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EXPEDIENTE
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EDITORIAL
Como escrever sobre a escrita, tornando tema uma idéia que pela própria essência se
subtrai a qualquer rigidez de conceituação? Como escrever de tal maneira que esta escrita
não perca jamais a possibilidade de ser como um rascunho ou um quase-texto? Como
escrever sem escrever?
Há 6000 anos os homens olharam o céu e viram uma escrita nos astros celestes, no
vôo selvagem dos pássaros, no vento que batia na areia e no mar. Então, riscaram. Riscaram
as paredes das cavernas, as lâminas das conchas, as crostas das tartarugas, os ossos dos
animais. Riscaram o barro, a cera e a pedra. Isso já seria uma escrita? Não, mas seu ritmo já
traduzia uma atividade consciente, mágica, provavelmente simbólica − o traçado dominado,
organizado de uma pulsão. A procura de um ato de inscrição onde se inscrevia a própria
possibilidade de criação.
E começaram a desenhar. A repetição sistemática de um certo número de imagens
habituou os homens a exprimirem pensamentos e idéias através desses desenhos. Com isso,
criaram um imenso repertório iconográfico e através dele puderam construir um sistema de
escrita. As primeiras escrituras não tiveram a ambição de traduzir sons mas de abraçar o
mundo e refazê-lo. Representaram um meio de exprimir os símbolos de uma sociedade muito
mais que um meio material de fixar uma língua. O primeiro ensaio de uma escritura foi
simplesmente uma pintura que supria as deficiências do discurso por sinais significantes.
Como expressão do pensamento do homem, a escrita e a pintura nascem imbricadas.
Derrida afirma a escrita não-fonética como a possibilidade da língua. O advento da escrita é
o advento do jogo na linguagem.
A linguagem não é um espelho onde o mundo sensível se reflete em transparência.
Não é a tradução dentro de um sistema diferente de uma realidade dada, imutável ou objetiva.
A linguagem é uma interpretação. Toda compreensão e todo comentário são construções,
não são descrições do mundo, menos ainda explicações. Dar um sentido ao mundo,
interpretá-lo, reescrevê-lo, é a possibilidade para o homem de estabelecer com este mundo
uma relação de criação.
Esta reflexão pode buscar seu fundamento nos textos bíblicos. Em primeiro lugar na
própria especificidade da escrita hebraica − uma escrita alfabética consonantal, que não
possui vogais, e que nestes textos, em particular, não é acrescida de nenhum signo que indique
a maneira pela qual uma palavra poderá ser vocalizada, e tornar sua leitura possível. Uma
mesma palavra pode ser vocalizada de muitas maneiras e possuir, a cada vez, um novo
sentido. Além disso, o texto não é pontuado, é escrito sem nenhum corte, seqüência
ininterrupta da primeira à última letra. Onde começa, onde acaba uma frase? Texto ilegível e
insensato. Para podermos ler este texto, é preciso antes compô-lo. Ler se torna uma
atividade, uma construção. Ler se torna um escrever.
Derrida comenta que a ilegibilidade radical não é o não-sentido, a irracionalidade,
tudo que pode suscitar angústia perante o incompreensível e ilógico. Isto já seria uma
interpretação e pertenceria ao livro. A ilegilibidade originária é anterior ao livro (não-
cronológica) e, portanto, à própria possibilidade do livro.
Um texto ilegível e insensato, seqüência ininterrupta da primeira à última letra. Texto
que na sua própria estrutura denuncia a possibilidade de seu desenvolvimento, a necessidade
de ir além, um convite ao desdobramento e à criação. Texto à espreita − visível e invisível.
Texto potencial, escrita pontuada pela ausência, palavras por detrás das palavras, nos
lembrando que por trás de tudo que se passa se passa ainda outra coisa. A interpretação
nada mais é do que a criação de um ‘surplus’de sentido que permite a explosão do livro em
livros. Ela revela o livro, que por sua vez se dá a criar. O livro é a manifestação da
ausência do livro. O livro só é livro quando existe interpretação. O livro só é livro quando
existe transbordamento de sentido, ruptura, uma maneira de dizer sempre outra coisa, de se
ultrapassar.
Palavras que se constroem e textos que se fabricam não se reduzem ao mundo ao
qual pertencem mas trazem em si mesmos um mundo próprio, mundo como avenir e
renovação. Toda interpretação histórica, todo questionamento poético atormentam este
poema da interminável pergunta, este jogo insensato de escrever.
Esta situação é exemplar da situação do poeta, este homem de palavra e de
escritura. A necessidade do comentário é como a necessidade poética, a própria forma
da palavra exilada.
Existe um texto na Torah que deliberadamente não foi escrito no seu lugar. ... “Para
dizer, não é o seu lugar” ... Este texto se refere à viagem da arca e à interdição de se retirar
os anéis que prendem as duas barras da arca. A arca é o suporte da lei e a viagem da lei
significa a viagem do sentido. A interdição de se retirar os anéis das barras não nos diz
somente de um sempre-pronto à viagem, mas de uma viagem perpétua, contínua e incessante.
A arca deve viajar para que a lei seja devenir. Este texto não deve ter um lugar
predeterminado para que a significação seja nômade. Para a lei judaica, um sentido
tematizado, aprisionado, é um sentido morto. O sentido jamais deve estar lá onde é dado: um
sentido dado é imediatamente um não-sentido.
Se a viagem da arca nos remete ao dinamismo de significação, ser é ser em viagem, é
ser nômade, pois a viagem não tem lugar, é o não-lugar. Tanto que as palavras que escrevem
a viagem da arca se tornam a própria viagem. Elas são a não-escritura, a quase-escritura, o
movimento de escrever. Este texto nos faz compreender que todas as palavras devem sofrer
um êxoto, da mesma for ma que as palavras escutadas por Abraham: “Vai da tua terra
natal, da tua casa, e dos teus parentes, em direção ao lugar que eu te indicarei.”
Blanchot questiona se o movimento nômade inscrito nessas palavras significaria um se
colocar na estrada e errar, portanto, uma eterna privação de lugar. Ou, quem sabe, uma
relação mais verdadeira com o novo, com o que desestabiliza e rompe, uma maneira mais
autêntica de residir, de uma residência que não nos liga a uma determinação de lugar ou a uma
fixação junto a uma realidade dada, já fundada e permanente.
Será que esta questão errante não nos levará ao deserto como terra propícia ao
silêncio, aos ecos da escuta, aos brancos da linguagem? Deserto como momento de
separação de si e de sua própria escritura, página branca onde nenhum caminho se encontra
prescrito e infinitos caminhos podem ser traçados. Nenhuma matriz, nada originário ou
primeiro, ou o originário sob rasura, tudo começado já por traduções e transcrições de um
texto sempre ausente − onde só a energia traça seu caminho, abre seu sulco, produz e cria
sentido.
Este jogo insensato de escrever nos indicará o deserto como o lugar infinito dos
sulcos, das impressões, de uma escrita sem tinta e de um texto do avesso. Desnudará este
desejo louco de escrever nas margens, no espaço entre as linhas, nas dobras do livro. De
traçar riscos na areia que a própria areia e o vento tornarão a recobrir. Terreno vago,
página obcecada. Inocência sempre oferecida, e reserva infinita de marcas.
Lena Bergstein
BIBLIOGRAFIA
Trieb
Fernando José Coutinho Barros
No ódio, para Freud, há uma relação aos objetos que é mais antiga que a relação de
amor (Pulsão e seus destinos, p.63) 3 . Esse ódio inicial, possivelmente, é uma manifestação da
pulsão de morte.
A pulsão de morte pode ligar-se a pulsões eróticas, sendo essa, aliás, uma das formas
pelas quais podemos observá-la. Essa liga de pulsões tem proporções variáveis de uma ou
da outra. Há uma situação onde podemos observar a pulsão de morte em seu estado puro,
segundo Freud, é na melancolia, onde ela se desliga da pulsão de vida, voltando-se
inteiramente contra o próprio Ego, podendo chegar a destruí-lo.
A escola de Melanie Klein também dá ênfase ao dualismo pulsional vida/morte, desde
o início da existência, dando mesmo uma importância maior à pulsão de morte, como
originadora da angústia. Resta saber se esse dualismo kleiniano e o mesmo dualismo
freudiano. Para Melanie Klein, os dois tipos de pulsão divergem quanto a seus objetivos, mas
não há uma diferença fundamental no que diz respeito ao funcionamento das pulsões,
enquanto que, para Freud, é basicamente o funcionamento que vai separar a pulsão de vida
da pulsão de morte.
2
Gostaria de guardar a palavra investida para definir o impulso da pulsão de morte ( a fim de conservar-lhe o
sentimento bélico ) e investimento para a pulsão de vida (tendo em vista a conservação do sentido econômico do
processo.)
3
Na realidade externa, nós podemos incluir a imagem do próprio corpo, tantas vezes perturbado pelas alucinações
cenestésicas ou visuais do esquizofrênico.
ambiente que vai receber o indivíduo portador delas duas. É a combinação desses três
elementos que vai dar as características do novo indivíduo, tornando-o um sujeito.
Quando tudo se passa mais ou menos bem, o indivíduo torna-se sujeito, reconhece-se
a si mesmo e ao outro, reconhece o mundo fora de si e nele situa o objeto do seu desejo (de
fusão). Pelos nossos relógios, isso ocorreria lá pelos 8(oito) meses, quando o bebê se
reconhece no espelho e exulta diante da descoberta de si 4, exulta pelo fato de ter conseguido
juntar todas as partes do seu corpo e de ter um corpo inteiro, de ter conseguido ligar sua
pulsão de morte às suas pulsões de vida, utilizando-as, juntas, nas manifestações agressivas
contra o mundo e contra si, mas já então coloridas de erotismo e incapazes de uma
verdadeira destruição. Todo o seu empenho, então, vai ser a procura de fusão com o seu
objeto de desejo (a Mãe), mas logo vai se dar conta de que, contra seu desejo, existe uma
Lei Paterna, a qual terá de enfrentar. Da mesma forma que foi necessária uma Mãe que
pudesse enfrentar as pulsões de morte a ela dirigidas, sem medo de ser por elas destruída,
por se sentir capaz de neutralizá-las, faz-se necessário também ter-se um Pai que possa
enfrentar as pulsões de vida (eróticas) dirigidas a ela ou à Mãe, seguro de que a transgressão
à sua Lei é impossível, pois ele é mais potente que o pretenso transgressor ou transgressora.
A Mãe deve saber (inconscientemente) que é protegida por uma Lei, a Paterna, que torna
impossível a fusão com seu filho ou filha. Uma vez segura disso, receberá com prazer todas
as manifestações eróticas do filho ou filha a ela dirigidas, e permitirá, assim, a ele ou ela, gozar
do prazer do encontro e ter a possibilidade de deixá -la e sair à cata de um novo objeto, que
ao primeiro se substitua. Quando a coisa não se passa assim, os investimentos libidinais vão
ser rejeitados, ou aceitos com muita culpa, o que vem a ser exatamente a mesma coisa.
Criam-se, então, os obstáculos ao encontro simbólico (futuros ferimentos neuróticos), que são
tentativas, sempre frustrantes, de transgredir a Lei Paterna. A neurose seria, então, fruto do
encontro de um sujeito com uma Mãe, desejada, mas submetida (simbolicamente) à Lei
Paterna.
Pode, também, ocorrer o caso em que nessa Mãe (pelo menos em relação àquele
determinado filho), a Lei Paterna tenha sido transgredida ou mal integrada. Desse encontro,
possivelmente, o novo sujeito também tenderá a ser transgressor e procurar na perversão sua
ilusão de encontro erótico.
Recapitulando:
Isso tudo é muito importante para tentar dissuadir os pretensos educadores. O desejo
humano é ineducável. Não se aprende a ser Pai, não se aprende a ser Mãe, nem se aprende
a ser Filho. Cai-se na vida, recebe-se uma herança e tenta-se dela se apropriar. Dessa
herança, uma parte é real (por exemplo: um sexo biologicamente determinado), uma parte é
simbólica (um Pai, uma Mãe) e outra parte é imaginária (uma história). Aliando essas três
partes, temos um sujeito, com suas características únicas, diferentes de todos os demais
sujeitos existentes, que já existiram e que ainda venham a existir.
Como terapeutas, vamos fazer parte desse complexo universo, sendo dele apenas um
fragmento, com importância decisiva, porém limitada. Quanto mais importante for o papel
que tenhamos que desempenhar, numa análise, maior será nossa responsabilidade e menor a
chance de nos sairmos bem da empreitada.
RESUMO
SUMMARY
Starting from the Freudian concepts of life instinct and death instinct, the author
develops a theory which he calls his own “mythology” about the vicissitudes of the death
instinct.
His theory involves a hypothesis of psychological birth, the creation of reality, the
creation of the self-image and that of the other.
He briefly deals with psychoanalytical classification in the light of his “mythology”.
BIBLIOGRAFIA
Inveja primária
Reflexões e conseqüências na prática clínica
Elizabeth Fetter Zambrano e Sandra Muniz
INTRODUÇÃO
Quando resolvemos fazer este trabalho, estimuladas pelo curso Estudo Crítico da
Obra de Melanie Klein, coordenado pelo Dr. Heitor de Paola, fomos levadas a nos
questionar sobre as razões que nos haviam motivado a fazer este curso.
Pensamos, inicialmente, terem sido as críticas não muito claras que fazíamos à teoria
kleinianas e que no decorrer do curso se foram objetivando.
Posteriormente, estimularam-nos a curiosidade e as respostas que poderíamos
encontrar a partir deste estudo crítico.
É imprescindível ressaltar a importância de um curso desta natureza em nossa
Sociedade, onde várias correntes de pensamento psicanalítico convivem com dificuldade com
a prática do diálogo e do confronto das diferenças. Comumente assistimos ora a um discurso
conciliador que aplaca essas diferenças, transformando a psicanálise numa grande colcha de
retalhos, ora a atitudes de impermeabilidade à crítica, dividindo os grupos em feudos, cada
um defendendo a “verdadeira psicanálise”.
Nesse sentido, foi muito estimulante encontrar um espaço onde discutir; comparar e
criticar as idéias kleinianas não nos tornava hereges.
Durante nosso percurso constatamos a dificuldade de comparar e encontrar pontos
comuns entre a teoria kleinian e outras teorias psicanalíticas, principalmente a freudiana, ainda
que muitos autores insistam em dizer que uma é desenvolvimento e aprofundamento da outra.
Concordamos, em parte, com os autores de trabalho “A Clínica e os Paradigmas” 11.
P.L. Souza e B. Salésio usam o conceito de incomensurabilidade para afirmar que corpos
teóricos, como, por exemplo, Freud e Klein, são estruturas de explicação diferentes, não
superponíveis, apesar de examinarem o mesmo fenômeno.
Isso não implica que um seja psicanálise e o outro não, mas, sim, que diferentes
paradigmas sustentam diferentes aportes técnico-clínicos.
Nossa intenção é, partindo do conceito de Inveja em Melanie Klein, compará-lo com
idéias e críticas de outros autores e estudar as possíveis conseqüências no manejo técnico
que o uso desde paradigma pode favorecer.
SOBRE OS PARADIGMAS
Parece que, de acordo com o autor, não há possibilidade de ver o mundo de outra
forma que não bom ou mau, na medida em que essa percepção está baseada na série prazer-
des-prazer.
Nesta concepção não há lugar para a existência de bons e maus objetos, e sim para
boas ou más sensações,
Para Joffe, o processo de diferenciação entre ‘self’ e objeto é gradativo e a sua
manutenção, independente da frustração ou satisfação, não é conseguida antes do segundo
ano de vida.
“Se a inveja, como geralmente acontece, continua a ser classificada como uma
duradoura tendência direcionada ao objeto, afeto, atitude ou traço de caráter, logo, neste
ponto de vista teórico, não se pode dizer que ela adquire suas caraterísticas duradouras
essenciais antes que um mínimo de diferenciação entre o ‘self’ e o objeto seja atingido.”
O artigo de Joffe situa a inveja num contexto diferente de Klein, colocando-a sob a
influência de outros fatores e tirando dela a inflexibilidade do inato.
Certamente a transposição dessas diferenças teóricas para a prática clínica irá trazer
repercussões que não podem ser desconsideradas.
Conceituada e desenvolvida dessa maneira, a inveja se organiza em bases
metapsicológicas diversas, estando em conformidade com a concepção freudiana do
desenvolvimento psicossexual.
Em Freud, não vamos encontrar nenhuma referência à inveja nos moldes como é vista
em Melanie Klein. Aí o que vemos é a inveja do pênis, conceito que se insere na ordem do
desejo e da castração.
O homem pensado por Freud é o homem sexual, que tem que recordar ou reconstruir
a sua história, lida com o desejo e o prazer, seu conflito maior é o edípico, e a angústia que
lhe corresponde é a angústia de castração.
O homem pensado por Klein é o homem destrutivo, que tem que lidar com seu
mundo interno dividido e projetado, com seus impulsos agressivos, e
“... seu conflito não é mais com a sexualidade, mas com a pulsão de morte entendida
como destrutividade.”11
Outra maneira de entender a inveja poderia ser depreendida a partir do modelo lacaniano da
imagem especular (Estágio do Espelho).
Em outras palavras, baseado nessa linha de pensamento e ego se estruturaria a partir
de uma imagem ideal que o outro fornece. Com a descoberta de que o outro não é o próprio
espelho, se instaurariam a diferença e a inveja, percurso inevitável na organização da
individualidade e que, de acordo com as representações inconscientes de cada um, se
apresentaria na clínica de forma variada.
Enquanto Melanie Klein fala de objetos parciais como decorrentes da fragmentação
do objeto pela inveja (deflexão do Instinto de Morte), Lacan considera que o bebê, na fase
pré-especular, é um ser em pedaços, fragmentado, que enc ontra correspondência nas
fantasias de órgãos ameaçadores situados fora do corpo. Essas fantasias não seriam
decorrentes do Instinto de Morte, mas, como assinala Lacan:
A inveja que surge no estágio do espelho seria devastadora por estar em consonância com o
grau de desamparo do bebê, que descobre que aquilo que lhe dá segurança não é ele.
Problematizado a noção de incomensurabilidade das teorias, Renato Mezan9 , em seu
brilhante artigo “A Inveja”, vai lançar mão de aportes kleinianos, freudianos e lacanianos para
montar uma teoria sobre a inveja e enriquecê-la com seus achados.
Ele nos leva a percorrer, de forma muito poética, toda a conceituação da inveja, da
sua origem ao desenvolvimento, dandonos, inclusive, a sua visão metapsicológica.
A questão colocada por Renato Mezan é: seria a inveja um impulso ou uma defesa?
A grande novidade que o artigo nos trouxe foi a noção de inveja como defesa. Esse
enfoque utiliza o conceito freudiano de inveja do pênis e as noções de narcisismo (ego ideal)
para falar do desejo de completude, que é parte essencial do conceito de inveja. Tenta
aproximar as concepções de “Idealização” em Freud e Melarei Klein.
Mezan afirma que a inveja dissipa essa busca de coincidência, de restauração da
plenitude narcísica rompida com a descoberta do limite e da diferença.
Alcançando esse ideal teríamos tudo, não sentiríamos falta de nada, ou seja,
estaríamos nos aproximando da Morte, e isto permitiria compreender por que motivo o
projetado idealizado pode ser alvo de um imenso desejo e ao mesmo tempo de um imenso
pavor.
REPERCUSSÕES NA CLÍNICA
“... reconstruir uma história tomando como fio condutor os impasses da sexualidade
infantil fixados na repressão” ;1
“... o aproximar-se das experiências emocionais mais básicas nas quais a mente se
encontra enfrentada tanto com suas forças destrutivas quando com as vitais”.
(...) Vê-se que enquanto o primeiro põe ênfase na sexualidade, o segundo a coloca
na destrutividade”.
(...) Por sua vez, no primeiro se trata de reintegrar uma história, enquanto, no
segundo, uma experiência emocional básica”.4
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABSTRACT
The authors apply the notion of Paradigm to the concept of Envy in Melanie Klein,
and add to it some notions and criticisms by other authors. They also question the inborn
aspect proposed in Klein’s theory. They emphasize the possible distortions that the rigid
application of this Paradigm can bring to the clinical practice.
A análise de crianças enriquece muito o terapeuta pela facilidade com que permite
observar a emergência das ansiedades primitivas e a mobilização das defesas que se
expressam freqüentemente sem os disfarces mais sofisticados dos adultos. Em compensação,
a rápida e sucessiva mudança de foco e de papéis nas cenas desempenhadas, além do tumulto
desenvolvido na sala de jogos e do esforço físico requerido do terapeuta, dificulta a
possibilidade de registro mais fiel da realidade de cada sessão.
Pretendo falar, neste trabalho, de uma criança que, vivendo num mundo de ansiedades
predominantemente persecutórias, utilizando defesas de cisão, negação, identificação proje tiva
e controle onipotente e obsessivo dos objetos, defrontou-se, em certo momento, pela
evolução de seu tratamento, com uma constelação mais organizada de ansiedades
depressivas. Destaco, através de fragmentos de sessões, um instante em que o apelo para
reparação começa a se fazer de modo mais evidente.
Nosso cliente, Bruno. Acabou de completar 7 anos. Estava em tratamento
psicoterápico desde os 4 anos, interrompendo-o por ter o terapeuta transferido residência
para outra cidade. Foi criança difícil desde que nasceu. Amamentado ao seio por dois
meses, chorava muito quando acordado, intensificando seu choro antes, durante e depois da
mamada. Como aumentava de peso, a amamentação foi mantida. Um dia, o pai sugeriu dar
mamadeira, e a mamada se fez sem “o choro enlouquecedor”. Estabeleceu-se então
aleitamento artificial, já que também era a época de a mãe retornar ao trabalho. Sempre teve
muitos medos, piorando a partir dos dois anos e meio, sem causa aparente. Teve dificuldades
na evacuação até os 4 anos: prendia quando ia ao vaso e se sujava todo depois.
Sempre foi difícil para alimentar-se e aceitar coisas novas. Tônus muscular flácido,
sem causa definida, tendo recentemente terminado ano e meio de tratamento fisioterápico,
com melhoras parciais.
Há três anos entrou para a escola, não se adaptando. Chorava muito, de início;
acabou ficando, mas quieto e acovardado. Da escola foi encaminhado ao tratamento anterior.
Foi alfabetizado o ano passado, lendo relativamente bem. Vem se dando melhor com a mãe
“de uns tempos para cá: antes não poderia dizer que era relacionamento”. Agora começa a
relacionar-se com o pai. Tem uma irmã de 5 anos e meio. Teve ciúmes quando ela nasceu,
mas agora diz ser sua melhor amiga porque brinca com ele. A mãe é uma pessoa pouco
comunicativa, mas parece sensível face aos problemas de Bruno. Trazia -o às sessões
parecendo ter sempre boa vontade, paciência e se esforçando para compreendê-lo.
O pai é descrito como relativamente ausente no cuidado com as crianças.
Ao contato inicial encontrei um garoto que me pareceu simpático. Acompanhou-me
de bom grado à sala de brinquedos e após certo tempo de avaliação do terreno desenvolveu
atividades espontâneas. Chamou a atenção, na primeira sessão, a preocupação em organizar
o universo com a arrumação de animais em filas: de um lado, os selvagens, de outro, os
domésticos. Dispôs objetos de cores claras e brancas em face de objetos pretos e escuros
(cubos de madeira, carrinhos, etc.). Identificava e separava assim o bom, útil e amigo, do
mau perigoso e destrutivo; o sujo, preto, do branco, limpo, e se tranqüilizava reassegurando-
se de um espaço conhecido e bem delineado onde manejava, no mundo externo, suas
ansiedades persecutórias relacionadas ao novo terapeuta do qual esperava ajuda, por um
lado, mas que já era repositório da carga traumática de abandono, vivenciado na relação com
o antigo terapeuta. E dava conta do splitting e controle que deveria estar se operando no seu
mundo de objetos internos.
O tratamento desenvolveu-se com 5 sessões semanais. Com o passar das sessões
exteriorizou com mais clareza e abundância situações ameaçadoras do seu mundo interno.
Após o primeiro fim de semana, construiu “uma pista de corrida perigosa”,
perigosa”, onde os carros correm, passando debaixo das almofadas, quando, após ouvir-se o
brado inquisitivo de “quem apagou a luz?”, seguiu-se violenta briga. Essa mesma briga
também acontece quando, depois de pedir ajuda, constrói um barco de papel, põe na pia
cheia d’água e vai fazer “uma viagem bem perigosa”, onde surge tempestade, quase virando
o barco. Terminada a viagem, organiza uma luta entre animais. A viagem recomeça em
seguida, devendo o barco passar “por um túnel enrolado” em que “todos vão ficar pretos” e
termina com os participantes enrolados em barbante. Ele também fica enrolado e se enrola
mais quando vai guardar tudo, no fim da hora, tendo dificuldades em sair.
Concomitantemente, tinha atitudes de mandar-me calar as interpretações, ameaçava bater-me
e, às vezes, invadia-me com gritos inesperados visando meus ouvidos. Fazia evidente o
anúncio de uma viagem (a análise) perigosa e conflituosa e a externalização de um mundo
interno cruel e agressivo. As defesas visavam principalmente proteger -se, atacar e destruir o
inimigo (o parceiro) e controlar através do invadir e tomar de assalto. O tema foi
desenvolvido durante grande parte do tratamento. A partir desse prenúncio foi-nos dada a
chance de, pouco a pouco, acompanhar as cogitações e vivências sobre o interior dos objetos
agressivamente invadidos, as destruições efetuadas (já que todos, agressor e agredidos, ficam
pretos, estragados dos modos mais diversos) e os temores de retaliações e castigos.
É um círculo vicioso no qual se enrola, embaraça e não consegue sair. Por outro
lado, fica também atendido um outro anseio, o da fusão com o objeto, que evitaria a
separação, o abandono.
Exibe desde as sessões iniciais um interesse e ocupação com os monstros do mundo
pré-histórico. Tem coleções de livros sobre o assunto, que lê e faz a mãe ler-lhe. Traz para
as sessões, repetindo a operação comigo, surpreendendo-me, pois conhece os livros
literalmente de cor. É um mundo dominado pêlos gigantescos dinossauros, alguns herbívoros
e outros carnívoros, que vivem em luta permanente. Elasmossauros, plessiossauros,
dimetrodontes, brontossauros, tiranossauros, ictiossauros exibem a grandiosidade de porte e
ferocidade.
Mordem, devoram, pisam, esmagam e se destroem uns aos outros incontrolavelmente.
A identificação com tais monstros é desejada e demida, traz poder e uma capacidade de
destruição incomensurável.
Dramatiza nas sessões os ataques mais violentos e fica aterrorizado com o que
imagina ser qualquer reação minha. Outras vezes se machuca após tais ataques, batendo
braços, pernas nos móveis ou levando tombos, infligindo-se o castigo por tais meios. Não é
incomum apresentar manchas roxas pelo corpo.
Uma das queixas trazidas pela mãe referia-se ao seu comportamento na escola. Fazia
parte do grupo rotulado como “agressivo”, embora fose saco de pancadas. Apanhava até
dos menores e não revidava. Creio que suas inibições relacionavam-se com as fantásticas
conseqüências do seu sadismo “pré-histórico”, interferindo no seu controle esfincteriano e
de algum modo até no seu compartamento muscular, em que pese a existência de possíveis
causas orgânicas.
Outro aspecto enfatizado nos referidos monstros era o da voracidade: comiam
rebanhos de animais, cardumes de peixes, florestas inteiras, e freqüentemente a sobrevivência
de uns era garantida pela ação de devorar o outro. Concomitantemente, nas sessões são
comuns os temas que dizem respeito à moralidade.
Suas brincadeiras e jogos encerram muitos enredos de comer doces, frutas, pratos
preferidos, ou frustrações em relação a isso. E a constelação persecutória insere-se o mais
das vezes no contexto.
Certa vez trouxe jogo de damas para a sessão e convidou-me para jogar, entrando
em pânico quando fui comer uma pedra sua: comer a pedra era comê-lo concretamente. Só
após interpretações sobre a dificuldade de simbolizar, aceitou continuar o jogo, em relutância
e muito abatimento. De outra feita, desenhou um elasmossauro e um boneco, sendo este
último comido pelo primeiro, em seguida. No material anterior e posterior ele era o que fazia
traços gigantescos no quadro negro, era o grande, o poderoso, e chamou a atenção para a
própria barriga. Era, portanto, o elasmossauro e eu o boneco, tinha me comido e eu estava
na barriga dele. Após a interpretação, desenrolou-se uma situação dramática de pavor na
qual a retaliação era esperada, atacando-me ele antes e procurando conter-me a qualquer
custo com as mais diversas medidas, como apresentaremos adiante.
A permanência dessas ansiedades em nível tão primitivo e tão vivas faz-nos recordar
de sua “pré-história”, as dificuldades iniciais com o seio, onde parece ter-se feito uma
relação frustradora e persecutória. Podemos levar em conta dificuldades por parte da mãe,
mas não podemos deixar de pensar também na força dos impulsos agressivos do próprio
paciente, levados ao encontro das dificuldades maternas.
Outro fato que não podemos deixar de levar em conta também foi a possibilidade de
modificação da relação, ainda que em certo grau, no contexto de outra realidade quando
entrou em cena a mamadeira. É um fato importante quando imaginamos qualquer avaliação
prognóstica.
A própria cena primária é descrita em termos orais sádicos, como uma sessão em que
fala do espaço sideral e me sabatina sobre os anéis de Saturno, grandeza e distância dos
diversos corpos celestes. A certa altura desenha um asteróide no quadro negro, faz outro ao
lado e diz que “o asteróide menor chupa o maior e fica um mais pequeno”. Ele é “o
filmador”. Assiste, documenta e controla, no mundo interno, a cena primária sádica: o pai
engolido e fundido com a mãe (pais combinados) e o eventual nascimento de rivais, em outro
plano (meteoritos), que se desgarram e o ameaçam com bombardeios incessantes.
Um dos aspectos dificultadores da convivência com Bruno em casa era o seu
comportamento ditatorial. Submisso e acovardado diante dos “de fora”, tornava-se o dono,
o tirano em casa; batia, chutava, quebrava, emitia sons explosivos e estava sempre
submetendo a família aos seus caprichos. Nas sessões tinha dificuldades em suportar as
interpretações, reagindo muitas vezes com gritos e violências.
Adquiriu surpreendente soma de conhecimentos, para sua idade, a respeito de alguns
temas como mundo pré-histórico, espaço sideral e vida animal, entre outros. Utilizava esses
conhecimentos para negar sua sensação de pequenez e dependência ante suas figuras
representativas. Era o sábio admirado por todos e não perdia ocasião de mostrar sua
erudição.
Não suportando tomar conhecimento do dano infligido ao objeto ao qual se ligava,
lançava mão abundantemente do controle mágico onipotente para impedir a esperada
retaliação. No episódio antes referido, em que ele, elasmossauro, come o boneco analista e
entra em pânico, passa a agredir com socos e pontapés, sendo necessário contê-lo. Após a
interpretação do medo da retaliação e da identificação projetiva que faz, aquieta-se, pega
papel e lápis e me ordena escrever o que dita: 21 nomes de bichos ferozes, quase todos
dinossauros.
Assim, as posições ficam invertidas, ele é o professor, eu o aluno que fica contido,
submetido às ordens do mestre. Ele tem a seu serviço os poderosos monstros pré-históricos,
cujos nomes e hábitos lhes são tão familiares. Não suficientemente seguro, dia ainda os
nomes dos 16 desenhos animados que costuma ver, com os no mes dos heróis, naturalmente,
tornando-se ainda mais forte.
Mostra, assim a fragilidade da defesa, que tem de ser reforçada e constantemente
renovada, num trabalho exaustivo. Acentuo ainda a resposta à interpretação quando da
atividade de atacar e destruir o analista passou a submetê-lo e controlá-lo com o auxílio de
bichos ferozes e heróis.
Em outra ocasião, entrou na sessão triunfante com um bolo de cartões de uma
coleção de jogadores de futebol na mão (sabia muito sobre jogadores de futebol e seus times
do país inteiro): conseguira completar 186, mais do que a irmã e do que os coleguinhas
contou-as uma a uma e só tinha 185. Todo o seu poder, segurança e estabilidade
desmoronou-se chorou e exibiu o descontrole da impotência extrema. Seus impulsos
destrutivos projetados e reintrojetados tornaram o mundo interno monstruosamente
persecutório; só tendo poderes extraordinários podia -se fazer face ao perigo.
Compreensível se torna a necessidade de ser o maior colecionador, o mais entendido em
assuntos diversos, o mais forte e o mais inventivo.
Estava sempre inventando máquinas: uma contra chuva de meteoros, outra para filmar
e provar que o monstro do lago Ness é um elasmossauro e não um plessiossauro, “como
dizem”. Está sempre inventando jogos, cujas regras só ele conhece e que lhe permitem
ganhar e tripudiar sobre o analista. Como todo esse poder, organiza o mundo como melhor
lhe apraz, assegura a posse e o controle do objeto desejado e elimina os rivais; na máquina
contra chuva de meteoros “me nina não entra”. A irmã ficava excluída de qualquer
participação, era ignorada, não existia e, por outro lado, ficava exposta para ser esmagada
pêlos temíveis petardos.
Às vezes é difícil precisar a época em que começa a se fazer uma mudança
significativa no tratamento. Freqüentemente só nos damos conta do fato quando a situação já
se estabeleceu. Rememorando “a posteriori”, fica mais fácil nos apegarmos a um evento
importante. É o que faço agora. Creio que a relação já se fazia menos tumultuada, havia a
possibilidade de trabalharmos em conjunto por um tempo mais dilatado. Lembro-me de
construções com cubinhos de madeira, em que a minha participação era mais solicitada e
observada, num clima de certa harmonia. Foi introduzido um novo personagem na sessão, um
coleguinha que era “o amigo” e deu margem a vermos a nossa relação sentida como mais
amigável. Mas, aproximadamente em torno do 8º mês de tratamento, estando a avó materna
doente em outra cidade (de moléstia grave da qual veio a falecer poucos meses adiante), a
família viajou numa emergência, ausentando-se o paciente das sessões por uma semana.
Na primeira sessão subseqüente chega, abre a gaveta e encontra uma revistinha que lá
tinha deixado; diz; com satisfação: “Está aqui a revistinha! um tempão...” folheia... diz: “Do
mesmo jeito.”
Digo: inteira, apesar do tempão que passou. E eu também inteiro, do mesmo
jeito. Ri. Logo depois vai à gaveta, retira uma bola, chuta forte na parede, depois joga em
cima de mim. Volta-se para a gaveta e pergunta se eu não comprei pilot como mandara e
reclama: “tem que trazer amanhã, se não... (castigo)”.
Mostro como ele procura dar demonstração a nós dois de que é forte, manda em
mim, só assim acha que vai ficar inteiro, eu não vou rasgá-lo, adoecê-lo.
Pega papel e lápis dizendo que vai fazer um quebra-cabeças. Pinta um pedaço,
começa a cortar com a tesoura: “Vou cortar um x e vou arrumar” Continua executando.
Digo que há um quebra-cabeças, um problema que precisa armar, arrumar.
Qual é o x? O que está havendo com a vovó? Diz: estava doente, mas está boa
agora. Vim de lá.
Continuo: O que há com quem Bruno deixa um tempão, de quem se afasta.
Adoecer? Rasga-se? Morre?
Ele me dá ordens para calar a boca e depois manda: Corte! Pinte! Cole! Digo que
tendo toda esta ocupação não posso fazer nada contra Bruno: Não vou jogar bola nele, não
vou matá-lo...
Manda calar a boca. Manda cortar de forma diferente, pintar um determinado ângulo.
Exerce assim um controle de déspota, num conflito de vida e morte, e quanto mais me domina
e maltrata piora o medo, mais aumenta a perseguição e mais aumenta a necessidade de
controle tirânico, sem poder sair do círculo vicioso. A alegria de notar que eu estava vivo
dura pouco. Creio ter -se assustado com a evidência do gostar, sentir falta, que expressa a
dependência. Por outro lado, a verificação da existência do objeto independente, separado, é
difícil de ser suportada.
Na rota da fuga da ambivalência está o retorno regressivo, sendo acionadas as
defesas contra a perseguição.
Com o passar do tempo dou-me conta de vários movimentos significando tentativas
de reparação não chegam a resultado exitoso, esvaindo-se na metade do caminho. Numa
sessão, depois de desarrumar as gavetas e agredir as figuras parentais numa família de
animais, larga-as pelo chão. Após a interpretação da agressão e dos ciúmes em jogo,
verbaliza uma referência às suas atividades bagunceiras e começa uma atividade de
recolhimento dos objetos espalhados pelo chão, chamando-me para ajudá-lo e logo desiste,
achando o trabalho longo e cansativo. Ordena-me: “Escravo, termine de arrumar”.
As tarefas de reparação parecem acima das suas forças, a defesa maníaca toma-lhe o
lugar. Poderia citar inúmeras outras situações similares. Numa sessão posterior quebra o
apontador de lápis durante uma brincadeira que consistia em atirar objetos a distância.
Aflige-se pelo fato, tomando conhecimento do dano que inflige ao objeto que utiliza, faz
referência à irmã que quebrara o braço em casa quando brincava com ele. Tenta consertar, e
não conseguindo inteiramente, pede-me ajuda. Fica um conserto imperfeito porque um
pequenino parafuso não pode mais ser encaixado. Insiste para que eu conserte, de uma
maneira aflita e até obsessiva. Irrita-se e passa a querer bater-me. Interpreto a necessidade
da reparação perfeita sem vestígios e imediata, se não, retorna a impotência e desesperança.
Em sessão mais adiante promove-me à figura salvadora: eu sou seu instrumento para
fazer a reparação mágica. Há uma brincadeira em que os animais se machucam e eu os curo,
depois caem no abismo e eu resgato; sob as ordens imperiosas do amo, não há tarefa que eu
não possa realizar. Assim, tem um objeto idealizado que o protege no mundo persecutório,
tem um objeto que onipotentemente resiste aos seus ataques e tem também alguém
encarregado (uma instância fora dele) de reparar mágica e pefeitamente qualquer dano
infligido aos parceiros. Com isso tudo, abandona os anteriores movimentos para reparação e
assesta sua defesa em estádios mais precoces do seu desenvolvimento.
Numa sessão de terça-feira entra com um livro na mão, cumprimenta-me ligeiramente
e vai deitar-se no divã, onde fica lendo por certo tempo. Após interpretações sobre a
necessidade de trazer de casa a própria fonte de abastecimento e manter-se à parte, afastado,
sem maior contato, torna -se claro o clima agressivo dentro dele, o medo da violência
projetada e também a necessidade de proteger-me da voracidade primitiva, expressa num
jacaré de boca aberta que passa a se movimentar na sessão. Ao fim desta, enrola o jacaré de
papel e presenteia -me. Demonstra, assim, a periculosidade dos seus impulsos orais
destrutivos, que não podem ser deixados livres e abertos; abertos; demonstra também um
certo crédito e dependência desse objeto que fica encarregado da guarda e manejo dos
citados impulsos.
Na sessão seguinte, chega na hora, entra e vai para a pia, ficando de costas para o
terapeuta. Percebo que faz manobras para beber água, quando lhe mostro a sede, o apetite e
a disposição para satisfazê -los na sessão comigo; (diferentemente da véspera) teve a seguinte
reação: encaminha-se para mim lentamente, ficando frente a frente, e, de surpresa, lança, de
um jato, a água que guardara na boca. Vejo minha camisa molhada com várias manchas de
água.
Vejo seu rosto e percebo a aflição. Volta-se para a gaveta rápido, procurando algo
para limpar. Não acha a toalha e traz um papel, tentando apagar as manchas diligentemente.
Falo-lhe do medo, da aflição de ter-me manchado e estragado alguma coisa entre nós
dois. Continua sua atividade de limpeza sem parar. Falo -lhe da descrença de consertar de
algum modo o dano feito e por isso a necessidade de ter que tirar tudo imediatamente, não
deixar marca alguma. Manda-me parar de falar, tapa os ouvidos. Mostro como ele acha que
eu fiquei manchado mesmo, ruim, e se tapa, se fecha, para que eu não entre nele e não o
inunde, destrua.
Dá uma volta na sala e depois, com voz autoritária, manda-me sentar à mesa. Pega
papel e lápis e manda-me escrever o que ele dita: nomes de super-heróis. Muitos nomes.
Controla-me assim, torna-se invencível para enfrentar o monstro sadicamente criado. Ao
mesmo tempo, não precisa tomar conhecimento do dano efetuado, ele é quem está sendo
atacado. Após algum tempo vem olhar o que faço. Não gosta da letra e ele mesmo passa a
escrever, já que não pode confiar na delegação de poderes. Apesar da onipotência da defesa
maníaca, ela é frágil e precisa ser sempre reforçada.
Em seguida, vai à gaveta, tira alguns objetos e me convida para brincar, após testar-
me e ver se estou suficientemente domado: atira-me pequeno cubo de madeira e observa a
reação; como lhe pareceu satisfatória, oferece-me participação na brincadeira. Animais e
carrinho em viagem. A interpretação mostra-lhe o acima referido e para ele representa
também o fracasso da defesa pretendida. Há uma evidência da separação de objeto e o
retorno das vivências depressivas. Provoca-me com a tesoura, tentando cortar minha calça.
Provoca-me para que o castigue e o controle, impeça de estragar tudo. Passa a ter atitude
mais amistosa, após ser contido, e, em seguida, traz cadeiras, mesa, sofá, armário e os põe
em torno de mim, prendendo-me. Aproximava-se o fim da hora.
A necessidade de segurar-me, controlar-me, além de proteger-se da retaliação, visava
também garantir a relação para que eu não o abandonasse após sofrer tantos danos.
No dia seguintes, entra com uma revistinha nas mãos. Senta-se, lê um pouco e pede-
me depois que leia para ele. Leio uma aventura de vários garotos que jogam futebol. Há
sempre rivalidade, brigas e violências. Mostro o que ele quer me mostrar: imagem do mundo
interno dele e a luta que está fazendo para me manter amigo dele, podendo até pedir que eu
leia para ele. Lê outra aventura sozinho. Levanta-se, vai à gaveta, pega Kleenex e me
amarra. Chega perto e beija-me de repente. Mostra, assim, toda a extensão da
ambivalência, o amor e a ameaça sádica que amarra, obstaculiza a liberdade de relação.
Solta-me após a interpretação e pede que eu lhe faça um barco de papel. Põe na pia para
uma viagem. Acentuo a diferença com as viagens da fase inicial do tratamento, digo da
experiência nova que está podendo fazer. Vê que sua sandália está suja de tinta e sujou o
chão. Enche um copo de água e joga no chão. Outro copo depois. Dispõe-se a lavar a
sandália e o chão. Lava, pedindo minha ajuda. Após isso, pega rodo e pano de chão para
enxugar. É evidente o clima de viagem diferente das que costumamos fazer. Creio que o
trabalho feito até agora ajudou-o, pelo menos por um período, a poder dar mais crédito ao
objeto bom internalizando, e por mais tempo, e consequentemente ter mais confiança em si e
em mim.
Assim, fica possível dedicar-se mais à tarefa de limpeza, reparação dos danos feitos e
estabelecimento de relação menos desarmônica. Pega barbante, faz um varal para enxugar os
panos, sempre com a minha ajuda. Procura prendedor e usa a tesoura como tal. Após isso,
olha para a porta, mostra-se inquieto e pergunta as horas. Era próximo ao fim da hora. Creio
ser claro seu desejo de ir embora pelo medo de não poder manter a relação satisfatória por
mais tempo, e interpreto. Diz que quer que eu mantenha o varal estendido até a sessão de
amanhã e o chão limpo. A manutenção dos processos de limpeza e reparação já fica a meu
serviço, é tarefa grande demais para o seu desenvolvimento.
SUMÁRIO
SUMMARY
The author presents the evolution of eight months of treatment of a child whose
symptomatology expressed serious difficulties in development and adaptation.
His behavior was acompanied by predominantely persecutory anxieties with the onset
of the defense mechanisms of split-off, denial, projective identification and omnipotent and
obsessive control of objects.
Featured, through fragments of some sessions, is a moment of treatment in which the
constellation of depressive anxieties is more systematically organized and the call for reparation
begins to be made in a more evident way.
BIBLIOGRAFIA
SUMÁRIO
SUMMARY
O OLHO
Um dia, disse o Olho: “Vejo, além destes vales, uma montanha velada pela cerração
azul. Não é bela?”
O Ouvido pôs-se à escuta e, depois de ter escutado atentamente algum tempo, disse:
“Mas onde há qualquer montanha? Não a ouço.”
Então a Mão falou: “Estou tentando em vão senti-la ou tocá-la, e não encontro
montanha alguma.”
E o Nariz disse: “Não há nenhuma montanha. Não sinto o cheiro”.
Então o Olho voltou-se para outra parte e todos começaram a conversar sobre a
estranha alucinação do Olho. E diziam: “Há qualquer coisa errada com o Olho.”
(Gibran)
Agradeço, com carinho, aos meus irmãos, Jamil, Darcy e Sergio, pela visão da
Psicanálise que me transmitiram generosamente.
Se Freud foi genial nas descobertas psicológicas, não o foi menos como literato. Na
sua perseverança de ver a Psicanálise reconhecida, empenhou esforços para comprovar suas
investigações e seus êxitos clínicos, descrevendo-os minuciosamente, detendo-se nas mais
simples expressões do paciente, levantando questões que deixa sem respostas. Enfim, ele
gera, desenvolver e comprova teorias e firma a compreensão clínica.
Essa conduta marcante em seus escritos, se, por um lado, nos enriquece pelo grande
aporte de conhecimentos que traz e nos faz pensar, por outro lado, nos deixa tão
completamente informados de suas idéias, que, muitas vezes, nos imobiliza na busca de
perscrutar outras idéias.
Nestes trabalho, não se pretende corrigir a compreensão dada por Freud à história e
análise do Pequeno Hans, pois sabemos que, em traços gerais, a sua com-preensão intrínseca
é tão atual como as mais atuais contribuições. O que se pretende é, usando outras
formulações teóricas (Winnicott, Mahler, Kohut, Klein, etc.), oferecer a oportunidade de
repensar conceitos psicanalíticos consagrados.
Posto isso, faz-se necessária a reprodução de alguns trechos da história do Pequeno
Hans descrita por Freud que permitirá algumas reflexões.
Escreve Freud: “Os primeiros relatórios a respeito de Hans datam de um período em
que ele estava por completar três anos de idade. Naquela época, por intermédio de várias
observações e perguntas, ele demonstrava um interesse particularmente vivo na parte do
corpo que ele costumava chamar de se “pipi”. Tanto que, certa vez, perguntou à mãe:
“Hans Mamãe, você também tem um pipi?
Mãe Claro. Por quê?
Hans Nada, eu só estava pensando”.
Mais adiante, escreve: “Aos três anos e meio sua mãe o viu tocar com a mão no
pênis. Ameaçou-o com as palavras:
Mãe Se fizer isto de novo, vou chamar o Dr. A para cortar fora o seu pipi. Aí com
o que você vai fazer pipi?
Hans Com o meu traseiro.”
Lendo esses trechos, observamos que Hans encontrava-se em busca de informações
sobre a sexualidade, para entender as diferenças sexuais, em última análise, numa tentativa de
discriminar a própria sexualidade. Fazia suas tentativas de esclarecimentos através de
indagações, no que não se saía muito feliz. A resposta da mãe, afirmando que tinha “pipi”,
além de deixá-lo confuso, reforçava a sua crença numa indiferenciação sexual. E que o leva
a responder, num momento seguinte, que faria “pipi” com o traseiro.
Mais adiante, Freud escreve: “A ânsia por conhecimento parece ser inseparável da
curiosidade sexual. A curiosidade de Hans orientava-se, em particular, para os seus pais,
como se pode depreender no diálogo seguinte, ocorrido quando Hans tinha três anos e nove
meses:
“Hans papai, você também tem um pipi?
Pai Sim, claro.
Hans Mas nunca o vi quando você tira a roupa.”
Outra ocasião, olhava insistentemente sua mãe despida, antes de ir para a cama,
quando ela perguntou:
“Mãe Por que você está olhando para mim desse modo?
Hans Eu só estava olhando para ver se você também tem um pipi.
Mãe Claro Você não sabia?
Hans Não. Pensei que você era tão grande que tinha um pipi igual ao de um
cavalo.”
O Pequeno Hans permanece confuso. Sua hipótese de que os pais deveriam ter pênis
igual ao de um cavalo dificulta-o a ver claramente o pênis do pai e a ausência deste na mãe,
por esta continuar afirmando que possuía um pênis também. A sua crença de que os seres
animados se distinguiam dos seres inanimados pela presença do pipi, reforçada pela mãe,
fazia que visse um pipi bem pequenininho na irmã recém-nascida, o que o levou a dizer:
“Quando ela crescer, ele vai ficar bem maior:”
No desenrolar, Hans continuou negando as diferenças sexuais até o momento
descrito por Freud: “Hans (quatro anos e meio) estava novamente vendo darem banho em
sua irmãzinha, estão começou a rir. Ao lhe perguntarem por que ria, responde:
“ Estou rindo do pipi de Hanna.
Por quê?
Porque o seu pipi é tão bonito.”
“Naturalmente sua resposta não era sincera. Na realidade, o pipi de Hans parecia -lhe
engraçado. Ademais, foi nessa oportunidade que Hans reconheceu a existência de diferenças
entre os genitais masculinos e femininos.” Posteriormente a isso, aos quatro anos e nove
meses, desencadeia -se o quadro fóbico de Hans. O processo fóbico se desenrola e, na
análise, uma série de emergentes conflituosos vão surgindo, alcançando o êxito terapêutico
quando Hans, finalmente, aceita sua identidade masculina abrindo mão de sua teoria fantasiosa
de que tinha capacidade de gerar filhos.
É oportuno considerar que o ser humano, no seu desenvolvimento biológico,
inicialmente não teria diferenciação sexual morfológica, e que no transcurso do
desenvolvimento embrionário são determinados caminhos diferentes, legitimando os sexos.
Portanto, na evolução biológica natural, não haveria lugar para um sentimento de “perda.”
Não se pode perder aquilo que nunca se teve, mas, na comparação, o que se pode sentir é
um sentimento de “falta”, percepção que determina a diferença entre um e outro ser. Na
verdade, não há “perda”, nem “falta”, mas somente diferenciação do sexos. Embora o
sentimento legítimo que emerge é o de estar incompleto, nunca o de ter sido castrado.
Hans, na sua busca através de indagações, manteve -se confuso, ao ponto de Freud
registrar:... “Ele expressou repetidamente, tanto para o seu pai como para sua mãe, seu pesar
por nunca ter visto seus pipis, e foi a necessidade de fazer comparação que o impeliu a fazer
isso.” As respostas da mãe o faziam imaginá-la um “ser completo”, imaginar mais que ele iria
se completar quando crescesse, assim como a irmãzinha, cujo “pipi” iria crescer.
Nos raros momentos em que visualizara os genitais dos pais, sempre protestara.
Havia um sentimento de que faltava alguma coisa. As ansiedades fóbicas desapareceram
quando Hans aceitou a diferenciação sexual era um ser completo como o pai.
É ocasião de trazer, agora, o relato de uma pessoa paciente que vinha analisando sua
sexualidade. Contou que, quando tinha mais ou menos seis anos, olhava para sua vagina, o
que era fácil, pois não tinha pêlos pubianos. Via, entre os pequenos lábios, o clitóris e pensava
que ele iria crescer, acreditando que aumentaria seu tamanho conforme o desenvolvimento de
seu corpo. Por vezes, comparava o tamanho de seu clitóris com o de sua amiguinha, na
expectativa de perceber, num momento, que o seu crescera. Relatava que nunca havia tido
sentimentos de “perdas de pênis”, mas que tinha a sensação de que este ainda não se
desenvolvera, não que houvesse sido cortado, mas sim que “faltava”.
Percebe-se que Hans e a paciente, então menina, compartilhavam a mesma fantasia
de certa forma, pois negaram as diferença sexuais para não serem obrigados a encerar o que
lhes faltava, porque isso os levaria à necessidade de busca de outro objeto para
complementá-los, situação muito perigosa no caso de Hans, já que tinha de competir com o
pai na busca do desejado, porém fica claro que a ansiedade mais profunda centrava -se na
certeza da “falta” de sua capacidade de gerar filhos.
Sob esse ponto de vista, o sentimento ou angústia de castração não está relacionado a
uma sensação ou temor de “perda”, mas à comparação na realidade de “falta”, gerando uma
necessidade de complementação e a busca de outro ser que lhe permitirá o alívio dessa
necessidade e a própria integração da emoção-afeto-corpo. Isso se refere a um sentimento de
ausência, aqui usado no sentido de “falta”, uma vez que não se pode ter a sensação do
ausente, se não experimenta a existência real. Assim, a vivência de necessidade de
complementação psicocorporal cria um reconhecimento mais de “falta” do que de “perda”
do pipi ou da vagina.
A propósito, ilustrativa é a vinheta contada por uma paciente, participante de
conversa entre uma menina de três anos e outra com pouco mais de quatro anos, quando lhe
foi perguntado:
Menina de três anos dirigindo-se à paciente:
Menina Por que você não namora seu o seu pai?
Paciente Ele já tem namorada. É ,minha mãe.
Menina de três anos Tira o “pipi”dele e põe em ti.
Menina de quatro anos Pega o “tico” dele e põe em ti e vira homem.
Menina de três anos Põe na tua “chereca” o “tico” dele e fica para ti.
Paciente Sou mulher, não adianta ficar com o “tico” dele.
Menina de quatro anos Pega o “tico”, tira todas as coisas e põe dentro de ti e vira
homem.
Com esse exemplo, fica claro o desejo de complementação de incorporar um pênis e
suprir a falta que sentem. É de se considerar que, sob um ponto de vista muito particular, a
castração não é vivida pela criança como “perda”, mas que o sentimento está ligado à
“falta”, pois não se pode perder o que nunca foi possuído. Também se deve observar que o
processo discriminatório da identidade sexual leva meninos e meninas a um sentimento de
“falta” que os impede de ter o sentimento de complementação e inteireza, na fantasia ou na
realidade, para encontrar a integração emoção-afeto-corpo.
Tudo isso leva à reflexão da importância do olhar em todo processo de individuação
e discriminação sexual.
Convém ressaltar que a importância do olhar na vida afetiva dos indivíduos vai além
da concreta discriminação corporal e sexual, pois há um inverso de possibilidades de
comunicação entre as pessoas através do olhar. É oportuna a reprodução de trecho da
sessão de uma paciente, que, referindo-se a um encontro com um homem que interessava, diz:
“Estávamos nos olhando, eu via tanta coisa no seu olhar, que me dava uma sensação, não era
tesão, era uma sensação muito difusa, que me fazia desejar estar sós com ele, para ter a
certeza de que o que eu entendia no seu olhar era verdade e de que estava entendendo o que
eu queria expressar no meu olhar”.
É raro encontrar na idade adulta descrição tão clara de um acontecimento evolutivo
próprio da relação mãe-bebê, fase de compreensão sem palavras, em que o olhar é a via
principal de relacionamento e individualização.
Voltando ao Pequeno Hans, fizemo-nos no ponto em que Freud diz que Hans estava
muito pesaroso por não ver os órgãos genitais dos pais. Na realidade, a visão dos genitais
tornava-se uma necessidade no sentido de que Hans pudesse encontrar a sua própria
identidade sexual, por comparação, estabelecer a sua individuação e delimitação do seu
esquema corporal, pois confundia seu esquema corpóreo com o corpo da mãe. Na realidade,
favorece esse tipo de confusão, tanto no menino como na menina, a ausência de seios nas
crianças, o que os leva à crença de que, com seu crescimento, haverá desenvolvimento do
pênis na menina e o dos seios no menino.
Passamos a relatar um exemplo, ouvido de uma paciente, a respeito de seu filho de
três anos de idade. Contava a mãe que o menino freqüentemente lhe mostrava o pipi,
pedindo que ela o segurasse. Certa ocasião, ele beijou e chupou os seus da mãe e solicitou
que ela fizesse o mesmo, oferecendo, como peito, o seu pipi. Pode-se ver que existe uma
indiferenciação entre o pênis e o seio. Os dois são objetos de amos e de prazer. Esse fato
ilustra a falta de confirmação do olhar e do enxergar confunde e leva as meninas a vicissitudes
diferentes, pois necessitam perscrutar o futuro para se delinearem sexualmente com seios que,
na verdade, são correspondentes corporais da sua capacidade de gerar bebês. Essa sensação
de falta é que leva as meninas a um sentimento de desvantagem e, muitas vezes, a
manifestarem o desejo de possuir um pênis (não destruí-lo), pois têm dificuldade de
diferenciar-se como pessoa e sexualmente, pois não conseguem envergar, ainda, o seu
esquema corporal completo.
Chamar a isto “inveja do pênis” parece questionável, pois, na verdade, trata-se de
uma defesa contra uma angústia mais profunda, desencadeada pela ausência de seios e pela
interrogação sobre a sua capacidade de gerar filhos.
A menina, ao fazer fantasia com pênis masculino, nada mais faz do que uma busca, na
tentativa de individuar-se, mesmo através do oposto, querendo, com isso, discriminar-se,
conquistar sua inteireza e identidade.
Parece ter ficado clara a importância que acreditamos ter o olhar, desde o
nascimento, na discriminação da realidade externa (objetos) e principalmente na diferenciação
do próprio “self” na delimitação do esquema corporal e, conseqüentemente, na identidade
sexual.
Talvez se possa compreender por que Édipo, ao tomar conhecimento de suas
relações incestuosas, vaza seus olhos como forma de castigo. Na verdade, com isso perde a
possibilidade de confirmar o seu “self”, impossibilitado que fica de discriminar a si e ao
objeto, ao mesmo tempo que abandona a capacidade de expressar a captar, através dos
olhos, os desejos incestuosos que o uniam à mãe. Não enxergar fora, simbolicamente, é uma
tentativa frustada de não enxergar dentro.
Ao vazar os olhos, Édipo busca a morte psicológica (castração). Ressaltando a
importância do ver e ser visto na vida emocional, furta-se da tentação e da visão do desejo da
mãe e da censura externa aos seus atos, retirando-se para o seu mundo interno e suas
próprias críticas, julgando, dessa forma, como os neuróticos, que será mais belevolente
consigo.
Em realidade, a morte psicológica é castigo menor que a morte biológica. Negar o
próprio “self” é negar os objetos através da cegueira, assemelha-se à morte biológica de não
mais ver e sentir o mundo.
Com isso, assinala-se que a percepção entre a vida e a morte ainda é uma função do
olhar. A visualidade da morte leva-nos a um processo de discriminação pessoal, o qual nos
confere um sentimento de vitalidade e individuação. Reconhecendo-a, o indivíduo é levado a
enxergá-la dentro de si.
A visão do morto rompe com a negação mais importante e universal: a finitude do
homem. O próprio Freud, embora tenha formulado a teoria do instinto de morte, nega a
existência da percepção (representação inconsciente) da própria morte, como a maioria dos
psicanalistas que não aceitam a existência dos instintos de morte e, com isso deixam de
analisar e tratar com os paciente os temores de morte biológica, mantendo-se piedosamente
(consigo mesmo) interpretando os temores de morte psicológica (castração). Talvez o
“santuário do ser inviolável” de Winnicott e a idéia de “análise interminável” estejam
relacionados com a necessidade de as pessoas acreditarem na eternização da vida, não indo
ao encontro do inevitável, que é a aceitação do ciclo biológico, por todos os meios evitado de
ser enxergado.
Finalmente, é oportuno lembrar que a pessoa precisa discriminar-se das demais para
ter a sensação de inteireza, da sua medida e de sua capacidade. Uma pessoa com a sensação
de indiferenciação discriminatória não poderá ter sensação de existir, de ter posse de si
mesma na administração dos seus bens internos, na singularidade de suas vivências e
individuação pessoal. Assim, seria como olharmos um canteiro cheio de flores com uma visão
compacta do todo, não discriminando a individualidade e os matizes particulares de cada
planta ou flor.
É necessário que o ser humano enxergue-se, para tomar posse de si, condição para
bem se administrar e conquistar sua inteireza, identidade e legitimidade pessoal.
RESUMO
SUMMARY
In the present communication, the author refers to a passage of “Little Hans” (Freud)
and develops, by bringing clinical examples, a study on castration, in the Oedipus complex and
points out the look as fundamental in searching identity/ individuation in the human evolution
from one’s birth to death.
Under hhis point of view, in his clinical experience, he suggests that Castration
Complex doesn’t occur by experiences of loss; but by sensations of lack; and that sexual
differentiation among children occurs by comparison (confrontment) and discrimination, ratified
by “looking at”. He also considers the look as preponderating in the psycho -biological cycle.
The author seeks in the Oedipus myth a reinforcerment for interrogations, for Oedipus
pierces his eyes, instead of taking off his genitals. In this communication the author reevaluates
the “seeing each other”elaborated by Winnicott (mother and baby).
Continuing his studies about “the look”, he inquires the penis envy by ilustrating it qith
clinical material and interrogating about the possibility of pennis envy being “taking possession”
(not demaging) of an identity of the opposite sex to feel oneself complete (entire), self-valuated
and complementary of a sexual identity, even if an illegiti-mate identity.
He reports, at last, to the personal discrimination experiences, giving it a feeling of
vitality and individuation: the very moment when death is seen outside.
Thus, recognizing death, the human beig searches to see it inside himself.
The author makes an evaluation of the difficulties in facing death as part of life, not
analysing the biological death but psychologicl death (castration).
He also reports the “sanctuary” of human being, inviolable and forever hidden in our
pith” (Winnicott) and the “endless analysis” mentioning these subjects not sufficiently inquired
as that which is difficult to be completed: to face and accept what can never be completed and
will always lack the eternization of life.
LEITURAS
Alberto Abuchaim
Analista Titular do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Pelotas e da
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Este artigo foi tema livre do XIII Congresso Brasileiro de Psicanálise
de São Paulo 1991.
A subversão do destino
Maria Eleonora Barbosa Mello
Serge Leclaire
RESUMO
SUMMARY
This paper is about the development of the concept of instinct in Freud work. It
analyses the dualistic proposition of this conception concerning mainly the death instinct and its
effects on the psychoanalytical praxis.
“y al volver La vista atrás
se vê La senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas em la mar”.
Machado, Antônio. Poesias. Editorial Losada, 1981, Buenos Aires, pág. 159.
“Provérbios y Cantares”, nº XXIX.
2 − Laplanche, Pontalis − “Vocabulário de Psicanálise” − 3ª edição, Ed. Martins Fontes,
1967, pág. 506.
3 − Freud, S. “Esboço de Psicanálise” − 1ª Edição, Eed. Imago, 1976, vol. XXIII, PÁG.
173
4 − Freud, S. “Além do Princípio de Prazer” 1ª edição, Ed. Imago, 1976, vol XVIII,
pág.53/54
5 − Freud, S. “Análise Terminável e Interminável” −1ª edição, Ed. Imago, 1976, vol.
XXIII, pág. 276
BIBLIOGRAFIA E NOTAS
ENTREVISTA
Joyce McDougall
TRIEB − Você escolheu como centro de suas pesquisas tudo que parece obstáculo ao
processo analítico. Você tem se interessado particularmente por pacientes que
apresentam distúrbios do narcisismo (os que precisam do outro enquanto espelho,
enquanto sustentáculo identificatório), pêlos pacientes somatizantes, pêlos adictos e pelo
que você denominou neo-sexualidades. Em suma, parece que o que mais vem atraindo
sua atenção é o que, geralmente, tem sido chamado de “inanalisável”, os denominados
“casos difíceis”.
TRIEB − Concordo com você. Sobre as neo-sexualidades, qual a diferença entre elas e
as perversões?
JMD − Eu falo em neo-sexualidade para evitar o termo perversão pois, em quase todas as
línguas, perversão tem um sentido pejorativo. Em português também, não?
JMD − Não se diz que o pervertido é um deus, que é a verdade, que é o “bem”. Ele é
sempre o “mal”.
JMD − Exato. E eu acho que o tom de muitos analistas, quando falam desses pacientes, é
realmente muito pejorativo. Falam como se fossem pessoas que fizessem mal às outras
porque não têm uma sexualidade dita “normal”. Tudo isso começou a me interessar eu me
deparei com pacientes com uma sexualidade extremamente complicada que tentei
compreender. Ocorreu-me que, no fundo, a neo-sexualidade seria uma tentativa desesperada
de ter uma vida sexual e amorosa, ainda que muito restrita. Essas pessoas não vinham à
análise para tratar de sua sexualidade. Elas simplesmente não falavam sobre esse assunto,
pois se sentiam ameaçadas de perder sua única sexualidade. Em geral, elas vinham à análise
porque não podiam mais trabalhar, produzir, tinham bloqueios intelectuais. Entretanto, após
algum tempo de tratamento, elas começavam a falar de sua vida sexual, e foi então que
comecei a compreender o sentido do que chamo neo-sexualidade.
JMD − Não. Acho que essa idéia nos impede de escutar realmente os conflitos de fundo.
TRIEB − Eu estou falando em termos das três estruturas: neurose, psicose, perversão.
Eu estava pensando em como Piera Aulagnier concebe a perversão.
JMD − Sim. Ela e eu debatemos esse assunto durante dez anos. Eu acho que o termo
perversão inclui um julgamento de valor, e não é da função do analista fazer julgamento de
valor. A gente está na relação para tentar compreender.
JMD − Eu me inspirei primeiro em Freud, que distinguia a perversão da inversão que era a
homossexualidade. A perversão é o fetichismo, o sadomasoquismo, o voyeurismo, etc... Eu
comecei a querer ter minha própria concepção e me ocorreu que o que se chama perversão é
quase sempre uma tentativa de estabelecer relações heterossexuais. É claro que, entre os
homossexuais, também há pessoas com essas características ditas perversas e que os outros
homossexuais criticam.
O que eu chamo de neo-sexualidade é a sexualidade inventada no sentido de a
sexualidade inventada no sentido de uma criação. E aqui eu tomo uma posição que não é a
de Fruem. Ele tinha tendência a apresentar os desvios sexuais como uma espécie de fixação
da libido em uma fase infantil como fixação oral, sádico-oral, sádico-anal. O que eu queria
sublinhar, entretanto, é que é mais uma re-invenção da cena primitiva.
TRIEB − Você teve alguma experiência de tratamento com crianças de que você se
lembre e que tenha correlação com o que você está dizendo?
JMD − Sim. Em certa época eu trabalhei com crianças. E gostei muito. Lembro-me de um
menino que me havia sido enviado porque vivia mostrando seu pênis. Sua mãe, ao chegar, foi
logo me dizendo: − “Não é possível que meu filhinho tenha problemas. Eu não compreendo
o que acontece com ele. Eu o eduquei de um modo tão puro!... Para começar, eu nunca lhe
dou carne para comer, para que ele não venha a ter um temperamento apaixonado...” Diante
disso, comecei a compreender que a mãe usava a criança para controlar sua própria
sexualidade. E ela continou: − “Sempre que ele tocava em seu sexo eu lhe dizia: − “Não
toque nunca nele. Ele é sagrado. Ele pertence a Deus’.” Um dia, ele lhe perguntou: −
“Como é que se chama?” E a mãe respondeu: − “Não tem nome .” O menino, então,
passou a chamar seu pênis de “sagrado”. Ela me disse isso para me mostrar como era boa
mãe e o quando tinha educado seu filho na pureza. Então, esse menino − se seu sexo não
tinha nome e não lhe pertencia − estava muito confuso. Ele não sabia se tinha ou não um sexo
e o mostrava sempre para que alguém reagisse e lhe dissesse que sim, que ele tinha um sexo.
Assim, ele tinha um sexo, seu sexo tinha nome e ele era menino como os outros. Esse menino
me ensinava muito em sua tentativa desesperada de encontrar uma solução.
Este exemplo é bastante simples. Mas quantas vezes a gente vê os adultos, por conta
de seus próprios conflitos, terem com os filhos uma conduta na qual ou bem não se fala em
sexo, ou bem ele pertence a Deus, ou bem o sexo não tem significado ou dizem “se tu te
tocas, tu és mau e vais para o inferno”. Desse modo, ter uma sexualidade não é só proibido,
é também muito perigoso. Eu tive pacientes com uma sexualidade muito complicada...
JMD − A criança não suporta que não haja limites. Fica numa angústia muito grande.
TRIEB − Eu me lembro de um artigo em que você dizia que hoje não se tem nem mesmo
o direito de fantasiar porque há de tudo nos filmes, nas “sexshops”...
JMD − A gente “compra” as fantasias. E isso traz problemas de outra ordem, cria re-
invenções, outras neo-sexualidades.
JMD − Sim. A mãe acha que pode solucionar tudo. Ela não deixa a criança encontrar suas
próprias soluções. A mãe se oferecer como uma droga. É como se houvesse um sexo para
dois. A sexualidade precisa ser arrancada da mãe.
JMD − O papel simbólico que ocupa o pai no imaginário da mãe é que é importante.
Freud disse que o desejo do homem é a mulher, mas que o desejo da mulher é ter um
filho homem. Eu não estou de acordo com isso. Acho que a mulher quer muito mais do que
só ter um filho homem.
JMD − É fácil. Ela quer ser amada e desejada. Por que esse mistério?
JMD − Os homens também. Mas há algumas diferenças. No caso da mulher, a vida libidinal
é preenchida pelo homem. Se uma mulher perde seu homem, ela perde sua imagem narcísica.
A angústia da mulher é sempre de ser abondonada. A angústia do homem é de ser
aprisionado.
TRIEB − Você acha que isso tem relação com a diferença anatômica?
JMD − Sim. O homem tem medo de cair numa armadilha, ao passo que a mulher tem medo
de cair no vazio. A mulher ocupa um papel muito importante na vida do homem, mas ele tem
necessidade de outras coisas. Ele tem necessidade de se relacionar com outros homens.
Embora a mulher também tenha relações muito importantes e muito ricas com outras
mulheres, o tipo investimento é diferente.
TRIEB − Nós gostaríamos de lhe fazer uma pergunta a propósito da pulsão de morte. É
claro que a sexualidade é uma pulsão de vida. Mas, como você falou, a gente vê nos
pacientes essa questão do vazio. A impressão que eu tenho é a de que nessas pessoas que
sentem o nada, o vazio, houve uma perturbação da pulsão de morte. Então, eu lhe
pergunto se, na relação entre a mãe arcaica e a criança arcaica, a sexualidade tem algo
a ver com a pulsão de morte.
JMD − Aqui há uma complicação que é o princípio de prazer. Qual é o papel da pulsão de
morte nesses casos? Eu não creio que a gente veja isso no nível das perversões. A meu ver,
os desvios sexuais constituem tentativas desesperadas de viver. A perversão está do lado da
vida. Quando não há mais luta, mesmo que seja via ódio, é que a gente se deixa morrer.
JMD − Ah! Sim. É uma tentativa de manter a identidade de sujeito. O psicótico luta por sua
vida. O neurótico luta por sua sexualidade.
TRIEB − Eu conheço o caso de uma jovem que de tão magra chegava a ser esquelética.
Algum tempo após a morte da mãe, ela engordou tanto que ficou obesa. Ela queria
fazer tratamento psicoterápico, mas não tinha condições financeiras para isso. O que
ela fez? Empregou-se como babá de um recém -nascido. A partir daí, ela começou a
nutri o bebê e a se nutri.
JMD − Claro! É preciso não idealiza a análise como terapia. Há pacientes e estruturas de
personalidade que não vão mudar com a análise. Psicanálise não é panacéia.
TRIEB − Além de nem todos os pacientes terem indicação de análise, esta não depende
nem da psicopatologia nem do número de sessões. Em nossa Sociedade, vem surgindo
ultimamente o interesse em distinguir psicoterapia de psicanálise.
JMD − A distinção é difícil. Mas o processo psicanalítico visa sobretudo tornar consciente o
que é inconsciente. Mas, seja psic oterapia ou psicanálise, a finalidade é a mesma. Às vezes,
a gente tem de reduzir os objetivos porque o paciente não pode suportar ir mais longe. Há
também pessoas que têm objetivos limitados, que querem apenas compreender uma situação
e que não desejam fazer análise. Certa vez, há vários anos, uma senhora perdeu um filho.
Algum tempo depois, ela teve um segundo filho que ela não conseguia investir afetivamente. E
ela me dizia: − “Eu não quero análise. Eu quero poder amar meu filhinho.” Ela não queria ir
mais longe e tinha todo o direito de limitar sua pesquisa. Após seis meses de trabalho, ela
estava feliz com seu filhinho e dizia: − “Eu estou bem agora.” Há pessoas que vêm uma vez
por semana ou mesmo de 15 em 15 dias e que entram em um verdadeiro processo analítico.
Por outro lado, há pessoas que vêm 3 e até 4 vezes / semana e depois de 3 anos não
disseram mais do que o que haviam dito na primeira semana.
JMD − Cada corrente psicanalítica dá diferentes respostas e essa questão. O fato é que há
pessoas que fazem progresso com analistas que tem técnicas extremamente diferentes. Nós
temos necessidade de teoria, mas não é a teoria o fator da mudança psíquica. Eu acho que
há algo de misterioso na relação analisando-analista. Muito do que de passa não pode ser
colocado em palavras. E também não são as interpretações que explicam todas as mudanças
psíquicas.
JMD − A gente, às vezes, encontra pela primeira vez palavras para experiências que jamais
haviam sido nomeadas.
TRIEB − Nós gostaríamos de que você falasse um pouco sobre os pacientes para quem
a mudança constitui um perigo para sua identidade, pacientes cujos sintomas
representam verdadeiras tábuas de salvação e que se aterrorizam com a idéia de
mudança.
JMD − Há pessoas que têm o que se chama “reação terapêutica negativa”. Quanto mais a
gente avança, a gente vê que da mesma forma que ocorre mudança psíquica, ocorre também
o inverso − algo de estático, que não se mexe. Mas a mudança pode se apresentar com uma
angústia muito profunda, com a sensação de que vai ser para pior ou de que vai trazer de
volta um traumatismo precoce insuportável.
TRIEB − É por isso que muitas pessoas deixam a análise, pelo pavor de mudar.
JMD − Sim. Essas pessoas poderiam ficar toda a vida em análise, desde que esta não se
mexesse.
TRIEB − Você pensa que, muitas vezes, isso seja responsabilidade do analista?
JMD − Certamente. Nós perdemos pacientes por causa de nossos próprios problemas. É
preciso que o analista não tenha bloqueios demais para que realmente possa escutar seus
pacientes. É evidente que todos nós temos nossa organização, nosso inconsciente, mas o
analista precisa ser “good enough” no sentido de Winnicott. Entretanto, mesmo um analista
“good enough” pode se enganar com um grande número de pacientes.
TRIEB − Desde que você começou a falar, tudo está sendo pontuado por palavras como
desafio, limite, limiar, o que escapa à compreensão, o que é inanalisável. Eu queria
fazer umas perguntas em torno disso. E a primeira é se não é exatament e nesse limiar
de coisas que é próprio do humano que se abre a compreensão.
JMD − Você quer dizer que os limites da análise são os limites do analista?
TRIEB − E o que você teria a dizer sobre a estrutura do masoquismo como limite do
analisável?
JMD − A gente agora está falando de outro modelo. E para falar de fenômenos psicóticos é
a mãe que investe em seu filho como um prolongamento de seu próprio narcisismo. Fala -se
muito do masoquismo de morte, mas também existe o masoquismo de vida. É preciso buscar
onde está esse prazer oculto. Que eu viva, que eu morra é indiferente, contanto que seja eu
que escolha a morte.
TRIEB − Nós gostaríamos de ouvir um pouco suas idéias sobre somatização.
JMD − Todo mundo somatiza quando as defesas habituais não são suficientes. Como se diz,
não é essencial estar deprimido para pegar uma gripe, mas que ajuda, ajuda. Os pacientes
somatizantes são pessoas que só têm essa maneira de expressar sua dor, que não podem
elaborar a dor de outro modo senão enviando uma mensagem psíquica bem primitiva que se
traduz somaticamente. O afeto tem um pólo somático e um pólo psíquico. Quando alguém
está com raiva o coração acelera, quando está triste tudo fica deprimido. Eu acho que a
ligação privilegiada entre o psiquismo e o somático é o afeto. Os pacientes somatizantes têm
uma espécie de cisão entre o psíquico e o soma. Neles, todo afeto é sentido como perigoso.
A psique envia uma mensagem muito primitiva e o corpo (soma) reage e se defende como se
estivesse em gende perigo. Eu dou o exemplo da asma, que é classicamente encarada como
psicossomática e que não tem nenhum sentido biológico. Tem um sentido, de alguma forma,
psíquico. Por que razão alguém deixaria de respirar, reteria sua respiração como fazem os
asmáticos? Só se estivesse dentro d’água, se tivesse mergulhado. Não de outro modo. Na
crise, a pessoa tem angústia, sufoca. É como se respirar fosse muito perigoso, tão perigoso
que é preciso reter a respiração. E qual é esse perigo? É um perigo traduzido por uma
linguagem muito arcaica de uma relação corpo-corpo com a mãe, com uma mãe que quer
respirar pelos dois e que acaba sufocando o filho com seu amor. O prazer de respirar se
torna perigoso. Há uma ausência de nível simbólico, uma falta de simbolização e uma reação
que eu chamaria de proto-simbólica. No caso da retocolite hemorrágica, por exemplo, a
pessoa evacua, evacua como se tivesse sido envenenada.
TRIEB − Existe o caso de um paciente que havia sido colonizado pela mãe. Não havia
delimitação territorial entre o corpo da mãe e o de meu paciente. Um dia, ele encontrou
uma pessoa e começa uma relação de tipo aditiva com ela. Tratava-se de uma mulher
psicótica que fazia escândalos que o incomodavam. Mas ele não conseguia romper com
ela. Tentava e não conseguia. Um dia, conseguiu. Rompeu com ela, mas deixou de vir
à análise. Deprimiu-se muito e teve ruptura de um vaso sanguíneo. Ele voltou depois à
análise e contou que sua mãe havia morrido por ruptuta de um vaso sanguíneo. Para
ele, o rompimento com a mulher fez com que ele rompesse algo em seu próprio corpo. É
como se houvesse uma linguagem arcaica do corpo.
JMD − Há (ela enfatiza) uma linguagem do corpo, e é talvez essa linguagem a única que não
mente. Existem pessoas, que eu chamo de normopatas, que podem até ser muito brilhantes
intelictualmente, mas que não pensam em suas angústias. Têm uma espécie de curto-circuito
da palavra e da simbolização. Falta -lhes simbolização ou possuem um simbolismo
extremamente arcaico. Poderíamos dizer mesmo, uma histeria arcaica. A psique envia sua
mensagem fechada primária e procura as partes frágeis do corpo. E são essas partes que
explodem primeiro quando há um estresse que supera a capacidade da pessoa de contê -lo.
JMD − Nesse caso, eu não estou me referindo à histeria clássica. A histeria é uma idéia que
se traduz corporalmente, ao passo que a somatização é um verdadeiro desregramento do
soma. Quero sublinhar que há um sentido a ser procurado, e que é uma protolinguagem.
TRIEB − No trabalho com psicóticos, a gente vê que há muitos, entre eles, que
somatizam em uma família − a avó morreu de câncer, a filha morreu de câncer e o
filho se casou com uma mulher que morreu de câncer. É uma história em que há uma
tal destrutividade que dá o que pensar. É de se perguntar se, tal como há uma espécie
de comunicação entre os membros de uma família psicótica, haveria um tip o semelhante
de comunicação entre as pessoas que somatizam. Parece que muitas pessoas se
relacionam a partir disso.
JMD − Conheço uma oncologista de Belo Horizonte que está em formação em Paris. Ela faz
parte de um grupo que pesquisa o câncer. Ela me falou sobre uma família em que a filha teve
câncer de mama e a mãe, nos 3 ou 4 meses seguintes, também teve câncer de mama.
TRIEB − O mais interessante não é a família em si, mas o fato de o rapaz escolher para
esposa uma mulher que desenvolve um câncer.
JMD − Bem, para começar, há analistas demais. Os analista jovens não têm pacientes. O
segundo problema é o reembolso quase total do preço que a Previdência Social faz aos
psiquiatras que, muitas vezes, não têm qualquer formação psicanalítica. Há muitas
Sociedades Lacanianas − talvez oito − que têm muitos membros criativos; entretanto, essas
Sociedades qualificam analistas com uma formação insuficiente. Isso influencia a opinião
pública e há muitas críticas na imprensa. As pessoas pensam: − “Por que fazer Psicanálise?”
É como nos EUA. Houve uma época em que todo mundo achava que devia se analisar.
Agora é o contrário. Tudo que é idealizado acaba ficando denegrido. E tanto uma coisa
como a outra, a meu ver, são lamentáveis.
JMD − No interior, eu não tenho a menor idéia. Em Paris, a Previdência Social reembolsa
180 F por sessão.
JMD − Não, nada mal. Na Clínica Social do nosso Instituto, o reembolso é de 100%. Mas
isso também cria problemas, pois o paciente acaba não se responsabilizando por nada. Há
pessoas que podem pagar bem e querem tudo por nada. Há outras que, sem isso, não
poderiam nem pensar no assunto. Esse sistema pode também impedir a expressão da
hostilidade. E há um momento em que a hostilidade transferencial é importante na análise. A
Previdência Social tem vantagens e desvantagens que ainda não foram suficientemente
estudadas.
JMD − Sim. De modo geral, são 3 por semana. É o estilo francês. Mesmo os Didatas
trabalham desse modo. Isso cria problemas com a I.P.A.
TRIEB − É, e vocês não são colonizados pela I.P.A. como nós. Vocês têm direitos...
JMD − (interrompe e diz) Não é bem assim. É mais complicado. De qualquer modo, a
I.P.A. presta grandes serviços à Psicanálise em termos mundiais.
TRIEB − Eu acho que a I.P.A. muitas vezes impõe coisas sem levar em consideração
cada situação local, as características de cada país.
JMD − Bem, realmente a I.P.A. deveria ter um papel de estímulo à pesquisa, um papel
científico, e não um papel de controle.
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PAINEL
O INCONSCIENTE
Painel realizado na SBPRJ em maio de 1991
Iniciar com o INCONSCIENTE tem por razão o fato de ser ele o conceito –
pedra fundamental – da psicanálise.
Uma grande parte dos textos filosóficos situa o sujeito autônomo face a uma
presença desconhecida, obscura, o inconsciente sendo definido apensas enquanto falta,
privação. Se, diferentemente da idéia de inconsciente em Freud, essa obscuridade
inconsciente não aliena o sujeito, e se por inconsciente compreende-se apenas o conjunto de
fenômenos que não dependem da consciência, nada mais verdadeiro do que afirmar que o
inconsciente não é uma descoberta freudiana.
É assim que o inconsciente conceituado por Freud vai marcar a terceira ferida
narcísica sofrida pela humanidade, que habita uma Terra que gravita em torno do Sol e cuja
origem não seria divina mas produto de uma evolução natural.
Se o inconsciente como tal é intemporal, ele carrega uma história, história esta
que se constitui em três etapas: o recalque originário, que inaugura a fixação entre a pulsão e
o representante da pulsão: o recalcamento “a posteriori”, que Freud chama de
propriamente dito, e que incide sobre as emanações desse representante já fixado, e,
finalmente, o retorno do recalcado através do qual essa história faz irrupção no tempo do
consciente sob a forma de atos lacunares que, como já dissemos, são testemunho do
funcionamento do inconsciente.
*****
Anos mais tarde, ao discutir a teoria do narcisismo (1914), Freud não deixa
dúvidas de que, além de estar formulando uma nova teoria, está reforçando a teoria básica
da histeria. Quando assevera que todo órgão pode se revestir de erogeneidade, confirma
ele e aprimora justamente a idéia segundo a qual o órgão não se restringe a uma dimensão
puramente biológica, pois a maneira pela qual se comportará irá variar de acordo com a
pressão libidinal sobre ele exercida.
Estrella Bohadana
*****
O INCONSCIENTE
Quando, convidado a falar sobre o Inconsciente, tentei iniciar a tarefa que me
propusera, devo confessar haver relembrado as ocasiões em que, no curso primário,
necessitava cumprir a solicitação de uma daquelas redações, de vinte linhas no máximo, sobre
um tema geral – o céu, por exemplo. O céu, sim, mas qual céu? O céu azul de um dia de
sol? O céu noturno, com a Lua e as constelações da Via -Láctea? O céu da atmosfera
terrestre, com suas diversas camadas de gases de diferentes composições químicas? O céu
metafórico das religiões?
Outra via possível seria relativa à estratégia que a análise pode tomar para
conseguir decifrá-lo, vencendo as resistências que, numa época mais antiga, baniram o
material ideativo e as estruturas afetivas para o interior de seus domínios. Estratégia essa que,
para alguns, deve ser suave e, até certo ponto, fabianamente contemporizadora, buscando
interpretar inicialmente os conteúdos do Pré-Consciente e, somente depois, as moções
pulsionais às quais estão enlaçados; e que, para outros, necessitará ter o ímpeto de um
avanço incessante rumo às “profundidades” mais remotas e nucleares.
Neste estado de perplexidade, ocorreu-me a idéia de tomar um caminho
bastante diverso, trazendo aqui o relato da experiência vivida por um uruguaio imaginário que
foi, durante 21 anos, contemporâneo de Freud no final do século passado, justamente à
época das primeiras descobertas do criador da psicaná lise em Viena. Vivendo no meio
culturalmente mesquinho de uma cidadezinha sul-americana, sua história é contada por Borges
em uma de suas ficções. O relato é curto: o narrador, um rapaz em férias no interior
uruguaio, encontra por três vezes o jovem Irineo Funes. Na primeira, galopando com um
primo, avista Funes, que também corre da chuva e que lhes responde que horas são. Na
segunda, três anos depois, sabe que o jovem Funes tornou-se inválido após uma queda de
cavalo e o visita para emprestar-lhe alguns livros
que possam distraí-lo. Na terceira, esperando receber os livros emprestados, vai ao rancho
de Funes, que, filho de pai desconhecido, mora só com sua mãe. O estudante em férias
surpreende-se com o que ouve: Funes, preso a seu leito de inválido, memorizou todas as
linhas dos livros e as repete de cor. Conversam durante a noite in teira e para seu espanto,
Funes lhe conta que, antes de ser derrubado pelo cavalo, havia vivido como cego, surdo,
estúpido e desmemoriado – olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia tudo ou quase tudo.
Com a queda, perdera o conhecimento; quando o recuperou, o presente passou a parecer-
lhe quase intolerável de tão claro, e também o passado lhe chegava cheio de nitidez.
Percebera que ficaria inválido – mas considerou que essa imobilidade representava um preço
pequeno para aquilo que adquiria: sua percepção e sua memória se haviam tornado infalíveis.
Podia recordar tudo: as linhas de espuma levantadas por um remo sobre um rio num dia
antigo, as formas das nuvens numa aurora passada, todos os sonhos que tivera, todas as
vigílias. Suas lembranças eram completas – “cada imagem visual estava vinculada a
sensações térmicas, musculares, etc.” Dizia a seu visitante: “Mais lembranças tenho eu
sozinho do que aquelas que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo”.
Irineo Funes era capaz de recons truir totalmente tudo o que havia visto
ouvido, sentido num determinado dia de seu passado. E um de seus projetos era o de
organizar todas as suas lembranças numa espécie de catálogo que abrangeria cerca de 70.000
delas, definidas por números. Para reconstruir cada um de seus dias, necessitava, porém, de
um dia inteiro – e assim passava os dias ocupado em seu leito. Dormir lhe era muito difícil,
pois dormir era distrair-se do mundo. Mas tinha a consciência de que a tarefa seria
interminável e, além disso, inútil. E pensava que, na hora de sua morte, não teria ainda
conseguido classificar todas as lembranças de sua infância. Com efeito, morreria dois anos
depois da última visita do narrador, na idade de 21 anos. Numa das últimas linhas do conto
de Borges, o estudante em férias diz suspeitar que Funes, apesar de sua imensa memória, não
fosse capaz de pensar, pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, é abstrair. No
abarrotado mundo de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”.1
E, naquilo que diz respeito a esse conceito, podemos situar três momentos
principais na obra de Freud, a cuja rápida revisão irei ater-me. O primeiro deles surge
quando o século começa e está expresso na “Interpretação dos Sonhos”– em cujas páginas
Freud demonstra que as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a
assistência da Consciência. Para explicar tais realizações, cria o modelo do aparelho
psíquico, regulador de tensões, composto por dois Sistemas: Inconsciente e Pré-Consciente.
O Sistema Pré-consciente possui o poder de barrar o acesso à Consciência aos produtos do
Inconsciente, filtrando tudo aquilo que provoque desprazer. Dispõe, para realizar essa tarefa,
de uma energia de catexias móveis que pode ser ligada aos produtos psíquicos ou deles
retirada. E é esse investimento de energia que faz com que uma determinada idéia permaneça
ou não num ou noutro Sistema. Sofrendo a rejeição de tal censura, o produto psíquico é
arrastado para o Sistema Inconsciente, onde permanecerá em estado de recalcamento. Lá
perdura, ides trutível – pois, no Inconsciente, nada tem fim, nada é passado, nada é esquecido.
Ávidas de revivescência, as lembranças censuradas, sob forma essencial, lutam para
encontrar expressão. Enlaçando-se aos produtos do Pré-Consciente, retornam durante o
sono, quando a Censura se enfraquece, retomando seu caminho em direção à Consciência.
Podem também retornar através dos sintomas neuróticos – também um escoadouro para o
material do Inconsciente. De tudo isso resulta que a consciência, até então vista como a
única expressão da vida psíquica, torna -se apenas um órgão sensório para a apreensão das
qualidades de prazer e desprazer. Assim, o Sistema Inconsciente contém tudo aquilo que é
inadmissível à Consciência; constitui-se, portanto, na base geral da vida psíquica. Seus
processos acham-se presentes no aparelho psíquico desde o início da vida. E aquilo que
descrevemos como nosso caráter baseia -se nos traços mnêmicos de nossas impressões
primeiras – precisamente aquelas, da primeira infância, que nunca ou quase nunca se tornam
presentes. 4
E, apenas para exemplificar algumas das muitas rotas seguidas por essas
reavaliações, poderíamos lembrar, por exemplo, Guntrip, para quem as observações dos
fatos clínicos efetuados por Freud são mais perduráveis do que muitas das teorias que
construiu para explicá-los. Assim sendo, acredita Guntrip que o Inconsciente como fato
clínico que pode mostrar-se bem mais durável do que o modelo teórico do aparelho psíquico
concebido por Freud para entendê-lo.8
2. NOTA: Poderíamos também imaginar que Funes não esteja de fato reconstituindo um
passado inevocável – mas, sim, criando, inventando, fabulando esse passado para fugir às
intoleráveis frustrações de seu presente. Impedido de toda e qualquer descarga motora,
refugia-se no mundo das percepções alucinatórias – como o bebê do exemplo de Freud em
“A Interpretação dos Sonhos”–, conseguindo assim temporariamente aplacar as tensões de
seu aparelho psíquico, de modo regressivo e precário.
4. Freud,S., “The Interpretation of Dreams”– “On Dreams”, S.E. IV,V, The Hogarth Press,
London, 1973.
NOTA: Seu capítulo VII se inicia com o conhecido episódio contado por uma pessoa em
análise, que o ouvira de um conferencista: Um pai, após a morte do filho, encarrega um velho
de velá-lo e vai repousar na peça contígua. Deixa a porta entreaberta, de maneira que possa
enxergar o quarto onde jaz o menino entre as velas acesas do velório. Exausto, adormece.
Sonha então que seu filho está em pé junto à cama, que o toma pelo braço e sussurra – Pai,
não vês que estou queimando? O pai desperta, nota o clarão no quarto onde jaz seu filho e
constata que o velho caíra no sono e que uma vela tomb ara e incendiava a mortalha e o
braço do menino. Freud nos traz esse episódio, aqui rapidamente resumido, para assinalar,
simultaneamente, a demonstração das complexas realizações do pensamento efetuadas sem a
assistência da Consciência; o caráter da realização de desejos do sonho (o desejo paterno de
ver seu filho vivo por mais alguns momentos); e a função de guardião do sonho
desempenhada pelo sonho (dormir por mais alguns instantes). Contudo, se tomarmos o
episódio todo, talvez possamos observar em seus três personagens já alguma antecipação das
três agências psíquicas que somente mais tarde seriam delineadas na 2ª Tópica. Com a
liberdade das analogias que Freud nos concede, talvez possamos considerar o velho
encarregado de cuidar do menino morto como uma representação do Superego; ao menino,
veremos como uma representação do Id, com suas pulsões vindas da infância. Num mesmo
aposento-Sistema, onde a morte não existe, o Superego não consegue impedir que a energia
(o fogo) carregue a figura do menino, que retorna à vida como as sombras da Odisséia. No
outro aposento, enfraquecido também pelo sono, o Ego adormece mas sem de todo perder
de vista as representações sensoriais (visuais, tácteis, talvez olfativas e auditivas) que lhe
chegam através da ponta entreaberta da Censura entre os dois Sistemas. Se essa analogia
parecer de algum modo despropositada, ela pode, porém, fornecer-nos alguma idéia da
relação entre os Sistemas e as agências da 2ª Tópica.
5. Freud, S., “The Unconscious”, S.E., XIV, The Hogarth Press, London, 1973. Pág.195.
6. Freud, S., “The Ego and the Id”, S.E., XIX, The Hogarth Press, London, 1973.
7. Freud, S., “Five Elementary Lessons in Psycho-Analysis”, S.E., XXIII, The Hogarth
Press, 1973. Pág.286.
8. Guntrip, H., “Psychoanalytic theory, Therapy and the Self”, The Hogarth Press, London,
1971.
NOTA: Nas páginas 6 e 7, Guntrip relata seu diálogo com um professor de psiquiatria. Este
lhe diz não existir autor mais facilmente utilizável para contradizer Freud do que o próprio
Freud. Guntrip considera essa observação como um tributo ao destemido pensamento de
Freud, cuja mente pioneira não se detinha nunca e permanecia em incessante movimento na
exploração dos desconhecidos caminhos da mente humana. Segundo afirma Guntrip, tal
pesquisa, por sua infinita complexidade, não poderia ter sido exaurida por Freud: desse
modo, parece-lhe ser mais importante determinar o rumo a que o trabalho de Freud pode
conduzir-nos agora – do que o ponto em que foi começado.
NOTA: Jean Schimek, analista de Connecticut (Estados Unidos), pode bem representar
aqueles que julgam haver Freud seguido um caminho racionalizador, tomando a cognição
adulta como fundamento e modelo implícito de todos os processos de pensamento.
Fundamentando-se em Piaget, parece-lhe oportuno questionar a noção de que o Inconsciente
seja continente de imagens específicas.
NOTA: No debate promovido pela A.P. americana, em 1975, coordenado por Wallerstein e
relatado por Applegarth, muitos analistas expressaram sua opinião de que a teoria da energia
psíquica somente pode ser mantida por seu apelo estético e por sua simplicidade. Seu valor
seria apenas o de uma metáfora. Outros, contudo, contradizendo essa opinião, retrucaram
como Emmanuel Peterfreund: “Toda teoria é uma metáfora, por que deveríamos temer as
metáforas? São ficções úteis e delas necessitamos para expressar-nos”. A intervenção de
Merton Gill talvez sintetize o resultado dos debates: “...discussões sobre Energia Psíquica são
como discussões sobre religião ou política: ocorrem disputas, muito calor é gerado, mas
nenhuma opinião se modifica”.
11. Freud,S., “New Introduc tory Lectures – A Weltanschauung?”, S.E. XXII, The Hogarth
Press, London, 1973. Pág.174.
NOTA: Entre tantas outras notáveis reflexões de Freud sobre a ciência, podemos ressaltar
sua observação de que o pensamento científico é ainda muito recente entre os seres humanos,
existindo assim inúmeros grandes problemas que a ciência não foi capaz de resolver. Entre a
morte de Newton e a realização de “Uma Concepção do Universo?” passaram-se, como
lembra Freud, ao redor de 200 anos; pouco mais de meio século separa o fim de Freud e a
Psicanálise de nossos dias.
*****
O INCONSCIENTE
2. Estabelece que esse material pode ser inferido do que é observado pelo sujeito ou
acompanhado através dos seus efeitos, como as lacunas nos atos psíquicos, parapraxias,
sonhos, sintomas de doenças ou distúrbio mental, idéias e fenômenos obsessivos que de
modo incisivo e inexplicável intrometem-se na atividade e no pensamento, e, sobretudo, os
fenômenos pós-hipnóticos que tanto impressionaram Freud.
3. Afirma que as regras regendo o que é observado são diferentes daquelas para o
não observado, daí decorrendo as magníficas descrições dos processos primário e
secundário.
4. E por último faz uma distinção sistemática entre o observado e o não observável
(como os instintos).
André Green recomenda que tal leitura não pode ser feita senão simultânea e
sistematicamente desde uma tripla perspectiva: tópica, dinâmica e econômica.
O conceito do mundo interno foi por ela alargado e preenchido por toda uma multidão
de objetos (parciais, fragmentados, totais, bons, maus, etc.).
*****
(Heads I win; tails you lose”, citado por Freud em Construções em Psicanálise)
Este não é um problema novo para o pensamento ocidental – nova será a solução
freudiana. Aristóteles afirmava a impossibilidade de conhecer o sensível pelo sensível e que,
partindo-se da experiência da sensibilidade, não se alcança a essência das coisas por nenhum
processo contínuo.
Mas isto não esgota o trabalho do analista, uma vez que o inconsciente não é
somente lugar do que reside. “El psicoanalista termina una construcción y la comunica al
sujeto del análysis de modo que puede actuar sobre él; constituye entonces otro fragmento
con el material que le llega, hace lo mismo y sigue de este modo alternativo hasta al final. Si
los trabajos sobre técnica psicoanalítica se dice tampoco acerca de las ‘construcciones’ es
porque en lugar de ellas se habla de las ‘nterpretaciones’ e de sus efectos. Pero creo que
‘construcciones’ es desde luego la palabra más apropriada. El término ‘interpretación’ se
aplica a alguna cosa que uno hace com algún elemento sencillo del material, como una
asociación o una parapraxia” (Freud,S. - “Construcciones en Psicoanálisis”, pág.3367,
Biblioteca Nueva, vol.III). A construção é, pois, um trabalho preliminar, onde o analista
oferece elementos à cadeia associativa. Não as interpreta, mas age nelas. Lança olhares
sobre o que não pode ver, baseado em suas premissas teóricas e naquilo que recolheu da
experiência mesma do paciente. (Ver comparação com delírio do referido artigo). O
analista oferece um sentido e acompanha seus efeitos pelo caminho que a resistência marca
até os limites da construção. Então, oferece outra.
Mas isto ainda não é suficiente para produzir efeitos de verdade, nem
mudanças no viver do sujeito. Estamos até agora falando sobre o representante ideativo da
pulsão. Resta-nos falar sobre o representante efetivo da pulsão. É pela via da transferência
que o representante afetivo da pulsão faz do inconsciente ato – uma vez que como afeto não
se representa no inconsciente. O afeto, em Freud, não pertence ao domínio das
representações, mas ao jogo de forças pulsionais, concreto. Ato mediante o qual o analista,
com sua presença, é capaz de alterar os lugares de investimento da pulsão. Ato -transferência,
onde o verbo encontra sua carne. Lugar por onde o inconsciente se atualiza e ganha efeito
de verdade. Aqui, a dimensão da transferência não nos interessa como um elemento a mais
da cadeia associativa. Importa-nos na medida em que impõe, a partir da presença do
analista, um deslizamento dos investimentos, uma mudança concreta dos seus lugares. Aqui, o
desejo do analista desempenha um papel preponderante, pois cada tratamento confronta-o de
modo diferente.
MEMÓRIA
Apresentação
Antes de iniciar esta breve apresentação, quero me congratular com a direção da TRIEB pela
iniciativa de publicar trabalhos de antigos analistas da SBPRJ. Afinal, o que estamos fazendo
hoje de novo, começou há tempos, em nosso passado.
Manoel Thomaz Moreira Lyra nasceu no Maranhão, em 1919. Iniciou o curso médico
em Salvador e concluiu-o no Rio. Praticou a Psiquiatria e fez parte do grupo de pioneiros que
se organizou para fundar o que viria a ser a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro. Em 1953, viajou para Londres, onde, por cinco anos, teve Paula Heimann como
analista.
Sua formação na Sociedade Britânica de Psicanálise incluiu supervisões com M.Klein,
Winnicott, Thorner, entre outros. Voltou para o Brasil em 1958. Foi um admirador do
pensamento de M. Klein e um dos principais divulgadores dessa corrente psicanalítica entre
nós. Praticamente não escreveu. Sua influência se construiu sobre uma extensa experiência
como analista clínico e supervisor, em que se combinavam reconhecido talento pessoal e
firme coerência teórica.
Esse texto, escrito no início dos anos 60, revela, de modo bastante fiel, alguns
aspectos de seu pensamento psicanalítico e mesmo de sua pessoa. Ler “Notas sobre
Regressão...” será uma boa maneira de ser apresentado ao Dr. Lyra e uma oportunidade a
mais, para seus amigos, de lembrá-lo com saudade.
MEMÓRIA
Conceito de Regressão
Como o termo regressão tem sido usado em psicanálise com vários sentidos, faz-se
necessária uma ligeira delimitação do mesmo, tal como eu usarei aqui, advindo tal
necessidade também da natureza das sugestões teóricas que pretendo oferecer.
Usarei o termo em um sentido genérico, não havendo intenção de atribuir ênfase a
qualquer aspecto particular do conceito. Assim, em nenhum ponto emprego o termo como
equivalente ou quase de regressão da libido, ou do ego ou das relações de objetos,
salvo quando explicitamente declarado.
Procurarei manter excluído do conceito, tanto quanto possível, qualquer elemento que
implique julgamento de valor, não raro demasiado incluído nele.
Em suma, usarei o termo regressão no sentido de retorno de (ou a) processos e
estruturas psíquicas pertencentes a fases passadas do desenvolvimento mental.
Evito aqui a tentação de facilitar essa delimitação por meio da contraposição de
progressão e regressão, 1 pois acho o conceito de progressão de definição mais difícil, se bem
que, talvez, mas fácil de dispensar definição.
Usarei, contudo, o conceito de progressão, indispensável às considerações sobre sua
relação com a regressão, como acima referi, e pautarei a delimitação de seu conteúdo pelo
que disse acerca da regressão.
Mencionarei de passagem aqui mais um só do termo progressão em psicanálise que
não se inclui no conceito tal como o emprego aqui. Refiro-me à denominação de progressão
para, por exemplo, a passagem de uma condição ( ou estado) depressiva para uma
depressivo para um esquizo-paranóide.
Os autores que dão ao termo tal uso falam da saída da depressão, através da
regressão, para a condição esquizo-paranóide e, através da progressão, para a mania. Nesse
modo de utilização do conceito parece-me emprestar-se a ele um caráter demasiado
descritivo e ignorar-se a natureza regressiva dos fenômenos maníacos com relação à
depressão. Dinamicamente assim como geneticamente a única saída da condição
depressiva que merece o nome de progressão (isto é, que não é regressiva) é a que se liga à
reparação e integração do ego e dos objetos internos. A passagem para um estado maníaco
ou para um estado esquizo-paranóide são duas formas de regredir a partir de condições
depressivas não toleradas pelo ego.
Capacidade de Regredir
Sob esse título procurarei estabelecer certas relações entre algumas idéias referentes
aos seguintes itens:
(a) regressão e normalidade psíquica
(b) regressão, maturidade e coesão do ego
(c) regressão, flexibilidade e reversibilidade
(d) formas de participação do ego na regressão
(e) capacidade de resistir à regressão
(f) capacidade de regredir.
Como meu propósito é mais sugerir do que apresentar um pensamento mais
sistematizado, a exposição será feita sob a forma de uma série de formulações:
(a) A capacidade de resistir as condições promotoras de regressão é geralmente
aceita como um atributo de maturidade ou estabilidade do ego.
(b) É indiscutível que todas as pessoas normais podem ocasionalmente apresentar
manifestações de natureza regressiva semelhantes às observadas em condição patológica, ou
seja, normalidade estatística dos fenômenos regressivos.
(c) Essa idéia é muito próxima da outra, isto é a de que certos fenômenos normais
“fisiológicos” teriam uma natureza ou forma regressiva, ou seja, a normalidade
fenomenológica.
(d) Uma outra idéia é a capacidade de regredir. Se tomada como um atributo de
maturidade do ego, 3 poderá ser considerada em conflito com o conceito de regressão
adotado por aqueles que vinculam mais estreitamente regressão com o patológico. Essa
capacidade de regredir pode ser examinada sob vários ângulos:
i) Capacidade de permitir que a regressão se estabeleça, que está mais ligada à idéia
de flexibilidade;
ii) Capacidade de tolerar as manifestações regressivas já estabelecidas, mais ligada
às idéias de coesão do ego;
iii) Capacidade de promover ou condicionar ativamente a regressão.
Resumindo até aqui, podemos dizer que a regressão é um fenômeno normal
estatisticamente para outros; a capacidade de resistir à regressão e de regredir à
regressão e de regredir são atributos de maturidade para uns, ao passo que, para outros,
apenas a primeira pode ser assim considerada.
(e) A regressão em uma personalidade “normal” terá de ser (salvo em situações
muito excepcionais) limitada na extensão ou duração, ou ainda, em ambas. Fatos clínicos
não deixam dúvida de que, em certas regressões em indivíduos mais integrados, o ego tem
uma participação ativa. Isso significa que ele participaria simultaneamente como agente (
ou condicionador) e paciente do fenômeno. Os mecanismos de “split” de ego e das relações
de objeto estariam envolvidos aqui de maneira especial. O grau de participação ativa do ego
parece menor nas regressões mais patológicas.
(f) A limitação do processo regressivo no tempo inclui a idéia de reversibilidade.3
Se admitirmos que, nos indivíduos mais integrados, o ego participa mais ativamente do
processo, poderemos falar de uma capacidade de promover (ou condicionar) essa
reversão, o que poderia ser considerado como um atributo de maturidade semelhante à
capacidade de resistir à regressão.
(g) A admissão1 ou não7 de um papel ativo do ego no processo regressivo se liga a
diferentes de procedimentos técnicos. Winnicott, por exemplo, fala da capacidade de o ego
(mais integrado) cuidar de seu aspecto regredido da mesma maneira que a mãe carrega a
assiste a criança. Se não há ego integrado suficiente para desempenhar esse papel de mãe, o
analista teria de assumir essas funções.
(h) Parece lógico pensar que uma capacidade de regredir nos termos em que nos
referimos acima depende, paradoxalmente, da capacidade de resistir à regressão. Se
procurarmos apoio no conceito de “split” do ego, podemos conjecturar que, nas
personalidades mais próximas da normalidade, seria exatamente a coesão de uma parte do
ego que tornaria possível a regressão de outra, isto é, essa regressão que se poderia
qualificar de “normal” ou “fisiológica” ou ego-sintônica. Menos paradoxalmente, ela
dependeria da capacidade de reversibilidade.
(i) Inversamente, a capacidade de resistir a regressões mais patológicas nas pessoas
normais estaria ligada a essa flexibilidade regressiva de seus egos (incluindo-se aí as idéias de
capacidade de admitir, condicionar, promover e tolerar regressões e da capacidade de
sair dela).
(j) O critério de avaliação do grau do caráter patológico de um fenômeno regressivo
deveria basear-se mais nas características do fato particular do que na natureza regressiva do
mesmo.
Regressão e Progressão
Esse modo de ser estaria em concordância com as linhas gerais dos conceitos mais
genéticos e dinâmicos da regressão tal como apresentado anteriormente. Ele poderia, a meu
ver, ser considerado como uma conseqüência lógica do desenvolvimento do pensamento
naquelas linhas conceituais.
Voltemos à situação analítica.
Sugiro que, pelos menos em algumas de suas manifestações clínicas, progressão e
regressão possam ser consideradas como dois aspectos de um mesmo fenômeno, ou dois
tempos de um mesmo processo. Muitos outros fenômenos psíquicos podem ser
considerados nesse jogo dialético com seus opostos, tais como “split”-integragração,
introjeção-projeção, etc.
Várias implicações de ordem terapêutica estariam contidas nessa hipótese. Por isso,
suponho que o melhor conhecimento dessa relação pode trazer -nos esclarecimentos de
considerável valor prático, além daqueles de interesse teórico.
O fato de que pacientes com freqüência reagem negativamente a experiências de
progresso na análise tem merecido muita atenção dos psicanalistas em vários de seus
aspectos, e muito se tem aprendido sobre o assunto. Aqui, porém, só estou considerando as
situações que envolvem regressão de maneira especial.
Podemos agora confrontar duas idéias muito familiares e de aceitação unânime por
todos nós:
1º É necessário regredir para progredir (no tratamento analítico).
2º A progressão com freqüência promove (acarreta, provoca ou condicional) a
regressão.
É minha impressão que o exame da complexa relação entre os dois grupos de dados
empíricos em que essas idéias se baseiam poderia fornecer elementos para melhor
compreensão dos fenômenos ligados à regressão na situação analítica. Há várias conexões
com a hipótese que sugeri acima.
A idéia de que é necessário regredir par progredir foi apresentada anteriormente, ao
examinarmos as variações técnicas com relação à regressão. Ela é a base de algumas dessas
variações, na medida em que inerência e essencialidade, de um lado, a acidentabilidade e
contigência, de outro, estão implícitas. Não obstante essas diferenças conceituais, sabemos
que é unanimemente admitido o aspecto regressivo implícito na atitude de todo indivíduo que
se dispõe e a ser analisado.
No caso de formações patológicas mais estruturadas sob a forma de traços
caracterológicos, fica difícil distinguir esse fenômeno regressivo básico, unanimemente aceito
como necessário, daquele outro, igualmente necessário à operação terapêutica, que é a
transformação da estrutura em formação sintomática propriamente dita.
O material clínico de um dos pacientes que apresentarei a seguir permitiria igualmente
outra formulação em conexão com essas, ou seja, é preciso progredir para poder regredir.
Deixada dessa forma, a afirmação pode parecer um truísmo. Essa impressão, contudo,
poderá ser modificada se levarmos em conta as várias idéias nela implícitas, e não somente a
de ser necessário ter progredido previamente, e de haver capacidade potencial para
progredir, mas também a sugestão de que progresso potencial ou manifesto é condição ou
fator de regressão em uma variedade de formas. Aqui, porém, chega-se a um ponto em que
sinto ser muito arriscado tentar demasiado ser mais claro ou sistemático.
Material Clínico
Paciente H.
Depois de compor e escrever o material clínico desse paciente, material aliás muito
ilustrativo para as teses que aqui apresento, dei-me conta de que não poderia incluí-lo neste
trabalho. Os trechos mais demonstrativos deixavam o paciente muito exposto e facilmente
identificável, dada a sua posição social. Um esforço que fiz no sentido de melhorar essa
situação mostrou-se inútil, pois o material ficou tão mutilado que perdeu seu valor
demonstrativo.
Paciente M.
Trata-se de uma adolescente cujo tratamento se caracterizou por um rendimento
terapêutico muito baixo durante muitos meses. Essa primeira fase do tratamento não tem
especial interesse para o nosso tema, e a descreverei de maneira sumária.
A paciente vivia em estado de regressão quase permanente na situação analítica.
Esses aspectos regressivos eram, naturalmente, parte mais ou menos explícita de sua
psicopatologia anterior ao início do tratamento, havendo apenas uma concentração dos
mesmos em certa fase, na relação com o analista, onde assumiram também certas formas
especiais e adquiriram especial intensidade.
Havia muito pouco de adolescente em seu comportamento nas sessões. Ela vinha ora
como uma criança pequena incontinente, ora como uma menina fálica, rude, exibicionista e
despudorada. A sala de análise ficava, muitas vezes, em estado difícil de ser preparada para
uso com outra criança, pela sujeira ou destruição causadas. O mesmo se poderia dizer do
estado em que ela, às vezes, deixava o analista, por fora e por dentro. Várias vezes móveis
foram quebrados, gavetas de outras crianças arrombadas e eu também fui machucado ou
ferido.
Havia, além disso, uma apreciável quantidade de “acting-outs” fora da sessão
analítica, alguns de natureza tal que os tornavam passíveis de acarretar sérias conseqüências
para sua vida e de outros, o que não raro me deixava bastante preocupado com ela fora da
hora de análise.
É, porém, a fase em que a paciente começou a apresentar expressões genuínas de
modificações de sua personalidade que nos interessa aqui, ou seja, a transição entre o estado
acima descrito e uma nova condição, em que apreciáveis progressos terapêuticos que ela
havia feito adquiriam relativa estabilidade.
Essa fase de transição caracterizou-se por uma longa série de curtos avanços e recuos
que não examinarei aqui em detalhes, mas aos quais voltarei mais tarde.
Examinemos a situação observada mais tarde. Ela agora já poderia se comportar mais
como uma adolescente durante períodos cada vez mais longos. Por essa época a vi corar pela
primeira vez. Durante esses períodos havia intensa vida interior, somente revelada por sinais
leves. Tornava-se, às vezes, discreta e exteriormente quieta, romântica e sonhadora. Sua
feminilidade passou a fazer-se manifesta sob várias formas, às vezes revestida de um pudor
até então desconhecido e, em outras, delicada e maternal.
Fazia -me agora confidências sentimentais, às vezes escondendo o rosto. Por outro
lado, empenhava-se em uma série de novas atividades nas sessões, principalmente de ordem
doméstica ( tricô, pequenas costuras, etc.).
Houve um discreto florescimento de interesses estéticos e intelectuais, aos quais ela
procura agora dar mais de si própria, em tempo e esforço. Seu rendimento escolar também
melhorou. Como referi acima, no início desse período ela voltava com freqüência às
condições de regressão acima descritas.
O tricô é o ponto que usarei como centro de minha ilustração. As primeiras tentativas
de fazer tricô que merecem menção aqui foram feitas no decorrer desse período de transição.
Havia muita insegurança, negação de sua inabilidade, onipotência, perfeccionismo, rivalidade e
triunfo ligados a esses primeiros ensaios. Cada erro a iniciava em uma série de medidas
corretivas que a conduziam, com freqüência, a desfazer todo ou quase todo o trabalho feito.
A lã se embaraçava em um monte confuso e terminava por ser inutilizada em toda aquela
porção. Nesse ponto ela desistia e ficava discretamente deprimida ou adotava uma atitude
maníaca e tripudiava sobre o tricô e o analista. A peça de tricô que ela pretendia fazer era um
casaco para uma criança pequena, mas muito tempo ainda teria que se passar antes que
aquela criança pudesse ter justificada esperança de vestir aquele casaco.
Saltarei agora um período de tempo no desenvolvimento desse processo de
aprendizagem. “Já posso até fazer sem olhar”, mostrou-me um dia muito satisfeita. Fazer sem
olhar, tal como havia observado em pessoas hábeis nessa arte, havia sido uma ambição
longamente alimentada por ela.
Havia apreendido, porém, muito mais do que isso: aprendera a errar no tricô. Havia
adquirido a capacidade de tolerar seus erros e repará-los, de desmanchar a parte errada do
casaco sem desmanchá-lo totalmente. Também se havia tornado mais capaz de admitir erros
irremovíveis (ou demasiado difíceis) e deixá-los como estavam sem que seu amor pelo
casaco ou interesse pelo trabalho fossem muito afetados. Podia agora cometer mais erros,
não só porque se sentia mais capaz de reparar muitos deles, desmanchando-os
disciplinadamente, mas também porque era capaz de deixar de consertar outros. O casaco
mesmo com certos erros, podia agora ser amado e fazê-la orgulhar-se dele, no que havia de
certo. Até orgulhava-se igualmente dos próprios erros do casaco. Ao mesmo tempo, ele
tinha, agora, muito menos erros.
Esse fato, aparentemente banal, tinha imensa importância para ela, importância esta da
qual se deu conta progressivamente, através de um período de trabalho analítico que se
caracterizou por alto índice de rendimento terapêutico. Depois desse episódio, ela se
apresentava naquelas condiç ões modificadas que descrevi acima.
Examinemos um pouco alguns dos fatos ocorridos dentro desses período, pois acho
que a paciente tem, com eles, algo a dizer-nos sobre meu tema.
“Olha aqui”, dizia-me mostrando o trabalho certa vez, “preste a tenção, vou lhe
explicar. Errei aqui; agora tenho que desmanchar até esse ponto e fazer novamente.
Compreendeu?”
Às vezes essas explicações eram dadas com um empenho e insistência aflita que a
faziam até trocar as palavras. Eu era, naturalmente, naquele momento, a criança dentro dela
que não sabia ainda ou não acreditava que era possível desmanchar uma parte sem produzir
desintegração total, e ela precisava convencer-se de que isso era possível, convencendo-
me.
Por vezes, no meio de um desses empenhos em mostrar-me o que estava
acontecendo, de demonstrar e persuadir-me, ela se dava conta, após um interpretação, da
relação que estava vivendo comigo e interrompia com um sorriso de leve embaraço.
Um dia mostrou-me que agora era capaz de desmanchar duas ou três carreiras da
superfície para a profundidade e refazê-las corrigindo um erro que havia ficado “lá no
fundo”. Isso significava que, a certa altura, o tricô ficava dividido em duas partes em uma
apreciável extensão.
De outra feita trouxe novo trabalho onde havia pontos diferentes. Trabalhava sentada
no divã, quieta, em atitude meditativa. Nessa posição, falou com voz pausada: “Essa parte
aqui custei a aprender, até que descobri que é um ponto para a frente, um ponto para trás.
Agora é fácil”. E, depois de breve pausa: “Olhei! Um para a frente, um para trás. Viu? E vai
crescendo! Engraçado, não é?” Ainda mais tarde (depois de vários tópicos surgidos na
sessão): “Olhe! Errei aqui porque me esqueci daquilo; fiz vários pontos para a frente. Às
vezes faço vários para trás. Mas, agora, posso desmanchar, não é?”
Não me deterei em considerações sobre o significado desse material porque é tão
claro, principalmente seu conteúdo simbólico, que todos podem ver suficientemente, mesmo
com pouco conhecimento do paciente, o que nos interessa.
As interpretações eram ouvidas em silêncio. Um engolir em seco, um enrubescer ou
um sorriso contido eram as únicas indicações imediatas de como aquelas estavam
repercutindo dentro dela. Uma vez lhe vieram lágrimas aos olhos quando, ao referir-me aos
movimentos para diante e para trás em sua personalidade e na relação comigo, fiz menção em
particular à sua intolerância para com alguns importantes pontos para trás ocorridos em sua
vida ultimamente.
O tricô, porém, continuou sendo um importante meio de expressão do tema e de
resposta às minhas interpretações. Novos ângulos, novos detalhes e uma progressiva
modificação de sua relação com o tricô, com o mundo externo e consigo própria se
processava nas linhas descritas acima.
Mais tarde, em relação com a minha mudança e a nova posição do consultório de
crianças, que agora ficava ao lado do consultório de adultos e, nos primeiros dias, ligado a
este por um arco sem porta, ela fez vários episódios regressivos de uma intensidade que já se
havia tornado rara. Durante estes últimos, os movimentos para a frente e para trás assumiram
o significado de um coito persecutório em contraste com o bom coito reparador e criador
de filhos que representaram várias vezes ao qual ela dirigia ataques com fezes e urina.
Esses novos episódios tinham, contudo, características que poderiam ser consideradas como
expressões de novo arranjo estrutural de sua personalidade e novas bases em suas relações
de objeto. O objeto. O progresso em sua capacidade de simbolizar tornou possível a
expressão de suas fantasias em nível mais compatível com a preservação simultânea da
integridade de seus objetos internos e externos. Por exemplo, ela foi hostil comigo, mas não
procurou me atingir fisicamente como fazia antes. Fez um pênis de massa plástica,
ridicularizou-o e cuspiu nele, em lugar de cuspir em mim como habitualmente fazia nessas
ocasiões.
Para exprimir um aspecto dessa nova condição em termos mais ligados ao meu tema,
havia agora dentro dela uma “pessoa” tomando conta da regressão. Ela podia, assim,
desmanchar uma parte do tricô dentro de si sem se desmanchar toda. Ela havia adquirido
uma nova capacidade de regredir e isso, sem dúvida, constituía o elemento central daquele
progresso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RESENHA
Já o artigo de J.Birman, que, pelo seu título, “Nem todos os homens são mortais”,
insinua um distanciamento da lógica formal para reger as comunicações institucionais,
apontando para o paradoxo de uma lógica de característica narcísica marcante, é instigante
quando se propõe a “depreender alguns traços que marcam o território do inconsciente nos
trópicos e surpreender sua face”. Indagando-se sobre a modalidade de difusão no social,
observa a disseminação da psicanálise “sem muita oposição e resistência”. E, ao constatar
de que forma a psicanálise é consumida “como um bem de salvação, como se fosse uma
dádiva divina”, conclui que “estaremos mais próximos da verdade se evocarmos a dimensão
antropofágica da cultura brasileira, que devora tudo aquilo que se apresenta como fascinante
que seja oriundo do cenário mágico do primeiro mundo, para vomitar depois com a mesma
rapidez e sofreguidão com que se banqueteou, para deslocar a boca faminta para um outro
objeto de sedução que se perfila no mercado simbólico dos bens culturais”. Além dessa
preciosa aproximação ao fenômeno da expansão do campo psicanalítico na cultura brasileira,
o artigo fornece outras hipóteses, apoiadas na história das duas últimas décadas, que
possibilitam uma vertente de compreensão para as mudanças realizadas dentro das instituições
filiadas à IPA. O texto oferece uma proposta de reflexão crítica mas otimista, pois “é
fundamental que possamos escrever uma outra história, pois essa história que estamos
repetindo não é rigorosamente a nossa”.
O debate sobre a questão da transmissão ainda se segue por vários autores, devendo
ser também ressaltado o artigo de Tania Coelho dos Santos sobre as Weltanschauungen
psicanalíticas contidas no imaginário social e que convertem a psicanálise numa promessa de
felicidade e que devem ser tomadas em consideração para a compreensão da difusão e
demanda. “Admitir a heterogeneidade do campo psicanalítico significa também reconhecer
que ela é humana, demasiadamente humana”, aponta Benilton Bezerra Junior, discutindo a
importância de abandonarmos uma crença em uma teoria que atenda à aspiração escolástica
de absoluta completude. A aceitação das divergências, o despojamento de posições
doutrinárias são mais uma vez apontados como desejáveis, e também causa dos movimentos
de cisão que se reproduzem ad nauseam , sempre escudados numa busca de legitimidade que
obriga a uma nova diáspora os não escolhidos.
A entrevista com Jurandir Freire, conhecido por sua coerência e consistência teórica,
sempre a trabalhar os temas marginais, de abordagem delicada e complexa, é o próprio
espelho do ANUÁRIO. Tentando uma revalorização do imaginário, naquilo que a teoria
lacaniana, a seu critério, melhor trabalha o narcisismo, apresenta sua questão com o
estruturalismo, enquanto tomado pelo pensamento psicanalítco, de forma simplificada, como
um idealismo cientificista. Seria impossível, para os propósitos desta resenha, desdobrar os
comentários que seriam necessários para alcançar a dimensão que essa questão, levantada
por J. Freire, vai atingir no campo psicanalítico, com suas atuais dissenções e ideário
absolutista. Não menos interessante é sua pesquisa sobre o conceito de homossexualidade,
“um peixe comprado pela psicanálise a partir da ideologia do século XIX”. Mas é no final
da entrevista, quando fala sobre a necessidade de resgatar-se o ideal para... “poder dar conta
de uma ética que não seja pura e simplesmente a do desejo. Com a ética do desejo, posso
analisar, mas não posso organizar uma visão de mundo que permita dizer isto é bom, isto é
mau”, que J.Freire se propõe como o psicanalista engajado na crítica a uma cultura do
individualismo, da permissividade. E, também, é com esse lugar, de preservação de uma ética
necessária ao convívio humano, de resgate da Psicanálise como humanidade útil, que se
compromete o ANUÁRIO, publicação das mais importantes surgidas nos últimos tempos,
para o campo psicanalítico.
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L’Inconscient et le Ça
(O Inconsciente e o Isso)
Sergio Costa de Almeida
A segunda parte da obra enfoca o Id, traduzido em francês por “ça”, da palavra
alemã Es (pronome pessoal neutro) utilizada por Freud. Procurando justificar o equivalente
“ça” para o alemão “das Es”, o autor chega a uma característica imperiosa e fundamental
dessa instância psíquica – a impessoalidade. Partindo do exame exaustiva e detalhado das
concepções de Groddeck sobre o Id e baseado sobretudo nos textos deste último autor
publicados em francês – “O livro do Id”, “A doença, a arte e o símbolo” e finalmente o “Id e
o eu” – , Jean Laplanche se detém na reflexão crítica do conceito freudiano que veio a lume
em 1923. Diferente do Groddeck, que propunha um pansimbolismo para o Id, Freud vai
pontuar o caráter impessoal, essencialmente pulsional e desafetivado do Id. Assim, com a
introdução do conceito do Id, o inconsciente da primeira tópica, sede de representações-
coisa, ver-se-ia “...mais próximo de uma força vital, mais distante dos objetos familiares, e,
em última instância, mais desconhecido”(p.194). Para Laplanche, o interesse da segunda
tópica no que tange ao Id é portanto demarcar a questão energética sob o nome de pulsões
(p.198).
A partir daí , o autor se debruça sobre o exame da pulsão de morte. Citando Jones,
Reich e Groddeck, que a recusavam, revela que para André Green a diferença essencial entre
o conceito de Inconsciente e de o Id é que no primeiro não há lugar para as pulsões de
destruição (p.220). As escolas anglo -saxãs no tocante à pulsão de morte privilegiam a análise
da agressividade, nomeadamente da heteroagressividade, deflacionando assim a sexualidade
(p.230).
Após realizar um exame minucioso de alguns textos kleinianos sobre a pulsão de
morte e demonstrar contradições e incoerências conceituais na maneira como tais concepções
são apresentadas, propõe que não mais se empreguem conceitos como medo da morte, pois
a morte é algo que não se inscreve no inconsciente. Estabelecendo a distinção entre libido
(energia) e angústia (afeto), demonstra que o contato do aparelho mental com essa pulsão de
morte aniquiladora e despedaçadora traduzir-se-ia não por um medo e sim por uma angústia-
morte ou angústia-aniquilamento, termos esses que derivam de suas críticas ao conceito
lacaniano de representante-da-representação, pois as representações não comportariam um
genitivo, e assim, ao recusá-lo, propõe a utilização de representante-representação.
Tomando como ponto de partida o seio internalizado, seu conceito de objeto -fonte,
Jean Laplanche afirma que as pulsões de morte seriam um aprofundamento radical da
sexualidade. A partir de uma única energia psíquica que transita no aparelho psíquico e que
investe ora as pulsões de vida, ora as pulsões de morte, ele apresenta o que denomina pulsão
sexual de vida e pulsão sexual de morte. Assim o “seio mau é o seio sexual excitante e a
pulsão de morte que ele suscita por seu ataque – que não é outra coisa senão seu ataque –
por ser chamada de pulsão sexual de morte”(p.254). É a pulsão de objeto parcial
correspondente às angústias da posição esquizoparanóide, e que em última análise é um medo
pelo eu (ego). As pulsões sexuais de vida são as pulsões de objeto total e diz respeito ao seio
gratificante e apaziguador. “Tendem a manter e unificar o objeto, objeto aí compreendendo
o eu (moi), o primeiro e grande objeto dessa pulsão de vida, o que na linguagem freudiana se
denomina libido narcísica” (pág.259). Estão ligadas às angústias da posição depressiva e
correspondem a um medo pelo objeto.