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Anseios Crípticos
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Copyright © 2001 Paulo Leminsky
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2001
h ttp :/ / g r o u p s .g o o g le .c o m / g r o u p / d ig ita ls o u r c e
ORELHAS DO LIVRO
Em 1986, a convite de Criar Edições, Paulo Leminski
organizou, em dois volumes, textos nos quais deixara fluir seu
talento de polemista-ensaísta-demolidor-criador: seus anseios. O
resultado foram duas pastas abarrotadas com recortes de jornais,
cópias de posfácios e prefácios, e textos datilografados. O primeiro
volume — Anseios Crípticos 1 / anseios teóricos — foi editado em
1986. O segundo, os anseios práticos, deveria sair no ano
seguinte.
No entanto, só hoje chega aos leitores. Por um lado, os
azares dos planos econômicos colocaram a Criar numa
quarentena da qual só retornou em outubro de 2000. Por outro,
em 1989, Paulo resolveu polemizar em outras dimensões. Não
bastasse, os originais sumiram, resistindo a três mudanças e, 15
anos depois, se materializaram no fundo de uma caixa na qual
deveriam estar apenas exemplares de antigos suplementos
literários.
São estes os anseios/ensaios que publicamos agora.
Diferentemente dos que estão no primeiro volume, no qual
Leminski dizia ter reunido as noções “teóricas” básicas a partir
das quais pensava, estes, os “práticos”, estão voltados para a
análise de obras e de autores.
Reunidos pela primeira vez em livro e na ordem que
Leminski estabeleceu, discutem obras de Brecht, Rimbaud,
Haroldo de Campos, Sartre, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha,
Dante, Whitmann, Fante, Jarry, Ferlinghetti, John Lennon,
Mishima, Becket, Joyce, Petrônio.
Alguns são inéditos, outros são inéditos em livro, outros
foram publicados em jornais e revistas de circulação nacional
(Folha de S.Paulo, Leia Livros, Veja), e outros saíram em jornais de
tiragem restrita ao Paraná (Gazeta do Povo, Correio de Notícias).
Em todos, a marca que fez de Leminski um polemista de talento,
colocando em questão as obviedades literárias do momento, do
que estamos todos muito carentes nos dias de hoje, quando o
pensamento único nos provoca infindáveis bocejos de tédio.
Outras obras da CRIAR EDIÇÕES:
• Crítica da Razão Tupiniquim, de Roberto Gomes
• Mal Comportadas Línguas, de Sírio Possenti
• Riachuelo, 266, de Carlos Dala Stella
• Alma de Bicho, de Roberto Gomes
• Nuvem Feliz, de Alice Ruiz
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Poucos livros têm biografia tão acidentada como este
Satyricon, o primeiro dos romances, a obra mais
escandalosamente original da literatura latina.
Oficialmente, consta como sendo o romance escrito por
Caius Petronius dito Arbiter, cortesão e íntimo do imperador Nero,
que este condenou ao suicídio, no ano de 65, por se achar
envolvido na conspiração da família dos Pisões contra o louco
imperador poeta.
Mas na ficha do Satyricon, tudo são conjecturas e
hipóteses que já produziram rios de tinta entre os sábios, do
Renascimento para cá: o livro, aliás, foi um dos primeiros textos
impressos; sua primeira edição, em Milão, é de 1477.
O texto que hoje temos é, certamente, parte de um texto
maior, que se perdeu nos azares da História, talvez um quinto
apenas do original (fragmentos dos capítulos XV e XVI). Mesmo
assim, esse texto se sustenta como uma obra inteira.
A autoria também não é segura.
Toda a argumentação sobre a autoria se baseia num
célebre trecho do historiador romano Tácito, que viveu por volta de
120 da nossa era, cinqüenta e cinco anos depois da morte de
Caius Petronius.
Nele, Tácito fala do cortesão voluptuoso que, condenado
ao suicídio por Nero, escreve ao morrer uma longa sátira para
zombar do ridículo tirano.
Certas evidências, porém, laboram contra a identificação
do Satyricon, que temos hoje, com essa sátira do cortesão de Nero.
Primeiro, porque não é verossímil que um homem pouco
antes de morrer tenha forças para compor uma obra que, no
original, deveria ter algo como duas mil páginas.
Depois, há indícios de linguagem e estilo que acusam,
me parece, a presença de giros e palavras característicos de
épocas posteriores ao reinado de Nero. A oralidade e o registro
escrito do latim vulgar, por exemplo, o sermo humilis, parecem ter
sido introduzidos pela pregação cristã
Por fim, há o estranho silêncio dos escritores romanos
posteriores (Marcial, Suetônio, Plínio, Juvenal, Quintiliano) sobre
uma obra que deveria ter causado grande impacto na época em
que surgiu.
Os primeiros escritores latinos que mencionam o
Satyricon, entre eles, São Jerônimo, já são do século III da nossa
era.
Alguns estudiosos chegaram mesmo a atribuir ao
Satyricon uma data muito mais tardia. Um erudito mais precavido
atribuiu a obra a um bispo de Bolonha do século V!
Nem sequer se sabe ao certo se o nome original da obra
era mesmo Satyricon.
Em meio a todas essas brumas de dúvidas, só uma
certeza permaneceu unânime. É a obra mais original da literatura
latina. Aquela que traz mais fundo a marca da personalidade de
um autor.
Coisas assim a gente costuma chamar, hoje, de obras-
primas.
3
Não adianta. A literatura latina é pálido reflexo da grega,
com a qual mantém uma relação espetacular, de original para
espelho. Virgílio já está todo em Homero e Teócrito. Horácio é
Alceu, Safo e Píndaro. Cícero é Demóstenes. Ovídio é uns
alexandrinos. Tácito e Tucídides. Todo escritor romano parece
algum grego.
Claro. Em literatura, é a forma que é social. E o
elemento material transmissível, a concretude do processo
criativo. As formas e que são o material herdável. E da literatura
grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus designs de
texto. Seus programas. Seu software morfológico. Suas
configurações desejáveis. Suas Gestalts significativas.
Nesse quadro de dependência semiótica, alguns
momentos de originalidade romana: o teatrólogo Plauto, o poeta
Catulo, o satírico Marcial, o elegíaco Propércio, quem sabe.
Isso tudo, porém, talvez, não tenha muita importância.
Em arte, o conceito de originalidade é muito recente,
tendo surgido com a Revolução Industrial e o romantismo, que a
expressa.
A maior parte do que chamamos “obras de arte” são
aproximações a um modelo considerado padrão de performance: a
humanidade é clássica, um mundo romântico é indesejável,
porque ingovernável.
A felicidade do escritor romano era poder reproduzir, em
latim, as proezas e feitos de algum escritor grego do passado, que
ele tivesse tomado por paradigma.
Nesse sentido, a literatura romana é clássica por
excelência.
Para nós, homens do século XX, esse mundo reflexo
lembra o folclore, onde a tradição é tudo e a insurreição do
arbitrário do talento individual é vista e tratada como tal, um
ligeiro desequilíbrio que o peso da inércia logo tratará de
reconduzir aos canais competentes da boa e verdadeira forma,
aceitável e reconhecível por todos.
Mas isso são complicações modernas. Os romanos não
sofriam com isso. Seu universo verbal e literário era bilíngüe,
grego e latim. E era na Grécia, dominada militarmente, que os
jovens romanos iam completar sua educação, como, hoje, vamos
fazer o mesmo na Europa ou nos Estados Unidos.
roma romance
Pelo menos no Ocidente (a China é outra história), o
romance, enquanto forma, parece ter nascido das variações
retóricas escolares em torno de fatos históricos, prática habitual
no ensino da oratória no mundo greco-romano.
Ironia: a história (a ficção literária) nasce da
Historiografia, o discurso que pretende ser o relato/espelho fiel da
História.
Nesse caso, dá pra dizer que a “mentira” nasceu da “ver-
dade”, da qual a mentira não passaria de uma versão
romanceada.
Depois de Tucídides, seco, racional, “científico”, a
historiografia grega começa a ser influenciada pela linguagem
altamente cultivada das escolas de retórica, e vai virar alguma
coisa a meio caminho entre a ciência e a arte, entre a “verdade dos
fatos” e as belezas da fantasia, a tal ponto que o romano
Quintiliano pôde dizer que os historiadores gregos “tomavam
tantas liberdades quanto os poetas”.
Neste território furta-cor, nesta twilight zone, entre a
História e a história, nasceu o romance.
A saga sobre-humana de Alexandre Magno, por
exemplo, produziu toda uma linhagem de “histórias” meio-reais,
meio-fantásticas, híbridos centauros, sereias, esfinges, das quais,
só nos chegaram notícias.
Mas o precursor grego de Petrônio teriam sido as
Milésias, ficciones erótico-pornográficas, ambientadas na cidade de
Mileto e atribuídas a um certo Aristides de Mileto (século II a.C).
Quem não gosta de sacanagem? As Milésias tiveram
grande irradiação no mundo mediterrâneo, e chegaram a ser a
leitura predileta dos soldados romanos. Em Roma, quase um
século antes do Satyricon, foram traduzidas para o latim pelo
historiador e orador Lucius Cornelius Sisenna, ao que tudo indica,
o precursor imediato de Petrônio.
Além das Milésias, este texto romano parece dever a
outra vertente helênica, de maior complexidade textual, a
chamada sátira menipéia, tipo de texto que alternava partes em
prosa com partes em poesia, criando uma espécie de diálogo,
intratextual, entre dois discursos de natureza, fins e efeitos
distintos, o chamado prosimetrum, cuja invenção os antigos
atribuíam ao filósofo Menipo de Gandara, que viveu por volta do
século III a.C.
Uma das características da menipéia era o monólogo,
muito freqüente no Satyricon.
Mas nada disso afeta a originalidade e a primazia do
romance de Caius Petronius: até segunda ordem, o Satyricon é a
primeira obra da literatura ocidental que podemos chamar
propriamente de romance. Dele descendem todos, do Decameron
de Bocaccio à picaresca espanhola do barroco, do romance inglês
do século XVIII a Balzac, de Flaubert a Joyce.
Há, portanto, uma espécie de justiça etmológica no fato
de o vocábulo “romance” trazer dentro de si o nome de Roma.
Como se sabe, a palavra “romance”, vem do advérbio
latino medieval romanice, isto é, “em romântico”, em língua vulgar,
palavra cunhada na Idade Média quando as narrativas de ficção
eram escritas em língua vulgar, em contraste com as obras ditas
sérias, escritas em latim.
Roma, romance. Nada mais justo. Foi com o Satyricon
que o homem ocidental começou a apanhar a vida através dessa
forma muito singular que, só no século XIX, se transformou numa
espécie de O Maior de Todos os Gêneros, a epopéia burguesa da
iniciativa privada e da vida particular.
Poucos livros tiveram tão próspera descendência.
1
Joyce é o maior prosador do século XX.
Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de
contestação, extremos. Não é bem assim. Maior, em que sentido?
Afinal, há Proust. Há Kafka.
Thomas Mann.
— Faulkner!
No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela
infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico.
— Solidão aristocrática.
— Insensibilidade aos problemas reais do seu povo.
— Elitismo hermético.
— Intelectualismo pedante e cosmopolita.
Do outro lado, cada vez mais abundantes os que
objetam.
Não é o maior prosador do século XX. É o maior
prosador que jamais houve.
— Maior que Cervantes? E Quevedo?
— E Balzac?
— E Stendhal? E Flaubert?
— E Dostoievski?! E Tolstoi?!
Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser
o maior?
Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de
som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com
que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos
poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um
Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a
vida).
Depois, pela coerência arquitetônica única que
conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de
Dublinenses (1906), Retrato do Artista Quando Jovem (1914),
Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Os dois primeiros livros,
um, uma coletânea de contos, e o outro um romance de formação
(um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do
gênero, que começa, no século V, com as Confissões, de S.
Agostinho), os Dublinenses e o Retrato ainda cabem dentro da
estética textual do século XIX.
Ulysses, porém, é puro século XX, o século das
megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do
cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou
a guerra, que começou no ano em que foi publicado o Wake.
Mas o Ulysses ainda é, apesar de tantas inovações, um
romance, mesmo que seja o romance para acabar com todos os
romances, do dito célebre.
O Wake já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?,
o quê?
Ulysses foi difícil (é cada vez menos).
O Wake, cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto).
A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa
na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o
monólogo interior, no Ulysses, fazem, hoje, parte do repertório
comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze
seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até
pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em best-seller
mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso,
outrora, de vanguarda.
Ulysses /Joyce é influência determinante na prosa
criativa deste século. E a lista dos influenciados, direta ou
indiretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner,
Beckett, Virgínia Woolf, Musil (O Homem Sem Qualidades), Broch
(A Morte de Virgílio), Guimarães Rosa, Cario Emílio Gadda,
Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...
2
Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo
entre as quatro obras-primas de Joyce.
Nos trinta anos entre os Dublinenses e o Wake, sempre
escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a
graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva
arquitetônica.
O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda,
maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre
submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de
hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa
de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um
catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.
O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem
horizontes, sem sentido.
Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa
(Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua
obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência
dessa execração, idéia fixa, agenbite of inwit, memória, o único
tempo possível.
Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem,
crescendo, dos Dublinenses ao Wake.
Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.
3
Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora.
Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro.
Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monólogo
interior, o Dia, a História.
Finnegans Wake: síntese dialética entre o fora e o
dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.
Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro
obras-primas, Giacomo Joyce faz às vezes, talvez, de um filho
bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de
um erro da juventude, de uma fantasia erótica.
Alinha, assim, com os livros de poemas, Chamber Music
e Tomes Penyeach, performances líricas de uma maestria métrica
e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no
século dos Cantares de Ezra Pound e do Waste Land, de T. S.
Eliot.
Ou com Exiles, a peça que Joyce quis fazer, mas o
mundo do teatro nunca amou.
Mas, por favor, não façamos pouco de Giacomo Joyce.
Quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grávido do
Ulysses, já era, visivelmente, um dos maiores escritores da
Europa.
Em Giacomo Joyce, já dá pra ver o surgimento dos
germes do monólogo interior, a técnica central do Ulysses e uma
das grandes conquistas da ficção do século XX.
Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro
romance francês do século passado, Les Lauriers Sont Coupés
(1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada
ao movimento simbolista.
Esse monólogo interior parece consistir, sobretudo,
numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a
primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta,
sem índices do tipo, disse consigo, pensou, refletiu, e outros verbos
que acusam a interioridade de um emissor.
A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a
falácia da objetividade, fundada, lingüisticamente, na terceira
pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias
coisas falassem de si em lugar de um narrador. E a linguagem de
Deus, o narrador onisciente.
O monólogo interior representa um princípio de
economia narrativa. E, conseqüentemente, um aumento de
velocidade no tempo do texto e da leitura.
Alguns traços dele em O Vermelho e o Negro, de Stendhal
(1830).
E em Dostoiesvski (1821-1881).
O monólogo interior, de resto, representa uma espécie
de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda.
Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar.
Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e
da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no
espaço tempo, sem antes nem depois.
No quarto bloco de Giacomo Joyce, a voz que diz alguém
quer falar com a senhorita já comparece sem aviso, como uma
página de Ulysses.
4
Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que
fale Richard Ellmann.
Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia
italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não
fosse a solicitude de um irmão.
Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que
conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças
da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico,
isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele
momento.
Giacomo Joyce é uma novela, cinematográfica,
ideogrâmica, como uma peça No, feita de flashes, um grande
poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.
Neste texto, o arquiteto de Ulysses ensaiou,
orquestrando relâmpagos.
Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.
taiyo to tetsu
entre o gesto e o texto
guerra sou eu
guerra é você
guerra é de quem
de guerra for capaz
guerra é assunto
importante demais
para ser deixado
na mão dos generais
2
O isolamento insular e a benigna (porque buscada, não
imposta) influência cultural chinesa criaram no Japão uma das
civilizações mais originais da História, cultura de uma coerência
interna única. Onde todos os aspectos da vida estão (estavam?)
integrados numa harmonia geral. Poder, sociedade, religião, arte.
Uma civilização que é, ela toda, uma gigantesca obra de arte viva
de mil anos. Por isso ou por pura sorte geográfica, o Japão foi a
única cultura da África, América e Ásia que escapou incólume da
agressão planetária que o Ocidente gosta de chamar,
pomposamente, de Grandes Descobrimentos, o mais vasto ato de
rapina da História. Assim que percebeu o que significava a
chegada dos navegadores e missionários, a elite governante do
Japão, o Xogun à frente, fechou o país, ferozmente, a qualquer
contato com o exterior. Um ovo que só a Revolução Industrial em
1865 começou a quebrar. E nem se sabe se quebrou: o Japão foi o
país não europeu que melhor soube deglutir a Revolução
Industrial.
Era a integridade de uma cultura que Mishima defendia
quando abriu o ventre diante do Comandante do quartel de
Tóquio, escrevendo com aço na pele da sua vida as letras de
sangue que diziam: EU NÃO CONCORDO.
Mishima pertence a uma espécie particular de
revoltados, encontradiça entre os artistas: os revolucionários para
trás, os utópicos nostálgicos. “Os artistas são as antenas da raça”,
de Ezra Pound, sempre tem sido entendido num sentido futurista,
“progressista”, pra frente. O que talvez seja um equívoco. Nem
Pound era tão “progressista” assim... Como não o eram Fernando
Pessoa, Eliot, Yeats, Gottfried Benn, Guimarães Rosa, Drieu, e,
curiosamente, Pasolini, que dizia trocar uma florzinha de terreno
baldio por todas as instalações industriais da Itália.
Mishima era um artista. E os artistas são
particularmente sensíveis às alterações do meio ambiente.
O que não leva necessariamente a um triunfalismo
futurista. Quem foi que disse que a felicidade se encontra lá na
frente? O progresso (com que horror escrevemos esta palavra hoje!)
é uma invenção da burguesia dos séculos XVIII e XIX, que sempre
confundiu avanço da Humanidade com a prosperidade dos (seus)
negócios.
3
Quando a Marinha Imperial japonesa e sua aviação,
num tresloucado gesto, atacou de surpresa e afundou a frota
norte-americana do Pacífico, em Pearl Harbor, no Havaí, o
samurai Yukio Mishima tinha dezesseis anos. E vinte, quando, à
sombra dos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, o
Japão se rendeu, depois de anos de vitórias, senhor do Extremo
Oriente. O Império do Sol Nascente foi ocupado, a seguir, pelos
Estados Unidos, que desmilitarizaram o país e incluíram-no em
sua esfera de influência, depois de obrigar o Imperador, até ali um
deus, a proclamar sua humanidade e apoiar uma Constituição
que introduzia bruscamente as instituições parlamentares anglo-
saxãs num país ainda meio feudal, apesar da industrialização.
Esse foi o quadro em que Yukio Mishima se tornou
adulto, um mundo estraçalhado, uma cultura estuprada, um
campo de ruínas, algo comparável ao México dos aztecas, depois
da vitória de Cortez.
A obsessão pela morte tem raízes nesse quadro histórico
e na tradição da sua classe social, na qual o seppuku, o suicídio
ritual harakiri, sempre foi distinção e privilégio de casta: tamanha
a rigidez das relações sociais no Japão tradicional que os conflitos
não permitiam negociações nem compromissos, exigindo a pura
auto-eliminação dos envolvidos. Nisso, o Japão é único: não há
paralelos em nenhuma civilização humana de uma
institucionalização tão radical do suicídio. Nisso, a solução final de
Mishima se distingue, essencialmente, do suicídio de um
Maiakovski ou de um Iessiênin. De Drieu La Rochelle (parecido
com ele, em tantos traços). De Stephan Zweig. De Virgínia Wolf.
De Van Gogh. Hart Crane. De Walter Benjamin. De Ganga Zumba.
A auto-imolação, para ele, era uma obra de arte, algo a
ser preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de
uma vida, um clímax.
Ou, para falar em jargão freudiano, um orgasmo de
Tânatos.
Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres,
desenvolvendo os músculos, treinando artes marciais,
desenvolvendo ao máximo suas potencialidades, enquanto
matéria.
Quando a lâmina, fazendo um L, entrou em sua barriga,
naquela tarde de 1970, no Quartel General de Tóquio, a morte,
longamente namorada, recebia um presente régio: um corpo
atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua força,
como ele queria. E uma mente lúcida, cultivada, perfeitamente
sabedora do que fazia.
Em Sol e Aço, acompanhamos a luta minuciosa de
Mishima para ultrapassar as contradições entre corpo e espírito.
E, com ele, aprendemos que só a morte supera, para
sempre, essa contradição.
4
“Literatura” é um conceito (ou preconceito) ocidental
moderno, uma categoria européia, baseada na produção textual
da França, principalmente com a concorrência, meio discrepante,
da tradição anglo-saxã, milionária de valores e performances
textuais. Outras literaturas da Europa, a espanhola, a alemã, a
italiana, a russa, apesar de cumes insuperáveis, sempre ficaram
como coisa ligeiramente periférica e subsidiária. Quantos gênios e
obras-primas não ficaram desconhecidos e obscuros apenas
porque tiveram a desgraça de acontecer em húngaro, em sueco,
em gaélico, em albanês, em íidisch, em polonês, em galego, em
finlandês, em holandês, em tcheco, em português...
Como avaliar, valorar, com critérios ocidentais,
francocêntricos, obra de uma literatura tão remota e autônoma
quanto a japonesa, devedora, em muita coisa, da literatura
chinesa, mas autóctone na criação de formas como o Nô e o haiku,
exclusivamente nipônicas?
Classicismo. Barroco. Neo-classicismo. Romantismo.
Realismo. Parnasianismo. Naturalismo. Simbolismo. Vanguardas e
modernidade. Esse quadro histórico nos é tão cômodo quanto um
chinelo velho. E baseia-se na evolução da literatura francesa.
Quando abordamos a literatura japonesa, porém, esse
esqueminha mental que mediterrânea e subterraneamente, dirige
nossa lógica, simplesmente não funciona.
Depois de 1867, abertura dos portos com a Era Meiji, o
Japão sofreu o impacto literário de algumas novidades ocidentais.
Mas só o realismo-naturalismo representou novidade mesmo. A
literatura japonesa em geral é de caráter meio lírico, meio
fantástico, do teatro à ficção, da poesia ao diário (gênero maior, no
Japão).
Com seu credo de “literatura colada à vida cotidiana
imediata”, o realismo-naturalismo trazia a pobreza essencial do
projeto de vida burguês para dentro da literatura: o realismo-
naturalismo é o triunfo da razão burguesa, contábil, pragmática,
imediatista, imanente.
Os textos de Mishima respiram um outro tempo
cultural.
Sol e Aço não sabemos dizer se é poesia ou prosa, livro
de memórias ou ensaio filosófico, confissões de uma máscara que
traz por trás de si outra máscara, outra máscara, outra, máscaras
sobre máscaras.
Seu andamento lembra Sendas de Oku, e outros diários
do grande haikaisista Bashô (séc. XVII). A diferença é que, em
Bashô, há tristeza e melancolia por trás da beleza.
Em Mishima, há desespero.
O desespero pessoal. O desespero coletivo da derrota na
guerra.
Um desespero que quer chegar perto da vida, tão perto
quanto chegou do coração do samurai aquela lâmina, naquele dia
de novembro de 1970.
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Sol e Aço é, basicamente, a reflexão de um poeta e atleta
sobre as relações entre o corpo e a mente. Entre o fundo e a
superfície. O dentro e o fora. A vida mental e a existência
corpórea.
Para nós, ocidentais do século XX, esse tipo de reflexão
não pode deixar de lembrar as conquistas da Fenomenologia, as
catedrais conceptuais de Husserl, Valéry, Sartre ou Merleau-
Ponty, horas e horas de cerrado raciocínio metódico tentando
flagrar, com exatidão, os misteriosos matrimônios e divórcios entre
o exterior e o interior, as fraquezas onipotentes do Eu que pensa e
a selvagem liberdade do mundo que é pensado.
Mas que diferença entre as teias puramente lógicas dos
mestres ocidentais e o percurso de Sensei Mishima!
O espírito dos ocidentais pensa a matéria, o Fora.
Num gesto muito mais genial, porque mais global,
essencialmente radical, Mishima resolve o problema
transformando seu espírito em matéria, matéria pensante,
inteligente, quando se entrega de corpo e alma à prática do kendô,
do karatê e do halterofilismo.
Para fazer isso, Mishima nem precisou sair de casa.
Essa sabedoria o Japão já tinha, sob a forma de “Bushi-dô”, o
caminho do guerreiro, aquele código global de postura e
comportamento que caracterizava a casta samurai (e que, de um
jeito ou de outro, acabou por impregnar a mentalidade de todos os
japoneses em geral). Um dia, no Japão, o maior dos mestres de
haikai sentenciou:
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Vírgulas. Dois pontos. Ponto de interrogação. De excla-
mação. Travessão. Aspas. Essas coisas gutenberguianas não
existem no japonês clássico, onde as frases não começam com
maiúscula nem terminam com ponto final. Saem do nada e só
terminam diante do vazio zen da página, como se todas as frases
terminassem num precipício de reticências.
A mente nipônica se move num universo material regido
por leis distintas das que regem nosso mundo textual e
conceptual.
Mal conseguimos conceber um universo textual onde as
marcações gráficas consagradas pela imprensa não têm vigência:
no texto japonês nem há espaço separando cada palavra,
continuum ininterrupto como na fala, sílaba após sílaba forçando
jogos de palavras, ressonâncias, ecos colidindo, palavras e
sentidos se acavalando em polinômios vaporosos.
Com a ocidentalização depois da Era Meiji (1867), o
Japão adotou as convenções da imprensa gutenberguiana, na
medida do possível. Mishima é um japonês do século XX, até
muito influenciado por leituras de escritores do Ocidente (Novalis,
Amiel, Yeats, Ícaro!). Mas o estilo dos movimentos do seu
pensamento acusa um acentuado sabor nipônico.
As categorias da lógica de Aristóteles, hoje sabemos,
eram apenas as categorias da língua grega. Outra é a “lógica” de
quem pensa em japonês.
A língua japonesa, por sua própria natureza, favorece os
longos períodos, com muitos gerúndios, ligados, em subordinação,
por uma máquina de conjunções que não correspondem
exatamente aos nossos “mas”, “porque”, “se”, “logo”, “embora”,
“por isso”. E é nessa máquina que se monta qualquer lógica, esse
sinônimo de sintaxe.
Penso nisso ao tentar, desconcertado, acompanhar em
Sol e Aço, a lógica peculiar com que Mishima sai de um
pensamento para o outro, de um fato para uma conclusão, de
uma premissa para sua conseqüência. Até que ponto esse meu
desconcerto vem das singularidades da língua e da lógica
japonesas, até que ponto vem do próprio Mishima, não sei ao
certo.
De qualquer forma, quem quer que já tenha estudado
uma língua muito antiga ou muito remota sabe que não existe
uma “lógica universal” sobre a qual as línguas se conformariam
mais ou menos: cada idioma (ou família de línguas) postula uma
lógica particular, exclusiva, intransferível, um mini-universo
fechado de significados.
Palavras como “problema”, “ironia”, “lógica”, “natureza”,
“hipótese”, “culpa”, “honra”, “forma”, “contradição”, “essência”,
“conceito”, “abstrato”, “causa”, “efeito”, “ordem”, para nós tão
óbvias e indispensáveis para pensar o mundo e a vida, são apenas
conceitos greco-latinos, ocidentais, mediterrâneos, e podem não
ter equivalentes em outros sistemas lingüísticos-culturais2.
7
No volume El Informe de Brodia, Jorge Luis Borges tem
um conto, La Señora Mayor, que me lembra muito o destino que
contemplou Yukio Mishima. Ou foi o destino de Mishima que me
lembrou La Señora Mayor? Borgeanamente, prefiro não saber.
La Señora Mayor é a fábula de Maria Justina Rubio de
Jáuregui, filha de um coronel que lutou nas guerras da
Independência argentina.
No dia 14 de janeiro de 1941, ela completaria cem anos,
la única hija de guerreros de la Independencia que no había muerto
aún, no dizer do mais inventivo ficcionista que a América Latina já
produziu.
Nesse centenariamente festivo dia, autoridades, amigos
e patriotas resolvem dar uma festa para celebrar, com grande
concurso da imprensa, muitos brindes e discursos fervendo de
civismo e história pátria. Passados alguns dias, arrasada de tanta
emoção, La Señora Mayor veio a falecer, la última víctima, diz
Borges, de uma batalha que aconteceu no Peru, há quase cem
anos atrás.
Mishima, suicidando-se em 1970, é a última baixa do
Exército Imperial Japonês da Segunda Guerra Mundial, a guerra
que ele, samurai, quis lutar, mas, infelizmente, era jovem demais
na época. Quando Mishima pratica “harakiri”, o mundo que ele
defende já é, há muito tempo, um universo de fantasmas: o Japão
é um dos países capitalistas mais avançados, altamente
industrializado, norte-americanizado e desmilitarizado,
dependendo dos Estados Unidos até para sua defesa externa.
Para essa morte-protesto, morte de mártir, morte de
monge budista se queimando vivo no Vietnã, Mishima se preparou
durante muitos anos. Anos de vergonha e humilhação. De
degradação nacional e raiva impotente. De ódio surdo e dentes
cerrados. Anos de estupro, invasão e ocupação.
Anos de muito texto, romances, contos, peças de teatro.
Mas, sobretudo, anos de sol e de aço: anos de halteres,
de milhares de quilômetros corridos, de flexões, de apoio de frente
sobre o solo, de suor saindo com a força com que sai o sangue de
uma veia cortada.
De morte, não. Sol e Aço é uma afirmação da vida. De
uma vida tão tensa e tão forte que só o Fim poderia ser o
Significado.
Nem venham com esquemas Freud-psicanalíticos sobre
a obsessão de Mishima pelo suicídio. De que valem esses
esquemas no interior de um grupo social onde o suicídio não é um
fenômeno patológico, uma carência, mas o sinal de uma plenitude,
como entre os antigos filósofos estóicos gregos e romanos, que
viam na auto-imolação uma afirmação dos poderes da consciência
sobre os acasos do destino? Narcisimo. Sadismo. Masoquismo.
Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em “ismo” com que
tentamos dar algum sentido à nossa pobre vida feita de alguns
lucros e vagas esperanças não fazem nenhum efeito quando
batem nos músculos poderosos de Sensei Mishima.
Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencíveis.
8
Em Mishima, o percurso de busca, tateando no escuro
entre a noite do pensamento e os reflexos do sol no aço das
espadas e halteres, entre o doentio da razão pura e os esplendores
da pele bronzeada e dos músculos conduzidos a seu máximo
desenvolvimento, em Mishima, esse percurso de procura casa, às
mil maravilhas, com as sinuosidades da língua japonesa que, ao
contrário da chinesa, dura, seca e simétrica, parece se comprazer
em caprichosos meandros de vaporosas sinuosidades de incenso,
donde extrai sua beleza específica, uma formosura, digamos
assim, olfativa, atmosférica, ambiental, em fluida luta contra a
morte que o conceito puro representa.
O texto de Mishima é todo perfumado de parece-me, tive
a impressão de que poderia sentir, nada mais me restava a não ser
entregar-me ã necessidade de vir a pensar que, formulações
extremamente mediatizadas, cautelosas, especulares, refrações
como que gasosas, muito mais complexas do que a brusquidão
totalitária de um o homem é uma paixão inútil, a religião é o ópio do
povo, o Estado sou eu, de Sartre, Marx ou Luís XIV, o estilo
ocidental de emitir o conceito, lapidar concisão herdada da dura
lex sed lex do latim, idioma de legisladores e administradores,
nossa mãe e superego.
O que Mishima apresenta não é uma generalidade. É
uma experiência pessoal, intransferível como uma dor de dente,
como parar de fumar, como querer ser maior que si mesmo.
Sol e Aço: a luta com as palavras. A luta com as armas.
A luta consigo mesmo. A luta contra o destino. O Amor pelo sol.
O texto/testamento do samurai está à altura do gesto.
lennon rindo
business man
make as many business
as you can
you will never know
who i am
your mother
says no
your father
says never
(Caprichos e Relaxos)
1
“que pode
um pobre rapaz pobre fazer
a não ser
cantar numa banda de rock?”
(Mick Jagger, dos Rolling Stones, “Street Fighting Man”)
Este livro são dois, Lennon On His Own Write, de 1964 e
A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas
miscelâneas de textos de natureza vária, flash-contos, esboços de
peças, poemas nonsense, acompanhados de desenhos, todos
marcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao
absurdo por um humor sarcástico e cínico.
Quando os escreveu, John estava à frente de uma
banda inglesa de rock, os Quarrymen, agora The Beatles,
trocadilho que ele inventou, montando beetles, “besouros”, em
inglês, com beat, “batida de percussão”, e, certamente, beat
generation, beatniks.
Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente,
o impacto da criatividade de Bob Dylan, músico, escritor e
desenhista como ele.
Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais
sofisticado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as
coisas, “ouvindo Dylan, descobri que letra de música não precisa
ser papo furado”, confessou o beatle que, no princípio, assinava
letras que diziam apenas “I Want To Hold Your Hand” ou “She
Loves You”.
Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia
fazer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber
Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Pepper’s
Lonely Hearts Club Band. E, daí, partiria para o vôo solitário de
Imagine, Mind Games, até o maravilhoso e fatídico Double Fantasy.
Lennon foi figura de proa numa geração que produziu,
entre os músicos populares, algumas de suas melhores cabeças
(Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano
Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), músicos e ao mesmo tempo,
pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das
transformações, artistas abertos a outras artes, agitadores
culturais, bons de som, de poesia e de conceito.
Os dois livros do beatle ocupam lugar especial no
quadro da criação textual da segunda metade do século XX. Pela
linguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical
dos prosadores do século, o Joyce das inovações de Ulysses e das
montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saíram, os
livros de Lennon foram traduzidos para várias línguas. E consta
até que, na Finlândia, traduziu-os o próprio tradutor finlândes de
Ulysses.
O “walrus”, porém, declarou que, quando os escreveu,
não conhecia Joyce. Sua fonte maior de influência era o Lewis
Carrol, da Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho,
influência fundamental sobre Joyce.
A ser verdade essa declaração, Lennon saiu da mesma
fonte do pai do Wake.
Daquele bizarro professor de matemática que gostava de
fotografar menininhas, tinha o estranho hábito de acasalar
palavras em híbridos que chamou de portmanteau words,
palavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o
senhor de todas as lógicas.
2
“o humor é a vitória do ego
sobre o princípio da realidade”
(Freud)
1 A partir do nome John Ludd, que teria destruído máquinas têxteis por volta
de 1780, a expressão “ludditas” designou os membros de um movimento
operário inglês (1811) que se organizou para destruir as máquinas das
fábricas onde trabalhavam, já que elas provocaram o desemprego e a
diminuição da qualidade dos produtos.
3
O específico do discurso de Lennon parece ser uma
subversão sistemática dos códigos de registro da escritura, bem
dentro do juvenil espírito de quebra-quebra que caracterizou os
anos 60.
John não escreve errado: ele, moleque, escreve “erros”.
E subverte a grafia dos vocábulos, introduzindo neles ruídos
arbitrários, grafitti, deformando a gestalt ortográfica das palavras
deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstícios das frases.
Uma escrita “fria”, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa,
como a TV, que convida à participação.
Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era
da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT &tc, arte de arte, o beatle
faz gato e sapato das receitas de todos os gêneros, excomunga os
lugares-comuns. E, trapalhão, atrapalha todo o andamento do
trabalho: uma gota da baba de Dadá, no comportamento textual
do “Working Class Hero”.
Nenhuma fórmula verbal escapa da verve cínica e
sarcástica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, “somos
mais populares que Jesus Cristo”.
O conto. A anedota. O poema. A estória da carochinha.
De detetive. A peça de teatro. A carta do leitor. A entrevista. O
anúncio. A frase de TV. A notícia de jornal. A canção de ninar. Um
Atrapalho é caleidoscópio de todas as formas verbais imagináveis,
erodidas e erotizadas como paródia.
Mas o humor do “Nowhere Man” não é um bom humor.
É a graça que nasce do azedume (não há sexo na prosa
de Lennon).
Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a
estados caógenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligível e
o ininteligível (“Dividido Davi”, “Os Famosos Cinco Através das
Ruínas de Eagora”, “Linda Linda Cremilda”, “Mr. Boris Norris”,
“Elerico e Eurique”), o desfecho é sempre trágico ou melancólico,
com toques às vezes sádicos e mórbidos, teratológicos.
O beatle máximo era, hoje sabemos, um “maior
abandonado”, aquela pessoa profundamente insegura, poço de
angústias, atingida no coração e na cabeça pela súbita idolatria
mundial em escala nunca vista.
4
“For the benefit of Mr. Kite
there will be a show tonight on trampoline.
The Hendersons will all be there
late of Pablo Fanques Fair — what a scene”
(“Being for the benefit of Mr. Kite”, LP “SgtPeppers”)
5
“Mal e mal possuímos os rudimentos de uma teoria
da tradução, de um modelo de como funciona a mente quando
passa de uma língua a outra. A o falar da tentativa de tradução ao
inglês de um conceito filosófico chinês, o lingüista I. A. Richards fez
a seguinte observação: é possível que aqui estejamos em presença
do tipo mais complexo de evento até agora ocorrido na história do
universo.”
(Georg Steiner, Extraterritorial)
6
“... it’s like a portmanteau... there are two meanings
packed up in one word”. Assim definiu Lewis “Humpty Dumpty”
Carroll (1832-1898), seu inventor, a portmanteau word, a
superpalavra com dois sentidos vivendo dentro dela.
Portmanteau, em inglês, designa uma valise de couro,
com dois compartimentos.
E a tradução para o português da expressão
lewiscarrolliana exigiria coisas como “palavra-valise”, “palavra-
double-face”, “palavra-porta-palavra”. Com portmanteau words,
Carrol compôs o “Jabberwocky”2, poema onde um verdadeiro
espírito lúdico infantil se manifesta através da mais elevada
inventividade de linguagem (Through the Looking Glass, caps. 1 e
6).
7
Muita coisa do espírito infantil e jocoso de Carroll, de
Joyce e de Lennon está ligada a duas formas da literatura oral
inglesa: as nursery rhymes e o limerick.
Nursery rhymes são poemas ou histórias metrificadas
para crianças.
Hickory,dickory,dock,
The mouse ran up the clock.
The clock struck one,
Themouse ran down,
Hickory, dickory, dock.
Ou:
8
Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece
radicalizar seus processos (palavras-montagem, deformações
ortográficas, anomalias sintáticas, arbitrariedades morfológicas).
“Silly Norman”, já no final do segundo livro, “Simples Mendes”, foi
a ficción que mais me deu (a) trap/balho. O texto de base, que
fornece o fio da intriga, está quase irreconhecível, inscrição antiga
corroída por uma pesada estática, hendrix-distorções no material
verbal (quem reconheceria “what can I do”, naquele “wart
canada”?), como ler tanta fumaça dentro de tamanha neblina?
Trans-duzindo, é claro.
9
A integração nipônica, antes de Ioko, entre desenho e
texto, como num haikai. A recuperação de um espírito “infantil”,
caligráfico, que lembra Oswald de Andrade ou o Maiakowski das
cartas a Lili Brik, que Maiakowski assinava com o ideograma naïf,
ingênuo, de um cachorrinho. O caráter pop-urbano-cosmopolita
da coisa de Lennon, que pressupõe o cinema, os quadrinhos, o
cartum. O desprezo pelas formas canonizadas do sistema literário
vigente, com suas espécies definidas, o romance, a novela, o
conto, a crônica, a poesia lírica, o ensaio.
Os livro-livros de Lennon são uns cadernos de textos e
desenhos de natureza heterogênea, coerentes apenas naquilo que
são fragmentos de uma mesma explosão.
John Lennon, “um atrapalho no trabalho”: a unidade
não é mais possível.
Rir é o melhor remédio, achar graça, a única saída.
10
Existe alguma coisa de propositalmente desajeitado,
awkward, clumsy, gauche, na linguagem de Lennon. Como se,
como Oswald de Andrade, ele temesse escrever “certo demais”. Só
isso bastaria para fazer dele um escritor de relevo, num mundo,
como a literatura, onde ainda e sempre acabam imperando a frase
certa, a gramática “correta”, a ortografia ortodoxa e os efeitos
garantidos, o terno e a gravata.
Mas só as estrepolias, peraltices e malcriações de
linguagem não bastariam para definir a arte textual do beatle.
É genial sua fantasia fabular e ficcional, capaz de urdir
enredos e pequenas intrigas com ingredientes ínfimos, sempre sob
o signo do imprevisto tragicômico. Através de um espírito lúdico,
muitas vezes, aparentemente, destrambelhado e arbitrário, passa
todo o sopro do nosso tempo: a irreverência de uma época post-
utópica, cética, crítica, cínica, que já riu de todos os deuses, e
transformou a vida em espetáculo e show, enquanto The Day After
não vem.
Na prosa de Lennon, está toda a Inglaterra careta, onde
a Beatlemania e a revolução dos jovens caiu como uma bomba H.
A galeria dos pais e senhores, que pensam conhecer o significado
da vida.
A mediocridade canalha da vida política (“General
Erection”).
A mediocridade doméstica do dia-a-dia da pequena
classe média.
As mães megeras. Os homens de negócios e pais
operários que não sabem que tudo mudou e que os filhos
adolescentes riem de seus códigos de postura, sua moral, sua
tabela de objetivos na vida, as filhas menores fazem sexo grupal,
os filhos dão a bunda e tomam pico, todos candidatos a uma
“Magical Mistery Tour” em direção a “Strawberry Fields”, como
membros groupies ou tietes de uma das “Sergeant Pepper’s Lonely
Hearts Club Band”, que pululariam às centenas de milhares.
O garotão de origem operária que fumou maconha no
banheiro do Palácio de Buckingham, um pouco antes da Rainha
condecorar os Beatles com a mais alta comenda do Reino Unido,
brincava em serviço.
E brincava alto, brincava pesado, brincava leve,
brincava brabo, brincava lindo, Lennon rindo.
Vamos brincar com ele.
ferlinguete-se!
1
Um filme, “The Last Waltz”, dirigido por Martin
Scorsese, a turnê/show de despedida da The Band, a banda que
acompanhou Bob Dylan durante anos.
Apocalypse now, the dream is over, “la banda está
borracha”, uma parte do sonho morria ali naquele palco cheio de
estrelas, algumas legítimas, Joni Mitchel, algumas de menos
quilates, Neil Diamond, e amigos, muitos amigos de Dylan e de
tudo que Dylan representou: o enterro de um faraó.
No meio do show final, apoteose-orgasmo-agonia, num
momento de silêncio, de repente, entra no palco aquele velhinho
magro e alto, cabelos totalmente brancos, andando muito lento,
chega no microfone e lê um poema em inglês incompreensível,
cheio de esses e erres carregados, como na fala de um irlandês.
Quem é, quem não é, era Lawrence Ferlinghetti.
Tinha vindo ler um poema em inglês arcaico, em anglo-
saxão antigo, para os seus netos, seus queridos netinhos, grande
coisa insignificante. E se retirou, tão irreal quanto viera.
Primeira e última vez que vi Ferlinghetti.
2
Em “A Coney Island Of the Mind”, predominam os
longos poemas orais, que é de rigor imaginar recitados em
enfumaçadas salas meio existencialistas, contra um fundo de jazz,
Charlie Bird Parker, quem sabe?, um bongô solitário marcando o
compasso.
Os longos poemas falam, o apodrecimento do sonho
americano, a solidão urbana, o consumismo desenfreado, a fé nas
promessas traídas, tudo podia ser melhor.
Tudo isso numa linguagem assimétrica, solta,
“prosaica”, o discurso “beat”, neo-romântico, ligeiramente
surrealista.
Nem se pense, porém, que a poesia de Ferlinghetti é
puro derramamento verbal, sob o signo da entropia, o “enxame de
sentimentos inarticulados”, que Ezra Pound desprezava, e que
parece ser o estereótipo, a opinião pública sobre a poesia “beat”.
Sobre isso, o próprio Ferlinghetti se equivocava nesse “Poesia
Moderna é Prosa”, constante do “Work in Progress”, ensaio-
tentativa de reflexão teórica, tão cheio de intuições iluminadas
quanto de limitações: sua poesia é muito menos “prosa” do que ele
imaginava.
Pegue um poema de “A Coney Island Of The Mind”,
como, digamos, “The Pennycandystore Beyon The El”, que traduzi
como “A Loja de Bombom Barato Além do El”, basta pegar um
poema como esse para ver de quanta artesania e domínio da
matéria verbal Ferlinghetti é capaz (e, afinal, para que servem os
poetas a não ser para escrever melhor, mais fundo, mais exato,
mais inesquecível que todo mundo?).
O fluxo verbal de Ferlinghetti é rico de todos os efeitos
que fazem de uma frase poesia e não prosa, ecos sonoros, reflexos
fonéticos, paralelismos, aliterações, alto grau de fusão do magma
verbal.
A girl ran in
Her hair was rainy
1
A folhas tantas do seu Manifeste du Surréalisme (1924),
André Bréton rascunha um esboço de árvore genealógica do
movimento da “escrita automática” e do sonho acordado, de que
sempre foi uma espécie de Papa:
2
Rabelais. Sade. Nerval. Lautréamont. Rimbaud.
Corbière. Raymond Roussel. Duchamp. Artaud. Bréton. Drieu.
Céline. Ponge. Queneau. Butor. Existe, de tocaia, uma linhagem
louca naquela literatura que, estabilizada por Malherbe e Boileau,
teve um começo legal na Academia, fundada pelo cardeal de
Richelieu, e parece ser a mais “careta” das literaturas, uma
literatura normal e normalizadora, muito zelosa pela estabilidade
de certas formas, pelo equilíbrio, pela manutenção de um certo
“bom gosto”, decoro canonizado com “o Gosto”, o “génie latin” de
Anatole France.
Nessa linguagem, Jarry não foi o menos “louco”.
Nascido em Laval, no Noroeste da França, Jarry deixou
a lenda de uma vida tão bizarra quanto suas produções.
A fábula das suas singularidades corria de boca em
boca, na Paris da belle-époque.
Pescava seu almoço no Sena. Aficionado por matemática
e física, estudava heráldica horas a fio. Quando lhe pediam fogo,
puxava um revólver, que Picasso depois veio a obter e guardava
como uma relíquia.
Sua fotografia mais conhecida mostra-o andando de
bicicleta, invenção recente, que era uma das suas paixões (tendo
um papel fundamental em O Supermacho, onde o superalimento
do cientista americano é experimentado nos ciclistas que fazem a
Corrida das Dez Mil Milhas, hipérbole sobre duas rodas da
potência sexual infindável do “Indiano”).
Para nós, brasileiros, sua figura não pode deixar de
lembrar a de Santos Dumont, tão excêntrico quanto ele, que vivia
e tentava voar naquela mesma Paris da primeira década do século
XX, quando viajar pelos ares parecia ser uma obsessão
emblemática daquele momento de espantosas novidades e
ilimitados horizontes tecnológicos.
Jarry também voou. Não em balões ou dirigíveis. Mas
em criações dramáticas e textuais muitos pés acima do chão de
seus contemporâneos, cabeça enfiada alguns quilômetros para
dentro do futuro.
O verdadeiro culto que Dadá e os surrealistas lhe
tributaram é mais que justificado: na rigorosa hierarquia
poundiana, Jarry, supermoderno, é um “inventor”, um dos
escritores mais originais deste século, “herói fundador” de tantas
singularidades que, depois de virarem moda, viraram sistema.
Centauro de fantasia erótica com romance de ficção-
científica, O Supermacho, de 1902, chamado pelo autor “romance
moderno”, faz par com Messalina de 1901 “romance da antiga
Roma”.
Nos dois “romances”, um no passado, outro no futuro, o
herói é, num, um homem, no outro, uma mulher, dotados da
capacidade de praticar o amor físico além dos limites humanos,
“indefinidamente”. Priapismo e ninfomania: hipérboles da
sexualidade.
Cenas de evidente marcação teatral. Jogos de palavras,
de árdua decifração e recriação. O fio do enredo sustentado por
trocadilhos. Um espírito lúdico libertado de amarras lógicas. A
pontuação arbitrária e caprichos tom meio erudito, meio circense.
As imagens e comparações insólitas e delirantes. Alguma coisa de
muito criança com qualquer coisa de muito velho.
A escritura de Jarry é de alta imprevisibilidade.
Não era provável que, em 1902, alguém chamado Alfred
Jarry publicasse esse romance que vocês acabam de ler, vocês não
acham?
folhas de relva
forever
(a revelação permanente)
APACT
aqui
no oeste
todo homem tem um preço
uma cabeça a prêmio
índio bom é índio morto
sem emprego
referência
ou endereço
tenho toda a liberdade
pra traçar meu enredo
nasci
numa cidade pequena
cheia de buracos de balas
porres de uísque
grandes como o grand canyon
tiroteios noturnos
entre pistoleiros brilhantes
como o ouro da Califórnia
me segue uma estrela
no peito do xerife de denver
méxico
nenhum livro
teve sobre a cultura brasileira letrada
o impacto de “os sertões”
com ele
euclides da cunha
militar
engenheiro
positivista como toda a oficialidade
republicana
traumatizou
uma literatura feita por bacharéis
ornamental
“sorriso da sociedade”
brilho dos salões do 2º império
A leitura para ioiôs e iaiás
surto de espinhas no rosto imberbe dos
acadêmicos de direito
ócio de aposentados
prenda doméstica
da elite de um país de analfabetos
com ele
um brasil outro
um brasil novo
o brasil verdadeiro do interior
saltava na cara das nossas elites letradas
concentradas nas cidades
no eixo rio-são paulo
centrífugas
europocêntricas
produzindo uma literatura francesa no
trópico
para branco ver
dele descendem
“macunaíma”
“vidas secas”
“o tempo e o vento”
toda nossa prosa regionalista
até o sertão máximo
“grande sertão: veredas”
onde o gênio de guimarães rosa
dá ao sertão uma dimensão cósmica
num texto rico como os de joyce
encerrando com chave de ouro
o ciclo mais fecundo da literatura brasileira
o retorcido
o tortuoso
o caudaloso
o barroco positivista de euclides
“estilo de cipó”
é prosa em drama
isomórfica com o drama que presentifica
discurso deformado e informado pelo assunto
em canudos
euclides descobriu a fala natural do sertão
a linguagem popular
“errada”
antinormativa
uma linguagem
cheia de giros próprios
dizeres e falares jagunços
muito distantes do “sermio nobilis” da capital
este impacto
escapou aos exegetas de euclides
o código ortográfico
constitui a primeira camada protetora da
língua dominante
sua primeira linha de defesas
muralha da china contra a invasão do
popular
do poético
do novo
euclides
perante a tortografia social
psicológica
lingüística
faz uma viagem psicanalítica ao passado
do Brasil
e dá
nome ao nosso mal
com ele
o euclidiano (matematicamente falando)
euclides
descobre o avesso
antieuclidianamente
e nos descobre.
trans/paralelas
DEDICATÓRIA
5 Sentidos, 5 Códigos
A consciência icônica inovadora do Simbolismo não se
revela apenas na inconização do verbal, como na grafia fantasista
da palavra “lírio” grafada pelos simbolistas como “lyrio”, a letra Y
funcionando como ícone da flor/referente.
Revela-se, ainda, na revolução que associamos às
“Correspondances” de Baudelaire ou ao soneto das vogais de
Rimbaud.
No poema de Baudelaire, a natureza “é um templo”,
onde o homem passa “através de florestas de símbolos” e “os
perfumes, as cores e os sons se respondem”.
Rimbaud, por sua vez, atribui cor a cada som vogal,
numa fonética cromática, aparentemente arbitrária, fútil e
gratuita. O fenômeno da tradução do código de um sentido (ouvir,
som etc.) para outro (ver, cor etc.) é a sinestesia, uma operação
intersemiótica (como a tradução de um idioma para outro ou de
uma família de signos para outra família de signos).
Toda tradução é icônica: reproduz partes de um original
(o original traduzido, um Primeiro).
Só informações documentais eventuais, nos idiomas
naturais, são traduzíveis “ao pé da letra” (isto é, por contigüidade).
Ícones, não tendo sinônimos, não são traduzíveis.
O que se chama, impropriamente, de tradução é a
construção de um novo objeto, homólogo ou análogo, uma paródia
(= canto paralelo), ao Primeiro.
Poesia, numa mensagem, é o que se perde na tradução.
Poesia é uma substância frágil demais (ou sólida
demais) para ser transportada sem danos ou perdas irreparáveis.
Esta intersemioticidade sensorial, explicitada por
Baudelaire, nas “Correspondances”, incorporada pelo programa
simbolista, ocorre em plano trans, infra ou ultraverbal, no plano
icônico, no plano do Mistério e do Oculto, para quem olha os
signos com telescópios verbais.
o veneno das
revistas da
invenção
Consolem-se os candidatos.
Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente.
São revistas.
Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e
o charme policromático de uma “Navilouca”? A força construtivista
de uma “Pólem”, “Muda”, ou de um “Código”? O safado pique
juvenil de um “Almanaque Biotônico Vitalidade”? A radicalidade
de um “Pólo Cultural/Inventiva”, de Curitiba? A fúria pornô de um
“Jornal Dobrabil”? E toda uma revoada de publicações (“Flor do
Mal”, “Gandaia”, “Quac”, “Arjuna”), onde a melhor poesia dos anos
70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à
Vida, ao Sucesso ou ao Nada.
nanicas na produção
Par e passo com as nanicas de consumo (tipo
“Pasquim”), a geral e as arquibancadas (mais estas que aquela)
assistiram ao desfile das nanicas de produção, onde os poetas
mais jovens procuraram criar novos processos e novas formas de
dizer, dizendo coisas novas. Enfim, isso que chamam por aí de
poesia. Com o passamento dos suplementos literários nos jornais,
que marcaram os anos 50/60, a minoritária linguagem da poesia
buscou novos leitos e novos leitores para fazer correr seu leite
(essa foi de lascar, hein, Régis?).
Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas,
coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência
(“formalistas”, pornô, “marginais”), onde predominou a faixa etária
dos 20 aos 30 anos. Em comum: a auto-edição (samizdat), todo
mundo juntando grana para comprar a droga da poesia.
Antologias: essa coletivização do aparecer (se não do
fazer) corresponde a uma politização, mesmo que não explícita. E
a escolha da revista como veículo (mais que um jornal, mas menos
que um livro), a uma posição estético-filosófica: a eleição do
provisório, a arte e a vida do horizonte do provável, a renúncia e o
repúdio do eterno por parte de uma geração que cresceu à sombra
do apocalipse. Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o
sucesso. Assim como não há mais lugar para a emoção. Só para o
suspense. Entre essas nanicas de produção, dá pra distinguir
muito bem entre umas, de design de nível baixo, e outras, com um
repertório mais alto de informação plástico-visual. Aquelas com
programação visual nível gráfico-técnico inferior à média das
publicações correntes, meros suportes-excipientes de poemas,
impressos corriqueiramente, sem a consciência da plasticidade do
texto-página. E aquelas que, de certa forma, herdaram o apuro
industrial e o elevado repertório gráfico-visual das revistas da
Poesia Concreta paulista nos anos 50/60 (“Noigandres”,
“Invenção”).
grande ser,
tão veredas
— Vim te matar.
— A essa hora? Pra quê?
— Soube que você está escrevendo matéria sobre Sartre.
— É pecado?
— Em Curitiba, só eu posso escrever sobre Sartre.
— Com o perdão dessa arma apontada para mim, não
sei o que vocês vêem nesse francês com cara de sapo, que acabou
a vida mijando nas calças, num pileque contínuo.
— Vê lá como fala.
— Falo como Sartre falaria, diante de uma arma. Como
você acha que ele falou, quando a Gestapo o prendeu, na
Resistência?
— Esse não me interessa.
— Ah, você prefere o Sartre das palavras.
— Fora das palavras, não há salvação.
— Abaixe essa arma, pare de bobagem, sente aí e vamos
conversar sobre.
— Está bem. Mas um gesto, e eu transformo seu para-si
em em-si.
— Enquanto você elucubra aí, não se incomoda se eu
terminasse de ler isso aqui?
— Sobre o que é?
— Adivinhe.
— Ah, sei.
— Que é que você acha disso: “Sartre é o último filósofo
grega Depois dele, só são possíveis MacLuhans”.
— Não acho nada.
— “Teórico e ficcionista, antes de tudo, teve pela ação e
pela militância um amor não correspondido: todas as suas
agitações políticas, em termos de ação, sobre a sociedade
francesa, foram menos que um fracasso. Foram apenas o nada”.
— Continue.
— “Contra o existencialismo, Sartre cometeu o crime
supremo. Escreveu O ser e o nada, vasto tratado, suma teológica
de uma doutrina filosófica que exalta a experiência individual,
anti-teórica e contrária a toda e qualquer suma teológica. Cedo,
Jean Paul percebeu que a forma perfeita para a exposição de suas
teorias já existia. Não era o discurso conceitual de seus mestres, o
teutônico delírio conceitual de O Ser e o Tempo, de seu mestre
germânico Heidegger, o estilo de jogo de Kant e de Hegel. O
existencialismo, por sua própria natureza, só poderia ser exposto
através da ficção. Do conto. Da novela. Do romance. Com Sartre, a
ficção transformou-se no gênero literário (textual) do
existencialismo, veículo ideal de seus princípios”.
— Prossiga. Ainda lhe concedo uma página.
— “Difícil dizer, em Sartre, se é o filósofo que abastece o
escritor ou o escritor que abastece o filósofo. De qualquer forma, o
autor de A náusea deu à literatura o status e a dignidade da
filosofia. E, naturalmente, à filosofia, a cor e o movimento da
literatura. Criou conceitos que se tornaram, em nossa época,
moeda comum. A expressão “engajamento”, foi ele que criou.
“Autencidade”. “Angústia”. “Má consciência”. “Escolha”. E teve
dois amores: Simone de Beauvoir e o marxismo...”
— Pare aí, senão...
— Deixe eu pular para: “A invasão da Hungria pela
União Soviética, para sufocar um movimento popular e nacional,
fez com que Sartre rompesse seu alinhamento com a URSS
stalinista. Como teórico, aliás, não deve ter sido fácil a tarefa do
profeta das “caves” post-guerra, cheias de pré-beatniks, camisas
de gola enrolada, barbas por fazer, jazz e álcool na cuca. Seus
filhos, depois seriam, nos Estados Unidos, “beatniks”. E seus
netos, os “hippies”. O existencialismo é a metafísica do
individualismo ocidental e capitalista”.
— Páre, senão eu atiro.
— Não atire. Eu me rendo. Digo aqui que “O problema
teórico de Sartre foi, sendo existencialista, isto é, seguidor de
Kierkegaard, assumir um pensamento hegeliano, como o
marxismo. Existencialismo e Hegel não combinam. Para Hegel e o
marxismo, saído dele, o concreto é o geral: a classe social, o
sindicato, o Estado. O particular e o individual não passam de
abstrações. Para Kierkegaard de o Existencialismo é exatamente o
oposto. O geral é abstrato. O individual é concreto. Sartre nunca
conseguiu resolver essa contradição. Ainda bem. Ao que tudo
indica, não tem solução”.
— Fique aí onde está.
— “O interessante em Sartre é que esse conflito filosófico
de grandes proporções acaba sendo pai e mãe de sua ficção e seu
teatro, única saída que achou para conciliar Hegel e Kierkegaard”.
— Mais uma dessa não vou aturar.
— “No fundo, o existencialismo de Sartre é a tradução
da impotência política da intelectualidade francesa, no quadro
histórico da França do pós-guerra”.
— Não é o bastante.
Um tiro na noite é coisa que quem dorme nem nota.
tímidos e recatados
h ttp :/ / g r o u p s .g o o g le .c o m / g r o u p / V ic ia d o s _ e m _ L iv r o s
h ttp :/ / g r o u p s .g o o g le .c o m / g r o u p / d ig ita ls o u r c e
Anseios Crípticos II
FOI IMPRESSO NAS OFICINAS DA
GRÁFICA DO COLÉGIO UNIFICADO,
CURITIBA, PARANÁ, NO MÊS DE
MARÇO DO ANO DE 2001 PARA
CRIAR EDIÇÕES.