Você está na página 1de 9

Entrevista com Vitor Sartori – Acervo Crítico

Vitor Bartoletti Sartori é professor da faculdade de Direito da UFMG ligado


ao departamento de Direito do trabalho e introdução ao Direito.
Experiência na área de História, teoria da História, Filosofia, Filosofia
política, Teoria e Filosofia do Direito, tendo como foco a relação entre os
temas abordados em tais áreas para a conformação da historicidade
moderna. No campo da filosofia do Direito, busca a crítica ontológica do
fenômeno jurídico na sociedade civil-burguesa bem como os
desdobramentos históricos de tal crítica.

AC – Você recentemente participou de uma mesa de discussões acerca da


Revolução Russa na UFMG, falando sobre a relação entre o Direito e o Estado
Soviético. Em sua visão, quais críticas fundamentais podemos extrair da
experiência soviética através de seus teóricos do Direito como, por exemplo,
Pachukanis?

Pachukanis certamente é um grande autor; talvez, ainda seja o maior quando


se trata do tema Direito e marxismo. Ele esteve profundamente marcado pelos
rumos da URSS, na grandiosidade da Revolução Russa, mas também em suas
vicissitudes (visíveis no fato de o autor de Teoria geral do Direito e marxismo
ter sido executado pelo próprio regime soviético). Em minha interpretação, um
dos grandes méritos pachukanianos foi ter relacionado a universalidade da
forma jurídica à reprodução do capital, expressa na forma mercantil, algo que
acredito, mesmo que eu enfoque algumas nuances diferentes daqueles do
jurista soviético, ser bastante verdadeiro. Com isso, no entanto, deparamo-nos
com um problema bastante sério sobre a URSS: qual a natureza real dos
desdobramentos da revolução? Tal problema foi trazido, sob outro enfoque ,
por importantes autores como Trotsky, Sweezy, Betelheim e, mais
recentemente Mészáros. Meu ponto sobre tal tema é que, se formos dar crédito
a Pachukanis, talvez, mesmo que ele tivesse uma posição, de certo modo,
contrária a esta que mencionarei, pode-se aventar: com a permanência do
Direito (e, diria Lukács em suas Notas sobre uma ética, com sua centralidade
sob o stalinismo), tem-se um indicativo importante de permanência do capital
como solo sob o qual se reproduz a sociedade. Ou seja, no limite, seria preciso
pensar a experiência soviética como algo que trouxe a grandiosidade da
revolução socialista e, neste sentido, colocou-se “para além do capital”
(Mészáros), ao mesmo tempo em que, sob circunstâncias hostis, viu-se como
incapaz de alcançar um desenvolvimento efetivamente socialista. Aqui, porém,
não poderei tratar dos diferentes modos pelos quais seria possível teorizarmos
sobre esta forma de sociometabolismo vigente durante o século XX. Isto se dá
até mesmo porque acredito que estudos de fôlego, por parte das mais variadas
linhas marxistas, ainda são necessários sobre este tema. Tratar disso pode ser
decisivo para pensar o futuro do socialismo, ainda mais em um tempo como o
nosso, em que a supressão do capital é mais necessária que nunca.

AC – Sua linha de pesquisa também abarca a relação entre o marxismo e o


Direito. Como professor, você sente que falta um pensamento crítico ao Direito,
no geral?

Bem, o Direito, “em geral”, é um terreno hostil ao pensamento crítico em minha


opinião. Como marxista, eu diria que ele supõe aquilo que precisa ser
questionado, nunca passando pela crítica ao modo pelo qual, sob a vigência do
capital – ou seja, com o assalariamento e a propriedade privada dos meios de
produção – a sociedade conforma-se real e efetivamente. É preciso destacar,
porém, que dificilmente encontraremos um jurista que diga que é acrítico...os
juristas, no limite, podem acreditar que são profundamente subversivos. Isso,
porém, vale tanto para o professor de Direito do trabalho que defende os
trabalhadores de modo decidido quanto para o professor de Direito
empresarial, que acredita romper paradigmas “retrógrados” defendendo a
necessidade de uma racionalidade econômica, a ser colocada no campo
jurídico de modo mais pungente. Ou seja, mesmo que a “ciência do Direito”, e
mesmo a “filosofia do Direito”, contem com bons quadros de pensadores (e
isso efetivamente acontece e aqui eu poderia enumerar vários colegas meus),
não raro, estes pensadores não deixam de tratar de nada mais que sintomas
oriundos de uma forma de sociabilidade (a capitalista) putrefata. Interpretações
mais distintas (mais ou menos “progressistas”) podem estar presentes nos
diferentes juristas, e há pessoas muito sérias que tratam da questão da
interpretação e do conceito de Direito, com certeza; no entanto, uma “filosofia
do Direito”, uma “teoria do Direito” e uma “ciência do Direito” tendem a colocar
seu enfoque naquilo que, em verdade, não é o essencial: no Direito mesmo.
Em minha opinião, uma tarefa muito difícil ao pensamento crítico é admitir a
nossa impotência relativa em determinado papel, como o de professor de um
curso jurídico. Assim, como professor, sinto as limitações da esfera do ser
social com a qual sou obrigado a lidar em minhas aulas; pode-se mesmo dizer
que os grandes professores de Direito, caso se enxerguem essencialmente
neste papel, e se trazem aspectos jurídicos como centrais, ficam na superfície
do modo pelo qual se concatenam as relações sociais em uma sociedade
capitalista. Pode ser duro dizer isso, mas um pensamento crítico que trate do
Direito deve colocar-se contra o Direito mesmo, e contra o modo pelo qual se
desenvolve o conhecimento sobre ele. Como marxista, penso que é necessária
uma crítica decidida ao Direito e, claro, esta crítica tem como base o fato
segundo o qual o capitalismo já não traz, há muito tempo, qualquer avanço real
à humanidade, sendo preciso, e urgente, suprimi-lo. A questão é, para que
mencionemos um autor essencial, mas pouco lido hoje: “quê fazer”? Poderia
dizer em tom de brincadeira, mas com alguma seriedade, que seria necessário,
para o começo de qualquer crítica séria e contundente: mais Lenin e menos
Dworkin.

AC – Sabemos que o Direito é uma relação jurídica de “legitimação” de poder à


uma classe sobre outra. No Brasil, há entre uma forte exclusão social com
componentes de heranças colonizadoras – e basta-nos ir às cadeias e ver
quem está compondo as celas. Em sua perspectiva, o Direito além de cumprir
uma função social ideológica, também pode ser um meio de reduzir danos
intrincados pela sociedade burguesa?

A questão que coloca é de grande relevo, embora eu não acredite que a


categoria “poder” - que geralmente é utilizada com uma elasticidade
questionável em certas teorias – possa dar conta da complexidade da temática.
Para tratar da questão, que remete ao potencial do Direito como “instrumento”
para um movimento de contestação substantiva ao capitalismo, é preciso que
tenhamos em conta os distintos modos pelo qual o capitalismo mesmo é
entificado nos distintos países. Em sua via clássica de entificação, tratada por
Marx em O capital tendo em conta principalmente o caso inglês (mas mirando
também na França principalmente) há uma oposição entre Direito e privilégio –
também destacada pelo autor nos textos da Nova gazeta renana –, de modo
que o primeiro tem uma função essencialmente progressista na emergência da
burguesia como classe dominante. Ou seja, a universalidade do capital é
acompanhada pela universalidade do Direito e, portanto, da igualdade jurídica,
que rompe com os privilégios de nascimento, mas também, até certo ponto,
com os de fortuna (Engels trata com bastante cuidado deste ponto). Como
sempre, claro, há “seletividade” na aplicação do Direito, mas isso se dá de
modo menos descarado que no Brasil contemporâneo, dado que o
desenvolvimento burguês, no caso clássico, é acompanhado de um
fortalecimento, mesmo que irremediavelmente limitado, da democracia
representativa e burguesa. Acredito ser de grande relevo trazer este ponto,
pois ele deixa claro que a “seletividade”, em primeiro lugar, está presente em
todas as formas de Direito, mesmo as mais progressistas e arquetípicas; em
segundo lugar, porém, tem-se o mais importante: a maior “seletividade” de um
ordenamento jurídico se comparado a outro não é decorrente de uma “falha”
jurídica, mas do fato de a política se conformar de modo mais ou menos
permeado pelo interesse das classes subalternas. Ou seja, a questão que você
traz não diz respeito tanto às distintas conformações do Direito burguês, mas
das formas pelas quais a dominação política é trazida à tona em meio à
especificidade do desenvolvimento capitalista de cada nação. Tanto é assim
que, na via prussiana para o capitalismo, a questão já muda um pouco… na
Alemanha, tratada por Lenin e por Lukács, e também por Marx e Engels, a
burguesia mesma é débil e se alia, não ao proletariado nascente, aos artesãos
e aos camponeses, mas às distintas figuras de aristocracia e à burocracia
estatal e militar. Deste modo, tem-se o fato de a esfera pública se colocar como
hostil à democracia (vista como uma espécie de mercadoria de importação,
para que se use as palavras de alguém como Lukács); isto, até certo ponto, é
preciso destacar, fez com que a esquerda do século XIX (mas também do XX)
na Alemanha, por exemplo, – basta pensar em Lassale e em Menger – tenham
enfocado muito no Direito como instrumento de luta dos trabalhadores. Neste
sentido, pode-se dizer que estes autores e esta esquerda acabam recorrendo
ao Direito porque o campo da política tem, naquela situação, um fechamento
bastante distinto daquele que há na via clássica. Os desdobramentos disso, em
minha opinião, são trágicos, e passam pelo modo pelo qual – para que
cheguemos ao século XX - a constituição de Weimar é muito elogiada ao passo
que, em verdade, ela tem por base as vicissitudes da esfera política alemã; não
posso desdobrar estas questões aqui, infelizmente. Deve-se dizer, no entanto,
que a Alemanha, ao fim, vem a ter um desenvolvimento burguês, já que pôde
desenvolver sua produção via imperialismo (que se incia, de certo modo, com a
unificação alemã, praticamente contemporânea à repressão à Comuna de
Paris). Países como EUA, França e Inglaterra, com diversos matizes, trazem a
confluência entre democracia burguesa e capitalismo; na Alemanha e na Itália
isto não acontece, mas tem-se o desenvolvimento capitalista com um alto custo
(basta pensar no cume do imperialismo alemão e italiano na Segunda Guerra).
No que chegamos ao país em que vivemos: o Brasil está em uma situação
bastante diferente: chega ao desenvolvimento do capitalismo como uma
colônia, produz commodities para o mercado externo, de modo que o
imperialismo estava vedado...a “burguesia nacional progressista”, aqui, em
minha opinião, foi sempre um fantasma na melhor das hipóteses. O modo pelo
qual a burguesia nacional (se é que esta expressão é correta para descrever o
que se tem aqui) se entifica sempre esteve colocada em posição subordinada
ao capital inter e transnacional. Digo tudo isto para afirmar que nossa situação
é ainda pior do que aquela da via prussiana ao capitalismo; nosso capitalismo
é, como disse José Chasin com razão, hipertardio e a esfera pública nacional
encontra-se, em minha opinião, até hoje, fechada ao desenvolvimento
democrático-burguês Isto apare como um oximoro por aqui. Trata-se de uma
das particularidades da “via colonial” para o capitalismo (Chasin). Neste
sentido, acredito que possamos dizer que temos um problema no Brasil:
grande parte da esquerda buscou trazer suas demandas em “luta por direitos” -
o que em si não seria um problema, claro – sem que se questionasse
substancialmente a esfera pública mesma e, claro, neste sentido, o capitalismo.
Aquilo que você chama de “redução de danos” pode certamente passar pelo
Direito; no entanto nunca é uma questão real e efetivamente jurídica. Isto diz
respeito ao modo pelo qual a esfera jurídica – em determinada conjuntura
política – é ou não capaz de reconhecer as vitórias conseguidas em outra
esfera, a social, em que ocorrem as lutas de classe. No Brasil, esta equação é
bastante meandrada porque, não raro, o caminho das lutas que têm por central
o campo jurídico não deixam de tomar como suposta, consciente ou
inconscientemente, a derrota política trazida na conformação política
extremante problemática da “democracia” brasileira. Eu seria louco em negar
que o Direito possa ser necessário nas lutas populares; se pensarmos no papel
que ele tem nas ocupações urbanas, por exemplo, isso fica claro. Porém,
gostaria de deixar claro: na melhor das hipóteses, nestes casos, a esquerda faz
algo necessário, mas que não pode ser visto como estratégico, ou mesmo
tático. Trata-se de uma necessidade, e, se me permite um tom jocoso: no
melhor dos casos, tem-se a tarefa, sem a qual não se pode lutar, de se
enxugar o gelo. No caso brasileiro, acredito, dar uma dimensão maior que essa
às lutas colocadas no campo do Direito acabou por eclipsar o desastre que
estava inscrito na assim chamada “redemocratização”. Hoje vivemos as
consequências disto, em minha opinião.

AC – Você tem uma dissertação de mestrado com críticas a Hannah Arendt.


Poderia, se possível, nos dizer no que calcou estas críticas e por quê?

Arendt é uma autora muito lida, não só por teóricos conservadores, mas
também por certa esquerda anti-marxista e mesmo “marxizante” (basta pensar
que foi uma autora importante na formação de intelectuais tucanos e petistas).
Seria bastante leviano de minha parte tentar resumir minhas críticas a ela em
um pequeno espaço, até mesmo por se tratar de uma importante autora. Devo
dizer que acredito que há pesquisas interessantes na obra da autora; mesmo
que eu não concorde com as análises de Origens do totalitarismo, ali há um
trabalho sério que, de um modo ou de outro, reconhece as raízes burguesas do
imperialismo e, de modo mais meandrado, do “totalitarismo” (categoria
extremamente problemática em minha opinião). No entanto, no pós II Guerra,
Arendt inicia uma pesquisa intitulada de “elementos totalitários do marxismo”, e
seu tom muda substancialmente em diversos sentidos. Minha pesquisa, que
será publicada ano que vem como livro, começa deste ponto. Então, autores
que eram criticados, como o conservador Edmund Burke, passam a ser
elogiados, e o enfoque deixa de estar no modo pelo qual o imperialismo seria
um estágio – em Arendt, um dos primeiros – do desenvolvimento burguês. Em
verdade, com um desenvolvimento bastante sofisticado de categorias basilares
da “atividade humana” (segundo a autora, labor, trabalho e ação), teorização
esta que traz muita influência heideggeriana, Arendt tem como principal alvo
Marx e o marxismo. Suas teorizações começam a se colocar contra a
centralidade da atividade produtiva e contra a “história feita pelo homem”, bem
como contra revoluções que tivessem o elemento social por central. Não sem
uma base teológica (influenciada, sobretudo, por uma leitura sui generis de
Agostinho), a autora passa também a uma defesa da política – entendida, a
meu ver, de modo bastante elitista, não obstante seu linguajar sobre a
pluralidade e, por vezes, sobre a horizontalidade – em oposição ao campo do
“social”. Deste modo, defende a Revolução Americana em oposição à
Revolução Francesa, em que os “pobres” (vistos de modo bastante pejorativo)
teriam trazido a esfera da necessidade a público. Não poderei tratar aqui de
como isso se dá na autora, ou das implicações disso; no entanto, devo
destacar que as críticas que autora faz à Revolução Francesa têm uma
correlação direta com as suas posições práticas e teóricas sobre o socialismo,
e sobre a Revolução Russa. De certo modo, acredito que a autora abre espaço
para uma posição historiográfica bastante questionável e conservadora como
aquela de François Furet e, deste modo, mas não só por isso, passa longe de
ser alguém compatível com qualquer auspício ligado a uma posição
efetivamente crítica.

AC – Com as contrarreformas que estão precarizando ainda mais os


trabalhadores, como você vê o Direito como meio de luta pela supressão do
Estado burguês a caminho da emancipação humana?

Novamente, gostaria de dizer sobre este ponto que o essencial não é o Direito.
Na verdade, as contrarreformas são a expressão jurídica de uma derrota
colocada no campo político e no campo social. É preciso reconhecer esta
derrota; e é bom dizer que ela advém de um fator ligado à especificidade do
capitalismo brasileiro, sobre a qual falei acima. Gostaria de fazer uma
comparação que precisaria de muitas mediações, mas que trarei à tona de
modo rápido mesmo assim. Na Alemanha da década de 20 do século passado,
sob as marcas da via prussiana, a república de Weimar, com a sua
constituição, foi incapaz de barrar o avanço do nazismo. Isso se deu, também,
porque a república de Weimar foi uma forma politica decorrente da repressão
brutal e covarde da Revolução Alemã de 1918-19. Ou seja, neste contexto,
uma esquerda com apoio de parcela significante dos trabalhadores foi
responsável pelo reconhecimento, inclusive legal, da derrota do socialismo no
solo alemão. Não obstante as palavras, por vezes sinceras, do partido social-
democrata alemão, teve-se uma situação em que as tarefas da direita foram,
em parte substancial, realizadas pela esquerda, inclusive, com certo silêncio
sobre o assassinato de Rosa Luxemburgo, por exemplo. No Brasil, algo, até
certo ponto semelhante, aconteceu recentemente, mas, claro, de modo distinto,
não obstante grande parte da esquerda não marxista acredite que, tal qual a
constituição de Weimar, a constituição de 1988 pudesse ser um ponto de
apoio, no limite, para uma crítica ao capitalismo. Não entrarei nos meandros da
questão, até porque muita gente que respeito muito valoriza a constituição de
Weimar e a CF de 88; vale assinalar, no entanto, como em ambos os casos,
certa conformação objetiva e problemática da esfera política parece ter sido
contornada pelo e no campo jurídico. Continuemos: em meio às
especificidades que mencionei anteriormente, um vício (uma esfera pública
sem porosidade para as demandas dos trabalhadores) foi tomado, ao fim,
como algo a ser suposto, mesmo que somente temporariamente – e a questão,
para essa tática, sempre é saber por quanto tempo –, em muitas lutas sociais.
Ao passo que tivemos uma “redemocratização” oriunda de uma transição
“lenta, gradual e segura”, em que o aparato burocrático e estatal continuou
praticamente o mesmo se comparado ao aparato da ditadura, as lutas por
direitos tomaram forma no Brasil. Ou seja, a “democracia” não podia ser senão
uma palavra vazia sem se questionar tudo isso e, claro, sem questionar o
próprio domínio do capital. No entanto, a ausência de crítica a estes aspectos
foi, em verdade, o que caracterizou os anos do petismo. E mais:
“governabilidade”, dentre outras coisas, baseou-se na desmobilização maciça
da classe trabalhadora, de modo que aquilo que a direita não conseguiu fazer
(pensemos no modo pelo qual o MST foi bastante ativo durantes os governo
FHC) foi feito pela esquerda. Centrais sindicais combativas no passado se
tornaram reféns de um governismo pueril também. Este é o cenário em que
emergem as contrarreformas do atual governo ilegítimo, ele mesmo decorrente
das circunstâncias que tratei rapidamente acima. Só é possível compreender
os retrocessos atuais se tivermos em conta que certa esquerda, para que se
use uma expressão popular, “deu tiro no próprio pé” até que chegamos na
situação horrenda em que estamos. Neste sentido, eu diria que a ênfase na
luta por direitos – sem que se questione a esfera política – é um dos caminhos
para que nos afastemos ainda mais da emancipação humana. O Direito tem
uma ligação umbilical com o Estado burguês e com a reprodução da relação-
capital. Posso parecer antiquado, mas acredito que a velha questão da luta de
classes continua muito atual e é preciso reconhecer sua centralidade em uma
sociedade calcada na exploração classista. Pode-se, por vezes, em meio a
questões que passam pelo Direito, ter certo ganho de consciência, não tenho
dúvidas. No entanto, neste ponto, o essencial não é o Direito, mas o processo
social por meio do qual as lutas sociais se concatenam real e efetivamente. O
campo jurídico serve para que o “gelo” seja “enxugado”; caso percebamos que
isso é muito limitado e nos elevemos a um nível superior, colocado no
questionamento do próprio Estado e, com ele, do capital, tem-se um ganho
certamente. No entanto, este ganho de consciência passa longe de ocorrer
naturalmente. É necessário que se enfoque no essencial, passando do Direito
à política e da política ao questionamento da própria conformação do modo de
produção capitalista. Neste sentido, diria que o papel do Direito na luta da
supressão do Estado burguês é, na melhor das hipóteses, circunstancial; o
essencial está em outros campos. Seria “esquerdismo” (Lenin) relegar qualquer
luta por direitos à nulidade; no entanto, o caminho de uma esquerda socialista
passa pela necessária crítica ao Direito.

AC – Marx dizia que o ‘Estado não é senão um comitê de negócios da


burguesia’. Concernente a isso, por que setores reformistas ainda insistem em
nutrir ilusões com o Estado que possui aparelhos ideológicos de repressão –
no caso o sistema jurídico – para “manter a ordem”?

A questão é bastante complexa. Quando Marx diz que o “o Estado moderno


não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a
burguesia”, há uma questão importante que muitas vezes é negligenciada: os
“assuntos comuns da burguesia” não se confundem com os interesses
imediatos de uma camada ou doutra da burguesia de determinado país. Ou
seja, o Estado, via de regra, coloca-se também contra interesses de camadas
burguesas ao passo que afirma a reprodução do capital, mesmo que contra a
classe burguesa considerada de imediato (pense no caso do bonapartismo, por
exemplo, em que a sustentação de Bonaparte esteve nos camponeses e no
lumpem). Ou seja, há certos meandros que parecem poder resultar em
espaços a serem ocupados pelos interesses da classe trabalhadora. Isso, até
certo ponto, é verdadeiro. No entanto, traz uma consequência grave para a luta
socialista: na melhor das hipóteses, tem-se a defesa de interesses imediatos e
“espontâneos” de determinadas camadas da classe trabalhadora. Isto redunda
na marginalização de outras camadas da classe trabalhadora e em alianças
espúrias com aqueles que, mediante um equilíbrio politico sempre instável,
colocam-se em acordo sobre a ocupação “à esquerda” de determinados
espaços. Vou ser bastante direto: “setores reformistas”, no Brasil
principalmente, mas isto é válido também para outros países, sequer pensam
em reformas dignas de tal nome...pensam em ocupar espaços para que exista
certa satisfação de necessidades imediatas, como o combate à pobreza. Isto
se deu, no entanto, com o fortalecimento da financeirização da economia e
com o ganho de poder por parte do capital financeiro e especulativo. Hoje
vivemos o momento em que até a perda destes espaços é visível – e tentei
trazer alguns apontamentos sobre as razões disso acima -; falar em reformismo
é falar em uma tentativa de, por meio do Estado, mudar a distribuição na
sociedade capitalista sem que as relações de produção sejam subvertidas.
Acredito que, em verdade, nem isso vemos com abundância hoje em dia. Sua
pergunta, no entanto, leva-nos a outro ponto importante: fica cada vez mais
claro que o Estado e o Direito burgueses têm uma função bastante clara na
implementação – a alto custo – da acumulação de capital. Tanto a atividade
dos distintos ministérios do governo ilegítimo (no campo da educação e da
saúde, por exemplo), quanto o comportamento da corte suprema de “notáveis”,
o STF, deixam claro que o Estado e o Direito não pairam no ar e que falar de
“lei e ordem” é falar da manutenção – que pode ser a priori ilegal, inclusive – da
desumanidade do modo de produção capitalista. Novamente, a questão
decisiva não é nova: é necessário suprimir o capital. E isto remete, justamente
a dois pontos, em que me permito invocar Lenin mais uma vez: 1) sem teoria
revolucionária não há prática revolucionária; 2) que fazer? A ideologia
dominante, inclusive, na própria “esquerda”, é aquela segundo a qual falar de
revolução é loucura e, neste sentido também, vivemos em tempos sombrios.
Quanto ao segundo ponto, ainda se tem nos campos da esquerda, não raro,
certa contraposição entre uma espécie de bela alma e certo oportunismo. Se
não me engano, este diagnóstico foi trazido há algum tempo por Leandro
Konder e, infelizmente, ele ainda me parece bastante certeiro no essencial.
Quanto você diz que ainda se tem certas ilusões quanto ao Estado, parece-me
que está sendo bastante bondoso. Talvez, o cinismo (oportunista) tenha
chegado a patamares estratosféricos. E a questão, claro, permanece: a
necessidade de superação da ordem do capital é bastante visível, mas, deve-
se indagar: quê fazer?

Agradecemos ao professor Dr. Vitor Sartori por, gentilmente, aceitar


nosso convite para esta plataforma da crítica e reflexão!

Você também pode gostar