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WACQUANT, Loic. Insegurança Social e o Surgimento Da Preocupação Com A Segurança PDF
WACQUANT, Loic. Insegurança Social e o Surgimento Da Preocupação Com A Segurança PDF
A SEGURANÇA
SOCIAL INSECURITY AND THE EMERGENCE OF CONCERNS
ABOUT SECURITY
Loïc Wacquant*
Universidade de Berkeley
*
Professor de Sociologia na Universidade da Califórnia – Berkeley e pesquisador no Centro de Sociologia
Européia em Paris. Seus trabalhos, publicados em várias línguas, abordam as questões da desigualdade urbana, a
incorporação, o Estado penal, a dominação etnoracial e a teoria sociológica. Dentre seus livros recentes, temos
The Mystery of Ministry: Pierre Bourdieu and Democratic Politics(2005), Parias urbains. Ghetto, banlieues,
État(2006), e Punishing the Poor: The New Government of Social Insecurity(lançado em 2008). É co-fundador e
director da revista interdisciplinary Etnography.
1
Esse artigo apresenta as grandes linhas de meu livro Punishing the Poor: The New Government of Social
Insecurity(Durham e Londres; Duke University Press, 2008), apoiando-se no prefácio e no primeiro capítulo.
Uma versão francesa desse livro ainda será publicada.
Tradução
Translation
199
ameaçado pela gangrena da criminalidade, qualquer que seja sua gravidade. A grande
experiência norte-americana da “guerra contra o crime” se impôs como a referência
incontornável dos governos do Primeiro Mundo, a fonte teórica e a inspiração prática do
endurecimento generalizado da pena que se traduziu em todos os países avançados por uma
hipertrofia espetacular da população carcerária.2 Constrangido entre a alternativa oblíqua
entre catastrofismo e angelismo, quem quer que ouse questionar as “evidências” do
pensamento securitário único que reina hoje sem divisão se vê certamente (des)qualificado
como um doce sonhador ou um ideólogo culpavelmente ignorante quanto às rudes realidades
da vida urbana contemporânea.
2
Loïc Wacquant, Les Prisons de la misère, Raisons d’Agir Editions, Paris, 1999.
3
Robert Castel, Les Métamorphoses de la question sociale. Une chronique du salariat, Fayard, Paris, 1995 e
Loïc Wacquant, Parias urbains. Ghetto, banlieues, État, La Découverte, Paris, 2007.
das fronteiras da nação pela hipermobilidade do capital, a ampliação dos fluxos migratórios e
a integração europeia, a normalização do trabalho informal alimenta no conjunto as
sociedades do continente com uma poderosa corrente de ansiedade. Essa corrente introduz o
medo do futuro, a raiva pela queda e crise sociais, e a angústia por não poder transmitir seu
status aos seus filhos em uma competição sempre mais intensa e incerta para a obtenção de
títulos e postos de trabalho. É essa insegurança social e mental, difusa e multiforme, que
atinge (objetivamente) as famílias das classes populares desprovidas de capital cultural
requerido para alcançar os setores protegidos do mercado de trabalho, mas que também enche
de cólera (subjetivamente) amplos setores das classes médias, que o novo discurso marcial
dos políticos e das mídias sobre a delinquência captou para fixá-lo tão somente sobre a
questão da insegurança física ou criminal.
De fato, o endurecimento generalizado das políticas policialescas, judiciárias e
penitenciárias que se observa na maior parte dos países do Primeiro Mundo há uns vinte anos
decorre de uma tripla transformação do Estado, que contribui simultaneamente para acelerar
e ocultar, aliando a amputação de seu braço econômico, a retração de sua proteção social e o
aumento considerável de sua atuação penal. Essa transformação é a resposta burocrática dada
pelas elites políticas para as mutações do emprego (terceirização e polarização dos postos de
trabalho, flexibilização e intensificação do trabalho, individualização dos contratos de
emprego, descontinuidade e dispersão dos trajetos profissionais) e a seus efeitos destruidores
nos níveis inferiores da estrutura social e espacial. Essas mutações são o produto da mudança
na relação de forças entre as classes e os grupos que lutam a todo momento pelo controle do
mundo do emprego. E, nessa luta, são os grandes empregadores transnacionais e as frações
“modernizadoras” da burguesia cultura e da alta nobreza do Estado, aliados sob a bandeira do
neoliberalismo, que tomaram a ponta e realizaram uma vasta campanha de reconstrução do
poder público de acordo com seus interesses materiais e simbólicos.4
Mercantilização dos bens públicos e aumento do trabalho precário e sub-remunerado,
tendo como pano de fundo a miséria dos trabalhadores norte-americanos e o desemprego em
massa contínuo na Europa. Criminalização das proteções sociais que conduz à substituição do
direito coletivo ao seguro contra o desemprego e a pobreza pela obrigação individual de
atividade (workfare nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, emprego ALE na Bélgica, PARE
e RMA na França, reforma Hartz na Alemanha, etc.) com o intuito de impor o asssalariado
4
Para uma análise das variações nacionais desse esquema comum, ler Marion Fourcade-Gourinchas e Sarah L.
Babb, The Rebirth of the Liberal Creed: Paths to Neoliberalism in Four Countries, in American Journal of
Sociology 108(novembro de 2002), p. 533-579.
dessocializado como horizonte normal do trabalho para o novo proletariado urbano dos
serviços.5 Reforço e extensão do aparelho punitivo centralizado nos bairros deserdados das
cidades centrais e das periferias, onde se acumulam as desordens e a desesperança
engendradas pelo duplo movimento de retração do Estado nos âmbitos econômico e social.
Essas três tendências são autoimplicadas e autoimbrincadas em uma cadeia causal
autorelacionada que reconstrói o perímetro e redefine as modalidades de ação do poder
público.
A um Estado keynesiano acoplado ao assalariado fordista vetor de solidariedade, que
tinha como missão diminuir os ciclos recessivos da economia de mercado, proteger as
populações mais vulneráveis e reduzir as desigualdades mais gritantes, sucede um Estado que
se pode qualificar como neodarwinista, na medida em que ele erige a competição como
fetiche e celebra a plenos pulmões a “responsabilidade individual” – cuja contrapartida é a
irresponsabilidade coletiva e política. O Leviatã se contenta então no desenvolvimento de suas
funções reais de manutenção da ordem, hipertrofiadas e deliberadamente abstratas de seu
meio social, como também sobre sua missão simbólica de reafirmação dos valores comuns
pela execração pública das categorias desviantes – em primeiro lugar, aquelas da “recaída” no
desemprego e o “pedófilo” – consideradas tanto como encarnações vivas da incapacidade
congênita de se conformar à ética ascética do trabalho assalariado e do autocontrole sexual.
Esse novo darwinismo, que elogia e recompensa os “ganhadores” pelo seu vigor e inteligência
e fustiga os “perdedores” da “luta pela existência” econômica, assinalando suas carências de
caráter ou de comportamento, não encontra seu modelo na natureza, como seu predecessor do
início do século XX.6 É o mercado que lhe fornece sua metáfora maior e o mecanismo de
seleção que supostamente assegura a “sobrevivência do mais apto”, mas um mercado que é
ele mesmo naturalizado, ou seja, descrito a partir de bases radicalmente desistoricizadas que,
paradoxo, comanda uma forma de realização histórica concreta das abstrações puras e
perfeitas da ciência econômica ortodoxa, elevada ao nível de teodiceia oficial da ordem social
in statu nascendi.
É assim que a “mão invisível” do mercado de trabalho desqualificado, reforçado pela
transição do welfare para o workfare, encontra seu prolongamento ideológico e seu
complemento institucional no “pingo de ferro” do Estado penal se realiza e se desenvolve de
5
Jamie Peck, Workfare States, Guilford Press, New York, 2001 e Catherine Lévy, Vivre au minimum. Enquête
dans l’Europe de la précarité, Editions La Dispute, Paris, 2003, capítulo 4.
6
Mike Hawkins, Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945: Nature as Model and
Nature as Threat, Cambridge University Press, Cambridge, 1997.
7
Pierre Bourdieu et al, La Misère du monde, Seuil, Paris, 1993, pp. 219-228, e Contre-feux, Raisons d’agir,
Paris, 1997, pp. 9-15.
8
Michel Foucault, “Du gouvernement des vivants”, in Résumé des cours, 1970-1982, Julliard, Paris, 1989, p.
123.
9
Michael C. Brown, Race, Money, and the American Welfare State, Cornell University Press, Ithaca, 1999, pp.
323-353.
iniciados para fazer frente aos deslocamentos da organização do trabalho que provocaram
desordens em massa, e depois perduraram (sob uma forma modificada) a fim de que fosse
respeitada a disciplina do trabalho”.10 Trinta anos depois, essa dinâmica cíclica de expansão e
retração da assistência social foi suplantada por uma nova divisão do trabalho de
entiquetamento e dominação das populações desviantes e dependentes que liga os serviços
sociais e a administração da justiça sob a égide de uma mesma filosofia behaviorista e
punitiva. A ativação dos dispositivos disciplinares aplicados aos desempregados, indigentes,
mães solteiras e outros “assistidos” para jogá-los nos setores periféricos do mercado de
trabalho, por um lado, e o enorme desenvolvimento de uma fina ramificação policial e penal
em rede reforçada nas zonas urbanas deserdadas, por outro, são os dois componentes de um
mesmo dispositivo de gestão da pobreza que visam a uma recuperação autoritária do
comportamento das populações indóceis à ordem econômica e simbólica que se colocou. E
que pretende, na falta de outras medidas, assegurar um distanciamento cívico ou físico em
relação àqueles que são considerados “incorrigíveis” ou inúteis.
Na era do salário em decomposição e descontínuo, a regulação das famílias das
classes populares não passa mais apenas pelo braço maternal e complacente do Estado-
Providência; ela se apóia também sobre aquele, viril e controlador, do Estado-Penitência. A
“dramaturgia do trabalho” não se desenvolve apenas sobre a cena da repartição da assistência
social e dos locais em que se busca emprego, como gostariam Piven e Cloward na edição
revista em 1993 de sua análise clássica da regulação dos pobres.11 No início do novo século,
ela se desenvolve também em torno dos cenários severos das delegacias de polícia, nas barras
dos tribunais e na sombra das prisões. Esse acoplamento dinâmico entre a mão esquerda e a
mão direita do Estado se opera de acordo com uma divisão dos papéis dentro da família entre
os gêneros. À burocracia da assistência social reconvertida em trampolim para os círculos de
miséria incumbe a missão de inculcar nas mulheres pobres (e indiretamente em suas crianças)
o dever do trabalho pelo trabalho: 90% dos provenientes do “welfare” nos Estados Unidos são
mulheres. Para o quarteto formado pela polícia, tribunais, prisão e o agente da condicional, a
missão é a de endireitar seus irmãos, companheiros e filhos: 93% dos detentos americanos são
homens(que são também 88% dos libertados em condicional e 77% que tiveram o direito ao
sursis). De acordo com uma rica linha de trabalhos feministas sobre políticas públicas, gênero
10
Frances Fox Piven e Richard A. Cloward, Regulating the Poor: The Functions of Public Welfare, Vintage
Books, New York, 1971, nova edição ampliada, 1993, p. xviii.
11
Piven e Cloward, op.cit., pp. 381-387 e 395-397.
e cidadania12, essa distribuição sugere que a invenção da dupla regulação dos pobres na
América nas últimas décadas do século XX faz parte de uma (re)masculinização do Estado na
era neoliberal, que é em parte uma reação oblíqua às mudanças sociais trazidas pelos
movimentos feministas, com reverberações no interior da estrutura burocrática.
Para além dessa divisão sexual e institucional da regulação dos pobres, os “clientes”
dos setores assistencial e penitenciário do Estado são o objeto de uma mesma suspeita: eles
são considerados moralmente frágeis, até que se prove o contrário. É por isso que suas
condutas devem ser vigiadas e reguladas pela imposição de protocolos rígidos, cuja violação
os expõe a um aumento da disciplina corretiva, e depois, se necessário, a sanções que podem
resultar em um isolamento prolongado, uma espécie de morte social por falta moral –
isolados da comunidade cívica dos portadores de direito para aqueles que recebem a
assistência social, isolados da sociedade dos homens “livres” para os reincidentes. Assistência
social e justiça criminal são, a partir desse momento, animados por uma mesma filosofia
paternalista e punitiva que acentua a “responsabilidade individual” do “cliente”, tratado como
pouco mais do que um sujeito (em oposição aos direitos e obrigações universais do
cidadão13), e elas atingem os públicos de maneiras semelhantes. Em 2001, o número de
famílias que recebiam a principal alocação instituída pela “reforma” da assistência aos
desamparados de 1996 (Temporary Assistance to Needy Families” era de 2,1 milhões,
correspondendo a cerca de 6 milhões de beneficiários. Nesse mesmo ano, o estoque da
população carcerária atingiu 2,1 milhões de pessoas e os efetivos que estavam sob a
responsabilidade da justiça(juntando-se os detidos e os condenados com sursis e liberados em
condicional) se aproximava de 6,5 milhões. Além disso, os beneficiários da assistência social
e os presos apresentam perfis sociais similares e estabelecem relações mútuas estreitas que os
tornam as duas metades sexuais de uma mesma população.
12
Ver Ann Orloff, “Gender in the Welfare State”, in Annual Review of Sociology, 22(1996), pp. 51-78 e Julia
Adams e Tasleem Padamsee, Signs and Regimes: Reading Feminist Research on Welfare States, in Social
Politics 8, 1 Printemps 2001, pp. 1-23.
13
Dorothy Roberts, “Welfare and the Problem of Black Citizenship”, in Yale Law Journal, 105, 6, Abril de
1996, pp. 1563-1602.
14
Loïc Wacquant, “The Penalisation of Poverty and the Rise of Neoliberalism”, in European Journal of
Criminal Policy and Research, número especial sobre Justiça penal e política social, 9 4, inverno de 2001, pp.
401-412; e Tim Newburn e Richard Sparks(dir.), Criminal Justice and Political Cultures: National and
International Dimensions of Crime Control, Willan Publishing, Londres, 2004.
15
Vivien Stern, “Mass Incarceration: ‘A Sin Against the Future’?”, in European Journal of Criminal Policy and
Research, 3, outubro de 1996, p. 14.
mentais nacionais, a menor impregnação da ideologia individualista e utilitarista que está por
trás da sacralização do mercado, e a falta de cesura etno-racial fizeram com que os países
continentais não passassem rapidamente para o “todo penal”. Cada um deles deve construir
seu próprio caminho em direção ao novo governo da insegurança social, de acordo com sua
história nacional, suas configurações sociais e tradições políticas e burocráticas específicas.
Para esquematizar, pode-se caracterizar provisoriamente a “via europeia” (com as variações
francesa, italiana, holandesa, etc.) para o Estado penal que se desenha por acaso perante
nossos olhos por um duplo acento conjunto da regulação social e penal das categorias
marginais.
Assim, durante a década passada, as autoridades francesas realizaram ao mesmo
tempo mais na questão social e mais no aspecto penal, mesmo que o “social” seja marcado
por um moralismo punitivo. Por um lado, multiplicaram-se os dispositivos de assistência
(Contratos Emprego-Solidariedade, empregos para jovens, estágios de formação, programa
TRACE, etc.), aumentaram-se os mínimos sociais, foi instituída a Cobertura Médica
Universal e estendeu-se o acesso à Renda Mínima de Inserção. Por outro, desenvolveram-se
as “células de vigilância” e foram fixadas as unidades de polícia antirevoltas nos “bairros
sensíveis” da periferia urbana; substituiu-se o educador pelo juiz para fazer apelo à lei; foram
aprovados decretos contra a mendicância (tornando tal atividade ilegal), multiplicadas as
operações policiais “súbitas e inesperadas” nas cidades estigmatizadas e banalizado o uso da
prisão preventiva, aumentadas as penas para os reincidentes e as possibilidades de prisão de
menores, limitadas as liberações em condicional, aceleradas as deportações de estrangeiros
submetidos a uma dupla pena, ameaçados os pais de jovens delinquentes com a supressão das
alocações familiares, etc.
Segunda diferença entre os Estados Unidos e os países do Velho Mundo: a
penalização da miséria à europeia se realiza principalmente através da polícia e dos tribunais
do que pela prisão. Ela obedece (por quanto tempo ainda?) a uma lógica dominante muito
mais panóptica do que segregadora e retributiva. Correlacionado a isso, os serviços sociais
têm um papel ativo nesse processo de criminalização, já que eles dispõem de meios
administrativos e humanos para exercer uma supervisão mais próxima das populações ditas
problemáticas. Mas, a ativação simultânea do tratamento social e penal das desordens urbanas
não pode esconder o fato de que o primeiro serve com frequência de tapa-sexo burocrático
para o segundo e ele está cada vez mais submetido na prática. Encorajando os serviços
sociais, sanitários, escolares, etc., do Estado a colaborar estreitamente com a polícia e a
suficiente romper com a visão da história inspirada pela teoria do complô, que atribui essa
escalada a um plano deliberadamente construído pelas classes dominantes oniscientes e
onipotentes, tomadores de decisão política, dirigentes de grandes empresas ou outros agentes
que tiram proveito (algumas vezes pecuniário) do crescimento, da amplitude e da intensidade
das penas e dos programas de supervisão pensados para os dejetos urbanos da desregulação. É
preciso, com Pierre Bourdieu, recusar o “funcionalismo do pior” que transforma todo
desenvolvimento histórico na obra de um estrategista perspicaz, ou o produto mecânico e
quase milagroso de um aparelho abstrato de dominação e exploração que se “reproduziria” em
todas as situações.16 Além disso, tal visão confunde a convergência objetiva de um conjunto
de políticas públicas diversas que se entrelaçam, cada uma defendida por seus protagonistas e
impostas por suas relações próprias, com as intenções subjetivas dos administradores do
Estado. Ela também não considera a advertência feita por Foucault, quando nos convidou a
abandonar “a hipótese repressiva” a fim de tratar o poder como uma força fecunda que
recompõe a própria paisagem que ela percorre.17 O aparecimento do “liberal-paternalismo”
deve ser concebido também, como o sugeria naquele momento Karl Marx, a partir da
categoria geradora da produção:
“O criminoso produz uma impressão ao mesmo tempo moral e trágica, e ele ‘presta
um serviço’ ao apresentar os sentimentos morais e estéticos do público. Ele produz não
apenas os manuais da lei penal e a própria lei penal, e, portanto, os legisladores, mas também
a arte, a literatura, e o teatro dramático. O criminoso rompe com a monotonia e a segurança da
vida burguesa. Assim, ele a protege da estagnação e suscita essa tensão constante, essa
mobilidade de espírito sem o qual o próprio estímulo pela competição seria atenuado.”18
A transição da gestão social para o tratamento penal das desordens induzida pela
fragmentação do salário é de fato eminentemente produtiva. Produtiva de novas categorias de
percepção e de ação pública, em primeiro lugar. Como um eco distorcido à pretensa
descoberta das “underclass areas” nos Estados Unidos, a Europa do final do século XX viu a
invenção do “bairro sensível” na França, do “sink estate” no Reino Unido, do
“Problemquartier” na Alemanha, do “krottenwijck” nos Países Baixos, e assim
sucessivamente, como também o aparecimento de eufemismos burocráticos para designar as
16
“Um dos princípios da sociologia consiste em recusar esse funcionalismo negativo: os mecanismos sociais não
são o produto de uma intenção maquiavélica. Eles são muito mais inteligentes que o mais inteligente dos
dominadores”. Pierre Bourdieu, Questions de Sociologie, Minuit, Paris, 1980, p. 71.
17
Michel Foucault, Two Lectures(1976), in Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1972-
1977, dir. Colin Gordon, Pantheon, New York, 1980, p. 97.
18
Karl Marx, Le Capital. Livre IV: Théories de la plus-value, Editions Sociales, Paris, 1976(orig. 1877), tomo 1,
pp. 226.
camadas miseráveis da cidade deixadas em estagnação econômica e social pelo Estado, e por
essa razão, submetidas a um controle policial reforçado e a uma penetração mais cruel da
instituição carcerária. O mesmo ocorre com a noção burocrática de “violências urbanas”,
forjada na França pelo Ministério do Interior para amalgamar os atos desviantes de natureza e
motivação as mais diversas (olhares agressivos e linguagem de baixo calão, grafite e
depredações, roubo de veículos, rixas entre jovens, ameaças aos professores, tráfico de drogas
ou receptação de objetos roubados, confrontos coletivos com a polícia, etc.) a fim de
favorecer um enfrentamento punitivo dos problemas sociais que afligem os bairros populares,
despolitizando-os.19
Novos tipos sociais são um outro produto derivado do novo regime de insegurança
social: a irrupção dos “super-predadores” nos Estados Unidos, dos “feral youth” e outros
“yobs” no Reino Unido, ou dos “selvagens” na França (variante social-paternalista do insulto
racista em uma linguagem jurídica supondo uma falta de cultura das classes populares)
justificou a reabertura ou a extensão dos centros de internação para jovens delinquentes,
enquanto todos os estudos existentes deploram sua extrema nocividade. A tudo isso,
acrescente-se a renovação de figuras clássicas tal como o do “reincidente profissional”, último
avatar pseudo-científico do uomo delinquente de Cesare Lombroso em 1884, em que se
pesquisam através de “retratos-falados” as características psicofisiológicas e antropométricas
distintivas, alimentando o crescimento de uma verdadeira indústria burocrático-jurídica de
“avaliação dos riscos” envolvidos pela soltura de categorias sensíveis de detentos.
Isso porque a política de criminalização da precariedade é igualmente portadora de
novos saberes sobre a cidade e seus distúrbios que difundem uma gama inédita de “experts” e,
seguindo seus passos, de jornalistas, responsáveis administrativos, associações e eleitos
preocupados com os “bairros sensíveis”. Esses saberes são colocados em forma e em órbita
por instituições híbridas, situadas na interseção dos campos burocrático, universitário e
midiático, que simulam a pesquisa para dar uma caução de aparência científica o aumento do
aparato policial e penal nos bairros deserdados. É o caso, na França, do Instituto de Altos
Estudos da Segurança Interna, organismo criado por Pierre Joxe em 1989, e depois
desenvolvido por Charles Pasqua, “colocado sob a autoridade direta do Ministro do Interior”,
a fim de promover um “pensamento razoável sobre a segurança interna”, que irriga a França
19
Sobre a invenção e o desenvolvimento político-burocrático dessa noção, ver Laurent Bonelli, Renseignements
Généraux et violences urbaines, in Actes de la recherche en sciences sociales, n. 136-137, março de 2001, pp.
95-103 e Laurent Mucchielli, L’expertise policière de la ‘violence urbaine’: sa construction intellectuelle et ses
usages dans le débat public français, in Déviance et société, 24-4, dezembro de 2000, pp. 351-375.
20
Em julho de 2004, o IHESI foi substituído pelo INHES(Instituto nacional de altos estudos de segurança), uma
estrutura siamesa apresentada pelo Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy como “a escola de elite da segurança
que a França precisa”. Seu comitê de direção não é formado por um único pesquisador. Seu trabalho é
prolongado pelas atividades do Observatório sobre a delinquência, também criado por Sarkozy e dirigido por
Alain Bauer, “criminólogo” autoproclamado e PDG da firma do “conselho em segurança urbana Alain Bauer
Associates”.
***
Não é mais possível, para quem pretende penetrar no destino das frações
precarizadas da classe operária em suas relações com o Estado, se contentar em estudar os
programas de assistência social. É preciso prolongar e completar a sociologia das políticas
tradicionais de “bem-estar” coletivo – ajuda às pessoas e às famílias desassistidas, mas
também educação, habitação social, saúde pública, alocações familiares, redistribuição de
renda, etc. – com as políticas penais. A partir de agora, o estudo do encarceramento deixa de
ser relevante apenas para a área especializada dos criminólogos e penalistas para se tornar um
capítulo essencial da sociologia do Estado e da estratificação social, e mais especificamente
da (de)composição do proletariado urbano na era do neoliberalismo ascendente. De fato, a
cristalização de um regime político liberal-paternalista, que pratica o “laisser-faire e laisser-
passer” no alto da estrutura das classes, no nível dos mecanismos de produção das
desigualdades, e o paternalismo punitivo na base, no nível de suas implicações sociais e
espaciais, exige o abandono da definição tradicional do “social”, produto de um senso
comum político e erudito ultrapassado pela realidade histórica. Ela demanda que se adote uma
perspectiva alargada, para albergar em uma única análise o conjunto das ações pelas quais o
Estado pretende modelar, classificar e controlar as populações (julgadas) desviantes,
dependentes e perigosas situadas em seu território.
Religar política social e política penal denota o que poderia aparecer como uma
contradição doutrinária, ou pelo menos uma antinomia prática do neoliberalismo, entre a
diminuição do poder público sobre a área econômica e seu aumento naquela da manutenção
da ordem pública e moral. Se os mesmos que exigem um Estado mínimo a fim de “liberar” as
“forças vivas” do mercado e submeter os mais despossuídos ao aguilhão da competição não
hesitam em erigir um Estado máximo para assegurar a “segurança” no cotidiano, é que a
21
Eric Debardieux, Insécurité et clivages sociaux: l’exemple des violences scolaires, in Les Annales de la
recherché urbaine 75(Junho de 1997), pp. 43-50 e Franck Poupeau, Contestations scolaires et ordre social. Les
enseignants de Seine-Saint-Denis en greve, Syllepse, Paris, 2004.
**
Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG; Professor de Teoria do
Estado, Teoria da Constituição, Hermenêutica e Argumentação Jurídica e Direito Administrativo I na PUC
Minas Serro(MG); Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas Serro(MG).