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Arendt é uma autora muito lida, não só por teóricos conservadores, mas
também por certa esquerda anti-marxista e mesmo “marxizante” (basta pensar
que foi uma autora importante na formação de intelectuais tucanos e petistas).
Seria bastante leviano de minha parte tentar resumir minhas críticas a ela em
um pequeno espaço, até mesmo por se tratar de uma importante autora. Devo
dizer que acredito que há pesquisas interessantes na obra da autora; mesmo
que eu não concorde com as análises de Origens do totalitarismo, ali há um
trabalho sério que, de um modo ou de outro, reconhece as raízes burguesas do
imperialismo e, de modo mais meandrado, do “totalitarismo” (categoria
extremamente problemática em minha opinião). No entanto, no pós II Guerra,
Arendt inicia uma pesquisa intitulada de “elementos totalitários do marxismo”, e
seu tom muda substancialmente em diversos sentidos. Minha pesquisa, que
será publicada ano que vem como livro, começa deste ponto. Então, autores
que eram criticados, como o conservador Edmund Burke, passam a ser
elogiados, e o enfoque deixa de estar no modo pelo qual o imperialismo seria
um estágio – em Arendt, um dos primeiros – do desenvolvimento burguês. Em
verdade, com um desenvolvimento bastante sofisticado de categorias basilares
da “atividade humana” (segundo a autora, labor, trabalho e ação), teorização
esta que traz muita influência heideggeriana, Arendt tem como principal alvo
Marx e o marxismo. Suas teorizações começam a se colocar contra a
centralidade da atividade produtiva e contra a “história feita pelo homem”, bem
como contra revoluções que tivessem o elemento social por central. Não sem
uma base teológica (influenciada, sobretudo, por uma leitura sui generis de
Agostinho), a autora passa também a uma defesa da política – entendida, a
meu ver, de modo bastante elitista, não obstante seu linguajar sobre a
pluralidade e, por vezes, sobre a horizontalidade – em oposição ao campo do
“social”. Deste modo, defende a Revolução Americana em oposição à
Revolução Francesa, em que os “pobres” (vistos de modo bastante pejorativo)
teriam trazido a esfera da necessidade a público. Não poderei tratar aqui de
como isso se dá na autora, ou das implicações disso; no entanto, devo
destacar que as críticas que autora faz à Revolução Francesa têm uma
correlação direta com as suas posições práticas e teóricas sobre o socialismo,
e sobre a Revolução Russa. De certo modo, acredito que a autora abre espaço
para uma posição historiográfica bastante questionável e conservadora como
aquela de François Furet e, deste modo, mas não só por isso, passa longe de
ser alguém compatível com qualquer auspício ligado a uma posição
efetivamente crítica.
Novamente, gostaria de dizer sobre este ponto que o essencial não é o Direito.
Na verdade, as contrarreformas são a expressão jurídica de uma derrota
colocada no campo político e no campo social. É preciso reconhecer esta
derrota; e é bom dizer que ela advém de um fator ligado à especificidade do
capitalismo brasileiro, sobre a qual falei acima. Gostaria de fazer uma
comparação que precisaria de muitas mediações, mas que trarei à tona de
modo rápido mesmo assim. Na Alemanha da década de 20 do século passado,
sob as marcas da via prussiana, a república de Weimar, com a sua
constituição, foi incapaz de barrar o avanço do nazismo. Isso se deu, também,
porque a república de Weimar foi uma forma politica decorrente da repressão
brutal e covarde da Revolução Alemã de 1918-19. Ou seja, neste contexto,
uma esquerda com apoio de parcela significante dos trabalhadores foi
responsável pelo reconhecimento, inclusive legal, da derrota do socialismo no
solo alemão. Não obstante as palavras, por vezes sinceras, do partido social-
democrata alemão, teve-se uma situação em que as tarefas da direita foram,
em parte substancial, realizadas pela esquerda, inclusive, com certo silêncio
sobre o assassinato de Rosa Luxemburgo, por exemplo. No Brasil, algo, até
certo ponto semelhante, aconteceu recentemente, mas, claro, de modo distinto,
não obstante grande parte da esquerda não marxista acredite que, tal qual a
constituição de Weimar, a constituição de 1988 pudesse ser um ponto de
apoio, no limite, para uma crítica ao capitalismo. Não entrarei nos meandros da
questão, até porque muita gente que respeito muito valoriza a constituição de
Weimar e a CF de 88; vale assinalar, no entanto, como em ambos os casos,
certa conformação objetiva e problemática da esfera política parece ter sido
contornada pelo e no campo jurídico. Continuemos: em meio às
especificidades que mencionei anteriormente, um vício (uma esfera pública
sem porosidade para as demandas dos trabalhadores) foi tomado, ao fim,
como algo a ser suposto, mesmo que somente temporariamente – e a questão,
para essa tática, sempre é saber por quanto tempo –, em muitas lutas sociais.
Ao passo que tivemos uma “redemocratização” oriunda de uma transição
“lenta, gradual e segura”, em que o aparato burocrático e estatal continuou
praticamente o mesmo se comparado ao aparato da ditadura, as lutas por
direitos tomaram forma no Brasil. Ou seja, a “democracia” não podia ser senão
uma palavra vazia sem se questionar tudo isso e, claro, sem questionar o
próprio domínio do capital. No entanto, a ausência de crítica a estes aspectos
foi, em verdade, o que caracterizou os anos do petismo. E mais:
“governabilidade”, dentre outras coisas, baseou-se na desmobilização maciça
da classe trabalhadora, de modo que aquilo que a direita não conseguiu fazer
(pensemos no modo pelo qual o MST foi bastante ativo durantes os governo
FHC) foi feito pela esquerda. Centrais sindicais combativas no passado se
tornaram reféns de um governismo pueril também. Este é o cenário em que
emergem as contrarreformas do atual governo ilegítimo, ele mesmo decorrente
das circunstâncias que tratei rapidamente acima. Só é possível compreender
os retrocessos atuais se tivermos em conta que certa esquerda, para que se
use uma expressão popular, “deu tiro no próprio pé” até que chegamos na
situação horrenda em que estamos. Neste sentido, eu diria que a ênfase na
luta por direitos – sem que se questione a esfera política – é um dos caminhos
para que nos afastemos ainda mais da emancipação humana. O Direito tem
uma ligação umbilical com o Estado burguês e com a reprodução da relação-
capital. Posso parecer antiquado, mas acredito que a velha questão da luta de
classes continua muito atual e é preciso reconhecer sua centralidade em uma
sociedade calcada na exploração classista. Pode-se, por vezes, em meio a
questões que passam pelo Direito, ter certo ganho de consciência, não tenho
dúvidas. No entanto, neste ponto, o essencial não é o Direito, mas o processo
social por meio do qual as lutas sociais se concatenam real e efetivamente. O
campo jurídico serve para que o “gelo” seja “enxugado”; caso percebamos que
isso é muito limitado e nos elevemos a um nível superior, colocado no
questionamento do próprio Estado e, com ele, do capital, tem-se um ganho
certamente. No entanto, este ganho de consciência passa longe de ocorrer
naturalmente. É necessário que se enfoque no essencial, passando do Direito
à política e da política ao questionamento da própria conformação do modo de
produção capitalista. Neste sentido, diria que o papel do Direito na luta da
supressão do Estado burguês é, na melhor das hipóteses, circunstancial; o
essencial está em outros campos. Seria “esquerdismo” (Lenin) relegar qualquer
luta por direitos à nulidade; no entanto, o caminho de uma esquerda socialista
passa pela necessária crítica ao Direito.