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outro lado
Quatroloscinco
É só uma formalidade
Outro lado
Assis Benevenuto
Ítalo Laureano
Marcos Coletta
Rejane Faria
Sérgio Andrade
EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2014
editora multifoco
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152
capa
Alan Brigagão
CriaReal – Denize Barros e Marcelo Gava
É só uma formalidade
Quatroloscinco
autores
Italo Laureano
Rejane Faria
Marcos Coletta
Sérgio Andrade
revisão
Assis Benevenuto
Marcos Coletta
outro lado
autores
Assis Benevenuto
Marcos Coletta
revisão
Assis Benevenuto
Marcos Coletta
1a Edição
Março de 2013
ISBN 978-85-8273-112-3
Coleção Dramaturgias
Humberto Giancristofaro
Editor do Selo Questão de Crítica
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Quatroloscinco
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É só uma Formalidade
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Quatroloscinco
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É só uma Formalidade
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É só uma formalidade
Italo Laureano
Marcos Coletta
Rejane Faria
Sérgio Andrade
Quatroloscinco
PERSONAGENS:
_______
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É só uma Formalidade
1ª CAMPAINHA
HOMEM 02
Nesta cena vocês vão ver um homem perdido em suas de-
cisões, alguma coisa de um, de dois, de qualquer um. Dessas
coisas que não se decide nem se abandona, simplesmente age.
O enterro do pai de alguém que...
HOMEM 01
Você não vai se arrumar?
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Quatroloscinco
HOMEM 01
O que é que eu faço?!
HOMEM 02
Faz o que você quiser...
HOMEM 01
Ah!
HOMEM 02
Ele queria ser útil.
HOMEM 01
Eu não quero mais nada... Eu desisti de querer alguma coisa.
HOMEM 02
Ele teve uma ideia fantástica, ele queria mudar o mundo.
HOMEM 01
Eu me enganei, eu me enganei... Eu não tive ideia nenhu-
ma, mudar o mundo, que bobagem.
HOMEM 02
Agora ele quer voltar pra casa.
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É só uma Formalidade
HOMEM 02
O que você está pensando? Vai chegar lá com essa cara? Já ima-
ginou quem vai estar lá? Hein, já imaginou? Então vamos imaginar:
eles estão aqui... (Luz na plateia) E vão falar aquele tanto de boba-
gens. Os mais honestos vão te perguntar o que foi que aconteceu.
Você era um homem tão dedicado que a gente esperava te ver nos
jornais, alguém de opinião, qualquer coisa... Mas nada! Nada...
HOMEM 02
Você emagreceu! Emagreceu, olha o rosto dele! Olha só o
que te fizeram... Não deve estar comendo direito...
HOMEM 01
Deve ser a barba... É que tem muito tempo que eu não faço
a barba... Eu...
HOMEM 02
(Tira da mala um prato de alumínio e uma espada de brinque-
do. Entrega a espada a HOMEM 01) Você vai chegar lá com
cara de filho pródigo! Ele tirava 10 em tudo, era o herói da
casa! Então, He-man! (Ergue o prato como um espelho) Vamos
lá, campeão, He-man! He-man!!
HOMEM 01
He-Man!!
HOMEM 02
Hum! Eles vão se borrar de medo. Você vai dar de cara
com a sua madrinha, que te deu um tênis 42 quando você
tinha 10 anos. E você foi usar com quantos, 16?
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Quatroloscinco
HOMEM 01
É. E depois de uma semana a sola descolou...
HOMEM 02
A dindinha te ama!
HOMEM 01
Ô...
HOMEM 02
Você devia falar pra ela!
HOMEM 01
O quê?
HOMEM 02
Quando ela chegar com o lencinho e os óculos escuros,
chorando em cima do seu pai, você fala: “o que é isso tia, não
chora, ele nunca gostou de você!”
HOMEM 01
Não! Claro que não...
HOMEM 02
Mas você vai ficar calmo, calmo como aprendeu a ser por
si só. Não foi o pai dele quem ensinou essa forma irritante de
ser calmo em todas as circunstâncias... Não... Você vai chegar
com cara de artista fracassado.
HOMEM 01
E que cara é essa?
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É só uma Formalidade
HOMEM 02
Assim, ao natural! Está ótimo! Perfeito... Olha pra cara de-
les. Olha aqui. Aqui. Eles vão ficar desajeitados, vão esquecer o
morto! O acontecimento do dia é a sua chegada! “Gente, olha
quem veio, faz tanto tempo... Eu achei que esse aí já tinha...”
Mas o que é isso!? Que cara de morte! Seja mais amável... É a
sua família! Eles vão te pedir pra tocar! Você toca. Toca!
HOMEM 01
Tocar? Não, eu não vou tocar... Não lembro mais. Eu
esqueci tudo...
HOMEM 02
Aquela musiquinha que você fez. Que a sua mãe pedia pra você
tocar no natal. Aquela bonitinha... Toca por favor! Toca, Toca...
HOMEM 01
Eu não vou tocar nada não!
HOMEM 02
Só porque não ia dar pra levar o piano... (Ele guarda o prato
e a espada de plástico na mala e retira dela dois fantoches de pano)
Mas dá pra levar os fantoches! Vai fazer um teatrinho pra eles!
HOMEM 01
Guarda isso lá! Guarda isso...
HOMEM 02
Ele é super talentoso! Toca piano, faz teatro... É o artista da
família! Ele só não decolou... Sabe, ele não decolou... Mas se
tivesse tido uma “chancezinha” assim, tinha ido longe! Ilumi-
nador! Joga uma luz nele! (Um foco de luz cai sobre HOMEM
01, que fica exposto no meio da cena) Eles vão rir de você o ano
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Quatroloscinco
todo, mas não importa. Conta pra eles o que você fez esse
tempo todo. Conta pra eles o que você sente.
HOMEM 01
É que...
2ª CAMPAINHA
ELA
Ainda bem que você chegou, você está quarenta e três
minutos atrasado, achei que você ia ligar do escritório pra avi-
sar que ia demorar, na verdade eu ia te ligar agora pra saber...
(Ensaia este texto inúmeras vezes)
ELE
Hoje eu acordei, tomei café... Aí eu fui pro trabalho. De-
pois eu almocei com o Ricardo, o Ricardinho do futebol...
Depois eu passei no cartório, pra assinar aquele documento
que a gente ficou de... Na volta eu postei essa carta... é uma
carta de divórcio... Nela eu falo sobre tudo. Amor, praia, mar,
champanhe... Eu poderia simplesmente dizer que acabou,
mas ela não... Entende? A carta. Eu mandei a carta em meu
nome, porque ela sempre abre as minhas cartas. Sempre. Daí
é batata. Vai ser difícil, a gente está de mudança... a gente está
de mudança, de novo... Vai ser difícil...
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É só uma Formalidade
ELA
Ainda bem que você chegou, você está quarenta minutos
atrasado, achei que você ia ligar do escritório pra avisar que ia
demorar, na verdade eu ia te ligar agora pra saber...
ELE
Oi.
ELA
Ei.
ELE
Eu me atrasei, porque eu...
ELA
Não tem problema, o que importa é que você tá aqui... o
que é isso?
ELE
Nada. Não é nada.
ELA
Ah! Nada? (Ri) e como é que foi seu dia? Me conta...
ELE
Ah, foi igual... Quer dizer, quase igual.
ELA
E o que deixou ele quase igual?
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Quatroloscinco
ELE
Tinha um menino. Na rua. Com a carinha pintada de
azul... No sinal, pedindo uma moeda..
ELA
Ah! Menino, carinha azul? Você deve estar cansado, por
que você não toma um banho? Eu vou pegar uma toalha.
ELE
Que cheiro é esse?
ELA
É perfume, achei que você não ia notar... Um perfume novo
que comprei na mão da Lili...
ELE
Não. Estou falando desse cheiro de... cigarro.
ELA
Cigarro? Deve ser sua camisa! A Neusinha me disse que
tem um spray que quando a gente joga na roupa com cheiro
de cigarro, o cheiro sai logo.
ELE
O que essa mala estava fazendo aqui no centro quando
eu entrei?
ELA
Ai meu Deus, que cabeça a minha... Eu estava tirando
umas coisas dela e acabei esquecendo ela aqui...
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É só uma Formalidade
ELE
Não... Deixa... Deixa aí.
ELA
Aqui?
ELE
É... está bonito...
ELA
Aqui, bonito, no meio da sala, atrapalhando a passagem?
Só mesmo você pra achar isto bonito... Senta, vou te fazer
uma massagem!
ELE
Não precisa...
ELA
Enquanto eu faço você me conta como foi seu dia, eu que-
ro saber detalhes!
ELE
Me conta o seu.
ELA
Eu pedi primeiro
ELE
Eu acordei.
ELA
Nós acordamos...
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Quatroloscinco
ELE
Tomei café.
ELA
Tomamos café...
ELE
Aí eu fui pro trabalho.
ELA
Ai você foi pro trabalho...
ELE
Hoje eu almocei com o Ricardinho, do futebol.
ELA
Ricardinho?! Que delícia! Han!?
ELE
Na volta eu passei no cartório. E assinei aquele documento
que a gente tinha ficado de...
ELA
O financiamento eu aposto que você não olhou.
ELE
É... Aí na volta eu resolvi...
ELA
Você veio a pé?
ELE
Não é tão longe ass...
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É só uma Formalidade
ELA
É! Não é!
ELE
No caminho eu vi uma coi...
ELA
Que coisa?
ELE
Uma criança... Carinha pintada de azul. No sinal. Ela esta-
va sozinha. No meio da rua.
ELA
Ah criança!... Adoro criança, aonde na rua? Sozinha? Ah!
Criança na rua... Sozinha... Ah não devia estar sozinha de
verdade... A mãe dela devia estar por pert...
ELE
Não tinha mãe nenhuma por perto!
ELA
Seu pé mudou.
3ª CAMPAINHA
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Quatroloscinco
HOMEM 02
É um pastor, manda sair!
HOMEM 01
Tirem esse cara daqui! O papai não ia querer esse cara
aqui, não!!
HOMEM 02
He-man!! Isso é que é teatro, meu filho, não aquilo que
você fazia. E não era uma questão de se sentir indispensá-
vel, era só de viver com a própria consciência. Você viu que
o mundo era uma merda e queria tirar a merda do planeta.
Mas eu tenho uma notícia boa pra você. Não foi você quem
inventou a bandalheira não, ela já existia. Mas você tinha que
ir pelo lado mais difícil... Acreditou numa causa e foi atrás
dela sozinho, no escuro, porque as outras pessoas ficaram ocu-
padas demais. Elas foram criar filhos, status, família, barriga!
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É só uma Formalidade
HOMEM 01 – Eu!
HOMEM 01 – Eu!
HOMEM 02
Pega na mão dela.
HOMEM 01
O quê?
HOMEM 02
Pega na mão dela!
HOMEM 02
Foi se apaixonar pela única mulher que não te amava... Só
os babacas morrem de amor, e você era um deles! Ia aos lugares
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É só uma Formalidade
HOMEM 01
É...que.. Voc... Sab... Lá n... Quê.. Aah.. Ê...
HOMEM 02
Ela te olhava com simpatia, claro. Mas a mesma simpatia
que se tem pelo cachorro do vizinho. Aquele Pinscher... E
você, infeliz, interpretava cada olhar, cada sorriso... Até que
um péssimo dia você resolver contar tudo pra ela.
HOMEM 01
Mariana! Eu só tenho olhos para a senhorita. Ontem, você
estava com aquela blusa vermelha... Antes de ontem, com
aquela sua calça jeans surrada. E na terça, dia dez do mês pas-
sado, você foi à boate com um vestido verde e um sapato mar-
rom, tão linda que eu fiquei sem ar só de vê-la. Mariana, eu te
amo há mais de um ano. Nunca te disse nada porque pensei
que fosse comprometida, mas agora eu sei que não é. Quer
dizer, você é? Olha, se quiser, eu pinto a parede da sua casa,
conserto o portão da sua garagem, te levo pra fazer um pique-
nique, te faço um filho! Não... Não! Eu te pago uma cerveja!
HOMEM 02
Isso, cerveja! Investe na cerveja!
HOMEM 01
Mariana, não importa, só quero que você saiba que o amor...
É sublime! E que eu te amo casto como uma criança. Te amo
como um aluno ama sua professora! E é um amor tão sublime
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Quatroloscinco
4ª CAMPAINHA
ELE
Meu pé?
ELA
Mudou, mudou muito... Eu vou pegar umas fotos da praia
pra você ver o tanto que mudou... Eu estava até querendo en-
contrar aquelas fotos grandes, mas eu não tenho ideia de onde
é que está, você podia me ajudar a encontrar, aproveita e tira
estas caixas do meio da sala, eu quero o centro vazio...Isso, isso
mesmo, aí está ótimo, cuidado com esta, ótimo...
ELE
Por acaso, você não recebeu uma...
ELA
Olha só o que chegou pra você, interessante não tem reme-
tente e é registrada...
ELE
Ela não leu.
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É só uma Formalidade
ELA
Abre... Você não vai abrir?
ELE
Eu abro depois.
ELA
Deve ser alguma coisa importante, a carta é registrada.
ELE
Quando eu estiver sozinho!
ELA
Mas eu passei a tarde inteira curiosa, querendo saber o que
tem nesta car...
ELE
Você está muito curiosa! Muito curiosa! Devia ter arruma-
do essas caixas. Colocado no lugar... Essa caixa amarela! Eu
não sei porque a gente carrega essa caixa amarela toda vez que
a gente muda. Isso aí está cheio de mofo.
ELA
Lembranças
ELE
Mofo.
ELA
Coisas da nossa vida.
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Quatroloscinco
ELE
Ferrugem.
ELA
Coisas da nossa vida.
ELE
Qualquer hora isso vai dar uma doença na gente.
ELA
Doença coisa nenhuma, toda vez que eu pego esta caixa eu
limpo, e aproveito pra rever coisas, eu acho até que vou colocar
estas fotos aqui...
ELE
Quatrocentos e cinquenta reais.
ELA
O que é que tem?
ELE
Quatrocentos e cinquenta reais pra carregar uma coisa que
a gente nem usa!
ELA
O presente da tia Soninha não é um móvel qualquer... É
um piano!
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É só uma Formalidade
ELE
Claro que não é um móvel qualquer. Ainda mais porque
não é um móvel, é um instrumento musical. Sua tia tinha que
ter dado isso pra alguém que sabe tocar.
ELA
Ela deu pra mim, eu vou cuidar... Tem valor sentimental,
lembranças...
ELE
Valor sentimental de piano é música. E lembrança tá
aqui...
ELA
Lembrança tá aqui... Esta é a foto que eu mais gosto! Ca-
samento bonito...
ELE
Ele oprime ela.
ELA
O quê?
ELE
Ele oprime ela. Olha essa mão dele apertando o braço dela.
ELA
(Segura um dos retratos que mostra seu pai e sua mãe de mãos
dadas no casamento) Não, não tem nada disto, ele tinha mãos
macias, foram 22 anos de um casamento feliz comemorando
todo dia 14 de maio com festinha, tirando e colocando aliança
como se fosse a primeira vez... Isto é lindo... É lindo...
32
Quatroloscinco
ELE
Tirando e colocando aliança como se fosse a primeira vez...
Isto é lindo...lindo... Deixa a mala no centro.
ELA
Não. Eu quero o centro vazio.
ELE
Borroscado.
ELA
O que? Onde?
ELE
Ali. Está tudo borroscado!
ELA
Ah! Foi o cara...
ELE
Eu te falei! Eu te falei que não era para pegar aquele orça-
mento, estava na metade do preço, não podia ser coisa boa...
Olha ali aquela quina, não tem recorte...
ELA
Estava na metade do preço, você me disse pra adotar a po-
lítica da economia, eu adotei...
ELE
OK! OK... Tudo bem... Então vamos adotar a política do
custo beneficio. Tem coisa que vale tanto, e tem coisa que
vale... tanto.
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É só uma Formalidade
ELA
Você viu minha correntinha?
ELE
Não. Vamos adotar a política de entender as coisas.
ELA
Achei!
ELE
Parabéns...
ELA
Vai tomar seu banho, vai...
ELE
Que cheiro é esse?
ELA
Cigarro de novo?
ELE
Não. Um cheiro de... Bo...
ELA
Bolo!
ELE
Deve ser a vizinh...
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Quatroloscinco
ELA
Não. Eu.
ELE
Você está fazend...
ELA
Estou... Aqui em casa.
ELE
Mas eu ainda nem inst...
ELA
Eu pedi o vizinho de frente pra instalar pra mim.
ELE
Nossa, mas que desespero... Não podia esp...
ELA
É desesperada... Não podia esperar até sábado...
ELE
Mas ele fez o serv...
ELA
Sim, sim fez sim.
ELE
Não deixou nada borroscado assim...
ELA
Não, não, eu achei ele muito caprichoso, ele é pintor.
E é gringo.
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É só uma Formalidade
ELE
Ah, ele é pintor! Então ele deve ter ficado puto quando viu
essas paredes.
ELA
Não, ele é pintor de quadros! Ele pinta umas coisas, faz
umas esculturas, ele é artista plástico...
ELE
Ah... Ele é artista? De onde?
ELA
Acho que da Argentina, porque ele tem o sotaque muito
carregado, aí eu falei de você pra ele, que você ia adorar conhe-
cê-lo, que você fala muito bem o espanhol, do seu sonho de
conhecer toda a América Latina. Assim, uma espécie de Che!
ELE
Você falou isso pra ele?
ELA
Falei.
ELE
Não, a gente não fala essas coisas do íntimo da vida da
gente para um estranho.
ELA
Não é um estranho, ele é nosso vizinho de porta!
ELE
Estranho! Um exilado! Um foragido! Criminoso que pode
querer sequestrar a gen...
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Quatroloscinco
ELA
Não tem nada disso.. Vai tomar seu banho. Aproveita
e passa aquele perfume que eu gosto, aquele que eu te dei
de presente.
ELE
Passar perfume pra quê? Pra dormir?
ELA
Dormir? Ah, dormir... Bem, é que eu achei que antes da
gente dormir, a gente fosse tomar alguma coisa... Comer um
pedaço de bolo...
ELE
Ah! É tipo uma comemoração.
ELA
É uma comemoração.
ELE
Eu não entendo...
ELA
O quê você não entende?
ELE
Eu não entendo como você consegue ocupar seu tempo
com essas coisas. A gente aqui tentando colocar as coisas no
lugar, tentando colocar a vida no lugar, e você pensando em
fazer bolo. Ou a gente coloca a vida no lugar ou a gente faz
bolo. Não dá pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
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É só uma Formalidade
ELA
Você sabe que eu não gosto de comemorar as coisas fora
da data, você sabe disso, comemoração pra mim tem que ser
na data certa.
ELE
Data certa de quê?
ELA
O quê?
ELE
É... Porque o meu aniversário já... O seu ainda nem... A
não ser que agora você resolver comemorar a... mudança.
ELA
Você está brincando, né? Você está brincando comigo. É
isso? Olha pra mim e fala: “eu estou brincando”.
Suspensão.
ELE
Eu não lembrei... A secretária... Ela ficou de me...
ELA
Que carta é esta afinal?
ELE
É uma carta de div...
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Quatroloscinco
ELA
Não. Tudo bem. Tudo bem, não aconteceu nada, a gente
não vai estragar a nossa noite por causa de uma bobagem sua,
não, não é tão difícil assim, não é tão duro, não é tão pesado...
ELE vai ao saco de boxe. Soca-o. O saco gira sozinho em seu entorno.
ELA
É simples, é só eu ficar feliz, é só eu ficar feliz como eu
aprendi a ficar por mim mesma... Esta habilidade de ser feliz
em todas as circunstâncias, feliz e digna, muito digna. Vai to-
mar seu banho! Aí a gente come o bolo!
ELE
Você vai mesmo deixar essas fotos aí?
ELA
Vou, por quê?
ELE
Não, nada. É que eu me sinto um pouco pressionado.
ELA
Ah! Que bobagem, eu adoro essas fotos, adoro! Elas nun-
ca mentem, ao contrário da gente... E dos vídeos! Que são
longos demais pra serem verdadeiros. As fotos. Elas nunca
mentem... Eu já te contei a história da minha bisavó?
ELE
(Se aproxima da plateia e dialoga com a público)
Ih... Começou... Começou. Ela sempre me faz essa per-
gunta, eu respondo que sim e ela continua, daí eu deixo!
Aquela história? Da máquina fotográfica? Da fumaça? Ah,
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É só uma Formalidade
sei! Mas na verdade essa história não aconteceu com ela. Não.
Isso é a história de um filme que a gente viu um dia desses...
Essa mania que ela tem de misturar a realidade com a ficção.
É porque a vida não é bonita o bastante! Daí a gente o que
a gente faz? Cria... É de família, a mãe dela já... A avó falava
que quando você pisa na agulha, a agulha caminha, caminha,
caminha e fura o coração! Vê se pode? A vida não é bonita o
bastante. Quer ver?!
ELE
Ela tem um primo. O Gabriel... Gabriel, o seu primo?
ELA
É! Gabriel!
ELE
Morava o Gabriel, a mãe e o pai numa casa de três cô-
modos. Não era bem uma casa, era um barracão. Moravam
os três ali. Até que um dia eles brigaram, numa confusão
tremenda, discutiram tanto que pararam de conversar. Sete
anos se passaram e eles não se falavam mais. Até que um
dia Deus, o gerente de supermercado, derrubou o telhado da
casa com uma chuva enorme, a água começou a subir... su-
bir... E tiveram de dormir os três em cima de um hack. Sem
boa noite. Até que um dia, morreu! Quem? O pai do Ga-
briel morreu. Daí a gente foi no velório, estava todo mundo
de preto, aquela coisa toda, alguns chorando... Mas tinham
duas pessoas que choravam mais, duas pessoas! Quem? O
Gabriel e a mãe... Por que? Porque a vida não é bonita o
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Quatroloscinco
bastante, daí a gente... Cria! Pede ela pra te contar essa his-
tória! Pede! Ficção! Quer ver? Ficção!
ELA
O quê é isso?
ELE
Han!
ELA
Surpresa?
ELE
Ficção! Estão vendo? Ficção!
ELA
Ah! Eu achei que você tinha esquecido! Como é que eu pude
pensar... Ah, meu Deus! Eu achei que... O que é? Onde está?
Pode tirar? Estou ficando sem ar! Você está me sufocando...
ELE
Ficção! Vem aqui... Isso. Olha o degrau. Ela acredita! Fic-
ção! Você dá isso aqui e ela vai... Ficção! Isso, fica parada aí.
(Conversa com o público) Você quer ver uma coisa? Olha isso...
41
É só uma Formalidade
ELE
Você vai ver que ela não percebe... entende? Você não pre-
cisa fazer nada. Pode ficar à vontade. Você vai quer que ela...
Olha só!
ELA
Pode tirar?
ELE
Pode tirar...
ELA
Pode abrir?
ELE
Pode abrir...
ELA
Pode virar?
ELE
E pode virar...
ELE
Na mala é demais. Ela sabe que não tem nada lá. Os outros ato-
res já abriram essa mala. Muito obrigado. Pode voltar pro seu lugar.
42
Quatroloscinco
ELA
Se não estiver aqui você vai ver, ein! (Procura na mala) Cadê?
ELE
Cadê o quê?
ELA
Eu não estou vendo nada...
ELE
Nada? Nada... É porque não tem nada... Não tem nada nessa
mala, nessas caixas, não tem nada! Essa mania... Essa mania!
5ª CAMPAINHA
HOMEM 01
Eu sou um louco, Mariana! Eu sou um louco! Um louco...
HOMEM 02
Como Deus pode permitir que se ame tanto alguém e só
receba indiferença, desprezo! Ela devia ter entendido que pra
você era sublime, era puro. Porque quando se ama assim tudo
é puro. Passear de mãos dadas pela praça, enfiar o dedo até o
fundo do cu dela... Chamar pra tomar uma cerveja... Quando
se ama assim tudo é sagrado...
HOMEM 02
Mudar o mundo... Cara babaca. Devia ter começado ves-
tindo roupas melhores.
ELES riem.
HOMEM 02
Lembra daquele dia? Que você queria dizer pra ele que
ele tinha sido importante, que tinha te ensinado a respeitar
os outros, a não passar por cima de ninguém... Que não podia
ter sonhado um pai melhor, mas você acabou dizendo pra ele
uma babaquice do tipo: “Pai, se você morrer não importa!” E
saiu correndo pra chorar escondido...
44
Quatroloscinco
HOMEM 01 (rindo)
Que babaca!
6ª CAMPAINHA
ELA
Lembra daquele dia?
ELE
Que dia?
ELA
Do dia que a gente se casou... Não teve nada, não teve festa,
não teve igreja... Lembra? A gente cismou que era descolado...
Que igreja era uma bobagem, uma forma de alienação... Sei lá!
ELE (rindo)
Sabe de quem eu me lembro? Da tia Petrúcia! Eu me lem-
bro daquele tanto de gente desconhecida, pipocando por to-
dos os lados, gente saindo pelo “ladrão”!
ELA (rindo)
Esta frase é da minha mãe!
HOMEM 01
E aquela vez! Que ele quis dar uma aula de educação
sexual! Chegou todo sério no quarto... Disse assim: “Filho, a
gente precisa ter uma conversa séria. Aquilo que você chama
de pau, de...”
45
É só uma Formalidade
HOMEM 02
De vara!
HOMEM 01
“Aquilo é pênis, filho! E aquilo que você deve chamar por
aí de xoxota, de...”
HOMEM 02 (rindo)
Xonga!
HOMEM 01 (rindo)
“Aquilo é vagina!”
ELA
A gente não teve nem aliança
ELE
Bobagem. A gente tinha coragem. Aliança a gente perde
na rua.
ELA
Coragem também...
HOMEM 01
Engraçado, não é?
Silêncio.
HOMEM 02
A música... Como era mesmo a música?
46
Quatroloscinco
ELE
O que você está procurando?
ELA
A fita do nosso casamento.
ELE
Mas foi você mesmo quem disse que prefere as fotos. Que
os vídeos são longos demais...
ELA
Não, as fotos são muito paradas, muito silenciosas, agora
quero ver o vídeo, quero vida, quero ver gente andando, quero
ouvir a nossa voz. Achei. Aqui está. Vem!
ELE
Não, eu não sei se eu...
ELA
Anda, vem!
ELE
Você tem certeza?
47
É só uma Formalidade
ELA
Olha só! O meu vestido! Como é mesmo o tecido? Isto! Tafe-
tá! Como é que era o bombom que você falava? Olha lá, a tia! Ih,
aquela outra dona que caiu no meio da sala! Você lembra disso?
ELE
Olha. Essa parte é chata. Tira.
ELA
Eu vou tirar... Mas antes, olha. Eu não mudei nada, já você...
ELE
Que cheiro é esse...
ELE cai pela terceira vez. Mas, desta vez, ELA não o ajuda
a se levantar.
ELA
Bolo! Ah meu Deus! O bolo! (Ela corre até a mala e retira o
tijolo) Que pena, queimou um pouco... mas foi só a beirada...
HOMEM 02
Levanta. Levanta, campeão... (Sai)
ELA
Ah! O nosso bolo. Vamos comer agora! Não, antes vamos
fazer um brinde, um brinde é importante, vamos comemorar!
Aqui está. (Retira de uma das caixas uma garrafa de champanhe
vazia. Finge estourar e beber.) O nosso champanhe! Ah! Que
delícia. Adoro este champanhe, adoro, ele tem um “docinho”...
Eu já te contei a história do meu pai? (Para o público) Quan-
do ele perdeu a aliança, contei? Não? É verdade, ele perdeu...
Sabe o que ele fez? Ele desapareceu... Ele ficou uma semana
sem aparecer em casa, uma semana... Mas no final deu tudo
certo, ele encontrou a aliança no fundo do bolso de um pale-
tó... Já imaginou... Um marido desaparecer porque não tinha
aliança! Marido. Desaparecer. Ah! Adoro este champanhe...
Tem assim, um “amarguinho”. O bolo, ah, o bolo! Que lindo!
Lindo! Se tem uma coisa que eu nunca erro é este bolo... Eu
não erro nunca. Quando sua mãe me ensinou a fazer este bolo,
ela me fez prometer que eu faria em todo aniversário de casa-
mento, está aí... Eu vou pegar. (Vai até as caixas e pega uma es-
pátula) Ela me deu a receita... Três xícaras de farinha de trigo,
duas xícaras de açúcar, uma xícara de maisena, uma colher de
pó Royal, uma colher de manteiga, seis ovos. Você bate o ovo
com manteiga e o açúcar até virar um creme. (Não consegue
partir o tijolo com a espátula) Eu vou pegar. (Vai até as caixas
e pega um martelo de bater carne) Depois você vem colocando
o resto dos ingredientes, e bate, bate, aí você coloca tudo isto
numa forma untada e esfarinhada...
49
É só uma Formalidade
ELA
Depois leva pro forno pré-aquecido e deixa ficar por 45
minutos, aí você vai fazer a calda, coloca três xícaras de açúcar
numa panela bem quente e deixa derreter, aí você vem com as
maças, são oito maçãs vermelhas fatiadas na vertical, e você
deixa cozinhar, virar um melado! É isto que você vai colocar
dentro do seu bolo!
7ª CAMPAINHA
ELA
Me dá uma água...
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Quatroloscinco
FIM
*****
¹Música composta por Sérgio Andrade. Letra: Trecho de “Solos los giles mueren de
amor”, de Cesar Brie.
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É só uma Formalidade
Vídeos: Lumiart
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Foto de Nubia Abe
Quatroloscinco
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É só uma Formalidade
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Estética da impotência
Humberto Giancristofaro
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É só uma Formalidade
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Quatroloscinco
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É só uma Formalidade
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Outro lado
Assis Benevenuto
Marcos Coletta
Quatroloscinco
PERSONAGENS:
_______
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Quatroloscinco
PRÓLOGO
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Outro Lado
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Quatroloscinco
REJANE – Júlio, aos oito, deu seu primeiro tiro com arma
de fogo. Mariana, aos 11, ficou grávida do padrasto. Lívia, aos
13, usava crack há cinco anos. Pedro, aos 14, nem sabia ler. Igor,
aos sete, perdeu seu cachorro, um Schnauzer, de coleira azul.
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Outro Lado
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Quatroloscinco
“Something Strange” ²
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Outro Lado
CENA I – O BAR
CANTORA – O de sempre.
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Quatroloscinco
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Outro Lado
JORGE ri.
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Quatroloscinco
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Outro Lado
GERENTE – O que?
JORGE ri.
CANTORA – Daqui?
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Outro Lado
incrível isso aqui... Faz tão pouco tempo. Mas parece que faz
tanto tempo... É recente... Mas está desbotado... Você se lem-
bram da Lígia Abreu? A poeta? Escreveu seu último livro aqui
no bar. Pobre Lígia... Nunca pensei que ela fosse capaz...
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Quatroloscinco
GERENTE – Nossa!
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Outro Lado
GERENTE – Não Jorge, você não vai tirar ela de lá. Ela
está distraindo os clientes!
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Quatroloscinco
ANDRÉ – De fogo.
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Quatroloscinco
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Outro Lado
CANTORA – O que?
ANDRÉ – Fala!
ANDRÉ – Quem?
CANTORA – Cacilda!
JORGE – Tomara que não seja aqui, senão não vai ter nin-
guém pra te assistir.
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Quatroloscinco
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Outro Lado
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Quatroloscinco
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Outro Lado
CANTORA – Estou...
JORGE – Eu não.
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Quatroloscinco
CANTORA ri compulsivamente.
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Outro Lado
CANTORA – Mas pra quê isso tudo? O que eles estão fazendo?
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Silêncio.
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Outro Lado
CENA II – AS MEMÓRIAS
JORGE – Desconfiava.
JORGE – E aí?
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Quatroloscinco
JORGE – Não é?
JORGE – Oi?
GERENTE – Abafadores.
Eles riem.
JORGE – Muito.
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Quatroloscinco
GERENTE – Anos?
JORGE – Muitos.
JORGE – Quem?
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Outro Lado
CANTORA – Nossa.
JORGE – O que?
GERENTE – Desde...
Pausa longa.
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Quatroloscinco
Todos riem.
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Outro Lado
CANTORA – É verdade.
JORGE – Quem?
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Quatroloscinco
GERENTE – Socorro?
JORGE – Socorro?
GERENTE – Socorro.
JORGE – Socorro.
CANTORA – Socorro.
ANDRÉ – Eu?
JORGE – André?
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Outro Lado
CANTORA – Quem é?
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Outro Lado
Ela vê o Gerente.
GERENTE – É um prazer!
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Quatroloscinco
JORGE – O meu.
CANTORA – O nosso.
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Outro Lado
GERENTE – O cassino...
CANTORA – Adoro!
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Quatroloscinco
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Outro Lado
GERENTE sai.
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Quatroloscinco
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Outro Lado
CANTORA – E passa?
GERENTE volta.
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Quatroloscinco
GERENTE – Não.
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Outro Lado
JORGE – Acalmem-se...
GERENTE – O que?
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Outro Lado
GERENTE – O que?!
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JORGE – Você não pode ficar aqui. Escuta, isso não é mais
uma brincadeira. Isso é real!
GERENTE – O quê?
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Quatroloscinco
JORGE – Shhhh....
GERENTE – Tempo?
CANTORA – Quem?
GERENTE – As pessoas.
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Outro Lado
ANDRÉ – Shhhh......
FIM
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Foto de Lz C Frank
Quatroloscinco
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Outro Lado
desafia a girar suas peças até que as faces tenham apenas uma
cor cada, a encenação apresenta situações em que os persona-
gens se reordenam em contextos distintos, aos quais se ade-
quam. Como giros na realidade, essas transições não marcam
tempo nem território definidos: estão no campo das possibi-
lidades, probabilidades, casualidades.
Na maior parte dos planos dramatúrgicos em rotação, fica
explícita a construção ficcional com base na representação de
personagens. Antes que essas ficções se estabeleçam, contudo, os
atores adotam uma postura performativa, posicionando-se como
observadores diante do público que adentra o espaço cênico e ao
qual direcionam diretamente suas falas, num disparo de infor-
mações e comentários sobre guerras, probabilidades de histórias
de vida distintas, matemática e Deus, ressaltando o eixo extrafic-
cional palco-plateia. Desse posto, compartilham as diretrizes que
pautarão suas ações quando se voltarem para o eixo intraficcio-
nal, o da relação entre si como personagens. Com essa estratégia,
forja-se desde o início o apelo à contemplação racional por parte
do espectador, convidado não a aderir sentimentalmente, mas a
se identificar com a postura de observador-analista.
Um segundo plano de ação apresenta a história de um bar
decadente onde os funcionários expõem inseguranças por
uma suposta guerra que ocorreria lá fora. Como em “É Só
uma Formalidade”, cabe à cantora que Rejane representa fa-
zer o elogio à ilusão – e, com ele, à representação e ao traba-
lho do atuante. A visão dela será questionada justamente pelo
personagem de Ítalo, de modo que ecoe o embate que havia
entre seus personagens no espetáculo anterior. Também nesse
sentido “Outro Lado” justifica seu título, problematizando as
perspectivas de olhar e probabilidades de ocorrência de con-
dições específicas de vida. Além disso, fora da diegese, para o
grupo os conceitos em pauta no espetáculo fundamentam a
reelaboração de questões reincidentes em suas criações.
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Polifônico
Humberto Giancristofaro
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Este livro foi composto em
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tora Multifoco e impresso em
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