itálicos no original).
13
Fraser Clark, in: Schneider et al. (*1993; itálicos no original).
14
DJ Terrence Parker, in: Fritz (1999:84).

345
volume que "exige nossa total atenção, tornando-se um ambiente sonoro que sobrepuja todos os
outros estímulos";15 nas referências do DJ Mantrix à busca inconsciente de "algo superior" por
aqueles que "praticam música binária", à sua "teoria das freqüências"16 e à dinâmica de
introspecção-elevação e criação-presentificação;17 nas referências de Mr. Lemon às "formas de
energia" que podem ser concentradas e distribuídas através do trabalho da música eletrônica com
o "estado alpha" na forma da dança18 e às dinâmicas de crescimento-concentração e
exteriorização-transformação;19 nas referências do DJ Arlequim à "abertura da cabeça" daquele
que se entrega às variações da música repetitiva;20 nas referências de Cláudio Manoel aos estados
alterados que são alcançados pela música eletrônica repetitiva e que lhe dão o "sentido tribal de
dançar";21 na maneira como diferentes DJs com diferentes "conceitos" (ou diferentes propostas de
vibes) se posicionavam diante das exigências determinantes de diferentes tipos de públicos
underground ou mainstream;22 nas referências repetidas aos poderes dos Mantras por DJ
Mantrix, Mr. Lemon – que falou em "sentir seu corpo vibrar e se encher de paz"23 – e Cláudio
Manoel – segundo quem os mantras "se baseiam na repetição e buscam uma melhor integração
do homem com o Cosmo"24 –; nas diversas descrições de transe e teorias sobre o seu
funcionamento apresentadas no Capítulo 8 – um deixar-se levar pela música numa sinergia
completa entre som e movimento –; e na própria essência do funcionamento da música eletrônica
de pista como proposto no Capítulo 9 – a imersão em um meio vibratório com intensidades,
freqüências e velocidades específicas que captura e mantém o movimento dos corpos. Em suma,
o conceito nativo de vibe permeou toda esta tese à maneira da faixa grave do espectro de
freqüências, envolvendo todas as suas páginas em um princípio elementar: a música eletrônica de
pista trabalha com vibrações, e é como partes de um contexto vibratório que devemos entender
todos os seus aspectos. Se deixamos essa consideração sobre a vibe apenas para o final de nosso

15
Fry (*1999a:A6). Cf. na Introdução a seção "A definição do tema desta pesquisa", acima.
16
Cf. Capítulo 1, acima. Citamos naquela ocasião a teoria análoga do DJ Spooky (cf. Radio-V *1999), e
encontramos ainda outra variante nativa em Prochak (2001:113).
17
Cf. Capítulo 1, acima.
18
"[A] música te tra[z] paz e que mesmo pulando muito [você] consegue fechar os olhos [e] sentir as vibrações do
som no seu corpo e na sua alma", causando assim "uma mudança em [você]" (Mr. Lemon entrevista por e-mail, 26
de agosto de 2002).
19
Cf. Capítulo 1, acima.
20
Cf. Capítulo 2, acima.
21
Cf. Capítulo 2, acima.
22
Cf. Capítulo 3, acima.
23
Mr. Lemon (entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002).
24
Duarte de Souza (2001:64). Fontanari confirma a relação entre mantras e vibe: "A mesma idéia da sílaba Oum
estaria presente na função atribuída à dança, para se chegar à vibe. Dançando seria possível entrar em sintonia com
o universo." (Fontanari 2003:143 nota 87)

346
trajeto foi porque é apenas agora que consideramos ter reunido todos os recursos conceituais e
interpretativos necessários para a plena compreensão do seu papel na nossa proposta.
Em sua pesquisa sobre a "cena eletrônica de Porto Alegre", Fontanari oferece um valioso
documento sobre o conceito nativo de vibe.25 Segundo o antropólogo, "[o] sentimento de 'vibe' é
o que melhor caracteriza a experiência da música eletrônica de pista"26 e expressões-chave do
discurso nativo se referem à "experiência de 'vibe'",27 sendo ela central para aquilo que ele
chamou de "ideologia da transcendência"28 da rave, sua "totalidade cosmológica":29 trata-se de
uma "'superação' das diferenciações que hierarquizam socialmente as pessoas na vida
cotidiana",30 de um "ir além da condição 'dada'".31 Fontanari defende uma íntima relação entre a
vibe e "o transe particular das raves, cuja experiência só é possível neste meio e em mais nenhum
lugar"32 e que depende de "um ambiente estruturado com o objetivo de produzir uma 'experiência
sensorial totalizante' para os participantes do ritual da festa". Apesar de envolver inúmeros outros
fatores além da música,33 essa "experiência sensorial totalizante" tem nela o seu principal foco,
pois cabe a ela "conectar [...] as pessoas entre si e ao ambiente":34 "O único som escutado deve
ser o reproduzido pelo DJ".35
Tendo centrado sua pesquisa nas próprias festas,36 Fontanari notou que "[n]o momento de
maior vibe [...] é reduzido o número de pessoas fazendo outra coisa na festa que não a dança" e

25
Outra consideração relevante sobre o mesmo conceito na "cena Trance de Nova Iorque" pode ser encontrada em
Taylor (2001:165-200).
26
"Apesar das particularidades de cada estilo musical, o conceito de vibe é associado à experiência da música
eletrônica em geral, [...] unificando a experiência dos diversos estilos de música eletrônica." (Fontanari 2003:152)
27
As expressões que ele lista, muitas das quais também foram encontradas em nossa pesquisa, são: "éter; vibração;
entrar em sintonia; harmonia; falta de palavras para descrever; emoção; surto; transe; sensível ao invés de
visualmente ou intelectualmente apreensível; espiritual; religioso; energia; deixar a mente livre; libertar-se do
pensamento; deixar-se levar; ficar só no som; celebração; paz; libertação do ego; união; ir embora; felicidade;
magia" (cf. Fontanari 2003:150)
28
Cf. Fontanari (2003:164)
29
Cf. Fontanari (2003:93).
30
Fontanari (2003:133).
31
Esse "ir além" envolve, segundo Fontanari, "o tempo de duração da festa; seu lugar na sociedade; superação da
resistência física que se impõe ao corpo dos ravers em tantas horas de festa; das diferenças sociais; culturais; e de
gênero; da 'persona comum', realizada no ato de 'montar-se' para a festa" (Fontanari 2003:164).
32
Fontanari (2003:167; cf. p.139 nota 83).
33
"A vibe depende de vários fatores [...]: do ostinato da música, reforçado pelas luzes; do processo neuro-químico de
liberação de substâncias presentes no corpo humano em virtude do grande esforço físico realizado na festa,
substâncias que provocam liberações emocionais; do compartilhamento de um mesmo estado com uma grande
quantidade de pessoas; do uso de substâncias psicoativas que reforçam os estados corporais anteriores; e por fim da
crença na possibilidade de seu alcance." (Fontanari 2003:139)
34
Cf. Fontanari (2003:132-3).
35
Fontanari (2003:133).
36
Fontanari distingue cinco tipos de eventos de música eletrônica – clubs, raves, festas permanentes e itinerantes,
pubs e feiras; o foco de sua pesquisa foram as raves (cf. Fontanari 2003:48-55) –, mas outras classificações são
possíveis. Bacal, por exemplo, distingue entre três tipos de "espaços-festa": clubes/boates, raves (que ela distingue

347
que a maioria das pessoas "se encontra [...] dançando e pulando, 'voltadas para si', mas centradas
na música" e "se mostra bem mais sensível às operações sonoras realizada[s] pelo DJ,
respondendo em alguns momentos com palmas e gritos que expressam satisfação".37 A
experiência de vibe depende, assim, do estabelecimento de "uma relação 'autêntica' com a
música, de estar na festa principalmente 'pela música', e não por outros motivos que
prejudicariam sua sintonia", o que excluiria "pessoas preocupadas em aderir à cultura rave pelo
seu caráter de 'moda', ou pela possibilidade que representa em termos de distinção social por ser
uma cultura nova e relativamente cara".38 "É preciso", continua Fontanari, "'saber' alcançar o
estado de vibe, pois há necessidade de uma predisposição individual e ao mesmo tempo coletiva
para isso" e "[e]xistiriam quase-prescrições que o otimizam, que conectam a dimensão
psicológica individual e a coletiva (social), por meio da 'energia', canalizada pela 'concentração' e
fluída pela 'harmonia'".39 Por tudo isso, muitos afirmam que "o único público que prezaria a
'técnica, a performance, o feeling, e a vibe', é o público underground",40 e que "[o] sentimento de
vibe, de um modo geral, é [...] um elemento de diferenciação entre os 'estabelecidos' [que seriam
aqueles pertencentes ao underground, interessados acima de tudo na música] e os 'outsiders' [o
público mainstream mais interessado em paquerar, se afirmar socialmente e estar na moda]".41
Apesar de parecer-nos excessivo afirmar que não exista vibe fora do underground (pois isso seria
negar desnecessariamente a existência de "outras vibes"), é apenas a vibe do underground que
nos interessa aqui, sendo ela não apenas aquela mais ligada às propriedades experimentais do

entre as "que ocorrem em lugares especificamente vistos como paradisíacos", as que ocorrem "nos arredores dos
centros urbanos" e as "de menor porte") e as paradas (Love Parade, Parada da Paz etc.) (cf. Bacal 2003:88-102).
Palomino propõe um quadro no qual distingue "três tipos de raves" a partir de três cidades: Londres entre 1988 e
1992, onde "as pessoas dançavam feliz e freneticamente ao som daquele novo tipo de música [Acid-House] e se
deslumbravam com a droga [ecstasy], também nova no momento"; Rio de Janeiro entre 1993 e 1996, uma
"celebração pansexual que reunia artistas e anônimos misturados aos gays mais musculosos e bonitos da cidade"; e
São Paulo de 1995 em diante, onde "jovens tomam contato com a cultura da música underground e deliram [...] sob
tendas e panos fluor [...] nas pistas cobertas de lama, até a tarde do dia seguinte" (cf. Palomino 1999:142-3). Um
exemplo de como essa espécie de tipologia pode variar indefinidamente é a seguinte proposta de Camilo Rocha: "A
experiência de dançar música eletrônica sem se preocupar com o resto do mundo se divide em três tipos principais:
dançar num clube fechado, dançar ao ar livre no meio da natureza e dançar no asfalto onde normalmente passam
carros" (Rocha *2003a). Para além de toda essa variedade, propomos aqui que uma festa de música eletrônica de
pista pode ser entendida como qualquer ocasião em que um ou mais DJs toquem para um público grande o
suficiente para gerar uma vibe.
37
Fontanari (2003:134).
38
Cf. Fontanari (2003:152).
39
Fontanari (2003:152).
40
Declaração atribuída ao DJ LK por Fontanari (2003:79).
41
Fontanari (2003:152).

348
próprio som (e não em aspectos extra-sonoros) mas também, e mais importante ainda, aquela
mais propriamente xamânica.42
Segundo Fontanari, há "uma praxis desempenhada pelo DJ, de quem se espera um bom
desempenho, e de quem se depende, em grande parte, para o alcance da vibe" pela "alteração do
ambiente da festa":

Poderíamos dizer que o foco da [...] prática ritual, na cultura da música eletrônica de pista, é a
relação estabelecida entre o DJ e o público na festa. [...] O DJ precisaria estar bem consigo mesmo
e com o seu equipamento, para assim poder sintonizar com o público, fechando uma espécie de
círculo de conexões. [...] Toda [...] ética e estética desta subcultura, ou cultura alternativa, é um
desenvolvimento associado a esta ocasião. Seu fim último é a vibe.43

De fato, "[a] comunicação entre público e DJ é diretamente relacionada à vibe",44 pois, como já
vimos, o DJ age como uma espécie de maquinista orientando a vibração coletiva a partir da
captura, manutenção e modulação do movimento. Segundo um nativo, "o que conta é a energia
da festa, [...] o nível de transe" e "quanto maior o número de pessoas que se deixar largar assim,
pelo pensamento, e ficar só no som, maior vai ser a energia da festa [...], mais vibração tu vai
emanar [...] e mais tu vai contagiar mais as pessoas ao teu redor", como "uma cadeia".45 Segundo
outro nativo, "se a vibe tá boa é porque tem tipo, um inconsciente coletivo que tá conseguindo
transmitir uma mensagem, mesmo que a gente não consiga exprimir em palavras", e para isso
ocorrer as pessoas "têm que tá em harmonia com a música, têm que tá em harmonia entre elas,
têm que tá com um alto nível de energia psíquica, basicamente, tem que tá pilhado".46 Trata-se de
um processo de materialização, por simpatia (sintonia, harmonia), de uma certa energia vibratória

42
Sobre a polêmica apresentação do artista inglês Aphex Twin no festival Free Jazz de 2001 (São Paulo), na qual ele
permaneceu a maior parte do tempo oculto frustrando grande parte da mídia e do público mainstream que "ainda
esperava uma figura em cima do palco para aplaudir e saudar" (Folha Online *2001), Cláudio Manoel declarou:
"para ele – Aphex – o que importa [é] mesmo o som, n[ã]o ele ali aparecendo. [...] [E]le apenas est[á] colocando ali
o somzinho dele, mas a platéia quer ver seu astro pop, em vez de fechar os olhos e ouvir as textu[r]as caóticas da
m[ú]sica eletr[ô]nica contemporânea. Aphex é um dos poucos que [...] respeita a cultura do segredo, um alimento
da e-music underground q[ue] vem desde os anos 70 com kraftwerk – 'a música é o que importa'." (Cláudio
Manoel, e-mail enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 1 de novembro de 2001) Sobre o mesmo episódio, outro
nativo vai na mesma direção: "Agora, rostos são menos importantes do que a música, a atitude tem que estar no
som, [...] É como se o conceito de festa subvertesse o de show e de repente o importante não é mais olhar para o
palco, para a pessoa no palco, mas para seu parceiro de dança, para dentro de [você] mesmo." (André Silva, e-mail
enviado à lista "Pragatecno Brasil" em 1 de novembro de 2001) Assim, quando falamos na vibe da música
eletrônica underground, ligada ao seu xamanismo, falamos de uma vibe que se distingue por ser centrada numa
experiência sonoro-motora, mesmo que outras dimensões da experiência tenham também sua importância no
conjunto.
43
Fontanari (2003:140, 155).
44
Fontanari (2003:137).
45
Juliano, in: Fontanari (2003:133).
46
Francisco, in: Fontanari (2003:131). Estar "pilhado", Fontanari não deixa dúvidas, é estar "com energia, como uma
'pilha'" (Fontanari 2003:152).

349
coletiva. O DJ não apenas estimula a materialização dessa energia através da sondagem dos
limiares de ressonância da máquina coletiva que tende a se concretizar em sua pista de dança,
mas também passa a operá-la – como um maquinista maquinado, é bom lembrar, pois ele faz
parte do circuito da própria máquina47 – a partir do momento em que ela começa a funcionar.
O fato de que, segundo o discurso nativo, "cada estilo tem a sua vibe, [...] uma vibração
diferente", de que "aqueles estilos que a gente prefere são aqueles que estão mais próximos da
nossa vibração normal", de que "o gosto vem da capacidade da pessoa, da facilidade que ela tem
de entrar na vibe de cada estilo" e de que a pessoa "sente mais a vibe porque na verdade ela entra,
ela encaixa melhor as ondas dela com as da música, emparelha com mais facilidade",48 apenas
confirma que as teorias supracitadas que interpretam a dança como um fenômeno de ressonância
parecem estar, pelo menos quanto à música eletrônica de pista, na "pista" certa.49 Da mesma
forma, o fato de que o transe maquínico da música eletrônica pode ser descrito como um
"sentimento de leveza, de libertação, de catarse, de realmente deixar o corpo, de transcender, de
libertá-lo das próprias intenções mentais e conscientes do 'ego' de dominá-lo, para que siga os
movimentos da música enquanto o eu consciente deleita-se de modo arrebatador ao apreciar o
fenômeno de ver a sua própria carne movendo-se sozinha em função da música",50 ou como um
"esquecimento do eu [que] seria decorrente do 'deixar-se absorver pela música', um ato que
privilegiaria o inconsciente, pois a principal experiência da festa seria a da transformação de
sensações auditivas (e visuais), em estímulos para os músculos, [...] uma reação imediata e

47
Como bem notou Timothy Taylor em sua pesquisa sobre a "cena Trance de Nova Iorque": "Não pode haver uma
festa sem um DJ, mas o DJ não é o centro da festa. [...] O importante é manter a energia da pista de dança [...].
Portanto, a preocupação do público é menos com a qualidade do DJ, que não é o gênio solitário típico da cultura
Ocidental, e mais com a qualidade e presença da [...] vibe." (Taylor 2001:198) "As pessoas apreciam um bom DJ e
criticam um DJ ruim, mas o que realmente importa é a presença e qualidade da vibe, que não depende apenas dos
esforços do DJ." (Taylor 2001:196) Taylor cita um depoimento nativo que diz: "Um DJ pode tentar mover a festa em
uma direção particular, mas idealmente essa direção se inspira na própria festa. Se o DJ [...] não se preocupa com as
sutilezas do groove então as aberturas apropriadas ao movimento e às trocas de marcha serão perdidas ou ignoradas e
a vibe será comprometida." (depoimento, in: Taylor 2001:199)
48
Francisco, in: Fontanari (2003:113).
49
Como já vimos no Capítulo 9, acima, Van Noorden e Moelants defendem a tese de que a dança funciona como
um "oscilador ressonante", que ao dançarmos "[é] como se estivéssemos ressoando no tempo da música" e que "há
um tempo ótimo e limiares superiores e inferiores para a repetição de movimentos corporais junto com música"
(Van Noorden e Moelants 1999:43), e Todd et al. vão na mesma direção concluindo que se "o torque é mínimo
quando a freqüência desejada corresponde à freqüência natural do sistema" então há "razões óbvias para que o
sistema prefira manter-se o mais próximo possível de sua freqüência natural ou de preferência" (Todd et al.
1999:9). Vale citar ainda a menção de Dorothy Swainson a uma certa "teoria do sir Henry Head" segundo a qual
"da mesma forma que um objeto de metal pode atormentar um pianista quando vibra em simpatia com uma nota
específica, o organismo humano vibra com certas notas em especial, que variam em altura e intensidade de pessoa
para pessoa", o que explicaria "porque tantas pessoas têm preferência por tons específicos e por músicas tocadas
nesses tons" (Swainson 1931:395).
50
Fontanari (2003:167-8; itálicos no original).

350
impulsiva para o sistema motor, não passando pelo pensamento consciente",51 acaba confirmando
que as teorias supracitadas do transe como uma intromissão desautomatizadora das relações
habituais entre as intenções conscientes do sujeito e as suas conseqüências percebidas no mundo
– que, no nosso caso específico, se daria pelo estabelecimento temporário de uma conexão não
habitual entre sons e movimentos – parecem ser uma via segura para a sua compreensão.52 Enfim,
o fato de a situação arquetípica da criança sendo empurrada num balanço ser evocada para
exemplificar ao mesmo tempo o prazer da dança,53 suas relações com o transe54 e o fenômeno
físico de ressonância55 sugere que estamos lidando com um fenômeno que, mesmo sendo
exclusivo à música eletrônica de pista, pode ser compreendido como um caso particular de um
fenômeno muito mais geral.
Vibe é um conceito central na música eletrônica de pista pois faz convergir a sua
cosmologia e a sua ritologia, fazendo do transe coletivo e compartilhado um fenômeno energético
de concentração, sincronização, harmonia e ressonância tendo, de um lado um DJ competente, do
outro um público predisposto, e entre eles a concretização de uma conexão inconsciente e
contagiante entre as pessoas e entre elas e o ambiente, formando um circuito que transmite uma

51
Fontanari (2003:168 nota 100). Bacal descreve a experiência em termos análogos: "Esse desaparecimento entre a
divisão do 'eu' e da 'música', já que esta pulsa dentro de cada um, habilita ao mesmo tempo uma total concentração
e uma absoluta desconcentração em relação ao entorno. Essa união entre os elementos 'eu' e 'música' gera uma
sensação em que se perde a noção de que movimentos estão sendo empregados; é como se os membros do corpo se
movessem por si próprios." (Bacal 2003:120) Encontramos algumas propostas promissoras para a compreensão e
explicação das bases psicossociais da relação entre som e movimento (e.g. Godoy 1997, 2003; Cross 2001;
Emmerson 2001; Ostertag 2002; Janata e Grafton 2003; Vickhoff e Malmgren 2004) que merecem ser trabalhadas
no futuro.
52
Vimos no Capítulo 8, acima, como Gell define o transe como uma transformação mais ou menos duradoura das
relações da pessoa com o mundo a partir da interposição de uma mediação não habitual entre as suas intenções
conscientes e as suas conseqüências percebidas (cf. Gell 1980:239-46) e como Rouget encara a música como "um
estímulo à dança" que "parece ser capaz de modificar profundamente a relação do self consigo mesmo ou, em
outras palavras, a estrutura da consciência" (Rouget 1985:121) e eventualmente admite que "[a] principal função da
música parece ser a de manter o transe, como uma corrente elétrica mantém a vibração de um diapasão quando
sintonizada à sua freqüência fundamental" (Rouget 1985:325).
53
Todd e Cody sustentam, com base em mecanismos psicofisiológicos e experimentos de laboratório, que as
sensações de movimento induzidas por música alta e balanços são "igualmente prazerosas" (cf. Todd e Cody
2000:500).
54
Segundo Gell, "[o] ato de balançar está ligado à experiência lúdica da vertigem e com a íntima relação entre
equilíbrio e desequilíbrio corporal e estados de consciência", e conclui: "o balanço é um artefato cuja função é
modificar estados de consciência" (Gell 1980:221) e "participa da mecânica de indução do transe" (Gell 1997:444).
55
Hall define ressonância como aquilo que ocorre quando a força motora de um sistema em oscilação age na sua
freqüência natural de oscilação, empurrando para a direita quando ele se move para a direita e para a esquerda
quando ele se move para a esquerda e assim realizando "trabalho positivo". Ele menciona a analogia típica da
criança no balanço: "Você só consegue gerar oscilações de grande amplitude com empurrões suaves quando os
empurrões estão sincronizados com a oscilação natural do balanço." (Hall 1991:33) Outras referências ao balanço
para explicar o fenômeno de ressonância foram encontradas em Van Noorden e Moelants (1999:44) e em
Commtest Instruments (2003:7-8).

351
mensagem cujo conteúdo é uma sinergia absoluta entre som e movimento.56 A vibe ocorre
quando essa sinergia som-movimento se alastra para todo o público e este se torna uma só
máquina desejante e social vibrando com o som. O importante aqui é perceber que se a dança e o
transe são encarados como fenômenos de ressonância, então é sondando os limiares de
ressonância da pista de dança que o DJ pode encontrar os sons certos para explorar o potencial
xamânico da música eletrônica de pista: a mediação entre os dois níveis da realidade (o
determinante e inconsciente, tornado manifesto pela experiência de maquinação, e o determinado
e consciente, usado como meio de manifestação57) através do transe da dança. Seria instrutivo
neste ponto considerar um sistema físico que, como já vimos, guarda muitas semelhanças com a
própria música eletrônica de pista: uma máquina em funcionamento.
Toda máquina técnica possui, pelo efeito acumulado de seu mecanismos e das forças que
agem sobre ela, uma freqüência natural de ressonância, que é geralmente audível.58 Essa vibração
pode ser diminuída por meio de amortecedores e modificações no mecanismo, aumentada pelo
desgaste das suas peças ou por influências externas ou mantida constante através de uma
manutenção periódica (cf. Imagem 23).59 Uma máquina só deixa de vibrar quando pára de
funcionar e, enquanto funciona, ela pode vibrar mais ou menos dependendo da sua manutenção
interna ou das suas relações com o seu exterior. Essa variação da vibração pode ser algo desejado
ou indesejado dependendo da função que ela exerce, sendo um dos principais meios de
diagnóstico preventivo ou corretivo do estado de funcionamento de uma máquina, podendo
indicar seus estados preferenciais ou a necessidade de reparos (cf. Imagem 24).60 Tais

56
Segundo Rouget, "dançar a música" é "percebê-la de uma maneira particular", "retransmitindo a mensagem na
forma de movimento e não apenas recebendo ela", "'agindo' a música e não simplesmente seguindo ela" (Rouget
1985:91).
57
É assim que interpretamos afirmações como a de Rushkoff de que é nos momentos de total sinergia ressonante
entre som e movimento que "uma nova realidade se desenvolve espontaneamente" (Rushkoff *1994:114-5) e de
Bacal que nesses momentos "há a sensação de estar-se 'inventando um mundo'" (Bacal 2003:121): trata-se de
tornar manifesto um mundo sonoro-motor maquínico através da sondagem de suas faixas de ressonância.
58
Em seu tratado teórico sobre as máquinas, Joseph E. Shigley constata que "[a]s partes móveis de qualquer máquina
produzem necessariamente vibração, motivo pelo qual o engenheiro mecânico deve esperar a existência de
vibrações nos produtos que ele projeta" (Shigley 1961:438). Segundo informa o Guia para Principiantes sobre a
Vibração de Máquinas (Beginner's Guide to Machine Vibration) da empresa Commtest Instruments, uma máquina
entra em ressonância quando ela é "estimulada repetidamente por uma força em um ritmo compatível com a sua
taxa de oscilação natural" – definida como "a taxa na qual a máquina 'prefere' vibrar" – e assim "vibra com
intensidade crescente" (Commtest Instruments 2003:7-8).
59
Diversos exemplos de vibração de máquinas, suas causas e maneiras de diminuí-la podem ser encontrados em
textos introdutórios como Wowk ([s.d.]) e Commtest Instruments (2003).
60
Yoshinaga et al. (2004) oferecem um interessante exemplo de esforço governamental japonês pela prevenção da
poluição sonora provocada por construções através da criação de modelos preditivos das características acústicas
da vibração de máquinas específicas. Um exemplo de como o som produzido pela passagem do trem sobre os
trilhos pode ser usado como diagnóstico preventivo do estado destes últimos pode ser encontrado em Smith (1998).
É comum encontrar referências ao papel da vibração das máquinas como um índice de sua "saúde" (cf. Commtest

352
diagnósticos são feitos com o auxílio de gráficos produzidos a partir de informações sobre o
estado vibratório de uma máquina obtidas por acelerômetros (no caso da captação direta da
vibração) ou microfones (no caso da captação dos sons produzidos por essa vibração).61 O
importante aqui é perceber que as representações gráficas do sistema de ressonância formado pela
máquina (cf. Imagem 25) que servem de base para a avaliação de seu estado são rastros de todo
um complexo de movimentos vibratórios que evolui no tempo. Assim, todo o complexo de
movimentos que constitui a máquina em funcionamento é concentrado na oscilação de um único
ponto estrategicamente escolhido do sistema (o ponto de localização do acelerômetro, ou do
microfone), produzindo uma informação elementar sobre a sua vibração global a partir da qual
diferentes gráficos podem ser produzidos por diferentes processos, entre os quais está a inscrição
direta, em uma superfície bi ou tridimensional, da variação da posição desse ponto estratégico ao
longo do tempo. A oscilação do ponto estratégico como síntese automática de um movimento
complexo é, portanto, encarada aqui como um dado elementar na produção do diagnóstico do
sistema como um todo.62
Comparando os gráficos dos barulhos de máquinas com sonogramas de música eletrônica
de pista, além de uma semelhança superficial,63 nota-se uma analogia funcional: também os
sonogramas compõem uma síntese automática, no traço produzido pela oscilação de um ponto

Instruments 2003:9) e Giancarlo Genta, em seu tratado prático sobre a vibração de estruturas e máquinas, aponta
como um dos aspectos úteis da vibração "o fato de transmitir informação relevante sobre o funcionamento da
máquina que a produz": "Em dispositivos feitos pelo homem, a vibração [...] pode ser um sintoma de mal
funcionamento e é freqüentemente um sinal de perigo. Quando viajamos em um veículo, terrestre ou aéreo,
qualquer aumento no nível de vibração gera desconforto e é motivo de alerta." (Genta 1993:xv) A vibração de
máquinas pode mesmo ser projetada intencionalmente e portanto possuir um "propósito funcional" (cf. Commtest
Instruments 2003:3), como no caso de inúmeras máquinas usadas nos mais variados contextos (e.g. na vida
cotidiana, na medicina, nos esportes, na indústria) cuja função está diretamente ligada à vibração (e.g. peneiras,
britadeiras, raspadores, compactadores, massageadores etc.) (cf. Genta 1993:xv; Commtest Instruments 2003:3
nota 2) ou no caso de máquinas cuja vibração produz um som que transmite alguma informação útil sobre o seu
funcionamento (e.g. motores, eixos, engrenagens, freios etc.; cf. Wowk [s.d.]:1; Charley et al. 2001:1388).
Ademais, já vimos no Capítulo 8, acima, a teoria de Schafer sobre a função social do barulho das máquinas (cf.
Schafer 2001:113, 115, 368; Bijsterveld 2001:41-2).
61
Os dois principais parâmetros usados no diagnóstico de vibração de máquina a partir do som são a amplitude (dB)
e a freqüência (Hz) (cf. Smith 1998; Charley et al. 2001; Commtest Instruments 2003:18, 74, 83; Yoshinaga et al.
2004), os mesmos usados nas análises sonoras aqui propostas.
62
Chamamos de "ponto estratégico" qualquer objeto material capaz de receber vibrações de uma natureza e
transformá-las em vibrações de outra natureza através da sua concentração em um ponto espacial. No caso do som,
trata-se de transformar todo o complexo de vibrações ambientais que compõem o som em uma inscrição linear em
uma superfície ou de transformar essa inscrição novamente em som, um processo que poderíamos chamar de
transdução. Trata-se, portanto, de um "ponto", pois precisa ser capaz de concentrar o complexo de vibrações do
ambiente na vibração de um ponto capaz de produzir uma inscrição linear, e ele é "estratégico" pois deve ser apto a
vibrar em correspondência com os sons a serem inscritos e/ou com as inscrições a serem transformadas em som, o
que envolve o ajuste de inúmeros parâmetros.
63
Referimo-nos aqui ao fato de que sonogramas de diferentes trechos de música a diferentes graus de ampliação
revelam contornos que correspondem superficialmente aqueles classificados por Yoshinaga et al. (2004) como
"constante", "flutuante" e "impulsivo" (cf. Imagem 25).

353
estratégico, de todo um complexo de movimentos vibratórios. Trata-se, em ambos os casos, de
concentrar, em um ponto privilegiado, todo um complexo de movimentos que constituem o
sistema sob observação, o que revela um paralelo surpreendente entre a maneira como a
informação fornecida pelo ponto estratégico, no caso da máquina, permite ao engenheiro fazer
um diagnóstico sobre o estado da máquina, e a maneira pela qual a informação fornecida pelo
ponto estratégico, no caso da música, permite ao DJ fazer um diagnóstico sobre a sua relação
com seu público. No caso do engenheiro, trata-se de escolher o lugar certo e os parâmetros
adequados para a localização e a calibragem do sensor que sintetizará todo o complexo de
vibrações do sistema mecânico (a máquina técnica) e assim produzirá um registro gráfico a partir
do qual o funcionamento desse sistema pode ser diagnosticado e melhor conduzido. No caso do
DJ, trata-se de escolher o lugar certo e os parâmetros adequados para a localização e a calibragem
do sensor que produzirá todo o complexo de vibrações do sistema maquínico (a máquina sonoro-
motora) e assim revelará o registro fonográfico a partir do qual o funcionamento desse sistema
pode ser diagnosticado e melhor conduzido. Enquanto o engenheiro analisa o funcionamento da
sua máquina técnica a partir de um gráfico produzido por um transdutor estrategicamente
localizado e calibrado, o DJ analisa a sua máquina sonoro-motora a partir de um gráfico (e.g. os
sulcos de um disco de vinil) capaz de produzi-la quando transformado em som por um transdutor
estrategicamente localizado e calibrado (e.g. a agulha do toca-discos e os parâmetros que
modulam o sinal por ela produzido) (cf. Imagem 26). Poder-se-ia objetar que enquanto os
gráficos empregados pelos engenheiros de fato representam o estado da máquina que eles
estudam pois resultam diretamente dos movimentos que compõem a máquina em funcionamento,
os gráficos empregados pelos DJs não poderiam representar o estado da máquina sonoro-motora
que eles compõem com seu público visto serem o efeito direto de vibrações sonoras produzidas
em outra ocasião sobre um transdutor – i.e., que o gráfico do engenheiro foi produzido pela
própria máquina no ato de funcionar ao passo que o do DJ foi produzido com antecedência em
um estúdio de gravação. Isso, porém, seria ignorar aquilo que estamos insistindo em demonstrar:
diferentemente dos registros de música tradicional, as gravações de música eletrônica de pista só
serão compreendidas em sua especificidade quando deixarem de ser vistas como o efeito de
algum evento sonoro ocorrido em outro lugar e em outro momento e passarem a ser vistas como
o efeito (sonoro) de um evento motor que está ocorrendo "aqui e agora".

354
Foi justamente a crença de que o som, quando tecnicamente reproduzido, está dissociado
dos movimentos que o geraram originalmente, que levou R. Murray Schafer a diagnosticar a
"esquizofonia"64 como a patologia própria da reprodução técnica do som. Segundo Schafer:

No princípio todos os sons eram originais. Eles ocorriam em determinado tempo e lugar. [...] Desde
a invenção do equipamento eletroacústico para a transmissão e estocagem do som, [...] [s]eparamos
o som do produtor de som. Os sons saíram de suas fontes naturais e ganharam existência
amplificada e independente.65

Apesar de reconhecermos o mérito do conceito schaferiano em sua função de "ilustrar a


irracionalidade da justaposição eletroacústica para que, assim, ela possa deixar de ser aceita como
óbvia",66 temos dúvidas quanto à adequação do conceito essencialista de "originalidade" no qual
ele se baseia ao caso da música eletrônica de pista. Afinal, por que apenas a "justaposição
eletroacústica" precisa "deixar de ser aceita como óbvia"? Por que não aproveitar a aparente
ruptura esquizofônica para questionar também a obviedade das fontes supostamente "naturais" do
som? Jonathan Sterne, que mostra com propriedade que a proposta de Schafer "traz em seu bojo
afirmações sobre aquilo que necessariamente somos" e conseqüentemente "sobre os limites
daquilo que podemos vir a ser",67 argumenta convincentemente em seu fascinante estudo sobre as
"técnicas de audição [the techniques of listening]"68 que a reprodução técnica do som seria muito
melhor compreendida se, ao invés de encarada como uma dissociação entre uma fonte sonora
original e o som que ela produz, o fosse como uma alteração na relação entre ambos pela
introdução de uma nova mediação: o transdutor.69 Sterne mostra como foi graças a um

64
Em seu glossário, Schafer define assim a esquizofonia: "Esquizofonia (do grego schizo = partido e phone = voz,
som) – [...] [S]eparação entre o som original e sua reprodução eletroacústica. Os sons originais são ligados aos
mecanismos que os produzem. Os sons reproduzidos por meios eletroacústicos são cópias e podem ser
reapresentados em outros tempos e lugares. Emprego esta palavra nervosa para dramatizar o efeito aberrativo desse
desenvolvimento do século XX." (Schafer 2001:364; itálicos no original).
65
Schafer (2001:133-4).
66
Schafer (2001:140).
67
"Se isentamos os sentidos e faculdades em si da história e partimos do princípio de que certas configurações de
atividade pertencem a certos sentidos ou faculdades por direito original acabamos limitando seriamente as
possibilidades de organização da atividade humana no futuro. Construímos uma teoria social com base em um
constructo fundamentalmente teológico e assim circunscrevemos rigidamente o que significa ser humano." (Sterne
2003:345)
68
O estudo de Sterne pode ser colocado ao lado daquele de Jonathan Crary (1992) sobre as "técnicas do observador
[techniques of the observer]" – "Eu pareço estar na boa companhia de um outro Jonathan" explicita Sterne
(2003:366 nota 64), sobre Crary – , sendo ambos esforços historicistas de desnaturalização dos hábitos perceptivos,
um voltado para a audição e o outro para a visão.
69
Sterne mostrou extrema habilidade no manuseio de sua navalha de Ockham quando utilizou-a para "partir de uma
definição mais simples da reprodução técnica do som, uma que não dependa de um sujeito transcendental da
audição: tecnologias modernas de reprodução sonora usam dispositivos chamados de transdutores, capazes de
transformar o som em outra coisa e essa outra coisa de volta em som" (Sterne 2003:22; itálico no original). Usando

355
deslocamento da atenção de cientistas de diversas áreas (fisiologia, anatomia, acústica) no final
do século XIX, da fonte produtora do som para o aparelho receptor do som, que a reprodução
técnica do som passou da era artesanal dos autômatos para a era industrial dos fonógrafos.70 Foi
transferindo a atenção da fonte sonora e de seus mecanismos particulares de produção (i.e., dos
instrumentos musicais ou do aparelho fonador do organismo) para a percepção sonora e seu
mecanismo genérico de transdução (i.e., o som enquanto fenômeno autônomo,
independentemente de sua fonte) que a busca pela reprodução técnica do som passou de um
estudo de mecanismos de membranas, cordas, diafragmas e alavancas da fonte emissora para o
estudo dos processos de transdução entre freqüências sonoras e freqüências de outra natureza –
em outras palavras, de um estudo das causas produtoras do som para um estudo dos seus
efeitos.71 O som tecnicamente reprodutível é, assim, o "som qualquer", o "som em geral", o som
como um efeito genérico da propagação de uma vibração por meios diferentes
independentemente de qualquer causa particular.72

o processo de transdução como o eixo analítico de seu estudo, Sterne não apenas escapa das ciladas típicas dos
pressupostos essencialistas quanto à audição (por exemplo, as oposições entre o analógico e o digital; cf. Ferreira
2004a), mas também se coloca numa posição extremamente favorável à descoberta dos processos de subjetivação
ligados à reprodução técnica do som.
70
A importância dos autômatos para a história da tecnologia – assim como o fim de sua época dourada no século
XIX quando, na célebre fórmula de Helmholtz, "deixamos de tentar construir máquinas que realizem as mil
diferentes ações de um único homem para nos dedicarmos a máquinas que realizem uma única ação que substituirá
aquela de milhares de homens" – foi apontada por diversos pesquisadores (e.g. Price 1964:9-10; Bedini 1964:24,
41; Losano 1992:7-8, 114), e Sterne mostra com propriedade como eles passaram da condição de objetos com
"potencial como dispositivos científicos" no século XVIII para aquela de "brinquedos científicos" no século XIX
(cf. Sterne 2003:81).
71
Foi um "deslocamento de máquinas modeladas na produção do som pela voz ou música para máquinas baseadas
na produção do som pela percepção": "Autômatos e máquinas timpânicas [i.e., máquinas que se baseiam na
"função timpânica" da "transdução de vibrações em som perceptível pelo ouvido médio"] reproduzem o som por
dois processos totalmente diferentes. Autômatos privilegiaram a fala e a voz humana; eles partiram de instâncias
particulares de produção sonora e tentaram recriá-los. Máquinas timpânicas encararam a audição e o som como
problemas gerais e se voltaram para o ouvido humano. [...] Para os autômatos, sons eram o resultado de
dispositivos produtores de som como bocas. Para as máquinas timpânicas, freqüências eram freqüências –
escutadas por ouvidos; a fala e a música se tornaram instâncias específicas do som, que era em si um efeito
reprodutível." (Sterne 2003:71) Resumindo, o mecanismo timpânico "trata a reprodução do som como um
problema de reprodução de efeitos, e não de reconstrução de causas" (Sterne 2003:38).
72
"Nesse novo regime, a audição passou a ser entendida e modelada como uma operação uniforme sobre os sons,
independente de sua fonte. O som em si, seja qual for a sua origem, se tornou o objeto da acústica" (Sterne
2003:33). Foi no século XIX que pioneiros da fisiologia como Johannes Müller tornaram concebível e
experimentalmente verificável a idéia de que há uma autonomia relativa entre as sensações e as suas causas
empíricas, que a sensação depende "não da qualidade ou estado de um corpo exterior, mas da condição dos
próprios nervos, excitados por uma causa exterior", podendo uma mesma sensação ser produzida por causas
diferentes desde que produzam nos nervos um efeito análogo – as experiências envolviam a produção de sensações
luminosas, térmicas e sonoras a partir de descargas elétricas feitas diretamente nos nervos (cf. Sterne 2003:60-1). É
impressionante notar como a partir de então o mundo percebido passa a ser um efeito tecnicamente reprodutível de
estímulos genéricos sobre os nervos.

356
O importante aqui é perceber que o registro do som em uma mídia apenas aparentemente
"dissocia" o som de sua "fonte natural", sendo muito mais apropriado dizer que ele introduz mais
uma mediação na relação entre som e movimento: o processo transdutivo pelo qual todo o
complexo de vibrações do meio que compõe o som é concentrado na oscilação de um corpo
particular, que então transforma esse complexo de vibrações em uma inscrição linear em um dado
suporte. O deslocamento conceitual com relação ao senso comum schaferiano é considerável. A
partir de então, dizer que se escuta "um trompete" ou "um violino" passa a ser um uso metafórico
da linguagem, pois o que de fato se escuta é tão somente o efeito de vibrações propagadas pelo
meio em nosso aparelho auditivo. Além disso, não apenas este último, mas também aqueles
instrumentos normalmente encarados como a "fonte natural" do som, passam a ser apenas
interfaces transdutoras pelas quais um movimento teve que passar desde a sua origem até a sua
percepção enquanto som,73 muitos outros transdutores podendo se interpor no processo e não
havendo, de fato, percepção direta do som sem a interposição de um número variado desses
transdutores. Em outras palavras, deixamos de escutar instrumentos, pessoas, objetos, e passamos
a escutar apenas vibrações,74 pois se o som que escutamos é o efeito particular de um movimento
vibratório como causa genérica (o "som qualquer") e se a reprodutibilidade técnica do som é a
delegação da produção desse efeito a uma máquina que então pode "escutar por nós"75 e assim
tornar audível movimentos vibratórios antes inaudíveis, então não apenas a origem "natural" do
som, mas também o seu destino "natural" (o ouvido humano), se tornam apenas recortes
arbitrários de um processo muito mais amplo no qual certos movimentos geram certos sons – os
movimentos e sons efetivamente percebidos sendo apenas o efeito de nosso recorte arbitrário do
processo, havendo muitos outros movimentos e sons igualmente reais acessíveis a outros
recortes. Levamos aqui às últimas conseqüências a desessencialização do som que possibilitou a
reprodutibilidade técnica: suspendemos o hábito de remeter a origem de um som aos movimentos
imediatamente visíveis de sua fonte habitualmente reconhecida e passamos a encarar todo e

73
Sterne mostra como foi a redução da audição ao funcionamento de um "mecanismo timpânico" que tornou
concebível o papel do transdutor como um substituto do ouvido (e o aparelho baseado na transdução como algo
que escuta "por" nós), colocando a surdez na origem da reprodutibilidade técnica do som (cf. no Capítulo 9 a
primeira parte da seção "Intensidades, freqüências, velocidades", acima; cf. Sterne 2003:31-85, 61-2).
74
Como disse Nicolas Collins em um editorial entusiasmado a um número do periódico Leonardo Music Journal
dedicado à música eletrônica, "[a] maior parte da música que escutamos não chega até nós diretamente da vibração
de uma corda de violino [...], mas sim dos sulcos de um disco de vinil, partículas em uma fita magnética, covas
microscópicas em plástico, ondas eletromagnéticas e pulsos de luz", concluindo: "A música não é apenas
transmitida por sulcos, covas e ondas. Ela é sulcos, covas e ondas. [Music isn't just conveyed through grooves, pits
and waves. Music is grooves, pits and waves.]" (Collins 2003:1, 3; itálicos no original).
75
Cf. Sterne (2003:31-85).

357
qualquer som percebido (seja ele mediado tecnicamente ou não) como o efeito de um movimento
que se inicia em algum foco virtual e que se propaga pelas mediações do mundo até a nossa
percepção contingente atual. Mas não era justamente isso que o conceito de "movimento
browniano", quando aplicado aos bateristas de James Brown, tentava revelar?76 Os movimentos
individuais visíveis do baterista e de seu público como os efeitos molares de um movimento
molecular invisível que os conectava e que explicaria o potencial motor do break que seria mais
tarde submetido a uma depuração laboratorial pelos DJs de breakbeat? E o que dizer do papel do
pulso constante na manutenção do movimento da pista de dança? Não seria este movimento uma
fonte muito mais "natural" do som do pulso (o movimento que determina a sua contração
específica da duração) do que qualquer instrumento ou instrumentista e um estúdio de gravação?
O ponto crítico do paralelo que propomos entre o DJ e o engenheiro e suas respectivas
máquinas parece ser a conjunção dos movimentos produzidos pela cabeça leitora da máquina
reprodutora do DJ com os movimentos produzidos pelo seu público – ou seja, a conjunção dos
movimentos da agulha do toca-disco no sulco do disco (que seriam normalmente remetidos a
algum evento sonoro anterior) com os movimentos da dança (que seriam normalmente
interpretados como o efeito contingente do som produzido por aqueles, nunca como a sua causa
motora ao lado deles). Nosso principal argumento em favor dessa conjunção foi a constatação
empírica de que a cabeça leitora da máquina só percorre o registro escolhido pelo DJ se o som
por ele representado (e reproduzido) for a contrapartida de um movimento atual de seu público.
Mas agora podemos ir além e propor que o evento sonoro que supostamente gerou o registro
manipulado pelo DJ em sua relação com seu público é, afinal, apenas um recorte possível entre
muitos outros que colocariam a origem do som em muitos outros pontos intermediários entre a
sua verdadeira origem e a sua percepção efetiva. O fato de a música tocada pelo DJ para seu
público ter sido produzida em um estúdio de gravação e poder ser escutada por qualquer um em
qualquer lugar ou mesmo tocada pelo DJ em qualquer outro lugar independentemente de seu
público não deveria obscurecer o fato mais elementar de que os movimentos que deram origem
aos sons que a compõem são, acima de tudo, aqueles atualizados na pista de dança; todos os
outros recortes possíveis – e.g. aquele que coloca a criatividade individual do produtor ou os
movimentos de instrumentistas particulares como a origem do som e os ouvintes individuais da
música em diferentes contextos como o seu destino – oferecendo apenas versões parciais mais ou
menos completas desse processo mais amplo.

76
Cf. no Capítulo 9 a primeira parte da seção "O break e o pulso constante", acima.

358
A música eletrônica pode, a princípio, ser escutada individualmente em casa, no carro, em
um walkman, enfim, em qualquer ocasião em que haja um aparelho de som, e DJs podem tocar
em um estúdio de rádio, em um estúdio de gravação, em suas próprias casas, enfim, em qualquer
ocasião em que possam ligar seus equipamentos. Porém, para além da infinidade de contextos
onde a música eletrônica de pista pode ser escutada ou tocada, é preciso nunca perder de vista
que, na forma como hoje a conhecemos, ela é o resultado da coevolução de uma certa relação
tecnicamente mediada entre som e movimento baseada na produção de um certo campo
metaestável de ressonância: certos sons gerando certos movimentos, certos movimentos gerando
certos sons, sem que se saiba ao certo quem veio antes e com a preocupação determinante de
perpetuar a relação. Por isso, quando um produtor de música eletrônica de pista (que na maior
parte das vezes é também um dos DJs que tocarão a música) em um estúdio de gravação
seleciona e organiza sons de uma determinada maneira, ele já o faz a partir dos seus efeitos
virtuais em uma pista de dança – ele experimenta virtualmente com os movimentos de seu
público ao experimentar atualmente com combinações sonoras – e produz assim uma
ferramenta77 que tem a sua relação com a pista de dança como origem e destino.78 Pelo mesmo

77
"A música gravada é uma ferramenta para uma performance e não uma cópia de uma", sendo essa performance a
"relação entre DJs e público" (Langlois 1992:234-5; itálicos no original). Segundo Reynolds, a música eletrônica
de pista é baseada na possibilidade de "troca de peças [part-interchangeability]" e seus produtores se assemelham
aos "fissurados em carro [car freaks] que canibalizam peças automotivas, turbinam seus motores e customizam a
lataria do carro para personalizar aquilo que é produzido em massa", pois "constroem motores rítmicos
envenenados [souped-up rhythm engines] usando um repertório geralmente restrito de componentes derivado de
CDs de amostras sonoras ou módulos de sons" e, apesar das "infinitas possibilidades' de re-seqüenciamento e
distorção das amostras sonoras", "são restringidos pelos critérios funkionalistas [funkionalist criteria] de seu
gênero específico" (Reynolds 1999:48). As faixas são criadas como "material de trabalho para DJs" e encaradas
como um "conjunto de recursos", de "ingredientes brutos para editar e mixar", "como processo ao invés de
produto", sempre "inacabadas" e repletas de "soquetes" ou "pontos de entrada" que permitem aos DJs "plugarem"
uma faixa na outra (Reynolds 1999:48-9, 271, 278, 281). Jerrentrup constata que uma música Techno "nunca é um
produto acabado que pode ser simplesmente tocado" pois "o DJ precisa lidar de maneira ativa com o público"
através de técnicas como "a seleção de trechos musicais para serem encurtados, alongados ou mixados, a
transformação do som através de filtros" e "as mudanças de velocidade" (Jerrentrup 2000:68), e o DJ Renato
Cohen resume: "Quando se faz um disco para as pistas, você não pode pensar que é um gênio criativo, que está
vomitando sua sabedoria [...]. Você está fazendo uma ferramenta para outras pessoas trabalharem, uma coisa que
vai ser encaixada no processo criativo de outra pessoa" (DJ Renato Cohen, in: Assef 2003:217).
78
Brewster e Broughton confirmam que "construir ou reconstruir um disco de música eletrônica de pista é muito
parecido com uma apresentação comprimida de um DJ em um clube" (Brewster e Broughton 2000:353), e citam o
DJ Fatboy Slim: "Quando você está tocando, passa horas incontáveis só olhando as pessoas dançarem [...]. Assim,
você começa a perceber a quais partes de um disco as pessoas reagem e quais são mais eficazes em fazê-las dançar.
Você simplesmente aprende o que faz as pessoas dançarem [...]. Quando estou no estúdio, eu penso na noite
anterior e no tipo de coisa que funcionou com o público." (Fatboy Slim, in: Brewster e Broughton 2000:353) "Esse
circuito de retroalimentação peculiar entre o estúdio e a cabine do DJ caracteriza todas as formas de música
eletrônica de pista, do House ao Jungle. Não existe versão definitiva ou momento de completude; tudo permanece
na mixagem [in the mix], sempre e para sempre" (Reynolds 1999:281; itálico no original). Um produtor
entrevistado por Taylor afirma ser capaz de "visualizar o lugar ou situação em que uma faixa vai ser tocada quando
estou fazendo ela, assim como a reação do público" (depoimento, in: Taylor 2001:199), e para o DJ Moby a
trindade "produtor-DJ-público" se completa "quando o DJ, o produtor e o público são a mesma coisa/pessoa" (DJ

359
motivo, o fato de que pessoas possam escutar essas músicas individualmente e mesmo entrar em
transe nessas ocasiões não deve obscurecer a natureza coletiva da experiência: como o riso
definido por Bergson, a dança e o transe são experiências compartilhadas mesmo quando vividas
individualmente.79 Por isso, enfim, Thornton pode dizer que "discos, nas mãos de um DJ, são,
literalmente, sons sociais"80 e Jeremy Gilbert e Ewan Pearson podem parafrasear Deleuze e
Guattari afirmando que "uma pessoa, uma pilha de discos e um par de toca-discos ou um sampler
é já 'uma galera'".81 Em todos os casos, trata-se de buscar na relação entre o DJ e seu público a
origem e o destino dos sons e dos movimentos executados, qualquer contexto suplementar
comparecendo como efeito parcial dessa relação primitiva entre som e movimento (cf. Imagem
27).
Como já vimos, dentre as especificidades da relação do DJ com seu público que
distinguem esse maquinista dos instrumentistas convencionais estão o grau de controle técnico
que ele alcança sobre o processo automático de reprodução sonora e a natureza maquínica da vibe
que ele provoca, ambas permitindo-lhe não apenas acompanhar o ritmo do público para além do
seu próprio (ou apesar dele), mas também fazer do ambiente coletivo da festa uma espécie de
"laboratório" para a experimentação controlada e tecnicamente reprodutível com a relação som-
movimento. Se, como sustenta Bruno Latour, o potencial criador de um laboratório "é medido
pelas condições extremas que [ele] é capaz de criar",82 então o laboratório da pista de dança pode
ser visto como uma variante dos laboratórios tecnocientíficos. Ao invés de mobilizar "grandes
aceleradores de milhões de elétrons-volt; temperaturas próximas ao zero absoluto; um arsenal de
radiotelescópios que se estende por quilômetros; fornalhas que aquecem a milhares de graus;

Moby, in: Taylor 2001:199). Falando sobre o início da remixagem na Disco dos anos 70, Reighley nota que "[a]s
pessoas que comandavam os toca-discos sabiam o tipo de música que animava seu público e o que especificamente
em uma faixa realmente fazia a diferença [what specifically within a track really clicked]", e assim "DJs podiam
rearranjar faixas com suas próprias contribuições" (Reighley 2000:32). O DJ Joey Negro confirma que "[a] música
Disco foi a primeira música projetada especificamente para clubes e feita com a pista de dança na cabeça" (DJ Joey
Negro, in: Poschardt 1998:122). Poderíamos dizer que assim como a teia da aranha é um contraponto do vôo da
mosca pois "a aranha tem uma mosca na cabeça" (Deleuze e Guattari 1997a:120), uma música eletrônica de pista é
um contraponto do movimento da pista de dança pois o DJ-produtor tem uma pista de dança na cabeça.
79
"Não saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados. Parece que o riso precisa de eco. Ouçamo-lo: não é
um som articulado, nítido, terminado; é algo que gostaria de prolongar-se repercutindo de um ponto ao outro, algo
que começa por um estrépito para continuar em ribombo, assim como o trovão na montanha. [...] Nosso riso é
sempre o riso de um grupo." (Bergson 2001:4-5) Vemos que, de maneira análoga ao transe maquínico da vibe da
música eletrônica de pista, o riso é um fenômeno de ressonância. Como disse o músico Chico Correa, sobre o DJ:
"Ele cria um ambiente [...] que por característica tem que ser coletivo. Você nunca viu ninguém dançando sozinho
numa pista." (Chico Correa, entrevista por telefone, dezembro de 2001).
80
Thornton (1996:66).
81
Gilbert e Pearson (1999:118). Na introdução a Mil Platôs Deleuze e Guattari declararam: "Escrevemos o Anti-
Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente." (Deleuze e Guattari 1995a:11)
82
Latour (2000:150, cf. p.149).

360
pressões exercidas por milhares de atmosferas; viveiros com milhares de ratos ou cobaias;
gigantescos trituradores de números capazes de realizar milhares de operações por
milissegundo"83 etc. na captação de actantes para a construção de máquinas técnicas, o
laboratório da pista de dança mobiliza altíssimas intensidades sonoras, fluxos sonoros de
longuíssima duração e máquinas técnicas que permitem um controle extremo dos parâmetros que
compõem esse fluxo na captura, manutenção e modulação de movimentos para a construção de
máquinas sonoro-motoras coletivas de transe.84 Assim como os gráficos de artigos
tecnocientíficos são híbridos criados "na junção de dois mundos", "um de papel, [...] e um de
instrumentos", "entre o texto e o laboratório",85 que têm por função transformar em um traço
legível algo que de outra forma seria intangível – i.e., falar "em lugar do que não fala"86 –,
também os registros fonográficos são híbridos criados na junção entre os mundos das superfícies
de registro e dos movimentos que são nelas registrados, entre o estúdio e a pista de dança, que
têm por função transformar em um traço legível (não apenas por uma máquina transdutora
específica, mas também pelo próprio DJ; cf. Imagem 15) algo que de outra forma seria intangível
– i.e., tornar audíveis os maquinismos sensório-motores inconscientes e determinantes que só
assim podem ser vividos enquanto tais. E da mesma forma como o funcionamento de uma

83
Latour (2000:150).
84
DJ Marlboro é explícito quando justifica sua preferência por contratos longos: "Eu sempre gostei de contratos mais
longos, porque aí o baile vira um laboratório" (DJ Marlboro, in: Macedo 2003:35). Falando sobre os pioneiros da
música eletrônica, Rob Young retoma o tema benjaminiano (cf. Benjamin 1975:26) das relações entre a
reprodutibilidade técnica e as práticas laboratoriais: "O som eletronicamente registrado [...] era uma substância que
podia ser imobilizada no laboratório como um sapo sob o escalpelo" (Young 2000:19). Outros temas
benjaminianos muito recorrentes no discurso nativo (que infelizmente não pudemos explorar aqui) são os do "teste"
e da "perfectibilidade infinita" (cf. Benjamin 1975:21; 1994:175-6, 178), ligados à natureza inacabada da música
eletrônica de pista, que vive no trajeto entre o estúdio no qual é produzida e a pista de dança na qual é testada,
sempre sofrendo alterações (remixes) em busca de uma maior eficácia (e.g. Langlois 1992:232; Reynolds
1999:115, 265, 281; Rubin 2000:122; Reighley 2000:95, 192-3; Brewster e Broughton 2000:63, 178, 279, 311,
315-6, 320). Sobre as condições extremas criadas no laboratório da pista de dança, cf. Capítulo 9, acima.
85
Latour (2000:108).
86
Latour (2000:119). A idéia do gráfico como porta-voz está intimamente ligada aos primórdios da reprodutibilidade
técnica do som que, como já vimos, pode ser vista como uma delegação da audição à máquina (cf. Sterne 2003:38-
9): a máquina fonográfica ouve por nós e portanto se torna, pelo menos de direito, a porta-voz de um mundo
sonoro inaudível sem ela. Sua posição de porta-voz é reforçada pelo pressuposto de que, diferentemente de outros
métodos de notação como a partitura ou a escrita alfabética, a fonografia seria uma "estenografia natural", uma
"linguagem 'natural' do som" ou uma "escrita automática ou indicial" (cf. Sterne 2003:45, 49). Um belo ensaio
sobre a construção dessa imagem da objetividade dos registros gráficos como "a linguagem dos próprios
fenômenos" principalmente a partir dos dispositivos construídos por E.J. Marey na segunda metade do século XIX
pode ser encontrado em Daston e Galison (1992). Reconhecendo a existência de um vasto campo de pesquisas
sobre a representação científica no qual não somos versados, limitaremo-nos aqui a opinar que o fato de que todo
porta-voz é um potencial traidor daquilo a que ele dá voz não deveria enfraquecer a relação dos gráficos com
aquilo que eles indicam, mas tão somente politizar essa relação – ou seja, os pressupostos que ligam um gráfico à
realidade à qual ele se refere não o tornam necessariamente menos verdadeiro, apenas tornam a sua verdade mais
complexa.

361
máquina fora do laboratório "significa que as condições do laboratório [...] foram expandidas",87
o fato de que a música eletrônica de pista pode ser produzida em um estúdio de gravação e de que
o transe maquínico pode ser experienciado fora da pista de dança ou mesmo quando o DJ não é
um xamã significa que as condições extremas criadas pelo laboratório da pista de dança foram
expandidas para outros contextos. O importante aqui é perceber que é a coevolução técnico-
laboratorial da relação som-movimento através da individuação da máquina ressonante que
explica as contingências da relação entre o DJ e seu público (e não o inverso) e que a vibe indica
a descoberta, pelo DJ, da "ponta de cunha" do transe maquínico que traça o rastro vibratório (o
registro fonográfico) correspondente à ressonância atual dessa máquina.
Todo som tem um movimento como origem, isso é certo, o problema é encontrá-lo em
cada caso. A escolha por recortar o processo sonoro-motor aqui ou acolá é determinante para a
sua compreensão e aquela que usualmente fazemos (i.e., remetendo um som tecnicamente
reproduzido a uma origem outra que aquela empírica do próprio ato reprodutor presente) é apenas
a que nos garante um maior controle sobre todo o processo. Nosso apelo aqui pela suspensão
desse hábito de colocar eventos sonoros individuais e passados na origem dos registros
fonográficos empregados pelos DJs na condução de seu público parte da constatação de que a
compreensão do funcionamento da máquina xamânica da música eletrônica de pista exige que
nos abramos para as novas evidências da experiência, que insistem em nos mostrar que os sons
reproduzidos pelo DJ são os sons de uma máquina que funciona, bem ou mal, no exato momento
e local em que o som é ouvido – que a gravação torna audível um evento motor presente, e não
um evento sonoro passado.88 Há, de fato, um trajeto tortuoso entre os movimentos dessa máquina
e o som que a ela associamos; um trajeto que atravessa tempo e espaço de maneiras às quais não
estamos habituados, que embaralha as relações causais a partir das quais organizamos a nossa
percepção do mundo.89 Nada mais natural, visto que a alteração momentânea de nossa relação

87
Latour (2000:407).
88
Se tradicionalmente, na inspirada formulação de Evan Eisenberg, "você pode olhar para a corneta [do fonógrafo ou
do gramofone] e saber que em algum ponto fugidio além da concavidade há algo respirando [at some vanishing
point beyond the visible concavity there is someting breathing]" (Eisenberg [1987. The Recording Angel. New
York: Penguin, p.64], in: Laing 1991:8), trata-se agora de saber que "em algum ponto fugidio" para além da
interface da máquina – atualmente poderíamos substituir a concavidade da corneta pelos cabos do alto-falante – há
uma (outra) máquina funcionando, entre cujas peças há provavelmente "algo respirando", mas, esse é o ponto
chave, aqui e agora, e não em um suposto passado original. É assim que interpretamos a afirmação de Eshun de que
a reprodução técnica do som "torna audiovisual a perspectiva da máquina sobre você" (Eshun 1999:58).
89
Peter Pál Pelbart toca no mesmo ponto quando, tratando de um outro tema, constata: "Não estamos diante de uma
mera alteração no sentido da flecha do tempo, mas de uma explosão da flecha do tempo. O que está hoje em pauta
[...] é a abolição da idéia mesmo de uma flecha, de uma direção, de um sentido do tempo, em favor de uma
multiplicidade de flechas (mas aí já seria preciso inventar outro nome), de uma multiplicidade de direções (mas aí

362
habitual com o mundo é justamente a base da teoria que parece-nos ser a mais adequada para a
compreensão do transe maquínico do xamanismo da música eletrônica de pista.90
Propomos, assim, que enquanto o engenheiro diagnostica e modula o funcionamento de
uma máquina a partir de um registro gráfico produzido pelo efeito dos movimentos vibratórios de
suas partes quando concentrados em um ponto estratégico, o DJ diagnostica e modula o
funcionamento de uma outra máquina a partir de um registro (fono)gráfico que produz os
movimentos vibratórios de suas partes quando concentrados em um ponto estratégico. Quando
um DJ descobre os limiares de ressonância de sua pista de dança – i.e., as dinâmicas de
intensidades, velocidades e freqüências nas quais os mecanismos básicos de captura e
manutenção de seu movimento são mais eficazes – os registros fonográficos que ele usa assumem
uma função análoga à dos gráficos produzidos pela máquina do engenheiro: eles informam o DJ
sobre o estado da máquina com a qual ele está lidando e lhe indicam possibilidades de
intervenção. Da mesma forma como o engenheiro deve optar por reduzir a vibração de sua
máquina (aproximando-a de seu limite inercial), mantê-la constante (o que exige a troca
permanente de peças que se desgastam) ou aumentá-la (aproximando-a do limiar de colapso), o
DJ precisa escolher entre reduzir a vibração de sua máquina (dissipando ou segurando a vibe),
mantê-la constante (através da seleção musical e do controle de certos parâmetros) ou aumentá-la
(estimulando a vibe rumo à explosão).
Há, porém, uma importante diferença entre o DJ e o engenheiro: a experimentação.91 Não
duvidamos que a música eletrônica de pista seja de fato o som de uma máquina e que o DJ esteja,
como o engenheiro, modulando o seu funcionamento através de diagnósticos que ele produz a
partir dos registros que correspondem ao seu atual funcionamento. No entanto, o engenheiro tem
preocupações essencialmente preservativas, pautando suas intervenções em um ideal de

já seria preciso usar uma outra palavra) e de uma multiplicidade de sentidos (mas aí já seria preciso inventar outros
termos)." (Pelbart 2000:46; itálicos no original)
90
Basta lembrar do "caso especial" relatado pelo DJ Arlequim (cf. no Capítulo 2 a seção "As dinâmicas rituais do
DJ Arlequim", acima) ou das diversas descrições de transe mencionadas ao longo da tese (em especial na seção
"Transe maquínico" do Capítulo 8, acima). Em todos os casos, observamos o estabelecimento de uma sinergia
entre os sons tocados pelos DJs e os movimentos realizados pelo seu público que estimulam uma nova
interpretação das relações temporais e de causalidade implicadas na reprodutibilidade técnica do som.
91
Basta notar que enquanto para o engenheiro a ressonância "deve sempre ser evitada pois rapidamente causa sérios
estragos" em sua máquina (Commtest Instruments 2003:7-8), para o DJ ela é o ponto de partida para as suas
experimentações com a sua máquina. Em outras palavras, enquanto o engenheiro pensa "é melhor prevenir do que
remediar" o DJ pensa "vamos ver até aonde isso vai". Poderíamos dizer ainda que o engenheiro está aqui na
posição do DJ mainstream, que já encontra uma máquina pronta e apenas reproduz as fórmulas que a reproduzem
visando a satisfação de interesses pré-determinados, enquanto o DJ underground se caracteriza pela
experimentação e pela exploração de novos efeitos ainda desconhecidos de uma máquina que "só funciona
rangendo, desarranjando-se, explodindo em pequenas explosões" (Deleuze e Guattari, 1976:192).

363
funcionamento de sua máquina, intervindo no seu funcionamento enquanto o seu nível de
vibração ainda é considerado normal ou, no caso de vibrações já excessivas, realizando consertos
necessariamente antes que elas atinjam um nível que poderia levar a máquina ao colapso (cf.
Imagens 23 e 24). Ora, no caso da música eletrônica de pista poderíamos dizer que não há
vibração considerada "normal", mas apenas uma constante experimentação com os limites da
vibração "natural" do sistema (cf. Imagem 27). Em outras palavras o DJ trabalharia a maior parte
do tempo entre uma vibração considerada alta e o colapso do sistema, interessado não em
preservar um sistema de vibração já estabelecido, mas sim em experimentar com os seus
limites.92
Se a máquina da música eletrônica fosse uma máquina técnica concreta, ela seria uma
máquina tão espetacular quanto um automóvel que só funciona explodindo e produzindo muita
fumaça, ou como uma máquina de lavar roupas que além de realizar seus movimentos internos
programados também sai andando por aí, terminando a lavagem bem longe do lugar onde a
iniciou (quanto mais longe melhor): ou seja, uma máquina cujo funcionamento não se pauta por
uma função previamente estabelecida, sendo esta apenas um possível ponto de partida para outras
funções ainda não conhecidas;93 daí o seu funkionalismo. Mas qualquer analogia com máquinas
técnicas concretas esbarra no fato de que diferentemente destas, que são atuais e precisam ser
preservadas, a máquina do DJ é social e desejante, sendo atualizada justamente através da
exploração de suas virtualidades. Seu corpo tem uma densidade variável, suas partes se
transformam o tempo todo e ela produz, principalmente, um desejo de se perpetuar. Mesmo
assim, ela não é nem um pouco menos real do que a máquina técnica do engenheiro e ambas
podem ser moduladas de maneira semelhante a partir de parâmetros muitas vezes idênticos.
Trata-se de uma máquina que ganha consistência à medida em que o DJ modula os parâmetros
técnicos da intensidade, da freqüência e da velocidade, à medida em que ele trabalha com a
complementaridade entre breaks e pulsos constantes, à medida em que ele vai encontrando os
seus parâmetros "naturais" de ressonância e experimentando com eles, encontrando e produzindo
empiricamente os seus limites. Em última análise, a máquina cujo som escutamos na música
eletrônica não existe nunca plenamente acabada, ela só existe enquanto se forma, enquanto vai
ganhando consistência, para depois se dissolver sem motivo aparente, podendo sempre ser

92
Poderíamos dizer ainda que enquanto a máquina do engenheiro é um capital constante, algo que "deve estar
sempre disponível para gerar o dinheiro que justifica o investimento" (Commtest Instruments 2003:11), a máquina
do DJ estaria no limiar entre as "conjugações da axiomática" capitalista e as "conexões revolucionárias" da
servidão maquínica (cf. Deleuze e Guattari 1997b:177).
93
Sobre o desvio de função, cf. Kasper (2005).

364
reativada-reconstruída novamente. Que esse processo seja a base do xamanismo da música
eletrônica – transformando, pela música e pela dança, as relações entre maquinismos
inconscientes determinantes e o mundo por eles determinado – é a nossa proposta.

365
366
Post-Scriptum:
O que pode uma máquina?
Na introdução desta tese, relatei, na primeira pessoa do singular, como se deu a definição do tema
da pesquisa que lhe originou. Retomo agora a mesma linguagem em um texto em três
movimentos que foi composto como uma reflexão paralela a esta tese e que pode revelar seus
bastidores e seus possíveis desdobramentos futuros. Este texto pode ser lido independentemente
de tudo o que foi visto acima mas, no final deste trajeto, provavelmente ilumina alguns pontos
ainda deixados na penumbra. Trata-se, poderíamos dizer, de um manifesto passional pela
continuação do projeto ao qual esta tese procura fornecer algumas bases teóricas e empíricas:
fazer do estudo da música eletrônica de pista um objeto privilegiado para a investigação dos
maquinismos inconscientes que determinam nossa sociedade contemporânea.

(1)
Vivemos, há algum tempo, como que semi-adormecidos, quando não em estado de
sonambulismo profundo. Algo nos embaça a visão e nos impede de ver que estamos,
provavelmente desde os primeiros momentos de vida, crescentemente aprisionados nas
engrenagens e repetições de nossas próprias máquinas, sujeitados a seus ritmos não-humanos,
imersos em suas vibrações e hipnotizados pela velocidade crescente dos fluxos materiais e
semióticos que estranhamente nos unem a elas. Acontece todo dia, toda hora, o tempo todo,
sempre que paramos num sinal vermelho, subimos num ônibus, entramos em um elevador,
olhamos para o relógio... É o que ocorre, por exemplo, quando aprendemos a dirigir um
automóvel. Movimentos e ações que de início exigem toda a nossa atenção logo começam a se
tornar habituais e a "afundar" rumo ao inconsciente sensório-motor.1 Com algum treino, logo não
precisamos mais pensar em cada um dos gestos necessários para conduzir o carro; eles emergem
automaticamente, sem interferência consciente, quando a situação o exige. Esse estado de
"sujeição cibernética à máquina automobilística e aos sistemas de sinalização emitidos pelo
meio"2 não é de todo mal, antes sendo justamente aquilo que nos permite ocupar nossa
consciência com outras coisas enquanto dirigimos, seja para conectarmo-nos com outras
máquinas (internas ou externas ao próprio automóvel) seja para atentarmos para coisas que nada

1
Sobre o conceito de "afundamento" de hábitos sensório-motores, cf. Bateson (1987:142-3).
2
Guattari (1992:153).

367
têm a ver com nosso meio ambiente físico imediato. Porém, já foi dito que motoristas de
automóvel, quando vistos de fora, tendem a parecer semi-mortos, ou pelo menos parecem estar
seguindo um cadáver.3 Mesmo os mais animados, mesmo os mais velozes, coloridos, brilhantes e
ruidosos motoristas, ainda esses raramente escapam desse adormecimento crônico – pelo
contrário, justamente por sua inconseqüência e extroversão, parecem ser esses os que mais
evidenciam o fato de que não estão completamente conscientes de suas próprias ações. Seria
cômico se não fosse trágico – ou talvez seja cômico justamente por ser trágico.4 Não podemos
viver eternamente em transe. Isso seria suicídio. Quem vive em transe bate o carro, exaure os
recursos naturais, esgota seu próprio corpo. Mas como acordar?5

(2)
O ambiente inteiro vibra com a intensidade sonora de 120dB do Techno que pulsa a mais de
140BPM. Meu corpo não me pertence totalmente; meu quadril, meu tronco, meu pescoço, meus
pés, minhas mãos, minhas articulações, todos os meus órgãos parecem rebelar-se,
movimentando-se por conta própria. Pedaços das velhas paredes que me envolvem chegam a se
soltar, abrindo rachaduras e a perspectiva de que a casa venha abaixo, literalmente. Mas poucos
parecem preocupados. O som é poderoso.6
Na minha frente, um adolescente mexe-se de maneira curiosa. Sobreposto a uma oscilação
lateral de todo o corpo em um movimento harmônico simples, a parte superior de seu corpo
alterna duas poses extremas: (1) os braços cruzados em diagonal, o direito estendido para baixo e
com a mão na altura do cotovelo esquerdo (sem, no entanto, tocá-lo), o esquerdo flexionado e
com a mão na altura do ombro direito (sem, no entanto, tocá-lo); (2) os braços abertos, o direito
dobrado com a mão na altura do ombro direito e ao lado do corpo, o esquerdo estendido e com a
mão na altura do quadril, ao lado do corpo. Poderíamos descrever as duas posições extremas do
movimento como poses de defesa (os braços cruzados por sobre o corpo) e ataque (os braços
abertos ao lado do corpo), ou, numa imagem menos belicosa, como uma alternância vital entre
sístole e diástole. Porém, enquanto olho esse movimento e vibro com o ambiente, só consigo
pensar em uma coisa: "esse sujeito está fazendo alguma coisa com as mãos, alguma coisa que eu

3
Cf. Pirsig (*1984:16 e 309).
4
Referimo-nos aqui ao potencial cômico dos automatismos inconscientes apontado por Bergson (2001).
5
"O piloto automático que funciona enquanto dorme precisa ser despertado para sua própria automaticidade"
(Taussig 1993:25), mesmo que acordar no volante seja "muito mais perturbador do que cair no sono [Far more
disturbing than falling asleep at the wheel while driving is waking up]" (Viola 1995:233), ou justamente por isso.
6
Descrevo aqui uma experiência de campo na festa Aphrodite (Campinas, 21 de agosto de 2001).

368
não estou vendo mas que é praticamente palpável em seu movimento". Tenho a nítida impressão
de que ele pega alguma coisa com a sua mão direita por sob o cotovelo esquerdo e, em seguida,
arremessa-a por sobre o ombro direito, os movimentos do braço esquerdo servindo como
contraponto dessa ação. Talvez seja o fato de eu estar justamente no local onde essa "coisa" está
sendo arremessada ("o que ele está jogando sobre mim?"). Ou talvez seja a urgência e precisão
mecânica com que ele realiza esses movimentos no tempo exato do pulso sonoro, como se a
música fosse o som de um complexo de máquinas do qual ele é apenas uma peça, um elo entre
duas máquinas parciais, pegando o produto de uma delas e jogando-o dentro da outra, para a qual
esse produto servirá como matéria prima. Sim! É isso! Ele está sendo maquinado! Assim como
eu e todos os demais nesse mesmo ambiente vibratório. Somos peças de máquina, uma máquina
cujo som ensurdecedor é justamente a música e cujo produto é principalmente o desejo de
perpetuar seu próprio movimento.
Ele eventualmente muda seu movimento, outros também o fazem, e o complexo de
máquinas virtuais que nos envolve se transforma. Afinal, "com as máquinas desejantes [...], o
uso, o funcionamento, a produção, a formação são uma só coisa".7

(3)
O transe maquínico é a experiência concreta e vívida de que se é a peça de uma máquina em
funcionamento. Essa poderosa dessubjetivação do movimento pela força do hábito é condição
não apenas para a operação automática e sincronizada de máquinas, mas também para nossa
expectativa mais básica de que "isto" continue, "assegurando a perpetuação de nosso caso".8 Mas
o transe maquínico tem conseqüências muito diversas se as máquinas operadas são técnicas ou
desejantes. A hipnose em uma pista de corrida pode significar um êxtase mórbido.9 A hipnose em
uma pista de dança pode significar um êxtase vital. O que aconteceria, porém, se a pista de
corrida pudesse ser percorrida como quem se joga uma pista de dança?
Diariamente nos deparamos, seja diante de operadores especializados, seja em nossas
próprias relações com nossas máquinas cotidianas, com o imperativo da servidão maquínica –
mesmo no terceiro mundo, onde "tecnologia é fetiche", "apropriada como uso suntuário e
ostentação"10 e a presença supérflua de um elo humano entre dois mecanismos alimenta um

7
Deleuze e Guattari (1976:229).
8
Deleuze (1988:133; itálico no original).
9
Cf. Santiago-Lucerna (1994).
10
Garcia dos Santos, in: CTeMe (2005a:6; cf. 2005b:163).

369
inconsciente colonizado. Dos favelados aos mega-investidores, dos operários menos
especializados aos cientistas de ponta, ultrapassando as fronteiras nacionais e culturais, de classe,
gênero, raça, etnia; tudo isso que forma a heterogeneidade irredutível da sociedade capitalista
global parece dever sua consistência a essa espécie de transversal do transe maquínico. A
máquina capitalista simplesmente não pode parar, e a vida fora dessa máquina deve
necessariamente esperar. Por quanto tempo? Não sabemos, e nem temos tempo para pensar nisso.
Aquele que pára é como uma peça que precisa ser substituída, excluído imediatamente do
sistema, passando então a viver o seu negativo, como ferrugem, como atrito. Esse é o lado
patológico do transe maquínico, uma espécie de hipnose que nos transforma em puros reflexos de
necessidades instantâneas, como se as capacidades reflexivas e criativas do cérebro se tornassem
supérfluas e nossa vida se reduzisse aos arcos reflexos da medula espinhal. É preciso fazer
alguma coisa – acordar, antes que seja tarde demais, desse pesadelo que tomamos pela única
realidade possível. Mas há de fato alguma alternativa além de tornar-se uma peça dessa máquina
ou ser excluído de seu funcionamento? Talvez o grande movimento seja perceber que a máquina
da qual nos tornamos uma peça no transe é muito mais vasta do que parece da perspectiva
limitada que habitualmente temos dela, movimento esse que bem poderíamos aprender com
alguns xamãs contemporâneos.
O operador de uma máquina técnica não sabe ao certo de onde vem a matéria prima de
sua máquina, tampouco o último destino de seu produto final. Ele só vê a transformação local que
sua máquina opera, tornando-se um "apêndice vivo"11 dela, nada além disso. Mas pare! Escute!
Esse som que a máquina faz, não pode ser uma linha de fuga, "como se um phylum maquínico,
uma transversalidade desestratificante passasse através dos elementos, das ordens, das formas e
das substâncias, do molar e do molecular, para liberar uma matéria e captar forças"?12 Olhe
novamente: o corpo do operador não é o corpo de uma pessoa dançando ao som dessa máquina?
O construtor da máquina como coreógrafo, seu operador como dançarino, seu barulho como
música.13 Nada mal como movimento de desterritorialização! Tornar-se peça de máquina pode
certamente ser "reduzir-se ao nível da máquina técnica". Essa é, aliás, a regra na nossa sociedade
atual. Mas tornar-se peça de máquina pode ser também fazer da nossa relação com a máquina
uma outra máquina que não é técnica e nos deixarmos maquinar por ela junto com nossas
máquinas técnicas, tornarmo-nos parte dessa outra máquina que muda junto com nossos próprios

11
Marx (1988:41).
12
Deleuze e Guattari (1997a:150).
13
Cf. Thompson (2000:108-9).

370
movimentos: "Máquina abstrata, da qual cada agenciamento concreto é uma multiplicidade, um
devir, um segmento, uma vibração".14 Máquina capaz de revelar no próprio reflexo o germe de
uma nova reflexão.15 O despertar do sonhador dentro do próprio sonho.
Era uma máquina agora a pouco e agora já é outra. Antes fazia um trabalho, agora já faz
outro. Ia numa direção e, de repente, mudou radicalmente. Passamos de um lado ao outro da
máquina instantaneamente, sem embaraço, pois a máquina é formada e funciona justamente a
partir dessas transformações. Afinal, o que pode uma máquina? Que potências ela nos abre?

14
Deleuze e Guattari (1997a:36).
15
Como já disse James, "quando tentamos definir o hábito somos levados às propriedades fundamentais da matéria"
(James 1952:68), e Bergson completa afirmando que "entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão há
[...] todos os graus da liberdade." (Bergson 1999:261; cf. p.263).

371
372
Imagens

373
374
Lista de Imagens:

1. Sonogramas de três oscilações harmônicas simples e da oscilação complexa composta por elas.
2. Sonogramas e espectrograma de três oscilações harmônicas simples e da oscilação complexa
composta por elas.
3. Sonogramas da música "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)".
4. Espectrogramas de "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)".
5. DJ Arlequim em ação.
6. Fotografia xamânica.
7. A música eletrônica de pista é o som de uma máquina em funcionamento?
8. Diagrama do transe.
9. Os dois movimentos brownianos.
10. A evolução da captura do movimento pelo break.
11. A captura do movimento.
12. O pulso constante e o breakbeat.
13. Processo de metronomização da música.
14. A duração contraída.
15. Os sulcos do vinil como índice fonográfico do movimento.
16. Um break de Techno.
17. Dinâmicas de intensidade.
18. Espaço auditivo humano.
19. Gráficos de variação de velocidade de festas.
20. DJs trabalhando as freqüências.
21. DJs trabalhando as velocidades.
22. Gráficos de variação de velocidade de sets do DJ Camilo Rocha.
23. Cronograma de manutenção de máquinas.
24. Fluxograma de diagnóstico e reparo de máquinas a partir do seu estado vibratório
25. Representações gráficas das características típicas de flutuação de intensidade dos três principais
tipos de barulho de máquina.
26. Transdução de um registro fonográfico.
27. Diagrama do circuito DJ-público (processo de individuação da relação som-movimento).

375
376
Imagem 1 – Sonogramas de três oscilações harmônicas simples e da oscilação
complexa composta por elas. Temos aqui quatro sonogramas correspondendo a: (1) um
tom puro de 10kHz; (2) um tom puro de 1kHz; (3) um tom puro de 100Hz; e (4) um tom
composto por tons puros de 10kHz, 1kHz e 100Hz. Esta imagem tem dois objetivos. O
primeiro é introduzir ao leitor os conceitos básicos de leitura de sonogramas, que podem ser
definidos como o caminho percorrido em uma superfície que se desloca horizontalmente
(da direita para a esquerda) de maneira uniforme por um ponto em cuja oscilação vertical
em torno de um centro de equilíbrio são concentradas todas as vibrações que compõem um
som: sua frequência (o grau de contração de suas oscilações); sua intensidade (a amplitude
vertical das oscilações); e sua duração (a extensão horizontal das oscilações). O segundo é
ilustrar como diferenças quantitativas no número de oscilações – i.e., a única diferença
entre os sonogramas (1), (2) e (3) é o número de oscilações por segundo que compõe o som
que cada um deles representa – podem gerar diferenças qualitativas no regime dessas
oscilações – i.e., quando ocorrem simultaneamente, as freqüências mais baixas passam a
"carregar" as freqüências mais altas, como se pode ver no sonograma (4) no qual a onda de
100Hz carrega aquela de 1kHz que por sua ver carrega a de 10kHz (retomaremos esses
conceitos na terceira parte da seção "Intensidade, freqüência e velocidade" do Capítulo 9,
acima). Cf. Exemplo Sonoro 30.

377
378
Imagem 2 – Sonograma e espectrograma de três oscilações harmônicas simples e da
oscilação complexa composta por elas. Temos acima: (1) uma seqüência sonográfica de
trechos de três tons puros de 100Hz, 1kHz e 10kHz e de um tom composto pelas mesmas
três freqüências; e (2) um espectrograma correspondendo a trechos proporcionais da
mesma seqüência de freqüências do sonograma (cf. Exemplo Sonoro 30). O
espectrograma é um gráfico tridimensional no qual o eixo vertical exibe as freqüências
encontradas no som, o horizontal exibe a sua duração temporal e o de profundidade exibe a
sua intensidade (representada pelos tons de cinza, que vão do fundo branco menos intenso
à superfície preta mais intensa). Seria como girar perpendicularmente com relação ao
sonograma e passar a vê-lo de cima (ou de baixo) – pois aquilo que no sonograma é o eixo
vertical (intensidade) se torna, no espectrograma, o eixo da profundidade –, como passar a
ver uma cadeia de montanhas de cima e não do nível do chão – de forma que as vibrações
que eram sobrepostas umas às outras no sonograma se espalham em linhas distintas no
espectrograma. O espectrograma poderia ser descrito como um sonograma acrescido de
uma dimensão, a das freqüências, e sua vantagem com relação ao sonograma é não apenas
a possibilidade de obter uma representação visual da variação de freqüências mas,
principalmente, de obter essa representação de maneira precisa (pois no sonograma vemos
apenas a diferença nos comprimentos de onda, mas não o valor das freqüências
representadas). O espectrograma é produzido através de uma série de decomposições
analíticas (conhecidas como análise de Fourier) de curtos trechos de um som complexo em
suas freqüências simples constituintes (cf. Lehiste 1987:282; Courtney 1992; Engelson
1999; Charley et al. 2001; Schafer 2001:178-9). As três faixas verticais que aparecem nas

379
transições entre as diferentes freqüências correspondem a um som sem altura (freqüência)
definida produzido pela interrupção brusca do som anterior. Com isso, se observa
claramente que, em um espectrograma, linhas horizontais indicam sons harmônicos e
melódicos – i.e., de altura ou freqüência definida – enquanto linhas verticais indicam sons
percussivos – i.e., de altura ou freqüência indefinida. Uma maneira simples para ilustrar
isso seria imaginar que o eixo vertical (freqüências) do espectrograma corresponde ao
teclado de um piano cujas teclas, quando pressionadas, deixam marcas em uma folha de
papel que corre continuamente, que corresponderia ao eixo horizontal (tempo). Assim,
pressionando uma tecla traçaríamos uma linha horizontal, mas apertando todas as teclas
subitamente e de uma vez teríamos uma linha vertical. O objetivo desta imagem é mostrar
como as vibrações representadas bidimensionalmente em um sonograma podem ser
representadas tridimensionalmente em um espectrograma.

380
Imagem 3 – Sonogramas da música "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)".
Temos acima quatro sonogramas produzidos a partir da música "'Re/Pe' (2 Freaks TB &
Tamborim Remix)" (Otto a2000[vol.2]:5) correspondendo a: (1) uma representação da
música inteira, com 7 minutos e 43 segundos de duração (cf. Exemplo Sonoro 1); (2) uma
representação de seus 35 segundos iniciais, obtidos pela ampliação A (cf. Exemplo
Sonoro 2); (3) uma representação de um trecho de aproximadamente 0,6 segundos que
ocorre aproximadamente aos 11 segundos da música onde se observa de maneira
especialmente clara a ocorrência de um pulso sonoro, obtido pela ampliação B (cf.
Exemplo Sonoro 3); (4) uma representação de um trecho de aproximadamente 0,035
segundos que mostra a parte inicial do pulso sonoro isolado no sonograma anterior, obtido
pela ampliação C (cf. Exemplo Sonoro 4). Indo de (1) para (4), o que se observa é um
aumento cada vez maior na resolução visual do som – i.e., uma representação cada vez
mais precisa de todas as micro-oscilações que compõem o som – obtida pela redução da
duração dos trechos representados. Partimos (1) de um intervalo temporal de vários
minutos correspondendo a toda uma música com suas diferentes partes – um objeto da
memória – e chegamos (4) a um intervalo temporal de menos de meio décimo de segundo
correspondente a uma porção praticamente inconsciente do som percebido, passando por
(2) uma parte de alguns segundos da música – um ambiente sonoro – e (3) um som isolado
correspondendo ao seu pulso rítmico elementar – sua unidade mínima. Nosso principal
objetivo com esta imagem é mostrar que a resolução visual de um sonograma depende do
intervalo temporal exibido.

381
382
Imagem 4 – Espectrogramas de "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)". Temos
aqui as seguintes representações gráficas da música "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim

383
Remix)" (Otto a2000[vol.2]:5; cf. Exemplo Sonoro 1): (1) um sonograma da música
inteira; (2) um espectrograma da música inteira exibindo apenas as freqüências de 500Hz a
20kHz (faixas média e aguda); e (3) um espectrograma da música inteira exibindo apenas
as freqüências de 0 a 500Hz (faixas média e grave). Diferentemente do espectrograma da
Imagem 2, estes correspondem a sons concretos extremamente complexos, com freqüências
que vão de menos de 20Hz a mais de 20kHz e se distribuem de maneira variada ao longo
do tempo. A divisão da representação espectral em dois espectros complementares e a
regulagem dos parâmetros de cada um deles teve como único objetivo oferecer uma boa
visualização da evolução dos padrões sonoros, mas outras regulagens e divisões são
possíveis. Observa-se em (2), da esquerda para a direita, um gradual aumento de
intensidade das freqüências agudas (acima de 3kHz), bruscamente interrompido por um
trecho cujas características espectrais são muito próximas às do início, seguido por um
curto trecho onde se observam padrões diversos daqueles das outras partes da música e que
logo dá lugar a um longo bloco sonoro com forte presença de agudos até uma nova queda
no final. Em (3), observa-se um gradual aumento de intensidade das freqüências médias
(acima de 200Hz) do início ao fim da música, mas também uma certa variação na dinâmica
de intensidades das freqüências graves (freqüências abaixo de 200Hz). Percorrendo os três
gráficos verticalmente no trecho de menor intensidade geral do som – o break, facilmente
visível em (1) –, pode-se perceber em que ele corresponde ao momento de menor
intensidade das freqüências graves – cf. (3) –, mas não o das agudas – cf. (2). De maneira
geral, percebe-se ainda a grande padronização característica da música eletrônica de pista
contemporânea, baseada na repetição precisa de sons a partir de regras estruturais precisas
(retomaremos todos esses pontos no Capítulo 9, acima).

384
Imagem 5 – DJ Arlequim em ação. Temos aqui três imagens do DJ
Arlequim: (1) mexendo nos controles do mixer enquanto toca junto
com percussionistas; (2) conversando com o outro DJ em meio ao
gelo seco e o alto volume do som; e (3) tocando junto com outro DJ
em 4 toca-discos. Fonte: Internet.

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Imagem 6 – Fotografia xamânica. Fotografia de um ritual xamânico dos xamãs tamus do
Nepal em cujas manchas o xamã reconheceu os espíritos que participavam do próprio
ritual. Segundo Vitebsky: "O xamã explicou que a linha amarela que atravessa a fotografia
tem o exato aspecto dos espíritos ancestrais que vêm proteger os xamãs à sua chegada. A
barra laranja que atravessa a cabeça dos xamãs é o deus Khhlye Sondi Phhresondi, que os
veio proteger das almas dos feiticeiros. Estes, que, na realidade, são seres humanos vivos
malévolos, vêem-se por cima das cabeças de três xamãs, sob a forma de linhas verdes
onduladas. Os feiticeiros estão ausentes de dois locais significativos, que são aqueles em
que a linha protetora laranja é mais forte, e está sobre a cabeça de um xamã, à direita, que
se recolheu momentaneamente para um descanso e que, por conseguinte, não está
envolvido na batalha espiritual." (Vitebsky 2001a:20) Fonte: Vitebsky (2001a:20-1).

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Imagem 7 – A música eletrônica de pista é o som de uma máquina em
funcionamento? "Basta taparmos os ouvidos ao som da música, num salão de
baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ridículos. Quantas ações humanas
resistiriam [...] passar de chofre do grave ao jocoso, se as isolássemos da música
de sentimento que as acompanha? Portanto, para produzir efeito pleno, a
comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se
dirige à inteligência pura." (Bergson 2001:4) Fonte: Port e Van Gelder (1995:ii).

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(1)

SUJEITO relações automáticas MUNDO


habituais e inconscientes

(2)

intervalo
SUJEITO (desautomatização) MUNDO

Imagem 8 – Diagrama do transe. Temos aqui duas representações diagramáticas da


relação sujeito-mundo: (1) uma relação habitual, marcada por mecanismos automáticos e
inconscientes; e (2) uma relação desautomatizada pela introdução de uma mediação não-
habitual. É preciso notar que na relação (1) também existem mediações, apenas elas já
foram automatizadas pelo hábito, e que as novas mediações introduzidas na relação (2)
tendem a se automatizar com o crescimento da redundância do sistema. A passagem
automatizante de (2) para (1) é natural e ocorre sempre que incorporamos uma nova
habilidade motora, como, por exemplo, andar de bicicleta ou dirigir um carro (ou mesmo na
primeira infância, quando aprendemos a nos relacionar com o mundo pela aquisição de
automatismos sensório-motores). A passagem desautomatizante de (1) para (2), por outro
lado, é anti-natural e exige um esforço adicional, como sabe qualquer um que já teve que
aprender a andar de bicicleta ou dirigir um carro. O caso do transe difere daquele do
aprendizado sensório-motor, no entanto, pois o objetivo não é a aquisição de uma nova
habilidade automática, mas sim a experiência da própria desautomatização: ver o mundo de
um ponto de vista outro (mais ou menos especificado) que o habitual. Tudo se passa como
se a relação sujeito-mundo habitual fosse o efeito sempre mutante da relação sujeito mundo
desautomatizada e a introdução de uma mediação-intervalo entre o sujeito e o mundo fosse,
em realidade, o retorno da díade sujeito-mundo à condição pré-individual da qual ele
emergiu em primeiro lugar. Em outras palavras, (2) é a origem genética empírica de (1),
mesmo que (1) seja a origem fenomenológica de (2), e a desautomatização do transe difere
daquela do aprendizado sensório-motor por ser voltada não para a adaptação ao mundo
habitual, mas sim para a sua transformação. Fonte: inspirado em Gell (1980:240, 244).

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392
Imagem 9 – Os dois movimentos brownianos. Temos aqui: no canto superior esquerdo,
uma fotografia de longa exposição do movimento de uma "partícula browniana"; abaixo da
fotografia, uma representação esquemática desse mesmo movimento elaborada por Albert
Einstein e Leopold Infeld; ao centro, outra representação esquemática do movimento
browniano oferecida por Erwin Schrödinger; e à direta quatro fotografias do "movimento
browniano" de James Brown. Richard Brown, botânico especialista em microscopia,
observou pela primeira vez em 1827 que partículas de pólen em suspensão pareciam mover-
se aleatoriamente. Einstein explicou mecanicamente o fenômeno quase 80 anos depois –
ignorando, curiosamente, as observações anteriores de Brown (cf. Kahane 1997:260) – como
o resultado de choques físicos entre as moléculas invisíveis do meio e as partículas visíveis de
pólen (cf. Einstein e Infeld 1966:58-62). Em outras palavras, a dança permanente e visível de
partículas microscópicas em solução foi explicada como o resultado de uma dança
permanente, porém invisível, das moléculas da própria solução (uma das poucas
manifestações concretas diretas do moto perpétuo; cf. Ord-Hume 1977). O movimento
browniano descoberto na primeira metade do século XIX é, poderíamos dizer, o resultado
fortuito de um limiar da percepção, um produto de nosso grau de resolução visual do mundo
físico: se pudéssemos ver as moléculas da solução, a dança da partícula de pólen se revelaria
como o resultado de inúmeras forças físicas que agem diretamente sobre ela (o movimento
imperceptível que é a contrapartida de um movimento que só pode ser percebido; cf. Deleuze
e Guattari 1997a:74-6). O mesmo poderia ser dito, propomos, do movimento browniano
descoberto na segunda metade do século XX: a dança desta ou daquela pessoa é apenas um
recorte arbitrário de um processo molecular de ação e reação que os bateristas descobriram
empiricamente e com o qual os DJs vêm trabalhando desde o início e com mais intensidade
desde a segunda metade dos anos 70. Fontes: montagem a partir de imagens de Einstein e
Infeld (1966:63), Schrödinger (1992:13), Internet.

393
394
Imagem 10 – A evolução da captura do movimento pelo break. Temos aqui, de cima
para baixo: um grupo de pessoas dançando; elementos de percussão; um baterista; um disco

395
sendo manipulado por um DJ. Num primeiro momento existe muito pouca diferença
objetiva entre aquele que dança e aquele que toca, há uma íntima conexão espontânea entre
som e movimento. Num segundo momento, o baterista assume a função de tocar o som que
fará seu público dançar, criando um descompasso entre som e movimento que deve ser
ativamente transposto na sua relação com seu público. Num terceiro momento, o DJ
assume a função de reproduzir o som tocado por um baterista, só que para um público
diferente do dele, criando mais um descompasso entre som e movimento que deve ser agora
transposto na relação entre o DJ e seu público. Tudo se passa como se o som ligado aos
movimentos do público passasse cada vez por mais mediações, sem nunca deixar de ser
uma espécie de movimento molecular invisível que, uma vez iniciado, gera os movimentos
molares e visíveis das pessoas individuais (que seriam o análogo das "partículas
brownianas" vistas na Imagem 9). Note-se que enquanto a passagem dos percussionistas ao
baterista é uma síntese de muitos instrumentistas no corpo de apenas um instrumentista, a
passagem do baterista para o DJ é uma dissociação entre a fonte de energia e a maquinaria
de decisão, a entrada em cena do maquinista. Fontes: montagem a partir de imagens de
Von Simson (1998), James Brown (v2004), Ahearn (v2002).

396
Imagem 11 – A captura do movimento. A imagem ilustra uma tentativa experimental de
transferência de movimentos da dança tradicional japonesa Jongara-Bushi para um robô
HRP-1S usando o princípio da captura do movimento. De cima para baixo temos:
fotografias de uma dançarina cujos movimentos estão sendo capturados; o esquema
397
abstrato do movimento capturado; uma primeira transposição do movimento para
personagens virtuais de animação gráfica; e a transferência do esquema do movimento
para um robô. Apesar da diversidade de técnicas disponíveis atualmente para a captura do
movimento (mecânica, ótica e eletromagnética, entre outras; cf. Furniss 1999; Willier e
Marque 2001), o princípio geral envolve o mapeamento da disposição relativa de pontos
específicos de um corpo em movimento durante um certo intervalo de tempo, que então é
transformada em informação disponível para manipulação, podendo ser vinculada a
objetos específicos (virtuais, como na animação gráfica, ou concretos, como na robótica).
Assim, por exemplo, os movimentos de uma pessoa dançando podem ser capturados a
partir da captura da variação da posição relativa de pontos localizados em suas articulações
ao longo do tempo. Com isso, o que se captura não é a imagem da pessoa, mas sim o
esquema abstrato de seus movimentos, as posições relativas de cada uma de suas
articulações. Posteriormente (ainda não é comum que o processo seja feito em tempo real;
cf. Kaufman *2003), cada um desses pontos podem ser vinculados a pontos de um outro
corpo, que então realiza a mesma dança. É interessante que além desse outro corpo não
precisar guardar nenhuma semelhança formal com o corpo do dançarino original, bastando
que os pontos localizados nas articulações deste sejam vinculados a pontos determinados
daquele, é possível ainda acrescentar a ele novos movimentos não realizados pelo
dançarino mas que estão de alguma forma relacionados à informação contida no esquema
abstrato do seu movimento (cf. DeGraf e Yilmaz 1999). Assim, um mesmo esquema de
movimento pode ser traduzido para as mais variadas formas corporais, tendo resultados
diversos em cada uma (devido às diferenças dos corpos) mas sendo todas transformações
de um mesmo esquema abstrato de posições relativas. No caso dos DJs, o break poderia
ser visto como uma captura sonora de posições relativas das articulações de um corpo
virtual específico: ao tocar e manipular breaks os DJs estariam atualizando em maior ou
menor grau versões diferentes desse mesmo corpo abstrato. Fonte: montagem a partir de
imagens de Nakaoka et al. (2003:1, 2, 6).

398
Imagem 12 – O pulso constante e o breakbeat. Temos aqui quatro sonogramas
correspondendo a: (1) a música "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)" (Otto
a2000[vol.2]:5) na íntegra (cf. Exemplo Sonoro 1); (2) um trecho de 6,8 segundos dessa
música que se inicia aos seus 32,6 segundos (cf. ampliação A), correspondendo a 16
pulsos (cf. Exemplo Sonoro 6); (3) um trecho de 5,5 segundos da música "É Música!" de
Ramilson Maia (a1999:2), correspondendo a 16 tempos (cf. Exemplo Sonoro 7); e (4) um
trecho de 5,5 segundos da música "'Bob' (Scratchadelic Experience Mix)" do DJ Marky
(cf. Otto a2000[vol.2]:9), correspondendo a 16 tempos (cf. Exemplo Sonoro 8). Foram
adicionadas aos sonogramas (2), (3) e (4) linhas verticais uniformemente espaçadas
correspondendo à grade metronômica abstrata que revelam, além da extrema precisão
métrica das músicas (i.e., o fato de que essa grade abstrata é um fato concreto na música
eletrônica de pista contemporânea, os sons ocorrendo precisamente nos instantes
metronomicamente privilegiados), a diferença entre o pulso constante (com pulsos fortes
em todos os tempos do compasso) e o breakbeat (com a ocorrência não uniforme de pulsos
fortes nos tempos do compasso). Logo abaixo do sonograma (4) observa-se uma divisão da
grade metronômica em quatro níveis hierárquicos: "a", correspondendo aos 16 tempos
elementares; "b", correspondendo a 8 grupos de 2 tempos; "c", correspondendo a 4 grupos
de 4 tempos; e "d", correspondendo a 2 grupos de 8 tempos. O objetivo dessa divisão
hierárquica da grade metronômica é evidenciar o fato de que enquanto no sonograma (2)
os pulsos fortes ocorrem periodicamente em todos os tempos do compasso e portanto se
mantêm no nível mais elementar "a", no sonograma (3) os pulsos fortes ocorrem
periodicamente apenas a cada quatro tempos (observamos a ausência de pulso forte no

399
terceiro, sétimo, décimo primeiro e décimo quinto tempos), descendo para o nível "c", e no
sonograma (4) os pulsos fortes só ocorrem periodicamente a cada oito tempos (observamos
a ocorrência de pulsos fortes apenas no primeiro, segundo e sexto tempos, padrão que se
repete nos oito tempos seguintes), descendo ainda mais para o nível "d". É importante
notar que mesmo havendo uma quantidade maior de pulsos fortes nos sonogramas (3) e (4)
do que no sonograma (2), eles ocorrem em padrões mais complexos do que o pulso
constante. Parece-nos que enquanto o pulso constante favorece a manutenção de um
mesmo movimento através da explicitação da métrica elementar da música (i.e., do
intervalo temporal ideal de sincronização entre som e movimento), o breakbeat favorece
uma mudança na qualidade do movimento através de uma alternação maior ou menor,
mais ou menos regular, entre a explicitação da métrica elementar da música e a sua
manutenção implícita.

400
Imagem 13 – Processo de metronomização da música. Temos aqui três gráficos de
variação de velocidade com medições feitas automaticamente a cada quatro tempos
acrescidas de uma linha de velocidade média correspondendo às músicas: (1) "(Get Up I
Feel Like Being A) Sex Machine", gravada por James Brown (a2004 [vol2]:2) em 1970
(cf. Exemplo Sonoro 10); (2) "I Wanna Funk With You Tonight", gravada por Giorgio
Moroder (a2001:5) em 1976 (cf. Exemplo Sonoro 18); e (3) "Planet Rock", gravada por
Afrika Bambaataa (Columbia a1998 [vol.1]:8) em 1982 (cf. Exemplo Sonoro 20).
Observa-se que se por um lado tanto em (1) quanto em (2) as amostras revelam uma
variação máxima de 5BPM – de 105BPM a 110BPM em (1) e de 123 a 128 em (2) –, por

401
outro, enquanto em (1) observa-se uma variação efetivamente percebida de 3BPM
(descartando os três primeiros compassos nos quais a música passa de 106 a 108BPM, a
variação média de velocidade se dá entre 107 e 109BPM), em (2) a variação efetivamente
percebida é de menos de 0,5BPM (a variação média de velocidade não sai da região entre
125,5 e 126BPM). O fato de que ambas as músicas revelam grandes variações de
velocidade sugere que ambas tiveram seus ritmos tocados por bateristas humanos, mas o
fato de que as variações de (2) se dão em torno de um centro praticamente constante sugere
que, diferentemente do baterista de James Brown, o baterista de Moroder tinha sua
velocidade média controlada por um metrônomo. Quanto ao gráfico (3), a ausência de
qualquer variação de velocidade evidencia o fato conhecido de que sua base rítmica foi
tocada por um sintetizador de ritmos (o Roland TR808). Como bem disseram Brewster e
Broughton: "Com sua batida inabalável, facilitando a mixagem, 'Planet Rock' não poderia
deixar de atrair os DJs." (Brewster e Broughton 2000:243).

402
Imagem 14 – A duração contraída. Duas fotografias de Michael Wesely de
longuíssima exposição mostrando Postdamer Platz (Berlim), a partir de ângulos
diferentes, durante o intervalo de dois anos e dois meses entre abril de 1997 e
junho de 1999. Sobre essas fotos, ele afirma: "Tudo está lá, mas nem tudo é
visível. Todos os trabalhadores que trabalharam na construção estão na imagem,
mas eles [...] não são visíveis." (Wesely, in: Tavares 2004) Interessado em
pesquisar, através da fotografia, a "duração do momento", Wesely nos mostra,
por uma via diversa daquela que Bergson empregou para tratar do mesmo fato
quase um século antes, como o conceito de simultaneidade está diretamente
ligado à "relatividade de menores ou maiores quadros de tempo" (Wesely, in:
Tavares 2004). Com efeito, Bergson já havia concebido "uma consciência mais
tensa que a nossa" para a qual "a História inteira [...] caberia num tempo muito
curto" (Bergson 1999:244). Fonte: Tavares (2004).

403
404
Imagem 15 – Os sulcos do vinil como índice fonográfico do movimento. A imagem, que
mostra um momento da apresentação do DJ de Techno Mau Mau no Skol Beats de 2003
(foto de Fabio Mergulhão), evidencia como é justamente no trecho do disco de vinil que
tem o tom mais escuro – devido à grande mudança na dinâmica de freqüências (cf. Imagem
16) – que o DJ e o público levantam os braços em antecipação ao retorno do ritmo
principal. Trata-se de um momento típico de captura do movimento, quando cria-se uma
tensão que será resolvida pelo retorno do ritmo principal e a energia da dança é renovada.
Se num primeiro momento o break era um trecho de uma música convencional cuja função
original era desviada pelo DJ por sua eficácia na produção da dança, num segundo
momento ele passou a ser também um trecho de uma música feita já especialmente para a
pista de dança e cuja função passou a ser não apenas estimular a dança, mas também
permitir uma transição contínua e suave entre duas músicas. Alguns vêem essas duas
funções do break nesse segundo momento como "bastante distintas" (cf. Shapiro e Lee
2000:217), mas encontramos em ambas o mesmo princípio da captura do movimento: num
caso, captura-se o movimento do público através da quebra temporária do ritmo dominante
da música; no outro, captura-se o movimento de outra música através de códigos
específicos de sincronização. A diferença na cor do vinil é, portanto, o índice tanto de uma
transição sonora quanto de uma transição motora; ou melhor, ela é o índice de um processo
de convergência entre som e movimento. Fonte: montagem a partir de imagem da capa de
Assef (2003).

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Imagem 16 – Um break de Techno. Temos aqui as seguintes representações gráficas da
música "Re/Pe (2 Freaks' TB & Tamborim Remix)" (Otto a2000[vol.2]:5): (1) um

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sonograma da música inteira (cf. Exemplo Sonoro 1); (2) um sonograma de um trecho de
aproximadamente 35 segundos (ampliação A) correspondendo ao seu break (cf. Exemplo
Sonoro 5); (3) um espectrograma do mesmo trecho representado pelo segundo sonograma
exibindo as freqüências de 200Hz a 20kHz; e (4) um espectrograma do mesmo trecho
representado pelo segundo sonograma exibindo as freqüências de 0 a 200Hz. Além da
troca, visível em (2), do pulso constante da música por padrões rítmicos mais sincopados,
observa-se em (1) uma intensidade sonora geral muito menor do que a do resto da música
(o break é um dos poucos exemplos de dinâmica de intensidade no Techno). Um dos
principais motivos para essa diminuição geral da intensidade é a supressão temporária dos
sons mais graves, sempre os mais intensos – observa-se em (4) a supressão temporária dos
sons mais intensos que ocorrem entre 30 e 200Hz (os bumbos). Observa-se em (2) que há
um gradual aumento de intensidade geral até o retorno do bumbo, que em (3) se revela na
forma de uma gradual ocupação das faixas média e aguda do espectro. Uma visão geral do
contexto mais amplo no qual os espectrogramas (3) e (4) se inserem pode ser obtida
comparando-os aos espectrogramas (2) e (3) da Imagem 4.

408
Imagem 17 – Dinâmicas de intensidade. Temos aqui três sonogramas correspondendo a:
(1) a música "Re/Pe (2 Freaks' TB & Tamborim Remix)" (Otto a2000[vol.2]:5) na íntegra
(cf. Exemplo Sonoro 1); (2) os 2 minutos e 32 segundos iniciais da mesma música
representada no primeiro sonograma (relação indicada na ampliação A); e (3) a música
"Bring It Up", gravada por James Brown (a2004[vol.1]:14) em 1967, com duração de 2
minutos e 32 segundos (cf. Exemplo Sonoro 9). O objetivo desta imagem é evidenciar a
grande diferença na dinâmica de intensidade sonora entre (2) o Techno contemporâneo e
(3) o Funk anterior aos anos 70, uma diferença que poderia ser generalizada como sendo
aquela entre músicas que passam por um processo de compressão sonora extrema
eliminando a maior parte do conteúdo expressivo da dinâmica de intensidades e músicas
que fazem uso desse componente expressivo. Em outras palavras, enquanto no (2) Techno
estamos constantemente no limite de intensidade (exceto por trechos isolados como o
break), no (3) Funk oscilamos entre intensidades variadas. Vale notar que enquanto os
picos de intensidade em (1) e (2) correspondem aos sons mais graves do espectro sonoro
do Techno (especialmente o pulso constante do bumbo), os picos de intensidade em (3)
correspondem principalmente ao som médio da voz de James Brown.

409
410
Imagem 18 – Espaço auditivo humano. Representação estilizada do espaço auditivo
humano convencional – área sem quadriculado (A), incluindo freqüências de 20Hz a
20kHz (e portanto excluindo os subgraves e também os ultra-sons) e intensidades que
chegam de -5 a 140dB – sobre a qual adicionamos os limites entre as três faixas de
freqüência (grave, média e aguda) e também um esquema ilustrativo dos espaços
auditivos típicos da música não amplificada – área sombreada (B), incluindo freqüências
de 40Hz a 8kHz e intensidades de 20 a 100dB –, da comunicação oral humana – área
sombreada (C), incluindo freqüências de 100Hz a 6,5kHz e intensidades de 35 a 80dB – e
da música eletrônica de pista – área sombreada (D), incluindo todas as freqüências e as
intensidades de 90 a 130dB. Vê-se nesta representação que os limites inferior (a
intensidade mínima necessária para a audição) e superior (a intensidade máxima acima da
qual o som passa a ser prejudicial ao aparelho auditivo) do espaço auditivo humano (A)
variam de acordo com a freqüência considerada. Nota-se, assim, que um som a 4kHz é
audível a uma intensidade muito menor do que um som a 100Hz, e que um som a 25Hz
pode ser ouvido a uma intensidade muito maior do que um som a 4kHz sem prejuízos ao
aparelho auditivo. Vê-se também que o espaço auditivo usado pela comunicação oral
humana (C) se situa predominantemente na faixa média de freqüências, e também que a
área do espaço auditivo humano convencional (A) é menor na faixa grave, cujas
freqüências são inaudíveis a baixas intensidades. Vê-se ainda que, enquanto o espaço

411
auditivo típico da música não amplificada (B) situa-se predominantemente dentro do
espaço auditivo humano normal e envolve o espaço auditivo usado pela comunicação oral
(C), o espaço auditivo típico da música eletrônica de pista (D) situa-se
predominantemente acima do limite máximo de intensidade normalmente recomendado e
ocupa uma faixa muito mais extensa do espectro de freqüências (a faixa continua para
além das freqüências representadas no gráfico, chegando a menos de 20Hz e a mais de
20kHz), sendo totalmente dissociado daquele da comunicação humana oral (C). Além
disso, é possível observar que a música eletrônica de pista (D) usa uma margem de
variação dinâmica muito menor do que a usada pela música não amplificada (B): 50dB de
variação no caso da música eletrônica; 80dB no caso da música não amplificada. Fontes:
baseado em gráficos e dados encontrados em Olson (1967), Stevens e Warshofsky
(1968:203), Brüel & Kjaer (1984:7; 1998:21), Schafer (2001:168), Everest (2001:51,
107-8), Leventhal (2003:15).

412
Imagem 19 – Gráficos de variação de velocidade de festas. Temos aqui dois gráficos de
variação de velocidade correspondendo a duas festas Techno pesquisadas em Campinas
(SP) em 2003 (identificadas nos gráficos). As informações foram obtidas através de
contagens manuais in loco (através da anotação, em um caderno, do número de pulsos
contados manualmente no intervalo de um minuto indicado por um cronômetro digital) a
intervalos de aproximadamente 30 minutos para o gráfico (1) e 4 minutos para o gráfico
(2). As contagens foram iniciadas no início de ambas as festas e interrompidas antes de seus
términos, após aproximadamente 6 horas e meia em (1) e 7 horas e meia em (2). O valor
obtido em cada contagem corresponde a um recorte arbitrário da variação de velocidade
efetiva, que provavelmente se parece muito mais com a linha contínua que indica a
variação média de velocidade. Além da tendência geral à aceleração (a linha pontilhada
indica a tendência derivada dos valores obtidos), observa-se em ambas as festas uma
mesma dinâmica de variação de velocidade, com momentos de aceleração intercalados por
momentos de estabilidade. É importante notar que uma festa é normalmente sonorizada por
mais de um DJ. Em (1), o DJ Kleber Nisek tocou da primeira até a quarta contagem (sendo
responsável pela aceleração inicial de 140 para 147BPM), o DJ Eto tocou da quarta à oitava

413
contagem (sendo responsável pelo período de estabilidade em torno de 147BPM) e o DJ
Dave the Drummer tocou da oitava contagem em diante (sendo responsável pela segunda
aceleração da festa de 147 para 152BPM). Em (2), o DJ Ivan Griggio tocou nas primeiras
16 contagens (sendo responsável pela aceleração inicial de 137 para 140BPM), o DJ França
tocou da contagem 16 à 36 (mantendo uma certa estabilidade na velocidade entre 141 e
142BPM), o DJ Camilo Rocha tocou da contagem 36 à 56 (promovendo uma curta queda
brusca da velocidade, mas mantendo-a nos 141BPM; cf. gráfico (1) da Imagem 22), o DJ
Lukas tocou da contagem 56 à 86 (sendo responsável pela segunda aceleração da festa,
indo de 142 para 150BPM) e a dupla de DJs Pet Duo tocou da contagem 86 em diante
(sendo responsável pelo segundo momento de estabilidade da festa em torno de 149BPM).
O objetivo desta imagem é demonstrar a maneira como a preferência "antropomotora" por
velocidades entre 120 e 150 se manifesta em exemplos concretos: apesar da diferença de
4,5BPM na velocidade média das duas festas – somando os valores obtidos em cada
contagem e dividindo o resultado pelo número de contagens obtivemos as velocidades
médias de 148BPM para (1) e de 144,5BPM para (2) –, ambas demonstram uma
preferência especial por velocidades entre 140 e 150BPM.

414
Imagem 20 – DJs trabalhando as freqüências. DJs em posição típica de manipulação
estratégica dos controles de equalização de seus mixers. Além do controle constante da
qualidade sonora, os DJs usam a equalização para produzir efeitos sensoriais no público,
como a diminuição ou o aumento da presença de determinada faixa de freqüências, em
especial os graves. Fonte: Internet.

Imagem 21 – DJs trabalhando as velocidades. DJs controlando a velocidade das músicas


através da variação da velocidade de rotação do toca-discos com o controle de pitch. Da
esquerda para a direita: DJ Renato Lopes com a mão direita no pitch; DJ Murphy com a
mão esquerda no pitch e a direita no mixer; DJ Frankie Knuckles com a mão esquerda no
pitch e a direita no mixer. Fontes: DJ World 1(1):9; DJ World 1(1):66; DJ Sound 98:18.

415
416
Imagem 22 – Gráficos de variação de velocidade de sets do DJ Camilo Rocha. Temos
aqui três gráficos de variação de velocidade correspondendo a diferentes apresentações do
DJ Camilo Rocha (indicadas nos gráficos). As informações foram obtidas pelo mesmo
procedimento usado para produzir os gráficos da Imagem 19, porém desta vez não na
própria festa, mas sim a partir de gravações digitais realizadas em campo com a autorização
do DJ – o que possibilitou a produção de gráficos mais detalhados e precisos, com a

417
realização de uma contagem a cada dois minutos. Mesmo assim, o valor obtido em cada
contagem é ainda um recorte arbitrário da variação de velocidade efetiva, que é
provavelmente mais fielmente representada pela linha contínua que indica a variação média
de velocidade. É importante notar que esses gráficos correspondem a apenas uma parte
(aquela comandada pelo DJ Camilo Rocha) de uma seqüência musical ininterrupta muito
mais ampla composta pelos vários DJs que tocam em uma mesma festa – uma visão da
maneira como a variação de velocidade do set de um DJ se insere na dinâmica geral da
festa pode ser obtida comparando o gráfico (1) desta imagem com o gráfico (2) da Imagem
19. O objetivo desta imagem é ilustrar com um exemplo concreto a maneira como a
precisão metronômica da música eletrônica permite a especialização de DJs e de seu
público em faixas de velocidade bastante precisas, algo inimaginável em músicas tocadas
por instrumentistas humanos nas quais a variação de velocidade é não apenas inevitável
mas faz mesmo parte de sua linguagem expressiva (cf. Imagem 13). Essa especialização
pode ser observada tanto na clara preferência do DJ pelas velocidades entre 140 e 145BPM
quanto no brusco aumento de velocidade observado em (3) entre as contagens 40 e 47,
quando o DJ passa de 141 para 148BPM atendendo aos pedidos do público por músicas
mais rápidas – essa aceleração pode ser escutada no Exemplo Sonoro 29.

418
Imagem 23 – Cronograma de manutenção de máquinas. Cronograma típico da
evolução do nível de vibração de uma máquina genérica desde quando começa a
funcionar (quando passa por um período de acomodação), passando por um período de
estabilidade (durante o qual deve-se realizar manutenções planejadas) e chegando até o
ponto de possível colapso, precedido por um grande aumento no nível de vibração que
indica a necessidade de reparos. Uma vez realizado o conserto da máquina, o colapso é
evitado e seu nível de vibração volta ao normal. Fonte: Brüel & Kjaer (1986:35).

419
420
Imagem 24 – Fluxograma de diagnóstico e conserto de máquinas a partir do seu
estado vibratório. Durante o diagnóstico, a vibração pode ser classificada como
"benéfica" – caso em que não há a necessidade de intervenção – ou "maléfica". Sendo
maléfica, pode ser "forçada" – ocorrendo devido à influência direta de uma força externa
– ou "natural" – ocorrendo (durante um certo tempo) mesmo quando toda força externa é
removida (sobre vibrações forçadas e naturais, cf. Wowk [s.d.]:1-2; Shigley 1961:438;
Commtest Instruments 2003:82-4). Uma vez diagnosticado o tipo de vibração, o
engenheiro pode proceder ao conserto visando a eliminação da vibração maléfica ou a sua
redução a níveis benéficos. Fonte: Wowk ([s.d.]:2).

421
422
Imagem 25 – Representações gráficas das características típicas de flutuação de
intensidade dos três principais tipos de barulho de máquina. É possível classificar os
sons mais comuns de máquinas como "constante" – quando a intensidade sonora permanece
praticamente constante ao longo do tempo (como em máquinas que realizam ações
repetitivas em uma freqüência alta o suficiente para não serem percebidas individualmente)
– e "inconstante" – quando a intensidade sonora varia ao longo do tempo –, podendo este
último ser "flutuante" – quando as variações na intensidade sonora são suaves e de
dinâmica variável ao longo do tempo (como em máquinas que realizam muitas ações
diferentes em situações diferentes) – ou "impulsivo" – quando as variações na intensidade
sonora são bruscas e de dinâmica estável ao longo do tempo (como em máquinas que
realizam ações repetitivas em uma freqüência baixa o suficiente para serem percebidas
individualmente). Fonte: Yoshinaga et al. (2004:2).

423
424
Imagem 26 – Transdução de um registro fonográfico. Temos aqui: (1) um disco sendo
tocado em um toca-discos (Assef 2003; cf. Imagem 15); (2) fotografia ampliada do contato
da agulha de um toca-discos com o sulco de um disco (DJ Camilo Rocha a2000); (3)
imagem ampliada dos sulcos de um disco (Ord-Hume et al. 2001:27); e (4) esquema das
vibrações típicas da agulha de um toca-disco quando percorre o sulco de um disco (Ord-
Hume et al. 2001:26). As fotos são de objetos diferentes e retiradas de fontes diferentes.
Nosso objetivo aqui é evidenciar as relações necessárias entre as microvibrações da ponta
da agulha do toca-discos (4) enquanto percorre o sulco do disco (3) – o movimento de um
"inconsciente auditivo" (cf. Schouten e Cirino 2004) – e a vibração (vibe) produzida na
relação entre o DJ e seu público (1; cf. Imagem 15). O trajeto que a ponta da agulha
percorre no espaço ao longo do tempo pode, assim, ser visto como uma síntese do
complexo de movimentos que compõe a máquina sonoro-motora que lhe corresponde. É
interessante notar que o sulco de um disco de vinil é uma representação gráfica do som
análoga àquela de um sonograma, diferindo apenas por ser tridimensional (existem
oscilações verticais e horizontais com relação ao eixo temporal constante) enquanto o
sonograma é bidimensional (existem apenas oscilações verticais com relação ao eixo
temporal constante). Fontes: Assef (2003, capa), DJ Camilo Rocha (a2000, encarte), Ord-
Hume et al. (2001:26-7).

425
426
DJ

movimento

som
Ressonância
(vibe, transe maquínico,
xamanismo, dança)

público

Imagem 27 – Diagrama do circuito DJ-público (processo de individuação da relação


som-movimento). Pretendemos representar aqui não apenas a relação sincrônica e
contingente do DJ e seu público na situação da festa (como, por exemplo, o diagrama
proposto por Becker e Woebs 1999:68-9), mas, além disso, o processo diacrônico
(histórico) genético e evolutivo do corpo maquínico da música eletrônica. Em outras
palavras, as influências imediatas e recíprocas entre DJ e público representadas pelo eixo
vertical (se o DJ altera ou não o som, se o altera numa ou noutra direção; se o público
dança ou não, se dança "assim" ou "assado") são apenas atualizações contingentes de um
processo de coevolução do som e do movimento representado no eixo horizontal. Se no
eixo vertical a ênfase recai nas transformações imediatas dos pólos da relação (o DJ faz
"isso" ou "aquilo", o público faz "isso" ou "aquilo outro"), no horizontal ela recai sobre as
transformações evolutivas da própria relação (o som-movimento vai "nessa" ou "naquela"
direção, segue "essa" ou "aquela" tendência etc.). Trata-se de um deslocamento da atenção,
dos pólos da relação (eixo vertical), para a própria relação (eixo horizontal). O circuito DJ-
público aqui proposto pretende, assim, sintetizar o funcionamento de um processo de
individuação da relação som-movimento em que os pólos (DJ e público) não existem senão
como os motores contingentes da relação meta-estável som-movimento que se gera entre
eles. Retornando ao diagrama do transe previamente exposto (cf. Imagem 8, acima),
poderíamos dizer que o DJ assume o papel do intervalo de desautomatização da relação de
seu público com o mundo e que ele opera essa desautomatização através da produção da
sinergia coevolutiva entre som e movimento pela sondagem, usando suas ferramentas
sonoras, das tendências ao movimento de seu público, de seus limiares de ressonância
imanentes. O DJ comandaria assim a "ponta da cunha" do transe maquínico pois faria da
ressonância entre o som que ele propõe e o movimento que ele provoca a matéria de uma
explicitação desautomatizante das relações automáticas habituais e inconscientes que ligam
o seu público ao mundo. Percebe-se assim que a máquina da qual cada um se percebe uma
peça no transe maquínico não é apenas criada na interação com o DJ, mas, acima de tudo,
explicitada nessa relação, existindo já antes dela na forma latente de maquinismos
inconscientes.

427
428
Anexo
CD de Exemplos Sonoros

429
430
Apresentamos como Anexo a esta tese um CD de Exemplos Sonoros que pretende facilitar a
compreensão do texto. Recomendamos fortemente a sua audição em conjunto com a leitura do
texto e dos gráficos. O CD é composto por 34 Exemplos Sonoros divididos em sete grupos
principais: (1) O exemplo "'Re/Pe' (2 Freaks TB & Tamborim Remix)"; (2) O pulso constante e o
breakbeat; (3) O break e o breakbeat; (4) A metronomização e o pulso constante; (5) Música
maquínica; (6) Gravação de campo; e (7) Sínteses.

(1)
O EXEMPLO "'RE/PE' (2 FREAKS TB & TAMBORIM REMIX)"

Ex. Música Duração Fonte Observação


1 "'Re/Pe' (2 Freaks TB & 7'42" Otto (a2000[vol.2]:5) Música na íntegra. Corresponde ao primeiro
Tamborim Remix)" – sonograma (1) das Imagens 3, 4, 12, 16 e 17.
Camilo Rocha e DJ Yah!
2 "'Re/Pe' (2 Freaks TB & 35" Otto (a2000[vol.2]:5) Os primeiros 35 segundos da música.
Tamborim Remix)" – Corresponde ao sonograma (2) da Imagem 3.
Camilo Rocha e DJ Yah!
3 "'Re/Pe' (2 Freaks TB & 0,6" Otto (a2000[vol.2]:5) Trecho de menos de um segundo da música.
Tamborim Remix)" – Corresponde ao sonograma (3) da Imagem 3.
Camilo Rocha e DJ Yah!
4 "'Re/Pe' (2 Freaks TB & 0,035" Otto (a2000[vol.2]:5) Trecho de menos de 0,1 segundo da música.
Tamborim Remix)" – Corresponde ao sonograma (4) da Imagem 3.
Camilo Rocha e DJ Yah!
5 "'Re/Pe' (2 Freaks TB & 35" Otto (a2000[vol.2]:5) O break da música. Corresponde à Imagem 16.
Tamborim Remix)" –
Camilo Rocha e DJ Yah!

(2)
O PULSO CONSTANTE E O BREAKBEAT

Ex. Música Duração Fonte Observação


6 "'Re/Pe' (2 Freaks TB & 6" Otto (a2000[vol.2]:5) Dezesseis tempos da música. Corresponde ao
Tamborim Remix)" – sonograma (2) da Imagem 12.
Camilo Rocha e DJ Yah!
7 "É Música!" – Ramilson 5" Ramilson Maia Dezesseis tempos da música. Corresponde ao
Maia (a1999:2) sonograma (3) da Imagem 12.
8 "'Bob' (Scratchadelic 5" Otto (a2000[vol.2]:9) Dezesseis tempos da música. Corresponde ao
Experience Mix) – DJ sonograma (4) da Imagem 12.
Marky

(3)
O BREAK E O BREAKBEAT

Ex. Música Duração Fonte Observação


9 "Bring It Up" – James 1'37" James Brown Música na íntegra. Corresponde ao sonograma (3)
Brown (1967) (a2004[vol.1]:14) da Imagem 17.
10 "(Get Up I Feel Like 1'52" James Brown Trecho da música cuja variação de velocidade é
Being A) Sex Machine" – (a2004[vol.2]:2) representada na íntegra no gráfico (1) da Imagem
James Brown (1970) 13.
11 "Amen Brother" – The 16" Harrison (v2004) Trecho com o break da música.
Winstons (1969)
12 "Apache" – Michael 26" Internet Trecho com o break da música.
Viner's Incredible Bongo
Band (1973)

431
13 "Scorpio" – Dennis 31" Internet Trecho com o break da música.
Coffey & the Detroit
Guitar Band
14 "Give It Up Or Turn It 1'00" Internet Trecho com o break da música.
Loose" – James Brown
15 "Funky Drummer" – 50" Internet Trecho com o break da música.
James Brown (1970)
16 "Adventures Of Grand 2'52" Columbia Trecho da música no qual se pode perceber a
Master Flash On The (a1998[vol.1]:4) maneira como o DJ concatena e repete trechos de
Wheels Of Steel" – músicas diferentes sem interrupção no andamento
Grandmaster Flash musical.
(1981)

(4)
A METRONOMIZAÇÃO E O PULSO CONSTANTE

Ex. Música Duração Fonte Observação


17 "Love To Love You 57" Donna Summer Trecho do início da música.
Baby" – Donna Summer (a2004:1)
(1975)
18 "I Wanna Funk With You 1'59" Giorgio Moroder Trecho do início da música cuja variação de
Tonight" – Giorgio (a2001:5) velocidade é representada na íntegra no gráfico
Moroder (1976) (2) da Imagem 13.
19 "I Feel Love" – Donna 1'42" Donna Summer Trecho do início da música.
Summer (1977) (a2004:3)
20 "Planet Rock" – Afrika 1'23" Columbia Trecho do meio da música cuja velocidade
Bambaataa & The Soul (a1998[vol.1]:8) constante é representada no gráfico (3) da
Sonic Force (1982) Imagem 13.

(5)
MÚSICA MAQUÍNICA

Ex. Música Duração Fonte Observação


21 "Acid Tracks" – Phuture 59" Internet Trecho da música.
(1987)
22 "Washing Machine" – Mr. 56" Internet Trecho da música.
Fingers (1987)
23 "House Nation" – 1'00" Trax Records Trecho da música
Housemaster Boyz (1985) (a2003:1)
24 "Pontapé" – Renato 1'19" Anderson Noise Trecho da música.
Cohen (a2002:10)
25 "Funky" – Julian 1'47" SP Groove Trecho da música.
Liberator e Henry Cullen (a2002:10)
26 "Chegados" – Pet Duo, 1'38" ST2 (a2004:2) Trecho da música.
Holgi Star e Stereo Jack
27 Desconhecida. 1'48" Internet Trecho de set do DJ brasileiro de Techno Spicee.
28 "Macumba" – DJ 2'12" Internet Música produzida pelo DJ Arlequim (cf. a primeira
Arlequim (2001) seção do Capítulo 2, acima). Registo produzido a
partir de arquivo digital de baixa qualidade.

432
(6)
GRAVAÇÃO DE CAMPO

Ex. Música Duração Fonte Observação


29 Desconhecida. 4'19" Gravação de campo Trecho de gravação de um set do DJ Camilo
Rocha feita durante a festa Bosque Beats
(Americana-SP, 11/05/03). A variação de
velocidade ocorrida ao longo desse set pode ser
vista no gráfico (3) da Imagem 22. O trecho
aqui escolhido corresponde aproximadamente
aos minutos 43 a 46 do set, quando o DJ
aumenta de maneira acentuada a velocidade da
música.

(7)
SÍNTESES

Ex. Música Duração Observação


30 Tons puros e compostos 9" Este exemplo corresponde às Imagens 1 e 2 e é composto da seguinte
seqüência:
• 0" – um tom puro de 100Hz
• 2" – um tom puro de 1kHz
• 4" – um tom puro de 10kHz
• 6" – um tom composto das freqüências de 100Hz, 1kHz e
10kHz.
31 Freqüências agudas 47" Este exemplo é composto da seguinte seqüência de tons puros :
• 0" – 20kHz
• 2" – 19kHz
• 4" – 18kHz
• 6" – 17kHz
• 8" – 16kHz
• 10" – 15kHz
• 12" – 14kHz
• 14" – 13kHz
• 16" – 12kHz
• 18" – 11kHz
• 20" – 10kHz
• 22" – 9,5kHz
• 24" – 9kHz
• 26" – 8,5kHz
• 28" – 8kHz
• 30" – 7,5kHz
• 32" – 7kHz
• 34" – 6,5kHz
• 36" – 6kHz
• 38" – 5,5kHz
• 40" – 5kHz
• 42" – 4,5kHz
• 44" – 4kHz
• 46" – 3,5kHz

433
32 Freqüências médias 29" Este exemplo é composto da seguinte seqüência de tons puros :
• 0" – 3kHz
• 2" – 2,5kHz
• 4" – 2kHz
• 6" – 1,8kHz
• 8" – 1,6kHz
• 10" – 1,4kHz
• 12" – 1,2kHz
• 14" – 1kHz
• 16" – 900Hz
• 18" – 800Hz
• 20" – 700Hz
• 22" – 600Hz
• 24" – 500Hz
• 26" – 400Hz
• 28" – 300Hz
33 Freqüências graves 29" Este exemplo é composto da seguinte seqüência de tons puros :
• 0" – 200Hz
• 2" – 180Hz
• 4" – 160Hz
• 6" – 140Hz
• 8" – 120Hz
• 10" – 100Hz
• 12" – 90Hz
• 14" – 80Hz
• 16" – 70Hz
• 18" – 60Hz
• 20" – 50Hz
• 22" – 40Hz
• 24" – 30Hz
• 26" – 20Hz
• 28" – 10Hz
34 Do tom ao pulso 1'39" Este exemplo é composto pela repetição de pulsos periódicos a
diferentes freqüências, de 200 a 0,2Hz, na seguinte seqüência:
• 0" – 400Hz
• 2" – 200Hz
• 4" – 100Hz
• 6" – 50Hz
• 8" – 25Hz
• 10" – 20Hz
• 12" – 15Hz
• 14" – 10Hz (=600BPM)
• 16" – 5Hz (=300BPM)
• 20" – 2,5Hz (=150BPM)
• 24" – 1Hz (=60BPM)
• 32" – 0,5Hz (=30BPM)
• 40" – 0,4Hz (=24BPM)
• 1'00" – 0,3Hz (=18BPM)
• 1'20" – 0,2 (=12BPM)

434
Referências

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*2005. "Funk carioca na terra da rainha" O Estado de S.Paulo 23 de maio, pp.L16
WILLMOT, B.
*1999. "Bass: The Final Frontier" MUZIK 50:164-5
ZANETE, Emerson
*2004. "Quebrando os ingleses" Beatz 11:70
ZANETTI, Emerson
*2003. "Trance People" Beatz 6:14-6
ZAPPAROLI, Alecsandra
*1998. "Barulho sem lei" Veja SP 16 de setembro, pp.8
ZIONI, Letícia
*2004. "Encontrar alguém" Beatz 11:36-9
ZONTA, Natália
*2004. "Em São Paulo, funk é noite de luxo" O Estado de S.Paulo 9 de outubro, pp.C1, C3
ZONTA, Natália e FREITAS, Angélica
*2004. "Isolamento acústico, solução para poucos" O Estado de S.Paulo 14 de julho, pp.C3

476
PARTE 3 (v) – Vídeos:
AHEARN, Charlie
v2002. Wild Style. DVD. 94min. São Paulo: ST2/Rhino [1982]
CARELLI, Vincent
v1988. Pemp. VHS:26'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
v1993/1994. Eu já fui seu irmão. VHS:32'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
v1996. A festa da Moça. VHS:18'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
v[s.d.] Vídeo nas Aldeias. VHS. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
CARELLI, Vincent e GALLOIS, Dominique T.
v1990. O Espírito da TV. VHS:18'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
v1993. A Arca dos Zo'é. VHS:22'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
GALLOIS, Dominique T.
v1994. Meu amigo garimpeiro.... VHS:23'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista
HARRISON, Nate
v2004. Can I Get An Amen? Arquivo digital. 18'08"
<http://dvblog.org/can-i-get-an-amen-nate-harrison>
JAMES BROWN
v2004. The 50th Anniversary Collection. CD duplo e DVD. Rio de Janeiro: Universal
MICHILES, Aurélio
v1993. Davi contra Golias: Brasil Caim. VHS:10'. São Paulo: Instituto Socioambiental
MÜLLER, Regina P. e VALADÃO, Virgínia
v1997. Morayngava. VHS:16'. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista/Unicamp
TELLES, Fernanda
v2004. Introduzindo Drum'n'Bass no Brasil. DVD, 183". São Paulo: Trama
THE CHEMICAL BROTHERS
v2003. Singles 93-03. DVD. 1'52". São Paulo: EMI/Virgin
WACHOWSKI , Andy e WACHOWSKI , Larry
v1999. The Matrix. 136". Warner Bros.

477
478
PARTE 4 (a) – Áudio:
ANDERSON NOISE
a2002. Noise Music Compilation: 100% Mix Anderson Noise. CD. São Paulo: Universal Music
B.U.M.
a2002. Extratos Eletrônicos. CD. Rio de Janeiro: Nikita Music
a.[s.d.] Underground Beat 2. CD. Rio de Janeiro: B.U.M.
BEASTIE BOYS
a1987. Licese to Ill. LP. Rio de Janeiro: CBS/Epic
BRYAN GEE
a2003. The sound of Movement mixed by Bryan Gee: Perpetual Motion – Drum & Bass. CD. São Paulo:
Movement/ST2
CHRIS LIBERATOR
a2000. Set Fire. São Paulo: Trama/TEC
COLUMBIA
a1998. Rock It. CD duplo. Vols.1 e 2. UK: Columbia
DJ CAMILO ROCHA
a1999. Rave Trip. CD. São Paulo: Trama
a2000. Rave Trip 2. CD. São Paulo: Trama
DJ DOLORES e ORCHESTRA SANTA MASSA
a2002. Contraditório? CD. São Paulo: Candeero/Trama
DJ MAGIC MIKE e TECHMASTER P.E.B.
a1998. Gods of Bass. CD. Sarasota: NMG
DJ MARKY
a2001. Audio Architecture: 2. CD. São Paulo: Trama
DJ MARKY e XRS
a2003. In Rotation. CD. Rio de Janeiro: Innerground Music/Bulldozer Media
DJ PATIFE
a2001. Cool Steps: Drum'n'Bass Grooves. CD. São Paulo: Trama
DJ VANNI
a2004. Spinning Around the World. CD duplo. Vols. 1 e 2. São Paulo: ST2/Tropic
DJ WORLD
a2000. Sambaloco 1 ano. CD. São Paulo: DJ World (no.20 [série antiga])
a2001a. Brazilian Underground Movement Collection. CD. São Paulo: DJ World (no.1)
a2001b. Hypno Beats. CD. São Paulo: DJ World (no.3)
DONNA SUMMER
a2004. The Journey: The Very Best of Donna Summer. CD. Rio de Janeiro: Island Def
Jam/Universal/Mercury
DRUMAGICK
a2004. Checkmate! CD. Rio de Janeiro: Segundo Mundo

479
GIORGIO MORODER
a2001. The Best of Giorgio Moroder. CD. Hamburg: Repertoire
JAMES BROWN
a2004. The 50th Anniversary Collection. CD duplo e DVD. Rio de Janeiro: Universal
KRAFTWERK
a1974. Autobahn. LP. Parlophone
a1978. The Man-Machine. LP. Capitol Records
a2005. Minimum – Maximum. CD duplo. Rio de Janeiro: EMI
M4J
a1998. Brazil: Electronic Experience. CD. São Paulo: Trama
a2000. Folklore Nuts: brazilian electronic music. CD. São Paulo: Trama
MUNDO MIX MUSIC
a1998. Electronic Music Brasil. CD. São Paulo: Mundo Mix Music
a[s.d.]. Mix França-Brasil Eletrônico. CD. São Paulo: Mundo Mix Music/Bureau Brésil de La Musique
Française/Fnac/Energia 97FM
OTTO
a1998. Samba pra Burro. CD. São Paulo: Trama
a2000. Changez Tout: Samba pra Burro Dissecado. CD duplo. Vols. 1 e 2. São Paulo: Trama
PUBLIC ENEMY
a1988. It takes a nation of millions to hold us back. LP. Rio de Janeiro: CBS/Epic
RAMILSON MAIA
a1999. É música! CD. São Paulo: Trama
a2001. Drum'n'Bass Brazuca. CD. São Paulo: R. Comunicação
a2003. Drum'n'Bass Brasil. CD. São Paulo: Mega Music
RAUL SEIXAS
a1998. Raul Seixas. CD. São Paulo: Mercury/PolyGram
ROBERT HOOD
a1998. Internal Empire. Berlin: Tresor
SAMBALOCO
a1999. Sambaloco compilation 1. CD. São Paulo: Trama
SP GROOVE
a2002. SP GROOVE 3 ANOS!!! Urbanelectronictechnofunkedtwentyfirstcentury. CD. São Paulo: Turn
Left/Paradoxx Music
ST2
a2002. Penta Brasil Electronic. CD. São Paulo: ST2
a2003. Cidade de Deus Remix. Vols. 1 e 2. CD. São Paulo: ST2
a2004. Lov.e por São Paulo. CD. São Paulo: ST2 Music
TALVIN SINGH
a1997. Anokha: Soundz of the Asian Underground. CD. New York: Quango/Polygram

480
a1998. OK. CD. New York: Island Records
THE PRODIGY
a1994. Music for the Jilted Generation. CD. São Paulo: Roadrunner/ XL
TRAX RECORDS
a2003. Essentials Vol.1. CD. São Paulo: Sum Records
ZISKIND, Hélio e WISNIK, José M.
a1989. O Som e o Sint. K7. São Paulo: Companhia das Letras

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PARTE 5 (entrevistas realizadas pelo autor)

Obs: Entrevistas por e-mail ou telefone foram indicadas. Na ausência de indicação, a entrevista
foi realizada face-a-face. Entrevistados são listados por ordem alfabética e entrevistas por ordem
cronológica.

Chico Correa
• entrevista por telefone, dezembro de 2001
DJ Arlequim
• entrevista por e-mail, 15 de novembro de 2001
• entrevista por e-mail, 16 de novembro de 2001
• entrevista por telefone 1, novembro de 2001
• entrevista por telefone 2, novembro de 2001
• entrevista por telefone 3, dezembro de 2001
DJ Camilo Rocha
• entrevista, 10 de maio de 2003
DJ Mantrix
• entrevista por e-mail, 27 de novembro de 2001
• entrevista por e-mail, 12 de dezembro de 2001
• entrevista por e-mail, 13 de dezembro de 2001
DJ Ramilson Maia (Ram Science)
• entrevista por telefone, 7 de novembro de 2001
Mr. Lemon
• entrevista por e-mail, 25 de agosto de 2002
• entrevista por e-mail, 26 de agosto de 2002
• entrevista por e-mail, 29 de agosto de 2002
• entrevista por e-mail, 30 de agosto de 2002

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