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Revista TRIEB, Nº 1 – Ano 1991

EXPEDIENTE

EDITOR – Fernando José Barbosa Rocha

CO-EDITOR – Therezinha Câmara Leão

COORDENADOR GERAL – Viviane Frankenthal

COMISSÃO EDITORIAL - Carlos Alberto Quilelli Ambrósio, Miguel Calmon du Pin


e Almeida, Raimundo José Reis Porto e Sônia Cecília Bromberger

CONSELHO EDITORIAL – Carlos Doin, Anna-Maria de Lemos Bittencourt, José


Carlos Zanin, Roberto Bittencourt Martins e Yara Lansac

SECRETÁRIA ADMINISTRATIVA - Ana Maria Salgado de Paulo

CAPA – Lena bergstein

PROJETO GRÁFICO – Modonovo Design Ltda.

COMPOSIÇ ÃO E IMPRESSÃO – Imago Editora

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EDITORIAL

O nascimento de um homem não é resultado de um fato biológico ditado pela


Natureza. Há necessidade de o homem criar para nascer. Nada mais estranho a um animal,
no sentido instintivo do termo, que o nascer para nascer.
“Para nascer, nasci”, nos diz com força, sutileza e con-cisão o poeta Neruda. Es, de
forma sintética, a conseqüência de TRIEB.
Pensar em PULSÃO é falar do que é próprio ao homem. Rompimento com o mundo
animal, aí se define o humano. Não há dizer que diga toda a verdade. Todo dizer é dizer
da representação. Conceito limite entre o somático e o psíquico, cort e trágico entre a
Natureza e o homem, é a sua inscrição no psíquico que vai transformar o corpo biológico em
corpo erógeno. Ato de criação.
Conceito nodal para a Psicanálise, TRIEB foi o nome escolhido para nossa
publicação. Tal como no conceito, a Revista TRIEB, que hoje se inaugura, pretende abranger
toda diferença, desde a mais inusitada até a mais familiar, tendo ao mesmo tempo uma cara
onde cada um de nós se identifique e se reconheça.
Por maiores que sejam essas diferenças, que o humano nos sirva como lugar de
encontro e, se possível, de criação.
O Corpo Editorial
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Um texto fora do lugar


Lena Bergstein

Para Vera-Besouchet Pinheiro


Para Silviano Santiago

“Ne dis jamais que tu es arrivé; car partout,


tu es voyageur en transit”.
Edmond Jabès

Como escrever sobre a escrita, tornando tema uma idéia que pela própria essência se
subtrai a qualquer rigidez de conceituação? Como escrever de tal maneira que esta escrita
não perca jamais a possibilidade de ser como um rascunho ou um quase-texto? Como
escrever sem escrever?
Há 6000 anos os homens olharam o céu e viram uma escrita nos astros celestes, no
vôo selvagem dos pássaros, no vento que batia na areia e no mar. Então, riscaram. Riscaram
as paredes das cavernas, as lâminas das conchas, as crostas das tartarugas, os ossos dos
animais. Riscaram o barro, a cera e a pedra. Isso já seria uma escrita? Não, mas seu ritmo já
traduzia uma atividade consciente, mágica, provavelmente simbólica − o traçado dominado,
organizado de uma pulsão. A procura de um ato de inscrição onde se inscrevia a própria
possibilidade de criação.
E começaram a desenhar. A repetição sistemática de um certo número de imagens
habituou os homens a exprimirem pensamentos e idéias através desses desenhos. Com isso,
criaram um imenso repertório iconográfico e através dele puderam construir um sistema de
escrita. As primeiras escrituras não tiveram a ambição de traduzir sons mas de abraçar o
mundo e refazê-lo. Representaram um meio de exprimir os símbolos de uma sociedade muito
mais que um meio material de fixar uma língua. O primeiro ensaio de uma escritura foi
simplesmente uma pintura que supria as deficiências do discurso por sinais significantes.
Como expressão do pensamento do homem, a escrita e a pintura nascem imbricadas.
Derrida afirma a escrita não-fonética como a possibilidade da língua. O advento da escrita é
o advento do jogo na linguagem.
A linguagem não é um espelho onde o mundo sensível se reflete em transparência.
Não é a tradução dentro de um sistema diferente de uma realidade dada, imutável ou objetiva.
A linguagem é uma interpretação. Toda compreensão e todo comentário são construções,
não são descrições do mundo, menos ainda explicações. Dar um sentido ao mundo,
interpretá-lo, reescrevê-lo, é a possibilidade para o homem de estabelecer com este mundo
uma relação de criação.
Esta reflexão pode buscar seu fundamento nos textos bíblicos. Em primeiro lugar na
própria especificidade da escrita hebraica − uma escrita alfabética consonantal, que não
possui vogais, e que nestes textos, em particular, não é acrescida de nenhum signo que indique
a maneira pela qual uma palavra poderá ser vocalizada, e tornar sua leitura possível. Uma
mesma palavra pode ser vocalizada de muitas maneiras e possuir, a cada vez, um novo
sentido. Além disso, o texto não é pontuado, é escrito sem nenhum corte, seqüência
ininterrupta da primeira à última letra. Onde começa, onde acaba uma frase? Texto ilegível e
insensato. Para podermos ler este texto, é preciso antes compô-lo. Ler se torna uma
atividade, uma construção. Ler se torna um escrever.
Derrida comenta que a ilegibilidade radical não é o não-sentido, a irracionalidade,
tudo que pode suscitar angústia perante o incompreensível e ilógico. Isto já seria uma
interpretação e pertenceria ao livro. A ilegilibidade originária é anterior ao livro (não-
cronológica) e, portanto, à própria possibilidade do livro.
Um texto ilegível e insensato, seqüência ininterrupta da primeira à última letra. Texto
que na sua própria estrutura denuncia a possibilidade de seu desenvolvimento, a necessidade
de ir além, um convite ao desdobramento e à criação. Texto à espreita − visível e invisível.
Texto potencial, escrita pontuada pela ausência, palavras por detrás das palavras, nos
lembrando que por trás de tudo que se passa se passa ainda outra coisa. A interpretação
nada mais é do que a criação de um ‘surplus’de sentido que permite a explosão do livro em
livros. Ela revela o livro, que por sua vez se dá a criar. O livro é a manifestação da
ausência do livro. O livro só é livro quando existe interpretação. O livro só é livro quando
existe transbordamento de sentido, ruptura, uma maneira de dizer sempre outra coisa, de se
ultrapassar.
Palavras que se constroem e textos que se fabricam não se reduzem ao mundo ao
qual pertencem mas trazem em si mesmos um mundo próprio, mundo como avenir e
renovação. Toda interpretação histórica, todo questionamento poético atormentam este
poema da interminável pergunta, este jogo insensato de escrever.
Esta situação é exemplar da situação do poeta, este homem de palavra e de
escritura. A necessidade do comentário é como a necessidade poética, a própria forma
da palavra exilada.
Existe um texto na Torah que deliberadamente não foi escrito no seu lugar. ... “Para
dizer, não é o seu lugar” ... Este texto se refere à viagem da arca e à interdição de se retirar
os anéis que prendem as duas barras da arca. A arca é o suporte da lei e a viagem da lei
significa a viagem do sentido. A interdição de se retirar os anéis das barras não nos diz
somente de um sempre-pronto à viagem, mas de uma viagem perpétua, contínua e incessante.
A arca deve viajar para que a lei seja devenir. Este texto não deve ter um lugar
predeterminado para que a significação seja nômade. Para a lei judaica, um sentido
tematizado, aprisionado, é um sentido morto. O sentido jamais deve estar lá onde é dado: um
sentido dado é imediatamente um não-sentido.
Se a viagem da arca nos remete ao dinamismo de significação, ser é ser em viagem, é
ser nômade, pois a viagem não tem lugar, é o não-lugar. Tanto que as palavras que escrevem
a viagem da arca se tornam a própria viagem. Elas são a não-escritura, a quase-escritura, o
movimento de escrever. Este texto nos faz compreender que todas as palavras devem sofrer
um êxoto, da mesma for ma que as palavras escutadas por Abraham: “Vai da tua terra
natal, da tua casa, e dos teus parentes, em direção ao lugar que eu te indicarei.”
Blanchot questiona se o movimento nômade inscrito nessas palavras significaria um se
colocar na estrada e errar, portanto, uma eterna privação de lugar. Ou, quem sabe, uma
relação mais verdadeira com o novo, com o que desestabiliza e rompe, uma maneira mais
autêntica de residir, de uma residência que não nos liga a uma determinação de lugar ou a uma
fixação junto a uma realidade dada, já fundada e permanente.
Será que esta questão errante não nos levará ao deserto como terra propícia ao
silêncio, aos ecos da escuta, aos brancos da linguagem? Deserto como momento de
separação de si e de sua própria escritura, página branca onde nenhum caminho se encontra
prescrito e infinitos caminhos podem ser traçados. Nenhuma matriz, nada originário ou
primeiro, ou o originário sob rasura, tudo começado já por traduções e transcrições de um
texto sempre ausente − onde só a energia traça seu caminho, abre seu sulco, produz e cria
sentido.
Este jogo insensato de escrever nos indicará o deserto como o lugar infinito dos
sulcos, das impressões, de uma escrita sem tinta e de um texto do avesso. Desnudará este
desejo louco de escrever nas margens, no espaço entre as linhas, nas dobras do livro. De
traçar riscos na areia que a própria areia e o vento tornarão a recobrir. Terreno vago,
página obcecada. Inocência sempre oferecida, e reserva infinita de marcas.

Lena Bergstein

BIBLIOGRAFIA

1. OUAKNIN , Marc-Alain. “Le livre brulé” − Lieu Commun, 1986.

2. BLANCHOT, Maurice. “L’entretien infini” − Gallimard, 1969.

3. BLANCHOT, Maurice. “Le livre à venir” − Gallimard − folio-essais, 1959.

4. JABÈS, Edmond. “Je bátis ma demeure” − Gallimard, 1959.

5. DERRIBA, Jacques. “A escritura e a diferença” − Ed. Perpectiva, Coleção Debates


049.

Trieb
Fernando José Coutinho Barros

Desde muito cedo, na sua prática psicanalítica, Freud se preocupou em teorizar um


conceito , fruto de uma especulação: a pulsão. Esse conceito permaneceu ao longo de sua
obra com uma característica constante: o dualismo. Era o avatar da alma humana, ou do
instinto animal. Aliás, ainda hoje, a palavra instinto é muitas vezes confundida com a palavra
pulsão, apesar da preocupação de Freud em distingui-las. Em alemão, existem trieb e
instinkt, usadas com acepções diversas.
Laplanche e Pontalis 1 definem, no seu vocabulário, a pulsão como sendo “um
processo dinâmico consistindo em um impulso (carga energética, fator de motricidade) que
faz tender o organismo para um objetivo”. A noção é, entretanto, vaga, e uma pergunta se
impõe: trata-se, então, a pulsão de algo psíquico ou somático? O próprio Freud é quem
nos leva a crer tratar-se a pulsão de algo que é limite entre o somático e o psíquico.
Transformando o somático em representações psíquicas (de quaisquer espécies que sejam), o
animal vai pouco a pouco se humanizando, construindo o seu simbólico, construindo modelos
mentais para uma percepção do seu próprio corpo e do seu mundo, construindo o seu
semelhante e com ele se relacionando. Há, no homem, um mundo interno de representação
que lhe permite identificar o mundo externo de suas percepções e criar -lhe um sentido. Cabe
ao homem construir e destruir, psiquicamente, o universo que o rodeia, sendo essa construção
ou destruição coincidente ou não com o real, com o concreto da matéria que o cerca, que
compõe o seu corpo, que encarna o seu psíquico.
Desde o início, Freud ligou pulsão à sexualidade, mas desde o início, também, ele
opôs à pulsão sexual outras pulsões. Nesse dualismo, ele opôs as pulsões sexuais às pulsões
do Ego, ou de autoconservação. O dualismo, presente desde os primórdios da vida, tende
pouco a pouco a opor, uma à outra, ambas as pulsões, transformando a duplicidade pulsional
em fonte de conflito psíquico. O Ego tira das pulsões de autoconservação a energia
necessária para criar uma barreira com os assaltos da pulsão sexual. A esse dualismo inicial –
pulsão sexual/pulsão de auto-conservação – Freud vai postular um novo dualismo: pulsões de
vida/pulsões de morte, em 1920, no seu artigo “Além do princípio do prazer”. O homem
teria, então, dois grupos de pulsões, ou duas pulsões principais, em conflito, tendo ambas o Id
como reservatório psíquico. A oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte foi
conservada por Freud até o fim de sua obra. As pulsões de morte se opõem às pulsões de
vida e têm como finalidade a redução completa de toda tensão, uma volta a um estado
inorgânico. Elas podem se voltar para o interior do próprio indivíduo, tendendo à auto -
destruição, mas podem também ser dirigidas ao mundo exterior, manifestando-se como
pulsão de agressão e destruição.
Grande parte dos discípulos de Freud teve dificuldades para aceitar a existência, no
homem, de uma pulsão de morte, talvez pelo fato de lidarem, em suas atividades clínicas,
essencialmente com indivíduos neuróticos. Ora, no neurótico houve, mesmo em suas piores
organizações, um predomínio da pulsão de vida (sexual) sobre a pulsão de morte. É na
psicose que nós podemos sentir plenamente a existência da pulsão de morte, seja na
esquizofrenia ou nas psicoses maníaco-depressivas. Para Freud, a pulsão de morte é a
pulsão por excelência, pela premência do seu caráter repetitivo. A pulsão de morte é um tipo
de pulsão completamente diferente das pulsões de vida e não é passível de se enquadrar em
nenhuma de suas subdivisões, como, por exemplo, o sadismo ou o masoquismo, que
continuam sendo manifestações das pulsões de vida, de caráter sexual. Freud vê, na pulsão
de morte,

“a marca do ‘demoníaco’ de uma força irrepressível, independente do próprio prazer


e susceptível de se opor a ele. A partir dessa noção, é levado à idéia do caráter
regressivo da pulsão, idéia que, prosseguida de maneira sintomática, leva-o a ver na
pulsão de morte a pulsão por excelência”
(Laplanche e Pontalis – Vocabulário, pp.372-373)2

No ódio, para Freud, há uma relação aos objetos que é mais antiga que a relação de
amor (Pulsão e seus destinos, p.63) 3 . Esse ódio inicial, possivelmente, é uma manifestação da
pulsão de morte.
A pulsão de morte pode ligar-se a pulsões eróticas, sendo essa, aliás, uma das formas
pelas quais podemos observá-la. Essa liga de pulsões tem proporções variáveis de uma ou
da outra. Há uma situação onde podemos observar a pulsão de morte em seu estado puro,
segundo Freud, é na melancolia, onde ela se desliga da pulsão de vida, voltando-se
inteiramente contra o próprio Ego, podendo chegar a destruí-lo.
A escola de Melanie Klein também dá ênfase ao dualismo pulsional vida/morte, desde
o início da existência, dando mesmo uma importância maior à pulsão de morte, como
originadora da angústia. Resta saber se esse dualismo kleiniano e o mesmo dualismo
freudiano. Para Melanie Klein, os dois tipos de pulsão divergem quanto a seus objetivos, mas
não há uma diferença fundamental no que diz respeito ao funcionamento das pulsões,
enquanto que, para Freud, é basicamente o funcionamento que vai separar a pulsão de vida
da pulsão de morte.

“A finalidade de Eros é de estabelecer unidades cada vez maiores, a fim de


conservá-las: numa palavra, uma finalidade de ligação. A finalidade da outra pulsão,
ao contrário, é de quebrar todas as ligações, de destruir toda coisa”.
(Abrégé de Psychanalyse, p.8) 4
A partir dessa intuição freudiana, nós não podemos deixar de pensar na angústia de
despedaçamento do corpo, tão comum em esquizofrênicos, durante o surto. O corpo é
realmente sentido como um amontoado de pedaços em desagregação. A proposta da pulsão
de vida é sempre de juntar tudo o que estiver separado, é uma proposta de união, enquanto
que a proposta da pulsão de morte é exatamente o inverso. No sadismo, bem como no
masoquismo, apesar da indubitável presença da pulsão de morte, na liga pulsional, é a
proposta de ligação (com o objeto total ou parcial) que prevalece. As pulsões de vida tendem
sempre a constituir unidades cada vez maiores e a mantê-las. Elas recobrem não somente as
pulsões sexuais propriamente ditas, mas ainda as pulsões de auto-conservação. São a energia
que tende a preservar o homem, tanto como indivíduo quanto como espécie.
No meu trabalho com psicóticos, cada vez mais se precisa em mim a importância que
a pulsão de morte tem na consolidação de suas estruturas. Não somente no contato direto
com crianças ou adultos, hospitalizados ou em consultas ambulatoriais, mas também na
supervisão de casos seguidos por colegas, muitas vezes sinto , do ponto de vista
contratransferencial, um mal-estar indescritível, que suponho estar longe de qualquer
manifestação erótica ou de qualquer formação reativa à eclosão de um desejo erótico. Trata -
se, seguramente, de uma instância me jogo. Foi a partir daí que veio meu interesse em tentar
formular outra hipótese sobre a estruturação do sujeito psicótico. Essa hipótese não exclui as
demais. É apenas uma nova tentativa de abordagem do problema. Parto da premissa,
indispensável para o raciocínio que pretende seguir, que ao entrar em contato com o mundo,
logo após o nascimento biológico, real, o ser humano já traz em si, em estado puro, duas
grandes forças pulsionais: a de vida e a de morte. A descrição da essência, funcionamento e
destinos da pulsão de morte deixa muito a desejar. Os problemas clínicos e teóricos que ela
coloca são inúmeros. Tentemos construir então um novo mito.
O verdadeiro nascimento de um ser humano vai se dar bem depois do momento em
que ele se separa biologicamente do corpo materno. O momento em que se dá o nascimento
para um novo sujeito, nem sempre corresponde ao momento em que se dá o parto para sua
mãe (que, aliás, pode ser a genitora, ou simplesmente aquele sujeito que exerce a função
maternal). Nascer, tornar-se um novo sujeito, não é coisa fácil e pode haver mesmo situações
extremas em que um ser, biologicamente perfeito, chegue à vida extra-uterina, freqüente o
mundo dos seres vivos e inanimados e morra (sempre biologicamente) sem nunca ter passado
por uma experiência de nascimento. Essas situações são raras, mas existem. São os
verdadeiros autistas, que nunca falaram, que nunca tiveram acesso ao universo simbólico dos
homens, que permaneceram presos à sua condição animal. Nascer, para mim, significa criar
um inverso simbólico próprio, desprender-se para sempre do real do próprio corpo, perder
para sempre um corpo concreto, uma mãe real. Nascer é transformar o real em realidade.
Biologicamente, o ser humano, como todos os outros animais, nasce dotado de um corpo
capaz de receber estímulos sensoriais de dentro e de fora dessa corpo. No início há um
caos. Não há consciência de si, não há consciência do outro, não há consciência do que é
dentro nem do que é fora, do que é eu e não eu. Há sensações agradáveis e desagradáveis.
Há duas forças energéticas, com suas intensidades, possivelmente geneticamente
determinadas: as pulsões de vida e a pulsão de morte. Em geral, essas pulsões são
equilibradas quanto às suas intensidades. É com finalidade puramente didática que podemos
separá-la, a fim de tentarmos entender o que se passa com uma delas de per si.

Ao sair do corpo materno, o ser humano imediatamente tem seus sentidos


impressionados de uma maneira diversa da qual vinha tendo até então. Sente o ar que
descola seus pulmões, ouve sons, percebe uma claridade mais intensa, tem frio ou calor,
sensações táteis, além de sentir, naturalmente, fome. Isso, quando tudo se passa bem,
quando não tem nenhuma doença congênita que o faça sofrer dores ou qualquer outro tipo de
mal-estar somático. Tudo isso é um caos, na sua percepção. Tudo isso é ele, na percepção
dos outros, mas não na sua, que ainda é ele -mesmo.
Num tempo que não é o dos nossos relógios e pelo fato menos impossível de ser
determinado, essas sensações tornam-se cada vez mais intensas no novo ser. Há um grande
conflito entre uma força que quer mantê-lo vivo, custe o que custar, e outra força que tende a
levá-lo ao estado anterior, de calma total, ao nirvana. Isso é o que se passa, do ponto de
vista do novo ser. Mas, ele não é só do mundo, no qual (na visão dos outros, que ainda não
existem para eles) ele já ocupa um lugar, e dos mais complexos, pois já tem até uma história 1
(que poderíamos chamar de pré, e que pode vir a ser a sua pré-história, dependendo de
como as cois as se passarem). Nesse lugar determinado por uma história, que pode vir a ser
a sua, se ele dela se apossar, existem: pai, mãe, tios, avós, irmãos, mortos, vivos, dramas,
romances, intrigas, tudo! Por enquanto, o vital para ele, do ponto de vista humano, é vir a
nascer para esse universo dos seus. Nesse universo dos seus, haverá alguém prestes a
desempenhar um papel fundamental nesse nascimento, uma mãe, pois sem uma mãe não se
nasce, sem uma mãe não se é ninguém. Esse sujeito que estou chamando de Mãe e
louvando-lhe a importância na possibilitação da existência do novo sujeito pode ser ou não a
genitora daquele indivíduo biológico que está lutando para nascer simbolicamente, para
tornar-se um sujeito. Esse papel pode vir a ser desempenhado mesmo por um indivíduo do
sexo masculino, ou por um grupo de indivíduos, pouco importa o seu suporte material. Para
se ser um sujeito e se nascer como tal, precisa-se de uma Mãe. Vamos tentar ver, agora, o
que dela se exige. Antes de mais nada, ter a grande capacidade de se deixar “criar” como
mãe, pelo filho ou filha. Quanto ao novo ser, inchado pelas duas forças antagônicas, precisa
descarregá -las, para não morrer sufocado. A mãe vai ser, então, o primeiro anteparo a
receber as descargas pulsionais. A pulsão de morte, para não destruir o novo indivíduo, tem
1
Essa história é o inconsciente dos pais ou dos personagens mais significativos do início da vida.
de ser descarregada fora dele, na Mãe, e esta tem de ser bastante sólida para receber a
carga. Se essa Mãe for forte, por mais intensa que seja a pulsão de morte de seu filho ou
filha, não vai ser capaz de destruí-la. Ao contrário, a cada nova descarga, o nosso ser tem a
possibilidade, ao não destruí -la, de criar-lhe um fragmento. Cada fragmento dessa Mãe, por
ele criado, é um fragmento de sua realidade, em plena construção. O sujeito em formação
cria o corpo da Mãe, pedaço por pedaço. Também pedaço por pedaço, cria seu próprio
corpo, embora ainda não os integre. Para que a obra seja satisfatória é necessário que a Mãe
também crie, se deixando criar. Para que ela o faça, é necessário que possa perder, pois
cada fragmento dela, criado pelo seu filho ou filha, é um fragmento real do mesmo, que é
perdido para sempre, tornando-se apenas a sua representação. Algumas partes do corpo são
mais difíceis que outras de serem criadas e mais passíveis de serem malcriadas. Algumas
chegam mesmo a nunca serem criadas e permanecem como falhas no novo sujeito, que
correspondem também a falhas na Mãe. Criando a Mãe, o novo ser se cria como sujeito,
cria a sua realidade e cria um objeto de desejo, que procurará reencontrar pela vida afora. É
nesse objeto de desejo, criado pela sua pulsão de morte, que vai investir sua pulsão de vida,
mas isso é outra história. Essa atividade criativo do novo ser humano, além de possibilitar-lhe
o ingresso no universo simbólico, na apropriação de uma pré-história, é também protótipo de
toda atividade criativa posterior (inclusive de atividades científicas e artísticas).
A pulsão de morte, ao descarregar-se no corpo da Mãe, tem como finalidade destruí-
la, desfazê-la em pedaços. Ao visar uma parte do corpo da Mãe, do próprio corpo ou do
mundo real, o que vem a ser exatamente a mesma coisa para o recém-nascido, essa parte
visada, caso não seja realmente destruída, é criada e passa, então, a ser investida pela pulsão
de vida, que tende a englobá-la, unir-se a ela, assimilá-la, numa operação oposta da que
ocorre quando ela é visada pela pulsão de morte, tendendo a ser afastada de si, expulsa,
rejeitada. Pode-se observar esse tipo de funcionamento nos fenômenos alucinatórios e
delirantes do esquizofrênico adulto, durante um surto.
A pulsão de vida vai tender, pouco a pouco, a juntar pedaços esparsos, enquanto que
a pulsão de morte continuará sempre a tentar desagregá -los, dissipá-los.
Tudo o que tenho descrito até então tem feições bem plásticas, sensoriais, havendo
um certo predomínio do visual (a imagem da Mãe, a imagem do próprio corpo, o mundo de
objetos inanimados). É claro que tudo aquilo que se passa visualmente ocorre da mesma
maneira quanto às outras possibilidades sensoriais. É aos pedaços que construímos o nosso
corpo tátil, o nosso universo gustativo, olfativo e sonoro. Quanto ao sonoro, a complexidade
parece ser bem maior, pois é dos sons que o ser humano vai se servir para definir sua
linguagem verbal, sua fala. Cada representação verbal padece do mesmo processo de
criação que todos os demais pedaços da realidade. Tudo isso pode ser chamado de
gestação simbólica do novo sujeito. É aos pedaços que nossa história se inscreve.
Tal como vai ocorrer com a pulsão de vid a, no meu entender, a pulsão de morte
também terá vários destinos possíveis, sendo eles responsáveis pelo destino do novo sujeito,
quanto à sua estrutura. Ao fazer tal afirmação, estou longe de fazer pouco caso da realidade
já existente (o meio ambiente, onde aparece o bebê, constituído sobretudo por sua família ou
pelos seres humanos que lhe fazem as vezes), pois ela vai ser decisiva em relação aos
possíveis destinos da pulsão de morte. Os destinos da pulsão de vida vão depender da
relação que ela mantém com uma instância que podemos chamar de Instância Paternal, ou
Lei Paterna, ou, simplesmente, Lei do Pai. Já os destinos da pulsão de morte dependerão da
relação que mantém com outra instância, inteiramente diversa da Instância Paterna e que
chamarei de Instância Materna, ou Lei Materna, ou Lei da Mãe. É essa lei que vai orientar e
dirigir as investidas da pulsão de morte. A maneira como o novo sujeito regerá sua pulsão de
morte é que fará dele um sujeito neurótico ou psicótico. Se a Mãe receber de novo ser suas
investidas mortíferas, sem se deixar morrer como sujeito, ele estará preparado para criar o
seu objeto de desejo, cobiça-lo, disputá-lo a um Pai e ingressar no universo dos não-
psicóticos. Caso a Mãe não tenha condições de suportar-lhe as investidas2 , essa pulsão será
total ou parcialmente reprimida, sendo o novo indivíduo total ou parcialmente esmagado pela
realidade. No caso do esmagamento total, o novo ser não terá jamais acesso à realidade,
será um autista primário. Não terá mãe, ne m pai, nem história. Enquistar-se-á, fechar-se-á
ao mundo simbólico, numa tentativa última de não destruir -se, de preservar-se, por
conseguinte, vivo. Renuncia à vida simbólica para preservar a manutenção da vida biológica.
Possivelmente é sua pulsão de vida, embora tênue, que vai formar o quisto que o isola do
mundo, uma vez que a Mãe não pode ser o anteparo firme, em cima do qual tenha podido
construir seu mundo de representações.
Como podemos ver, duas instâncias podem se opor à ação devastadora da pulsão de
morte: a própria pulsão de vida e a Instância Materna, a Mãe (simbólica). Quando o
esmagamento pela realidade, que não consegue passar de puro real, é muito intenso, mas não
chega a ser total, como vimos que ocorre no autismo primário infantil, há duas possibilidades
de êxito (saída): em primeiro lugar, a transgressão a essa Lei (recalcante) Materna, cujo
resultado vai ser a esquizofrenia – criação de uma realidade própria que obedece a outra
lógica, não orientada pela Lei Paterna (alucinações e delírios). A criação delirante alucinatória
é a criação de um único indivíduo, sem a participação do outro. A inquietante estranheza que
o mundo psicótico nos causa provém, possivelmente, dessa característica de tratar-se de um
mundo feito por um só criador, contrariamente à realidade do neurótico, que é sempre fruto
da criação de pelo menos dois: o sujeito e um outro. É por isso que o neurótico pode duvidar
de sua realidade, pode mesmo enganar-se quanto a ela, enquanto que o psicótico, no seu
delírio, não duvida. O delírio e a alucinação são ele -mesmo, mesmo que seja vivido como
não-ele, enquanto que a realidade do neurótico é ele-mesmo e mais o outro, mesmo que seja
vivida como sendo apenas o outro ou apenas si-mesmo.
Em segundo lugar, temos a submissão parcial à Lei Materna, cujo resultado será a
psicose maníaco-depressiva. A pulsão de morte não tem nenhum exutório, a não ser a
utilização do próprio sujeito como objeto para sua descarga, podendo chegar à
autodestruição pelo suicídio ou pela exaustão física da mania, última tentativa de neutralização
da “demoníaca” pulsão. No caso da transgressão à Lei Materna (esquizofrenia), o objeto
para a descarga da pulsão de morte é o mundo externo, a realidade externa 3 , enquanto que
na submissão parcial à Lei Materna (melancolia), o objeto para a descarga da pulsão de
morte é o mundo interno, a realidade interna, de dentro dos limites do corpo simbólico.
Naturalmente, o ingresso em quaisquer das possibilidades pode ser submetido aos
mais diversos arranjos, o que possibilita as mais diversas nuances na maneira como o sujeito
adere à psicoses e rege com ela a sua vida. As nuances vão ser dadas pela liga da pulsão de
morte (levando-se em conta, inclusive, sua intensidade) como pulsão de vida, e o meio

2
Gostaria de guardar a palavra investida para definir o impulso da pulsão de morte ( a fim de conservar-lhe o
sentimento bélico ) e investimento para a pulsão de vida (tendo em vista a conservação do sentido econômico do
processo.)
3
Na realidade externa, nós podemos incluir a imagem do próprio corpo, tantas vezes perturbado pelas alucinações
cenestésicas ou visuais do esquizofrênico.
ambiente que vai receber o indivíduo portador delas duas. É a combinação desses três
elementos que vai dar as características do novo indivíduo, tornando-o um sujeito.
Quando tudo se passa mais ou menos bem, o indivíduo torna-se sujeito, reconhece-se
a si mesmo e ao outro, reconhece o mundo fora de si e nele situa o objeto do seu desejo (de
fusão). Pelos nossos relógios, isso ocorreria lá pelos 8(oito) meses, quando o bebê se
reconhece no espelho e exulta diante da descoberta de si 4, exulta pelo fato de ter conseguido
juntar todas as partes do seu corpo e de ter um corpo inteiro, de ter conseguido ligar sua
pulsão de morte às suas pulsões de vida, utilizando-as, juntas, nas manifestações agressivas
contra o mundo e contra si, mas já então coloridas de erotismo e incapazes de uma
verdadeira destruição. Todo o seu empenho, então, vai ser a procura de fusão com o seu
objeto de desejo (a Mãe), mas logo vai se dar conta de que, contra seu desejo, existe uma
Lei Paterna, a qual terá de enfrentar. Da mesma forma que foi necessária uma Mãe que
pudesse enfrentar as pulsões de morte a ela dirigidas, sem medo de ser por elas destruída,
por se sentir capaz de neutralizá-las, faz-se necessário também ter-se um Pai que possa
enfrentar as pulsões de vida (eróticas) dirigidas a ela ou à Mãe, seguro de que a transgressão
à sua Lei é impossível, pois ele é mais potente que o pretenso transgressor ou transgressora.
A Mãe deve saber (inconscientemente) que é protegida por uma Lei, a Paterna, que torna
impossível a fusão com seu filho ou filha. Uma vez segura disso, receberá com prazer todas
as manifestações eróticas do filho ou filha a ela dirigidas, e permitirá, assim, a ele ou ela, gozar
do prazer do encontro e ter a possibilidade de deixá -la e sair à cata de um novo objeto, que
ao primeiro se substitua. Quando a coisa não se passa assim, os investimentos libidinais vão
ser rejeitados, ou aceitos com muita culpa, o que vem a ser exatamente a mesma coisa.
Criam-se, então, os obstáculos ao encontro simbólico (futuros ferimentos neuróticos), que são
tentativas, sempre frustrantes, de transgredir a Lei Paterna. A neurose seria, então, fruto do
encontro de um sujeito com uma Mãe, desejada, mas submetida (simbolicamente) à Lei
Paterna.
Pode, também, ocorrer o caso em que nessa Mãe (pelo menos em relação àquele
determinado filho), a Lei Paterna tenha sido transgredida ou mal integrada. Desse encontro,
possivelmente, o novo sujeito também tenderá a ser transgressor e procurar na perversão sua
ilusão de encontro erótico.

Recapitulando:

A – Destinos da pulsão de Morte


(em relação à Lei Materna)

1. Submissão total – autismo infantil primário.


2. Submissão parcial – melancolia (e/ou mania)
3. Transgressão – esquizofrenia.

B - Destinos da pulsão de Vida


(em relação à Lei Paterna)

1. Submissão parcial – inibições


2. Submissão parcial – neuroses
4
Referência ao estado do espelho de J.Lcan.
3. Transgressão - perversões

No caso da submissão total ou esmagamento pela pulsão de Morte, não há nenhuma


liga com a pulsão de Vida, enquanto que na submissão parcial e na transgressão à Lei
Materna, há uma liga com maior ou menor sucesso, dando a esses indivíduos características
neuróticas ou perversas; além da estrutura básica psicótica. A liga da pulsão de Morte com
as pulsões de Vida vai permitir um confronto, mesmo que precário, com a Lei Paterna. Uma
Mãe ou um Pai que intuitivamente recebe com prazer, não culpabilizado, as manifestações
eróticas de um filho ou de uma filha, sabe, inconscientemente, que é a um outro que esse
desejo é dirigido. Sabe que apenas empresta seu corpo real para que este sirva de suporte
para um corpo simbólico desejado pelo filho ou filha. Assim fazendo, esse Pai ou essa Mãe
está dando a seu filho ou filha a possibilidade de deslocar, sempre que necessário, o objeto de
seu desejo, de pousar seu desejo onde seus olhos pousarem, tendo dentro de si a trágica e
redentora certeza de que o objeto real nunca será atingido, que ele foi perdido para sempre,
embora saiba também que é a promessa de um dia reencontrá-lo e unir-se a ele que o
mantém vivo, que dá sentido à sua vida.

Isso tudo é muito importante para tentar dissuadir os pretensos educadores. O desejo
humano é ineducável. Não se aprende a ser Pai, não se aprende a ser Mãe, nem se aprende
a ser Filho. Cai-se na vida, recebe-se uma herança e tenta-se dela se apropriar. Dessa
herança, uma parte é real (por exemplo: um sexo biologicamente determinado), uma parte é
simbólica (um Pai, uma Mãe) e outra parte é imaginária (uma história). Aliando essas três
partes, temos um sujeito, com suas características únicas, diferentes de todos os demais
sujeitos existentes, que já existiram e que ainda venham a existir.
Como terapeutas, vamos fazer parte desse complexo universo, sendo dele apenas um
fragmento, com importância decisiva, porém limitada. Quanto mais importante for o papel
que tenhamos que desempenhar, numa análise, maior será nossa responsabilidade e menor a
chance de nos sairmos bem da empreitada.

RESUMO

Partindo dos conceitos freudianos de Pulsão de Vida e Pulsão de Morte, o autor


desenvolve uma teoria própria, que chama de sua “mitologia”, acerca dos destinos da Pulsão
de Morte.
Essa teoria implica uma hipótese sobre o nascimento psicológico, criação da
realidade, da própria imagem e da imagem do outro.
Aborda, brevemente, a nosologia psicanalítica à luz de sua “mitologia”.

SUMMARY

Starting from the Freudian concepts of life instinct and death instinct, the author
develops a theory which he calls his own “mythology” about the vicissitudes of the death
instinct.
His theory involves a hypothesis of psychological birth, the creation of reality, the
creation of the self-image and that of the other.
He briefly deals with psychoanalytical classification in the light of his “mythology”.

BIBLIOGRAFIA

1. LAPLANCHE,J. et PONTALIS, J. B. - Vocabulaire de la Psychanalyse. P.U.F. - 4éme


édition révue - 1973, p.359.
2. Idem, pp 372 e 373.
3. FREUD,S. - Pulsions et destin des pulsions. In: Métapsychologie. Gallimard -
Collection Idées, 1968. p.63.
4. FREUD,S. - Abrégé de Psychanalyse. P.U.F. , p.8.

Inveja primária
Reflexões e conseqüências na prática clínica
Elizabeth Fetter Zambrano e Sandra Muniz

INTRODUÇÃO

Quando resolvemos fazer este trabalho, estimuladas pelo curso Estudo Crítico da
Obra de Melanie Klein, coordenado pelo Dr. Heitor de Paola, fomos levadas a nos
questionar sobre as razões que nos haviam motivado a fazer este curso.
Pensamos, inicialmente, terem sido as críticas não muito claras que fazíamos à teoria
kleinianas e que no decorrer do curso se foram objetivando.
Posteriormente, estimularam-nos a curiosidade e as respostas que poderíamos
encontrar a partir deste estudo crítico.
É imprescindível ressaltar a importância de um curso desta natureza em nossa
Sociedade, onde várias correntes de pensamento psicanalítico convivem com dificuldade com
a prática do diálogo e do confronto das diferenças. Comumente assistimos ora a um discurso
conciliador que aplaca essas diferenças, transformando a psicanálise numa grande colcha de
retalhos, ora a atitudes de impermeabilidade à crítica, dividindo os grupos em feudos, cada
um defendendo a “verdadeira psicanálise”.
Nesse sentido, foi muito estimulante encontrar um espaço onde discutir; comparar e
criticar as idéias kleinianas não nos tornava hereges.
Durante nosso percurso constatamos a dificuldade de comparar e encontrar pontos
comuns entre a teoria kleinian e outras teorias psicanalíticas, principalmente a freudiana, ainda
que muitos autores insistam em dizer que uma é desenvolvimento e aprofundamento da outra.
Concordamos, em parte, com os autores de trabalho “A Clínica e os Paradigmas” 11.
P.L. Souza e B. Salésio usam o conceito de incomensurabilidade para afirmar que corpos
teóricos, como, por exemplo, Freud e Klein, são estruturas de explicação diferentes, não
superponíveis, apesar de examinarem o mesmo fenômeno.
Isso não implica que um seja psicanálise e o outro não, mas, sim, que diferentes
paradigmas sustentam diferentes aportes técnico-clínicos.
Nossa intenção é, partindo do conceito de Inveja em Melanie Klein, compará-lo com
idéias e críticas de outros autores e estudar as possíveis conseqüências no manejo técnico
que o uso desde paradigma pode favorecer.

SOBRE OS PARADIGMAS

Thomas Khun conceitua paradigma como:

“... realizações científicas universalmente reconhecidas, que durante algum tempo


fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência.”

Bernardi1 , em “O Poder das Teorias”, lança mão deste conceito e do conceito de


incomensurabilidade para mostrar, através da comparação de três autores (Freud, Klein e
Lacan) que as teorias propostas por eles não são redutíveis umas às outras, pelo contrário;
em muitos aspectos elas são divergentes, na medida em que se utilizam de paradigmas
diferentes e, mesmo quando estão usando a mesma palavra, muitas vezes estão designando
conceitos diversos.
Bernardi nos diz que as diferentes linhas teóricas apontadas, ao serem comparadas,
vão mostrar que seus paradigmas:
 Condicionam a percepção do material que servirá de apoio para a interpretação.
 Condicionam “modos de pensar” psicanaliticamente.
 Desenvolvem diferentes formas de formulações metapsicológicas.
O núcleo de poder dos paradigmas radicaria em que são necessários porque
representam um modo de resolver os problemas de um campo que antes de sua aparição
permanecia opaco e inabordável, ao mesmo tempo que correm o risco de cair numa
circularidade ao se converterem em dispositivos para responder a enigmas que eles mesmos
permitem reconhecer e formular.
Este modelo parece-nos adequado para pensarmos o conceito de “inveja”, um dos
pilares da obra kleiniana.
Poderíamos escolher outro paradigma, porém acreditamos que, por ser um tema que
sempre suscita polêmica, mereceria um estudo que nos permitisse pensar pouco além das
estéreis querelas em torno do assunto.
Gostaríamos de lançar para discussão, ainda que de modo inicial, algumas questões
envolvendo a noção de “Inveja inata”, quais sejam:
Que outros aportes teóricos poderiam dar conta desse tema e de que forma?
Quais as formulações metapsicológicas envolvidas nesse conceito?
Que tipo de pensamento psicanalítico subjaz a esse paradigma e que ideologia ele
pode sustentar?
Quais as conseqüências que a adesão rígida a esse paradigma pode proporcionar na
escuta e no modelo interpretativ o?
É mais precisamente no tópico das repercussões técnicas que gostaríamos de centrar
nossa atenção.

INVEJA: Conceituação e Críticas


Ao buscarmos o conceito de “Inveja” na obra de Melanie Klein5 , fomos nos dando
conta de que a inveja não aparece conceituada, mas descrita.
No seu livro “Inveja e Gratidão”, encontramos a descrição do fenômeno desde a sua
primeira aparição, quando da deflexão do Instinto de Morte e da divisão do objeto em bom e
mau, pela ansiedade proveniente desse Instinto.
Acompanhamos a descrição da sua evolução, da diferença com outros sentimentos
como cobiça, voracidade, ciúmes, admiração, etc., percebemos a sua presença nos diversos
exemplos clínicos, mas o conceito mesmo não aparece.
Num esforço de ordenação dessa descrição, vimos que a inveja primária é um afeto
destrutivo derivado do instinto de morte e causador da ansiedade persecutória. A existência
desse afeto num estágio tão primitivo do desenvolvimento pressupõe que haja, nesse período,
um ego capaz de efetuar relações e dividir os objetos (seio) em bons e maus, como forma de
projetar nos maus objetos os impulsos destrutivos e avaliar e ansiedade. Porém, o que a
inveja quer destruir, segundo Melanie Klein, não é o mau objeto, mas exatamente o bom, na
medida em que o seio satisfatório representa uma dádiva inatingível.
As conseqüências, na relação mãe-bebê, estariam condicionadas primordialmente ao
montante de inveja (Instinto de Morte) que o bebê traria consigo desde o nascimento.
Também na obra de H. Segal9 a inveja não é conceituada, mas descrita como “a
primeira externalização direta do Instinto de Morte”.
Em seu artigo crítico, Joffe3 faz uma extensa introdução ao conceito de inveja,
descrevendo o funcionamento psíquico do recém-nascido de forma bem diversa da de
Melanie Klein:

“No período neonatal existe apenas um relativo e indiferenciado sensório, consistindo


primariamente de sensações e sentimentos de prazer e desprazer que refletem o estado dos
impulsos instintivos e necessidades corporais.
Representações de experiências primitivas, construídas pela memória das primeiras
satisfações de maternagem, tornam-se lenta mas gradativamente diferenciadas, ou seja,
catexizadas com libido, enquanto as representações associadas com sentimentos
desprazerosos tornam-se objeto de impulsos agressivos, isto é, tornam-se catexizadas com
agressão.
Nós logo, encontramos o desenvolvimento de uma diferenciação na base de um ‘self’
prazeroso bom em contradição com um ‘self’ doloroso mau.
Diferente da teoria kleiniana que se assenta na noção fundamental de objetos
fantasiados bons e maus inatos, os quais, através de mecanismos de projeção e introjeção,
são necessários para diferenciar entre objeto interno e externo.”

Parece que, de acordo com o autor, não há possibilidade de ver o mundo de outra
forma que não bom ou mau, na medida em que essa percepção está baseada na série prazer-
des-prazer.
Nesta concepção não há lugar para a existência de bons e maus objetos, e sim para
boas ou más sensações,
Para Joffe, o processo de diferenciação entre ‘self’ e objeto é gradativo e a sua
manutenção, independente da frustração ou satisfação, não é conseguida antes do segundo
ano de vida.
“Se a inveja, como geralmente acontece, continua a ser classificada como uma
duradoura tendência direcionada ao objeto, afeto, atitude ou traço de caráter, logo, neste
ponto de vista teórico, não se pode dizer que ela adquire suas caraterísticas duradouras
essenciais antes que um mínimo de diferenciação entre o ‘self’ e o objeto seja atingido.”

No desenvolvimento do seu trabalho, o autor vai conceituando a inveja como um


afeto complexo, de caráter basicamente destrutivo, mas que pode ser relacionado também
com componentes sexuais, derivados de todos os estágios de desenvolvimento psicossexual.
Vê nela sempre um aspecto ambivalente, onde o lado positivo seria a admiração e o negativo,
o ódio e a destrutividade.
Nesse sentido, estaria ligada a distúrbios do narcisismo, onde se verificaria uma
comparação entre o ‘self’ e o objeto e cujo elemento essencial é o sentimento de
desvalorização do ‘self’ quando comparado com o objeto ou ideal baseado no objeto
admirado.
Joffe conclui:

“O conceito de inveja como um impulso instintivo inato é rejeitado. Ao contrário, ele


é visto como uma atitude complexa que ocorre como parte do desenvolvimento normal,
intimamente relacionada com outras atitudes de possessividade. É ligado à agressão e
destrutividade, mas o componente agressivo e as fantasias ligadas a ele podem ser derivados
de todas as fases do desenvolvimento, não apenas da de natureza oral.
Ao invés de ser visto como um impulso primário, seria uma força motivacional
secundária que poderia ter conseqüências positivas e adaptativas no desenvolvimento, ou dar
lugar a patologias.
Isto estaria em íntima relação com o estado de narcisismo individual e auto-estima.
O estímulo essencial para o desenvolvimento da inveja assenta-se nos distúrbios
dentro desse domínio”.

O artigo de Joffe situa a inveja num contexto diferente de Klein, colocando-a sob a
influência de outros fatores e tirando dela a inflexibilidade do inato.
Certamente a transposição dessas diferenças teóricas para a prática clínica irá trazer
repercussões que não podem ser desconsideradas.
Conceituada e desenvolvida dessa maneira, a inveja se organiza em bases
metapsicológicas diversas, estando em conformidade com a concepção freudiana do
desenvolvimento psicossexual.
Em Freud, não vamos encontrar nenhuma referência à inveja nos moldes como é vista
em Melanie Klein. Aí o que vemos é a inveja do pênis, conceito que se insere na ordem do
desejo e da castração.
O homem pensado por Freud é o homem sexual, que tem que recordar ou reconstruir
a sua história, lida com o desejo e o prazer, seu conflito maior é o edípico, e a angústia que
lhe corresponde é a angústia de castração.
O homem pensado por Klein é o homem destrutivo, que tem que lidar com seu
mundo interno dividido e projetado, com seus impulsos agressivos, e

“... seu conflito não é mais com a sexualidade, mas com a pulsão de morte entendida
como destrutividade.”11
Outra maneira de entender a inveja poderia ser depreendida a partir do modelo lacaniano da
imagem especular (Estágio do Espelho).
Em outras palavras, baseado nessa linha de pensamento e ego se estruturaria a partir
de uma imagem ideal que o outro fornece. Com a descoberta de que o outro não é o próprio
espelho, se instaurariam a diferença e a inveja, percurso inevitável na organização da
individualidade e que, de acordo com as representações inconscientes de cada um, se
apresentaria na clínica de forma variada.
Enquanto Melanie Klein fala de objetos parciais como decorrentes da fragmentação
do objeto pela inveja (deflexão do Instinto de Morte), Lacan considera que o bebê, na fase
pré-especular, é um ser em pedaços, fragmentado, que enc ontra correspondência nas
fantasias de órgãos ameaçadores situados fora do corpo. Essas fantasias não seriam
decorrentes do Instinto de Morte, mas, como assinala Lacan:

“... da prematuridade específica do nascimento humano, ou de fetalização do ponto


de vista embriológico, da discórdia ou desconcerto primordial, do mal-estar e incoordenação
motora, do inacabamento anatômico do sistema piramidal, dos remanescentes humorais do
organismo materno.”2

A inveja que surge no estágio do espelho seria devastadora por estar em consonância com o
grau de desamparo do bebê, que descobre que aquilo que lhe dá segurança não é ele.
Problematizado a noção de incomensurabilidade das teorias, Renato Mezan9 , em seu
brilhante artigo “A Inveja”, vai lançar mão de aportes kleinianos, freudianos e lacanianos para
montar uma teoria sobre a inveja e enriquecê-la com seus achados.
Ele nos leva a percorrer, de forma muito poética, toda a conceituação da inveja, da
sua origem ao desenvolvimento, dandonos, inclusive, a sua visão metapsicológica.
A questão colocada por Renato Mezan é: seria a inveja um impulso ou uma defesa?
A grande novidade que o artigo nos trouxe foi a noção de inveja como defesa. Esse
enfoque utiliza o conceito freudiano de inveja do pênis e as noções de narcisismo (ego ideal)
para falar do desejo de completude, que é parte essencial do conceito de inveja. Tenta
aproximar as concepções de “Idealização” em Freud e Melarei Klein.
Mezan afirma que a inveja dissipa essa busca de coincidência, de restauração da
plenitude narcísica rompida com a descoberta do limite e da diferença.
Alcançando esse ideal teríamos tudo, não sentiríamos falta de nada, ou seja,
estaríamos nos aproximando da Morte, e isto permitiria compreender por que motivo o
projetado idealizado pode ser alvo de um imenso desejo e ao mesmo tempo de um imenso
pavor.

“Nesta perspectiva, a inveja teria uma função defensiva importante, defendendo o


indivíduo contra o risco de precisar reinteriorizar algo foi projetado exatamente
para ser mantido a distância: a perfeição narcísica.
Tendo sido projetada, ela se converte imediatamente em objeto de intenso
desejo, desejo de coincidência com o objeto idealizado; como este é imaginado
sob a forma de algo capaz de ser “possuído”, o desejo de possuí-lo é
acompanhado pela intenção agressiva de privar seu detentor da posse e do usufruto
dele; eis aí a origem da dupla determinação pulsional da inveja, isto é, de seu
componente sexual narcísico e de seu componente agressivo; nela coincidem, se essa
hipótese estiver correta, um impulso (ou melhor, um feixe de impulsos) e uma defesa
bastante eficaz; essa situação permitiria compreender a tenacidade da inveja, a
dificuldade de alterar as condições econômicas que a sustentam e a força das
resistências contra a análise que nela se apóiam: escorada, por assim dizer, de ambos
os lados, não é de admirar que ela ostente uma estabilidade... invejável.”
Parece-nos que, ao conceituar a inveja em dois níveis  impulso e defesa  ,
Mezan a afasta da rigidez do inato e a desqualifica como representante direta do Instinto de
Marte.
Nesse ponto, estaria em conformidade com as idéias de Joffe, que preconiza a
necessidade de uma organização egóica mais complexa para que haja a instauração da inveja.
Podemos concluir, a partir desses novos aportes, que a inveja seria um derivado
complexo do Instinto de Morte, na medida em que o que o sujeito invejoso deseja é a
completude que, se alcançada, exterminará o desejo, que é justamente o que impulsiona em
direção à vida.
Por isso, a inveja pode ser vista também como uma defesa contra o Instinto de Morte,
pois nos afasta da completude que nos levaria à morte.

REPERCUSSÕES NA CLÍNICA

Depois de termos percorrido o trajeto em busca da conceituação de “Inveja”, em


Melanie Klein e em outros autores, e comparado a ênfase posta em um ou outro dos seus
aspectos, bem como as diferentes hipóteses quanto à sua origem, chegamos finalmente ao
momento de pensarmos quais seriam as conseqüências dessas diferentes visões na nossa
prática clínica e, talvez, de podermos tentar identificar a ideologia subjacente à escolha dessa
escola de pensamento psicanalítico.
O modelo kleiniano da existência de um ego precoce, com objetos internalizados
formando um mundo interno complexo, nos fornece a idéia de um bebê carregado de
intenções.
Melanie Klein considera que o recém-nascido já é possuidor de capacidades egóicas
tais que permitem, de certa forma, o julgamento e avaliação das primeiras relações objetais.
Essa idéia de que o bebê carrega de intenções os seus movimentos em direção ao
seio materno tem geralmente, como desdobramento, a transposição imediata desse bebê, que
supostamente pode nomear, para a situação analítica onde se encontra um adulto que,
efetivamente, já nomeia e que já possui um aparato mental para apreender o mundo,
diferentemente do recém-nascido.
O conjunto de sensações vividas pelo bebê, a sua visão de mundo monstruosa e as
suas reações correspondentes, se transportados ao paciente adulto, podem provocar uma
distorção, pois não consideram o espaço evolutivo que possibilitou o aplacamento e
transformação dessas vivências. A nomeação desses sentimentos pelo adulto não pode
pressupor a existência dos mesmos sentimentos e com a mesma intensidade, assim como a
sua nomeação “a posteriori” não nos autoriza a pensar que o bebê os soubesse nomear.
De acordo com Joffe:3
“Devemos assumir que fantasias complexas que aparecem na análise e que são
relacionadas com os períodos precoces infantis são fortemente influenciadas pela
contaminação dos períodos posteriores e, no presente contexto, particularmente
pelo desenvolvimento cognitivo posterior.
Argumenta-se que o material dos períodos pré-verbais do
desenvolvimento pode ser colocado em palavras pela primeira vez pelo analista,
palavras que são compreendidas pelo paciente, mas se um paciente compreende o
significado de tais interpretações isso não significa que o paciente era capaz de
tal compreensão durante os primeiros meses da sua vida.”

A ênfase dada por Melanie Klein no surgimento da inveja a partir do Instinto de


Morte provocou, como conseqüência, em muitos dos seus seguidores, uma visão parcial dos
afetos experimentados pelo recém-nascido e, conseqüentemente, pelo adulto em análise. O
paciente muitas vezes é tratado como se fosse um bebê mal-intencionado, carregado de inveja
e destrutividade. Parece haver, na verdade, um menosprezo dos sentimentos amorosos,
reparadores e de admiração, pois esses, via de regra, são compreendidos como sendo
somente uma forma de defesa contra a inveja.
Ao tratá-lo como bebê, desconsidera-se toda a sua evolução e os seus aspectos
genitais, que também estão presentes no material analítico.
Isso pode mantê-lo numa situação de permanente infantilização frente ao analista
“adulto”. Ao mesmo tempo, carregá-lo de intencionalidade, de más intenções, é não
considerar que a análise trata do inconsciente e, portanto, se essas intenções existem, são
inconscientes, e que este é o modo como o paciente pode se expressar e não como ele quer
se expressar.
Se esta não é uma verdade kleiniana, a confusa formulação conceitual da autora
favorece essa leitura e obriga os analistas kleinianos a um esforço de recuperação de aspectos
menos enfatizados, responsáveis pela totalidade do psiquismo humano.
Como Melanie Klein toma a inveja a partir dos impulsos apenas agressivos, tira dela a
complexidade que acrescenta a esse afeto a faceta sexual narcísica e da defesa. A
conseqüência na clínica é apontar o aspecto destrutivo da inveja, sem considerar o aspecto
defensivo contra a enorme ferida narcísica que a constatação da incompletude provoca.
A interpretação que se limita a apontar a inveja é fenomenológica, na medida em que
não se importa com sua gênese e não ajuda no entendimento do sofrimento que acompanha a
erupção da inveja.
O uso da formulação da teoria kleiniana de terminologia corriqueira e de conotação
moral como bom, mau, destrutivo, etc... para designar sensações de um estágio onde as
aquisições éticas e morais ainda não existiam pode ter, e muitas vezes tem, como
conseqüência a moralização do processo psicanalítico, fazendo do paciente um réu em
potencial.
Ainda que se saiba que a intenção pode não ser a de moralizar, como pode o paciente
diferenciar o bom e o mau da fala do psicanalista, do seu próprio conceito de bom e mau?
É difícil não se lembrar da idéia de pecado original quando se pensa a inveja como
inata, pois esse conceito pode facilmente se confundir com a notação religiosa da existência
do erro primordial com sua conseqüente expiação de culpa.
Continuando na exploração do paradigma kleiniano, vamos perceber que a inveja
descrita como um “afeto inato” não considera a notação de “representação”, pois Melanie
Klein não se utiliza deste conceito. Podemos depreender daí que a histó ria relatada pelo
paciente, suas associações, lapsos e sonhos perdem a importância na escuta do analista
kleiniano.
Se nesse ponto comparamos a visão kleiniana e a freudiana, poderemos citar
Bernardi, quando diz que a proposta central do paradigma freudia no e sua conseqüência
técnica seria:

“... reconstruir uma história tomando como fio condutor os impasses da sexualidade
infantil fixados na repressão” ;1

enquanto que a do kleiniano seria:

“... o aproximar-se das experiências emocionais mais básicas nas quais a mente se
encontra enfrentada tanto com suas forças destrutivas quando com as vitais”.
(...) Vê-se que enquanto o primeiro põe ênfase na sexualidade, o segundo a coloca
na destrutividade”.
(...) Por sua vez, no primeiro se trata de reintegrar uma história, enquanto, no
segundo, uma experiência emocional básica”.4

É interessante pensarmos na comparação acima, que expõe com muita clareza o


objetivo clínico desses pensamentos psicanalíticos, e seria bom se pudéssemos encerrar por
aqui, mas o que vemos na prática clínica é que a experiência emocional básica a que se refere
Bernardi acaba sendo somente a básica agressiva, que é justamente o ponto que
questionamos.
Na verdade, se compararmos os paradigmas que orientam a prática freudiana e
kleiniana tal como os vemos, poderíamos dizer que, para Freud, o mundo interno é um caos
que vai se organizando através das representações, enquanto para Melanie Klein o mundo
interno é inicialmente uma distorção que vai sofrendo correções.
A idéia de que a mente do paciente kleiniano se enfrentaria com suas emoções
primitivas, tanto destrutivas quando vitais, não nos parece ser levada a termo.
A visão do mundo interno inicialmente distorcido facilita a emergência no cenário
psicanalítico do analista “pedagógico”, “senhor da verdade”, responsável pela “correta
visão do mundo”, o que auxiliará o paciente a corrigir essas distorções.

CONCLUSÃO

Nossa conclusão é que, quando se conceitua um sentimento como inato, usando-se


para nomeá-lo um termo corriqueiro carregado de forte conotação moral, como no caso da
inveja, isso favorece o desenvolvimento de uma visão rígida do psiquismo do indivíduo,
propicia o surgimento de interpretações que podem ser ouvidas pelo paciente como
acusatórias, ao mesmo tempo que impede o surgimento de outras formulações interpretativas
mais abrangentes que apontariam novos caminhos para a solução dos seus conflitos psíquicos.
Nesse contexto, a técnica kleiniana corre mais riscos de se afastar da verdade do
paciente, porque parte de um paradigma e pressupõe um entendimento “a priori” por parte
do analista que, ao interpretar baseado nessa suposta compreensão, não permite que o
paciente se descubra na sua especificidade, que poderá se mostrar distinta daquela que esse
analista supôs.
Esse risco fica mais acentuado na medida em que a teoria kleiniana não tem uma
postulação teórica muito clara, os conceitos não são explicados na sua origem, mas apenas
descritos de forma fenomenológica, o que acaba por reforçar ainda mais a noção de crença.
A perspectiva aberta pela compreensão da inveja ligada à noção de narcisismo nos
levou a considerar que a interpretação kleiniana se detém apenas no que pode ser visto como
o objetivo imediato da inveja, a destrutividade sem poder desvendar o desejo transportado
pela inveja, que é o do acesso ao inatingível, à completude, que o sujeito crê ser de posse do
invejado.
A introdução desses novos modelos para pensar a inveja nos levou também a
considerar a necessidade de ter um corpo teórico para seguir, sem, no entanto, necessitar ter
uma adesão rígida a ele, e a importância de poder reconhecer que, às vezes, as teorias não
dão conta de todas as questões que aparecem e, portanto, às vezes precisamos lançar mão
de outros paradigmas, sem com isso descaracterizar o corpo teórico seguido, mas sim
acrescentando a ele novas possibilidades.
Essa conclusão, que parece colocar por terra o conceito de incomensurabilidade
citado no corpo desde trabalho, na verdade esclarecer o que pensamos: que as teorias
apresentam, quando comparadas na sua totalidade, pontos de incomensurabilidade e pontos
de complementação.
É no limite tênue entre o ecletismo descaracterizante e a adesão rígida
empobrecedora que, acreditamos, devemos nos conduzir.
Caso contrário, corremos, o risco de nos tornarmos surdos ao novo e inesperado que
cada paciente pode nos trazer.
Os elementos acrescentados à noção de inveja, descrita de maneira brilhante por
Melarei Klein e efetivamente encontrada na clínica, e a exclusão de seu aspecto inato
permitem uma maior flexibilização e nos dão um pouco mais de acesso à complexa e
enigmática dimensão do ser humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BERNARDI, RE. − El Poder de las teorias − El Papel de los Determinantes


Paradigmáticos em La Compreensión Psicoanalítica − Int. J. Psychoanal. 1989, 70, p.
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2. DOIN, CARLOS − Lacan, Winnicott e o Espelho. Boletim Científico da
SBPRJ, junho 1989, nº 8.
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Psicanálise − N. York − Fev. 1969 − Texto datilografado.
5. KLEIN, M. − Inveja e Gratidão − Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda. 1974.
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7. MENEZES, L.C. − Diferentes teorias, uma Psicanálise. Trabalho apresentado
no VII Fórum Internacional de Psicanálise em out. 89 RJ.
8. MENEZES, L.C. − Adendo ao Artigo − Diferentes teorias, uma Psicanálise.
Apresentado no Curso Questões em Psicanálise na SBPRJ, 1990.
9. MEZAN, R. − A Inveja − In Os sentidos da Paixão. 2ª edição. Companhia
das Letras. RJ 1987.
10. SEGAL, H. − Introdução à obra de Melanie Klein, Imago Editora Ltda. Rio
de Janeiro − 2ª edição, 1975, pp. 51, 64.
11. SOUZA, P.L. ROSA e FRANCISCO, B.S.S. − Paul Lorenz e a Fantasia dos
Ratos − A Clínica e os Paradigmas − Relatório do Grupo de Estudos Psicanalíticos de
Pelotas − Apresentado no 12º Congresso Brasileiro de Psicanálise − Rio de Janeiro −
Setembro 1989.
−−
RESUMO

As autoras aplicam a noção de Paradigma ao conceito de Inveja em Melanie Klein,


acrescentam a ele aportes e críticas de outros autores e questionam o aspecto inato postulado
na obra kleiniana. Dão ênfase às possíveis distorções que o uso rígido deste paradigma pode
acarretar na prática clínica.

ABSTRACT

The authors apply the notion of Paradigm to the concept of Envy in Melanie Klein,
and add to it some notions and criticisms by other authors. They also question the inborn
aspect proposed in Klein’s theory. They emphasize the possible distortions that the rigid
application of this Paradigm can bring to the clinical practice.

Tendências à reparação na análise de uma criança


Neilton Dias da Silva

A análise de crianças enriquece muito o terapeuta pela facilidade com que permite
observar a emergência das ansiedades primitivas e a mobilização das defesas que se
expressam freqüentemente sem os disfarces mais sofisticados dos adultos. Em compensação,
a rápida e sucessiva mudança de foco e de papéis nas cenas desempenhadas, além do tumulto
desenvolvido na sala de jogos e do esforço físico requerido do terapeuta, dificulta a
possibilidade de registro mais fiel da realidade de cada sessão.
Pretendo falar, neste trabalho, de uma criança que, vivendo num mundo de ansiedades
predominantemente persecutórias, utilizando defesas de cisão, negação, identificação proje tiva
e controle onipotente e obsessivo dos objetos, defrontou-se, em certo momento, pela
evolução de seu tratamento, com uma constelação mais organizada de ansiedades
depressivas. Destaco, através de fragmentos de sessões, um instante em que o apelo para
reparação começa a se fazer de modo mais evidente.
Nosso cliente, Bruno. Acabou de completar 7 anos. Estava em tratamento
psicoterápico desde os 4 anos, interrompendo-o por ter o terapeuta transferido residência
para outra cidade. Foi criança difícil desde que nasceu. Amamentado ao seio por dois
meses, chorava muito quando acordado, intensificando seu choro antes, durante e depois da
mamada. Como aumentava de peso, a amamentação foi mantida. Um dia, o pai sugeriu dar
mamadeira, e a mamada se fez sem “o choro enlouquecedor”. Estabeleceu-se então
aleitamento artificial, já que também era a época de a mãe retornar ao trabalho. Sempre teve
muitos medos, piorando a partir dos dois anos e meio, sem causa aparente. Teve dificuldades
na evacuação até os 4 anos: prendia quando ia ao vaso e se sujava todo depois.
Sempre foi difícil para alimentar-se e aceitar coisas novas. Tônus muscular flácido,
sem causa definida, tendo recentemente terminado ano e meio de tratamento fisioterápico,
com melhoras parciais.
Há três anos entrou para a escola, não se adaptando. Chorava muito, de início;
acabou ficando, mas quieto e acovardado. Da escola foi encaminhado ao tratamento anterior.
Foi alfabetizado o ano passado, lendo relativamente bem. Vem se dando melhor com a mãe
“de uns tempos para cá: antes não poderia dizer que era relacionamento”. Agora começa a
relacionar-se com o pai. Tem uma irmã de 5 anos e meio. Teve ciúmes quando ela nasceu,
mas agora diz ser sua melhor amiga porque brinca com ele. A mãe é uma pessoa pouco
comunicativa, mas parece sensível face aos problemas de Bruno. Trazia -o às sessões
parecendo ter sempre boa vontade, paciência e se esforçando para compreendê-lo.
O pai é descrito como relativamente ausente no cuidado com as crianças.
Ao contato inicial encontrei um garoto que me pareceu simpático. Acompanhou-me
de bom grado à sala de brinquedos e após certo tempo de avaliação do terreno desenvolveu
atividades espontâneas. Chamou a atenção, na primeira sessão, a preocupação em organizar
o universo com a arrumação de animais em filas: de um lado, os selvagens, de outro, os
domésticos. Dispôs objetos de cores claras e brancas em face de objetos pretos e escuros
(cubos de madeira, carrinhos, etc.). Identificava e separava assim o bom, útil e amigo, do
mau perigoso e destrutivo; o sujo, preto, do branco, limpo, e se tranqüilizava reassegurando-
se de um espaço conhecido e bem delineado onde manejava, no mundo externo, suas
ansiedades persecutórias relacionadas ao novo terapeuta do qual esperava ajuda, por um
lado, mas que já era repositório da carga traumática de abandono, vivenciado na relação com
o antigo terapeuta. E dava conta do splitting e controle que deveria estar se operando no seu
mundo de objetos internos.
O tratamento desenvolveu-se com 5 sessões semanais. Com o passar das sessões
exteriorizou com mais clareza e abundância situações ameaçadoras do seu mundo interno.
Após o primeiro fim de semana, construiu “uma pista de corrida perigosa”,
perigosa”, onde os carros correm, passando debaixo das almofadas, quando, após ouvir-se o
brado inquisitivo de “quem apagou a luz?”, seguiu-se violenta briga. Essa mesma briga
também acontece quando, depois de pedir ajuda, constrói um barco de papel, põe na pia
cheia d’água e vai fazer “uma viagem bem perigosa”, onde surge tempestade, quase virando
o barco. Terminada a viagem, organiza uma luta entre animais. A viagem recomeça em
seguida, devendo o barco passar “por um túnel enrolado” em que “todos vão ficar pretos” e
termina com os participantes enrolados em barbante. Ele também fica enrolado e se enrola
mais quando vai guardar tudo, no fim da hora, tendo dificuldades em sair.
Concomitantemente, tinha atitudes de mandar-me calar as interpretações, ameaçava bater-me
e, às vezes, invadia-me com gritos inesperados visando meus ouvidos. Fazia evidente o
anúncio de uma viagem (a análise) perigosa e conflituosa e a externalização de um mundo
interno cruel e agressivo. As defesas visavam principalmente proteger -se, atacar e destruir o
inimigo (o parceiro) e controlar através do invadir e tomar de assalto. O tema foi
desenvolvido durante grande parte do tratamento. A partir desse prenúncio foi-nos dada a
chance de, pouco a pouco, acompanhar as cogitações e vivências sobre o interior dos objetos
agressivamente invadidos, as destruições efetuadas (já que todos, agressor e agredidos, ficam
pretos, estragados dos modos mais diversos) e os temores de retaliações e castigos.
É um círculo vicioso no qual se enrola, embaraça e não consegue sair. Por outro
lado, fica também atendido um outro anseio, o da fusão com o objeto, que evitaria a
separação, o abandono.
Exibe desde as sessões iniciais um interesse e ocupação com os monstros do mundo
pré-histórico. Tem coleções de livros sobre o assunto, que lê e faz a mãe ler-lhe. Traz para
as sessões, repetindo a operação comigo, surpreendendo-me, pois conhece os livros
literalmente de cor. É um mundo dominado pêlos gigantescos dinossauros, alguns herbívoros
e outros carnívoros, que vivem em luta permanente. Elasmossauros, plessiossauros,
dimetrodontes, brontossauros, tiranossauros, ictiossauros exibem a grandiosidade de porte e
ferocidade.
Mordem, devoram, pisam, esmagam e se destroem uns aos outros incontrolavelmente.
A identificação com tais monstros é desejada e demida, traz poder e uma capacidade de
destruição incomensurável.
Dramatiza nas sessões os ataques mais violentos e fica aterrorizado com o que
imagina ser qualquer reação minha. Outras vezes se machuca após tais ataques, batendo
braços, pernas nos móveis ou levando tombos, infligindo-se o castigo por tais meios. Não é
incomum apresentar manchas roxas pelo corpo.
Uma das queixas trazidas pela mãe referia-se ao seu comportamento na escola. Fazia
parte do grupo rotulado como “agressivo”, embora fose saco de pancadas. Apanhava até
dos menores e não revidava. Creio que suas inibições relacionavam-se com as fantásticas
conseqüências do seu sadismo “pré-histórico”, interferindo no seu controle esfincteriano e
de algum modo até no seu compartamento muscular, em que pese a existência de possíveis
causas orgânicas.
Outro aspecto enfatizado nos referidos monstros era o da voracidade: comiam
rebanhos de animais, cardumes de peixes, florestas inteiras, e freqüentemente a sobrevivência
de uns era garantida pela ação de devorar o outro. Concomitantemente, nas sessões são
comuns os temas que dizem respeito à moralidade.
Suas brincadeiras e jogos encerram muitos enredos de comer doces, frutas, pratos
preferidos, ou frustrações em relação a isso. E a constelação persecutória insere-se o mais
das vezes no contexto.
Certa vez trouxe jogo de damas para a sessão e convidou-me para jogar, entrando
em pânico quando fui comer uma pedra sua: comer a pedra era comê-lo concretamente. Só
após interpretações sobre a dificuldade de simbolizar, aceitou continuar o jogo, em relutância
e muito abatimento. De outra feita, desenhou um elasmossauro e um boneco, sendo este
último comido pelo primeiro, em seguida. No material anterior e posterior ele era o que fazia
traços gigantescos no quadro negro, era o grande, o poderoso, e chamou a atenção para a
própria barriga. Era, portanto, o elasmossauro e eu o boneco, tinha me comido e eu estava
na barriga dele. Após a interpretação, desenrolou-se uma situação dramática de pavor na
qual a retaliação era esperada, atacando-me ele antes e procurando conter-me a qualquer
custo com as mais diversas medidas, como apresentaremos adiante.
A permanência dessas ansiedades em nível tão primitivo e tão vivas faz-nos recordar
de sua “pré-história”, as dificuldades iniciais com o seio, onde parece ter-se feito uma
relação frustradora e persecutória. Podemos levar em conta dificuldades por parte da mãe,
mas não podemos deixar de pensar também na força dos impulsos agressivos do próprio
paciente, levados ao encontro das dificuldades maternas.
Outro fato que não podemos deixar de levar em conta também foi a possibilidade de
modificação da relação, ainda que em certo grau, no contexto de outra realidade quando
entrou em cena a mamadeira. É um fato importante quando imaginamos qualquer avaliação
prognóstica.
A própria cena primária é descrita em termos orais sádicos, como uma sessão em que
fala do espaço sideral e me sabatina sobre os anéis de Saturno, grandeza e distância dos
diversos corpos celestes. A certa altura desenha um asteróide no quadro negro, faz outro ao
lado e diz que “o asteróide menor chupa o maior e fica um mais pequeno”. Ele é “o
filmador”. Assiste, documenta e controla, no mundo interno, a cena primária sádica: o pai
engolido e fundido com a mãe (pais combinados) e o eventual nascimento de rivais, em outro
plano (meteoritos), que se desgarram e o ameaçam com bombardeios incessantes.
Um dos aspectos dificultadores da convivência com Bruno em casa era o seu
comportamento ditatorial. Submisso e acovardado diante dos “de fora”, tornava-se o dono,
o tirano em casa; batia, chutava, quebrava, emitia sons explosivos e estava sempre
submetendo a família aos seus caprichos. Nas sessões tinha dificuldades em suportar as
interpretações, reagindo muitas vezes com gritos e violências.
Adquiriu surpreendente soma de conhecimentos, para sua idade, a respeito de alguns
temas como mundo pré-histórico, espaço sideral e vida animal, entre outros. Utilizava esses
conhecimentos para negar sua sensação de pequenez e dependência ante suas figuras
representativas. Era o sábio admirado por todos e não perdia ocasião de mostrar sua
erudição.
Não suportando tomar conhecimento do dano infligido ao objeto ao qual se ligava,
lançava mão abundantemente do controle mágico onipotente para impedir a esperada
retaliação. No episódio antes referido, em que ele, elasmossauro, come o boneco analista e
entra em pânico, passa a agredir com socos e pontapés, sendo necessário contê-lo. Após a
interpretação do medo da retaliação e da identificação projetiva que faz, aquieta-se, pega
papel e lápis e me ordena escrever o que dita: 21 nomes de bichos ferozes, quase todos
dinossauros.
Assim, as posições ficam invertidas, ele é o professor, eu o aluno que fica contido,
submetido às ordens do mestre. Ele tem a seu serviço os poderosos monstros pré-históricos,
cujos nomes e hábitos lhes são tão familiares. Não suficientemente seguro, dia ainda os
nomes dos 16 desenhos animados que costuma ver, com os no mes dos heróis, naturalmente,
tornando-se ainda mais forte.
Mostra, assim a fragilidade da defesa, que tem de ser reforçada e constantemente
renovada, num trabalho exaustivo. Acentuo ainda a resposta à interpretação quando da
atividade de atacar e destruir o analista passou a submetê-lo e controlá-lo com o auxílio de
bichos ferozes e heróis.
Em outra ocasião, entrou na sessão triunfante com um bolo de cartões de uma
coleção de jogadores de futebol na mão (sabia muito sobre jogadores de futebol e seus times
do país inteiro): conseguira completar 186, mais do que a irmã e do que os coleguinhas 
contou-as uma a uma e só tinha 185. Todo o seu poder, segurança e estabilidade
desmoronou-se  chorou e exibiu o descontrole da impotência extrema. Seus impulsos
destrutivos projetados e reintrojetados tornaram o mundo interno monstruosamente
persecutório; só tendo poderes extraordinários podia -se fazer face ao perigo.
Compreensível se torna a necessidade de ser o maior colecionador, o mais entendido em
assuntos diversos, o mais forte e o mais inventivo.
Estava sempre inventando máquinas: uma contra chuva de meteoros, outra para filmar
e provar que o monstro do lago Ness é um elasmossauro e não um plessiossauro, “como
dizem”. Está sempre inventando jogos, cujas regras só ele conhece e que lhe permitem
ganhar e tripudiar sobre o analista. Como todo esse poder, organiza o mundo como melhor
lhe apraz, assegura a posse e o controle do objeto desejado e elimina os rivais; na máquina
contra chuva de meteoros “me nina não entra”. A irmã ficava excluída de qualquer
participação, era ignorada, não existia e, por outro lado, ficava exposta para ser esmagada
pêlos temíveis petardos.
Às vezes é difícil precisar a época em que começa a se fazer uma mudança
significativa no tratamento. Freqüentemente só nos damos conta do fato quando a situação já
se estabeleceu. Rememorando “a posteriori”, fica mais fácil nos apegarmos a um evento
importante. É o que faço agora. Creio que a relação já se fazia menos tumultuada, havia a
possibilidade de trabalharmos em conjunto por um tempo mais dilatado. Lembro-me de
construções com cubinhos de madeira, em que a minha participação era mais solicitada e
observada, num clima de certa harmonia. Foi introduzido um novo personagem na sessão, um
coleguinha que era “o amigo” e deu margem a vermos a nossa relação sentida como mais
amigável. Mas, aproximadamente em torno do 8º mês de tratamento, estando a avó materna
doente em outra cidade (de moléstia grave da qual veio a falecer poucos meses adiante), a
família viajou numa emergência, ausentando-se o paciente das sessões por uma semana.
Na primeira sessão subseqüente chega, abre a gaveta e encontra uma revistinha que lá
tinha deixado; diz; com satisfação: “Está aqui a revistinha! um tempão...” folheia... diz: “Do
mesmo jeito.”
 Digo: inteira, apesar do tempão que passou. E eu também inteiro, do mesmo
jeito. Ri. Logo depois vai à gaveta, retira uma bola, chuta forte na parede, depois joga em
cima de mim. Volta-se para a gaveta e pergunta se eu não comprei pilot como mandara e
reclama: “tem que trazer amanhã, se não... (castigo)”.
Mostro como ele procura dar demonstração a nós dois de que é forte, manda em
mim, só assim acha que vai ficar inteiro, eu não vou rasgá-lo, adoecê-lo.
Pega papel e lápis dizendo que vai fazer um quebra-cabeças. Pinta um pedaço,
começa a cortar com a tesoura: “Vou cortar um x e vou arrumar”  Continua executando.
 Digo que há um quebra-cabeças, um problema que precisa armar, arrumar.
Qual é o x? O que está havendo com a vovó? Diz: estava doente, mas está boa
agora. Vim de lá.
Continuo: O que há com quem Bruno deixa um tempão, de quem se afasta.
Adoecer? Rasga-se? Morre?
Ele me dá ordens para calar a boca e depois manda: Corte! Pinte! Cole! Digo que
tendo toda esta ocupação não posso fazer nada contra Bruno: Não vou jogar bola nele, não
vou matá-lo...
Manda calar a boca. Manda cortar de forma diferente, pintar um determinado ângulo.
Exerce assim um controle de déspota, num conflito de vida e morte, e quanto mais me domina
e maltrata piora o medo, mais aumenta a perseguição e mais aumenta a necessidade de
controle tirânico, sem poder sair do círculo vicioso. A alegria de notar que eu estava vivo
dura pouco. Creio ter -se assustado com a evidência do gostar, sentir falta, que expressa a
dependência. Por outro lado, a verificação da existência do objeto independente, separado, é
difícil de ser suportada.
Na rota da fuga da ambivalência está o retorno regressivo, sendo acionadas as
defesas contra a perseguição.
Com o passar do tempo dou-me conta de vários movimentos significando tentativas
de reparação não chegam a resultado exitoso, esvaindo-se na metade do caminho.  Numa
sessão, depois de desarrumar as gavetas e agredir as figuras parentais numa família de
animais, larga-as pelo chão. Após a interpretação da agressão e dos ciúmes em jogo,
verbaliza uma referência às suas atividades bagunceiras e começa uma atividade de
recolhimento dos objetos espalhados pelo chão, chamando-me para ajudá-lo e logo desiste,
achando o trabalho longo e cansativo. Ordena-me: “Escravo, termine de arrumar”.
As tarefas de reparação parecem acima das suas forças, a defesa maníaca toma-lhe o
lugar. Poderia citar inúmeras outras situações similares. Numa sessão posterior  quebra o
apontador de lápis durante uma brincadeira que consistia em atirar objetos a distância.
Aflige-se pelo fato, tomando conhecimento do dano que inflige ao objeto que utiliza, faz
referência à irmã que quebrara o braço em casa quando brincava com ele. Tenta consertar, e
não conseguindo inteiramente, pede-me ajuda. Fica um conserto imperfeito porque um
pequenino parafuso não pode mais ser encaixado. Insiste para que eu conserte, de uma
maneira aflita e até obsessiva. Irrita-se e passa a querer bater-me. Interpreto a necessidade
da reparação perfeita sem vestígios e imediata, se não, retorna a impotência e desesperança.
Em sessão mais adiante promove-me à figura salvadora: eu sou seu instrumento para
fazer a reparação mágica. Há uma brincadeira em que os animais se machucam e eu os curo,
depois caem no abismo e eu resgato; sob as ordens imperiosas do amo, não há tarefa que eu
não possa realizar. Assim, tem um objeto idealizado que o protege no mundo persecutório,
tem um objeto que onipotentemente resiste aos seus ataques e tem também alguém
encarregado (uma instância fora dele) de reparar mágica e pefeitamente qualquer dano
infligido aos parceiros. Com isso tudo, abandona os anteriores movimentos para reparação e
assesta sua defesa em estádios mais precoces do seu desenvolvimento.
Numa sessão de terça-feira entra com um livro na mão, cumprimenta-me ligeiramente
e vai deitar-se no divã, onde fica lendo por certo tempo. Após interpretações sobre a
necessidade de trazer de casa a própria fonte de abastecimento e manter-se à parte, afastado,
sem maior contato, torna -se claro o clima agressivo dentro dele, o medo da violência
projetada e também a necessidade de proteger-me da voracidade primitiva, expressa num
jacaré de boca aberta que passa a se movimentar na sessão. Ao fim desta, enrola o jacaré de
papel e presenteia -me. Demonstra, assim, a periculosidade dos seus impulsos orais
destrutivos, que não podem ser deixados livres e abertos; abertos; demonstra também um
certo crédito e dependência desse objeto que fica encarregado da guarda e manejo dos
citados impulsos.
Na sessão seguinte, chega na hora, entra e vai para a pia, ficando de costas para o
terapeuta. Percebo que faz manobras para beber água, quando lhe mostro a sede, o apetite e
a disposição para satisfazê -los na sessão comigo; (diferentemente da véspera) teve a seguinte
reação: encaminha-se para mim lentamente, ficando frente a frente, e, de surpresa, lança, de
um jato, a água que guardara na boca. Vejo minha camisa molhada com várias manchas de
água.
Vejo seu rosto e percebo a aflição. Volta-se para a gaveta rápido, procurando algo
para limpar. Não acha a toalha e traz um papel, tentando apagar as manchas diligentemente.
Falo-lhe do medo, da aflição de ter-me manchado e estragado alguma coisa entre nós
dois. Continua sua atividade de limpeza sem parar. Falo -lhe da descrença de consertar de
algum modo o dano feito e por isso a necessidade de ter que tirar tudo imediatamente, não
deixar marca alguma. Manda-me parar de falar, tapa os ouvidos. Mostro como ele acha que
eu fiquei manchado mesmo, ruim, e se tapa, se fecha, para que eu não entre nele e não o
inunde, destrua.
Dá uma volta na sala e depois, com voz autoritária, manda-me sentar à mesa. Pega
papel e lápis e manda-me escrever o que ele dita: nomes de super-heróis. Muitos nomes.
Controla-me assim, torna-se invencível para enfrentar o monstro sadicamente criado. Ao
mesmo tempo, não precisa tomar conhecimento do dano efetuado, ele é quem está sendo
atacado. Após algum tempo vem olhar o que faço. Não gosta da letra e ele mesmo passa a
escrever, já que não pode confiar na delegação de poderes. Apesar da onipotência da defesa
maníaca, ela é frágil e precisa ser sempre reforçada.
Em seguida, vai à gaveta, tira alguns objetos e me convida para brincar, após testar-
me e ver se estou suficientemente domado: atira-me pequeno cubo de madeira e observa a
reação; como lhe pareceu satisfatória, oferece-me participação na brincadeira. Animais e
carrinho em viagem. A interpretação mostra-lhe o acima referido e para ele representa
também o fracasso da defesa pretendida. Há uma evidência da separação de objeto e o
retorno das vivências depressivas. Provoca-me com a tesoura, tentando cortar minha calça.
Provoca-me para que o castigue e o controle, impeça de estragar tudo. Passa a ter atitude
mais amistosa, após ser contido, e, em seguida, traz cadeiras, mesa, sofá, armário e os põe
em torno de mim, prendendo-me. Aproximava-se o fim da hora.
A necessidade de segurar-me, controlar-me, além de proteger-se da retaliação, visava
também garantir a relação para que eu não o abandonasse após sofrer tantos danos.
No dia seguintes, entra com uma revistinha nas mãos. Senta-se, lê um pouco e pede-
me depois que leia para ele. Leio uma aventura de vários garotos que jogam futebol. Há
sempre rivalidade, brigas e violências. Mostro o que ele quer me mostrar: imagem do mundo
interno dele e a luta que está fazendo para me manter amigo dele, podendo até pedir que eu
leia para ele. Lê outra aventura sozinho. Levanta-se, vai à gaveta, pega Kleenex e me
amarra. Chega perto e beija-me de repente. Mostra, assim, toda a extensão da
ambivalência, o amor e a ameaça sádica que amarra, obstaculiza a liberdade de relação.
Solta-me após a interpretação e pede que eu lhe faça um barco de papel. Põe na pia para
uma viagem. Acentuo a diferença com as viagens da fase inicial do tratamento, digo da
experiência nova que está podendo fazer. Vê que sua sandália está suja de tinta e sujou o
chão. Enche um copo de água e joga no chão. Outro copo depois. Dispõe-se a lavar a
sandália e o chão. Lava, pedindo minha ajuda. Após isso, pega rodo e pano de chão para
enxugar. É evidente o clima de viagem diferente das que costumamos fazer. Creio que o
trabalho feito até agora ajudou-o, pelo menos por um período, a poder dar mais crédito ao
objeto bom internalizando, e por mais tempo, e consequentemente ter mais confiança em si e
em mim.
Assim, fica possível dedicar-se mais à tarefa de limpeza, reparação dos danos feitos e
estabelecimento de relação menos desarmônica. Pega barbante, faz um varal para enxugar os
panos, sempre com a minha ajuda. Procura prendedor e usa a tesoura como tal. Após isso,
olha para a porta, mostra-se inquieto e pergunta as horas. Era próximo ao fim da hora. Creio
ser claro seu desejo de ir embora pelo medo de não poder manter a relação satisfatória por
mais tempo, e interpreto. Diz que quer que eu mantenha o varal estendido até a sessão de
amanhã e o chão limpo. A manutenção dos processos de limpeza e reparação já fica a meu
serviço, é tarefa grande demais para o seu desenvolvimento.

SUMÁRIO

O autor apresenta a evolução de oito meses do tratamento de uma criança cuja


sintomatologia expressava sérias dificuldades de desenvolvimento e adaptação.
São acompanhadas as exteriorizações de ansiedades, predominantemente
persecutórias, com o acionamento de defesas como cisão, negação, identificação projetiva e
controle onipotente e obsessivo dos objetos.
É destacado, através de fragmentos de sessões, um momento em que mais
ordenadamente se organiza uma constelação de ansiedades depressivas e o apelo para
reparação começa a se fazer de modo mais evidente.

SUMMARY

The author presents the evolution of eight months of treatment of a child whose
symptomatology expressed serious difficulties in development and adaptation.
His behavior was acompanied by predominantely persecutory anxieties with the onset
of the defense mechanisms of split-off, denial, projective identification and omnipotent and
obsessive control of objects.
Featured, through fragments of some sessions, is a moment of treatment in which the
constellation of depressive anxieties is more systematically organized and the call for reparation
begins to be made in a more evident way.

Dificuldades na elaboração da posição depressiva


Maria Eleonora Erthal Perecmanis

No processo de desenvolvimento, a elaboração da posição depressiva ocupa um


lugar da maior importância, e esse fato tem sido cada vez mais reconhecido por muitos
analistas desde os estudos e conclusões de M. Klein e Bion. Através de sua prática analista
com adultos e principalmente com criança, Melanie Klein nos trouxe o conceito de um ego
rudimentar no bebê, com condições de esta belecer relações com a mãe e, paulatinamente,
percebê-la como uma pessoa completa. Esse ego rudimentar desenvolve primitivos
mecanismos mentais com os quais então passa a defender -se da frustração, da ansiedade,
sentimentos que o bebê experimenta tão logo se inicia a sua relação com a mãe, que de início
é ainda um seio alimentador, mas que provavelmente transmite já ao bebê uma experiência
mais completa. Os cuidados maternos comunicam através do som da voz, dos passos e dos
toques ao vesti-lo a presença de uma concepção de mãe. Nessa relação onde o bebê é
alimentado ao seio, ele ao mesmo tempo está engolindo o leite e vivenciando uma experiência
emocional. Está colocando para dentro, introjetando uma mãe que o amamenta e o assegura
de seu amor. Ao mesmo tempo, ele pode estar dirigindo todo o seu amor e gratidão para
dentro da mãe quando se identifica e projeta esses sentimentos dentro dela. Essas
identificações projetivas iniciais serão base para muitos sentimentos desenvolvidos
posteriormente, como a empatia e a solidariedade, na vida adulta. Quando o bebê está
sozinho e sente fome, medo ou frio, ele atribui ao seio-mãe a responsabilidade pelo que está
lhe acontecendo. Para se proteger desses avassaladores sentimentos de desintegração e
pânico, cinde essas partes de si mesmo e as coloca dentro do seio, que, a partir daí, é
percebido como um seio que pode machucá-lo, que está ameaçando-o, e então passa a ser
temido e afastado. Com os cuidados, a atenção e a capacidade da mãe de tolerar e
compreender esses sentimentos, o bebê volta a reintrojetar uma mãe que o ama e está
ativamente tentando compreendê-lo e ajudá-lo. Nesse período da posição esquizoparanóide,
o bebê ora está dentro da mãe, ora a mãe está dentro dele, onde ele tem a posse, o controle
dela e está identificado com suas qualidades, o que lhe permite desenvolver esse ego
rudimentar que cresce a partir das introjeções sucessivas nesse interjogo da relação. À
medida que o bebê se desenvolve, tende a perceber a mãe como uma pessoa separada dele ,
com funcionamento próprio e independente. Aí o bebê estará sendo capaz de elaborar essa
separação e passar pelas perdas, apesar dos grandes progressos, da posição depressiva.
Neste trabalho, estou interessada em apresentar situações internas de tal ordem perturbadas
que não permitiram aos pacientes aceitar a separação de sua mãe, posteriormente também do
pai e irmãos, e discutir as possíveis causas situações. Nas etapas primitivas da posição
depressiva, ocorre um movimento de introjeção e identificação com a mãe semelhante ao que
ocorre nas primeiras fases do luto, quando o ego se identifica com o objeto perdido de uma
forma completa, fundindo-se perdendo partes importantes de si mesmo. Essas partes
permanecem mergulhadas dentro do objeto, que é ao mesmo tempo introjetado, tornando-se
assim o mundo interno do indivíduo. A identificação é tão total que o ego fica dominado pelo
objeto introjetado. Permanece submerso e apagado parcialmente sob a força dessa
introjeção, levando ao desaparecimento para dentro do objeto de uma série de
potencialidades e qualidades do ego. Desta forma, ele possui inteiramente seus amados
objetos pela identificação introjetiva com eles, a tal ponto que, na sua fantasia inconsciente,
ele e o próprio objeto são idênticos, e assim nenhuma percepção das diferenças entre eles
será notada e, principalmente, não surgirá a tão angustiante dor da separação entre os dois.
Essas etapas precoces são parte do processo de desenvolvimento, e a elaboração desse
período trará frutíferos crescimentos para o ego e o mundo interno do bebê, quando ele,
apesar do sofrimento, for capaz de abrir mão de possuir inteiramente os pais, podendo
suportar sua incapacidade para protegê-los e livrá-los da velhice, da morte e das perdas.
Este é um aspecto crucial  a renúncia à posição de proteção total aos pais, porque isto
eqüivale à renuncia às fantasias onipotentes primitivas que contêm, por seu lado, os recursos
reparativos igualmente grandiosos, totais e oniscientes. Imaginamos que não dispomos de
palavras apropriadas para descrever esse período do desenvolvimento de um bebê. Mas
podemos sentir a força da natureza de tais sentimentos e fantasias na relação com nossos
pacientes durante as sessões.
Apresentarei algumas situações dentro da análise de um paciente que acredito estar
com muitas dificuldades para atravessar essas etapas iniciais da posição depressiva. Tenho
sentido nesses três anos de análise o impacto dessas identificações projetivas precoces e
como essa maneira de se relacionar, na vida adulta, parece tão similar aos prováveis períodos
mais primitivos da vida desse paciente. Vou trazer parte de uma sessão onde ele iniciou, após
deitar-se, falando sobre o estresse de seu filho e como ele se comportava ao inverso do que
seria melhor. Ele falava contido, do mesmo jeito com que havia se deitado, não querendo
deixar nenhuma pista para mim de que estivesse angustiado. Continuou falando
pausadamente, mais adulto, das coisas razoáveis que o filho deveria fazer. Eu estava com a
impressão de que ele e eu estávamos pensando de uma forma bastante parecida, e ele
prosseguiu o relato pausado e amadurecido. Eu, aos poucos, percebi que me sentia
pressionada a pensar como ele, assim como a permanecer concordante e, principalmente,
silenciosa. Disse a ele então que, se eu falasse, ele se sentiria muito mal porque poderiam
aparecer as diferenças na forma de pensar entre nós dois, e ele parecia estar fazendo muita
força para evitar isso. Ele passou a falar imediatamente, tão logo eu havia terminado. Essa
era uma forma usual de sua comunicação comigo. Assim que terminava a interpretação, ele
iniciava outra comunicação, de forma a não existir nenhum intervalo entre nossas palavras. As
sessões eram repletas de palavras, e ele evitava intervalos, mesmo que pequenos, quando
poderia se dar conta de que éramos duas pessoas com um funcionamento físico e mental
separado. Interpretei que ele falava logo em seguida às minhas palavras para não haver
nenhum espaço de silêncio entre nós dois, vivenciado por ele como um momento de estar
sozinho e separado de mim. O paciente respondeu, após uma pequena pausa, que os
duendes existem quando se acredita neles. Eu disse que pensava nos duendes como os seres
mágicos que seriam seus sentimentos que habitavam a floresta, que é o mundo interno, e que
o assustam, com pânico de ficar isolado, sem ajuda. A única saída era ele ter um controle
sobre mim a ponto de nós dois ficarmos colados um ao outro. Ele disse que havia acordado
nessa segunda-feira, sentindo-se muito angustiado. Eu acho que ele, a partir daí, nessa
sessão, estava mais próximo de entender sua ansiedade quando se separava, não só no fim-
de-semana, mas quando nossas palavras não estavam unidas de forma permanente. Ele
compreendeu sua angústia relacionada aos sentimentos de solidão e isolamento no fim-de-
semana. Na sessão seguinte a essa, ele trouxe um sonho onde estava ao lado de um pequeno
lago escuro, de uma água viscosa e grossa, e dentro desse lago existiam algumas moedas de
ouro. Ele disse se sentir vazio naquele dia. Mostrei a ele as perdas das partes importantes
dele quando essas se fundiam tão completamente comigo a ponto de não sobrar chance para
ele ter contato com suas moedas de ouro, ou seja, como seus sentimentos e potencialidades
que ficavam mergulhados dentro de mim.
Essa força da identificação projetiva mergulha e faz desaparecer dentro do objeto
capacidades vitais do ego. Nesse paciente, percebo o quando ele é contido e experimenta
muito pouco de novas experiências. Também está precariamente capacitada para pensar,
uma vez que sua vida mental se restringe a algumas fórmulas de pensamento antigos e com
características de caminhos rotulados e sem vida, com aparência de clichês infindáveis.
Outro aspecto do problema é que esse lago viscoso, na sua fantasia, o aprisiona.
Dentro do seu mundo mental ele também tem um analista que se gruda nele, que o prende,
fazendo-o sentir-se claustrofóbico, atado a ele às vezes de forma cruel e anuladora.
Claustrofobia é uma das suas queixas freqüentes, e acredito que ao menos parcialmente esteja
ligada a esses sentimentos inconscientes. Na segunda-feira seguinte, ele iniciou raivoso e
revoltado, e eu me sentia tratada com certa agressividade porque ele usava palavras mais
duras e um tom muito pesado. Contou que sua mulher queixou-se de sua maneira de tratá-la
e ele, por sua vez, estava muito ressentido por não ser valorizado como deveria. Ele
continuou falando sobre uma notícia no jornal onde um grupo de pessoa passava o fim-de-
semana num hotel maravilhoso e continuou dizendo que após ter lido essa notícia ficou
pensando que, se estivesse lá com um grupo, provavelmente sua mulher iria deixá-lo para ir
conversar com algum homem do grupo. E descreveu como ele se sentira enciumado e
chateado com isso. Reclamava que a mulher não poderia deixá-lo assim. Deveria estar ao
seu lado quando estivesse jogando tênis para dar-lhe apoio ou acompanhando-o em qualquer
atividade do clube. Mostrei-lhe como estava chateado e ressentido comigo a partir de todos
os pensamentos que estivera desenvolvendo dentro de si a meu respeito. De como ele me
sentia desprezando-o durante o intervalo entre ontem e hoje. E como eu na sexta-feira, após
a sessão, estaria querendo me ver logo livre da sua presença, quando finalmente eu iria para o
meu fim-de-semana, deixando-o para que se virasse sozinho. O paciente concordou que
havia pensado nisso. Eu então disse que a partir desses pensamentos ele foi desenvolvendo
toda uma situação real dentro de si do meu desprezo e por isso ficou muito enraivecido e
frustrado, como estava até agora na sessão. Nesse momento, ele se lembra de uma peça
teatral onde o marido fica vestido de mulher, trancado no armário, olhando por uma fresta e
ordena à sua mulher que tenha relações com o porteiro do prédio. Eu interpreto então que
essas idéias que ele desenvolvera pareciam ser uma forma de me manter dentro de si, quando
então ele poderia ficar, como o ator na peça, determinando o que eu deveria fazer. O
paciente diz em seguida que após a sessão vai novamente telefonar para a mulher e ela
provavelmente virá com alguma desculpa para não sair com ele, e ele então irá lhe responder
com raiva e ela vai se sair com outra resposta atravessada. Eu interpretei mostrando como
ele estava entrando numa situação sobre a qual nós estávamos conversando, quando sou
colocada dentro dele como sua analista-mulher, e assim ficamos juntos em sua mente e a
ordem das coisas passa a ser determinada por ele próprio e eu fico ocupando os lugares
definidos por ele.
Na sessão seguinte, ele inicia dizendo como era difícil lidar com a cabeça do pai, da
mãe e do irmão. Continuou falando das dificuldades com a mulher e criticou a sua maneira
tão próxima de relacionar-se com os filhos. Comenta que o irmão chegou de viagem e de
como ele gosta dele. E diz que esse irmão está achando-o muito bem, tanto que sugeriu que
conversassem muito durante sua estada na cidade. Ele se diz muito feliz com isso e começa a
relatar seu estado emocional de relaxamento e de uma certa lassidão muscular. E, ao
descrever, comenta que se sentia soltando as amarras. Ao mesmo tempo que falava de seu
estado de relaxamento, senti um tom de frustração em sua voz. Falava também que sentia um
alívio muscular como se tivesse tirado um enorme peso das costas. Nessa sessão, eu percebi
o paciente um pouco menos ansioso com as pausas. Ele se permitia um pouco mais fazer
pequenas pausas, mesmo após um ou dois comentários que eu havia feito até aqui. Assim,
interpretei que parecia que ele podia soltar um pouco minhas amarras e permitir que eu tivesse
vida própria fora dele. O paciente, após um pequeno espaço de tempo, diz que estava
sentindo-se mal, com pânico, e não estava conseguindo respirar direito; falava também que
estava suando frio e com medo de morrer. Eu disse a ele que estava com tanto medo porque
achava que eu iria embora e não cuidaria mais ele. Essa crise que se desencadeou quando
falei em eu ter vida própria foi sendo entendida por ele, que recobrou seu equilíbrio para
terminar a sessão.
Na sessão seguinte, ele inicia dizendo que está muito bem e que está até surpreso de
estar tão cheio de energias e muito disposto. Logo em seguida, conta que brigou
violentamente com o filho caçula e chegou a lhe dizer que saísse de sua vida, expulsando-o de
casa. Depois teve outra discussão com o filho mais velho, onde também foi violentado. O
motivo das duas discussões estava ligado à suas imposições aos filhos. No telefone, com um
outro irmão, foi igualmente duro e arrogante, e com a mãe perdeu o controle, começou a
gritar e chegar a estranhar sua atitude, comentando na sessão que ele parecia outra pessoa
sobre a qual não tinha domínio. Eu interpretei seu movimento de retomada do controle das
pessoas, de mim, e relacionei essa retomada com ele se sentir cheio de energia porque
possuía a todos. Ele conta então um sonho onde ele estava voando, como se fosse planando,
mas que subitamente deu um vôo para dentro da terra em profundidade e sentia -se muito
bem, apoiado pelas paredes da terra como se fosse num túnel. Ele disse que não estava com
medo porque se apoiava nas paredes laterais. Esse sonho nos ajudou, junto do que havíamos
conversado durante a sessão, a compreender um pouco melhor o seu sentimento de pânico,
de estar morrendo, que era a mesma senão no sonho, ao vo ar, de estar planando solto, sem
ligações afetivas. E quando ele precisa então rapidamente, como no vôo do sonho, ir para
dentro da mulher, da mãe e também colocá-las dentro de si, sob seu controle, mesmo que
para isso precise usar uma certa violência. Dentro dos objetos sente-se seguro, não tem mais
medo porque os possui.
Acredito que o paciente tenha conseguido fazer um pequeno movimento em direção à
elaboração, do luto, no afastamento da posição de estar grudado comigo e,
conseqüentemente, numa pequena elaboração das perdas dos objetos primitivos de sua vida.
John Steiner nos fala dos diminutos passos, em mínimas quantidades de elaboração e
da importância da interpretação desses momentos para o paciente. A interpretação dessas
ansiedades mentais, da dor mental ocasionada pela necessidade de renunciar aos mecanismos
defensivos onipotentes, vai ajudando o paciente na elaboração das etapas posteriores do luto,
onde ao objeto é permitido morrer com toda a dor que isso acarreta.
Gostaria também de trazer outro paciente, o Sr. B, que está em análise há cinco anos
e que me parece estar incapaz de elaborar a posição depressiva, mas apresenta algumas
situações diferentes do paciente anterior. Os mecanismos de defesa que parecem ter sido
postos em atividade e desenvolvidos na fase mais primitiva da posição depressiva nesse
paciente parecem ser os de manter preso o objeto pela identificação com ele, mas sinto que
os instintos agressivos foram bastante mobilizados, de tal forma que ele mantém seus objetos
internos martirizados, a seu serviço, e desfruta de fantasias de superioridade em relação a
eles. J. Steiner nos alerta para o fato de nesses pacientes se desenvolver um conluio perverso
numa rede complexa de relações entre várias partes do self onde as partes boas e más ficam
de tal maneira entrelaçadas que é quase impossível estabelecer uma nítida diferença entre
elas. Isto ocasiona a inesxistência de um paciente fidedigno ao qual o analista possa se dirigir.
Com esse paciente era muito difícil estabelecer uma conversa que soasse mais real e
autêntica. Eu parecia estar aprisionada numa espécie de jogo com elementos sádicos e
mantida aí por muitos motivos inconscientes. É uma espécie de relação complexa, onde o
paciente parecia às vezes tirar muito prazer em me manter presa e enganada. Num dos vários
períodos em que essas fantasias estavam mais evidentes, o seu modo mecânico de falar se
acentuara e as paradas bruscas após duas ou três palavras se tornaram mais pronunciadas.
Eu era mantida presa na poltrona, sendo maltratada, enquanto não podia entender e receber
as frases completas. Nessa sessão, ele contou que deixar a filha de poucos meses chorando
enquanto ele aumentava o volume da televisão. Ele contava e dizia que sentia prazer em ver
um bebê tão pequeno nas mãos dele. Na sessão, eu estava como uma criança pequena
sendo privada de cuidados, palavras, conteúdos, enquanto ele se sentia superior e mais forte.
Eu disse a ele que precisava me manter numa condição inferior e submetida para que eu
pudesse entender como ele se sentia frágil e pequeno nas minhas mãos. Ele me comunicava
esses seus sentimentos através da identificação projetiva dessa criança pequena, solitária e
amedrontada. Eu meidentifiquei com esse menino durante algum tempo na sessão e depois
falei ao paciente como se sentia desprotegido e aterrorizado.
Penso que a manutenção dessa utilização da identificação projetiva e a freqüência
com que eu era mantida aprisionada durante muitas sessões dos seus primeiros anos de
análise tornam essa identificação projetiva com características próprias, com traços marcantes
de um certo sadismo, e acredito que esses caminhos vieram sendo traçados desde sua
infância remota e se mantêm até a fase adulta com prováveis poucas alterações, uma vez que
sinto estar dentro de uma relação com traços de onipotência e de violência quase psicóticas e
por isso muito primitivos. Essa foi a sua forma inconsciente de apresionar seus objetos
arcaicos e mantê-los pequenos e indefesos, em posição de submissão a ele, quando então
alcançava a posição de ser o forte e o que impunha as condições.
Numa sessão após um fim-de-semana, ele contou-me que foi ao parque com o filho
de três anos e que se escondia para vê -lo chorar. Interpretei como se sentia muito perdido e
em esperanças. Acho que isso também é verdadeiro, mas o que sinto ao mesmo tempo é que
estou numa relação onde elementos inconscientes de defesa contra a separação são de uma
natureza diferente dos utilizados pelo Sr. A. São forças que puxem o objeto para o mundo
para também mantê-lo em sofrimento. O paciente se defende da dor mental da percepção da
separação exercendo o pânico, o medo e mantendo sua superioridade sobre os filhos e sobre
mim. Nesse período de sua análise, que foi em torno do segundo ano, ele, após uma semana
de trabalho relativamente produtiva, voltou na sessão seguinte dizendo que estava pensando,
no elevador, que me enganara. Acredito que esse paciente se apresentava às vezes, como
nessa sessão, numa atitude superior e um pouco arrogante, como uma forma de se proteger
dos sentimentos de dependência ao ser alimentado e cuidado por mim. Os passíveis
sentimentos de gratidão inevitavelmente surgiriam acompanhados pela percepção de que
éramos duas pessoas independentes e ele teria que admitir sua dependência para crescer e se
desenvolver. E esses sentimentos precisavam ser, a qualquer preço, evitados. Ainda no fim
do segundo ano de tratamento, ele sonhou que conversava com um homem que usava uma
máscara de ferro. No sonho, ele dizia saber que estava enganando esse homem durante toda
a conversa. Nessa sessão, sua atitude de superioridade e ligeira arrogância estavam muito em
evidência. Ele fazia muitas pausas, sendo difícil acompanhá-lo. No decorrer da sessão, após
o sonho, comecei a me sentir atemorizada, como se estivesse sendo ameaçada por alguém.
Interpretei que ele me sentia tão raivosa de ser enganada e mantida presa, que achava que eu
poderia fazer alguma coisa contra ele. Eu, mantida tão aprisionada e tratada com um certo
sadismo, me transformava em alguém ameaçador e, sendo assim, ele precisava desenvolver
mais mecanismos onipotentes para manter-me paralisada, importante e confusa. Essa
situação poderia ameaçá-lo a tal ponto que o permitir-se perceber alguma separação entre ele
e mim, desencadearia uma série de retaliações minhas sobre ele, que seria então submetido ao
meu desprezo e abandono. Acredito que, nessa sessão, ele transmitiu seus medos para
dentro de mim, um enorme terror de meter mais livre.
Essas relações narcísicas com as pessoas, onde ele se fundia com cada uma delas,
trazia como conseqüência uma confusão entre ele e o outro, causando sérias perturbações na
sua capacidade para pensar. Tendo em vista o pensar não como uma atividade mental
abstrata, mas, de acordo com Bion, como uma capacidade para conhecer a si mesmo assim
como seus parceiros. O pensar como uma atividade dentro de uma relação é ligado à
possibilidade de ter uma mãe internalizada e presente. Ou seja, uma mãe que procura
compreender o bebê, que está atenda e solícita emocionalmente às suas necessidades e
ansiedades. Essa possibilidade viva e ativa de produzir pensamentos dentro de uma relação
interna e também externa estava bastante perturbada no Sr. B, que, ao megulhar para dentro
das pessoas, perdia a rela ção humana onde um pudesse estar interessado realmente em
pensar e conhecer o outro. Sua linguagem verbal era muito pobre, reflexo do
empobrecimento de seu pensamento verbal, repetitivo e, muitas vezes, vazio de significado, a
não ser a comunicação de seu grande caos interno. O seu ego não se enriqueceu com a
introjeção da mãe pensante e atenta às suas angústias mais primitivas. A ausência dessa
analista interna capaz de compreender acarretava uma atividade de ego que permanentemente
esvaziava para dentro de mim seus sofrimentos, suas ansiedades e seus sentimentos de culpa e
importância.
Para Bion, o bebê descarrega desconforto, raivas, ansiedades, projetando dentro da
mãe tais sentimentos, que são excindidos e vão se localizar juntos a tudo que traz desconforto
e gera angústia dentro da mãe. A mãe, numa atitude amorosa mental que ele denominou
reverie, irá se transformar, através de seus cuidados amorosos e capacidade de entender seu
bebê, em sentimentos mais possíveis de serem tolerados e, dessa forma, vai devolver ao bebê
essas ansiedades transformadas e então possíveis de serem reintrojetadas. O bebê, se não
tiver muita inveja ou se não estiver muito ameaçado pela mãe, poderá introjetar a mãe
amorosa dentro de si. Essas inter-relações das identificações projetivas do bebê na mãe e a
introjeção da mãe disponível desenvolverão e ego e serão a base para o bom e o mau, para
as percepções entre a realidade, a fantasia e o sonho. É essa possibilidade de conservar no
seu mundo interno um objeto que compreende e que tem curiosidade de entender que estende
os alicerces para pensar. As capacidades reparativas potenciais são também estabelecidas a
partir daí, de ver e sentir o outro, de se preocupar com o seu próprio bem-estar e o bem-
estar e felicidade das pessoas amadas.
Na posição esquizoparanóide, o ego ainda primitivo é assaltado por ansiedades muito
persecutórias e, a partir daí, mecanismos mentais, tais como cisão, idealização e identificação
projetiva, são desenvolvidos. O objeto bom é mantido distant e do objeto mau e os impulsos
de idealização e ódio sofrem um corte também drástico de separação. O amor idealizado é
dirigido ao objeto bom, enquanto o mau é odiado e temido.
A posição depressiva traz o reconhecimento da mãe como uma pessoa e os
sentimentos de amor e ódio são então dirigidos a ela. Isso gera dor e culpa, e a mãe passa a
ser percebida também como um objeto amado, mas independente e com vida própria.
Novas ansiedades são despertadas no bebê, pois ele terá que elaborar essa dor da perda da
posse total da mãe e de um estado de união em completude permanente, onde eram uma só
pessoa, sentimento as mesmas coisas e vivendo dentro do mesmo mundo mental. Se o bebê
é capaz de suportar os sentimentos de culpa e a dor mental que surge nesse período, ele
poderá elaborar os lutos e vivenciar as depressões dessa fase. Ao mesmo tempo, sua função
simbólica está sendo desenvolvida, uma vez que será impulsionado pêlos sentimentos de
frustração por essa perda às funções de sublimação do pensamento simbólico e não-
concreto.
No caso dos pacientes aqui apresentados, penso que alguns fortes obstáculos se
colocaram para o prosseguimento dessas fases do ingressos e desenvolvimento da posição
depressiva, onde os objetos seriam pranteados com a dor, mas a eles seria permitida a
liberdade e com ela as suas partes do self estariam também livres e disponíveis para o maior
enriquecimento de suas vidas mentais e intelectuais. A negação da realidade da vida
independente dos objetos pode ter sido um fator preponderante nessa paralisação do
desenvolvimento. O Sr. B. aprisionou seus pais em um cárcere permanente e os mantém,
como a mim, em constante vigilância e sob ameaças. Seu pensamento se estabelece de forma
muito concreta, sendo freqüentemente difícil para ele distinguir suas fantasias e devaneios da
realidade. Estão misturandos e formam um todo confuso e caótico. Durante os primeiros
anos de sua análise, ele se livrava não só de seus conteúdos angustiantes, mas eliminava
também o que eu lhe oferecia em forma das ni terpretações e ao mesmo tempo acabava
perdendo alguns sentimentos que lhe eram mais suportáveis. Essa eliminação constante não
lhe permitia estabelecer em seu interior um núcleo pensante, capaz de conter um pouco mais
seus impulsos.
O primeiro paciente não recorreu tanto ao martírio dos objetos internos. Sendo
assim, suas possibilidades de elaboração dos sentimentos de culpas e suas chances para
percorrer os caminhos de ingresso na posição depressiva são maiores. Ele tem fantasias de
ter apoiado e influenciado muito sua mãe e de ter sido um exemplo para o pai. As fantasias
de me apoiar na sessão são freqüentes, me nutrir com seu material e dar orientações e
caminhos para que não me perca. Existe assim uma primeira experiência de identificação
parcial com uma mãe que tenta cuidar e apoiar.
Nesses pacientes, uma das grandes perdas foi a capacidade intuitiva de conhecerem a
si mesmos e aos outros. A partir daí, sua simpolização está perturbada porque atados ainda a
seus primitivos pais internos, e essa prisão tem um sabor amargo porque inibe e paralisa as
mais importantes capacidades do ego.

BIBLIOGRAFIA

BION, W.R. (1962) − Learning from Experience. London: Heinemann.


KLEIN, M. − Notes on some schizoid mechanisms. In the Writings of Melanie Klein.
London: Hogarth Press, 1975.
O’SCHAUGHNESSY, Edina − Words and Working through. Int. Journal-Anal. (1983)
64, 281
PICK, Irma Brenman − Working Through in the Countertransference. Int. J.
Psychoanal. (1985) 66, 157.
SEGAL, Hanna (1957) − Notes on Symbols Formation. In The Work of Hanna Segal.
New York: Jason Aronson, 1981.
STEINER, john − The Interplay Betwveen Pathological Organizations and the Paranoid
Schizoid and Depressive Postions. Scientific Meeting of the Society on February 20th,
1985.

SUMÁRIO

A elaboração da posição depressiva é um fator de grande progresso no


desenvolvimento, incluindo a percepção dos pais como objetos totais e o reconhecimento da
separação entre o self e seus objetos amados. Notamos em alguns pacientes que essa
elaboração não é possível, pois estes permanecem mergulhados, pela identificação projetiva,
em seus objetos, para negar a dor mental de serem seres separados, com sentimentos e
formas de pensar independentes. Essa paralisação afeta o estabelicimento das bases para o
pensamento mental e simbólico para assumir as capacidades e recursos mais significantes para
o ego.

SUMMARY

The depressive position elaboration is a factor of great progress in the development,


including the parents perception like total objects and the separation recognition between self
and his loved objects. We note in some patients this elaboration proceeding is not possible
because they stayed plunged, by the projective identification, in his objects, to avoid the
mental ache they are separated beings, with independent feel and think forms. This
paralisation affects the bases establishments for the mental and symbolic thought like to take
the capacities and resources moresignificants for the ego.

Maria Eleonoura Erthal Perecmanis

A castração e o olhar : Um estudo da individuação


Alberto Abuchaim

O OLHO

Um dia, disse o Olho: “Vejo, além destes vales, uma montanha velada pela cerração
azul. Não é bela?”
O Ouvido pôs-se à escuta e, depois de ter escutado atentamente algum tempo, disse:
“Mas onde há qualquer montanha? Não a ouço.”
Então a Mão falou: “Estou tentando em vão senti-la ou tocá-la, e não encontro
montanha alguma.”
E o Nariz disse: “Não há nenhuma montanha. Não sinto o cheiro”.
Então o Olho voltou-se para outra parte e todos começaram a conversar sobre a
estranha alucinação do Olho. E diziam: “Há qualquer coisa errada com o Olho.”

(Gibran)

Agradeço, com carinho, aos meus irmãos, Jamil, Darcy e Sergio, pela visão da
Psicanálise que me transmitiram generosamente.

Se Freud foi genial nas descobertas psicológicas, não o foi menos como literato. Na
sua perseverança de ver a Psicanálise reconhecida, empenhou esforços para comprovar suas
investigações e seus êxitos clínicos, descrevendo-os minuciosamente, detendo-se nas mais
simples expressões do paciente, levantando questões que deixa sem respostas. Enfim, ele
gera, desenvolver e comprova teorias e firma a compreensão clínica.
Essa conduta marcante em seus escritos, se, por um lado, nos enriquece pelo grande
aporte de conhecimentos que traz e nos faz pensar, por outro lado, nos deixa tão
completamente informados de suas idéias, que, muitas vezes, nos imobiliza na busca de
perscrutar outras idéias.
Nestes trabalho, não se pretende corrigir a compreensão dada por Freud à história e
análise do Pequeno Hans, pois sabemos que, em traços gerais, a sua com-preensão intrínseca
é tão atual como as mais atuais contribuições. O que se pretende é, usando outras
formulações teóricas (Winnicott, Mahler, Kohut, Klein, etc.), oferecer a oportunidade de
repensar conceitos psicanalíticos consagrados.
Posto isso, faz-se necessária a reprodução de alguns trechos da história do Pequeno
Hans descrita por Freud que permitirá algumas reflexões.
Escreve Freud: “Os primeiros relatórios a respeito de Hans datam de um período em
que ele estava por completar três anos de idade. Naquela época, por intermédio de várias
observações e perguntas, ele demonstrava um interesse particularmente vivo na parte do
corpo que ele costumava chamar de se “pipi”. Tanto que, certa vez, perguntou à mãe:
“Hans  Mamãe, você também tem um pipi?
Mãe  Claro. Por quê?
Hans  Nada, eu só estava pensando”.
Mais adiante, escreve: “Aos três anos e meio sua mãe o viu tocar com a mão no
pênis. Ameaçou-o com as palavras:
Mãe  Se fizer isto de novo, vou chamar o Dr. A para cortar fora o seu pipi. Aí com
o que você vai fazer pipi?
Hans  Com o meu traseiro.”
Lendo esses trechos, observamos que Hans encontrava-se em busca de informações
sobre a sexualidade, para entender as diferenças sexuais, em última análise, numa tentativa de
discriminar a própria sexualidade. Fazia suas tentativas de esclarecimentos através de
indagações, no que não se saía muito feliz. A resposta da mãe, afirmando que tinha “pipi”,
além de deixá-lo confuso, reforçava a sua crença numa indiferenciação sexual. E que o leva
a responder, num momento seguinte, que faria “pipi” com o traseiro.
Mais adiante, Freud escreve: “A ânsia por conhecimento parece ser inseparável da
curiosidade sexual. A curiosidade de Hans orientava-se, em particular, para os seus pais,
como se pode depreender no diálogo seguinte, ocorrido quando Hans tinha três anos e nove
meses:
“Hans  papai, você também tem um pipi?
Pai  Sim, claro.
Hans  Mas nunca o vi quando você tira a roupa.”
Outra ocasião, olhava insistentemente sua mãe despida, antes de ir para a cama,
quando ela perguntou:
“Mãe  Por que você está olhando para mim desse modo?
Hans  Eu só estava olhando para ver se você também tem um pipi.
Mãe  Claro Você não sabia?
Hans  Não. Pensei que você era tão grande que tinha um pipi igual ao de um
cavalo.”

O Pequeno Hans permanece confuso. Sua hipótese de que os pais deveriam ter pênis
igual ao de um cavalo dificulta-o a ver claramente o pênis do pai e a ausência deste na mãe,
por esta continuar afirmando que possuía um pênis também. A sua crença de que os seres
animados se distinguiam dos seres inanimados pela presença do pipi, reforçada pela mãe,
fazia que visse um pipi bem pequenininho na irmã recém-nascida, o que o levou a dizer:
“Quando ela crescer, ele vai ficar bem maior:”
No desenrolar, Hans continuou negando as diferenças sexuais até o momento
descrito por Freud: “Hans (quatro anos e meio) estava novamente vendo darem banho em
sua irmãzinha, estão começou a rir. Ao lhe perguntarem por que ria, responde:
“ Estou rindo do pipi de Hanna.
 Por quê?
 Porque o seu pipi é tão bonito.”
“Naturalmente sua resposta não era sincera. Na realidade, o pipi de Hans parecia -lhe
engraçado. Ademais, foi nessa oportunidade que Hans reconheceu a existência de diferenças
entre os genitais masculinos e femininos.” Posteriormente a isso, aos quatro anos e nove
meses, desencadeia -se o quadro fóbico de Hans. O processo fóbico se desenrola e, na
análise, uma série de emergentes conflituosos vão surgindo, alcançando o êxito terapêutico
quando Hans, finalmente, aceita sua identidade masculina abrindo mão de sua teoria fantasiosa
de que tinha capacidade de gerar filhos.
É oportuno considerar que o ser humano, no seu desenvolvimento biológico,
inicialmente não teria diferenciação sexual morfológica, e que no transcurso do
desenvolvimento embrionário são determinados caminhos diferentes, legitimando os sexos.
Portanto, na evolução biológica natural, não haveria lugar para um sentimento de “perda.”
Não se pode perder aquilo que nunca se teve, mas, na comparação, o que se pode sentir é
um sentimento de “falta”, percepção que determina a diferença entre um e outro ser. Na
verdade, não há “perda”, nem “falta”, mas somente diferenciação do sexos. Embora o
sentimento legítimo que emerge é o de estar incompleto, nunca o de ter sido castrado.
Hans, na sua busca através de indagações, manteve -se confuso, ao ponto de Freud
registrar:... “Ele expressou repetidamente, tanto para o seu pai como para sua mãe, seu pesar
por nunca ter visto seus pipis, e foi a necessidade de fazer comparação que o impeliu a fazer
isso.” As respostas da mãe o faziam imaginá-la um “ser completo”, imaginar mais que ele iria
se completar quando crescesse, assim como a irmãzinha, cujo “pipi” iria crescer.
Nos raros momentos em que visualizara os genitais dos pais, sempre protestara.
Havia um sentimento de que faltava alguma coisa. As ansiedades fóbicas desapareceram
quando Hans aceitou a diferenciação sexual  era um ser completo como o pai.
É ocasião de trazer, agora, o relato de uma pessoa paciente que vinha analisando sua
sexualidade. Contou que, quando tinha mais ou menos seis anos, olhava para sua vagina, o
que era fácil, pois não tinha pêlos pubianos. Via, entre os pequenos lábios, o clitóris e pensava
que ele iria crescer, acreditando que aumentaria seu tamanho conforme o desenvolvimento de
seu corpo. Por vezes, comparava o tamanho de seu clitóris com o de sua amiguinha, na
expectativa de perceber, num momento, que o seu crescera. Relatava que nunca havia tido
sentimentos de “perdas de pênis”, mas que tinha a sensação de que este ainda não se
desenvolvera, não que houvesse sido cortado, mas sim que “faltava”.
Percebe-se que Hans e a paciente, então menina, compartilhavam a mesma fantasia
de certa forma, pois negaram as diferença sexuais para não serem obrigados a encerar o que
lhes faltava, porque isso os levaria à necessidade de busca de outro objeto para
complementá-los, situação muito perigosa no caso de Hans, já que tinha de competir com o
pai na busca do desejado, porém fica claro que a ansiedade mais profunda centrava -se na
certeza da “falta” de sua capacidade de gerar filhos.
Sob esse ponto de vista, o sentimento ou angústia de castração não está relacionado a
uma sensação ou temor de “perda”, mas à comparação na realidade de “falta”, gerando uma
necessidade de complementação e a busca de outro ser que lhe permitirá o alívio dessa
necessidade e a própria integração da emoção-afeto-corpo. Isso se refere a um sentimento de
ausência, aqui usado no sentido de “falta”, uma vez que não se pode ter a sensação do
ausente, se não experimenta a existência real. Assim, a vivência de necessidade de
complementação psicocorporal cria um reconhecimento mais de “falta” do que de “perda”
do pipi ou da vagina.
A propósito, ilustrativa é a vinheta contada por uma paciente, participante de
conversa entre uma menina de três anos e outra com pouco mais de quatro anos, quando lhe
foi perguntado:
Menina de três anos dirigindo-se à paciente:
Menina  Por que você não namora seu o seu pai?
Paciente  Ele já tem namorada. É ,minha mãe.
Menina de três anos  Tira o “pipi”dele e põe em ti.
Menina de quatro anos  Pega o “tico” dele e põe em ti e vira homem.
Menina de três anos  Põe na tua “chereca” o “tico” dele e fica para ti.
Paciente  Sou mulher, não adianta ficar com o “tico” dele.
Menina de quatro anos  Pega o “tico”, tira todas as coisas e põe dentro de ti e vira
homem.
Com esse exemplo, fica claro o desejo de complementação de incorporar um pênis e
suprir a falta que sentem. É de se considerar que, sob um ponto de vista muito particular, a
castração não é vivida pela criança como “perda”, mas que o sentimento está ligado à
“falta”, pois não se pode perder o que nunca foi possuído. Também se deve observar que o
processo discriminatório da identidade sexual leva meninos e meninas a um sentimento de
“falta” que os impede de ter o sentimento de complementação e inteireza, na fantasia ou na
realidade, para encontrar a integração emoção-afeto-corpo.
Tudo isso leva à reflexão da importância do olhar em todo processo de individuação
e discriminação sexual.
Convém ressaltar que a importância do olhar na vida afetiva dos indivíduos vai além
da concreta discriminação corporal e sexual, pois há um inverso de possibilidades de
comunicação entre as pessoas através do olhar. É oportuna a reprodução de trecho da
sessão de uma paciente, que, referindo-se a um encontro com um homem que interessava, diz:
“Estávamos nos olhando, eu via tanta coisa no seu olhar, que me dava uma sensação, não era
tesão, era uma sensação muito difusa, que me fazia desejar estar sós com ele, para ter a
certeza de que o que eu entendia no seu olhar era verdade e de que estava entendendo o que
eu queria expressar no meu olhar”.
É raro encontrar na idade adulta descrição tão clara de um acontecimento evolutivo
próprio da relação mãe-bebê, fase de compreensão sem palavras, em que o olhar é a via
principal de relacionamento e individualização.
Voltando ao Pequeno Hans, fizemo-nos no ponto em que Freud diz que Hans estava
muito pesaroso por não ver os órgãos genitais dos pais. Na realidade, a visão dos genitais
tornava-se uma necessidade no sentido de que Hans pudesse encontrar a sua própria
identidade sexual, por comparação, estabelecer a sua individuação e delimitação do seu
esquema corporal, pois confundia seu esquema corpóreo com o corpo da mãe. Na realidade,
favorece esse tipo de confusão, tanto no menino como na menina, a ausência de seios nas
crianças, o que os leva à crença de que, com seu crescimento, haverá desenvolvimento do
pênis na menina e o dos seios no menino.
Passamos a relatar um exemplo, ouvido de uma paciente, a respeito de seu filho de
três anos de idade. Contava a mãe que o menino freqüentemente lhe mostrava o pipi,
pedindo que ela o segurasse. Certa ocasião, ele beijou e chupou os seus da mãe e solicitou
que ela fizesse o mesmo, oferecendo, como peito, o seu pipi. Pode-se ver que existe uma
indiferenciação entre o pênis e o seio. Os dois são objetos de amos e de prazer. Esse fato
ilustra a falta de confirmação do olhar e do enxergar confunde e leva as meninas a vicissitudes
diferentes, pois necessitam perscrutar o futuro para se delinearem sexualmente com seios que,
na verdade, são correspondentes corporais da sua capacidade de gerar bebês. Essa sensação
de falta é que leva as meninas a um sentimento de desvantagem e, muitas vezes, a
manifestarem o desejo de possuir um pênis (não destruí-lo), pois têm dificuldade de
diferenciar-se como pessoa e sexualmente, pois não conseguem envergar, ainda, o seu
esquema corporal completo.
Chamar a isto “inveja do pênis” parece questionável, pois, na verdade, trata-se de
uma defesa contra uma angústia mais profunda, desencadeada pela ausência de seios e pela
interrogação sobre a sua capacidade de gerar filhos.
A menina, ao fazer fantasia com pênis masculino, nada mais faz do que uma busca, na
tentativa de individuar-se, mesmo através do oposto, querendo, com isso, discriminar-se,
conquistar sua inteireza e identidade.
Parece ter ficado clara a importância que acreditamos ter o olhar, desde o
nascimento, na discriminação da realidade externa (objetos) e principalmente na diferenciação
do próprio “self” na delimitação do esquema corporal e, conseqüentemente, na identidade
sexual.
Talvez se possa compreender por que Édipo, ao tomar conhecimento de suas
relações incestuosas, vaza seus olhos como forma de castigo. Na verdade, com isso perde a
possibilidade de confirmar o seu “self”, impossibilitado que fica de discriminar a si e ao
objeto, ao mesmo tempo que abandona a capacidade de expressar a captar, através dos
olhos, os desejos incestuosos que o uniam à mãe. Não enxergar fora, simbolicamente, é uma
tentativa frustada de não enxergar dentro.
Ao vazar os olhos, Édipo busca a morte psicológica (castração). Ressaltando a
importância do ver e ser visto na vida emocional, furta-se da tentação e da visão do desejo da
mãe e da censura externa aos seus atos, retirando-se para o seu mundo interno e suas
próprias críticas, julgando, dessa forma, como os neuróticos, que será mais belevolente
consigo.
Em realidade, a morte psicológica é castigo menor que a morte biológica. Negar o
próprio “self” é negar os objetos através da cegueira, assemelha-se à morte biológica de não
mais ver e sentir o mundo.
Com isso, assinala-se que a percepção entre a vida e a morte ainda é uma função do
olhar. A visualidade da morte leva-nos a um processo de discriminação pessoal, o qual nos
confere um sentimento de vitalidade e individuação. Reconhecendo-a, o indivíduo é levado a
enxergá-la dentro de si.
A visão do morto rompe com a negação mais importante e universal: a finitude do
homem. O próprio Freud, embora tenha formulado a teoria do instinto de morte, nega a
existência da percepção (representação inconsciente) da própria morte, como a maioria dos
psicanalistas que não aceitam a existência dos instintos de morte e, com isso deixam de
analisar e tratar com os paciente os temores de morte biológica, mantendo-se piedosamente
(consigo mesmo) interpretando os temores de morte psicológica (castração). Talvez o
“santuário do ser inviolável” de Winnicott e a idéia de “análise interminável” estejam
relacionados com a necessidade de as pessoas acreditarem na eternização da vida, não indo
ao encontro do inevitável, que é a aceitação do ciclo biológico, por todos os meios evitado de
ser enxergado.
Finalmente, é oportuno lembrar que a pessoa precisa discriminar-se das demais para
ter a sensação de inteireza, da sua medida e de sua capacidade. Uma pessoa com a sensação
de indiferenciação discriminatória não poderá ter sensação de existir, de ter posse de si
mesma na administração dos seus bens internos, na singularidade de suas vivências e
individuação pessoal. Assim, seria como olharmos um canteiro cheio de flores com uma visão
compacta do todo, não discriminando a individualidade e os matizes particulares de cada
planta ou flor.
É necessário que o ser humano enxergue-se, para tomar posse de si, condição para
bem se administrar e conquistar sua inteireza, identidade e legitimidade pessoal.

RESUMO

Na presente comunicação, o autor se reporta a uma passagem do “Pequeno Hans”,


(Freud) e desenvolve, com exemplos clínicos, um estudo sobre castração, em “Édipo”, e
assinala o olhar como fator fundamental, dentro da evolução humana, na busca de uma
identidade/individuação, do nascer à morte.
Sob sua ótica, na experiência clínica, sugere que a castração não se faz por vivência
de perda, mas pela sensação de falta, e que a diferenciação sexual nas crianças se dá por
comparação e discriminação pela confirmação do olhar, o qual considera preponderante no
ciclo psicobiológico. Dentro dessa perspectiva, busca, no mito de Édipo, um reforço para
questionamentos, porquanto Édipo vaza os olhos, conservando os genitais. Nesse estudo,
reavalia o “enxergar-se” em Winnicott ( entre mãe e bebê).
Prosseguindo em seu estudo sobre o olhar, levanta questão acerca da inveja do
pênis, ilustrando com material clínico e indagando se a inveja do pênis não seria o “apossar-
se” (não danificar) de uma identidade do sexo oposto para sentir-se inteiro, com valor próprio
e complementar de uma identidade sexual, mesmo que ilegítima.
Refere-se, a um último momento, a vivência de discriminação pessoal, à qual confere
um sentimento de vitalidade e individuação, instante em que a morte é vista fora. Assim,
reconhecendo-a, o indivíduo busca enxergá-la dentro de si. A propósito, faz considerações
das dificuldades de a morte ser encarada como pertinente à vida, deixando-se de analisar a
morte biológica e interpretando-se não mais que a morte psicológica (castração).
Lembra, ainda, “o santuário do ser, inviolável e para sempre oculto no nosso cerne”
(Winnicott) e a “análise interminável”, relacionando esses temas, insuficientemente
questionados, como aquilo que é difícil de ser completado: enxergar a aceitar o que nunca se
completa e sempre faltará  a eternização da vida.

SUMMARY
In the present communication, the author refers to a passage of “Little Hans” (Freud)
and develops, by bringing clinical examples, a study on castration, in the Oedipus complex and
points out the look as fundamental in searching identity/ individuation in the human evolution
from one’s birth to death.
Under hhis point of view, in his clinical experience, he suggests that Castration
Complex doesn’t occur by experiences of loss; but by sensations of lack; and that sexual
differentiation among children occurs by comparison (confrontment) and discrimination, ratified
by “looking at”. He also considers the look as preponderating in the psycho -biological cycle.
The author seeks in the Oedipus myth a reinforcerment for interrogations, for Oedipus
pierces his eyes, instead of taking off his genitals. In this communication the author reevaluates
the “seeing each other”elaborated by Winnicott (mother and baby).
Continuing his studies about “the look”, he inquires the penis envy by ilustrating it qith
clinical material and interrogating about the possibility of pennis envy being “taking possession”
(not demaging) of an identity of the opposite sex to feel oneself complete (entire), self-valuated
and complementary of a sexual identity, even if an illegiti-mate identity.
He reports, at last, to the personal discrimination experiences, giving it a feeling of
vitality and individuation: the very moment when death is seen outside.
Thus, recognizing death, the human beig searches to see it inside himself.
The author makes an evaluation of the difficulties in facing death as part of life, not
analysing the biological death but psychologicl death (castration).
He also reports the “sanctuary” of human being, inviolable and forever hidden in our
pith” (Winnicott) and the “endless analysis” mentioning these subjects not sufficiently inquired
as that which is difficult to be completed: to face and accept what can never be completed and
will always lack  the eternization of life.

LEITURAS

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Alberto Abuchaim
Analista Titular do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Pelotas e da
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Este artigo foi tema livre do XIII Congresso Brasileiro de Psicanálise
de São Paulo  1991.

A subversão do destino
Maria Eleonora Barbosa Mello

( A José Paes Leme, cheia de saudades)

“Essa conta a saldar só falaciosamento quitada, essa morte a perpetrar só se


realiza deixando escapar a vítima. Pois a exigência da dívida, o êxito na
execução de uma morte não cessam de se repetir: São a nossa fonte de vida,
tenazes, determinantes e presentes a cada minuto, como um ódio visceral. Mais
poderosa do que ‘o amor ao próximo’ é essa força de repetição que nos
impulsiona a viver cada instante de nossa história. Freud chamou-a de pulsão
de morte.”

Serge Leclaire

Psicanálise Ciência Humana. Condição Humana. A ordem no caos.


O imponderável.
Um destino a cumprir?
Forças inexoráveis que se digladiam e se interpenetram.
Eros X Thanatos.
O que a psicanálise como prática teórica tem a oferecer no seu cotidiano a um pedido
de socorro, um grito de angústia, um silêncio melancólico?
Responder a essa pergunta iria contra os pressupostos da ciência psicanalítica.
“Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”1. Entretanto, há um conjunto de
reflexões teóricas, de exercícios clínicos, que nos remete a determinados conceitos, a fim de
que possamos abrir clareiras no “obscuro objeto de desejo” de cada analisando.
Freud apresenta três abordagens na sua teoria: dinâmica, topográfica e econômica.
O presente trabalho pretende um recorte na teoria econômica.
A importância do ponto de vista econômico vem desde os primórdios dos escritos
psicanalíticos. Freud, ao escrever o Projeto (1895), já demonstrava preocupação em
quantificar as “emoções”, apesar de que somente em 1905 surge o termo pulsão, “processo
dinâmico que consiste numa pressão ou força, que faz tender o organismo para um alvo. Tem
a sua fonte numa excitação corporal. Seu alvo é suprimir o estado de tensão, através do
objeto”2. A partir do conceito de representante pusional, não se pode mais pensar em
processo psíquico sem a noção de investimento, contra-investimento de energia.
O conceito de pulsão apresenta um desenvolvimento através da obra freudiana
concomitante às suas descobertas. Inicialmente, havia uma pulsão de autoconservação que se
opunha à pulsão sexual.
Em 1914, no texto “Introdução ao Narcisismo”, faz uma nova proposta ao descrever
o narcisismo como uma forma de libido. A partir daí, a polarização passa a ser entre libido
do eu X libido do objeto.
Seis anos depois, revoluciona a teoria analítica com um novo e singular par: pulsão de
vida X pulsão de morte. A noção de pulsão de vida não só reúne as pulsões de
autoconservação às pulsões sexuais propriamente ditas, mas também se torna responsável
pelo princípio de ligação. “Os alvo de Eros é estabelecer ligações cada vez maiores e assim
preservá -las − em resumo, unir”3 . Mais uma vez temos um bom exemplo de que o todo não
é igual à somo das partes. Entretanto, o mais surpreendente é a definição de pulsão de morte
que especificaria um princípio básico de toda a pulsão − “O retorno a um estado anterior, o
retorno ao repouso absoluto do anorgânico”4. Daí, o seu encargo da dissolução de forças.
Através da conceituação da pulsão de morte surge um novo impacto na teoria e no
meio pasicanalítico da existência de um masoquismo primário. A idéia da agressividade
dirigida para o mundo externo, seja como hostilidade entre pares, vontade de poder ou busca
do triunfo, não provocava mais nenhum espanto.
Não resta dúvida de que Freud, ao longo de sua obra, ficou atento aos fenômenos de
autopunição como o demonstra nos estudos da neurose obsessiva e da melancolia, onde neste
último pode atingir o seu ápice com a escola do suicídio.
Entretanto, o masoquismo primário fala de uma carga energética interna que todos
possuem em maior ou menor grau. Não é mais uma questão de sintoma e sim de economia
psíquica.
Torna-se árida a definição da noção de pulsão de morte, pela própria estrutura do
terno e as conseqüências que advêm desse novo dualismo.
Laplanche e Pontalis propõem: “O primeiro estado em que a pulsão de morte dirige-
se inteiramente contra o próprio indivíduo não corresponde nem a uma posição masoquista,
nem a uma posição sádica.
Num só movimento, a pulsão de morte assocíando-se à libido cinde-se em sadismo e
masoquismo erógenos. Note-se, por fim, que esse sadismo pode, por sua vez, voltar-se
contra o próprio indivíduo num masoquismo secundário que se vem acrescentar ao
masoquismo originário.”
Serge Leclaire complementa que essa dificuldade é provocada devido à origem da
força pulsional de morte: “Sua tendência a deixar prevalecer o não figurativo do
representante inconsciente.”
Retomando a questão de a pulsão de vida ser a expressão da união de forças e a
pulsão de morte ser a sua fragmentação, até que ponto este último fator não contribuiria para
a questão do impalpável na pulsão de morte? E a clínica? Como ela absorve o teor dos
novos achados?
Em relação à prática analítica, a maior mudança ocorre no campo das resistências. É
o momento em que o paciente resiste ao processo psicanalítico, demonstrando satisfação com
a doença.
Segundo Freud, esse tipo de obstáculo, o ganho secundário com a doença, é dos
inimigos mais ferozes que a análise possui. Deu-lhe o nome de Reação Terapêutica Negativa.
Em 1923, no artigo “O Ego e o Id”, e um ano depois, em “Problema Econômico do
Masoquismo”, busca delinear a Reação Terapêutica Negativa como fruto das relações entre e
Ego e o Superego, no qual tanto um Superego sádico como um Ego masoquista levam a um
mesmo resultado, “satisfação de uma necessidade pela punição e pelo sofrimento”.
Todavia, é em 1937, “Análise Terminável e Interminável”, o momento em que
radicaliza a idéia de Reação Terapêutica Negativa, quando a coloca como um dos
indicadores mais fortes da pulsão de morte. Reafirma, nessa ocasião, a existência de um
“Além do Princípio do Prazer” que regeria a vida humana.
Condição humana X Servidão humana.
Será que o exercício da psicanálise, 50 anos depois, está equipado para essa luta
pulsional, dessa força tamanha? Freud confiava que sim.
Sugeriu o “amansamento” das pulsões (Bdndigung), um movimento intrapsíquico onde
a força libidianl, em uma fusão ampla e variável com a pulsão de morte, estabeleceria um
acordo com o Ego e, portanto, desiste de uma satisfação por si mesma. O termo Bdndigung
está presente desde as raízes da psicanálise, no “Projeto” (1895), quando o utilizou como um
“processo pelo qual lembranças penosas deixam de carregar afeto, devido à intervenção do
Ego”. Ou seja, não seria um jogo de empate nem de destruição do adversário. Apenas mais
uma vitória no misterioso balanço da vida.
“Não se trata de uma antítese entre uma teoria pessimista da vida e outra otimista.
Somente pela ação concorrente ou mutuamente oposta das duas pulsões Primevas − Eros e a
pulsão de morte − e nunca por um ou outro sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade
dos fenômenos da vida” 5.
E a psicanálise, ciência guerreira, na sua tentativa de dar um sentido ao texto, de
subverter o destino inexorável da pulsão de morte, luta pela compreensão da vida com e
apesar da compulsão à repetição.

RESUMO

O presente trabalho procura demonstrar o desenvolvimento do conceito de pulsão na


obra freudiana. Analisa a proposta dualista de sua concepção, destacando a noção de pulsão
de morte e seus efeitos na práxis psicanalítica.

SUMMARY

This paper is about the development of the concept of instinct in Freud work. It
analyses the dualistic proposition of this conception concerning mainly the death instinct and its
effects on the psychoanalytical praxis.
“y al volver La vista atrás
se vê La senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas em la mar”.
Machado, Antônio. Poesias. Editorial Losada, 1981, Buenos Aires, pág. 159.
“Provérbios y Cantares”, nº XXIX.
2 − Laplanche, Pontalis − “Vocabulário de Psicanálise” − 3ª edição, Ed. Martins Fontes,
1967, pág. 506.
3 − Freud, S. “Esboço de Psicanálise” − 1ª Edição, Eed. Imago, 1976, vol. XXIII, PÁG.
173
4 − Freud, S. “Além do Princípio de Prazer” 1ª edição, Ed. Imago, 1976, vol XVIII,
pág.53/54
5 − Freud, S. “Análise Terminável e Interminável” −1ª edição, Ed. Imago, 1976, vol.
XXIII, pág. 276

Maria Eleonora Barbosa Mello

BIBLIOGRAFIA E NOTAS

1 − O provérbio faz parte do poema do Antônio Machado, cuja versão integral é a


seguinte:
“Caminante, son tus huellos
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino.

ENTREVISTA

Joyce McDougall

“Se a criança oculta no fundo de todo homem é a causa do seu sofrimento


psíquico, também é a fonte da arte e da poesia da existência; é a promessa sempre
presente de um olhar isento, desvelando o insólito no quotidiano e, ao mesmo tempo,
secreta loucura e balaustrada contra o espectro da ‘normalidade normalizante’
constituído por uma via unicamente ‘adulta’. É preciso saber comunicar-se com essa
criança mágica e narcísica, se não se quiser asfixiá-la. Ver desabrochar essa troca é
uma experiência emocional; ser testemunha do seu fracasso, uma tragédia” (Joyce
McDougall).

Nascida na Nova Zelândia, Joyce McDougall vive em França, sendo psicanalista da


Sociedade Psicanalítica de Paris. Nos últimos anos, vem dedicando especial interesse aos
fenômenos que põem obstáculo ao desenvolvimento do processo psicanalítico. Escreveu
vários trabalhos sobre pacientes que criam cenários eróticos complicados, mas necessários à
preservação do sentimento de identidade. Ela chamou essas criações de “neo-sexualidades”.
McDougall vem estudando as questões levantadas por pacientes com distúrbios do
narcisismo, as questões relativa à comunicação primitiva e ao corpo em análise. Dignas de
destaque são suas pesquisas − sempre partindo da experiência clínica com pacientes que
apresentam fenômenos psicossomáticos. Nos seus escritórios podemos acompanhá-la
tentando responder à questão: com que tipo de escuta o psicanalista “ouve” as mensagens
mudas do soma? Em seu artigo “Um Corpo para Dois” (Conferências Brasileiras) ela
descreve como um corpo anárquico pode tornar-se um corpo simbólico.
Em julho desde ano, Joyce McDougall fez uma Conferência no Rio de Janeiro sobre o
tema: “A adição ao outro: As Neo-sexualidades e a Sexualidade Aditiva”.
As idéias desta psicanalista criativa encontram-se, em grande parte, nos seus livros:
Dialogue avec Samy (uma contribuição à compreensão da criança psicótica) (1969); Em
Defesa de uma Certa Anormalidade (1987); Théâtres du Je (1982); Conferências
Brasileiras (1987); Teatros do Corpo (1991).
McDougall parte da concepção da análise como relação única onde, pela primeira vez
na história da pessoa, algo pode ser pensado e sentido. Para ela, o percurso da análise é um
processo da criação para o paciente e o analista e ressalta particularmente a importância do
profundo engajamento do analista nesse processo. Ela afirma que existe nos dois parceiros
do trabalho analítico elaboração e perlaboração: o paciente, sob a pressão do “tudo dizer e
nada fazer”, fornece um trabalho assíduo e laborioso, imposto pela demanda que sua vida
pulsional faz a seu aparelho psíquico e que vai ser elaborado na nova situação. O analista, por
sua vez, efetua um trabalho paralelo no qual suas demandas pulsionais e seu próprio teatro
interno desempenham um papel tão inevitável quanto o de seus pacientes. Elas devem ser
igualmente escutadas, elaboradas e perlaboradas para que ele aprenda melhor o que se passa
tanto com os seus analisandos como o que se passa entre ambos. “Saímos dessa aventura
analítica, percorrida por ambos”, diz ela, “tendo adquirido uma nova dimensão pessoal.”
A longa entrevista (da qual estamos transcrevendo apenas parte) transcorreu em clima
informal, seguramente proporcionado pelo jeito descontraído, simpático e caloroso da
entrevistada.

TRIEB − Você escolheu como centro de suas pesquisas tudo que parece obstáculo ao
processo analítico. Você tem se interessado particularmente por pacientes que
apresentam distúrbios do narcisismo (os que precisam do outro enquanto espelho,
enquanto sustentáculo identificatório), pêlos pacientes somatizantes, pêlos adictos e pelo
que você denominou neo-sexualidades. Em suma, parece que o que mais vem atraindo
sua atenção é o que, geralmente, tem sido chamado de “inanalisável”, os denominados
“casos difíceis”.

JMD − Eu diria que não há “casos fáceis”.

TRIEB − Concordo com você. Sobre as neo-sexualidades, qual a diferença entre elas e
as perversões?
JMD − Eu falo em neo-sexualidade para evitar o termo perversão pois, em quase todas as
línguas, perversão tem um sentido pejorativo. Em português também, não?

TRIEB − Também, mas em psicanálise já é um termo consagrado.

JMD − Não se diz que o pervertido é um deus, que é a verdade, que é o “bem”. Ele é
sempre o “mal”.

TRIEB − Um julgamento de valor?

JMD − Exato. E eu acho que o tom de muitos analistas, quando falam desses pacientes, é
realmente muito pejorativo. Falam como se fossem pessoas que fizessem mal às outras
porque não têm uma sexualidade dita “normal”. Tudo isso começou a me interessar eu me
deparei com pacientes com uma sexualidade extremamente complicada que tentei
compreender. Ocorreu-me que, no fundo, a neo-sexualidade seria uma tentativa desesperada
de ter uma vida sexual e amorosa, ainda que muito restrita. Essas pessoas não vinham à
análise para tratar de sua sexualidade. Elas simplesmente não falavam sobre esse assunto,
pois se sentiam ameaçadas de perder sua única sexualidade. Em geral, elas vinham à análise
porque não podiam mais trabalhar, produzir, tinham bloqueios intelectuais. Entretanto, após
algum tempo de tratamento, elas começavam a falar de sua vida sexual, e foi então que
comecei a compreender o sentido do que chamo neo-sexualidade.

TRIEB − Você acredita na perversão como uma estrutura?

JMD − Não. Acho que essa idéia nos impede de escutar realmente os conflitos de fundo.

TRIEB − Eu estou falando em termos das três estruturas: neurose, psicose, perversão.
Eu estava pensando em como Piera Aulagnier concebe a perversão.

JMD − Sim. Ela e eu debatemos esse assunto durante dez anos. Eu acho que o termo
perversão inclui um julgamento de valor, e não é da função do analista fazer julgamento de
valor. A gente está na relação para tentar compreender.

TRIEB − E como é que lhe surgiu o termo neo-sexualidade?

JMD − Eu me inspirei primeiro em Freud, que distinguia a perversão da inversão que era a
homossexualidade. A perversão é o fetichismo, o sadomasoquismo, o voyeurismo, etc... Eu
comecei a querer ter minha própria concepção e me ocorreu que o que se chama perversão é
quase sempre uma tentativa de estabelecer relações heterossexuais. É claro que, entre os
homossexuais, também há pessoas com essas características ditas perversas e que os outros
homossexuais criticam.
O que eu chamo de neo-sexualidade é a sexualidade inventada no sentido de a
sexualidade inventada no sentido de uma criação. E aqui eu tomo uma posição que não é a
de Fruem. Ele tinha tendência a apresentar os desvios sexuais como uma espécie de fixação
da libido em uma fase infantil como fixação oral, sádico-oral, sádico-anal. O que eu queria
sublinhar, entretanto, é que é mais uma re-invenção da cena primitiva.

TRIEB − Você teve alguma experiência de tratamento com crianças de que você se
lembre e que tenha correlação com o que você está dizendo?

JMD − Sim. Em certa época eu trabalhei com crianças. E gostei muito. Lembro-me de um
menino que me havia sido enviado porque vivia mostrando seu pênis. Sua mãe, ao chegar, foi
logo me dizendo: − “Não é possível que meu filhinho tenha problemas. Eu não compreendo
o que acontece com ele. Eu o eduquei de um modo tão puro!... Para começar, eu nunca lhe
dou carne para comer, para que ele não venha a ter um temperamento apaixonado...” Diante
disso, comecei a compreender que a mãe usava a criança para controlar sua própria
sexualidade. E ela continou: − “Sempre que ele tocava em seu sexo eu lhe dizia: − “Não
toque nunca nele. Ele é sagrado. Ele pertence a Deus’.” Um dia, ele lhe perguntou: −
“Como é que se chama?” E a mãe respondeu: − “Não tem nome .” O menino, então,
passou a chamar seu pênis de “sagrado”. Ela me disse isso para me mostrar como era boa
mãe e o quando tinha educado seu filho na pureza. Então, esse menino − se seu sexo não
tinha nome e não lhe pertencia − estava muito confuso. Ele não sabia se tinha ou não um sexo
e o mostrava sempre para que alguém reagisse e lhe dissesse que sim, que ele tinha um sexo.
Assim, ele tinha um sexo, seu sexo tinha nome e ele era menino como os outros. Esse menino
me ensinava muito em sua tentativa desesperada de encontrar uma solução.
Este exemplo é bastante simples. Mas quantas vezes a gente vê os adultos, por conta
de seus próprios conflitos, terem com os filhos uma conduta na qual ou bem não se fala em
sexo, ou bem ele pertence a Deus, ou bem o sexo não tem significado ou dizem “se tu te
tocas, tu és mau e vais para o inferno”. Desse modo, ter uma sexualidade não é só proibido,
é também muito perigoso. Eu tive pacientes com uma sexualidade muito complicada...

TRIEB − Nesse caso, você fez referência ao aspecto da condenação da sexualidade... E


o que dizer do contrário, quando os pais, julgando-se muito modernos, não colocam
nenhum limite − fazem sexo diante das crianças, querem participar das fantasias
sexuais dos filhos, impedindo-os do direito ao segredo?

JMD − A criança não suporta que não haja limites. Fica numa angústia muito grande.

TRIEB − Eu me lembro de um artigo em que você dizia que hoje não se tem nem mesmo
o direito de fantasiar porque há de tudo nos filmes, nas “sexshops”...

JMD − A gente “compra” as fantasias. E isso traz problemas de outra ordem, cria re-
invenções, outras neo-sexualidades.

TRIEB − Quando se fala em sexualidade, a gente pensa no recalcamento secundário,


mas a impressão que eu tenho quando você fala neste momento é que não se trata
obrigatoriamente do recalcamento secundário. São talvez formações que têm relação
com o recalcamento primário, com a função materna, etapas muito arcaicas da
formação psíquica.
JMD − O recalcamento dos desejos sexuais originam os sintomas neuróticos. Para Freud,
perversão e neurose são duas faces da mesma moeda. Têm as mesmas fantasias. No caso
da organização neurótica, criam-se sintomas histéricos, ao passo que nas perversões ocorre
uma sexualidade complicada.
Mas você coloca uma questão muito importante sobre a sexualidade arcaica. São
situações, por exemplos, em que a mãe trata seu bebê como parte de seu próprio corpo, num
investimento narcísico e libidinal da criança. Vejo isso em pacientes de meus
supervisionandos e em meus próprios pacientes. Eles dizem: − “Meu pai não existia. Minha
mãe dizia que nós dois formávamos um casal à parte. E que não era preciso admirar meu
pai.”
Na interpretação da criança, isso quer dizer que não se deve amar o pai, que se deve
ficar solitário com a mamãe porque a gente pertence a ela. Mãe e criança formam um par. E
a criança pensa cheia de prazer: − “Eu sou o complemento da mamãe. Eu substituo meu pai.
Eu sou melhor do que ele. Eu sou o pequeno objeto libidinal dele.” Mas, ao lado disso,
existe uma raiva imensa.
A mãe primitiva é megalomaníaca, tenta preencher todos os desejos da criança. Esta
não tem acesso ao pai, não tem vida própria e precisa encontrar uma solução para sua
sexualidade. Não pode fazer amor com sua mãe, nem ficar presa a ela toda a sua vida.

TRIEB − Essa é uma situação de adição, não?

JMD − Sim. A mãe acha que pode solucionar tudo. Ela não deixa a criança encontrar suas
próprias soluções. A mãe se oferecer como uma droga. É como se houvesse um sexo para
dois. A sexualidade precisa ser arrancada da mãe.

TRIEB − Você está introduzindo a importância do inconsciente dos pais.

JMD − O papel simbólico que ocupa o pai no imaginário da mãe é que é importante.
Freud disse que o desejo do homem é a mulher, mas que o desejo da mulher é ter um
filho homem. Eu não estou de acordo com isso. Acho que a mulher quer muito mais do que
só ter um filho homem.

TRIEB − E o que quer a mulher?

JMD − É fácil. Ela quer ser amada e desejada. Por que esse mistério?

TRIEB − E são só as mulheres que querem isso?

JMD − Os homens também. Mas há algumas diferenças. No caso da mulher, a vida libidinal
é preenchida pelo homem. Se uma mulher perde seu homem, ela perde sua imagem narcísica.
A angústia da mulher é sempre de ser abondonada. A angústia do homem é de ser
aprisionado.

TRIEB − Você acha que isso tem relação com a diferença anatômica?
JMD − Sim. O homem tem medo de cair numa armadilha, ao passo que a mulher tem medo
de cair no vazio. A mulher ocupa um papel muito importante na vida do homem, mas ele tem
necessidade de outras coisas. Ele tem necessidade de se relacionar com outros homens.
Embora a mulher também tenha relações muito importantes e muito ricas com outras
mulheres, o tipo investimento é diferente.

TRIEB − Nós gostaríamos de lhe fazer uma pergunta a propósito da pulsão de morte. É
claro que a sexualidade é uma pulsão de vida. Mas, como você falou, a gente vê nos
pacientes essa questão do vazio. A impressão que eu tenho é a de que nessas pessoas que
sentem o nada, o vazio, houve uma perturbação da pulsão de morte. Então, eu lhe
pergunto se, na relação entre a mãe arcaica e a criança arcaica, a sexualidade tem algo
a ver com a pulsão de morte.

JMD − Aqui há uma complicação que é o princípio de prazer. Qual é o papel da pulsão de
morte nesses casos? Eu não creio que a gente veja isso no nível das perversões. A meu ver,
os desvios sexuais constituem tentativas desesperadas de viver. A perversão está do lado da
vida. Quando não há mais luta, mesmo que seja via ódio, é que a gente se deixa morrer.

TRIEB − Até a psicose você coloca do lado da vida?

JMD − Ah! Sim. É uma tentativa de manter a identidade de sujeito. O psicótico luta por sua
vida. O neurótico luta por sua sexualidade.

TRIEB − E o que você pensa da amorexia?

JMD − Há muitas espécies de anorexia. A anorexia é como uma perversão, se assim a


quisermos chamar, pois é um investimento no nada. É o nada que é excitante, que é erótico.
Eu não acredito que seja um desejo de morrer. Só em casos extremos é que se encontram
pessoas que pensam que a vida não vale a pena ser vivida. Mesmos os suicidas em potencial
nem sempre têm desejo de morrer. Eles querem matar alguém dentro de si ou querem
encontrar alguém que morreu. Então, eu acredito que os anoréxicos primários são vazios de
sexualidade. Outros se esvaziam de uma parte de si que é vivida como má.

TRIEB − Eu conheço o caso de uma jovem que de tão magra chegava a ser esquelética.
Algum tempo após a morte da mãe, ela engordou tanto que ficou obesa. Ela queria
fazer tratamento psicoterápico, mas não tinha condições financeiras para isso. O que
ela fez? Empregou-se como babá de um recém -nascido. A partir daí, ela começou a
nutri o bebê e a se nutri.

JMD − Esse é um caso de bulimia anoréxica.

TRIEB − E pode ser visto como um exercício de poder?

JMD − Certamente. Aproxima-se da adição. É uma adição ao nada e tem um lado


megalomaníaco que diz: − “Eu sou absolutamente senhor do meu destino, de meu objeto,
seja meu objeto e heroína ou o nada.” É muito trágico.
TRIEB − Você acha que há pacientes inanalisáveis?

JMD − Claro! É preciso não idealiza a análise como terapia. Há pacientes e estruturas de
personalidade que não vão mudar com a análise. Psicanálise não é panacéia.

TRIEB − Além de nem todos os pacientes terem indicação de análise, esta não depende
nem da psicopatologia nem do número de sessões. Em nossa Sociedade, vem surgindo
ultimamente o interesse em distinguir psicoterapia de psicanálise.

JMD − A distinção é difícil. Mas o processo psicanalítico visa sobretudo tornar consciente o
que é inconsciente. Mas, seja psic oterapia ou psicanálise, a finalidade é a mesma. Às vezes,
a gente tem de reduzir os objetivos porque o paciente não pode suportar ir mais longe. Há
também pessoas que têm objetivos limitados, que querem apenas compreender uma situação
e que não desejam fazer análise. Certa vez, há vários anos, uma senhora perdeu um filho.
Algum tempo depois, ela teve um segundo filho que ela não conseguia investir afetivamente. E
ela me dizia: − “Eu não quero análise. Eu quero poder amar meu filhinho.” Ela não queria ir
mais longe e tinha todo o direito de limitar sua pesquisa. Após seis meses de trabalho, ela
estava feliz com seu filhinho e dizia: − “Eu estou bem agora.” Há pessoas que vêm uma vez
por semana ou mesmo de 15 em 15 dias e que entram em um verdadeiro processo analítico.
Por outro lado, há pessoas que vêm 3 e até 4 vezes / semana e depois de 3 anos não
disseram mais do que o que haviam dito na primeira semana.

TRIEB − E dizem que estão em análise!... A propósito disso, o tema do Congresso


Internacional foi “Mudança Psíquica”. É um tema bastante complexo. O que é que
você poderia nos dizer sobre esse assunto?

JMD − Cada corrente psicanalítica dá diferentes respostas e essa questão. O fato é que há
pessoas que fazem progresso com analistas que tem técnicas extremamente diferentes. Nós
temos necessidade de teoria, mas não é a teoria o fator da mudança psíquica. Eu acho que
há algo de misterioso na relação analisando-analista. Muito do que de passa não pode ser
colocado em palavras. E também não são as interpretações que explicam todas as mudanças
psíquicas.

TRIEB − O trabalho analítico comporta o nomear a pulsão.

JMD − A gente, às vezes, encontra pela primeira vez palavras para experiências que jamais
haviam sido nomeadas.

TRIEB − Nós gostaríamos de que você falasse um pouco sobre os pacientes para quem
a mudança constitui um perigo para sua identidade, pacientes cujos sintomas
representam verdadeiras tábuas de salvação e que se aterrorizam com a idéia de
mudança.

JMD − Há pessoas que têm o que se chama “reação terapêutica negativa”. Quanto mais a
gente avança, a gente vê que da mesma forma que ocorre mudança psíquica, ocorre também
o inverso − algo de estático, que não se mexe. Mas a mudança pode se apresentar com uma
angústia muito profunda, com a sensação de que vai ser para pior ou de que vai trazer de
volta um traumatismo precoce insuportável.

TRIEB − É por isso que muitas pessoas deixam a análise, pelo pavor de mudar.

JMD − Sim. Essas pessoas poderiam ficar toda a vida em análise, desde que esta não se
mexesse.

TRIEB − Você pensa que, muitas vezes, isso seja responsabilidade do analista?

JMD − Certamente. Nós perdemos pacientes por causa de nossos próprios problemas. É
preciso que o analista não tenha bloqueios demais para que realmente possa escutar seus
pacientes. É evidente que todos nós temos nossa organização, nosso inconsciente, mas o
analista precisa ser “good enough” no sentido de Winnicott. Entretanto, mesmo um analista
“good enough” pode se enganar com um grande número de pacientes.

TRIEB − Desde que você começou a falar, tudo está sendo pontuado por palavras como
desafio, limite, limiar, o que escapa à compreensão, o que é inanalisável. Eu queria
fazer umas perguntas em torno disso. E a primeira é se não é exatament e nesse limiar
de coisas que é próprio do humano que se abre a compreensão.

JMD − Você quer dizer que os limites da análise são os limites do analista?

TRIEB − Um pouco mais. Por exemplo, se a própria estrutura do masoquismo não é o


limite do que é analisável em cada um de nós. Ou seja, você pode produzir uma análise
até o limite em que o próprio masoquismo enquanto estrutura impede seu
prolongamento.

JMD − O masoquismo é a onipotência. O masoquista ganha sempre.

TRIEB − E o que você teria a dizer sobre a estrutura do masoquismo como limite do
analisável?

JMD − O masoquismo é a recusa da alteridade. Eu posso tudo. Eu posso até mesmo me


fazer morrer. Eu sou todo-poderoso. A pessoa se recusa a renunciar à sua onipotência de
criança. Isso pode ser também um limite.

TRIEB − Isso vai depender de como a mãe investe em seu filho.

JMD − A gente agora está falando de outro modelo. E para falar de fenômenos psicóticos é
a mãe que investe em seu filho como um prolongamento de seu próprio narcisismo. Fala -se
muito do masoquismo de morte, mas também existe o masoquismo de vida. É preciso buscar
onde está esse prazer oculto. Que eu viva, que eu morra é indiferente, contanto que seja eu
que escolha a morte.
TRIEB − Nós gostaríamos de ouvir um pouco suas idéias sobre somatização.

JMD − Todo mundo somatiza quando as defesas habituais não são suficientes. Como se diz,
não é essencial estar deprimido para pegar uma gripe, mas que ajuda, ajuda. Os pacientes
somatizantes são pessoas que só têm essa maneira de expressar sua dor, que não podem
elaborar a dor de outro modo senão enviando uma mensagem psíquica bem primitiva que se
traduz somaticamente. O afeto tem um pólo somático e um pólo psíquico. Quando alguém
está com raiva o coração acelera, quando está triste tudo fica deprimido. Eu acho que a
ligação privilegiada entre o psiquismo e o somático é o afeto. Os pacientes somatizantes têm
uma espécie de cisão entre o psíquico e o soma. Neles, todo afeto é sentido como perigoso.
A psique envia uma mensagem muito primitiva e o corpo (soma) reage e se defende como se
estivesse em gende perigo. Eu dou o exemplo da asma, que é classicamente encarada como
psicossomática e que não tem nenhum sentido biológico. Tem um sentido, de alguma forma,
psíquico. Por que razão alguém deixaria de respirar, reteria sua respiração como fazem os
asmáticos? Só se estivesse dentro d’água, se tivesse mergulhado. Não de outro modo. Na
crise, a pessoa tem angústia, sufoca. É como se respirar fosse muito perigoso, tão perigoso
que é preciso reter a respiração. E qual é esse perigo? É um perigo traduzido por uma
linguagem muito arcaica de uma relação corpo-corpo com a mãe, com uma mãe que quer
respirar pelos dois e que acaba sufocando o filho com seu amor. O prazer de respirar se
torna perigoso. Há uma ausência de nível simbólico, uma falta de simbolização e uma reação
que eu chamaria de proto-simbólica. No caso da retocolite hemorrágica, por exemplo, a
pessoa evacua, evacua como se tivesse sido envenenada.

TRIEB − Existe o caso de um paciente que havia sido colonizado pela mãe. Não havia
delimitação territorial entre o corpo da mãe e o de meu paciente. Um dia, ele encontrou
uma pessoa e começa uma relação de tipo aditiva com ela. Tratava-se de uma mulher
psicótica que fazia escândalos que o incomodavam. Mas ele não conseguia romper com
ela. Tentava e não conseguia. Um dia, conseguiu. Rompeu com ela, mas deixou de vir
à análise. Deprimiu-se muito e teve ruptura de um vaso sanguíneo. Ele voltou depois à
análise e contou que sua mãe havia morrido por ruptuta de um vaso sanguíneo. Para
ele, o rompimento com a mulher fez com que ele rompesse algo em seu próprio corpo. É
como se houvesse uma linguagem arcaica do corpo.

JMD − Há (ela enfatiza) uma linguagem do corpo, e é talvez essa linguagem a única que não
mente. Existem pessoas, que eu chamo de normopatas, que podem até ser muito brilhantes
intelictualmente, mas que não pensam em suas angústias. Têm uma espécie de curto-circuito
da palavra e da simbolização. Falta -lhes simbolização ou possuem um simbolismo
extremamente arcaico. Poderíamos dizer mesmo, uma histeria arcaica. A psique envia sua
mensagem fechada primária e procura as partes frágeis do corpo. E são essas partes que
explodem primeiro quando há um estresse que supera a capacidade da pessoa de contê -lo.

TRIEB − Por que você usa aqui o termo histeria?

JMD − Nesse caso, eu não estou me referindo à histeria clássica. A histeria é uma idéia que
se traduz corporalmente, ao passo que a somatização é um verdadeiro desregramento do
soma. Quero sublinhar que há um sentido a ser procurado, e que é uma protolinguagem.
TRIEB − No trabalho com psicóticos, a gente vê que há muitos, entre eles, que
somatizam em uma família − a avó morreu de câncer, a filha morreu de câncer e o
filho se casou com uma mulher que morreu de câncer. É uma história em que há uma
tal destrutividade que dá o que pensar. É de se perguntar se, tal como há uma espécie
de comunicação entre os membros de uma família psicótica, haveria um tip o semelhante
de comunicação entre as pessoas que somatizam. Parece que muitas pessoas se
relacionam a partir disso.

JMD − Conheço uma oncologista de Belo Horizonte que está em formação em Paris. Ela faz
parte de um grupo que pesquisa o câncer. Ela me falou sobre uma família em que a filha teve
câncer de mama e a mãe, nos 3 ou 4 meses seguintes, também teve câncer de mama.

TRIEB − O mais interessante não é a família em si, mas o fato de o rapaz escolher para
esposa uma mulher que desenvolve um câncer.

JMD − As pessoas se escolhem por razões inconscientes.

TRIEB − Mesmo nas Sociedades Psicanalíticas.

JMD − Ah! Sim. Os analistas são pessoas extremamente frágeis. (...)

TRIEB − Mudando um pouco de assunto, eu gostaria de saber como é que vai a


Psicaná lise na França, do ponto de vista da demanda de clientes.

JMD − Bem, para começar, há analistas demais. Os analista jovens não têm pacientes. O
segundo problema é o reembolso quase total do preço que a Previdência Social faz aos
psiquiatras que, muitas vezes, não têm qualquer formação psicanalítica. Há muitas
Sociedades Lacanianas − talvez oito − que têm muitos membros criativos; entretanto, essas
Sociedades qualificam analistas com uma formação insuficiente. Isso influencia a opinião
pública e há muitas críticas na imprensa. As pessoas pensam: − “Por que fazer Psicanálise?”
É como nos EUA. Houve uma época em que todo mundo achava que devia se analisar.
Agora é o contrário. Tudo que é idealizado acaba ficando denegrido. E tanto uma coisa
como a outra, a meu ver, são lamentáveis.

TRIEB − Qual é o preço médio de uma sessão em Paris e no interior?

JMD − No interior, eu não tenho a menor idéia. Em Paris, a Previdência Social reembolsa
180 F por sessão.

TRIEB − Nada mal, hein?!

JMD − Não, nada mal. Na Clínica Social do nosso Instituto, o reembolso é de 100%. Mas
isso também cria problemas, pois o paciente acaba não se responsabilizando por nada. Há
pessoas que podem pagar bem e querem tudo por nada. Há outras que, sem isso, não
poderiam nem pensar no assunto. Esse sistema pode também impedir a expressão da
hostilidade. E há um momento em que a hostilidade transferencial é importante na análise. A
Previdência Social tem vantagens e desvantagens que ainda não foram suficientemente
estudadas.

TRIEB − O reembolso, de que você fala, é feito intependentemente do número de sessões


por semana?

JMD − Sim. De modo geral, são 3 por semana. É o estilo francês. Mesmo os Didatas
trabalham desse modo. Isso cria problemas com a I.P.A.

TRIEB − É, e vocês não são colonizados pela I.P.A. como nós. Vocês têm direitos...

JMD − (interrompe e diz) Não é bem assim. É mais complicado. De qualquer modo, a
I.P.A. presta grandes serviços à Psicanálise em termos mundiais.

TRIEB − Eu acho que a I.P.A. muitas vezes impõe coisas sem levar em consideração
cada situação local, as características de cada país.

JMD − Bem, realmente a I.P.A. deveria ter um papel de estímulo à pesquisa, um papel
científico, e não um papel de controle.
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PAINEL

O INCONSCIENTE
Painel realizado na SBPRJ em maio de 1991

NOTAS SOBRE O INCONSCIENTE FREUDIANO

“Se fosse preciso concentrar em uma palavra a


descoberta freudiana, essa palavra seria
incontestavelmente o inconsciente”.
(Laplanche e Pontalis)

O Conselho Científico de nossa Sociedade inaugura uma série de Painéis cujo


objetivo é o de promover debate e reflexão sobre temas fundamentais do pensamento
psicanalítico.

Iniciar com o INCONSCIENTE tem por razão o fato de ser ele o conceito –
pedra fundamental – da psicanálise.

Deste painel participam os colegas Roberto Bittencourt Martins, Neilton Dias


da Silva, Miguel Calmon du Pin e Almeida e a filósofa Estrella Bohadana.
A MARCA DO INCONSCIENTE FREUDIANO

É o Inconsciente uma descoberta de Freud? Eis uma questão que


freqüentemente ouvimos ser colocada.

Uma grande parte dos textos filosóficos situa o sujeito autônomo face a uma
presença desconhecida, obscura, o inconsciente sendo definido apensas enquanto falta,
privação. Se, diferentemente da idéia de inconsciente em Freud, essa obscuridade
inconsciente não aliena o sujeito, e se por inconsciente compreende-se apenas o conjunto de
fenômenos que não dependem da consciência, nada mais verdadeiro do que afirmar que o
inconsciente não é uma descoberta freudiana.

Entre as concepções de inconsciente anteriores à de Freud, a que mais se


aproxima desta última é a de Herbart, que chegou a falar de idéias que eram inibidas pelas
demais, mas não falou de um psiquismo tipograficamente dividido em sistemas, possuindo
cada um deles a sua própria sintaxe. (No seu comentário no texto “O Inconsciente”,
J.Strachey escreve: “Desde o início e, em seu ambiente mais próximo, não pode ter
havido grande resi stência a essa idéia (a do inconsciente). Seus professores diretos,
Meynert, por exemplo, na medida em que se interessava pela psicologia, orientavam -se
principalmente pelos conceitos de J.F.Herbart (1776-1841), e parece que um livro de
texto contendo os principais herbartianos era usado por Freud. O reconhecimento da
existência de processos mentais inconscientes desempenhou papel essencial no sistema
de Herbart”).

Se por vezes Freud referia-se ao inconsciente, descritivamente, como tudo


aquilo que não está no consciente, a sua conceituação de inconsciente sistêmico é
profundamente diferente das demais.

O grande mérito de Freud foi antes de tudo o de dar ao inconsciente uma


inteligibilidade, definindo as regras de seu funcionamento, indo assim mais além do que a
simples observação e constatação. Ele impõe, deliberadamente, ao inconsciente privativo o
inconsciente enquanto fato psíquico, o que vai anular o efeito de segurança do cogito
cartesiano. Para Freud, o inconsciente é o conceito de uma marca, de uma inscrição que se
efetua, e que é a marca de um acontecimento que estrutura o sujeito. O inconsciente
freudiano assinala então uma radical diferença com a psicologia da consciência, sendo por
isso impróprio designar a psicanálise de “psicologia profunda”. O inconsciente freudiano
transformaria o sujeito da racionalidade “penso, logo existo” em “onde desejo sou”.
Podemos dizer que o separa as concepções anteriores da concepção do inconsciente em
Freud poderá ser caracterizado sumariamente pela descoberta do inconsciente, a título de
inconsciente do desejo.

A descoberta freudiana do inconsciente comporta um percurso irredutível, no


sentido de que o inconsciente conserva uma marca inscrita pelo acontecimento, marca esta
que pode tanto apagar-se como reaparecer.
Freud não fala de uma consciência que não se mostra, mas de um sistema
psíquico – o ICS – que se contrapõe a outro sistema psíquico, o PCS-CS. Esse PCS-CS é
em parte inconsciente adejtivamente, mas não é o inconsciente. Nesse sentido, uma das
características do inconsciente freudiano é o fato de ter sido designado como sistema
psíquico, dotado de atividade e sintaxe próprias, nada existindo nele de arbitrário, não sendo
ele, pois, o caos. Assim, quando Freud estabelece a regra da associação livre, isso não
significa uma ausência de determinação, já que é na medida em que se fica livre do controle
consciente, impedindo que a coerência lógica se imponha ao relato, que a determinação do
inconsciente se torna possível (Garcia-Roza, L.A. - In: Freud e o Inconsciente. Zahar
Editores - Rio, 1984).

Coube a Freud a noção de uma subjetividade clivada, instituindo a idéia de


que o sujeito são dois e que o sujeito do inconsciente é movido pelo desejo, desejo este que
se remete ao desejo de um outro, tal como Freud explorou no texto de 1914 sobre o
Narcisismo.

É assim que o inconsciente conceituado por Freud vai marcar a terceira ferida
narcísica sofrida pela humanidade, que habita uma Terra que gravita em torno do Sol e cuja
origem não seria divina mas produto de uma evolução natural.

Na Metapsicologia (Freud,S. - In: Métapsychologie - Éditions Gallimard,


Paris, 1968) ele tenta fazer o seu percurso teórico de fundação do inconsciente, apoiando
suas hipóteses sobre provas e vai assinalar que é nas lacunas das manifestações
conscientes que devemos procurar o caminho do inconsciente. Para Freud, além da
descontinuidade que os sinais lacunares provocam no discurso consciente, eles vão fazer com
que o sujeito sinta-se como que atropela do por um outro sujeito que ele desconhece, mas que
se impõe. Esses sinais lacunares, formações do inconsciente, são sobretudo os sonhos, os
lapsos, os atos falhos, os sintomas. A esse respeito Freud escreve: “Todos os atos e
manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de minha vida
mental devem ser julgados como se pertencessem a outrem, devem ser explicados por uma
via mental atribuída a esta outra pessoa. “Essa outra pessoa, esse outro é o sujeito do
inconsciente, sujeito portador de uma verdade insistente, que ignora o tempo e a contradição.

Um paciente em análise vinha trazendo, com dificuldades, a questão de sua


posição no Édipo. Comunica ao seu analista, certa vez, em um visto de entusiasmo e
angústia, o nascimento de seu filho do seguinte modo: “Dr.Fulano, ser filho é uma coisa
formidável!” Outro paciente comunica ao analista sobre uma missa celebrada pelo aniversário
da morte de seu pai. Querendo explicar que havia ocupado na igreja o lugar que o pai
ocuparia caso estivesse vivo, comete o seguinte lapso: “Na igreja eu fiquei no lugar de minha
mãe” (querendo dizer “ao lado de minha mãe”).

Penso que a interpretação não é um ato de significação externa que depende


unicamente do analista. Ela é sobretudo um ato efetuado pelo paciente na descoberta de uma
relação entre o sentido manifesto e o sentido oculto daquilo que ele diz. Nesses dois
exemplos, o lapso, formação do inconsciente, foi a interpretação por excelência, tendo efeito
de elaboração no processo analítico dos dois pacientes em questão.
Ainda no seu trabalho “O Inconsciente”, Freud descreve assim as
propriedades do inconsciente: “A ausência de contradição, processo primário (mobilidade
dos investimentos), intemporalidade e substituição da realidade externa pela realidade
psíquica são as propriedades que devemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao
sistema inconsciente” (Freud,S. - “L’Inconscient”- In: Métapsychologie - Éditions
Gallimard, Paris, 1968).

Para melhor compreendermos a natureza do conceito freudiano de


Inconsciente faz-se necessária a introdução da noção de pulsão (TRIEB) e de seus meios de
expressão: os representantes da pulsão. Para Freud o inconsciente é o núcleo de
representantes-representativos das pulsões e sua dinâmica é definida pela tendência de esses
representantes descarregarem os seus investimentos libidinais sob a forma de compromissos
impostos pela censura. Os representantes-representativos das pulsões são “uma sucessão de
inscrições e sinais” investidos pela pulsão. Assim, segundo Freud, o núcleo do inconsciente é
constituído por representantes da pulsão que querem descarregar os seus investimentos,
sendo este núcleo inconsciente, lugar de desejo.

O inconsciente conceituado por Freud é inseparável do recalcamento


(VERDRANGUNG) que vai definir o seu funcionamento.

Em “Pulsões e Destinos das Pulsões” Freud ressalva as várias atividades


estruturais da pulsão, que são: o retorno sobre a própria pessoa, a passagem da atividade em
passividade, o recalcamento e a sublimação (Freud,S. - “Pulsions et destins de pulsions” -
In: Métapsychologie - Éditions Gallimard, Paris, 1968).

É pela operação do recalque que o sujeito do inconsciente se constitui. Essa


operação implica a inscrição da força pulsional (DRANG) no campo da representação
(VORSTELLUNG).

A demanda de satisfação vai passar obrigatoriamente por outro lugar, onde se


encontra o objeto de satisfação. Disso vai resultar a divisão do psiquismo entre o lugar
energético da pulsão e a sua inscrição enquanto representação. Essa divisão do psiquismo
marca tanto a incompletude do sujeito como sua alienação fundamental, já que é somente
através de um outro que a pulsão pode realizar um caminho para a sua satisfação e somente
através de um outro ele vai poder se constituir enquanto sujeito.

Como já podemos compreender, a pulsão, de origem somática, movimenta o


sistema mas não é atingida pelo recalcamento, que só vai atingir os seus derivados, os seus
representantes psíquicos.

Se o inconsciente como tal é intemporal, ele carrega uma história, história esta
que se constitui em três etapas: o recalque originário, que inaugura a fixação entre a pulsão e
o representante da pulsão: o recalcamento “a posteriori”, que Freud chama de
propriamente dito, e que incide sobre as emanações desse representante já fixado, e,
finalmente, o retorno do recalcado através do qual essa história faz irrupção no tempo do
consciente sob a forma de atos lacunares que, como já dissemos, são testemunho do
funcionamento do inconsciente.

SOBRE ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DO MANEJO DA NOÇÃO DE


INCONSCIENTE NA CLÍNICA FREUDIANA

Já foi dito que as grandes divergências entre os psicanalistas se referem


fundamentalmente às diferentes maneiras de conceber a teoria do inconscie nte e, portanto, de
conceber a experiência psicanalítica . Na prática, a teoria se justifica e é nela que o analista
se confronta com a razão de seu ofício, que é o confronto com a situação clínica sob
transferência.

Desde o tempo de Freud sempre existiram controvérsias sobre o estatuto do


inconsciente em psicanálise, e o próprio texto de Freud, por sua complexidade, pode dar
margem a abordagens diferentes. Assim, vejamos de forma resumida, dentro do próprio
Freud, o caminho que o manejo da noção de inconsciente foi seguindo:

Em 1920, fazendo um balanço de seu trabalho, Freud escreve em “Mais Além


do Princípio do Prazer” (Freud,S. - Álém do Princípio do Prazer”. In: Ed.Standard
Brasileira das Obras de Freud - Rio, Imago 1976): “Vinte e cinco anos de intenso
trabalho tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje
inteiramente diferentes do que eram no começo, quando o médico que analisava não poderia
fazer mais do que descobrir o material inconsciente oculto para o paciente, reuni-lo e
comunicá-lo a este. A psicanálise era então, primeiro e acima de tudo, uma arte
interpretativa”. Mas, como o paciente resistia à interpretação, esse procedimento pareceu
insatisfatório. Outro objetivo, diz Freud, “rapidamente surgiu à vista: obrigar o paciente a
confirmar a construção teórica do analista com sua própria memória. Neste esforço, a ênfase
consistia em descobri-las tão rapidamente quanto possível, apontando-as ao paciente,
induzindo-o pela influência humana a abandonar as suas resistências. Era aqui que a sugestão,
funcionando como ‘transferência’, desempenhava seu papel de fazer abandonar as resistência.
Contudo, tornou-se cada vez mais claro que o objetivo que fora estabelecido, ou seja, o de
que o inconsciente deve tornar-se consciente, não era completamente atingido através deste
método. O paciente não pode recordar a totalidade do que nele se acha recalcado e, o que
não lhe é possível recordar, pode ser exatamente a parte essencial. Dessa maneira, ele não
pode adquirir nenhum sentimento de convicção da construção teórica que lhe foi comunicada.
É obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma experiência contemporânea, em
vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo como algo pertencente ao passado”. (...)
“O médico empenhava-se por manter essa neurose de transferência dentro dos limites mais
restritos, forçar, tanto quanto possível, o canal da memória e permitir que surja como
repetição o mínimo possível”. Nesse sentido, como nos disse Freud, o paciente era obrigado
a repetir o recalcado no lugar de recordá-lo como algo do passado. O inconsciente não
oferecia resistência, ele insistia, tentando irromper, assujeitado à compulsão à repetição.
Nesse ponto, aponto os riscos que a análise pode correr quando o analista, quase que
compulsivamente, remete tudo o que lhe diz o paciente à sua pessoa, com a justificativa de
estar “trazendo para a transferência”. Essa conduta pode aumentar a resistência já que a
análise permanece no regime da transferência como resistência.

Como vimos acima, podemos ver em Freud o percurso de três maneiras


distintas de pensar que a experiência psicanalítica e, portanto, a teoria do inconsciente. Na
primeira, o inconsciente aparece como algo oculto a ser descoberto pelo analista; na
segunda, temos o inconsciente como uma construção teórica do analista, que requer a
convicção do paciente para ser confirmada, o que se obtém pelo levantamento das
resistências; e, finalmente, na terceira formulação, temos a noção de inconsciente como algo
que insiste, pela compulsão à repetição, e é na e pela transferência que o objetivo da análise é
atingido (Coutinho,A. - “O Inconsciente na construção do espaço analítico”. Rio, 1989.
Mimeo).

Penso que, na cena analítica, a verdade do inconsciente vai sendo tecida,


entre a insistência das fantasias inconscientes do analisante ( que tendem a se repetir na
transferência, nas suas múltiplas apresentações) e as respostas que lhe são dadas pelo
analista. Não sendo as fantasias inconscientes protótipos fixos, a interpretação vai construir
uma nova inscrição que atrairá nova representações.

As fantasias inconscientes poderão ser interpretadas em diferentes registros e


a escuta do analista, na sua singularidade, terá uma incidência nas suas formas de expressão.
No seu texto de 1937 “Análise terminável e interminável”, Freud limita as
possibilidades de perlaboração. Ele deixa entender que não se pode tudo significar, que
permanecerá um núcleo do inconsciente que jamais virá. Apontando para o rochedo da
castração, que, em seus equivalentes simbólicos da inveja do pênis e da angústia de
castração, tem o efeito de barrar o retorno de uma completude narcísica, pondo o sujeito
analisado face ao limite do conhecimento da verdade toda e do aplacamento radical da
angústia.
Assim, uma análise bem-sucedida não levaria o homem à felicidade total mas
ao encontro de seu destino trágico, ao encontro de sua verdade de sujeito dividido, cujo
destino é a morte, o desconhecimento e a incompletude. Uma análise terminada é um adeus
às ilusões, que pode levar o sujeito a um incremento de criatividade pela via da sublimação.
Evidentemente, estamos nos referindo aqui ao campo das neuroses, já que nos pacientes de
estrutura psicótica, ou mesmo nos chamados “casos limites”, a questão da sublimação e da
castração se passa de maneira bem diferente.

Fernando José Barbosa Rocha

*****

O INCONSCIENTE EM FREUD E NA FILOSOFIA: DIFERENÇAS

Falando de psicanálise para psicanalistas, cabe esclarecer que minha reflexões


mantêm-se inscritas no âmbito exclusivamente teórico. Se é próprio ao filósofo
filosofar, momento no qual realiza uma práxis, esta se estende quando lhe é atribuída
mais uma função, a de, tal como as laboriosas formiguinhas de Eros e Psiqué, que
separavam os grãos por espécies, buscar nas diferentes teorias e práxis os parâmetros
no interior dos quais elas se ergueram. Esse fazer assinala a radical diferença entre o
pensar do filósofo e o do psicanalista.

Descortinando a modernidade, Freud apresenta-se como pensador


surpreendente. Beneficia-se dos vários sistemas filosóficos e não se torna filósofo. Mergulha
nas profundezas do corpo vivo, mas desiste de ser médico. Embrenha -se nas obscuridades
do humano, sem atrelar-se ao humanismo. Por fim, enuncia a definitiva sentença: o homem
não foi retirado apenas do centro do universo e da criação, mas também do centro de si
mesmo. Incomplacente, não vacila Freud em afirmar que o homem revela-se não na clareza
da consciência, mas sobretudo nos abismos do inconsciente. Refletindo, e até filosofando,
Freud subverte a filosofia. Inaugura uma teoria do inconsciente, sustentáculo da teoria
psicanalítica, diferenciando-a decisivamente de outras formuladas por filósofos que o
antecederam, e mesmo sucederam, e mesmo sucederam.

Na intrepidez das distintas obras que marcaram a filosofia clássica (séc.XVII


ao XIX), onde cada qual se torce e retorce em suas próprias volutas, conduzindo para
diferentes avatares, não deixa de transparecer nos vários sistemas desde Leibniz, passando
por Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer e Hartman, entre outros, a incessante
tematização da passagem do obscuro à resplandescente claridade da inconsciência à
consciência.. Ainda que nem sempre o termo inconsciente seja explicitado, é freqüente
encontrar nesses filósofos ao menos um equivalente que o substitui. Nas diferentes
perspectivas filosóficas, inconsciente ora é aquilo que não teve acesso à luz da consciência –
um fato ou um estado – ora é aquilo que se mantém na pura sensação – um estar inconsciente.
A inconsciência constitui, assim, o conjunto de ações, estados ou processos que não
lograram atingir a clareza da consciência. Por vezes identificado com a mônada criada –
átomo da natureza (Leibniz) –, em outras com o primeiro movimento da consciência – a
experiência sensível (Hegel); ou mesmo com a força jubiladora expandida no interior do
corpo, a Vontade (Schopenhauer), ou ainda com o Insconsciente Absoluto (Eduard von
Hartmann), o estado de inconsciência apresenta-se como a desordem do obscuro começo
que, mediante vários estágios, poderia atingir um maior grau de inteligibilidade.

Percorrendo o movimento do invisível ao visível, da penumbra à luz, a


consciência nos seus vários momentos, à semelhança de uma escala cromática, varia suas
possibilidades de coloração: do matiz mais escuro ao mais luminoso. Como a cor, que
exclui o preto – ausência de reflexão da luz – e o branco – síntese de todas as cores –, a
consciência oscila nos seus semitons de acordo com a freqüência do fluxo luminoso que a
alcança. Feliz é a consciência que consegue ultrapassar os portões da cegueira, ganhando a
possibilidade de daí em diante enxergar claramente o que existe para ser conhecido.
Esculpid a por um cinzel quantitativo, a consciência adquire, na filosofia, sua forma final na
busca da razão última das coisas.

Porque contida nos limites da cognição, a consciência, aos olhos do filósofo,


em seu processo que parte da pura sensação, tem, já no nível seguinte, o da percepção, a
capacidade de reter o percebido, dele fazendo a matéria -prima para uma nova percepção,
cujo estímulo deflagrador já não vem mais de fora da consciência, mas é uma percepção
anterior que passa a ser estímulo para uma nova percepção. A consciência ganha, então, uma
autonomia, o que a faz tornar-se o núcleo do psiquismo (e herdeira desse nome), capaz de
controlar não só o fluxo dos estímulos, e portanto das percepções, como também a própria
duração da permanência do estímulo e da percepção à sua disposição.

Como um passante atento, Freud perambula pelas alamedas abertas pelos


vários pensadores, fixando-se naqueles que mais o levavam a pensar. Não há como negar,
ao longo da obra de Freud, a acentuada ressonância do legado deixado por vinte e cinco
séculos de filosofia, tal como ocorrera em seus encontros com a fisiologia , a física e tantas
outras ciências, além da literatura e da mitologia: toma-as como interlocutoras, mas mantém-
se irredutível a qualquer uma delas. Fazendo ciranda das diversas filosofias, Freud não deixa
de utilizar os antigos e conhecidos termos filosóficos. Nem sempre será possível, no entanto,
estabelecer correlações diretas entre os sentidos que esses termos têm para os filósofos e as
conotações radicalmente outras que muitas vezes Freud lhes atribui. A começar pelo próprio
termo consciência. Se, como vimos, para a filosofia vigora uma inteligibilidade quantitativa
da consciência, identificado ao próprio psiquismo, para Freud a consciência é sempre uma
qualidade do funcionamento psíquico, um de seus atributos, podendo, até mesmo, dele se
ausentar. O termo psiquismo em Freud, muito longe de restringir-se ao chamado mental,
onde oscilariam os vários graus de consciência, inclui o todo do corpo submetido ao
princípio dos “vasos comunicantes”.

Distanciando-se da filosofia, Freud, no tão pouco debatido Projeto de uma


Psicologia – Entwurf einer Psychologie (1895) –, define o psiquismo pela formulação de
uma extensa teoria do aparelho psí quico, na qual relaciona os neurônios perceptivos (da
sensação), os neurônios mnêmicos e os neurônios perceptivos da consciência, numa
revolucionária abordagem sistêmica, articulando desde as quantidades de excitação
deflagradas a partir do mundo exterio r com seus efeitos no interior do corpo, até a filtragem
quase total da quantidade, chegando à percepção consciente pouco mais que uma qualidade.
Essa articulação sistêmica dá-se segundo o princípio dos vasos comunicantes, onde as vias
provenientes dos terminais nervosos ramificam-se abrindo novas “vias” de diferentes
dimensões, de acordo com a quantidade de excitação. No percurso dessas ramificações, a
quantidade transforma-se, em sua grande parte, em qualidade através do período de
excitação , ou seja: do tempo que transcorre durante o ciclo que se repete de forma
constante. Tornadas quase totalmente qualidade, as excitações alcançam numerosos pontos
terminais, catexizando-se – ou investindo – os neurônios mnêmicos, encontrando estes sua
expressão por meio de uma “topografia ” psíquico-corporal cuja conformação resulta da
maior ou menor grau de trilhamento ou facilitação – die Bahnung – das barreiras de
contato para a condução da excitação. Por sua vez, a excitação do neurônio mnêmico, que
ainda contém um mínimo de quantidade, deve passar por um novo filtro, para chegar à
percepção consciente, dotada praticamente apenas de sua dimensão qualitativa, cujo período
caracteriza-se pela fugacidade, pela impossibilidade de ser reproduzido e por não deixar
marcas mnêmicas.

Se há, então, alguma correspondência, na psicanálise, ao que a filosofia


denomina consciência obscura, à qual atribui o estado de inconsciência, essa
correspondência há de se dar em relação à dimensão chamada sistema pré-consciente-
consciente, e nunca ao que Freud formulou como teoria do inconsciente. Essa
correspondência deveria ainda manter -se nos limites de mera descrição, já que a filosofia
exclui do psíquico aquilo que não atingiu a consciência. Para Freud, ao contrário, se todo o
sistema neuronal integra o aparelho psíquico, a consciência, uma de suas partes,
exclusivamente capacitada a lidar com qualidades, e não com quantidades, jamais poderia
fornecer uma informação fidedigna de todo o sistema neuronal, no interior do qual estará
residindo inclusive o inconsciente, submetido este à lei do recalque.

Se fossemos delinear características para o inconsciente freudiano, estas


deveriam levar em conta as teorias do recalque, da repetição e da resistência. Apesar de
todas as diferenças para com a filosofia, Freud não hesita em assinalar, nas suas reflexões
(em Uma Dificuldade da Psicanálise - 1917), os ecos recolhidos, por exemplo, de
Schopenhauer, aquele que, dentre os filósofos que antecederam Nietzsche, mais espaços
percorreu para fora do restrito âmbito da cognição e da consciência. Mas também explicita o
que o distancia desse filósofo. A proposta de Schopenhauer – a imensa resistência do
homem para admitir uma realidade penosa, Freud de bom grado a aceita, revelando, porém,
que, ao se beneficiar de uma intuição filosófica, não fica ele apenas na formulação da tese,
mas desce ao detalhe concreto e definido da sua comprovação no interior da vida individual,
levando os que acolhem respeitosamente essa idéia, enquanto proposta filosófica, a rechaçá-
la violentamente, no momento em que é ela apresentada pela psicanálise, acrescenta Freud
com amarga ironia...

Desde 1893, no Estudo Comparativo das Paralisisas Motoras Orgânicas


e Histéricas antes mesmos de o termo psicanalítico ter-se consagrado, Freud enfatiza quão
incompatíveis são a lógica anatômica e a paralisia histérica, que se realiza independentemente
da precisão anatômica. Se para a biologia o corpo é despossuído de fala, um in-fans, para
Freud o corpo é um corpo que fala, que emite informações – que se comunica. Com essas
afirmativas, Freud não apenas re-coloca a biologia e a anatomia em seus respectivos limites,
como, ao mesmo tempo, recusa restringir as imagens psíquicas à consciência. Não haveria
um plano do psíquico, entendido como um órgão cuja função fosse abrigar as imagens
cognoscíveis. Freud apresenta um novo estatuto para a idéia de imagem: longe de ficar
restrita ao local onde fora formada, a imagem, tal como um estímulo, movimenta-se fazendo o
percurso da “topografia” psíquico-corporal, o que seria reafirmado dois anos mais tarde,
no Projeto. Através da análise da histeria, Freud prova que as imagens, dotadas também
elas de uma dimensão material, circulam pelo todo do corpo fazendo-o falar, ainda que na
fala silenciosa dos sintomas, que veio a demonstrar -se eloqüente como poucas. O
sintoma poderia ser pensado, portanto, como expressão de uma vivência da qual decorre uma
imagem, cuja excessiva quantidade de estímulo, não podendo ser absorvida pela percepção
consciente, que só admite a qualidade, é por ela rechaçada para o inconsciente,
presentificando-se no nível corporal do psiquismo. Nesse momento, Freud antecipa a idéia
de corpo erógeno que, submergido nos segmentos de imagens-estímulo, acompanha o fluxo
do corpo como um todo, nele desenhando figuras ou desencadeando processos. O sintoma,
então, jamais seria um engendramento redutível ao mental, mas imagens construídas a partir
de vivências, e cujo locus será o próprio corpo.
Freud admite que a importância dos impulsos sexuais na vida humana já havia
sido proposta por Schopenhauer. Entretanto, não é pelo impulso sexual em si que Freud se
interessa, pois este ainda estaria limitado ao reino da biologia. É para a sexualidade, para as
imagens que revestem o exercício da função sexual e determinam os seus destinos que Freud
se volta, acrescentando mais um destacamento ao batalhão que patrulha a fronteira entre os
territórios da filosofia e da psicanálise. O elogio que Freud rende, contudo, ao “grande
pensador” é caloroso, dada a sua penetrante contribuição para a luta contra o auto-engano
imposto ao homem por seu próprio narcisismo.

Anos mais tarde, ao discutir a teoria do narcisismo (1914), Freud não deixa
dúvidas de que, além de estar formulando uma nova teoria, está reforçando a teoria básica
da histeria. Quando assevera que todo órgão pode se revestir de erogeneidade, confirma
ele e aprimora justamente a idéia segundo a qual o órgão não se restringe a uma dimensão
puramente biológica, pois a maneira pela qual se comportará irá variar de acordo com a
pressão libidinal sobre ele exercida.

Existindo a característica repetitiva do sintoma, procedente do inconsciente,


Freud não limita a vigência da repetição ao sintoma, mas dali extrapola mostrando o quanto a
repetição caracteriza o próprio inconsciente. Em 1897, na Carta 71 a Fliess, Freud se refere
pela primeira vez à tragédia de Édipo. Como que respondendo ao coro que interpreta Édipo
sobre seu espantoso percurso: “Que daimon
te impeliu?”, revela Freud toda a sua audaciosa perspicácia: A “compulsão”- der Zwang -
de destino, à qual todo homem está submetido. A apreensão, nesse vetuso mito, do
fenômeno da compulsão é ressaltada por Freud como suficiente para que os homens se
curvem ante a tragédia de Édipo. Pois é essa compulsão que cada um de nós reconhece
em si: cada um sente em si a existência desse mesmo daimon. A tragédia coloca em relevo o
próprio do humano, condenado a viver o irredutível paradoxo de agente que na verdade só
o é porque antes fora agido por um daimon, que assim retira o homem do comando de suas
ações. Mas Freud vai ainda mais longe. Utilizando o termo der Zwang, em latim compelere,
um pressionar que inclina para, ele introduz duas questões. A força que pressiona –
compele – o homem a tornar-se humano, para transformar-se num autós, um ser autônomo –
ainda que condicionado por esse daimon – é a mesma que o impede, enquanto humano, de
atingir o real: em vida, viver o estado só possível na morte – a total inermidade e auto-
suficiência. Ao mesmo tempo, essa mesma força que lhe é inicialmente externa é a que irá
marcá-lo naquilo que o inaugura: o inconsciente. Com o núcleo sempre submetido ao
recalque – die Verdrangung – , o inconsciente jamais será apreendido em sua totalidade, mas
ali estará para pressionar incessantemente e assim levar à repetição mesmo que disso o
homem se torne ciente. Na condição de homem lançado no mundo, essa força que, sem lhe
permanecer externa, ainda assim furtar-se ao seu controle, continuará a pressionar. A
tragédia de Édipo, pois, aquela do homem incapaz de evitar a repetição, é o trágico de todos
os homens. Talvez por isso Freud dê à tragédia de Édipo um estatuto universal; todos os
humanos farão inevitavelmente o mesmo percurso de Édipo: o percurso pontuado pelo
inexorável repetir.

Pode-se dizer que desde o Estudo Comparativo, o Projeto, e mesmo a


Carta 71, Freud já apresenta as bases a partir da quais irá formalizar a teoria do
inconsciente. Em As Pulsões e suas Vicissitudes (1915), Freud fornece os elementos para
discriminar com precisão o inconsciente psicanalítico das formulações filosóficas a esse
respeito. Referindo-se à terceira vicissitude da pulsão, o recalque, Freud o apresenta
desvinculado de impulsos como a fome, atenuáveis por meio de atos que o satisfazem, e cuja
tensão mantém-se ao nível da necessidade orgânica. Enquanto somática, a pulsão procura
saciar a necessidade biológica, mantendo-se fora da operação psíquica no inconsciente, cuja
efetivação somente pode se dar sobre representantes típicos da pulsão. Estes, por sua vez
, possuem dois elementos: os representantes ideativos e o quantum de afeto. Enquanto os
representantes ideativos sofrem com o recalque um exílio da cena consciente, o quantum de
afeto mantém-se independente da representação ideativa. Como substrato material da
pulsão, o quantum de afeto possui as características de uma quantidade, mesmo que não
mensurável: pode ser aumentado, diminuído, deslocado, descarregado, disseminando-se
sobre os traços mnêmicos, percorrendo a “topologia” psíquico-corporal.

No que concerne ao recalque que incide sobre o representante ideativo da


pulsão, Freud adverte que ater-se a ele é limitar-se ao nível da pura cognição, que na
situação clínica apenas levaria o analisando a tomar conhecimento das origens de seu
sintoma. Para que a psicanálise enquanto teoria de uma clínica se faça valer, o analisando
de uma afecção – ser afetado por algo, não ficando restrito apenas à palavra como conjunto
fonético dotado de significado (em termos lingüísticos). Nesse sentido, é preciso que exista
um sinal – que poderia inclusive ser verbal – capaz de agir como estímulo e, assim, afetar,
em termos propriamente quantitativos. Portanto, o que deve ser atingido é o inconsciente que
circula pelo todo do corpo erógeno. Não haveria, então, um inconsciente localizado - tal
qual um órgão. Fugindo às noções de biologia, de anatomia e de psiquismo stricto sensu, o
inconsciente é um a construção lógica para indicar o não designável, descrever o não
verbalizável, apontar para o insólito que subjaz ao homem, complementando assim a
pequena parte conhecida popular e filosoficamente por consciência, anteriormente vista
como sendo o homem. E se há porque falar numa “metafísica” freudiana, é apenas na
medida em que ela se vincula à metapsicologia enquanto construção lógica que forma a base
da teoria psicanalítica.

Apesar das diferenças explícitas entre o inconsciente psicanalítico e o


filosófico, não faltam teóricos atribuindo à filosofia, principalmente a Eduard von Hartmann
(meados do séc.XVIII), a paternidade da teoria do inconsciente. É inegável que dentre os
filósofos Hartmann é o que mais se dedica a esse tema, e prova disso é sua conhecida obra A
Filosofia do Inconsciente (1867). Seguidor de Schelling, Hegel e Schopenhauer , Hartmann
não se limita ao suporte filosófico legado, principalmente, por Hegel e Schopenhauer, mas
segue também os rastros das pesquisas de Fechner. Às refl exões filosóficas, Hartmann
acrescenta as verificações resultantes das Ciências Naturais, visando obter uma indução
generalizadora que o levasse a explicar os fenômenos da natureza, em particular os fenômenos
orgânicos, através da tese de um “inconsciente criador do mundo”- constituído por
“elementos ativos e cegos”. Embora esses elementos sejam vistos pelo filósofo como
análogos aos conceitos de Idéia Absoluta
Hegel e de Vontade Absoluta de Schopenhauer, Hartmann os considera anteriores a esses
conceitos, uma vez que “o Inconsciente” teria como atributos próprios a Idéia e a Vontade.
Conclui, então, que “o Inconsciente” é o incondicionado – inexplicável por meio de qualquer
relação, representando a condição última de todo o relativo: o fundamento do mundo que
se autodesdobra, manifestando-se no Absoluto.

O Absoluto seria fundante para que o mecanismo das Ciências Naturais se


complete, pois somente o Absoluto explicaria como o determinismo causalista, o qual inclui no
domínio biológico a teoria de Darwin da seleção natural, é o produto de uma inteligência
superior que somente se apresenta ao término do seu desenvolvimento, mostrando-se então
lúcida e consciente a partir de sua remota origem no puro instinto, na “Vontade cega e
irracional”. Ao comparar a Vontade Absoluta de Schopenhauer e a Idéia Absoluta de Hegel
com “o inconsciente”, Hartmann atribui ao inconsciente o lugar da dor e do sofrimento,
matéria prima da evolução do mundo e da progressiva irrupção da consciência, atos
indispensáveis do drama que conduz ao aniquilamento da dor do inconsciente e à “Salvação”,
cuja realização somente se dará através da atividade do homem e do progresso da história.
O pessimismo produzido pela consciência da existência do mundo transformar-se-á em
otimismo ativista, cuja tendência será buscar a conclusão da história e da cultura: a definitiva
“Salvação”.

Pode-se dizer que Hartmann, como seguidor de Schopenhauer – segundo


Freud, um “Schopenhauer deformado” – , teria acompanhado as interrogações do mestre,
posteriormente aprimoradas por Nietzsche sob a forma de: “O que é isso – das Es - de não
pessoal e, por assim dizer, de necessário por natureza do nosso ser? Para Hartmann o
isso é o que há de “força cega e irracional” – o inconsciente – que no mundo deverá evoluir,
e no homem irromper como consciência, enquanto para os dois filósofos da Es é constituído
por “forças desconhecidas, inesgotáveis, indomáveis e inapreensíveis”. Na segunda tópica,
em O Ego e o Id (1923), perseguindo essa mesma questão, Freud alude ao psiquiatra
George Groddeck, que, instigado pela indagação filosófica, conclui: “O ego se comporta na
vida de maneira passiva, (...) somos ‘vividos’ por forças desconhecidas e indomáveis”. Freud
concorda com Groddeck, por ter percebido em seus pacientes expressões como: “Aquilo ou
isso – das Es – foi mais forte do que eu”. Indo além da questão filosófica e da conclusão do
psiquiatra, Freud aprimora a teoria do aparelho psíquico, na qual o id (termo latino
empregado pela tradução ingle sa para das Es) apresenta-se como uma de suas três
instâncias: como pólo pulsional, o id tem seus conteúdos inconscientes; em sua dimensão
econômica é o reservatório da energia psíquica; e como expressão dinâmica, é fonte de
conflito com o ego e o superego.

Novamente, vemo-nos ante uma falsa aproximação descritiva de dois


conceitos fundamentais para Freud e Hartmann, mas que em nada se superpõem. Na
perspectiva de Hartmann, o inconsciente pode transformar -se em consciência, e vir à
superfície, “salvando” o homem da dor e do sofrimento, enquanto para Freud o inconsciente
é o fundante paradoxal do homem, do qual jamais lhe será possível desvencilhar-se.
Hartmann propôs uma práxis para a filosofia. É possível dizer, no entanto, que tal práxis
concretiza-se no próprio filosofar, mesmo quando voltado para questões da existência
humana; no exercício da análise sistemática dos pressupostos dos diversos conhecimentos;
ou, à maneira hegeliana, na qual a filosofia encontraria sua realização na história, através das
várias instâncias em que esta se processa. Isto, porém, em muito difere da práxis
psicanálitica, cujo praticante até pode beneficiar-se do saber filosófico, sem contudo deixar-se
iludir pela idéia de que seu trabalho estará assegurado por esse saber. Pois a práxis da
psicanálise nem sequer se auto-sustenta apenas sobre os pilares de sua própria teoria, nem se
satisfaz, obviamente, com um puro empirismo, mas dá-se na confluência entre o universal
abarcado pela teoria e a máxima singularidade da situação clínica, onde as mesmas palavras,
gestos, sonhos, vindo de diferentes analisandos, ou até do mesmo analisando em momentos
diferentes, produzem significações e efetivos diversos.

Confundir a teoria psicanalítica do inconsciente com aquele outro inconsciente


é retirar de Freud a especificidade de sua descoberta fundamental, que dele exigiu, antes de
mais nada, uma práxis clínica. O psicanalista que não considera a diferença entre esses
dois modos de pensar o inconsciente corre o risco de ver-se abandonado o terreno da
psicanálise e ingressando, sem o saber, no reino da filosofia, onde não existe a possibilidade
do trabalho clínico. Se não é franqueado ao filósofo enquanto tal o exercício da clínica
psicanalítica, embora não possa ele mais ignorar as teorias da psicanálise, é perfeitamente
legítimo que o psicanalista se embrenhe pelos campos da filosofia, da lógica, da física, das
teorias do signo, entre outros. Não necessariamente para tornar-se especialista nessas áreas,
mas para melhor instrumentar-se ao pensar a própria clínica. Não teria sido isto o que fez
Freud, buscando na filosofia um dos respaldos para suas reflexões? Se a filosofia existe há
pelo menos dois mil e quinhentos anos, e a psicanálise mal completa os seus primeiros cem,
nada mais apropriado do que valer-se a psicanálise dos tesouros com tanto esforço
amealhados pela filosofia.
A forte ressonância de várias questões filosóficas na obra de Freud, tais como
o princípio da não contradição (no inconsciente), que remete à vigorosa discussão de
Leibniz, ou o movimento hegeliano do percurso da consciência, e mesmo os instintos de
Vida e Morte, propostos por Schopenhauer, em nenhum momento significa que Freud teria
construído apenas uma teoria paralela àquelas idéias. Em sua juventude, falando numa roda
de amigos sobre a estranha anestesia que a cocaína produzia sobre a língua, Freud
proporcionou ao oftalmologista Carl Koller o desenvolvimento da técnica que utilizou a
cocaína como anestésico local, tornando possíveis as cirurgias oculares e trazendo a Koller a
fama mundial que o jovem Freud lamentou perder. O mesmo fez Freud com as idéias, teses
e intuições de muitos filósofos: tomou-as, reelaborou-as, construiu-lhes arcabouços
novos, e assim criou uma área de conhecimento inteiramente nova.
A maior lição de sabedoria que o pai da psicanálise legou a todos aqueles que o seguiram foi
a liberdade de transitar sem constrangimentos pelas diferentes teorias, mantendo a
especificidade da teoria que procurava formular. Como ár ea do conhecimento que mal
acabou de nascer, nada mais legítimo e apropriado à psicanálise do que exigir do psicanalista
que mergulhe nas profundezas dos vários saberes, mas não para diluí-la ou descaracterizá-la,
e sim para a fortalecer, revigorar e manter viva.

Estrella Bohadana

*****

O INCONSCIENTE
Quando, convidado a falar sobre o Inconsciente, tentei iniciar a tarefa que me
propusera, devo confessar haver relembrado as ocasiões em que, no curso primário,
necessitava cumprir a solicitação de uma daquelas redações, de vinte linhas no máximo, sobre
um tema geral – o céu, por exemplo. O céu, sim, mas qual céu? O céu azul de um dia de
sol? O céu noturno, com a Lua e as constelações da Via -Láctea? O céu da atmosfera
terrestre, com suas diversas camadas de gases de diferentes composições químicas? O céu
metafórico das religiões?

Pensei então por qual prisma poderia começar a abordar o assunto – e


diversos caminhos foram surgindo, tão independentes e entrelaçados quanto, quem sabe, as
pulsões que compõem seu Sistema. Poderia tomar o caminho da formação do Inconsciente,
quando, sob o efeito das primeiras repressões, seus domínios vão sendo perdidos para o Pré-
Consciente, Sistema que passa a delimitar suas fronteiras. Abandonando esse mo mento
inicial, poderia também seguir a estrada do exame de sua relação posterior com o Sistema
Pré-Consciente – relação essa que se desenvolve em termos de oposição, conflito e, por fim,
de cooperação, quando ambos se unem para a formação de estruturas de compromisso
(como os sonhos e os sintomas neuróticos). Poderia ainda dirigir-me para a observação
daquilo que, num sentido figurado, o Inconsciente contém: impulsos instintivos (pulsões) que
coexistem, independentes, e que são movidos pelo incessante desejo de alcançarem a
Consciência, juntando-se então a traços mnêmicos – com os quais formam estruturas
ideativas capazes de realizar essa passagem tão desejada.

Deixando de lado o prisma da relação entre os Sistemas, outro caminho seria


o de caracterizar o Inconsciente sob o ponto de vista da Energia Psíquica Livre, do Processo
Primário, do Princípio do Prazer – e depois contrapô-lo ao Princípio da Realidade, ao
Processo Secundário e à Energia Psíquica “Vinculada” do Sistema Pré-Consciente. Um
novo atalho conduziria a apontá-lo como aquele Sistema cujas propriedades, na Segunda
Tópica, são contidas pela totalidade do Id, por parte do Superego e por parte do Ego... O
Inconsciente, sim, mas sob qual prisma? O Inconsciente, tal como Freud o descreveu em
seus trabalhos mais antigos, usando de abundantes metáforas que quase faziam acreditar em
sua existência territorial – como uma região submersa cujo relevo se escondia nas
profundidades? Ou o Inconsciente de seus trabalhos mais recentes, considerado como uma
das três qualidades dos processos psíquicos – que, assim, podem ocorrer de modo
consciente, pré-consciente e inconsciente? Ou ainda, o Inconsciente depreendido da
formulação de tantos outros psicanalistas, como Klein ou Fairbairn, contendo uma povoação
de objetos maus que o analista cuidadosamente deve guiar até a Consciência para serem, de
certa forma, “exorcizados”?

Outra via possível seria relativa à estratégia que a análise pode tomar para
conseguir decifrá-lo, vencendo as resistências que, numa época mais antiga, baniram o
material ideativo e as estruturas afetivas para o interior de seus domínios. Estratégia essa que,
para alguns, deve ser suave e, até certo ponto, fabianamente contemporizadora, buscando
interpretar inicialmente os conteúdos do Pré-Consciente e, somente depois, as moções
pulsionais às quais estão enlaçados; e que, para outros, necessitará ter o ímpeto de um
avanço incessante rumo às “profundidades” mais remotas e nucleares.
Neste estado de perplexidade, ocorreu-me a idéia de tomar um caminho
bastante diverso, trazendo aqui o relato da experiência vivida por um uruguaio imaginário que
foi, durante 21 anos, contemporâneo de Freud no final do século passado, justamente à
época das primeiras descobertas do criador da psicaná lise em Viena. Vivendo no meio
culturalmente mesquinho de uma cidadezinha sul-americana, sua história é contada por Borges
em uma de suas ficções. O relato é curto: o narrador, um rapaz em férias no interior
uruguaio, encontra por três vezes o jovem Irineo Funes. Na primeira, galopando com um
primo, avista Funes, que também corre da chuva e que lhes responde que horas são. Na
segunda, três anos depois, sabe que o jovem Funes tornou-se inválido após uma queda de
cavalo e o visita para emprestar-lhe alguns livros
que possam distraí-lo. Na terceira, esperando receber os livros emprestados, vai ao rancho
de Funes, que, filho de pai desconhecido, mora só com sua mãe. O estudante em férias
surpreende-se com o que ouve: Funes, preso a seu leito de inválido, memorizou todas as
linhas dos livros e as repete de cor. Conversam durante a noite in teira e para seu espanto,
Funes lhe conta que, antes de ser derrubado pelo cavalo, havia vivido como cego, surdo,
estúpido e desmemoriado – olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia tudo ou quase tudo.
Com a queda, perdera o conhecimento; quando o recuperou, o presente passou a parecer-
lhe quase intolerável de tão claro, e também o passado lhe chegava cheio de nitidez.
Percebera que ficaria inválido – mas considerou que essa imobilidade representava um preço
pequeno para aquilo que adquiria: sua percepção e sua memória se haviam tornado infalíveis.
Podia recordar tudo: as linhas de espuma levantadas por um remo sobre um rio num dia
antigo, as formas das nuvens numa aurora passada, todos os sonhos que tivera, todas as
vigílias. Suas lembranças eram completas – “cada imagem visual estava vinculada a
sensações térmicas, musculares, etc.” Dizia a seu visitante: “Mais lembranças tenho eu
sozinho do que aquelas que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo”.

Irineo Funes era capaz de recons truir totalmente tudo o que havia visto
ouvido, sentido num determinado dia de seu passado. E um de seus projetos era o de
organizar todas as suas lembranças numa espécie de catálogo que abrangeria cerca de 70.000
delas, definidas por números. Para reconstruir cada um de seus dias, necessitava, porém, de
um dia inteiro – e assim passava os dias ocupado em seu leito. Dormir lhe era muito difícil,
pois dormir era distrair-se do mundo. Mas tinha a consciência de que a tarefa seria
interminável e, além disso, inútil. E pensava que, na hora de sua morte, não teria ainda
conseguido classificar todas as lembranças de sua infância. Com efeito, morreria dois anos
depois da última visita do narrador, na idade de 21 anos. Numa das últimas linhas do conto
de Borges, o estudante em férias diz suspeitar que Funes, apesar de sua imensa memória, não
fosse capaz de pensar, pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, é abstrair. No
abarrotado mundo de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”.1

A história de Ireneo Funes, que, de tanto lembrar, viu-se impedido de pensar,


ilustra bem o ponto de vista de Freud: se todos os traços mnêmicos permanecessem
conscientes, certamente limitariam a capacidade para a recepção de novos estímulos. Mas
permite igualmente outra comparação. Levado pela forçada imobilidade, Funes volta-se para
o interior de sua própria mente e, confinado a um quarto escuro , tenta reconstruir todos os
traços mnêmicos impressos por seu passado. Seus projetos, ele próprio os vê como fadados
ao insucesso – e nós podemos imaginá-los como distorcidas tentativas de elaboração de um
luto que Funes se esforça por negar, levando “sua sabedoria até o ponto de simular haver
sido benéfico o golpe que o fulminara”. 2

Também o analisando, em sua temporária imobilidade, busca o conhecimento


interior. Mas não o faz sem um propósito e conta com um objeto em quem esse passado
pode ser atualizado pela transferência. Na mente de Funes, causa espécie a aparente falta de
sofrimento e a ausência das defesas da repressão que bloqueariam a evocação completa das
memórias. Já o modelo psíquico imaginado por Freud é, desde o início, estruturado pela
repressão, e seu propósito é o de evitar o desprazer do sofrimento. Em seu funcionamento,
determina que todas as idéias capazes de criar sofrimento psíquico passem a fazer parte de
uma abstrata “região” à qual é dado o nome de “Das Unbewusste” (Aquilo que não é
Conscientemente Conhecido) – o Inconsciente. 3

E, naquilo que diz respeito a esse conceito, podemos situar três momentos
principais na obra de Freud, a cuja rápida revisão irei ater-me. O primeiro deles surge
quando o século começa e está expresso na “Interpretação dos Sonhos”– em cujas páginas
Freud demonstra que as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a
assistência da Consciência. Para explicar tais realizações, cria o modelo do aparelho
psíquico, regulador de tensões, composto por dois Sistemas: Inconsciente e Pré-Consciente.
O Sistema Pré-consciente possui o poder de barrar o acesso à Consciência aos produtos do
Inconsciente, filtrando tudo aquilo que provoque desprazer. Dispõe, para realizar essa tarefa,
de uma energia de catexias móveis que pode ser ligada aos produtos psíquicos ou deles
retirada. E é esse investimento de energia que faz com que uma determinada idéia permaneça
ou não num ou noutro Sistema. Sofrendo a rejeição de tal censura, o produto psíquico é
arrastado para o Sistema Inconsciente, onde permanecerá em estado de recalcamento. Lá
perdura, ides trutível – pois, no Inconsciente, nada tem fim, nada é passado, nada é esquecido.
Ávidas de revivescência, as lembranças censuradas, sob forma essencial, lutam para
encontrar expressão. Enlaçando-se aos produtos do Pré-Consciente, retornam durante o
sono, quando a Censura se enfraquece, retomando seu caminho em direção à Consciência.
Podem também retornar através dos sintomas neuróticos – também um escoadouro para o
material do Inconsciente. De tudo isso resulta que a consciência, até então vista como a
única expressão da vida psíquica, torna -se apenas um órgão sensório para a apreensão das
qualidades de prazer e desprazer. Assim, o Sistema Inconsciente contém tudo aquilo que é
inadmissível à Consciência; constitui-se, portanto, na base geral da vida psíquica. Seus
processos acham-se presentes no aparelho psíquico desde o início da vida. E aquilo que
descrevemos como nosso caráter baseia -se nos traços mnêmicos de nossas impressões
primeiras – precisamente aquelas, da primeira infância, que nunca ou quase nunca se tornam
presentes. 4

O segundo momento encontra sua síntese, 15 anos depois, em “O


Inconsciente”, tendo seu conteúdo assim descrito por Freud: “O conteúdo do Ics. pode ser
comparado à presença de uma população aborígene na mente. Se existem no ser
humano formações mentais herdadas – algo análogo ao Instinto nos animais –, elas
constituem o núcleo do Inconsciente. Depois, junta -se a elas o que foi descartado durante
o desenvolvimento da infância como sendo inútil: e isso não precisa diferir, em sua
natureza, daquilo que é herdado”. 5

Quanto ao terceiro momento, aparece a partir de “O Ego e o Id”, em 1923,


onde a 2ª Tópica introduz uma terceira dimensão nas teorias freudianas sobre a vida
anímica.6 Nessa evolução, o conceito de Inconsciente passa a ser mais utilizado para indicar
uma qualidade dos processos psíquicos – que podem apresentar-se como conscientes, pré-
conscientes ou inconscientes, de modo análogo aos estados físicos sólido, líquido e gasoso da
matéria. Dessa maneira, produtos psíquicos inconscientes são definidos como aqueles que
encontram resistências à sua conscientização (ou à sua percepção pela Consciência); alguns ,
como as lembranças mais primitivas, nunca poderão chegar até a Consciência por não
possuírem associações com a palavra, e seu destino será o de vagarem, para sempre
desconhecidos, como aborígenes da mente, constituindo o núcleo do Inconsciente.

Vinculado à própria essência da psicanálise, o conceito do Inconsciente (aqui


vistoriado de modo sumário e buscando apenas o reavivar de nossa memória) ocupou Freud
até os seus últimos escritos. E, em seu artigo inacabado – “Algumas Lições Elementares de
Psicanálise” –, na última linha do trabalho, que, em 1938, exílio, doença e morte o impediram
de terminar, ele nos diz: “Em conseqüência do caráter especial de nossas descobertas,
nosso trabalho científico em psicologia consistirá em traduzir pessoas inconscientes em
conscientes, preenchendo assim as lacunas da percepção consciente...” 7

Reticências interrompem essa frase inconclusa. Contudo, com sua analogia


sobre a tradução, a frase aponta para a natureza de nosso ofício, também criação de Freud.
E nos incita a pensar que nossa tarefa cotidiana consiste em apreender, compreender, traduzir
e, de certa forma, ensinar, no vivo vocabulário da emoção da Relação Transferencial, a
linguagem do Inconsciente de nossos analisandos – até que estes sejam capazes de articulá-la,
dispensando nosso auxílio. Após quase um século do exercício desse ofício artesanal, e por
intermédio das milhares de pessoas que trouxeram suas mentes à investigação terapêutica da
psicanálise, o acervo de dados acumulados sobre o psiquismo humano só fez crescer em
amplidão e detalhe. E, se podemos observar na obra de Freud um incessantes
aprofundamento e uma reformulação contínua, a tarefa primordial da psicanálise neste fim do
século talvez consista em buscar a unificação dos conhecimentos que foram sendo
acumulados em sucessivas camadas teóricas nem sempre harmoniosamente dis postas. Dessa
desarmonia não está isento o próprio legado de Freud, objeto de reexames que procuram
escoimá-lo de eventuais lacunas e contradições.

E, apenas para exemplificar algumas das muitas rotas seguidas por essas
reavaliações, poderíamos lembrar, por exemplo, Guntrip, para quem as observações dos
fatos clínicos efetuados por Freud são mais perduráveis do que muitas das teorias que
construiu para explicá-los. Assim sendo, acredita Guntrip que o Inconsciente como fato
clínico que pode mostrar-se bem mais durável do que o modelo teórico do aparelho psíquico
concebido por Freud para entendê-lo.8

Para outros, tal modelo teórico do aparelho psíquico, que se fundamenta no


arco reflexo, demonstra a fragilidade das teorias cognitivas de Freud, anteriores aos estudos
de Piaget. 9 E mesmo a noção de Energia Psíquica parece a muitos uma sobrecarga pesada
no campo da psicanálise; seu papel seria apenas o de uma ficção metafórica para ajudar-nos
a iluminar as trevas da mente – papel que, contudo, já desempenharia de modo falho. Num
Painel organizado pela Associação Psicanalítica Americana sobre esse tema, o analista
Merton Gill afirma que, pretendendo incluir-se entre as ciências naturais, a psicanálise pode
preferir ver os pacientes como seres “influenciados por conflitos de força que operam em
estruturas” – e não como “agentes responsáveis participantes de interações com outra
pessoa”.10

Objetos de nossa concordância ou discordância, essas e tantas outras


opiniões evidenciam sinais da vitalidade dessa ciência que transformou a concepção que o ser
humano sempre fizera de si próprio. E que o fez sobretudo através da conceituacão do
Inconsciente – e dos procedimentos para investigá-lo e conhecê-lo. Volto aqui ao
personagem da ficção de Borge s. Como Funes – que, sozinho, possuía maior conhecimento
de suas lembranças do que qualquer outro homem desde o início da humanidade – , a
psicanálise talvez necessite fazer o inventário de todas as suas memórias abarrotadas de
descobertas acumuladas. Mas, diferente de Funes, não apenas para ordená-las num inútil
catálogo, e, sim, no exercício de um trabalho similar ao que o escultor (do exemplo de Freud
em “Uma Concepção do Universo”) desenvolve sobre a argila; incansavelmente alterando
seus esboços preliminares, deles retirando pedaços, acrescendo a eles novas porções – até
conseguir um grau maior de semelhança com o objeto que deseja esculpir. 11

Com os olhos voltados em direção ao céu, o ser humano em nosso século


alcançou evoluir do 14 Bis de Santos Dumont até as modernas astronaves que exploram os
confins do Sistema Solar e se perdem no Universo. Num processo de auto-observação,
usando a Luz da Consciência, atingiu também, a partir de Freud, insuspeitados
conhecimentos a respeito de sua atividade psíquica, ganhando o poder de perceber a força
de seu Inconsciente – que, tanto quanto a Gravidade, somente pode ser reconhecida pela
ação de seus efeitos. Não sabemos quais reformulações serão trazidas à psicanálise pelo
próximo século. Nem também que desdobramentos ele determinará no conceito de
Inconsciente, trazendo novos acréscimos, ou retirando de sua concepção aquilo que pareça
inútil ou equivocado. Aqui estamos reunidos para repensá-lo mais uma vez. Com liberdade e
longe dos dogmatismos que fundamentam as concepções religiosas mas paralisam a ciência,
tornando-a tão improdutiva quanto o desesperado esforço do personagem de Borges.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS

1. Borges, Jorge Luiz. “Funes, el Memorioso”. Em “Antologia Personal”, Editora Sur,


Buenos Aires, 1961. - pg.38.

NOTA: O caráter obsessivo de Funes é apresentado, desde o primeiro encontro, através da


precisão de minutos com que informa as horas. Após a invalidez, essa obsessividade se
agrava: outro projeto de Funes é o de substituir todos os números por palavras, seguindo uma
idéia de Locke a respeito de um idioma impossível em que “cada cosa individual, cada pedra,
cada pássaro:... tivesse um nome próprio. Depois desse primeiro encontro, o narrador é
informado de que Funes é filho de pai desconhecido – ou um médico, ou um inglês, ou um
domador, ou um tropeiro. A maestria de Borges torna inesquecível a história de Funes,
mostrando-se sobretudo naquilo que não é expresso na narrativa mas apenas subentendido: a
figura patética do personagem, tentando sobrepujar e negar, através do exercício intelectual
de seus projetos, as trágicas circunstâncias de sua vida marcada pela bastardia, pela solidão,
pela pobreza, pela imobilidade da invalidez, pela castração do futuro. É o impacto dessa
compreensão que faz irromper a emoção do leitor. O subentendido – quase um subtexto
irrompendo do inconsciente – nos faz pressentir a incomensurável depressão do inválido,
oculta sob a “balbuciante grandeza” de seus mirabolantes projetos. Vivendo com sua mãe
na condição de um bebê inerme, Funes ganha a dimensão trágica de um Édipo fulminado pelo
destino que o imobiliza na condição de “eterno prisioneiro”– como se retornasse,
regressivamente, a época em que o uso da palavra começara a ser adquirido, repleto de
percepções infantis extraordinariamente nítidas, exatamente na fase em que o Pré-Consciente
consegue delimitar-se dentro do círculo maior do Inconsciente.

2. NOTA: Poderíamos também imaginar que Funes não esteja de fato reconstituindo um
passado inevocável – mas, sim, criando, inventando, fabulando esse passado para fugir às
intoleráveis frustrações de seu presente. Impedido de toda e qualquer descarga motora,
refugia-se no mundo das percepções alucinatórias – como o bebê do exemplo de Freud em
“A Interpretação dos Sonhos”–, conseguindo assim temporariamente aplacar as tensões de
seu aparelho psíquico, de modo regressivo e precário.

3. NOTA: Em “Ainda o Inconsciente Antes de Freud”, trabalho recentemente apresentado


em nossa Sociedade (abril do corrente ano), José Cândido Bastos nos demonstrou o quanto
a noção de Inconsciente já era conhecida na cultura ocidental. Entre outros autores, lembra o
suiço Paracelso, considerado em seu tempo o “Lutero da Medicina” e, talvez não por acaso,
também como “o mais louco dos médicos e o mais médico dos loucos”. Fossem mais
abrangentes nossos conhecimentos, não seria improvável encontrarmos algo sobre o
Inconsciente em algum velho texto hindu, persa ou chinês. Já no século XIX, José Cândido
nos aponta a obra do médico Carl Gustav von Carus, celebrizado por seus trabalhos sobre
psicologia e fisiologia. Em seu livro “Psyche”, Carus traz uma observação que, por sua
semelhança com as concepções de Freud, não resisto em transcrever do trabalho do colega:
“Existe uma região da vida da alma onde realmente não penetra nenhum raio de consciência;
podemos chamá -la, por conseguinte, de inconsciente absoluto. Além disso, temos,
paralelamente, um inconsciente relativo, isto é, este domínio de uma vida que atingiu realmente
a consciência mas que, temporariamente, tornou-se inconsciente. “Não existe indicação,
segundo o trabalho de Bastos, de que Freud tenha lido Carus – o qual afirma, também, que
“a chave do conhecimento da natureza da vida consciente da alma permanece no mundo do
inconsciente” e que “o primeiro objetivo da ciência da alma é estabelecer como o espírito
do homem é capaz de descer a essas profundidades.” Freud foi capaz de manejar tal chave
e, havendo conseguido encontrar no tratamento das neuroses os instrumentos necessários à
identificação dos efeitos do Inconsciente sobre o Consciente, pôde achar uma utilidade para a
noção de Inconsciente, criando assim a ciência da alma antevista por Carus. Suas pesquisas,
em outros tempos, talvez o houvessem levado às mesmas chamas que fizeram arder Giordano
Bruno e quase chamuscaram Galileu. Diminuindo o possível ufanismo modernista de nosso
século, não podemos esquecer, porém, que uma versão tecnológica das fogueiras medievais –
os fornos crematórios – poderia havê-lo exterminado, não fora sua fuga de Viena.

4. Freud,S., “The Interpretation of Dreams”– “On Dreams”, S.E. IV,V, The Hogarth Press,
London, 1973.

NOTA: Seu capítulo VII se inicia com o conhecido episódio contado por uma pessoa em
análise, que o ouvira de um conferencista: Um pai, após a morte do filho, encarrega um velho
de velá-lo e vai repousar na peça contígua. Deixa a porta entreaberta, de maneira que possa
enxergar o quarto onde jaz o menino entre as velas acesas do velório. Exausto, adormece.
Sonha então que seu filho está em pé junto à cama, que o toma pelo braço e sussurra – Pai,
não vês que estou queimando? O pai desperta, nota o clarão no quarto onde jaz seu filho e
constata que o velho caíra no sono e que uma vela tomb ara e incendiava a mortalha e o
braço do menino. Freud nos traz esse episódio, aqui rapidamente resumido, para assinalar,
simultaneamente, a demonstração das complexas realizações do pensamento efetuadas sem a
assistência da Consciência; o caráter da realização de desejos do sonho (o desejo paterno de
ver seu filho vivo por mais alguns momentos); e a função de guardião do sonho
desempenhada pelo sonho (dormir por mais alguns instantes). Contudo, se tomarmos o
episódio todo, talvez possamos observar em seus três personagens já alguma antecipação das
três agências psíquicas que somente mais tarde seriam delineadas na 2ª Tópica. Com a
liberdade das analogias que Freud nos concede, talvez possamos considerar o velho
encarregado de cuidar do menino morto como uma representação do Superego; ao menino,
veremos como uma representação do Id, com suas pulsões vindas da infância. Num mesmo
aposento-Sistema, onde a morte não existe, o Superego não consegue impedir que a energia
(o fogo) carregue a figura do menino, que retorna à vida como as sombras da Odisséia. No
outro aposento, enfraquecido também pelo sono, o Ego adormece mas sem de todo perder
de vista as representações sensoriais (visuais, tácteis, talvez olfativas e auditivas) que lhe
chegam através da ponta entreaberta da Censura entre os dois Sistemas. Se essa analogia
parecer de algum modo despropositada, ela pode, porém, fornecer-nos alguma idéia da
relação entre os Sistemas e as agências da 2ª Tópica.

5. Freud, S., “The Unconscious”, S.E., XIV, The Hogarth Press, London, 1973. Pág.195.

6. Freud, S., “The Ego and the Id”, S.E., XIX, The Hogarth Press, London, 1973.

7. Freud, S., “Five Elementary Lessons in Psycho-Analysis”, S.E., XXIII, The Hogarth
Press, 1973. Pág.286.

8. Guntrip, H., “Psychoanalytic theory, Therapy and the Self”, The Hogarth Press, London,
1971.

NOTA: Nas páginas 6 e 7, Guntrip relata seu diálogo com um professor de psiquiatria. Este
lhe diz não existir autor mais facilmente utilizável para contradizer Freud do que o próprio
Freud. Guntrip considera essa observação como um tributo ao destemido pensamento de
Freud, cuja mente pioneira não se detinha nunca e permanecia em incessante movimento na
exploração dos desconhecidos caminhos da mente humana. Segundo afirma Guntrip, tal
pesquisa, por sua infinita complexidade, não poderia ter sido exaurida por Freud: desse
modo, parece-lhe ser mais importante determinar o rumo a que o trabalho de Freud pode
conduzir-nos agora – do que o ponto em que foi começado.

9. Schimek, Jean, “A critical Re-examination of Freud’s Concept of Unconscious Mental


Representation”. In The International Review of Psycho-Analysis (1975) 2, 171.London,
1975.

NOTA: Jean Schimek, analista de Connecticut (Estados Unidos), pode bem representar
aqueles que julgam haver Freud seguido um caminho racionalizador, tomando a cognição
adulta como fundamento e modelo implícito de todos os processos de pensamento.
Fundamentando-se em Piaget, parece-lhe oportuno questionar a noção de que o Inconsciente
seja continente de imagens específicas.

10. Wallerstein, Robert e Applegarth, Adrienne, “Psychic Energy Reconsidered:. In Journal


of the American Psychoanalytic Association, Vol. 24, 1976, nº 3, International Universities
Press, New York, 1976. Pág.647-657.

NOTA: No debate promovido pela A.P. americana, em 1975, coordenado por Wallerstein e
relatado por Applegarth, muitos analistas expressaram sua opinião de que a teoria da energia
psíquica somente pode ser mantida por seu apelo estético e por sua simplicidade. Seu valor
seria apenas o de uma metáfora. Outros, contudo, contradizendo essa opinião, retrucaram
como Emmanuel Peterfreund: “Toda teoria é uma metáfora, por que deveríamos temer as
metáforas? São ficções úteis e delas necessitamos para expressar-nos”. A intervenção de
Merton Gill talvez sintetize o resultado dos debates: “...discussões sobre Energia Psíquica são
como discussões sobre religião ou política: ocorrem disputas, muito calor é gerado, mas
nenhuma opinião se modifica”.

11. Freud,S., “New Introduc tory Lectures – A Weltanschauung?”, S.E. XXII, The Hogarth
Press, London, 1973. Pág.174.

NOTA: Entre tantas outras notáveis reflexões de Freud sobre a ciência, podemos ressaltar
sua observação de que o pensamento científico é ainda muito recente entre os seres humanos,
existindo assim inúmeros grandes problemas que a ciência não foi capaz de resolver. Entre a
morte de Newton e a realização de “Uma Concepção do Universo?” passaram-se, como
lembra Freud, ao redor de 200 anos; pouco mais de meio século separa o fim de Freud e a
Psicanálise de nossos dias.

Roberto Bittencourt Martins

*****

O INCONSCIENTE

É difícil dizer qual a maior contribuição de Freud ao pensamento da nossa época, já


que os seus achados e criações se articulam todos uns com os outros na construção de um
dos mais sólidos edifícios que o século lega à humanidade. Contudo, o conceito da
existência de outro mundo, o mundo inconsciente, em correlação ao mundo da consciência,
como negativo deste e por sua vez seu fundamento, um mundo com processos próprios e
regras próprias que determinam os móveis da conduta e do relacionamento das pessoas entre
si e com a sociedade, esse conceito é seguramente um dos mais importantes na obra de
Freud.

Sabemos que os sistemas psicológicos existentes antes de Freud estiveram


sempre atentos e acompanharam os processos não acessíveis à observação, subjacentes ao
funcionamento do sujeito, mas a tese freudiana do determinismo psíquico inconsciente é
ímpar e difere de tudo o que já tinha sido apresentado em vários aspectos, como:

1. Conceitualiza o que não é observável à observação direta.

2. Estabelece que esse material pode ser inferido do que é observado pelo sujeito ou
acompanhado através dos seus efeitos, como as lacunas nos atos psíquicos, parapraxias,
sonhos, sintomas de doenças ou distúrbio mental, idéias e fenômenos obsessivos que de
modo incisivo e inexplicável intrometem-se na atividade e no pensamento, e, sobretudo, os
fenômenos pós-hipnóticos que tanto impressionaram Freud.

3. Afirma que as regras regendo o que é observado são diferentes daquelas para o
não observado, daí decorrendo as magníficas descrições dos processos primário e
secundário.

4. E por último faz uma distinção sistemática entre o observado e o não observável
(como os instintos).

Enquanto outras psicologias tratavam o não evidente em termos não-psicológicos,


Freud os tratou consistentemente em termos de motivação, pensamentos e afetos.
Desde então houve todo um longo caminho percorrido, com novas descobertas e
reformulações das anteriores, como por exemplo: da 1ª teoria topográfica, onde a
acessibilidade do material inconsciente à consciência era o conceito central para organização
do funcionamento do aparelho mental, derivou-se para a teoria estrutural, onde a abordagem
clínica ganha dimensões antes não visualizadas. Onde, embora o inconsciente continue objeto
básico da conceituação psicanalítica, não é posto mais no centro do conflito; não basta mais
fazer simplesmente o inconsciente consciente, será preciso realizar todo um trabalho de
desenvolvimento e amadurecimento do ego para que este possa lidar com as solicitações e
exigências das diversas fontes: Id – Superego e realidade externa.

Enquanto o Id é o inconsciente por excelência, o ego e o superego têm amplas áreas


de funcionamento dentro do inconsciente.

Do Id derivam os representantes mentais inconscientes com suas cargas energéticas


que acionam o aparelho mental, cabendo a elementos do ego encontrar as soluções
adequadas para permitir a descarga, distribuir a energia para catexizar (energizar) as forças
antiinstitivas que vão lidar com as anteriormente referidas ou buscar a solução mais apropriada
possível para o equilíbrio.

Vemos assim como é bastante ampla a abordagem do inconsciente, desde a área do


seu conteúdo, do Id, do ego, do superego, do conflito, das defesas, as ansiedades, vale dizer
quase toda a psicanálise.

Há autores como Lacan e Saussure que ligam indissoluvelmente o inconsciente à


palavra, apresentando-o como uma estrutura semelhante à linguagem.

André Green recomenda que tal leitura não pode ser feita senão simultânea e
sistematicamente desde uma tripla perspectiva: tópica, dinâmica e econômica.

Para não alongar-me em Freud ou em seguidores diversos, atenho-me a alguns


comentários sobre as contribuições da escola kleiniana.

Devido à sua experiência clínica e à observação direta, sem prejulgamentos, de


crianças muito pequenas, coube a Melanie Klein povoar, detalhar e enriquecer o mundo
inconsciente de Freud com personagens vivos e ativos que antes nunca tinham sido
nomeados.

O conceito do mundo interno foi por ela alargado e preenchido por toda uma multidão
de objetos (parciais, fragmentados, totais, bons, maus, etc.).

Tais objetos internos estão em constante movimento e desenvolvem intenso


relacionamento entre si e com os objetos do mundo externo.

Os móveis inconscientes da conduta do ser humano decorrem diretamente do


resultado desse intercâmbio com características predominantemente amorosas ou hostis.

Essa visão foi propiciada pelo desenvolvimento do conceito de fantasia inconsciente, a


expressão mental mais primitiva de todas e que está na base de cada processo psíquico.

Qualquer mobilização instintiva, biológica repercute mentalmente com a fantasia


inconsciente. A sensação somática despertada pelo impulso instintivo continua pela
experiência mental vivenciada como uma relação de objeto. Assim é que a sensação de
fome, que incomoda, dói e machuca o bebê, não é interpretada como a aus ência de algo, o
alimento que o seio fornece, e sim como a presença de algo que ataca, morde, rói o seu
interior malévola e premeditadamente. A fantasia inconsciente é vivenciada como uma relação
com um objeto que é amado ou odiado de acordo com o prazer ou o desprazer que
provoque.

Estamos falando também da concretude do objeto interno, da experiência de se ter


um objeto concreto localizado internamente no corpo (ego) e que é sentido como executando
intenções e motivos próprios para o ego e outros objetos.
Na realidade o inconsciente é constituído por sensações interpretadas como
relacionamentos com objetos, ou seja, fantasias inconscientes. A estrutura é a de uma
pequena sociedade, uma assembléia de objetos em constante interação entre si e com os
objetos do mundo externo.

As defesas contra a ansiedade, desde as mais primitivas e os mais variados estados de


ânimo, decorrem desse relacionamento de objetos internos.

O intercâmbio imperativo com os objetos do mundo externo, fundamental para o


desenvolvimento físico e mental, tem uma participação ativa na relação dos objetos internos
entre si, através dos movimentos permanentes das projeções e reintrojeções, importantes para
desfazer ou atenuar as distorções iniciais ou fortificá-las mais ainda.

A sensação de existência e identidade tem muito a ver com a experiência do sujeito


em lidar com os objetos do seu mundo interno.
Na posse de tais noções kleinianas, podemos nos aproximar dos sonhos – via régia
para o inconsciente, segundo Freud – por um outro ângulo onde a realização dos desejos não
é o centro.

O sonho representa a fantasia inconsciente de relações objetais, estimulada pelos


impulsos ativos prazerosos ou desprazerosos (bons ou maus) do momento, bem como
defesas contra as apreciações conscientes. Meltzer fala até de sonhos e fantasias
inconscientes como sinônimos, olhando a vida de vigília como conteúdo manifesto do sonho.

Abordaremos, por último, outro aspecto do inconsciente modificado pelos kleinianos:


diz respeito ao princípio da conservação e distribuição da energia mental.

A mente não é vista como um sistema operando em linhas econômicas fechadas. A


idéia é que os impulsos amorosos e agressivos se espraiam de uma maneira fluida e múltipla
para objetos internos e daí para externos ou vice-versa. O que está presente mentalmente é
uma representação, não uma quantidade física. Parece apontar para o interesse corrente na
teoria da comunicação concernente à distribuição da informação.

Neilton Dias da Silva

*****

“SE É CARA, EU GANHO; SE É COROA, VOCÊ PERDE”

(Heads I win; tails you lose”, citado por Freud em Construções em Psicanálise)

Uma dimensão trágica marca os homens: a de estarem, desde sempre,


impossibilitados de possuir o que desejam. Seja Narciso em seu fugidio espelho, seja Édipo
com sua impossível mãe, o que buscam lhes escapa. Há um divórcio radical entre sujeito e
objeto, ao mesmo tempo que é a partir desse corte trágico que a aventura humana se organiza
e se estrutura.

Desde a descoberta do inconsciente por Freud, o homem é feito da divisão entre o


saber das palavras e o gozo perdido que ele fantasia recuperar. O trágico de sua constituição
particular se revela pela natureza de seu desejo: ser desejo insatisfeito.

Creio ser esse o ponto de partida da investigação de Freud. Não se reduz o


conhecimento da razão humana ao sensível. Há uma descontinuidade no saber dos homens
sobre si mesmos e sobre seu mundo. Estabelece-se, pois, uma questão sobre as origens.
Não sendo próprio à coisa dar -se a conhecer pela percepção, ou seja, já que nossa imagem
nos escapa cada vez que tentamos alcançá-la nas águas do lago, um mito terá que contar a
história desse começo. Esse momento mágico em que nos tornamos capazes de dizer alguma
coisa sobre aquilo desde sempr e incognoscível. Esse mito, no pensar de Freud, é a teoria das
pulsões. O conceito mesmo de pulsão encerra este duplo destino: primeiro, o de ligar o
somático ao psíquico; segundo, o de só poder fazê-lo por intermédio dos seus
representantes.

A meu ver trata-se de um dos mais geniais conceitos de Freud. Detenhamo-nos um


pouco nesse duplo sentido. Se por um lado aponta um caminho por onde os homens possam
se inscrever no mundo, por outro afirma um caminho intermediado, mediatizado por estruturas
que serão a marca distintiva dos homens: as palavras. Ao mesmo tempo que mostra uma
saída, atesta a radical impossibilidade.

Este não é um problema novo para o pensamento ocidental – nova será a solução
freudiana. Aristóteles afirmava a impossibilidade de conhecer o sensível pelo sensível e que,
partindo-se da experiência da sensibilidade, não se alcança a essência das coisas por nenhum
processo contínuo.

Sua teoria do conhecimento se divide em dois momentos: dialeticamente,


pelo confronto entre as diferentes opiniões que cada um tem acerca de um certo objeto,
encontra-se aquilo que se repete em todas elas. Do confronto da experiência sensível,
recorta-se o fantasma da coisa. Mas o fantasma ainda não é conhecimento da coisa, é
expressão daquilo que se repete insistentemente nos diversos dizeres sobre tal coisa. Para se
chegar ao conhecimento dela, do fantasma toma -se uma premissa, e, então, logicamente
articulam-se suas implicações. Conhece-se. O silogismo prescinde da experiência sensível,
ele se justifica formalmente.

“Pero Aristóteles no queda satisfecho con una anterioridad mítica. El


conocimiento verdadero se desarrolla para él, según un orden que es solo lógico, sino
cronológico: ninguna demonstracción es posible si no presupone la verdad de sus premisas.
Lo propio del silogismo es apoyarse en una verdad precedente, y Aristóteles sitúa la
inevitable imperfección de este razionamiento mucho más en esta espécie de precedencia de la
verdad con respecto a sí misma que en el reproche de círculo vicioso que más tarde le
dirigirán los Escépticos. Pero en tal caso si la demonstracción es algo ya comienzado
siempre, no habrá demonstracción posible del comienzo mismo: las premisas del primer
silogismo serán ‘primeras y indemonstrables’. Aristóteles insiste en lo que hay a la vez, de
paradójico y de inevitable en esa doble exigencia: las premisas son primeras, aunque
indemonstrables ‘pues, de otro modo no podría conocerlas, a falta de su demonstracción’”.
(P.Aubenque, El problema del ser en Aristóteles, pág.55/56 Ed. Taurus).

Mas as diferenças entre os pensadores estagirita e vienense fazem com que a


anterioridade mítica satisfaça as exigências freudianas. Como Freud não está interessado em
fundar uma teoria do Conhecimento, não é filósofo e, portanto, não está lidando com as
implicações da questão da existência de Deus (“Primeiro Motor”), ou seja, como Freud,
intrigado pelas contradições que se lhe impõem desde a clínica, interessava -se pelo
problema de como poder organizar o aparelho psíquico, a teoria das pulsões, embora “a
parte mais frágil” de sua concepção, dá conta do recado. Conta a história desse começo.

Sendo “limite entre o somático e o psíquico”, sendo “representante psíquico


de uma fonte somática”, a teoria das pulsões estrutura a primeira marca do que será desde
então o aparelho psíquico – o recalque originário. Premissa indemonstrável, fator meramente
quantitativo, experiência que tem por função estabelecer o jogo de claro/escuro, a partir do
que as coisas e o suje ito se tornam dizíveis. Marca que em si não diz nada, mas que é
condição de todo dizer. “Como é possível alguém esconder-se daquilo que jamais tem
ocaso?” diz Heráclito (Heidegger, M., Alétheia, pág.130, Coleção “Os Pensadores”,
citando Heráclito). A função do recalque originário é a de causar esse primeiro caso, mítico
portanto. Como ainda não havia nada a ocultar, o que revela é a luz mesma, é a fonte mesma
– como um cisco que atravessando um facho de luz revela o facho enquanto tal. Assim se diz
que o inconsciente é efeito do recalque, pois sua possibilidade de se representar se dá
somente a partir desse momento. Uma vez criadas as condições desse eterno movimento de
velar e desvelar simultâneos, não se considerará mais como psíquico nem só a consciência
nem, paraxisticamente, o inconsciente. O psíquico será sempre o efeito desse movimento de
ocultamento e revelação. Aqui a solução freudiana se distancia da filosófica, uma vez que
inclui o inconsciente como parte do psíquico, assim como quando lhe determina leis próprias
de organização e funcionamento. “E o que diz Sócrates no seu diálogo (o Sofista) – um dos
pontos culminantes do pensamento humano – que o não-ser não é menos ser que o ser (o
inconsciente não existe menos que o consciente, tanto como o ser é também um não-ser)”
(Ey, Henry em Conhecimento do Inconsciente, pág.14, Colóquio de Bonneval.
Ed.Biblioteca Tempo Universitário).

Desse modo, chegamos à possibilidade de pensar o até então impensável – o


não-ser é. Mas Freud, talvez se dando conta do fechamento que esse inconsciente articulado
pelo recalque implica, a compulsão à repetição, abre seu artigo sobre “O Inconsciente”
afirmando: “Todo lo reprimido tiene que permanecer inconsciente, pero queremos dejar
sentado desde el comienzo que lo reprimido no recubre todo lo inconsciented. Lo
inconsciente abarca el radio más vasto; lo reprimido es una parte de lo inconsciente” (Freud,
S. - “Lo Inconsciente”, vol. XIV, pág.161 - Ed.Amorrortu).

Se é verdade que sempre que falamos de recalque, de retorno do recalcado


como motor das formações de compromisso, estamos falando sobre recalque secundário, não
é verdade que tudo se esgote aí. Por dedução necessária e lógica, “a posteriori”, impõe-se a
hipótese do recalque primário (originário), que, por sua vez, implica o Real – o umbigo do
sonho. Isto é, ao mesmo tempo que manejamos com a repetição, há uma dimensão do
inconsciente que permanece conectada ao Real, como fonte insistente das pulsões. É desse
modo que Freud marca, desde o princípio de seu pensamento, o inconsciente como fixado e
constituído pelo recalque, ao mesmo tempo que abertura pela qual o aparelho psíquico se
identifica com o Real. “Lo inconsciente es lo psíquico verdaderamente real: su naturaleza
interna nos es tan desconocida como la realidad del mundo exterior y nos es dado por el
testimonio de nuestra consciencia tan incompletamente como el undo exterior por nuestros
órganos sensonales” (Freud,S. - “Interpretación de los Sueños”, pág.715, Biblioteca
Nueva, vol.I). Abertura por onde o Real se inscreve como motor de todo o processo.
Real, já em 1900, tomado como trauma que divide e constitui o sujeito, tal como, em 1938,
falar-nos- Freud em “Divisão do Ego no Processo Defensivo”. Creio que este tenha sido o
cuidado com que afastou todas as possibilidades de encontrar chaves de decifração para o
Inconsciente: as lembranças encobridoras são bem exemplo disso. Em toda formação de
compromisso há um momento em que fala o mito – onde o sujeito não é mais capaz de falar
de si.

Ao inconsciente articulado pelo recalque, interpreta-se; ao inconsciente


identificado ao Real, constrói-se. Do mesmo modo que expressamos com relação à teoria
do Conhecimento de Aristóteles, a interpretação é o meio pelo qual o analista interfere na
ligação entre os elos das cadeias associativas. A interpretação opera sempre sobre a
resistência. Interpretar é sempre desalojar outra interpretação já existente. É interpretar uma
já-interpretação. Como em Aristóteles, em torno do que resiste, desvela -se um fantasma.
Um traço que se repete nas formações de compromisso daquele sujeito. A interpretação é
dialética na medida em que confronta interpretações.

Mas isto não esgota o trabalho do analista, uma vez que o inconsciente não é
somente lugar do que reside. “El psicoanalista termina una construcción y la comunica al
sujeto del análysis de modo que puede actuar sobre él; constituye entonces otro fragmento
con el material que le llega, hace lo mismo y sigue de este modo alternativo hasta al final. Si
los trabajos sobre técnica psicoanalítica se dice tampoco acerca de las ‘construcciones’ es
porque en lugar de ellas se habla de las ‘nterpretaciones’ e de sus efectos. Pero creo que
‘construcciones’ es desde luego la palabra más apropriada. El término ‘interpretación’ se
aplica a alguna cosa que uno hace com algún elemento sencillo del material, como una
asociación o una parapraxia” (Freud,S. - “Construcciones en Psicoanálisis”, pág.3367,
Biblioteca Nueva, vol.III). A construção é, pois, um trabalho preliminar, onde o analista
oferece elementos à cadeia associativa. Não as interpreta, mas age nelas. Lança olhares
sobre o que não pode ver, baseado em suas premissas teóricas e naquilo que recolheu da
experiência mesma do paciente. (Ver comparação com delírio do referido artigo). O
analista oferece um sentido e acompanha seus efeitos pelo caminho que a resistência marca
até os limites da construção. Então, oferece outra.

O estatuto da construção difere do da interpretação. Se a dialética da


interpretação sustenta a possibilidade de contestação por parte do sujeito,a estrutura da
construção não. Fala -se do que não se sabe. “Se é cara, eu ganho; se é coroa, você
perde”. Nesse momento, o inconsciente surge como efeito do que eu como analista digo
dele. Sendo assim, seu estatuto não pode ser ontológico, uma vez que não tem existência em
si, mas ético, enquanto efeito da palavra de um outro. É por esse caminho que a ética se
apresenta matéria por excelência no ofício do psicanalista. Se, por um lado, o inconsciente é
o lugar dos conteúdos recalcados, lugar da repetição, lugar do mesmo, por outro é o
inconsciente um não-lugar, lugar do vazio, lugar do não-ser, lugar do diferente, lugar da falta
que marca tragicamente o homem. Lugar de ausência de significação, ao mesmo tempo que
condição de toda significação.

Mas isto ainda não é suficiente para produzir efeitos de verdade, nem
mudanças no viver do sujeito. Estamos até agora falando sobre o representante ideativo da
pulsão. Resta-nos falar sobre o representante efetivo da pulsão. É pela via da transferência
que o representante afetivo da pulsão faz do inconsciente ato – uma vez que como afeto não
se representa no inconsciente. O afeto, em Freud, não pertence ao domínio das
representações, mas ao jogo de forças pulsionais, concreto. Ato mediante o qual o analista,
com sua presença, é capaz de alterar os lugares de investimento da pulsão. Ato -transferência,
onde o verbo encontra sua carne. Lugar por onde o inconsciente se atualiza e ganha efeito
de verdade. Aqui, a dimensão da transferência não nos interessa como um elemento a mais
da cadeia associativa. Importa-nos na medida em que impõe, a partir da presença do
analista, um deslizamento dos investimentos, uma mudança concreta dos seus lugares. Aqui, o
desejo do analista desempenha um papel preponderante, pois cada tratamento confronta-o de
modo diferente.

Assim, o que parte da dimensão trágica alcança a possibilidade de humor. “Se


é cara, eu ganho; se é coroa, você perde”. Não tendo outra saída, reata-nos o humor: o
bem-dizer da poesia, a eterna utopia.

Miguel Calmon du Pin e Almeida

MEMÓRIA

Apresentação

Antes de iniciar esta breve apresentação, quero me congratular com a direção da TRIEB pela
iniciativa de publicar trabalhos de antigos analistas da SBPRJ. Afinal, o que estamos fazendo
hoje de novo, começou há tempos, em nosso passado.
Manoel Thomaz Moreira Lyra nasceu no Maranhão, em 1919. Iniciou o curso médico
em Salvador e concluiu-o no Rio. Praticou a Psiquiatria e fez parte do grupo de pioneiros que
se organizou para fundar o que viria a ser a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro. Em 1953, viajou para Londres, onde, por cinco anos, teve Paula Heimann como
analista.
Sua formação na Sociedade Britânica de Psicanálise incluiu supervisões com M.Klein,
Winnicott, Thorner, entre outros. Voltou para o Brasil em 1958. Foi um admirador do
pensamento de M. Klein e um dos principais divulgadores dessa corrente psicanalítica entre
nós. Praticamente não escreveu. Sua influência se construiu sobre uma extensa experiência
como analista clínico e supervisor, em que se combinavam reconhecido talento pessoal e
firme coerência teórica.
Esse texto, escrito no início dos anos 60, revela, de modo bastante fiel, alguns
aspectos de seu pensamento psicanalítico e mesmo de sua pessoa. Ler “Notas sobre
Regressão...” será uma boa maneira de ser apresentado ao Dr. Lyra e uma oportunidade a
mais, para seus amigos, de lembrá-lo com saudade.

Osvaldo Costa Rego

MEMÓRIA

Notas sobre Regressão e seu Papel no Progresso Terapêutico: Considerações


Gerais
M.T.Moreira Lyra

Meu propósito nesse trabalho é apresentar algumas observações e sugestões


referentes a fenômenos regressivos na situação analítica, as quais, espero, possam contribuir
para o estudo e discussão do assunto, principalmente do papel da regressão no processo
terapêutico.
Partindo desse ponto, tecerei também algumas considerações de ordem teórica que
envolvem particularmente os aspectos genético e dinâmico do conceito de regressão no
pensamento psicanalítico atual, assim como o lugar atribuído à regressão entre os fenômenos
psíquicos normais. Não quero dizer com isso que os aspectos econômico e estrutural estejam
excluídos de minhas formulações mas, apenas, que não me proponho aqui a examinar em
particular as implicações neles contidas, aliás, de grande interesse  com referência a
fenômenos regressivos. Na verdade, minhas formulações estão fundamentalmente baseadas
nestes, tomando-os como pontos específicos do conhecimento psicanalítico que, por isso
mesmo, dispensam menção especial e justificativa no plano do trabalho.
O material clínico que apresentarei terá como principal objetivo ilustrar um aspecto
particular da relação progressão-regressão de ocorrência comum em terapia analítica, e em
torno do qual serão feitos meus principais comentários.
Não atribuo a esse material clínico um valor realmente demonstrativo para minha tese,
ou acredito que tenha especia l poder de transmitir convicção. Considero-o apenas um grupo
de fatos capazes de sugerir idéias em torno de um tema, não sendo também meu objetivo
apresentar qualquer interpretação sistematizada dessas observações.

Conceito de Regressão
Como o termo regressão tem sido usado em psicanálise com vários sentidos, faz-se
necessária uma ligeira delimitação do mesmo, tal como eu usarei aqui, advindo tal
necessidade também da natureza das sugestões teóricas que pretendo oferecer.
Usarei o termo em um sentido genérico, não havendo intenção de atribuir ênfase a
qualquer aspecto particular do conceito. Assim, em nenhum ponto emprego o termo como
equivalente  ou quase  de regressão da libido, ou do ego ou das relações de objetos,
salvo quando explicitamente declarado.
Procurarei manter excluído do conceito, tanto quanto possível, qualquer elemento que
implique julgamento de valor, não raro demasiado incluído nele.
Em suma, usarei o termo regressão no sentido de retorno de (ou a) processos e
estruturas psíquicas pertencentes a fases passadas do desenvolvimento mental.
Evito aqui a tentação de facilitar essa delimitação por meio da contraposição de
progressão e regressão, 1 pois acho o conceito de progressão de definição mais difícil, se bem
que, talvez, mas fácil de dispensar definição.
Usarei, contudo, o conceito de progressão, indispensável às considerações sobre sua
relação com a regressão, como acima referi, e pautarei a delimitação de seu conteúdo pelo
que disse acerca da regressão.
Mencionarei de passagem aqui mais um só do termo progressão em psicanálise que
não se inclui no conceito tal como o emprego aqui. Refiro-me à denominação de progressão
para, por exemplo, a passagem de uma condição ( ou estado) depressiva para uma
depressivo para um esquizo-paranóide.
Os autores que dão ao termo tal uso falam da saída da depressão, através da
regressão, para a condição esquizo-paranóide e, através da progressão, para a mania. Nesse
modo de utilização do conceito parece-me emprestar-se a ele um caráter demasiado
descritivo e ignorar-se a natureza regressiva dos fenômenos maníacos com relação à
depressão. Dinamicamente  assim como geneticamente  a única saída da condição
depressiva que merece o nome de progressão (isto é, que não é regressiva) é a que se liga à
reparação e integração do ego e dos objetos internos. A passagem para um estado maníaco
ou para um estado esquizo-paranóide são duas formas de regredir a partir de condições
depressivas não toleradas pelo ego.

Interesse no Estudo da Regressão

O estudo da regressão na situação analítica vem despertando crescente interesse de


muitos analistas. Freud teria considerado esse um dos mais importantes temas a serem
desenvolvidos posteriormente 1,2 .
Alguns dos trabalhos mais interessantes sobre o tema se atêm mais ao aspecto
excepcional do problema, como os episódios regressivos comuns, cotidianos, referidos nos
trabalhos clínicos são, com freqüência, encarados mais como acidentes mais ou menos
inevitáveis do tratamento do que como fenômenos inerentes ao processo terapêutico ou à
fenomenologia mental.
Embora a maioria dos estudos sobre regressão na situação analítica se encontre em
trabalhos essencialmente clínicos, as formulações teóricas não têm sido raras, mas, de modo
geral, talvez não seja muito errado dizer que a fenomenologia  sem implicação doutrinária
 e a metapsicologia da regressão no tratamento analítico têm merecido menos atenção da
literatura.
Gostaria, neste ponto, de fazer uma pequena digressão sobre teoria e método em
psicanálise.
Os psicanalistas têm sido acusados3 de, em sua maioria, manter uma atitude
demasiado defensiva para com a teoria em psicanálise. Parecemos agarrarmo -nos com todas
as forças ao nosso empirismo como uma defesa contra as tentações de resvalarmos para a
metafísica e o pensamento mágico, que sempre constituíram atrações tão ameaçadoras para o
estudioso da mente. Acredito que essa atitude, até onde as acusações possam ser
consideradas justas, teria salvo a psicanálise da sorte pouco invejável a que conduz a
intemperança especulativa a admito também que os exemplos de incursões mais
sistematizadas no campo da teoria, em psicanálise, nem sempre têm conseguido despertar
nosso interesse ou merecer nossa admiração tanto quanto desejaríamos.
Esse fato parece justificar a opinião segundo a qual a psicanálise, por sua natureza,
seria uma ciência inadequada a generalizações, ou a elaborações de sistemas teóricos
próprios. A ausência ainda de um método mais consistente e menos dependente das ciências
naturais  das quais herdamos não só as bases metodológicas, mas transplantamos, às vezes
servilmente, procedimentos metodológicos particulares, especialmente no que se refere a
pesquisas  talvez contribua também para a adoção desse ponto de vista.
Não seria talvez incorreto dizer, no entanto, que é bastante generalizada atualmente
entre os psicanalista a impressão de vivermos em um regime de carência de teoria, em meio a
uma imensa riqueza de dados empíricos. Melhor seria dizer carência de sistema teórico
consistente em si e em sua ligação com os dados da observação empírica.
Por outro lado, a embriaguez e leviandade especulativas não são os únicos caminhos
que conduzem à esterilidade no trabalho científico. Também podemos lá chegar através de um
excesso em direção oposta como, por exemplo, uma excessiva valorização de poder de
induções primárias ou um endeusamento da intuição.
Além do mais, a psicanálise se presta muito a um tipo menos legítimo de especulação
em que formulações categóricas são apresentadas sob a aparência de constatações empíricas.
Da mesma maneira, talvez não seja infundado supor que vícios metodológicos dessa natureza
sejam favorecidos ou condicionados pelas limitações a que nos impomos no exercício do
legítimo teorizar.
Certos aspectos da indisciplina terminológica reinante na literatura psicanalítica
têm, possivelmente, relação com essa atitude. Um exemplo que pode ser ilustrativo é a
despreocupação com a ordem hierárquica dos conceitos, que é encontrada em muitos dos
trabalhos de maior mérito científico. Faltas dessa ordem acarretam, a meu ver, muito mais
dificuldades para o mútuo entendimento científico entre os analistas do que as variações de
conteúdos de conceitos decorrentes de diferentes posições teóricas ou do que obscuridades
estilísticas.
Por essas e outras razões, acho que um interesse mais generalizado entre os analistas
por problemas teóricos é, no momento, desejável. Entre outros, acredito que teria um efeito,
paradoxal como possa parecer, limitador da produção de má teoria, que talvez seja maior do
que muitos de nós desejaríamos.
Para concluir essa digressão, transcrevo um trecho de uma carta de Freud a Jung9 que
contém, em minha opinião, uma valiosa lição sobre método científico tal como se poderia
esperar de um psicanalista:
“...ficar alerta a qualquer direção para onde nos sentimos atraídos, e não (o grifo é
nosso) tomar o caminho obviamente direto. Acho também que esta é melhor maneira,
porquanto ficamos espantados mais tarde ao verificar quão diretamente aquelas vias tortuosas
conduzem ao alvo certo.”

Regressão na Situação Analítica: Alguns Pontos de Vista

Embora meu interesse neste trabalho recaia primariamente sobre a fenomenologia da


regressão, atribuo especial atenção, como referi acima, às implicações terapêuticas, as quais,
em realidade, constituem o principal móvel desse interesse.
Há acordo geral entre os analistas presentemente sobre a importância dos fenômenos
regressivos na situação analítica2 e, mais particularmente, sobre as implicações de ordem
terapêutica e técnica que o interesse no tema tem acarretado.
As diferenças entre os modos de ver esses fenômenos são, contudo, de muito maior
interesse do que os pontos comuns entre as diferentes escolas ou grupos. Nelas se baseiam
importantes divergências técnicas, entre elas as que se referem ao conceito de cura.
Para um exame mais esquemático dessas diferenças, dividirei os analistas em dois
grandes grupos iniciais. Para critério desse agrupamento, por razões práticas, as idéias de
desejabilidade e indejabilidade da ocorrência da regressão na situação analítica, isto é, grau
de desejabilidade com relação aos critérios de aparecimento, duração, profundidade e
extensão dos fenômenos regressivos na situação analítica.
1. Entre aqueles que encaram a regressão no curso do tratamento psicanalítico como
uma ocorrência indesejável (se bem que inevitável) estão os que a consideram de natureza
essencialmente patológica, de caráter acidental no processo terapêutico, os que admitem
um elemento não-regressivo na transferência, dão ênfases à análise do ego, aconselham o
uso de diferentes técnicas no tratamento de neuroses e psicoses e exprimem menos otimismo
terapêutico.
2. Por outro lado, a idéia de desejabilidade da presença da regressão se aproxima
mais das idéias de que a regressão é inerente ao processo analítico, de não dar ênfase ao
seu caráter patológico da afirmação da natureza essencialmente regressiva a
transferência, da admissão de maior uniformidade técnica no tratamento de neuróticos e
psicóticos, da atitude de mais otimismo terapêutico.6 Vários desses pontos serão retomados
adiante.
Grosso modo, esses dois grupos arbitrariamente estabelecidos coincidem com uma
grande divisão entre as diferentes atitudes terapêuticas. Várias combinações dos diversos
elementos, porém, existem na realidade e há muitas variações dentro de cada grupo.
Assim, para citar um só exemplo, há apreciáveis diferenças de opinião dentro de
cada grupo sobre o grau de modificações da técnica tradicional em face da regressão na
situação analítica.
Entre essas atitudes divergentes, baseadas em diferentes maneiras de compreender o
significado e o papel da regressão na situação analítica, quero destacar e caracterizar a
adotada por Melanie Klein e seus discípulos, que tem maior interesse para meus comentários,
sendo aquela da qual me sinto mais aproximado. Nesse exame deixarei de lado muitos
aspectos mais ligados aos problemas da regressão em geral, tal como estão mais
sistematicamente apresentados por Paula Heimann e Susan Isaacs. 4
Para efeito de maior clareza, dividiremos essa caracterização do ponto de vista da
escola acima referida (Kleiniana) em vários itens.
A  Não-diferenciação (em sua natureza) entre regressão neurótica e psicótica, tanto
no que se refere à fenomenologia como no que toca ao procedimento terapêutico.
B  Pouca ênfase no caráter patológico da regressão. Esse item poderia também ser
formulado como não-diferenciação (em essência) entre regressão normal e patológica.
Pontos comuns a esses dois itens são a unidade genética e a diferenciação econômica ou
estrutural, ou seja, que todos os fenômenos regressivos, de acordo com esse ponto de vista,
estariam geneticamente unificados, ficando o aspecto econômico como o principal elemento
de diferenciação dos mesmos.
C  Concepção da regressão na situação analítica como inerente ao processo
terapêutico e não como um acidente.
D  Concepção da transferência como um fenômeno totalmente regressivo em
sua natureza. Nesse ponto, estou contrastando as idéias desse grupo (Kleiniano) com as
daqueles psicanalistas que, como Bibring, admitem um elemento não-regressivo na
transferência, que constituiria a base da chamada “aliança terapêutica”, ou da
“humanidade” de W. Hoffer. 10
E  Admissão da existência de transferência nas condições narcisistas. Essa
opinião é correlata à que atribui natureza idêntica à regressão neurótica e psicótica.
F  Admissão mais ou menos explícita de que os fenômenos regressivos na situação
analítica são geneticamente ligados à mesma somente no sentido de que a situação analítica
condiciona o aparecimento de certa forma de manifestação do fenômeno. A essa admissão se
liga, a meu ver, a idéia de que a transferência existe desde o início da análise e,
conseqüentemente, atribui-se pouca importância prática ao desenvolvimento da chamada
“neurose de transferência”.
G  Como um aspecto da ênfase nas relações de objetos de uma maneira geral, a
regressão é vista fundamentalmente como regressão dessas relações.
Como decorrência desses vários elementos nessa concepção da regressão na situação
analítica temos:

1. Não-modificação da técnica tradicional na maneira de lidar praticamente com as


manifestações regressivas em geral, e com as grandes manifestações em particula. 6 Isso
significa não introduzir qualquer procedimento novo (não propriamente analítico) com o
propósito de evitar o aparecimento ou desenvolvimento da regressão, ou de suprimi-la caso
ela apareça, ou com propósito de promover ou estimular a mesma. Como exemplos de
contraste com essa atitude mencionaremos, de um lado, Alexander,1 cujas variações técnicas
na primeira direção (limitantes) chegam a ser qualificadas como desvios ou modificações da
técnica psicanalítica, 5 e, por outro lado, Winnicott, por exemplo, que é acusado de
incentivar o aparecimento e desenvolvimento de manifestações regressivas e de incluir, em
sua maneira de lidar com o paciente regredido, condições de gratificações, além do que
muitos consideram desejável no tratamento psicanalítico propriamente dito; 1
2. Outra decorrência do ponto de vista adotado por esse grupo (Kleiniano) é o maior
otimismo terapêutico no que diz respeito aos recursos propriamente psicanalíticos,
especialmente no tratamento de pacientes mais graves e, finalmente;
3. Maior uniformidade no manejo técnico da transferência.
Na relação acima estão alguns dos pontos de vista adotados pelos psicanalistas mais
aproximados das idéias de Melanie Klein, selecionados de acordo com o interesse que
apresentam para este trabalho.
Em nossa opinião, esses elementos indicam que essa maneira de conceber e tratar o
fenômeno regressivo na situação analítica é a mais dinâmica e mais consistentemente genética
entre as acima referidas.

Duas Linhas de Investigação

Há alguns pontos de partida e direções que me parecem muito promissores para


quem queira prosseguir nessas linhas de pensamento sobre regressão, especialmente no que
se refere ao aspecto genético e dinâmico do tema. Entre elas, destacarei a relação entre
regressão patológica e normal, isto é, regressão tal como a estudamos em psicopatologia em
geral e os aspectos regressivos de condições habitualmente consideradas normais, tal como
ocorre no sono, fadiga, etc., assim como os inúmeros elementos necessários (não falo só de
inevitáveis) ao funcionamento da mente humana normal. A essa linha de pensamento liga-se o
conceito de flexibilidade do ego maduro com relação à regressão.3
Outro ponto de partida é o exame da relação progressão-regressão no processo de
desenvolvimento mental em geral e, em particular, na situação terapêutica, assim como suas
relações com processos, funções e estruturas da personalidade normal madura.

Capacidade de Regredir

Sob esse título procurarei estabelecer certas relações entre algumas idéias referentes
aos seguintes itens:
(a) regressão e normalidade psíquica
(b) regressão, maturidade e coesão do ego
(c) regressão, flexibilidade e reversibilidade
(d) formas de participação do ego na regressão
(e) capacidade de resistir à regressão
(f) capacidade de regredir.
Como meu propósito é mais sugerir do que apresentar um pensamento mais
sistematizado, a exposição será feita sob a forma de uma série de formulações:
(a) A capacidade de resistir as condições promotoras de regressão é geralmente
aceita como um atributo de maturidade ou estabilidade do ego.
(b) É indiscutível que todas as pessoas normais podem ocasionalmente apresentar
manifestações de natureza regressiva semelhantes às observadas em condição patológica, ou
seja, normalidade estatística dos fenômenos regressivos.
(c) Essa idéia é muito próxima da outra, isto é a de que certos fenômenos normais
“fisiológicos” teriam uma natureza ou forma regressiva, ou seja, a normalidade
fenomenológica.
(d) Uma outra idéia é a capacidade de regredir. Se tomada como um atributo de
maturidade do ego, 3 poderá ser considerada em conflito com o conceito de regressão
adotado por aqueles que vinculam mais estreitamente regressão com o patológico. Essa
capacidade de regredir pode ser examinada sob vários ângulos:
i) Capacidade de permitir que a regressão se estabeleça, que está mais ligada à idéia
de flexibilidade;
ii) Capacidade de tolerar as manifestações regressivas já estabelecidas, mais ligada
às idéias de coesão do ego;
iii) Capacidade de promover ou condicionar ativamente a regressão.
Resumindo até aqui, podemos dizer que a regressão é um fenômeno normal
estatisticamente para outros; a capacidade de resistir à regressão e de regredir à
regressão e de regredir são atributos de maturidade para uns, ao passo que, para outros,
apenas a primeira pode ser assim considerada.
(e) A regressão em uma personalidade “normal” terá de ser (salvo em situações
muito excepcionais) limitada na extensão ou duração, ou ainda, em ambas. Fatos clínicos
não deixam dúvida de que, em certas regressões em indivíduos mais integrados, o ego tem
uma participação ativa. Isso significa que ele participaria simultaneamente como agente (
ou condicionador) e paciente do fenômeno. Os mecanismos de “split” de ego e das relações
de objeto estariam envolvidos aqui de maneira especial. O grau de participação ativa do ego
parece menor nas regressões mais patológicas.
(f) A limitação do processo regressivo no tempo inclui a idéia de reversibilidade.3
Se admitirmos que, nos indivíduos mais integrados, o ego participa mais ativamente do
processo, poderemos falar de uma capacidade de promover (ou condicionar) essa
reversão, o que poderia ser considerado como um atributo de maturidade semelhante à
capacidade de resistir à regressão.
(g) A admissão1 ou não7 de um papel ativo do ego no processo regressivo se liga a
diferentes de procedimentos técnicos. Winnicott, por exemplo, fala da capacidade de o ego
(mais integrado) cuidar de seu aspecto regredido da mesma maneira que a mãe carrega a
assiste a criança. Se não há ego integrado suficiente para desempenhar esse papel de mãe, o
analista teria de assumir essas funções.
(h) Parece lógico pensar que uma capacidade de regredir nos termos em que nos
referimos acima depende, paradoxalmente, da capacidade de resistir à regressão. Se
procurarmos apoio no conceito de “split” do ego, podemos conjecturar que, nas
personalidades mais próximas da normalidade, seria exatamente a coesão de uma parte do
ego que tornaria possível a regressão de outra, isto é, essa regressão que se poderia
qualificar de “normal” ou “fisiológica” ou ego-sintônica. Menos paradoxalmente, ela
dependeria da capacidade de reversibilidade.
(i) Inversamente, a capacidade de resistir a regressões mais patológicas nas pessoas
normais estaria ligada a essa flexibilidade regressiva de seus egos (incluindo-se aí as idéias de
capacidade de admitir, condicionar, promover e tolerar regressões e da capacidade de
sair dela).
(j) O critério de avaliação do grau do caráter patológico de um fenômeno regressivo
deveria basear-se mais nas características do fato particular do que na natureza regressiva do
mesmo.

Regressão e Progressão

Farei agora algumas considerações referentes mais particularmente à relação entre


progressão e regressão. A analogia explícita com fenômenos similares de ordem biológica ou
física será evitada a fim de fugirmos da simplicidade mecanicista.
Esse tópico tem estrita relação com o anterior. Por isso, muitas das idéias
anteriormente referidas são aplicáveis aqui e, por outro lado, alguma repetição poderá ser
inevitável.
Tratarei apenas de alguns aspectos isolados dessa relação. Muitos outros, de grande
importância, não serão considerados, ou o serão apenas incidentalmente. Entre estes,
podemos citar o fato de que vários aspectos progressivos dos fenômenos regressivos
estudados por vários autores3,8 serão deixados de lado.
Devo lembrar também que aqui, como em outras partes, meu interesse central é a
regressão na situação, e que as referências à regressão em geral são feitas em função desse
propósito. O mesmo deve ser dito à respeito da progressão: uso o termo com referência
especial ao progresso terapêutico naquilo em em que esse progresso pode ser considerado
como o oposto da regressão. Por sua estreita relação com o desenvolvimento mental em
geral, farei referências também a este último.
Terei também que me omitir de considerar a relação entre o tema que aqui exponho e
certos conceitos muito ligados a ele, tais como o de “reação terapêutica negativa”.
A relação entre fenômenos de regressão e progressão é um fato de observação banal
(entre psicanalistas) em muitos de seus aspectos. Variadas formas de relação temporal são
observáveis por todos nós no trabalho cotidiano e, com freqüência, estabelecemos relações
causais de vários tipos.
A observação de alguns desses fenômenos dá, algumas vezes, a impressão de existir
uma relação intrinseca entre eles e manifestações de progressão ocorridas
simultaneamente ou separadas por curtos intervalos de tempo. Esse aspecto da relação
poderia estar ligado à própria natureza desses processos. Parece-me que ele não seria
suficientemente levado em conta nas diversas formas de compreensão atual de regressão na
situação analítica ou de regressão em geral.
A ser correta essa observação, poder-se-ia aventar a hipótese de que a regressão
possa estar mais profundamente ligada ao desenvolvimento psíquico em geral do que
supomos, isto é, que a regressão talvez possa ser considerada como um elemento essencial no
processo de desenvolvimento, inerente à natureza do processo, e não somente como um
acidente ou um elemento contigente.

Esse modo de ser estaria em concordância com as linhas gerais dos conceitos mais
genéticos e dinâmicos da regressão tal como apresentado anteriormente. Ele poderia, a meu
ver, ser considerado como uma conseqüência lógica do desenvolvimento do pensamento
naquelas linhas conceituais.
Voltemos à situação analítica.
Sugiro que, pelos menos em algumas de suas manifestações clínicas, progressão e
regressão possam ser consideradas como dois aspectos de um mesmo fenômeno, ou dois
tempos de um mesmo processo. Muitos outros fenômenos psíquicos podem ser
considerados nesse jogo dialético com seus opostos, tais como “split”-integragração,
introjeção-projeção, etc.
Várias implicações de ordem terapêutica estariam contidas nessa hipótese. Por isso,
suponho que o melhor conhecimento dessa relação pode trazer -nos esclarecimentos de
considerável valor prático, além daqueles de interesse teórico.
O fato de que pacientes com freqüência reagem negativamente a experiências de
progresso na análise tem merecido muita atenção dos psicanalistas em vários de seus
aspectos, e muito se tem aprendido sobre o assunto. Aqui, porém, só estou considerando as
situações que envolvem regressão de maneira especial.
Podemos agora confrontar duas idéias muito familiares e de aceitação unânime por
todos nós:
1º  É necessário regredir para progredir (no tratamento analítico).
2º  A progressão com freqüência promove (acarreta, provoca ou condicional) a
regressão.
É minha impressão que o exame da complexa relação entre os dois grupos de dados
empíricos em que essas idéias se baseiam poderia fornecer elementos para melhor
compreensão dos fenômenos ligados à regressão na situação analítica. Há várias conexões
com a hipótese que sugeri acima.
A idéia de que é necessário regredir par progredir foi apresentada anteriormente, ao
examinarmos as variações técnicas com relação à regressão. Ela é a base de algumas dessas
variações, na medida em que inerência e essencialidade, de um lado, a acidentabilidade e
contigência, de outro, estão implícitas. Não obstante essas diferenças conceituais, sabemos
que é unanimemente admitido o aspecto regressivo implícito na atitude de todo indivíduo que
se dispõe e a ser analisado.
No caso de formações patológicas mais estruturadas sob a forma de traços
caracterológicos, fica difícil distinguir esse fenômeno regressivo básico, unanimemente aceito
como necessário, daquele outro, igualmente necessário à operação terapêutica, que é a
transformação da estrutura em formação sintomática propriamente dita.
O material clínico de um dos pacientes que apresentarei a seguir permitiria igualmente
outra formulação em conexão com essas, ou seja, é preciso progredir para poder regredir.
Deixada dessa forma, a afirmação pode parecer um truísmo. Essa impressão, contudo,
poderá ser modificada se levarmos em conta as várias idéias nela implícitas, e não somente a
de ser necessário ter progredido previamente, e de haver capacidade potencial para
progredir, mas também a sugestão de que progresso potencial ou manifesto é condição ou
fator de regressão em uma variedade de formas. Aqui, porém, chega-se a um ponto em que
sinto ser muito arriscado tentar demasiado ser mais claro ou sistemático.

Material Clínico

Paciente H.
Depois de compor e escrever o material clínico desse paciente, material aliás muito
ilustrativo para as teses que aqui apresento, dei-me conta de que não poderia incluí-lo neste
trabalho. Os trechos mais demonstrativos deixavam o paciente muito exposto e facilmente
identificável, dada a sua posição social. Um esforço que fiz no sentido de melhorar essa
situação mostrou-se inútil, pois o material ficou tão mutilado que perdeu seu valor
demonstrativo.
Paciente M.
Trata-se de uma adolescente cujo tratamento se caracterizou por um rendimento
terapêutico muito baixo durante muitos meses. Essa primeira fase do tratamento não tem
especial interesse para o nosso tema, e a descreverei de maneira sumária.
A paciente vivia em estado de regressão quase permanente na situação analítica.
Esses aspectos regressivos eram, naturalmente, parte mais ou menos explícita de sua
psicopatologia anterior ao início do tratamento, havendo apenas uma concentração dos
mesmos em certa fase, na relação com o analista, onde assumiram também certas formas
especiais e adquiriram especial intensidade.
Havia muito pouco de adolescente em seu comportamento nas sessões. Ela vinha ora
como uma criança pequena incontinente, ora como uma menina fálica, rude, exibicionista e
despudorada. A sala de análise ficava, muitas vezes, em estado difícil de ser preparada para
uso com outra criança, pela sujeira ou destruição causadas. O mesmo se poderia dizer do
estado em que ela, às vezes, deixava o analista, por fora e por dentro. Várias vezes móveis
foram quebrados, gavetas de outras crianças arrombadas e eu também fui machucado ou
ferido.
Havia, além disso, uma apreciável quantidade de “acting-outs” fora da sessão
analítica, alguns de natureza tal que os tornavam passíveis de acarretar sérias conseqüências
para sua vida e de outros, o que não raro me deixava bastante preocupado com ela fora da
hora de análise.
É, porém, a fase em que a paciente começou a apresentar expressões genuínas de
modificações de sua personalidade que nos interessa aqui, ou seja, a transição entre o estado
acima descrito e uma nova condição, em que apreciáveis progressos terapêuticos que ela
havia feito adquiriam relativa estabilidade.
Essa fase de transição caracterizou-se por uma longa série de curtos avanços e recuos
que não examinarei aqui em detalhes, mas aos quais voltarei mais tarde.
Examinemos a situação observada mais tarde. Ela agora já poderia se comportar mais
como uma adolescente durante períodos cada vez mais longos. Por essa época a vi corar pela
primeira vez. Durante esses períodos havia intensa vida interior, somente revelada por sinais
leves. Tornava-se, às vezes, discreta e exteriormente quieta, romântica e sonhadora. Sua
feminilidade passou a fazer-se manifesta sob várias formas, às vezes revestida de um pudor
até então desconhecido e, em outras, delicada e maternal.
Fazia -me agora confidências sentimentais, às vezes escondendo o rosto. Por outro
lado, empenhava-se em uma série de novas atividades nas sessões, principalmente de ordem
doméstica ( tricô, pequenas costuras, etc.).
Houve um discreto florescimento de interesses estéticos e intelectuais, aos quais ela
procura agora dar mais de si própria, em tempo e esforço. Seu rendimento escolar também
melhorou. Como referi acima, no início desse período ela voltava com freqüência às
condições de regressão acima descritas.
O tricô é o ponto que usarei como centro de minha ilustração. As primeiras tentativas
de fazer tricô que merecem menção aqui foram feitas no decorrer desse período de transição.
Havia muita insegurança, negação de sua inabilidade, onipotência, perfeccionismo, rivalidade e
triunfo ligados a esses primeiros ensaios. Cada erro a iniciava em uma série de medidas
corretivas que a conduziam, com freqüência, a desfazer todo ou quase todo o trabalho feito.
A lã se embaraçava em um monte confuso e terminava por ser inutilizada em toda aquela
porção. Nesse ponto ela desistia e ficava discretamente deprimida ou adotava uma atitude
maníaca e tripudiava sobre o tricô e o analista. A peça de tricô que ela pretendia fazer era um
casaco para uma criança pequena, mas muito tempo ainda teria que se passar antes que
aquela criança pudesse ter justificada esperança de vestir aquele casaco.
Saltarei agora um período de tempo no desenvolvimento desse processo de
aprendizagem. “Já posso até fazer sem olhar”, mostrou-me um dia muito satisfeita. Fazer sem
olhar, tal como havia observado em pessoas hábeis nessa arte, havia sido uma ambição
longamente alimentada por ela.
Havia apreendido, porém, muito mais do que isso: aprendera a errar no tricô. Havia
adquirido a capacidade de tolerar seus erros e repará-los, de desmanchar a parte errada do
casaco sem desmanchá-lo totalmente. Também se havia tornado mais capaz de admitir erros
irremovíveis (ou demasiado difíceis) e deixá-los como estavam sem que seu amor pelo
casaco ou interesse pelo trabalho fossem muito afetados. Podia agora cometer mais erros,
não só porque se sentia mais capaz de reparar muitos deles, desmanchando-os
disciplinadamente, mas também porque era capaz de deixar de consertar outros. O casaco
mesmo com certos erros, podia agora ser amado e fazê-la orgulhar-se dele, no que havia de
certo. Até orgulhava-se igualmente dos próprios erros do casaco. Ao mesmo tempo, ele
tinha, agora, muito menos erros.
Esse fato, aparentemente banal, tinha imensa importância para ela, importância esta da
qual se deu conta progressivamente, através de um período de trabalho analítico que se
caracterizou por alto índice de rendimento terapêutico. Depois desse episódio, ela se
apresentava naquelas condiç ões modificadas que descrevi acima.
Examinemos um pouco alguns dos fatos ocorridos dentro desses período, pois acho
que a paciente tem, com eles, algo a dizer-nos sobre meu tema.
“Olha aqui”, dizia-me mostrando o trabalho certa vez, “preste a tenção, vou lhe
explicar. Errei aqui; agora tenho que desmanchar até esse ponto e fazer novamente.
Compreendeu?”
Às vezes essas explicações eram dadas com um empenho e insistência aflita que a
faziam até trocar as palavras. Eu era, naturalmente, naquele momento, a criança dentro dela
que não sabia ainda ou não acreditava que era possível desmanchar uma parte sem produzir
desintegração total, e ela precisava convencer-se de que isso era possível, convencendo-
me.
Por vezes, no meio de um desses empenhos em mostrar-me o que estava
acontecendo, de demonstrar e persuadir-me, ela se dava conta, após um interpretação, da
relação que estava vivendo comigo e interrompia com um sorriso de leve embaraço.
Um dia mostrou-me que agora era capaz de desmanchar duas ou três carreiras da
superfície para a profundidade e refazê-las corrigindo um erro que havia ficado “lá no
fundo”. Isso significava que, a certa altura, o tricô ficava dividido em duas partes em uma
apreciável extensão.
De outra feita trouxe novo trabalho onde havia pontos diferentes. Trabalhava sentada
no divã, quieta, em atitude meditativa. Nessa posição, falou com voz pausada: “Essa parte
aqui custei a aprender, até que descobri que é um ponto para a frente, um ponto para trás.
Agora é fácil”. E, depois de breve pausa: “Olhei! Um para a frente, um para trás. Viu? E vai
crescendo! Engraçado, não é?” Ainda mais tarde (depois de vários tópicos surgidos na
sessão): “Olhe! Errei aqui porque me esqueci daquilo; fiz vários pontos para a frente. Às
vezes faço vários para trás. Mas, agora, posso desmanchar, não é?”
Não me deterei em considerações sobre o significado desse material porque é tão
claro, principalmente seu conteúdo simbólico, que todos podem ver suficientemente, mesmo
com pouco conhecimento do paciente, o que nos interessa.
As interpretações eram ouvidas em silêncio. Um engolir em seco, um enrubescer ou
um sorriso contido eram as únicas indicações imediatas de como aquelas estavam
repercutindo dentro dela. Uma vez lhe vieram lágrimas aos olhos quando, ao referir-me aos
movimentos para diante e para trás em sua personalidade e na relação comigo, fiz menção em
particular à sua intolerância para com alguns importantes pontos para trás ocorridos em sua
vida ultimamente.
O tricô, porém, continuou sendo um importante meio de expressão do tema e de
resposta às minhas interpretações. Novos ângulos, novos detalhes e uma progressiva
modificação de sua relação com o tricô, com o mundo externo e consigo própria se
processava nas linhas descritas acima.
Mais tarde, em relação com a minha mudança e a nova posição do consultório de
crianças, que agora ficava ao lado do consultório de adultos e, nos primeiros dias, ligado a
este por um arco sem porta, ela fez vários episódios regressivos de uma intensidade que já se
havia tornado rara. Durante estes últimos, os movimentos para a frente e para trás assumiram
o significado de um coito persecutório  em contraste com o bom coito reparador e criador
de filhos que representaram várias vezes  ao qual ela dirigia ataques com fezes e urina.
Esses novos episódios tinham, contudo, características que poderiam ser consideradas como
expressões de novo arranjo estrutural de sua personalidade e novas bases em suas relações
de objeto. O objeto. O progresso em sua capacidade de simbolizar tornou possível a
expressão de suas fantasias em nível mais compatível com a preservação simultânea da
integridade de seus objetos internos e externos. Por exemplo, ela foi hostil comigo, mas não
procurou me atingir fisicamente como fazia antes. Fez um pênis de massa plástica,
ridicularizou-o e cuspiu nele, em lugar de cuspir em mim como habitualmente fazia nessas
ocasiões.
Para exprimir um aspecto dessa nova condição em termos mais ligados ao meu tema,
havia agora dentro dela uma “pessoa” tomando conta da regressão. Ela podia, assim,
desmanchar uma parte do tricô dentro de si sem se desmanchar toda. Ela havia adquirido
uma nova capacidade de regredir e isso, sem dúvida, constituía o elemento central daquele
progresso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Winnicott, D. - “Matapsychological and Clinical Aspects of Regression” in International


Journal of
Psychoanalysis, 1955, 1.
2. Zetzel, E.R. - “Current Concepts of Transference” in Internacional Journal of
Psychoanalysis, 1956,4,5.
3. Hartman, H. - “The Mutual Influence in Development of Ego and Id” in The
Psychoanalytical
Study of the Child, 1951.
4. Heimann, P. and Isaacs, S. - “Regression” in Developments in Psychoanalysis, London,
1952
Hogarth Press.
5. Glover, E. - Resenha de “Dynanic Psychiatry”de Alexander, F. et alii, Psychoanalytic
Quarterly,1954.
6. Rosenfeld, H. - “Transference Phenomena and Transference Analysis in an Acute
Catatonic
Schizophrenic Patient”.
7. Fenichl, O. - The Psychoanalytic Theory of Neurosis, Norton, New York, 1945.
8. Klein, M. - The Psychoanalysis of Children, London, Hogarth Press.
Klein, M. - Contributions to Psychoanalysis, London, Hogarth Press
Klein, M.; Heimann, P.; Isaacs, S.; Riviere, J. - Developments in Psychoanalysis,London
Hogarth
Press, 1952.
9. Freud, S. - Carta a C.G. Jung in The Life and Work of Sigmund Freud2. Jones, E.New
York, Basic
Books, 1953.
10.Hoffer, W. - “Transference and transference-Neurosis” in International Journal of
Psychoanalysis,
1956.

RESENHA

Por uma revista psicanaliticamente útil...

Celmy Araripe Quilelli Corrêa

É notável o movimento editorial sobre o tema Psicanálise, nestes últimos anos, no


Brasil. Num país de tão poucos leitores e de tão parcos recursos, dá o que pensar o
surgimento de tantas publicações. Tal fenômeno parece indicar que o discurso psicanalítico
enlaçou com suas propostas o imaginário do leitor brasileiro propondo-se como um discurso
inovador. Dentro e fora do campo psicanalítico.

Com o surgimento do ANUÁRIO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE, lançado com


tanto brilho em junto deste ano, delineia-se mais claramente a hipótese de que para o diálogo
psicanalítico, nossos encontros e debates, o novo espaço marcado pela palavra escrita
constitui-se um território não mais regido pelos confins institucionais, mas que se pretende
mais amplo, mais livre.

O GRUPO BERGASSE 19, responsável pelo editorial da nova publicação, propõe-


se não somente a continuar o trabalho anteriormente iniciado pela AGENDA DE
PSICANÁLISE, mas inaugurar “um fórum aberto e extra-institucional de debates em torno
dessa questão central (a transmissão e o laço social no Brasil)”. Para além da pulverização
das instituições psicanalíticas, que se replicam pela intolerância em conter as próprias
divergências, um laço social ( “definição lacaniana do que é um discurso” – Cabas, A.).

O primeiro número do ANUÁRIO objetiva sua proposta de alargamento de limites


institucionais, agregando a produção de autores das mais variadas associações (a SBPRJ
encontra-se representada por Miguel Calmon, Suzana Tonin e Marci Dória Passos),
principalmente quando, ao debater sobre a transmissão da Psicanálise, convida autores que
abordam o tema preferentemente a partir dos logos lacaniano, incluindo também artigos
menos comprometidos com tal circunscrição do saber. O artigo de R.Mezan discute de
modo marcantemente original o “Bildungsroman do psicanalista” – o romance de formação.
Através de pesquisa etimológica, e do rastreamento das articulações do conhecimento de
Lacan sobre Hegel (via Kojeve), propõe um resgate da designação de “formação” para o
processo de aquisição do saber psicanalítico, “desde que entendida a partir de seu solo de
origem”, principalmente a “natureza profundamente conflitiva do vir a ser analista”.

Já o artigo de J.Birman, que, pelo seu título, “Nem todos os homens são mortais”,
insinua um distanciamento da lógica formal para reger as comunicações institucionais,
apontando para o paradoxo de uma lógica de característica narcísica marcante, é instigante
quando se propõe a “depreender alguns traços que marcam o território do inconsciente nos
trópicos e surpreender sua face”. Indagando-se sobre a modalidade de difusão no social,
observa a disseminação da psicanálise “sem muita oposição e resistência”. E, ao constatar
de que forma a psicanálise é consumida “como um bem de salvação, como se fosse uma
dádiva divina”, conclui que “estaremos mais próximos da verdade se evocarmos a dimensão
antropofágica da cultura brasileira, que devora tudo aquilo que se apresenta como fascinante
que seja oriundo do cenário mágico do primeiro mundo, para vomitar depois com a mesma
rapidez e sofreguidão com que se banqueteou, para deslocar a boca faminta para um outro
objeto de sedução que se perfila no mercado simbólico dos bens culturais”. Além dessa
preciosa aproximação ao fenômeno da expansão do campo psicanalítico na cultura brasileira,
o artigo fornece outras hipóteses, apoiadas na história das duas últimas décadas, que
possibilitam uma vertente de compreensão para as mudanças realizadas dentro das instituições
filiadas à IPA. O texto oferece uma proposta de reflexão crítica mas otimista, pois “é
fundamental que possamos escrever uma outra história, pois essa história que estamos
repetindo não é rigorosamente a nossa”.

O debate sobre a questão da transmissão ainda se segue por vários autores, devendo
ser também ressaltado o artigo de Tania Coelho dos Santos sobre as Weltanschauungen
psicanalíticas contidas no imaginário social e que convertem a psicanálise numa promessa de
felicidade e que devem ser tomadas em consideração para a compreensão da difusão e
demanda. “Admitir a heterogeneidade do campo psicanalítico significa também reconhecer
que ela é humana, demasiadamente humana”, aponta Benilton Bezerra Junior, discutindo a
importância de abandonarmos uma crença em uma teoria que atenda à aspiração escolástica
de absoluta completude. A aceitação das divergências, o despojamento de posições
doutrinárias são mais uma vez apontados como desejáveis, e também causa dos movimentos
de cisão que se reproduzem ad nauseam , sempre escudados numa busca de legitimidade que
obriga a uma nova diáspora os não escolhidos.

A entrevista com Jurandir Freire, conhecido por sua coerência e consistência teórica,
sempre a trabalhar os temas marginais, de abordagem delicada e complexa, é o próprio
espelho do ANUÁRIO. Tentando uma revalorização do imaginário, naquilo que a teoria
lacaniana, a seu critério, melhor trabalha o narcisismo, apresenta sua questão com o
estruturalismo, enquanto tomado pelo pensamento psicanalítco, de forma simplificada, como
um idealismo cientificista. Seria impossível, para os propósitos desta resenha, desdobrar os
comentários que seriam necessários para alcançar a dimensão que essa questão, levantada
por J. Freire, vai atingir no campo psicanalítico, com suas atuais dissenções e ideário
absolutista. Não menos interessante é sua pesquisa sobre o conceito de homossexualidade,
“um peixe comprado pela psicanálise a partir da ideologia do século XIX”. Mas é no final
da entrevista, quando fala sobre a necessidade de resgatar-se o ideal para... “poder dar conta
de uma ética que não seja pura e simplesmente a do desejo. Com a ética do desejo, posso
analisar, mas não posso organizar uma visão de mundo que permita dizer isto é bom, isto é
mau”, que J.Freire se propõe como o psicanalista engajado na crítica a uma cultura do
individualismo, da permissividade. E, também, é com esse lugar, de preservação de uma ética
necessária ao convívio humano, de resgate da Psicanálise como humanidade útil, que se
compromete o ANUÁRIO, publicação das mais importantes surgidas nos últimos tempos,
para o campo psicanalítico.

*****

L’Inconscient et le Ça
(O Inconsciente e o Isso)
Sergio Costa de Almeida

Essa obra de Jean Laplanche, publicada em Paris, em 1981, pela Presses


Universitaires de France, ainda não dispõe de tradução em português. Corresponde ao item
IV de uma coleção que já tem seis títulos, a “Problematiques”, que aludem aos cursos
ministrados pelo autor na Sorbonne a partir de 1970. O presente número abrange as aulas
ministradas entre novembro de 1977 e fevereiro de 1979. O livro compõe-se de 3 partes: as
duas primeiras dizem respeito às concepções do autor sobre o Inconsciente (1ª tópica) e o Id
(2ª tópica), e a terceira é a reprodução do célebre texto que ele próprio e Serge Leclaire –
“O Inconsciente, um estudo psicanalítico”– publicaram primeiramente na revista “Temps
Modernes” (nº 183) em 1961, e depois em “L’Inconscient, Colloque de Bonneval”, Paris,
Desdée de Brouwer, em 1966.

Nessa primeira parte, Jean Laplanche procura pensar o Inconsciente como um


“materialidade escandalosa”(p.51), conferindo-lhe uma origem e uma substância. Sua origem
estaria no Recalcamento originário de cujo caráter mítico ele discorda. Diferentemente de
outra pensabilidade que vê o primário aqui como uma questão lógica e não ontológica,
Laplanche encara o recalcamento primário como um fenômeno ligado às primeiras
experiências de clivagem, apoio e sedução:

“... si l’on rapporte alors le refoulement originaire à ces premières experiences de


clivage, d’êtayage ou de séduction, on voit que ce ‘mythe’ n’est pas aussi imaginaire qu’on
pourrait le croire”(p.79).

Já nas páginas 23 e 24 postula que certas representações arcaicas – castrações pré-


genitais – poderiam dar uma idéia mais concreta daquilo que constituiria o fundo (“le fond”)
do Inconsciente, e indaga se tais castrações não seriam as bases formadoras do recalcamento
primário.

A substância do inconsciente seria composta pelas “imagens primitivas, desejo


inconsciente e processo primário”(p.73). Essas imagens primitivas englobariam as
representações – coisa ligada ao sensório visual mas também a outros esquemas de ação
chamados perceptivo -motores, dos quais fazem parte representações as mais primitivas
(“representations les plus primitives...”) como comer, incorporar, reter, expulsar e
despedaçar. Encontrar-se-iam representações auditivas – “...restos de frases pronunciadas,
restos de palavras, restos de fone mas...” – e não representações de linguagem, pelo menos
como se concebe depois de Saussure a estrutura lingüística, já que as palavras, seguindo
Freud, são tratadas como coisa (p.119-120).

O desejo inconsciente contrariamente às teses lacanianas não é entendido como sendo


o desejo-do-outro; seria o produto de um estranho metabolismo entre o comportamento
significativo do adulto, especialmente da mãe, e o inconsciente da criança em vias de
constituição (p.127). Essa “constituição” remete à idéia contrária a uma anterioridade
lógica. Laplanche concebe o terceiro elemento definidor do Inconsciente, o processo
primário, como rigorosamente correlativo de um princípio da conservação da energia psíquica
exatamente no sentido do primeiro princípio da termodinâmica (p.110). Um modo de
funcionamento de percepção, ao passo que o processo secundário busca a identidade de
pensamento.

A segunda parte da obra enfoca o Id, traduzido em francês por “ça”, da palavra
alemã Es (pronome pessoal neutro) utilizada por Freud. Procurando justificar o equivalente
“ça” para o alemão “das Es”, o autor chega a uma característica imperiosa e fundamental
dessa instância psíquica – a impessoalidade. Partindo do exame exaustiva e detalhado das
concepções de Groddeck sobre o Id e baseado sobretudo nos textos deste último autor
publicados em francês – “O livro do Id”, “A doença, a arte e o símbolo” e finalmente o “Id e
o eu” – , Jean Laplanche se detém na reflexão crítica do conceito freudiano que veio a lume
em 1923. Diferente do Groddeck, que propunha um pansimbolismo para o Id, Freud vai
pontuar o caráter impessoal, essencialmente pulsional e desafetivado do Id. Assim, com a
introdução do conceito do Id, o inconsciente da primeira tópica, sede de representações-
coisa, ver-se-ia “...mais próximo de uma força vital, mais distante dos objetos familiares, e,
em última instância, mais desconhecido”(p.194). Para Laplanche, o interesse da segunda
tópica no que tange ao Id é portanto demarcar a questão energética sob o nome de pulsões
(p.198).

A partir daí , o autor se debruça sobre o exame da pulsão de morte. Citando Jones,
Reich e Groddeck, que a recusavam, revela que para André Green a diferença essencial entre
o conceito de Inconsciente e de o Id é que no primeiro não há lugar para as pulsões de
destruição (p.220). As escolas anglo -saxãs no tocante à pulsão de morte privilegiam a análise
da agressividade, nomeadamente da heteroagressividade, deflacionando assim a sexualidade
(p.230).
Após realizar um exame minucioso de alguns textos kleinianos sobre a pulsão de
morte e demonstrar contradições e incoerências conceituais na maneira como tais concepções
são apresentadas, propõe que não mais se empreguem conceitos como medo da morte, pois
a morte é algo que não se inscreve no inconsciente. Estabelecendo a distinção entre libido
(energia) e angústia (afeto), demonstra que o contato do aparelho mental com essa pulsão de
morte aniquiladora e despedaçadora traduzir-se-ia não por um medo e sim por uma angústia-
morte ou angústia-aniquilamento, termos esses que derivam de suas críticas ao conceito
lacaniano de representante-da-representação, pois as representações não comportariam um
genitivo, e assim, ao recusá-lo, propõe a utilização de representante-representação.

Tomando como ponto de partida o seio internalizado, seu conceito de objeto -fonte,
Jean Laplanche afirma que as pulsões de morte seriam um aprofundamento radical da
sexualidade. A partir de uma única energia psíquica que transita no aparelho psíquico e que
investe ora as pulsões de vida, ora as pulsões de morte, ele apresenta o que denomina pulsão
sexual de vida e pulsão sexual de morte. Assim o “seio mau é o seio sexual excitante e a
pulsão de morte que ele suscita por seu ataque – que não é outra coisa senão seu ataque –
por ser chamada de pulsão sexual de morte”(p.254). É a pulsão de objeto parcial
correspondente às angústias da posição esquizoparanóide, e que em última análise é um medo
pelo eu (ego). As pulsões sexuais de vida são as pulsões de objeto total e diz respeito ao seio
gratificante e apaziguador. “Tendem a manter e unificar o objeto, objeto aí compreendendo
o eu (moi), o primeiro e grande objeto dessa pulsão de vida, o que na linguagem freudiana se
denomina libido narcísica” (pág.259). Estão ligadas às angústias da posição depressiva e
correspondem a um medo pelo objeto.

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