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ALINEPEREIRADE
Ao lado, A
o
e corp de Grünewald
TEREZA
Tentação de
Santo Antônio,
o
polític
o
no
sonho
medie
val
QUEIROZ
da FFLCH-USP.
TEREZA ALINE
PEREIRA DE QUEIROZ
alma e de suas relações com um plano espiritual. Idéias
n a Antigüidade, gregos,
romanos, egípcios ou judeus
admitiram os sonhos como ma- mecanicistas e pagãs como as de Petrônio (m. 66 A.D.) podem
nifestações insuperáveis do
destino, da ressurgir em textos medievais; em um de seus poemas,
sanidade corpórea, da vida espiritual dos Petrônio defende a tese de que cada homem faz seu próprio
homens. A partir dos séculos II e III, as sonho, independentemente dos deuses, portanto, do além;
formalizações do pensa-mento cristão, entende que a mente apenas segue no escuro aquilo que
encaminhando as mentes na direção de um procurava de dia – assim o cachor-
desprezo cada vez mais acentuado pelo
corpo físi-co, implicitam uma desconfiança
neste canal de comu-nicação direta entre o
consciente e o inconsciente. Por outro lado,
os teóricos cristãos passaram a assimilar
sonhadores a heréticos, dada a importância
“But what is the
que os so-nhos e visões assumiam entre purpose
várias seitas declaradas heréticas pela Igreja,
como a dos gnósticos (1). No entanto, o
sonho não desaparecerá como objeto de re-
of hunting
flexão; antigos elementos de compreensão
da vida onírica, mesmo que aparentemente
dreams?”
ameaçadores às crenças cristãs, como no
caso do caráter premonitório do sonho, (Milorad Pavic’, Dictionary
surgirão diluídos, reavaliados, ou perverti-
dos nas novas doutrinas de entendimento da
of the Khazars).
cisco de Assis. Guiado pelo sonho, Inocêncio contrados até nos nossos dias. Em O Palá- 13 Cf. E. Le Roy Ladurie,
Montaillou, Village
chama então Francisco e seus companhei- cio dos Sonhos (15) (1981), o novelista Occitan de 1294 à 1324,
Paris, 1975, pp. 608-9.
ros (1209), outorgando-lhes o direito de en- albanês Ismaïl Kadaré constrói uma tene-
14 Cf. Jacques Le Goff,
sinar a penitência e a moral (12). Esse gesto brosa estrutura burocrática – o Tabir Sarrail
op. cit., p. 313.
político, dado como produto de uma visão – encarregada de coletar os sonhos de to- 15 Ismaïl Kadaré, Le Palais des
onírica, evita o deslize do grupo de mendi- dos os habitantes, centralizá-los em um Ar- Rêves, traduzido do albanês
para o francês por Jusuf
cantes nos caminhos da heresia e sedimenta quivo e, posteriormente, realizar sua tria- Vrioni, Paris, Fayard, 1990.
Sonho de
Constantino,
de Piero della
Francesca
Os filósofos da Antigüidade também haviam perplexo; ignora se o morto realmente lhe a idéia das Confissões como
uma “autobiografia onírica”, cf.
concebido os sonhos numa dinâ-mica de aparecera, ou se tudo não pas-sava de um truque M. Dulaye, Le Rêve dans la Vie
et la Pensée de Saint Augustin,
aproximação entre vivos e mortos. Uma das da imaginação. Acaba por fim se convencendo Paris, 1973; e P. Courcelle,
matrizes literárias deste convívio se encontra na da veracidade do ocorrido, ao perceber seu Recherche sur les Confessions
de Saint Augustin, Paris, 1950;
visão de Er, o pamfílio, no livro X da República hábito totalmente encharcado pelas lágrimas do e Les Confessions de Saint
de Platão (29). Er, julgado morto numa batalha, noviço. Augustin dans la Tradition
Littéraire, Paris, 1963; obras
é jogado en-tre outros cadáveres; dez dias após é Um dos sonhos mais espetaculares da citadas por Jacques Le Goff,
op. cit., p. 295.
reen-contrado intacto, no décimo segundo dia literatura ocidental nasce dessa relação ambígua
volta à vida. Relata, então, que sua alma saíra do entre vivos e mortos. O próprio fato de estar tão 25 John F. Benton (ed.), Self
corpo e, com outras almas, fora até um lugar bem documentado nas crô-nicas de Adémar de and Society in Medieval
France, The Memoirs of
divino, formado por vários círcu-los, onde se Chabannes, de Thietmar, de Novalesa (32) Guibert de Nogent, N. York,
encontravam todos os tipos de vidas e de almas; sugere a am-plitude de seu significado político. Harper Torchbooks, 1970.
visão cristianizada dessas relações com o além, o desde a época de Constantino (33). Obtida a 31 Cf. Hermann Hesse,
Leyendas Medievales, trad.
que torna o encadeamento entre crime e castigo visão, desvela-do o mistério, a tumba é aberta. Roberto Bein, Barcelona,
mais explícito. Escreve sobre o aparecimento de Reprodu-zindo fielmente o sonho de Otto, Brughera, 1976, p. 28.
uma monja, morta sem confissão, num sonho da Carlos Magno materializa-se; sentado numa ca- 32 Cf. Georges Duby, L’an Mil, Pa-
cita como defesa do conteúdo premoni-tório dos assim o convence a cantar só para ela. Enquanto 42 Idem, ibidem, p. 17.
sonhos (44). Em seu conto, uma discussão se exibe, o galo é abocanhado pela raposa, que 43 D. W. Robertson, A Preface to
Chaucer, Princeton, Princeton
teórica sobre sonhos ocorre entre o Galo sai disparada pelo campo afora. Pertelote,
Univ. Press, 1963, p. 97.
Chantecler e a Galinha Pertelote. Num pesadelo, percebendo a desgraça, começa a gritar; atrai a 44 Geoffrey Chaucer, The
Chantecler é vítima de uma fera semelhante a atenção de todos os animais e dos donos da Canterbury Tales, editado
por Devill Coghill, Londres,
um cão, amarela e vermelha, fazenda, que então Penguin, 1987, pp. 181-96.
Catão como os advogados da Igreja incita-vam a Alain Chartier (c. 1385 -c.1433), no réformatrice ou critique est
fondamentale, s’áverer
que fossem descreditados. No entan-to, a Bíblia Quadrilogue Invectif (1422) (57), ao con-trário différent de celui que a cours
dans la realité quotidienne”,
rezava que Daniel interpretara o sonho de de Langland, concebe um sonho li-near e idem, ibidem, p, 121.
Nabucodonosor, preconizando sua queda; que ordenado. Nele disseca a disruptura 57 Alain Chartier, Le Quadrilogue
Invectif, ed. por E. Droz, Paris,
José sonhara, e, posteriormente, Honoré Champion, 1950.
aparece deitado, de costas, com a cabeça cama, tendo Langage de l’Image au Moyen
Âge, Signification et
reclinada sobre o braço do-brado; a parte inferior à mão a palma do martírio estendida em sua Symbolique, Paris, Le Léopard
de seu corpo escon-de a base da escada, que direção; dois focos de luz – no anjo e na santa –, d’Or, 1982, pp. 117-8.
sustenta dois an-jos, enquanto, no alto, Deus 70 Idem, ibidem, ill. 117.
bem como as janelas e portas abertas, denotam
71 Cf. David Coxhead e Susan
parece mergu-lhar de cabeça (72). No sonho de mutações no caminho espiritual da princesa. Hiller, Dreams, Visions of the
José (c. 1089), afrescado no coro da igreja Night, Londres, Thames and
abacial de Lambach (Áustria) (73), a concepção Numa das versões da história do Santo Graal Hudson, 1976, ill. 1, p. 25.
72 Cf. Jacques Dupont e Cesare
da totalidade da imagem é grandiosa; diante de – relato iniciático por excelência –, Cristo teria Gnudi, La Peinture Gothique,
um fundo de casas e torres, um enorme anjo se ofertado a taça a um José de Arimatéia Genebra, Skira, 1954, p. 35.
inclina e aproxima sua mão, quase tocando a adormecido. Na ilustração de um manuscrito 73 Cf. C. R. Dodwell, The
Pictorial Arts of the West
cabeça de um José reclinado numa cama, com francês do século XV, José aparece dormindo, 800-1200, New Haven e
um braço estendido e outro se-gurando sua deitado de lado, segu-rando a cabeça com a mão, Londres, Yale University
Press, 1993, ill. 115, p. 127.
cabeça; o anjo comanda impe-riosamente o enquanto o Espírito Santo lhe entrega um livro
74 Cf. David Coxhead,
sonho. com a história do Graal; na parte superior Deus op. cit., ill. 31.
Pai e Deus Filho observam a cena (76). 75 Cf. Giancarlo Vigorelli, Giotto,
Milão, Rizzoli, 1967, ill. 57,
p. 99.
Um outro anjo, num capitel românico (séc. A iconografia medieval reporta-se tam-bém
76 Cf. John Matthews, The Grail,
XII) da igreja de Saint Lazare, em Autun, aponta ao sonho como fundamento criativo. Nas Quest for the Eternal, Londres,
Thames and Hudson, 1987,
a estrela para os três reis representações da Virgem Maria, ersatz p. 37.
antigo (88). Do alto da tenda, à esquerda, desce propósitos definidos. Jamais tem o caráter de 90 Le Goff aponta que, a partir do
século IV, os cristãos passam a
o anjo, concebido em for-ma de cruz. Toda a uma rêverie sem sentido, desconectada da considerar todos os sonhos
como significativos, mantendo,
grandeza e estranha-mento da cena são realidade. Não é inovador, alude à tradi-ção, no entanto, uma divisão entre
construídos através dos jogos de luz, da pertence mais ao universo da cultura do que à sonhos “verdadeiros” e “menti-
rosos”; igualmente teriam con-
irradiação produzida pelo anjo sobre todo o natureza. No domínio do religioso assume o denado a adivinhação pelo
sonho e suprimiam os intérpre-
conjunto. Este aspecto misterioso tende a papel de um demiurgo, de um meio de tes de sonhos. No entanto, o
maximizar a importân-cia da revelação para os comunicação efetivo entre o corpo material e os mais importante seria a nova
classificação dos sonhos, se-
consolidadores do cristianismo, como desígnios divinos. Paradoxal-mente, na maioria gundo sua origem: Deus, o
Constantino ou S. Fran-cisco (89). dos casos, refere-se a uma certeza; contrapõe-se demônio, o homem (alimenta-
ção, doenças, etc.), levando à
às inconstâncias e deslizes da vigília. Seus diabolização, heretização e
ele infiltrar a confusão en-tre o certo e o errado salvação para os desequilíbrios do indiví-duo ou 91 Cf. Giovani Testori e Piero
Bianconi, L’Opera Completa
na alma, ou a luxúria no corpo, realizando à do corpo político. di Grünewald, Milão, Rizzoli,
noite o pecado não 1972, ill. XLII.
O Sonho de
Inocêncio III,
de Giotto