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154 REVISTA USP, São Paulo, n.41, p.

154-167, março/maio 1999


Indivídu
é professora do
Departamento de História

ALINEPEREIRADE
Ao lado, A

o
e corp de Grünewald

TEREZA
Tentação de
Santo Antônio,

o
polític
o
no
sonho
medie
val
QUEIROZ

da FFLCH-USP.
TEREZA ALINE
PEREIRA DE QUEIROZ
alma e de suas relações com um plano espiritual. Idéias
n a Antigüidade, gregos,
romanos, egípcios ou judeus
admitiram os sonhos como ma- mecanicistas e pagãs como as de Petrônio (m. 66 A.D.) podem
nifestações insuperáveis do
destino, da ressurgir em textos medievais; em um de seus poemas,
sanidade corpórea, da vida espiritual dos Petrônio defende a tese de que cada homem faz seu próprio
homens. A partir dos séculos II e III, as sonho, independentemente dos deuses, portanto, do além;
formalizações do pensa-mento cristão, entende que a mente apenas segue no escuro aquilo que
encaminhando as mentes na direção de um procurava de dia – assim o cachor-
desprezo cada vez mais acentuado pelo
corpo físi-co, implicitam uma desconfiança
neste canal de comu-nicação direta entre o
consciente e o inconsciente. Por outro lado,
os teóricos cristãos passaram a assimilar
sonhadores a heréticos, dada a importância
“But what is the
que os so-nhos e visões assumiam entre purpose
várias seitas declaradas heréticas pela Igreja,
como a dos gnósticos (1). No entanto, o
sonho não desaparecerá como objeto de re-
of hunting
flexão; antigos elementos de compreensão
da vida onírica, mesmo que aparentemente
dreams?”
ameaçadores às crenças cristãs, como no
caso do caráter premonitório do sonho, (Milorad Pavic’, Dictionary
surgirão diluídos, reavaliados, ou perverti-
dos nas novas doutrinas de entendimento da
of the Khazars).

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ro continua perseguindo a lebre, o mari-nheiro A associação do político com o onírico tem
salvando seu navio do naufrágio, a amante raízes tanto na via bíblica como nas
escrevendo uma carta para seu amor, e os permanências greco-romanas. O Evange-lho de
infelizes prolongando seu so-frimento (2). Já o Mateus (2:12) explicita bem essa conexão; ao
cristão Tertuliano (séc. serem enviados a Belém por Herodes, na
III) afirmava que os sonhos poderiam ser qualidade de espiões, os ma-gos são advertidos
produzidos pelo corpo ou pelos movimen-tos da em sonho a voltar para casa por outro caminho,
alma, crenças geralmente admiti-das na Idade evitando assim um encontro com o rei e
Média, mas também advoga-va que os facilitando a fuga da sagrada família para o
demônios, criaturas do além, seriam Egito; fuga também sugerida em sonho a S. José.
responsáveis pelo envio de sonhos lúbricos, No grande plano da Providência cris-tã, a
vãos, enganadores e imundos (3) própria cristianização do Império Ro-mano seria
– fato nem sempre considerado pelos es-critores tributária de um sonho. Na Legende Dorée (9), a
medievais. vida de S. Silvestre narra a aparição dos santos
�No plano teórico, as primeiras linhas do Pedro e Paulo ao imperador Constantino.
Onironcriticon de Artemidoro (séc. II d.C.) Inteiramente coberto pela lepra, Constantino iria
estabeleceram a diferença entre sonho sacri-ficar 3.000 criancinhas para se banhar em
(enupnion) e visão de sonho (oneiros) (4), songe “sangue fresco e quente”. No entanto, di-ante
em francês. A visão do sonho repre-sentaria o dos gritos desesperados das mães, aca-ba
futuro, ao passo que o sonho (enupnion) diria mudando de idéia. Como recompensa por esse
respeito à realidade presen-te, à lembrança das ato, Pedro e Paulo lhe revelam, em sonho, que S.
realidades presentes, como no caso de um Silvestre (10) conhece uma piscina capaz de
amante, que sonha ser o objeto de amor de sua limpar sua pele após três mergulhos. Como
amada (5). A visão do sonho, seguindo as agradecimento a Cristo, verdadeiro autor do
próprias palavras de Artemidoro, “influi como milagre, o imperador deveria destruir todos os
sonho durante o sono”, no sentido de anúncio do tem-plos pagãos e construir igrejas cristãs. Ao
futuro, mas acordar, Constantino chama Silvestre, que estava
também influi após o sono , fazendo com que preso, e indaga sobre a identidade dos deuses de
ações se concretizem, excitando e mo- sua visão. As imagens dos apóstolos lhe são
1 Cf. Jacques Le Goff, “Le
Christianisme et les Rêves”, in vimentando (oreinein) a alma… (6). Estes mostradas para que se convença de que não se
L’Imaginaire Médieval, Paris,
sonhos, como diz Foucault, seriam “os so-nhos trata de deuses. Após as três imersões nas águas
Gallimard, 1985, p. 285.

2 Cf. Petronius Arbiter,


do ser, falando sobre o futuro do acon-tecimento do batistério, e já curado, Constantino deter-
“Somnia, quae mentes ludunt na ordem do mundo” (7). Não os sonhos dos mina por lei que Jesus Cristo seja adorado como
volitantibus umbris…”, in
Medieval Latin Lyrics, ed. por
desejos íntimos, mas aqueles vinculados ao o verdadeiro Deus, que o imperador assumirá
Helen Waddell, Middlesex, coletivo; ambos, no entanto, sendo devidamente doravante o papel de chefe de todos os bispos,
Penguin, 1952, pp. 28-9.
interpretados de acordo com a posição social, que as igrejas se conver-terão em sítios de
3 Cf. Jacques Le Goff,
op. cit., p. 288. profissional e jurídica do indivíduo. refúgio, que os inimigos dos cristãos serão
4 Cf. Artemidoro, La Clef des privados da metade de seus bens, etc. Ou seja,
Songes, tradução francesa de Tanto os sonhos premonitórios pessoais estabelece a nova política entre Estado Romano
A. J. Festugière, Paris,
J. Vrin, 1975, p. 19. como os songes serão evocados nos escritos e Igreja. Anos mais tarde (394), após lutar contra
5 Idem, ibidem. medievais. Nos séculos XIV, XV e XVI, ao germanos inimigos do cristianismo, o im-
6 Idem, ibidem, p. 20. invés de atacar a ordem vigente acordados, perador Teodósio vê em sonho dois ho-mens
7 Michel Foucault, Histoire vários autores optarão por subterfúgios oníricos, vestidos de branco, montados em cavalos,
de la Sexualité (volume 3), concebendo um ideal de sociedade avesso às também brancos; apresentam-se como João
Le Souci de Soi, Paris,
Gallimard, 1984, p. 23. suas imperfeições. A ordem polí-tica desejada Evangelista e o apóstolo Felipe e lhe prescrevem
8 J. J. Rousseau, La Nouvelle tomará forma na evasão, num “país de o uso da maior audácia
Heloïse, Vie. partie, lettre VIII.
quimeras” à la Rousseau (8), uma arquitetura
9 Jacques de Voragine, La
Legende Dorée, tradução de J.- antitética às calamidades, perce-bida na
B. M. Roze, Paris, Garnier-
estranheza dos estados de dormência, será
Flammarion, 1967, 2 volumes.

10 Idem, vida de Saint Silvestre,


dramaticamente construída por teóri-cos ou
vol. I, pp. 95-105. moralistas políticos.

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em uma nova batalha pela manhã, a mes- novas estratégias para a sempre periclitante
ma visão ocorre a um de seus soldados. sobrevivência da fé na instituição da Igreja.
Impressionado, Teodósio considera-se No entanto, paradoxalmente, nesse mesmo
então protegido por forcas superiores; con- momento, sonhar poderia representar uma
victo de seus poderes, conclama os exér- ameaça à ordem estabelecida; dada a impor-
citos, obtém a vitória e consolida definiti- tância que os sonhos assumem no cotidiano
vamente o império cristão (11). dos cátaros (13) e de outros heréticos, teori- 11 Cf. Jacques Le Goff,
Séculos mais tarde, o papa Inocêncio III camente se convertem num alvo da descon-sonhará com op. cit., p. 302.
a Basílica de Latrão em ruínas, fiança da Igreja (14). 12 Cf. Jean Chelini, Histoire
Religieuse de l’Occident
sustentada apenas pelos ombros de um po- Ecos desse encadeamento entre o so- Médieval, Paris, Armand
bre homem, identificado depois como Fran- nhado e a vivência política podem ser en- Colin, 1968, p. 344.

cisco de Assis. Guiado pelo sonho, Inocêncio contrados até nos nossos dias. Em O Palá- 13 Cf. E. Le Roy Ladurie,
Montaillou, Village
chama então Francisco e seus companhei- cio dos Sonhos (15) (1981), o novelista Occitan de 1294 à 1324,
Paris, 1975, pp. 608-9.
ros (1209), outorgando-lhes o direito de en- albanês Ismaïl Kadaré constrói uma tene-
14 Cf. Jacques Le Goff,
sinar a penitência e a moral (12). Esse gesto brosa estrutura burocrática – o Tabir Sarrail
op. cit., p. 313.
político, dado como produto de uma visão – encarregada de coletar os sonhos de to- 15 Ismaïl Kadaré, Le Palais des
onírica, evita o deslize do grupo de mendi- dos os habitantes, centralizá-los em um Ar- Rêves, traduzido do albanês
para o francês por Jusuf
cantes nos caminhos da heresia e sedimenta quivo e, posteriormente, realizar sua tria- Vrioni, Paris, Fayard, 1990.

Sonho de
Constantino,
de Piero della
Francesca

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gem, classificação e interpretação. Através da macrocósmicas, pelo potencial imanente de
análise dos muitos milhares de sonhos, os conseqüências que encerram os sonhos, ca-bia
especialistas devem detectar os “sonhos- somente a judeus eleitos, como José ou Daniel
matrizes” em que estariam contidos os des-tinos (19), o direito de poder interpretá-los. O leitor de
do Império e de seu tirano. Mark Alem, o sonhos é necessariamente um iluminado, não um
aterrorizado senhor desse labirinto, é um dia sábio, traduzindo na terra as idéias divinas (20),
instruído pelo poderoso grão-vizir so-bre a antes do advento do milênio (21).
relação entre os sonho e a realidade política.
Para sua estupefação, aprende que o grande O sonho bíblico também visa a facilitar a
problema a ser considerado seria o de saber qual mensagem de Deus para pessoas comuns; assim,
desses mundos domina o outro. Diz o vizir: José é advertido do nascimento do Cristo por um
sonho (Mateus, 1: 20), mas Maria recebe a
notícia diretamente; a mu-lher de Pilatos se
“Alguns[…] pensam que o mundo das an-gústias convence da inocência do Cristo através de
e dos sonhos, em suma, o seu mun-do, é aquele sonhos atormentados (Mateus, 27, 19).
16 Idem, ibidem, p. 145.
que dirige este mundo. Eu es-timo que é a partir Terluliano, primeiro gran-de teórico cristão do
17 Deuteronômio 13, 1,5.
deste mundo que tudo é dirigido. Afinal de sonho – apesar de montanista, portanto semi-
18 “Mas Deus apareceu de noite
em sonhos a Abimalec, e
contas, é este mundo que escolhe os sonhos, as herético, e de seus temores frente ao conteúdo
disse-lhe: Eis que morrerás angústias e os delírios, que devem subir a diabólico dos sonhos –, afirma serem as visões
por causa da mulher que
roubaste, por-que ela tem superfície, como um balde que traz para cima a res-ponsáveis pelo conhecimento de Deus na
marido” (Gen. 20:3).
água do fun-do de um poço. Você entende o que maioria dos homens (22).
Sonho de Jacó: “E viu em
so-nhos uma escada posta eu digo?
sobre a terra, cujo cimo
tocava o céu, e os anjos de
É este mundo, aqui neste buraco, que esco-lhe o Na esfera da iluminação podemos con-
Deus subindo e descendo que interessa. […] Diz-se até que o Sonho- siderar o sonho de Monica, narrado nas
por ela” (Gen. 28:12).
Sonho de Labão: “E viu em Matriz é totalmente fabricado, fa-lou Confissões (23). Desesperada com a vida
sonho a Deus que lhe dizia:
Guarda-te de dizer contra suavemente. Você podia imaginar uma coisa dissipada de Agostinho, Monica só chora-va;
Jacó alguma palavra áspera”
dessas?” (16). Cristo aparece para reconfortá -la, fa-zendo com
(Gen. 31:24).
Sonho de José: “Sucedeu que volte a viver com o filho e a compartilhar
tam-bém que ele referiu a Certamente essa perversidade explícita está suas refeições. No sonho, Monica esta em pé, em
seus ir-mãos um sonho que
tivera; o que foi causa de ausente dos escritos medievais. No en-tanto, a cima de uma espé-cie de barra de madeira; dela
maior ódio” (Gen. 37:5).
No capítulo 41 do Genesis, o
ambigüidade entre a concretude mo-tivadora do se aproxima um jovem, brilhando, alegre e
Faraó tem os sonhos das vacas sonho e a projeção do sonhado na realidade sorridente, que indaga sobre as razões de sua
gordas e das vacas magras
interceptados por José: “O so- parece ser uma constante. tristeza. Monica confessa chorar a perda do
nho do rei reduz-se a um só: Também o caráter premonitório dos sonhos e filho; a aparição lhe recomenda então ficar
Deus mostrou ao Faraó o que
está para fazer” (Gen. 41:25). sua associação com as artes divi-natórias são atenta ao fato de seu filho estar a seu lado.
19 “…e a Daniel [Deus deu] a admitidos na Idade Média, tanto para o sonho Quando Agostinho tenta interpretar o sonho da
in-teligência de todas as
visões e sonhos” (Profecia
político como para aque-les de cunho pessoal. A mãe, acredita que o sentido seja o de que sua
de Daniel, 1:17). Bíblia desempenha um papel considerável na mãe não deve se desesperar por estar no mesmo
20 “A mim também me foi revela-do
formalização desses enfoques; atua igualmente lugar do filho. Mas Monica discorda; “não fora
este segredo, não porque a
sabedoria que há em mim seja como suporte da consolidação do sonho como dito lá onde ele está, você também está, mas sim,
maior que a que se acha em
todos os outros viventes, mas
ponte entre mortais e imortais e no estabe - lá onde você [Monica] está, ele também está”;
para que ficasse manifesta ao lecimento de uma identidade entre sonho e assim conclui que Agosti-nho ira acabar por se
rei [Nabucodonosor] a interpre-
tação de seu sonho…” (Profe-
profecia, sonhador e profeta; o Deuteronô-mio, converter ao cristia-nismo. Talvez o próprio
cia de Daniel, 2:30). inclusive, adverte os israelitas contra o inventor pedaço de madeira onde estivessem significasse
21 “…os vossos velhos serão
de sonhos que os levaria à ido-latria (17), a cruz de Cris-to. Agostinho nota ser a
ins-truídos por sonhos, e os
vossos jovens terão visões” homologando assim seu enor-me poder de interpretação da mãe baseada no exame das
(Profecia de Joel, 2:28).
persuasão. Em várias passa-gens do Genesis palavras ouvi-das no sonho, mas sobretudo no
22 Cf. Jacques Le Goff, op.
cit., pp. 228 e 286-90.
(18), Deus se comunica com os homens através seu senti-do geral. Para Monica a imagem do
23 S. Agostinho, Confessions, tra- de seus sonhos. Como expressões de sonho representou uma fonte de ânimo e
dução para o francês de Louis correspondências esperan-
de Mondadon, Paris, Ed. Pierre
Horay, 1982, livro III, p. 82.

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ça (24) durante os nove anos que antecede-ram a surgia na lareira do convento, ardendo em
conversão de seu filho. enormes labaredas, e seviciada com marte-los
No século XII, um atento leitor de Agos- por dois espíritos. Este pesadelo culmi-na
tinho, o monge beneditino Guibert de Nogent, quando uma fagulha da fogueira entra no olho da
relata em suas Memórias que sua mãe captava, freira que dorme, provocando uma dor terrível
através de sonhos, todos os estados de espírito (30) . Através deste relato Guibert constrói um
ou de saúde em que se encontrasse, no presente e processo de transfe-rência das penas da morta
no futuro (25). Do mesmo dom dispunha seu para a monja que dorme, de somatização da
mestre, o que levava Guibert a se abster de atos angústia da alma em purgação no corpo vivo,
impuros de qualquer natureza, por medo desses reiterando a existência de um livre e ativo
po-deres (26). É também sua mãe que empreen- comércio entre o cotidiano e o além.
de uma viagem ao além por meio de um sonho.
Num domingo de verão à noite, es-tendida sobre Cesário de Heisterbach (século XIII), no
um banco, cai no sono, sua alma sai do corpo e Dialogus Miraculorum (31), narra tam-bém uma
se dirige para a boca de um poço. No fundo, história nesta via de apreensão da realidade. Um
encontra seu finado ma-rido e uma velha jovem noviço, à beira da morte, deseja
conhecida; com ela fizera um pacto pelo qual a confessar-se com o abade, mas este está
primeira que morresse viria visitar a outra (27). viajando. Já morto, o espírito do rapaz procura o
Embora se sentisse feliz durante a experiência, a superior numa pousada, para invocar o perdão
mãe de Guibert pede a Deus para retornar ao que salvaria sua alma. O ato da confissão
corpo (28). transcorre num clima de arrependimentos e
lágrimas. Quando acor-da, o abade está 24 Sobre os sonhos de Agostinho e

Os filósofos da Antigüidade também haviam perplexo; ignora se o morto realmente lhe a idéia das Confissões como
uma “autobiografia onírica”, cf.
concebido os sonhos numa dinâ-mica de aparecera, ou se tudo não pas-sava de um truque M. Dulaye, Le Rêve dans la Vie
et la Pensée de Saint Augustin,
aproximação entre vivos e mortos. Uma das da imaginação. Acaba por fim se convencendo Paris, 1973; e P. Courcelle,
matrizes literárias deste convívio se encontra na da veracidade do ocorrido, ao perceber seu Recherche sur les Confessions
de Saint Augustin, Paris, 1950;
visão de Er, o pamfílio, no livro X da República hábito totalmente encharcado pelas lágrimas do e Les Confessions de Saint

de Platão (29). Er, julgado morto numa batalha, noviço. Augustin dans la Tradition
Littéraire, Paris, 1963; obras
é jogado en-tre outros cadáveres; dez dias após é Um dos sonhos mais espetaculares da citadas por Jacques Le Goff,
op. cit., p. 295.
reen-contrado intacto, no décimo segundo dia literatura ocidental nasce dessa relação ambígua
volta à vida. Relata, então, que sua alma saíra do entre vivos e mortos. O próprio fato de estar tão 25 John F. Benton (ed.), Self

corpo e, com outras almas, fora até um lugar bem documentado nas crô-nicas de Adémar de and Society in Medieval
France, The Memoirs of
divino, formado por vários círcu-los, onde se Chabannes, de Thietmar, de Novalesa (32) Guibert de Nogent, N. York,

encontravam todos os tipos de vidas e de almas; sugere a am-plitude de seu significado político. Harper Torchbooks, 1970.

26 Idem, ibidem, pp. 82-3.


aí cada alma dispunha da oportunidade de No ano 1000, o imperador Otto III decide
27 Cf. Jacques Le Goff, La
escolha de uma nova con-dição de vida – assim estabele-cer laços entre seu poder e o do
Naissance du Purgatoire,
a alma de Orfeu teria optado por se transformar imperador Carlos Magno. Rezam as fontes que o Pa-ris, Gallimard, 1981,
pp. 246-50.
em um cisne, a de Agamenon em uma águia, pró-prio espírito de Carlos Magno teria apare-
28 O sonho da alma liberada do
pois não que-riam mais renascer como homens. cido a Otto, advertindo-o da necessidade de corpo remonta a Pitágoras,
Apesar de tipicamente platônica, para nós torna- exumar seu corpo. Ignorando a situação do Platão, os estóicos, Cícero e
Tertuliano. Cf. Jacques Le
se quase impossível ler a visão de Er sem a túmulo na cripta da capela de Aix, Otto decide Goff, op. cit., p. 274.
interferência de Dante. jejuar três dias, provocando assim uma visão do 29 Cf. Platão, Oeuvres Complètes
– La Rèpublique, ed. por Robert
local exato; sua qualidade de soberano já o
Baccou, Paris, Garnier, 1936,
tornava um sonhador privile-giado, pois este tomo IV, pp. 380 e segs.
Guibert de Nogent, forçosamente, tem uma poder fora atribuído a governantes e aos santos 30 John F. Benton, op. cit., p. 112.

visão cristianizada dessas relações com o além, o desde a época de Constantino (33). Obtida a 31 Cf. Hermann Hesse,
Leyendas Medievales, trad.
que torna o encadeamento entre crime e castigo visão, desvela-do o mistério, a tumba é aberta. Roberto Bein, Barcelona,
mais explícito. Escreve sobre o aparecimento de Reprodu-zindo fielmente o sonho de Otto, Brughera, 1976, p. 28.

uma monja, morta sem confissão, num sonho da Carlos Magno materializa-se; sentado numa ca- 32 Cf. Georges Duby, L’an Mil, Pa-

ris, Julliard, 1976, pp. 34-5.


religiosa que dormia na cama onde morrera. A
33 Cf. Jacques Le Goff,
defunta op. cit., p. 301.

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deira de ouro, com o seu corpo gigantesco sentem através de formas oníricas, molda-das
intacto – após quase dois séculos de sua morte – por uma longa tradição filosófica e li-terária,
e uma coroa de ouro na cabeça. Como as unhas com ecos do cotidiano, mas retoricamente
do cadáver haviam cresci-do e furado suas luvas, construídas.
Otto as apara e as guarda para si, apropriando-se Do ponto de vista formal, o invólucro
magicamen-te dos poderes do imperador. Logo onírico ou visionário no tratamento de idéias
após a exumação, a lenda do sonho se espalha, e filosóficas fora utilizado desde Platão. Na Idade
Carlos Magno se põe a fazer milagres. Média, é sobretudo através de Cícero (106-43
a.C.), e das leituras de Cícero fei-tas por
Também a pequena política desperta so- Macróbio (início do séc. V) e Boécio (480-524
nhos, narrados outra vez por Guibert de Nogent. A.D.), que o sonho se instaura como recurso
Em 1112, a comuna de Laon vive a sangrenta literário. Cícero decidira ter-minar sua
revolta de seus habitantes con-tra os poderes República platonicamente, com uma visão.
despóticos do bispo. Sonhos premonitórios dessa Imitando o episódio de Er, cria a cena em que
luta invadem as casas da cidade. Um cidadão Scipião Africano Menor so-nha com seu avo,
sonha com uma bola em forma de lua caindo Scipião Africano Maior. A aparição desta
sobre a cidade (34); outro, inimigo do bispo, se personagem explica-se por uma conversa com o
vê atacado por dois ursos que lhe arrancam o rei Masinisa sobre o Velho Scipião, após um
fígado ou os pulmões – pouco tempo depois
copioso jantar. Estes dois componentes,
seria cruel-mente assassinado pelos asseclas do
digestivo e reme-morativo, serão inúmeras vezes
bispo (35). Raul, o senescal do bispo, também
invocados pelos sonhadores literários.�
recebe um aviso: está na catedral de Notre
Dame, onde uma multidão de bandidos jo-gava e O episódio do Somnium Scipionis en-cerra
fazia um espetáculo para o público; entrementes, uma reflexão sobre a imortalidade da alma e a
outros homens saíam da casa do tesoureiro do pequeneza do império romano, perdido no meio
bispo, ao lado da igreja, segurando taças com de um ínfimo planeta, quase imperceptível
uma bebida fétida para ser servida aos diante do Universo, das profundezas da Via
espectadores. Segundo Guibert, o sentido desse Láctea, das harmo-nias secretas das esferas
sonho tornara -se evidente após as comoções na celestes. No en-tanto, o propósito de Cícero não
cidade: os jogos demoníacos e a podridão fedida é especu-lativo. Todas as considerações
sim-bolizavam os atos da população enfurecida apresenta-das objetivam a ação, a luta pela pátria
ao atear fogo na casa do tesoureiro e desen- (38). Estabelece uma conexão imediata entre po-
cadear o incêndio da própria igreja e da casa do lítica e salvação, ao afirmar que os homens que
bispo (36). socorrem e engrandecem a pátria teri-am um
lugar garantido nos céus. Por outro lado, trata-se
também de um sonho premonitório, antevendo
Nos textos de Guibert parece haver uma
Scipião neto no consulado e Cartago destruída
associação natural entre política e calami-dades.
(39).
34 John F. Benton, op. cit., pp. Desse a priori talvez decorra que a sua relação
189-90.
de sonhos e visões – palavras usadas Em seu comentário sobre o sonho de Scipião
35 Idem, ibidem, pp. 158-60.
indiferentemente, com o mesmo sen-tido – se – fonte do texto ciceroniano para a Idade Média
36 Idem, ibidem, pp. 177-8.
acrescentem prodígios como, por exemplo, o –, Macróbio estabelece uma tipologia com cinco
37 Idem, ibidem, p. 190. nascimento de uma criança com duas cabeças e categorias de sonhos
38 Cf. René Pichon, Histoire de
dois corpos até a cintura (37). (40) e reitera a utilidade destes e das histó-rias
la Litterature Latine, Paris,
Hachette, s.d.p., p. 224. Os sonhos evocados por Guibert, pelo fato fabulosas nas exposições filosóficas; portanto,
39 Cícero, De Republica, ed. de relatarem casos concretos, serem elementos encara os sonhos como técnicas de narrativas.
por C. W. Keyes, Londres,
Loeb Library, 1928.
do cotidiano do microcosmo a que pertencia, Esses conselhos serão incor-porados sobretudo a
40 Duas categorias de sonhos sem representam uma raridade dentro da literatura partir do século XIII, quando, tanto na literatura
utilidade: o insomnium e o visum;
medieval. Na maioria das fontes – “romances” política como em histórias de amor ou fábulas, o
três categorias de sonhos “verda-
deiros” ou premonitórios: o ou tratados de moralidade política – os autores recurso ao sonho se banaliza. Paradoxalmente, o
oraculum, a visio e o somnium, cf.
J. Le Goff, op. cit., pp. 280-1.
pensam e

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sonho fundamentará textos com objetivos com manchas negras no rabo e nas orelhas.
espirituais de controle sobre as paixões e Assustadíssimo, conta a sua aventura a Pertelote;
incentivo à racionalidade e modéstia na horrorizada com a covardia do galo, decide
existência. É esse o papel que desempenha no trazê-lo de volta à razão decli-nando suas teses
Roman de la Rose, de Guillaume de Lorris sobre os sonhos. Para ela, seriam erros crassos,
(início do séc. XIII-c. 1338) e Jean de Meung expressões de vaida-de, provocados por excesso
(1250-c. 1305) – celebração à natureza, à mística de comida, ga-ses ou outros humores do corpo,
e à razão –, e também nas obras de Chaucer como a bílis vermelha; esta faria as pessoas
(c.1340-1400) – apologista da ra-zão , sonharem com flechas, fogo com labaredas, e
contrário ao amor louco – como �Troilus feras vermelhas, que mordem como cães. O ver-
and Criseyde, The Parlement of Foules, e “The melho no sonho de Chantecler resume-se em
Nun’s Priest’s Tale”. produto “oriundo da superfluidade e força da
Curiosamente, os sonhos medievais são cólera vermelha em seu sangue”. A me-lancolia,
concebidos por respeito à autoridade dos va- por sua vez, provocaria gritos apa-vorados
lores da literatura clássica. Nesse sentido, diante dos ataques de ursos, touros ou diabos
contrapõem-se aos sonhos dos românticos e negros. Assegura Pertelote ter Catão
surrealistas, signos de ruptura com os mol-des recomendado aos homens não dar importância
clássicos e seu racionalismo implícito. aos sonhos; para encerrar o as-sunto, prescreve
O Roman de la Rose (41) tem início com ao galo um bom laxante para que recobre sua
uma consideração sobre o caráter dos so-nhos; saúde. Chantecler agra-dece, retrucando que
nega serem apenas fábulas e miragens, pois a homens mais sábios afirmaram serem os sonhos
experiência comprova o quanto de verdade há premonitórios das alegrias e tristezas da vida. E
neles. Segundo o autor, após citar o sonho de cita exem-plos. Um homem sonha
Scipião, os sonhos seriam “pres-ságios dos detalhadamente com os acontecimentos que
males e dos bens que nos cercam. Além disso, levam ao assassinato de seu amigo, o que lhe
muitos bons amigos já me dis-seram ter sonhado permitirá identificar os criminosos. Um viajante
à noite coisas embrulha-das e confusas, que é advertido a adiar sua partida num navio; ao
foram percebidas clara-mente, em plena luz, no acordar, pede ao seu companheiro para não
dia seguinte” (42). Os leitores são então continuar viagem, mas, como este não acredita
convidados a ouvir o sonho do belo romance da em sonhos, aca-ba morrendo afogado.
Rosa, onde toda a arte do amor está contida. Chantecler evoca tam-bém o sonho premonitório
do assassinato de S. Cenelfo; os sonhos do Velho
No Roman de la Rose, no entanto, o sonho Testamen-to, de Daniel, de José, do Faraó, de
não entraria apenas como compo-nente formal. seu pa-deiro e de seu empregado; o sonho de
O objeto amoroso ou “a pensée delitable do Creso com uma árvore e sua morte por enforca-
sonhador permanece sendo um sonho, mesmo na mento; o sonho de Andrômaca prevendo a morte
última parte do poema, talvez implicando que o de Heitor em combate com Aquiles.
prazer, tão ardentemente procurado pelo amante,
seja, como o sonho, transitório e ilusório” (43).
Apesar de sua erudição, o vaidoso Chan-
O papel dos sonhos na vida cotidiana é tecler acaba se descuidando ao desafiar seu
explorado no “The Nun’s Priest’s Tale” dos próprio pesadelo. Passado um mês, a rapo-sa
41 Georges Vertuit (ed.), Le
Canterbury Tales (c. 1386). Chaucer, como os dona Russela – vermelha e amarela, com Roman de la Rose par
autores do Roman de la Rose, considera de manchas pretas nas orelhas e no rabo – se Guillaume de Lorris et Jean
de Meung, Paris, Nouvel
Macróbio o texto do “Sonho de Scipião”, que confessa extasiada com a voz de Chantecler e Office d’Édition, 1965.

cita como defesa do conteúdo premoni-tório dos assim o convence a cantar só para ela. Enquanto 42 Idem, ibidem, p. 17.
sonhos (44). Em seu conto, uma discussão se exibe, o galo é abocanhado pela raposa, que 43 D. W. Robertson, A Preface to
Chaucer, Princeton, Princeton
teórica sobre sonhos ocorre entre o Galo sai disparada pelo campo afora. Pertelote,
Univ. Press, 1963, p. 97.
Chantecler e a Galinha Pertelote. Num pesadelo, percebendo a desgraça, começa a gritar; atrai a 44 Geoffrey Chaucer, The
Chantecler é vítima de uma fera semelhante a atenção de todos os animais e dos donos da Canterbury Tales, editado
por Devill Coghill, Londres,
um cão, amarela e vermelha, fazenda, que então Penguin, 1987, pp. 181-96.

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perseguem a raposa. Chantecler, aterrori- rebelar, desencadeando um clima de debo-
zado, mas ainda não morto, diz a Russela che e discórdia geral. Para acalmar os âni-
para afugentar aquela turba; ao replicar um mos, a Natureza pronuncia uma sentença
“muito bem, assim será”, o galo consegue em que deixa a critério da águia – a Bela –
escapar. Dessa forma, o sonho de a escolha de seu amante. Entrementes, os
Chantecler se materializava, mas sem con- outros pássaros levam para o campo suas
seqüências trágicas. companheiras, cantando em altos brados
No Parlement of Foules (45) (1382), a “���Qui bien aime à tard oublie”. O barulho do
explicação dos sonhos não mais será fisio- canto acorda Chaucer, que expressa sua von-
lógica, resultado de má digestão ou coisa tade de ler sempre e muito, já que os livros
que o valha, como queria Pertelote. O so- asseguram seu transporte para outros mun-
nho constrói-se com os temas que ocupa- dos, através dos sonhos.
ram o espírito do sonhador durante o dia, No Parlement of Foules fica evidente o
como no texto de Cícero. Chaucer inicia o desprezo da plebe pela aristocracia com seus
poema com uma descrição minuciosa do sentimentos exaltados e artificiais, mesmo
sonho de Scipião, ressaltando a conexão que C. S. Lewis não queira ver nessa dispu-
entre o empenho pelo bem comum e a re- ta qualquer referência à política (49). Ape-
compensa de um eterno deleite após a morte sar de seus termos alegóricos, e de se situar
(46). Devido à falta de luz e ao cansaço, dentro de um sonho, trata-se do mesmo
deita-se com a cabeça cheia de pensamen- embate entre Cavaleiro e Povo, típico da
tos. Quando encontra o sono, percebe a fi- literatura política, ou então entre Cavaleiro
gura de Scipião, ao lado de sua cama. As e Moleiro nos Canterbury Tales. Por outro
razões que o levam a ter esse sonho são lado, o poema deve ter sido composto em
então sugeridas. Diz Chaucer que sonha- 1382, um ano após a grande revolta campo-
mos com aquilo que nos diz respeito, que o nesa liderada por Wat Tyler e John Bal (50).
sonho é revelador do que somos. Logo, o As referências ao sonho de Scipião tenderi-
rico sonha com ouro, o guerreiro com lutas, am então a ser mais do que retóricas.
o amante com sua amada, e assim por dian- Tampouco é descabida uma aproxima-
te (47). Ele sonha com Scipião porque leu ção entre o poema de Chaucer e o clássico
sobre ele durante o dia. Aliás, segundo o sonho político de William Langland, Piers
45 Walter W. Skeat (ed.), The
próprio Macróbio, do ponto de vista do so- Plowman, onde os membros do Parlamento
Parlement of Foules, in The
Com-plete Works of Geoffrey nhador, o sonho seria uma espécie de são encarnados, não por aves, mas por ratos
Chaucer, Londres, Oxford Univ. insomnium (48). e camundongos. Embora sua datação exata
Press, 1954, pp. 101-10.

46 Idem, ibidem, p. 102, versos


No sonho de Chaucer, Scipião o conduz seja difícil de ser estabelecida, sabemos que,
74-7: “And loke ay besily thou até um parque primaveril, cheio de pássa- por ocasião da revolta de 1381, esta obra já
werke and wisse/ To comun
profit, and thou shalt nat mis-se/
ros, árvores e um templo pintado com histó- era bastante conhecida, podendo até ter re-
To comen swiftly to that place rias de amor, aí encontra Cupido, Prazer, percutido como “propaganda política” (51).
dere,/ That full of blisse is and
of soules clere”. Vênus, Príapo e outras figuras alegóricas. Piers Plowman (52) é uma espécie de
47 Cf. The Parlement of Foules, Mais à frente, vê a Natureza presidindo o panfleto político que ataca os pecados dos
op. cit., p. 102, versos 100-5. parlamento de pássaros do dia de S. Valentim ricos e poderosos, a corrupção, a falta de
48 Cf. D. W. Robertson, op.
(14 de fevereiro), quando cada pássaro de- justiça generalizada na sociedade, os abu-
cit., p. 103, nota 92.
verá escolher e cortejar uma companheira. sos do tempo, os desmandos da lei, a luxú-
49 Cf. J. A. Burrow (ed.),
Geoffrey Chaucer, Londres, No Parlamento, os pássaros podem discur- ria, a desonestidade, a preguiça, a avareza,
Penguin, 1970, pp. 142-55.
sar sobre o amor, mas obedecendo a crité- a inexistência de escolas para os pobres e
50 Para uma discussão sobre a re-
volta cf.: Rodney Hilton, Bond
rios de prioridade por nobreza, ou altitude outras violências detectáveis na Inglaterra
Men Made Free, Medieval de vôo – aves de rapina, comedores de ver- de Eduardo III e Ricardo II. Apesar disso,
Peasant Mouvents and the
English Rising of 1381,
mes, pássaros de água e comedores de grãos. não chega a se opor à ordem estabelecida
Londres, Temple Smith, 1973. No entanto, durante uma declaração a uma representada pelo Rei, Igreja, Nobreza, ou
51 Idem, ibidem, p. 159. águia, feita ao estilo do amor cortês por um Papa. Essencialmente, trata-se de uma pe-
52 Arthur Burrel (ed.), The Vision
of Piers Plowman, Londres, J.
“nobre��”, muito longa e empolada, as ordensregrinação com destino à Verdade, por in-
M. Dent and Sons, 1949. inferiores – o pato e o ganso – decidem se termédio de um sonho.

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O sonho de Piers Plowman difere da maioria o sol, a lua e as onze estrelas se curvaram diante
dos sonhos literários medievais, construídos dele, tendo acabado por governar o Egito, como
ordenadamente, com princípio, meio e fim; afirmara Jacó. Em seguida a estas considerações
estes, mesmo transportando o sonhador para um há um falso final; logo retorna com outras
local desconhecido e ma-ravilhoso, como no visões, procurando o sono para descansar deste
Parlement of Foules, ou para um espaço mundo (53).
cotidiano, como no “The Nun’s Priest’s Tale”, O sonho de Langland, carregado de
mantêm uma seqüên-cia lógica interna e os personificações e embates entre vícios e
preceitos aristotélicos de unidade de ação, tempo virtudes, edifica um mundo aliçercado em suas
e lugar. fraquezas, mas sem dele formar uma imagem
Em Piers Plowman o sonho se manifes-ta fechada. Tampouco a obra se fe-cha. Nas últimas
em ritmo de ondas. O autor descarta a seqüência; linhas, a Consciência de-seja se converter em
na metade do livro morre e é enterrado, sua peregrina; quer andar até que o mundo acabe, à
visão acaba, mas depois volta sem maiores procura de Piers Plowman. O sonho recomeça.
explicações. Nada se define com clareza, nem Na França, moralizante ou teórica, a li-
mesmo o sexo das perso-nagens. Seu início tem teratura de fundo político veiculada atra-vés de
lugar no verão; o autor se encontra nas Malvern sonhos é freqüente nos séculos XIV e XV. O
Hills e é aco-metido por uma sensação oriunda anônimo Songe du Vergier (1378) (54),
do país das fadas. Cansado de tanto andar, deita- verdadeira enciclopédia política, re-sulta de uma
se ao lado de um riacho, fica olhando a água, cai encomenda feita pelo rei Carlos V, visando a
no sono e “sonha um sonho maravilho-so”. Vê contestar todas as pretensões do Papado sobre a
uma torre fantástica numa colina – a Casa da França; nesse sentido, afirma a legitimidade e
Verdade – e embaixo dela um calabouço independência ab-soluta da soberania real frente
horrível, onde habitavam a mor-te e espíritos ao espiritual e discute problemas políticos
maus – a Casa da Falsidade. Entre a colina e o imediatos do reino. Por outro lado, tem
calabouço estendia-se um campo com toda a igualmente o ca-ráter de um manual técnico de
sorte de homens – ricos e pobres, trabalhando ou governo e direito público. Dentro do formato de
vagando. O mundo e sua confusão. Ao fim do dis-cussão sonhada, um clérigo defende as dou-
primeiro episódio, o autor reafirma ter dormido trinas papais, enquanto um cavaleiro argu-menta
todo o tempo, e agora estaria num sono sete pelas teses regalistas de divisão dos dois
vezes mais profundo. Vários outros episódios poderes.
são descritos antes do narrador acordar. Quan-do
desperta, encontra-se em sua casa, em Cornhill, Philippe de Maizières, em Songe du Vieil
53 Cf. Arthur Burrel, op. cit., p.
com sua esposa, portanto num cenário diverso Pèlerin (55) (1389), propõe uma re-forma geral
150.
daquele onde dormira; co-meça então a do mundo, da cristandade e par-ticularmente do 54 Cf. Jeannine Quillet, La
descrever sua vida. Ao cair no sono novamente reino da França. Além da forma em si, uma Philosophie Politique du
Songe du Vergier (1378),
está numa igreja, rezando discussão de fundo apro-xima o texto de Paris, J. Vrin, 1977.
Maizières do Songe du Vergier. Influenciadas 55 Idem, ibidem, p. 117.
por Nicolau de Oresme, as duas obras refutam a 56 “En realité, le cadre du
e chorando por seus pecados; reinstala-se na validade da astrologia, ou seja, implicitamente songe n’a ici rien à voir de
commun avec la croyance
visão do primeiro episódio – o campo cheio de ne-gam a previsão do futuro; assim poderiam en la divination par le songe,
pessoas. Mais adiante retorna como um velho, e estar rompendo igualmente com a associa-ção qui était générale dans
l’Antiquité tardive; il a une
escreve seu testamento. entre vidência e sonho; nesse caso, o sonho não signification politique et
ideologique en ce sens qu’il
Acordando outra vez em Malvern Hills, enviaria o sonhador ao futuro, mas a um mundo renvoie à un monde différent
saído de outra visão, discute a validade dos diverso (56). du monde réel, à un monde
où le mode d’appréhension
sonhos; já os vira falhar muitas vezes; tanto des valeurs doit, si l’intention

Catão como os advogados da Igreja incita-vam a Alain Chartier (c. 1385 -c.1433), no réformatrice ou critique est
fondamentale, s’áverer
que fossem descreditados. No entan-to, a Bíblia Quadrilogue Invectif (1422) (57), ao con-trário différent de celui que a cours
dans la realité quotidienne”,
rezava que Daniel interpretara o sonho de de Langland, concebe um sonho li-near e idem, ibidem, p, 121.

Nabucodonosor, preconizando sua queda; que ordenado. Nele disseca a disruptura 57 Alain Chartier, Le Quadrilogue
Invectif, ed. por E. Droz, Paris,
José sonhara, e, posteriormente, Honoré Champion, 1950.

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do corpo político e propõe caminhos con- com voz calma, a Razão o exorta a desper-tar o
ciliatórios para a integração pacífica dos espírito e abrir o cofre da memória para guardar
indivíduos na nação, através da “correção dos os presentes-guias de seu res-gate espiritual (63),
costumes dos franceses” (58). Na hora do reitera, portanto, a noção bíblica de um
amanhecer, ao acordar (59), veio-lhe à crescimento espiritual mais rápido durante o
imaginação o deplorável estado da França; entre sono, quando o indi-víduo se encontra sem suas
arroubos de esperança e de desespe-ro, é então defesas (64).
acometido de um ligeiro sono (60). Nele Esse entendimento do sonho como ins-
58 Idem, ibidem, p. 5. vislumbrou um país abando-nado, com a figura trumento de salvação – moral, física ou política
59 Segundo Tertuliano, no capítu-lo
de uma dama infeliz, descabelada, abatida, – encontra ecos também na cultura popular do
XLVIII do De Anima, o sonho
matinal, mais leve, faria com maltrapilha – a França –, ao lado de um palácio século XV. Em meio à infinida-de de lendas (65)
que os sonhos se exprimissem
em ruí-nas e de seus três filhos, o cavaleiro, o sobre Carlos Magno, várias se estruturam nos
melhor. Cf. Jacques Le Goff, op.
cit., p. 304. clé-rigo e o povo. O sonho toma a forma de um sonhos do impera-dor, ou com o imperador. Em
60 O Dictionary of the Khazars ex-plica
debate político e moral entre a França e os três 1495 – mo-mento de crise da política exterior
esse momento crucial para
qualquer sonhador: “[…] before
estados desprovidos de consciência na-cional. A alemã em seus confrontos com franceses e
falling asleep, in that double-edged
realm between consciousness and pedido da França, o autor trans-creve toda a turcos, e também de anarquia interna – o
dreams, man adjust his relationship
disputa, como contribuição ao reerguimento da cavaleiro Hans von Hermannsgrün vê Carlos
to the gravitation of the earth? […]
It is then that the screen between coisa pública. Magno em sonho, presidindo na catedral de
thoughts and the world becomes
Marbourg uma assembléia com represen-tantes
porous, letting man’s thoughts sift
free…”. Milorad Pavic’, Dictionary É também num estado de semivigília (61), de todas as classes da Alemanha, em companhia
of the Khazars, Lon-dres, Penguin,
seguindo o modelo da Consolação da Filosofia de Otto I e Frederico II: “Eis Carlos Magno, diz
1989, p. 163.
de Boécio, que Dama Razão apa-rece a Jean Frederico II ao público, que fez o mundo
61 “[…] me mis sur mon lict, las et
travaillé… si me trouvay le corps
Meschinot em Les Lunettes de Princes, uma resplandecer com seus feitos, conquistou o
tresmat, le cueur tressaillant, espécie de manual de auto-ajuda dos anos 1460- império romano dos gregos e o transferiu,
tremblant et tout alteré; ainsi
entresommeillant et esveillé, fus en
65. A palavra prínci-pes, explica o autor, refere- aumentou e manteve para os germanos […].
nompareille malaise. Apres, par
se a todos os homens, que de Deus receberam o Como combater o Infiel? O divino Carlos, o
une maniere d’illusion, resverie ou
songe, me fut certainement advis governo da alma; os óculos seriam auxiliares no Grande, especia-lista neste tipo de guerra, lhes
que celle belle et tresnoble dame
re-conhecimento do necessário à salvação es- dará a res-posta, pois combateu vitoriosamente
Raison, dont j’ay cy devant touché,
se rendit a moy entre les es piritual, à conduta corporal e temporal de cada os turcos e os pagãos” (66).
courtines […]”. Cf. Jean Meschinot,
Les Lunnetes des Princes, ed. por
um, ao governo de si próprio e às rela-ções com
Christine Martineau-Genieys, os demais. O caráter da obra é o de um guia para
Genebra, Droz, 1972, 2a par-te, 1,
o Paraíso. Meschinot medita sobre o triunfo da Neste sonho, fundem- se séculos e dife-
57 a 66, p. 33.

morte, realizando um in-ventário de todos os rentes situações, como, eventualmente, num


62 Idem, ibidem, pp. 28-9. sonho real. Mas, como em outros so-nhos
vícios, misérias, des-graças, dores, desesperos e
63 Idem, ibidem, p. 34. políticos, seu objetivo é mágico. Visa a salvar
pecados que as-solam o gênero humano; destaca
64 “Deus fala uma vez, e não re-
pete segunda vez a mesma o tema da impermanência – nem Alexandre ou pessoas dos males que as assolam. Nesse
coisa. Em sonho, em visão no-
Salomão puderam vencer a morte – ao intro- sentido, os sonhos literários aproxi-mam-se de
turna, quando o sono cai sobre
os homens, e estão dormindo duzir o tema político específico do livro, a conceitos terapêuticos tradicio-nais – do
no seu leito, então (Deus) abre
calamitosa situação do ducado da Bretanha após xamanismo, por exemplo – e também de
os ouvidos dos homens e, ad-
moestando-os, lhes adverte o
a morte de Artus III, mecenas do autor. algumas abordagens contem-porâneas.
que devem fazer … salvando a
sua alma da corrupção, e a sua
Acreditam que o sonho cura (67).
vida de cair sobre a espada”. Numa outra perspectiva, os sonhos polí-
Livro de Jó, 33: 14, 18.
65 Cf. Robert Folz, Le Souvenir
À Razão cabe dar respostas a sua angústia ticos, ao tentarem vislumbrar uma nova or-dem,
et la Légende de provocada pelos desmandos do mundo; a ela reportam-se também ao sonho de Pedro (Atos
Charlemagne dans l’Empire
Germanique Médiéval, Paris,
todos devem submissão, munidos de óculos – a 10: 10,17), quando se vê exortado a quebrar a
Les Belles Lettres, 1950. Prudência sendo a lente da direi-ta, a Justiça a da tradição e comer todo o tipo de animal. Essas
66 Idem, ibidem, pp. 559-60.
esquerda, a Força a arma-ção, e a Temperança a imagens de rupturas, no en-tanto, permanecem
67 A cura literal de uma doença
pelos sonhos aparece, por
junção das lentes (62). conectadas com a reali-dade tradicional; nenhum
exemplo, em Gregório de É dormindo que Meschinot recebera esse sonho documen-tado foi capaz de arquitetar uma
Tours, em que uma mulher
com a mão gangrenada é par de óculos, juntamente com um li-vro da fuga abso-luta da concretude do quotidiano, dos
curada. Cf. Jacques Le Goff,
op. cit., p. 305. Consciência. Sentada em sua cama, impe-

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rativos da cultura, ou das obsessões particu-lares magos que dormem juntinhos, embora em
dos autores. Os autores medievais so-nham diferentes estágios do sono – do despertar
como Verlaine, que, apesar de muitas viagens, espiritual (74). Simbolicamente, o sonho dos
só sonhava com Paris, um pouco com Londres, magos representaria a atualidade do pro-cesso de
ou com lugar nenhum (68). iluminação, de regeneração do espírito, que
A iconografia medieval dos sonhos também vivem. Esse entendimento da atividade onírica
estará sujeita a essas injunções. A cosmologia formaliza-se reiterada-mente na iconografia.
cristã domina a maior parte das representações
do tema. Nas iluminuras e vitrais, a posição de Na capela dos Scrovegni (1304-06), em
uma pes-soa deitada de lado, com os olhos Pádua, Giotto retrata seqüencialmente a his-tória
fecha-dos, denota a situação de sono com so- de Joaquim – sua expulsão do templo por ser
nhos; geralmente a cabeça da personagem está estéril, seu retiro e jejum de quaren-ta dias e
apoiada na mão ou no braço; assim são noites. Decorrente dessa profunda introspecção,
ilustrados os sonhos de Jacó, de José, do Faraó, também um anjo se faz pre-sente em seu sonho,
de Ezequiel, Ciro, Astyage, Carlos Magno e anunciando a concep-ção de uma filha, Maria.
muitos outros… (69). Para representar este renascimento de Joaquim,
o reatamen-to entre seu corpo – grande massa
Os portadores dos sonhos podem se compac-ta, sentada –, seu espírito e seu Deus,
materializar; assim, quando Carlos Magno sonha Giotto enfatiza uma linha de força na pintura,
com o caminho de S. Tiago nas Gran-des descrevendo uma reta a partir da mão do anjo até
Chroniques de France de Saint-Denis (c. 1275), a cabeça de Joaquim apoiada no braço (75);
o santo em pessoa aparece na ilustração (70). No estabelece plasticamente uma conexão direta
entanto, os mais fre-qüentes intermediários entre entre o espiritual e o tempo-ral, a via da
o divino e as imagens oníricas são os anjos. Na revelação.
icono-grafia do sonho de Jacó da Bíblia de
Lambeth (séc. XII), uma enorme escada com É também dormindo que Santa Úrsula toma
anjos faz a mediação entre os mundos da matéria consciência de seu destino de már-tir. O
e do espírito; Deus é colocado no topo da veneziano Carpaccio (1495) conce-be a cena
escada, enquanto as imagens do passado e do reforçando a horizontalidade. Úrsula dorme de 68 Cf. Paul Verlaine, Sagesse/
futuro se misturam no espírito de Jacó (71). Já costas, não de lado, em-bora a cabeça esteja Parallèlement, Paris,
Garnier-Flammarion, 1977,
no Psautier de Saint Louis (1256), a apoiada na mão, se-guindo a iconografia pp. 158-9.
interpretação gótica da cena é mais simples. Jacó tradicional do tema; um anjo coloca-se diante da 69 Cf. François Garnier, Le

aparece deitado, de costas, com a cabeça cama, tendo Langage de l’Image au Moyen
Âge, Signification et
reclinada sobre o braço do-brado; a parte inferior à mão a palma do martírio estendida em sua Symbolique, Paris, Le Léopard

de seu corpo escon-de a base da escada, que direção; dois focos de luz – no anjo e na santa –, d’Or, 1982, pp. 117-8.

sustenta dois an-jos, enquanto, no alto, Deus 70 Idem, ibidem, ill. 117.
bem como as janelas e portas abertas, denotam
71 Cf. David Coxhead e Susan
parece mergu-lhar de cabeça (72). No sonho de mutações no caminho espiritual da princesa. Hiller, Dreams, Visions of the
José (c. 1089), afrescado no coro da igreja Night, Londres, Thames and

abacial de Lambach (Áustria) (73), a concepção Numa das versões da história do Santo Graal Hudson, 1976, ill. 1, p. 25.
72 Cf. Jacques Dupont e Cesare
da totalidade da imagem é grandiosa; diante de – relato iniciático por excelência –, Cristo teria Gnudi, La Peinture Gothique,
um fundo de casas e torres, um enorme anjo se ofertado a taça a um José de Arimatéia Genebra, Skira, 1954, p. 35.

inclina e aproxima sua mão, quase tocando a adormecido. Na ilustração de um manuscrito 73 Cf. C. R. Dodwell, The
Pictorial Arts of the West
cabeça de um José reclinado numa cama, com francês do século XV, José aparece dormindo, 800-1200, New Haven e
um braço estendido e outro se-gurando sua deitado de lado, segu-rando a cabeça com a mão, Londres, Yale University
Press, 1993, ill. 115, p. 127.
cabeça; o anjo comanda impe-riosamente o enquanto o Espírito Santo lhe entrega um livro
74 Cf. David Coxhead,
sonho. com a história do Graal; na parte superior Deus op. cit., ill. 31.
Pai e Deus Filho observam a cena (76). 75 Cf. Giancarlo Vigorelli, Giotto,
Milão, Rizzoli, 1967, ill. 57,

p. 99.
Um outro anjo, num capitel românico (séc. A iconografia medieval reporta-se tam-bém
76 Cf. John Matthews, The Grail,
XII) da igreja de Saint Lazare, em Autun, aponta ao sonho como fundamento criativo. Nas Quest for the Eternal, Londres,
Thames and Hudson, 1987,
a estrela para os três reis representações da Virgem Maria, ersatz p. 37.

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das deusas- mães tradicionais, o tema da quatro canos por onde escoam os elementos da
“dormição” – eufemismo para morte – é re- vida; no momento do renascimento – dis-
corrente. Num afresco (1320) de uma igreja de solução, separação e síntese dos opostos em uma
Gracanica (77), a Virgem, carregada em nova unidade –, o processo é sugerido por uma
procissão em seu leito de morte, tem ao seu lado, árvore paralela ao peito do homem.
na altura da região ventral, a poderosa aparição O sonho político também toma forma. Na
do Cristo – emoldurado por uma espécie de Chronicle of John of Worcester (meados do
estrela, denotando seus poderes criadores. Trata- século XII), o rei Henrique I é atormentado por
se de uma iconografia típi-ca de temas um pesadelo em que se vê como vítima passiva
geracionais, embora seja rara a imagem da dos três estados. Na ilustração de seu pesadelo,
Virgem sonhando e atuando como fonte imediata em três níveis superpostos, cam-poneses com
de vida. No entanto, no plano inferior de uma foices e ancinhos surgem ao lado de sua cama,
douradíssima e intri-gante pintura do século “rangendo os dentes”, como diz o cronista; na
XIV, atribuída a Si-mone dei Crocifissi (78), faixa intermediá-ria, um bando de soldados
vemos Maria dei-tada, sonhando – de lado, uma armados com lanças e espadas “olham como se
mão estendi-da e outra sobre o peito. De seu quises-sem matá- lo”; na base da ilustração,
ventre brota uma imensa árvore, com galhos bispos e abades o ameaçam com seus báculos
carregados de anjos e um tronco que se confunde (85).
com um Cristo, já crucificado, e absorto em sua Essa literalidade do sonho na imagem é
criadora; a árvore é encimada pelo ninho de um igualmente flagrante na interpretação giottesca
pelicano, símbolo do próprio Cristo e da do colapso da Basílica de Latrão e de seu resgate
ressurreição (79). No século XIX será tam-bém por S. Francisco de Assis, de acordo com a visão
do ventre de uma mulher adormecida que tomará de Inocêncio III. Giotto divide o afresco em duas
forma o monstro do “Pesadelo” de Füssli (80). partes, utilizando diferentes construções
arquitetônicas; à di-reita, o papa na cama – de
lado, com um braço esticado e o outro sobre a
A fonte iconográfica de Simone dei cintura – sonha com a cena à esquerda; nesta, S.
77 Cf. Georges Duby, L’Europe Crossifici encontra-se no bastante explora-do Fran-cisco, tal qual uma coluna, com seu ombro,
au Moyen Âge, Paris, Arts et
Métiers Graphiques, 1979, ill.
episódio da árvore de Jessé (Isaías, 11: 1,2). Na sustenta a igreja inclinada (86). Se as pro-
302, p. 167. base da miniatura do Saltério de Henrique de porções entre a figura do papa e o espaço
78 Cf. David Coxhead e Susan
Blois (1140-60) (81), Jessé está dormindo, de denotador de seu quarto podem ser conside-
Hiller, op. cit., ill. 36.
lado e com a cabeça apoiada na mão; sua árvore radas mais próximas a um naturalismo, o mesmo
79 Cf. Jean Chevalier, Alain
Gheerbrant, Dictionaire des toma forma a partir da virilha, entre as pernas, não se pode dizer da relação entre Francisco e a
Symboles, Paris, Robert
expandindo-se em motivos florais, tipicamente Basílica; Giotto cria um super-homem, sólido e
Laffont/ Jupiter, p. 738.

80 Cf. Gert Schiff e Paola Viotto,


românicos, que se entrelaçam com as figuras do mais alto que as colunas, mas ao mesmo tempo
Füssli, Paris, Flammarion, rei David, da Virgem Maria e do Cristo. Num leve; ao dispor a cabe-ça e o olhar do santo
1980, ill. XVII.
saltério inglês (82) (Eadwine Psalter?, c. 1140- voltados para cima, enfatiza sua missão
81 Cf. Roger Cook, The Tree
of Life, N. York, Avon
50), Jessé aparece totalmente achatado na base restauradora em conluio com o divino; ao
Books, 1974, ill. 53. da iluminura; uma luxuriante árvore, plena de mesmo tempo, contrapõe a atitude de Francisco
82 Cf. C. R. Dodwell, op. cit., ill. personagens, toma forma a partir de sua parte com a da Igreja, per-sonificada no papa deitado
341, p. 337.
posterior lateral, na altura do ventre. Na Bíblia – imóvel, tendo aos pés dois velhos sentados e
83 Idem, ibidem, ill. 351, p. 349.
de Lambeth, a árvore surge de dentro da roupa inertes.
84 Cf. Roger Cook, op. cit., ill.
de Jessé e assume uma for-ma humana; seus
39.
descendentes são retrata-dos dentro de estruturas Entre as representações de sonhos polí-ticos,
85 Cf. Joan Evans, The
Flowering of the Middle circulares (83). a mais espetacular é, certamente, a de Piero della
Ages, Londres, Thames and
Hudson, 1966, ill. 7, p. 15.
Francesca no “Ciclo da Verda-deira Cruz” (87)
A força criativa implícita nestas imagens (c. 1455) da igreja de S. Francisco em Arezzo.
86Cf. Giancarlo Vigorelli,
op. cit., p. 92 repercute na iconografia de manuais alquímicos Segundo a tradição, na véspera de uma batalha
87Cf. Oreste del Buono, no século XVI. No De Alchimia (84), a morte de contra Maxentius pelo poder do império,
L’Opera Completa di
Piero della Francesca, uma pessoa é ilustrada por um corpo deitado em Constantino tem a visão de um anjo que lhe
Milão, Rizzoli, 1967, ill.
XXXII e ill. 15 E, p. 94. um caixão provido de ordena olhar para

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cima; obedecendo, percebe a forma de uma cruz cometido durante o dia. A essa crença rela-
iluminada e encimada por letras dou-radas com cionam-se as inúmeras representações das 88 Cf. Marilyn Aronberg Lavin, The
Place of Narrative, Mural
as palavras “neste símbolo será vencedor”. Ao tentações de Santo Antônio, tema iconográfico Decoration in Italian Churches
431-1600, Chicago e Lon-dres,
vencer de fato a batalha, o pagão Constantino concebido nos inícios do sé-culo XV. Grünewald The University of Chica-go
ordena que se legalizem as práticas cristãs nos (91), no altar de Isenheim (c. 1512-16), dá Press, 1990, p. 177.

quadros do império. forma, com materialidade e selvageria 89 O próprio S. Bonaventura com-


para as duas personagens,
Piero situa Constantino dentro de uma tenda exacerbadas, aos demônios íntimos de um ambas contempladas com re-

com a parte da frente aberta, deitado numa Antônio fisica-mente prostrado.


velações pela cruz – a cruz da
vitória para Constantino e a
cama, e vigiado por dois guardas e um cruz da penitência – os
estigmatas – para S. Francis-
empregado de aparência melancólica – como o Tanto na literatura como na iconografia co. Citado por Marilyn A. Lavin,
acompanhante de um morto num sarcófago medievais, o sonho encontra-se imbuído de op. cit., pp. 193-4.

antigo (88). Do alto da tenda, à esquerda, desce propósitos definidos. Jamais tem o caráter de 90 Le Goff aponta que, a partir do
século IV, os cristãos passam a
o anjo, concebido em for-ma de cruz. Toda a uma rêverie sem sentido, desconectada da considerar todos os sonhos
como significativos, mantendo,
grandeza e estranha-mento da cena são realidade. Não é inovador, alude à tradi-ção, no entanto, uma divisão entre

construídos através dos jogos de luz, da pertence mais ao universo da cultura do que à sonhos “verdadeiros” e “menti-
rosos”; igualmente teriam con-
irradiação produzida pelo anjo sobre todo o natureza. No domínio do religioso assume o denado a adivinhação pelo
sonho e suprimiam os intérpre-
conjunto. Este aspecto misterioso tende a papel de um demiurgo, de um meio de tes de sonhos. No entanto, o
maximizar a importân-cia da revelação para os comunicação efetivo entre o corpo material e os mais importante seria a nova
classificação dos sonhos, se-
consolidadores do cristianismo, como desígnios divinos. Paradoxal-mente, na maioria gundo sua origem: Deus, o

Constantino ou S. Fran-cisco (89). dos casos, refere-se a uma certeza; contrapõe-se demônio, o homem (alimenta-
ção, doenças, etc.), levando à
às inconstâncias e deslizes da vigília. Seus diabolização, heretização e

A revelação de um fato, ou de um as-pecto múltiplos pode-res são admitidos nas mais


sexualização dos sonhos. Os
sonhos são comentados por
da psique, pode também ser obra do demônio diferentes re-presentações e visões de mundo, Gregório Magno e Isidoro de
Sevilha. Cf. Jacques Le Goff,
(90); através de sonhos, visões e pesadelos tenta como anunciador de uma nova ordem ou como op. cit., pp. 290-5 e 306-12.

ele infiltrar a confusão en-tre o certo e o errado salvação para os desequilíbrios do indiví-duo ou 91 Cf. Giovani Testori e Piero
Bianconi, L’Opera Completa
na alma, ou a luxúria no corpo, realizando à do corpo político. di Grünewald, Milão, Rizzoli,
noite o pecado não 1972, ill. XLII.

O Sonho de
Inocêncio III,
de Giotto

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