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é só uma formalidade

outro lado
Quatroloscinco

É só uma formalidade
Outro lado
Assis Benevenuto
Ítalo Laureano
Marcos Coletta
Rejane Faria
Sérgio Andrade

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2014
editora multifoco
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

capa
Alan Brigagão
CriaReal – Denize Barros e Marcelo Gava

diagramação Fernanda Hubacher

É só uma formalidade
Quatroloscinco

autores
Italo Laureano
Rejane Faria
Marcos Coletta
Sérgio Andrade

revisão
Assis Benevenuto
Marcos Coletta

outro lado

autores
Assis Benevenuto
Marcos Coletta

revisão
Assis Benevenuto
Marcos Coletta

1a Edição
Março de 2013

ISBN 978-85-8273-112-3

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro
com fins comerciais sem prévia autorização
do autor e da Editora Multifoco.
Quatroloscinco

Coleção Dramaturgias

Desde sua origem, a revista Questão de Crítica fez ques-


tão de ser um espaço plural, desejosa de manter um diálogo
aberto com o cenário teatral. Começamos no Rio de Janeiro,
onde a maior parte de nossos colaboradores residem, e fomos
discretamente somando textos de outros lugares do Brasil até
alguns do além mar. O selo editorial, com a coleção Mono-
grafias e a coleção Dramaturgias (ainda queremos abrir a co-
leção Traduções) é uma continuação dessa vontade de falar
de teatro. Assim, o plural no nome da coleção, Dramaturgias,
alude à diferentes vozes, linguagens e estéticas que queremos
proporcionar aos leitores: diferentes noções de dramaturgia.
Com a publicação de É só uma formalidade e Outro lado, a prosa
chega em Minas Gerais, alimentando as trocas que vimos tendo
com o Quatroloscinco, ao longo dos nossos anos de existência – o
grupo tem cinco anos, praticamente a mesma idade da Revista -
por isso, resolvemos juntar a fortuna crítica aos textos das peças.
É só uma formalidade, traz à cena o jogo particular do
contrato social e a sua falência nos tempos de hoje. Contudo,
faz isso pelo ponto de vista dos afetos, das pessoas esgotadas
demais para seguir. Um tema que insurge na nossa geração e
que faz soluçar de uma forma poética o “jeito certo” de agir.
Outro lado é uma peça que evoca as infinitas possibilidades
existentes no caos, quando se está diante de algo inevitável.
Tais pontos do trabalho do qrupo Quatroloscinco suscitam
uma busca pela liberdade individual e instantânea, através de
ações que desafiem poeticamente à ordem, revelando o teatro
dos nossos tempos como novamente um lugar de é(sté)tica.

Humberto Giancristofaro
Editor do Selo Questão de Crítica
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Quatroloscinco

Por criar nossa própria arquitetura


“A palavra nativa é percebida como um irmão, como uma
roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na qual habitual-
mente se vive e se respira.”
Mikhail Bakhtin

Todo ator escreve, de uma forma ou de outra. Todo dire-


tor, todos os artistas envolvidos numa criação teatral. Mas
há alguém ou “alguéns” pensando a palavra, a escrita, a lin-
guagem, a grafia da cena. Neste momento do Quatrolos-
cinco, somos nós.
Há em Belo Horizonte, e acreditamos não ser apenas
aqui, um movimento expressivo de grupos de teatro criando
os seus próprios textos, assinando suas próprias dramatur-
gias. É uma forma que estamos buscando de nos colocar no
mundo, de falar daquilo que nos envolve diretamente, de en-
contrar nosso lugar de enunciação. Aprender a dizer a par-
tir de nossos pontos de vista, aprender a escrever, a assumir
esse lugar de escri[a]tores. Assim têm surgido algumas obras
muito interessantes que apontam olhares desafiadores sobre
o ser humano. Por isso falamos em criar nossa arquitetura.
O que é bastante diferente de imitar o modelo dos prédios
em série que ocupam nossas vistas na cidade. Não queremos
revestir-nos com pastilhas de cerâmica 10x10cm porque é
o padrão da nova construção econômica e clean. Dessa for-
ma buscamos também criar nossas estruturas dramatúrgicas
condizentes ou conflitantes com nossos discursos. Nossas
plantas baixas, nossa instalação elétrica, o encanamento,
cada porta e cada janela, cada tijolo, cada infiltração. Se ha-
verá jardim, ou porão, ou uma passagem secreta para o mar.
E começando por uma pequena casa, damos origem à ou-
tra, que cria sua vizinhança e logo a sua própria cidade. Por

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É só uma Formalidade

algumas vezes nos perguntam: por que escrever os próprios


textos? Ou seja, porque ser um dramaturgo? E a reposta é
natural: Porque é preciso. E urgente.
Temos gosto pela palavra e queremos experimentá-la, sa-
boreá-la com nossa própria língua, com as mãos, sem talher.
Queremos correr o risco da escrita, ampliar a criação para
além da cena. O que não significa que estamos fechados para
encenar textos de outros autores. Mas agora estamos aprovei-
tando a liberdade que o Quatroloscinco e o nosso tempo nos
dá de criar nossa própria obra, cientes de que não estamos
anunciando ao mundo qualquer ideia nova, mas propondo um
dizer dialógico e polifônico.
Os textos apresentados neste livro foram vitais experi-
ências em nossa pequena vida de grupo. Foram aponta-
mentos que nos levaram a vários lugares e nos trouxeram
até aqui. Ter os textos publicados para nós é, além de um
desejo antigo, um grande passo, pois se trata de propor ou-
tro viés de comunicação. É só uma formalidade e Outro lado
renascem a partir de uma nova forma de recepção do nosso
pensamento, e com isso uma nova forma de entendimento
desse nosso labor. A palavra passa a não mais depender
da encenação. Ela agora existe mesmo que estejamos em
silêncio e pode entrar em contato com pessoas que talvez
nem tenham assistido aos espetáculos. E pode revelar coi-
sas que, por sua natureza escrita, a cena não consegue dizer.
E pode outras tantas coisas, pois agora é um ser autônomo
em um corpo totalmente novo.
Importante registrar aqui os vetores opostos que levaram
à construção dos textos. É só uma formalidade surge de uma
prática instintiva, coletiva e improvisacional. A inspiração
inicial foi o texto Solo los giles mueren de amor, de Cesar Brie
que, junto a outras influências, serviram como uma espé-
cie de bússola. Enquanto dois atores improvisavam cenas,

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Quatroloscinco

outros dois assistiam e transcreviam tudo o que conseguis-


sem, para então organizar um esboço de texto que era levado
novamente para a cena e novamente reescrito. Este processo
fez com que o texto final só ficasse pronto poucos dias antes
da estreia, sofrendo ainda muitas modificações durante as
primeiras temporadas. Decidimos, portanto, assinar a dra-
maturgia coletivamente, uma vez que todos os atores tive-
ram grande participação na criação do discurso e mesmo
na escolha das palavras. Já Outro Lado foi um texto escrito
antes da cena. Um trabalho de mesa. Durante três meses
tecemos a quatro mãos uma primeira versão da peça, já com
alguma clareza do que seria seu enredo e seu discurso. Ha-
via a tentativa de aprofundar alguns apontamentos iniciados
em É só uma formalidade, mas também o desejo de explorar
novos universos. Com esta primeira versão do texto, fomos
para a cena, e logo encontramos grandes dificuldades em
corporificar aquelas palavras. O texto foi desconstruído e re-
construído diversas vezes pelo grupo e, ainda assim, não en-
contrávamos uma forma justa de incorporá-lo à nossa ideia
de encenação. Quando chegamos ao estado da imobilida-
de, decidimos usá-la a nosso favor, o que fez de Outro Lado
um espetáculo de movimentos mínimos e essenciais, tendo
o texto como a ação principal. Assim como em É só uma
formalidade, a dramaturgia de Outro Lado sofreu grandes
mudanças após a estreia para só depois de quase um ano
acreditarmos ter chegado aonde queríamos. Mesmo origi-
nados de processos inversos, ambos os textos não poderiam
existir sem a participação verdadeiramente coletiva de todos
os integrantes do Quatroloscinco. Talvez seja possível dizer
que nenhuma linha de qualquer um dos textos tenha sido
decidida sem uma discussão enérgica do “como e por que
estamos dizendo isto”. Esta sempre foi nossa maior preocu-
pação: o que queremos falar? Para quem? De que forma? E

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É só uma Formalidade

desta inquietude polifônica, que alimenta o Quatroloscinco,


surgiram as obras apresentadas neste livro.
Estamos felizes! A tímida publicação da dramaturgia
contemporânea brasileira clama por iniciativas como esta do
selo Questão de Crítica, e é muito bom fazer parte disto.
Um rubor vem nascer nas nossas faces, e nos impulsiona
mais e mais a pensar e escrever. A criar. A arquitetar novas
moradas, novos labirintos.

Assis Benevenuto e Marcos Coletta

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É só uma formalidade
Italo Laureano
Marcos Coletta
Rejane Faria
Sérgio Andrade
Quatroloscinco

Um homem recebe a notícia da morte do pai, um outro


escreve uma carta de divórcio. Desejos, memórias, forma-
lidades e as lacunas geradas pelo silêncio, pelas coisas que a
gente não consegue dizer. No ringue das relações humanas,
há sempre o risco de ir a nocaute. A gente pode abandonar
certas coisas. A gente pode inventar. Afinal, a vida não é
bonita o bastante.

PERSONAGENS:

ELE – Ítalo Laureano


ELA – Rejane Faria
HOMEM 01 - Marcos Coletta
HOMEM 02 - Assis Benevenuto / Sérgio Andrade
(1ª temporada)

_______

Esta criação dramatúrgica está atravessada por diversas fontes


pesquisadas durante o processo de criação do espetáculo. Dentre elas,
se destacam “Apenas o fim do mundo”, de Jean-Luc Lagarce e “Solo
los giles mueren de amor”, de Cesar Brie.

“É só uma formalidade” estreou em 03 de setembro de 2009, na


Caixa Clara, Belo Horizonte, Minas Gerais.

Os atores recebem o público na entrada e os cumprimentam. En-


quanto a plateia se acomoda, os atores iniciam o aquecimento.

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É só uma Formalidade

Campainha: Os atores, com luvas de boxe, começam a socar um


saco de pancadas, em treinamento coletivo. Um ator entrega um pe-
daço de papel a um espectador que lê em voz alta os agradecimentos
da noite. HOMEM 01 tira as luvas e vai ao piano enquanto os
outros continuam socando o saco de boxe. HOMEM 01 inicia a mú-
sica “Valsa em Dois”, o aquecimento é finalizado com um abraço.

1ª CAMPAINHA

HOMEM 02
Nesta cena vocês vão ver um homem perdido em suas de-
cisões, alguma coisa de um, de dois, de qualquer um. Dessas
coisas que não se decide nem se abandona, simplesmente age.
O enterro do pai de alguém que...

HOMEM 02 toca a campainha. HOMEM 01 interrompe


o piano, avista um envelope, o lê: uma carta avisa sobre o faleci-
mento de seu pai.

HOMEM 02 (toma a carta de HOMEM 01)


Isso não é importante. Aliás, isso não tem importância ne-
nhuma. Pelo pai, tudo bem. Mas pra enterrar o pai tem que
desenterrar um tanto de gente. Pra que? Bateu uma saudade?
Tarde demais, campeão! Mas não é tão duro assim. Não é tão
pesado... A gente pode abandonar certas coisas. A gente tem
autonomia, a gente pode não ir. Isso aqui está cheio de mofo,
ferrugem, qualquer hora isso vai dar uma doença na gente!
Então vai, vai. Aproveita e veste uma roupa boa. É sério, com-
pra uma roupa nova.

HOMEM 01
Você não vai se arrumar?

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Quatroloscinco

HOMEM 01, agitado, começa a arrumar sua mala, enquan-


to HOMEM 02 fica à vontade, tira suas luvas e dedilha o piano
sem compromisso.

HOMEM 01
O que é que eu faço?!

HOMEM 02
Faz o que você quiser...

HOMEM 01
Ah!

HOMEM 02
Ele queria ser útil.

HOMEM 01
Eu não quero mais nada... Eu desisti de querer alguma coisa.

HOMEM 02
Ele teve uma ideia fantástica, ele queria mudar o mundo.

HOMEM 01
Eu me enganei, eu me enganei... Eu não tive ideia nenhu-
ma, mudar o mundo, que bobagem.

HOMEM 02
Agora ele quer voltar pra casa.

HOMEM 01 se detém. Suspensão. Os dois se encaram.

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É só uma Formalidade

HOMEM 02
O que você está pensando? Vai chegar lá com essa cara? Já ima-
ginou quem vai estar lá? Hein, já imaginou? Então vamos imaginar:
eles estão aqui... (Luz na plateia) E vão falar aquele tanto de boba-
gens. Os mais honestos vão te perguntar o que foi que aconteceu.
Você era um homem tão dedicado que a gente esperava te ver nos
jornais, alguém de opinião, qualquer coisa... Mas nada! Nada...

HOMEM 02 abre os braços em atitude de receber HOMEM


01, que deixa a mala no chão e vai abraçar HOMEM 02 como se
reencontrasse sua família.

HOMEM 02
Você emagreceu! Emagreceu, olha o rosto dele! Olha só o
que te fizeram... Não deve estar comendo direito...

HOMEM 01
Deve ser a barba... É que tem muito tempo que eu não faço
a barba... Eu...

HOMEM 02
(Tira da mala um prato de alumínio e uma espada de brinque-
do. Entrega a espada a HOMEM 01) Você vai chegar lá com
cara de filho pródigo! Ele tirava 10 em tudo, era o herói da
casa! Então, He-man! (Ergue o prato como um espelho) Vamos
lá, campeão, He-man! He-man!!

HOMEM 01
He-Man!!

HOMEM 02
Hum! Eles vão se borrar de medo. Você vai dar de cara
com a sua madrinha, que te deu um tênis 42 quando você
tinha 10 anos. E você foi usar com quantos, 16?
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Quatroloscinco

HOMEM 01
É. E depois de uma semana a sola descolou...

HOMEM 02
A dindinha te ama!

HOMEM 01
Ô...

HOMEM 02
Você devia falar pra ela!

HOMEM 01
O quê?

HOMEM 02
Quando ela chegar com o lencinho e os óculos escuros,
chorando em cima do seu pai, você fala: “o que é isso tia, não
chora, ele nunca gostou de você!”

HOMEM 01
Não! Claro que não...

HOMEM 02
Mas você vai ficar calmo, calmo como aprendeu a ser por
si só. Não foi o pai dele quem ensinou essa forma irritante de
ser calmo em todas as circunstâncias... Não... Você vai chegar
com cara de artista fracassado.

HOMEM 01
E que cara é essa?

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É só uma Formalidade

HOMEM 02
Assim, ao natural! Está ótimo! Perfeito... Olha pra cara de-
les. Olha aqui. Aqui. Eles vão ficar desajeitados, vão esquecer o
morto! O acontecimento do dia é a sua chegada! “Gente, olha
quem veio, faz tanto tempo... Eu achei que esse aí já tinha...”
Mas o que é isso!? Que cara de morte! Seja mais amável... É a
sua família! Eles vão te pedir pra tocar! Você toca. Toca!

HOMEM 01
Tocar? Não, eu não vou tocar... Não lembro mais. Eu
esqueci tudo...

HOMEM 02
Aquela musiquinha que você fez. Que a sua mãe pedia pra você
tocar no natal. Aquela bonitinha... Toca por favor! Toca, Toca...

HOMEM 01
Eu não vou tocar nada não!

HOMEM 02
Só porque não ia dar pra levar o piano... (Ele guarda o prato
e a espada de plástico na mala e retira dela dois fantoches de pano)
Mas dá pra levar os fantoches! Vai fazer um teatrinho pra eles!

HOMEM 01
Guarda isso lá! Guarda isso...

HOMEM 02
Ele é super talentoso! Toca piano, faz teatro... É o artista da
família! Ele só não decolou... Sabe, ele não decolou... Mas se
tivesse tido uma “chancezinha” assim, tinha ido longe! Ilumi-
nador! Joga uma luz nele! (Um foco de luz cai sobre HOMEM
01, que fica exposto no meio da cena) Eles vão rir de você o ano

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Quatroloscinco

todo, mas não importa. Conta pra eles o que você fez esse
tempo todo. Conta pra eles o que você sente.

HOMEM 02 tira da mala um tijolo, coloca no chão para que


HOMEM 01 suba, se expondo ainda mais.

HOMEM 01
É que...

2ª CAMPAINHA

HOMEM 01 sai de cena. ELA entra e recoloca o tijolo na


mala. Pega um envelope fechado que estava em cima das caixas.
Segura-o fechado.

ELA
Ainda bem que você chegou, você está quarenta e três
minutos atrasado, achei que você ia ligar do escritório pra avi-
sar que ia demorar, na verdade eu ia te ligar agora pra saber...
(Ensaia este texto inúmeras vezes)

ELE
Hoje eu acordei, tomei café... Aí eu fui pro trabalho. De-
pois eu almocei com o Ricardo, o Ricardinho do futebol...
Depois eu passei no cartório, pra assinar aquele documento
que a gente ficou de... Na volta eu postei essa carta... é uma
carta de divórcio... Nela eu falo sobre tudo. Amor, praia, mar,
champanhe... Eu poderia simplesmente dizer que acabou,
mas ela não... Entende? A carta. Eu mandei a carta em meu
nome, porque ela sempre abre as minhas cartas. Sempre. Daí
é batata. Vai ser difícil, a gente está de mudança... a gente está
de mudança, de novo... Vai ser difícil...

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É só uma Formalidade

ELE vê a mala no chão. Pega-a e sai. Antes de desaparecer


completamente, ELA o surpreende.

ELA
Ainda bem que você chegou, você está quarenta minutos
atrasado, achei que você ia ligar do escritório pra avisar que ia
demorar, na verdade eu ia te ligar agora pra saber...

ELE
Oi.

ELA
Ei.

ELE
Eu me atrasei, porque eu...

ELA
Não tem problema, o que importa é que você tá aqui... o
que é isso?

ELE
Nada. Não é nada.

ELA
Ah! Nada? (Ri) e como é que foi seu dia? Me conta...

ELE
Ah, foi igual... Quer dizer, quase igual.

ELA
E o que deixou ele quase igual?

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Quatroloscinco

ELE
Tinha um menino. Na rua. Com a carinha pintada de
azul... No sinal, pedindo uma moeda..

ELA
Ah! Menino, carinha azul? Você deve estar cansado, por
que você não toma um banho? Eu vou pegar uma toalha.

ELE cai pela primeira vez. ELA o ajuda a se levantar naturalmente.

ELE
Que cheiro é esse?

ELA
É perfume, achei que você não ia notar... Um perfume novo
que comprei na mão da Lili...

ELE assopra o rosto dela. ELA se cala.

ELE
Não. Estou falando desse cheiro de... cigarro.

ELA
Cigarro? Deve ser sua camisa! A Neusinha me disse que
tem um spray que quando a gente joga na roupa com cheiro
de cigarro, o cheiro sai logo.

ELE
O que essa mala estava fazendo aqui no centro quando
eu entrei?

ELA
Ai meu Deus, que cabeça a minha... Eu estava tirando
umas coisas dela e acabei esquecendo ela aqui...
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É só uma Formalidade

ELE
Não... Deixa... Deixa aí.

ELA
Aqui?

ELE
É... está bonito...

ELA
Aqui, bonito, no meio da sala, atrapalhando a passagem?
Só mesmo você pra achar isto bonito... Senta, vou te fazer
uma massagem!

ELE
Não precisa...

ELA
Enquanto eu faço você me conta como foi seu dia, eu que-
ro saber detalhes!

ELE
Me conta o seu.

ELA
Eu pedi primeiro

ELE
Eu acordei.

ELA
Nós acordamos...

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Quatroloscinco

ELE
Tomei café.

ELA
Tomamos café...

ELE
Aí eu fui pro trabalho.

ELA
Ai você foi pro trabalho...

ELE
Hoje eu almocei com o Ricardinho, do futebol.

ELA
Ricardinho?! Que delícia! Han!?

ELE
Na volta eu passei no cartório. E assinei aquele documento
que a gente tinha ficado de...

ELA
O financiamento eu aposto que você não olhou.

ELE
É... Aí na volta eu resolvi...

ELA
Você veio a pé?

ELE
Não é tão longe ass...

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É só uma Formalidade

ELA
É! Não é!

ELE
No caminho eu vi uma coi...

ELA
Que coisa?

ELE
Uma criança... Carinha pintada de azul. No sinal. Ela esta-
va sozinha. No meio da rua.

ELA
Ah criança!... Adoro criança, aonde na rua? Sozinha? Ah!
Criança na rua... Sozinha... Ah não devia estar sozinha de
verdade... A mãe dela devia estar por pert...

ELE
Não tinha mãe nenhuma por perto!

ELA
Seu pé mudou.

3ª CAMPAINHA

ELE e ELA saem de cena. HOMEM 01 retorna, sobe em seu


tijolo, pega seus fantoches. Encara a plateia.

HOMEM 01 (Para a plateia como que para a família)


É que eu sumi... Quis viajar... Conhecer o mundo num
grande bater de asas imbecil! Acreditei numa causa! Quis

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Quatroloscinco

construir escolinhas, casinhas pros pobres! Teatro político


com fantoches! Essas babaquices todas... Me identifiquei com
a pobreza e acabei ficando pobre, olha só! Levantei cartaz,
quebrei vidraça, corri da polícia, fui preso uma três vezes, spray
de pimenta no olho, eu errei! Errei... Eu fugi, menti, ri de mim
mesmo... Mas eu gosto... Eu gosto de parecer este rapaz frágil
que definha e que faz poses. Eu sou um estrangeiro. Eu não
sou de lugar nenhum. Eu me adapto as circunstâncias! E ago-
ra? Alguém vai me reprovar? Quem vai me condenar? Ein? É
você? Você? Você, mãe?! Deus! Ah, é Deus! Não é nada pes-
soal não, não é nada pessoal, mas eu não acredito nesse Deus
de vocês. Esse Deus com letra maiúscula! Um velhinho mau,
sentado atrás de um balcão, que mais parece um gerente de
supermercado!! Porque pra esse deus tudo é lei, tudo é dever,
juros, lucro, culpa! Não! Não!! E tirem esse padre daqui!!

HOMEM 02
É um pastor, manda sair!

HOMEM 01
Tirem esse cara daqui! O papai não ia querer esse cara
aqui, não!!

HOMEM 02
He-man!! Isso é que é teatro, meu filho, não aquilo que
você fazia. E não era uma questão de se sentir indispensá-
vel, era só de viver com a própria consciência. Você viu que
o mundo era uma merda e queria tirar a merda do planeta.
Mas eu tenho uma notícia boa pra você. Não foi você quem
inventou a bandalheira não, ela já existia. Mas você tinha que
ir pelo lado mais difícil... Acreditou numa causa e foi atrás
dela sozinho, no escuro, porque as outras pessoas ficaram ocu-
padas demais. Elas foram criar filhos, status, família, barriga!

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É só uma Formalidade

Mas você foi muito bem. Você manteve a dignidade, e isso já


é alguma coisa. Vai abaixar a cabeça agora, campeão?

HOMEM 01 – Ninguém vai abaixar a cabeça aqui, não...

HOMEM 02 – Não? E como é que vai ser?

HOMEM 01 – Eu quero todo mundo de cabeça erguida.


Sem choro, sem véu, sem óculos escuros. Tem alguém triste
aqui? Tem alguém morto aqui? Quem foi que encomendou
essas flores horrorosas? Foi você? A propósito, você sabe quem
eu sou? O fugido, o foragido. O pródigo ao contrário! Eu vol-
tei e agora eu quero a minha festa!

HOMEM 02 – Quem é o herói aqui?

HOMEM 01 – Eu!

HOMEM 02 – Quem é que sempre se levanta?

HOMEM 01 – Eu!

HOMEM 02 – Quem é que passa por cima de tudo?

HOMEM 01 – Eu! Quem é que ficava horas em cima do


telhado, quem é que desregulava os relógios da casa, quem é
que enterrava passarinho no quintal!

HOMEM 02 imobiliza HOMEM 01 com um forte abraço.

HOMEM 02 – Tem alguém morto aqui?

HOMEM 01 – Pai. Levanta daí, pai. Vamos comemorar!


Vamos comemorar porque eu voltei! Eu estou vivo! Muito
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Quatroloscinco

vivo. Por essa ninguém esperava. Acharam que eu estava por


aí caído, perdido, pedindo esmola na porta da padaria... Não...
Eu decolei! E vi todo mundo de cima. Vi todo mundo do alto.
Eu não tirei os olhos de ninguém. Eu quis te escrever, mãe...
Contar das coisas que acontecem no mundo, de lugares que
existem e você nem sabe o nome, da sensação de ver alguém
morrendo de fome na sua frente e não poder fazer nada, da
vontade de cuspir na cara de alguém, de tanta coisa... Mas eu
falei pra você que eu ia até o fim, não falei? E eu fui. E con-
quistei tudo o que eu quis...

HOMEM 02 – Conquistou? Conquistou mesmo? A gen-


te estava indo tão bem, campeão... Iluminador, joga uma luz
nela!

Um foco de luz ressalta Mariana, uma mulher da plateia. HO-


MEM 01 e HOMEM 02 vão até ela, devagar.

HOMEM 02
Pega na mão dela.

HOMEM 01
O quê?

HOMEM 02
Pega na mão dela!

HOMEM 01 tenta dar as mãos à Mariana, mas ele está ves-


tido com os fantoches.

HOMEM 02
Foi se apaixonar pela única mulher que não te amava... Só
os babacas morrem de amor, e você era um deles! Ia aos lugares

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É só uma Formalidade

em que ela estava e fingia que era coincidência encontrá-la.


Mas você não tinha coragem de falar uma palavra com ela.

HOMEM 01
É...que.. Voc... Sab... Lá n... Quê.. Aah.. Ê...

HOMEM 02
Ela te olhava com simpatia, claro. Mas a mesma simpatia
que se tem pelo cachorro do vizinho. Aquele Pinscher... E
você, infeliz, interpretava cada olhar, cada sorriso... Até que
um péssimo dia você resolver contar tudo pra ela.

Homem 02 vai ao piano.

HOMEM 01
Mariana! Eu só tenho olhos para a senhorita. Ontem, você
estava com aquela blusa vermelha... Antes de ontem, com
aquela sua calça jeans surrada. E na terça, dia dez do mês pas-
sado, você foi à boate com um vestido verde e um sapato mar-
rom, tão linda que eu fiquei sem ar só de vê-la. Mariana, eu te
amo há mais de um ano. Nunca te disse nada porque pensei
que fosse comprometida, mas agora eu sei que não é. Quer
dizer, você é? Olha, se quiser, eu pinto a parede da sua casa,
conserto o portão da sua garagem, te levo pra fazer um pique-
nique, te faço um filho! Não... Não! Eu te pago uma cerveja!

HOMEM 02
Isso, cerveja! Investe na cerveja!

HOMEM 01
Mariana, não importa, só quero que você saiba que o amor...
É sublime! E que eu te amo casto como uma criança. Te amo
como um aluno ama sua professora! E é um amor tão sublime

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Quatroloscinco

e tão casto que nunca consegui bater uma punheta pensando


na senhorita! Não! Não!! É que eu fui um cara que sempre..
Não, Mariana...É que você é muito pura! Pura pra ser pensada
debaixo ou em cima de mim. Pra ser pensada na minha cama.
Nua. Em cima de... Não... É que você não cabe lá! Não! Não
que você seja gorda! É que... Eu só queria dizer que... Eu... Não!
Não é nada disso! Eu sou um louco, Mariana! Sou um louco!

4ª CAMPAINHA

HOMEM 01 e HOMEM 02 saem.

ELE
Meu pé?

ELA
Mudou, mudou muito... Eu vou pegar umas fotos da praia
pra você ver o tanto que mudou... Eu estava até querendo en-
contrar aquelas fotos grandes, mas eu não tenho ideia de onde
é que está, você podia me ajudar a encontrar, aproveita e tira
estas caixas do meio da sala, eu quero o centro vazio...Isso, isso
mesmo, aí está ótimo, cuidado com esta, ótimo...

ELE
Por acaso, você não recebeu uma...

ELA
Olha só o que chegou pra você, interessante não tem reme-
tente e é registrada...

ELE
Ela não leu.

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É só uma Formalidade

ELA
Abre... Você não vai abrir?

ELE
Eu abro depois.

ELA
Deve ser alguma coisa importante, a carta é registrada.

ELE
Quando eu estiver sozinho!

ELA
Mas eu passei a tarde inteira curiosa, querendo saber o que
tem nesta car...

ELE assopra o rosto dela. ELA se cala.

ELE
Você está muito curiosa! Muito curiosa! Devia ter arruma-
do essas caixas. Colocado no lugar... Essa caixa amarela! Eu
não sei porque a gente carrega essa caixa amarela toda vez que
a gente muda. Isso aí está cheio de mofo.

ELA
Lembranças

ELE
Mofo.

ELA
Coisas da nossa vida.

30
Quatroloscinco

ELE
Ferrugem.

ELA
Coisas da nossa vida.

ELE
Qualquer hora isso vai dar uma doença na gente.

ELA
Doença coisa nenhuma, toda vez que eu pego esta caixa eu
limpo, e aproveito pra rever coisas, eu acho até que vou colocar
estas fotos aqui...

ELA retira da caixa amarela alguns porta-retratos com fotos


dos casamentos da família.

ELE
Quatrocentos e cinquenta reais.

ELA
O que é que tem?

ELE
Quatrocentos e cinquenta reais pra carregar uma coisa que
a gente nem usa!

ELA
O presente da tia Soninha não é um móvel qualquer... É
um piano!

31
É só uma Formalidade

ELE
Claro que não é um móvel qualquer. Ainda mais porque
não é um móvel, é um instrumento musical. Sua tia tinha que
ter dado isso pra alguém que sabe tocar.

ELA
Ela deu pra mim, eu vou cuidar... Tem valor sentimental,
lembranças...

ELE
Valor sentimental de piano é música. E lembrança tá
aqui...

ELA
Lembrança tá aqui... Esta é a foto que eu mais gosto! Ca-
samento bonito...

ELE
Ele oprime ela.

ELA
O quê?

ELE
Ele oprime ela. Olha essa mão dele apertando o braço dela.

ELA
(Segura um dos retratos que mostra seu pai e sua mãe de mãos
dadas no casamento) Não, não tem nada disto, ele tinha mãos
macias, foram 22 anos de um casamento feliz comemorando
todo dia 14 de maio com festinha, tirando e colocando aliança
como se fosse a primeira vez... Isto é lindo... É lindo...

32
Quatroloscinco

ELE
Tirando e colocando aliança como se fosse a primeira vez...
Isto é lindo...lindo... Deixa a mala no centro.

ELA
Não. Eu quero o centro vazio.

ELE
Borroscado.

ELA
O que? Onde?

ELE
Ali. Está tudo borroscado!

ELA
Ah! Foi o cara...

ELE
Eu te falei! Eu te falei que não era para pegar aquele orça-
mento, estava na metade do preço, não podia ser coisa boa...
Olha ali aquela quina, não tem recorte...

ELA
Estava na metade do preço, você me disse pra adotar a po-
lítica da economia, eu adotei...

ELE
OK! OK... Tudo bem... Então vamos adotar a política do
custo beneficio. Tem coisa que vale tanto, e tem coisa que
vale... tanto.

33
É só uma Formalidade

ELA
Você viu minha correntinha?

ELE
Não. Vamos adotar a política de entender as coisas.

ELA
Achei!

ELE
Parabéns...

ELA
Vai tomar seu banho, vai...

ELE
Que cheiro é esse?

ELE cai pela segunda vez. ELA o ajuda a se levantar.

ELA
Cigarro de novo?

ELE
Não. Um cheiro de... Bo...

ELA
Bolo!

ELE
Deve ser a vizinh...

34
Quatroloscinco

ELA
Não. Eu.

ELE
Você está fazend...

ELA
Estou... Aqui em casa.

ELE
Mas eu ainda nem inst...

ELA
Eu pedi o vizinho de frente pra instalar pra mim.

ELE
Nossa, mas que desespero... Não podia esp...

ELA
É desesperada... Não podia esperar até sábado...

ELE
Mas ele fez o serv...

ELA
Sim, sim fez sim.

ELE
Não deixou nada borroscado assim...

ELA
Não, não, eu achei ele muito caprichoso, ele é pintor.
E é gringo.

35
É só uma Formalidade

ELE
Ah, ele é pintor! Então ele deve ter ficado puto quando viu
essas paredes.

ELA
Não, ele é pintor de quadros! Ele pinta umas coisas, faz
umas esculturas, ele é artista plástico...

ELE
Ah... Ele é artista? De onde?

ELA
Acho que da Argentina, porque ele tem o sotaque muito
carregado, aí eu falei de você pra ele, que você ia adorar conhe-
cê-lo, que você fala muito bem o espanhol, do seu sonho de
conhecer toda a América Latina. Assim, uma espécie de Che!

ELE
Você falou isso pra ele?

ELA
Falei.

ELE
Não, a gente não fala essas coisas do íntimo da vida da
gente para um estranho.

ELA
Não é um estranho, ele é nosso vizinho de porta!

ELE
Estranho! Um exilado! Um foragido! Criminoso que pode
querer sequestrar a gen...

36
Quatroloscinco

ELA assopra o rosto dele. ELE se cala.

ELA
Não tem nada disso.. Vai tomar seu banho. Aproveita
e passa aquele perfume que eu gosto, aquele que eu te dei
de presente.

ELE
Passar perfume pra quê? Pra dormir?

ELA
Dormir? Ah, dormir... Bem, é que eu achei que antes da
gente dormir, a gente fosse tomar alguma coisa... Comer um
pedaço de bolo...

ELE
Ah! É tipo uma comemoração.

ELA
É uma comemoração.

ELE
Eu não entendo...

ELA
O quê você não entende?

ELE
Eu não entendo como você consegue ocupar seu tempo
com essas coisas. A gente aqui tentando colocar as coisas no
lugar, tentando colocar a vida no lugar, e você pensando em
fazer bolo. Ou a gente coloca a vida no lugar ou a gente faz
bolo. Não dá pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

37
É só uma Formalidade

ELA
Você sabe que eu não gosto de comemorar as coisas fora
da data, você sabe disso, comemoração pra mim tem que ser
na data certa.

ELE
Data certa de quê?

ELA
O quê?

ELE
É... Porque o meu aniversário já... O seu ainda nem... A
não ser que agora você resolver comemorar a... mudança.

ELA
Você está brincando, né? Você está brincando comigo. É
isso? Olha pra mim e fala: “eu estou brincando”.

Suspensão.

ELE
Eu não lembrei... A secretária... Ela ficou de me...

ELA assopra o rosto dele. ELE se cala. Silêncio. Eles se distan-


ciam. Projeção do abraço imaginário.

ELA
Que carta é esta afinal?

ELE
É uma carta de div...

38
Quatroloscinco

ELA
Não. Tudo bem. Tudo bem, não aconteceu nada, a gente
não vai estragar a nossa noite por causa de uma bobagem sua,
não, não é tão difícil assim, não é tão duro, não é tão pesado...

ELE vai ao saco de boxe. Soca-o. O saco gira sozinho em seu entorno.

ELA
É simples, é só eu ficar feliz, é só eu ficar feliz como eu
aprendi a ficar por mim mesma... Esta habilidade de ser feliz
em todas as circunstâncias, feliz e digna, muito digna. Vai to-
mar seu banho! Aí a gente come o bolo!

ELE
Você vai mesmo deixar essas fotos aí?

ELA
Vou, por quê?

ELE
Não, nada. É que eu me sinto um pouco pressionado.

ELA
Ah! Que bobagem, eu adoro essas fotos, adoro! Elas nun-
ca mentem, ao contrário da gente... E dos vídeos! Que são
longos demais pra serem verdadeiros. As fotos. Elas nunca
mentem... Eu já te contei a história da minha bisavó?

ELE
(Se aproxima da plateia e dialoga com a público)
Ih... Começou... Começou. Ela sempre me faz essa per-
gunta, eu respondo que sim e ela continua, daí eu deixo!
Aquela história? Da máquina fotográfica? Da fumaça? Ah,

39
É só uma Formalidade

sei! Mas na verdade essa história não aconteceu com ela. Não.
Isso é a história de um filme que a gente viu um dia desses...
Essa mania que ela tem de misturar a realidade com a ficção.
É porque a vida não é bonita o bastante! Daí a gente o que
a gente faz? Cria... É de família, a mãe dela já... A avó falava
que quando você pisa na agulha, a agulha caminha, caminha,
caminha e fura o coração! Vê se pode? A vida não é bonita o
bastante. Quer ver?!

ELA conta em voz baixa a história da bisavó, entretida com o


álbum de fotografias da família, alheia ao que ELE diz e faz.

ELE
Ela tem um primo. O Gabriel... Gabriel, o seu primo?

ELA
É! Gabriel!

ELE
Morava o Gabriel, a mãe e o pai numa casa de três cô-
modos. Não era bem uma casa, era um barracão. Moravam
os três ali. Até que um dia eles brigaram, numa confusão
tremenda, discutiram tanto que pararam de conversar. Sete
anos se passaram e eles não se falavam mais. Até que um
dia Deus, o gerente de supermercado, derrubou o telhado da
casa com uma chuva enorme, a água começou a subir... su-
bir... E tiveram de dormir os três em cima de um hack. Sem
boa noite. Até que um dia, morreu! Quem? O pai do Ga-
briel morreu. Daí a gente foi no velório, estava todo mundo
de preto, aquela coisa toda, alguns chorando... Mas tinham
duas pessoas que choravam mais, duas pessoas! Quem? O
Gabriel e a mãe... Por que? Porque a vida não é bonita o

40
Quatroloscinco

bastante, daí a gente... Cria! Pede ela pra te contar essa his-
tória! Pede! Ficção! Quer ver? Ficção!

ELE pega uma caixa de papelão vazia e coloca na cabeça dela,


tapando a sua visão.

ELA
O quê é isso?

ELE
Han!

ELA
Surpresa?

ELE
Ficção! Estão vendo? Ficção!

ELA
Ah! Eu achei que você tinha esquecido! Como é que eu pude
pensar... Ah, meu Deus! Eu achei que... O que é? Onde está?
Pode tirar? Estou ficando sem ar! Você está me sufocando...

ELE
Ficção! Vem aqui... Isso. Olha o degrau. Ela acredita! Fic-
ção! Você dá isso aqui e ela vai... Ficção! Isso, fica parada aí.
(Conversa com o público) Você quer ver uma coisa? Olha isso...

ELE convida alguém da plateia a trocar de lugar com ele. O


espectador se senta no banco do piano, enquanto ELE se senta na
cadeira do espectador.

41
É só uma Formalidade

ELE
Você vai ver que ela não percebe... entende? Você não pre-
cisa fazer nada. Pode ficar à vontade. Você vai quer que ela...
Olha só!

ELA
Pode tirar?

ELE
Pode tirar...

ELA
Pode abrir?

ELE
Pode abrir...

ELA
Pode virar?

ELE
E pode virar...

ELA (ELA se depara com o convidado da plateia, mas ignora


que seja uma outra pessoa, o tratando como se fosse ELE)
Eu achei que você tinha esquecido! Me diz! Onde está? É
algo pequeno? Onde está? Nas caixas? Está nas caixas! Mas
são tantas caixas! (Ela procura pelo presente e continua a fazer
perguntas) Está quente? Frio? Já sei! Está na mala! É por isso
que você não queria que eu a tirasse do centro!

ELE
Na mala é demais. Ela sabe que não tem nada lá. Os outros ato-
res já abriram essa mala. Muito obrigado. Pode voltar pro seu lugar.
42
Quatroloscinco

ELE destroca de lugar com a pessoa da plateia.

ELA
Se não estiver aqui você vai ver, ein! (Procura na mala) Cadê?

ELE
Cadê o quê?

ELA
Eu não estou vendo nada...

ELE
Nada? Nada... É porque não tem nada... Não tem nada nessa
mala, nessas caixas, não tem nada! Essa mania... Essa mania!

5ª CAMPAINHA

ELA e ELE saem. HOMEM 01 entra desorientado assim


como havia saído. HOMEM 02 volta para o piano.

HOMEM 01
Eu sou um louco, Mariana! Eu sou um louco! Um louco...

HOMEM 02
Como Deus pode permitir que se ame tanto alguém e só
receba indiferença, desprezo! Ela devia ter entendido que pra
você era sublime, era puro. Porque quando se ama assim tudo
é puro. Passear de mãos dadas pela praça, enfiar o dedo até o
fundo do cu dela... Chamar pra tomar uma cerveja... Quando
se ama assim tudo é sagrado...

HOMEM 01 tira da mala o prato de alumínio, se olha atra-


vés dele, como um espelho. HOMEM 02 sai do piano, entrega a
43
É só uma Formalidade

HOMEM 01 o álbum de fotografias da família. Eles se sentam


lado a lado no chão.

HOMEM 02
Mudar o mundo... Cara babaca. Devia ter começado ves-
tindo roupas melhores.

ELES riem.

HOMEM 01 (Arrumando a mala)


Se ela tivesse te amado, você teria continuado com sua luta,
com seus fantoches, com sua solidariedade... Se ela tivesse te
amado você teria suprido, pelo menos com amor, o abandono
dos outros... Mas você foi amar tanto, tudo, que acabou sozinho
como um cachorro! (Seu riso se esvai aos poucos) Cachorro...

HOMEM 01 tira um cigarro da mala. Entrega a HOMEM


02, que o acende. Eles fumam juntos, compartilhando o cigarro.
Pensamentos e lembranças povoam os seus olhos. Algumas risadas,
pequenos suspiros. Nenhuma palavra. Em certo momento, HO-
MEM 01 percebe o acúmulo de cinza na ponta do cigarro. Inicia-
se o desafio silencioso de fumar sem deixar a cinza cair. Quando a
cinza acumulada chega ao seu máximo eles depositam o cigarro de
pé em cima do prato de alumínio. Deitam-se para frente, obser-
vando a cinza que ainda queima.

HOMEM 02
Lembra daquele dia? Que você queria dizer pra ele que
ele tinha sido importante, que tinha te ensinado a respeitar
os outros, a não passar por cima de ninguém... Que não podia
ter sonhado um pai melhor, mas você acabou dizendo pra ele
uma babaquice do tipo: “Pai, se você morrer não importa!” E
saiu correndo pra chorar escondido...

44
Quatroloscinco

HOMEM 01 (rindo)
Que babaca!

6ª CAMPAINHA

ELA e ELE entram em cena. Desta vez, HOMEM 01 e HO-


MEM 02 não saem. As cenas se desenvolvem simultaneamente.

ELA
Lembra daquele dia?

ELE
Que dia?

ELA
Do dia que a gente se casou... Não teve nada, não teve festa,
não teve igreja... Lembra? A gente cismou que era descolado...
Que igreja era uma bobagem, uma forma de alienação... Sei lá!

ELE (rindo)
Sabe de quem eu me lembro? Da tia Petrúcia! Eu me lem-
bro daquele tanto de gente desconhecida, pipocando por to-
dos os lados, gente saindo pelo “ladrão”!

ELA (rindo)
Esta frase é da minha mãe!

HOMEM 01
E aquela vez! Que ele quis dar uma aula de educação
sexual! Chegou todo sério no quarto... Disse assim: “Filho, a
gente precisa ter uma conversa séria. Aquilo que você chama
de pau, de...”

45
É só uma Formalidade

HOMEM 02
De vara!

HOMEM 01
“Aquilo é pênis, filho! E aquilo que você deve chamar por
aí de xoxota, de...”

HOMEM 02 (rindo)
Xonga!

HOMEM 01 (rindo)
“Aquilo é vagina!”

ELA
A gente não teve nem aliança

ELE
Bobagem. A gente tinha coragem. Aliança a gente perde
na rua.

ELA
Coragem também...

Todos interrompem suas risadas.

HOMEM 01
Engraçado, não é?

Silêncio.

HOMEM 02
A música... Como era mesmo a música?

46
Quatroloscinco

HOMEM 02 vai para o piano e dedilha os primeiros acordes


de “Valsa em Dois”. HOMEM 01 se levanta, olha para a mala e
o cigarro que ainda queima. A mala representa o caixão do pai.
Ele deixa a carta sobre a mala e vai até o piano. Os dois passam a
tocar a quatro mãos a música que adquire um ritmo cada vez mais
animado. Ao mesmo tempo, ocorre uma projeção com momentos
reais dos atores quando crianças.

ELE
O que você está procurando?

ELA
A fita do nosso casamento.

ELE
Mas foi você mesmo quem disse que prefere as fotos. Que
os vídeos são longos demais...

ELA
Não, as fotos são muito paradas, muito silenciosas, agora
quero ver o vídeo, quero vida, quero ver gente andando, quero
ouvir a nossa voz. Achei. Aqui está. Vem!

ELE
Não, eu não sei se eu...

ELA
Anda, vem!

ELE
Você tem certeza?

47
É só uma Formalidade

ELA
Olha só! O meu vestido! Como é mesmo o tecido? Isto! Tafe-
tá! Como é que era o bombom que você falava? Olha lá, a tia! Ih,
aquela outra dona que caiu no meio da sala! Você lembra disso?

ELES se divertem vendo o vídeo. Comentam divertidamente


até que a projeção começa a mostrar cenas reais do casamento do
ator que interpreta ELE.

ELE
Olha. Essa parte é chata. Tira.

ELA
Eu vou tirar... Mas antes, olha. Eu não mudei nada, já você...

ELE
Que cheiro é esse...

ELE cai pela terceira vez. Mas, desta vez, ELA não o ajuda
a se levantar.

ELA
Bolo! Ah meu Deus! O bolo! (Ela corre até a mala e retira o
tijolo) Que pena, queimou um pouco... mas foi só a beirada...

HOMEM 02 se levanta do piano, pega as luvas de boxe e as


lança sobre ELE.

HOMEM 02
Levanta. Levanta, campeão... (Sai)

HOMEM 01 para de tocar o piano, se volta para a cena e se


levanta junto com ELE. Os dois saem de cena. ELA fica sozinha,
enquanto os três atores a observam de fora da cena.
48
Quatroloscinco

ELA
Ah! O nosso bolo. Vamos comer agora! Não, antes vamos
fazer um brinde, um brinde é importante, vamos comemorar!
Aqui está. (Retira de uma das caixas uma garrafa de champanhe
vazia. Finge estourar e beber.) O nosso champanhe! Ah! Que
delícia. Adoro este champanhe, adoro, ele tem um “docinho”...
Eu já te contei a história do meu pai? (Para o público) Quan-
do ele perdeu a aliança, contei? Não? É verdade, ele perdeu...
Sabe o que ele fez? Ele desapareceu... Ele ficou uma semana
sem aparecer em casa, uma semana... Mas no final deu tudo
certo, ele encontrou a aliança no fundo do bolso de um pale-
tó... Já imaginou... Um marido desaparecer porque não tinha
aliança! Marido. Desaparecer. Ah! Adoro este champanhe...
Tem assim, um “amarguinho”. O bolo, ah, o bolo! Que lindo!
Lindo! Se tem uma coisa que eu nunca erro é este bolo... Eu
não erro nunca. Quando sua mãe me ensinou a fazer este bolo,
ela me fez prometer que eu faria em todo aniversário de casa-
mento, está aí... Eu vou pegar. (Vai até as caixas e pega uma es-
pátula) Ela me deu a receita... Três xícaras de farinha de trigo,
duas xícaras de açúcar, uma xícara de maisena, uma colher de
pó Royal, uma colher de manteiga, seis ovos. Você bate o ovo
com manteiga e o açúcar até virar um creme. (Não consegue
partir o tijolo com a espátula) Eu vou pegar. (Vai até as caixas
e pega um martelo de bater carne) Depois você vem colocando
o resto dos ingredientes, e bate, bate, aí você coloca tudo isto
numa forma untada e esfarinhada...

HOMEM 02, de fora da cena, dá instruções para que ELA comece


a bater o martelo no tijolo, como se fosse um treino de boxe. “Direita,
esquerda, direita, jab, cruzado...” Quando HOMEM 02 para de dar
os comandos, ELA continua sozinha até esfarelar todo o tijolo.

49
É só uma Formalidade

ELA
Depois leva pro forno pré-aquecido e deixa ficar por 45
minutos, aí você vai fazer a calda, coloca três xícaras de açúcar
numa panela bem quente e deixa derreter, aí você vem com as
maças, são oito maçãs vermelhas fatiadas na vertical, e você
deixa cozinhar, virar um melado! É isto que você vai colocar
dentro do seu bolo!

7ª CAMPAINHA

HOMEM 02 bate a campainha. ELA para de destruir o ti-


jolo. Foco de luz sobre ELA, destacando a poeira do tijolo que a
envolve. Silêncio.

ELA
Me dá uma água...

Todos os atores entram em cena. Cantam “Hacia adentro, ha-


cia afuera”. O espaço vai sendo desmontado pelos atores. A luz de
serviço acende. Atores podem conversar com o público enquanto
limpam a área de cena. A ficção se dilui até deixar de existir.

50
Quatroloscinco

Canção “Hacia adentro, hacia afuera”¹

“Éxito, fracaso, qué palabras de mierda.


Se trataba de hacerte comprender,
de remar con el público en el río de la vida.
Los poetas viajan hacia dentro,
pero los titiriteros, los saltimbanquis, los actores,
cuando son buenos, viajan al mismo tiempo
hacia adentro y hacia afuera.”

FIM
*****

¹Música composta por Sérgio Andrade. Letra: Trecho de “Solos los giles mueren de
amor”, de Cesar Brie.

51
É só uma Formalidade

É só uma formalidade – Ficha Técnica


Drama Cômico/55 min./Classificação: 12 anos

Direção e Dramaturgia: Ítalo Laureano, Marcos Coletta,


Rejane Faria e Sérgio Andrade.

Atuação: Assis Benevenuto, Ítalo Laureano, Marcos Co-


letta, Rejane Faria e Sérgio Nicácio (1ª temporada).

Trabalho Vocal e Corporal: O grupo.

Produção: Maria Mourão.

Figurinos: Carloman Bonfim.

Cenografia e concepção visual: O grupo.

Criação de Iluminação: Marina Arthuzzi.

Trilha Sonora Original: Sérgio Andrade.

Música “Valsa em dois”: Sérgio Andrade e Luiz Rocha.

Projeto Gráfico: Marcos Coletta.

Vídeos: Lumiart

Realização: Quatroloscinco - Teatro do Comum

52
Foto de Nubia Abe
Quatroloscinco

Porque a vida não é bonita o bastante


Luciana Eastwood Romagnolli

Crítica do espetáculo É Só uma Formalidade, do grupo mineiro


Quatroloscinco –Teatro do comum, publicada na Revista Questão
de Crítica, edição de setembro de 2010.

Em É Só Uma Formalidade, seu espetáculo de estreia, o


grupo mineiro Quatroloscinco Teatro do Comum escolheu
tratar da ilusão, tema dos mais pertinentes à arte teatral. Se a
vida não é bonita o bastante, como diz um dos quatro atores
em cena, resta criar.
Interessados nos fracassos da trajetória humana e nas espe-
ranças que se esvaem, os atores-criadores armam o espetáculo,
porém, sem sucumbir simplesmente ao retrato do feio ou do
sombrio. Se questionam a ficcionalização ilusória da realidade,
há neles sobretudo uma crença na criação artística, que se ex-
pressa em uma dramaturgia irônica e pessimista, mas, ao mes-
mo tempo, em relações afetuosas entre os atuantes e destes com
a plateia. Sinal de que, diante da falta de entendimento entre os
personagens, o grupo não desistiu da comunicação com o pú-
blico. O pessimismo, então, aparece como tema, não como fim.
A ilusão fica contida na esfera das relações duais entre os
personagens, inspiradas livremente na obra do diretor argen-
tino César Brie: Sólo los Giles Mueren de Amor. Correm em
paralelo duas histórias vinculadas a formalidades sociais, reve-
lando o quanto são ineficientes como embalagens para os sen-
timentos. Uma se refere ao casamento: um casal está em crise,
a união fracassou, mas a mulher se recusa a enxergar. “Aliança
a gente perde na rua”, diz ele. “Coragem também”, ela replica,
num lampejo de clareza. A outra, de contornos menos claros,

55
É só uma Formalidade

mostra um homem que cogita retornar para casa anos depois


de ter se afastado da família, para ir ao enterro do pai, en-
frentando o fracasso de seus projetos de carreira e amoroso.
Ele dialoga com um duplo que, mais do que amigo, exerce a
função de sua consciência.
Essa consciência acentuada e crítica sobrepõe uma cama-
da de comentário hierarquicamente superior ao drama. Com
ironia, marido e amigo deixam momentaneamente o universo
ficcional para conduzir o olhar dos espectadores aos auto-en-
ganos derivados de uma expectativa de felicidade presa aos pa-
drões sociais (como o enlace matrimonial) ou resultante da in-
genuidade (a aspiração juvenil de mudar o mundo). Os objetos
cenográficos, como uma mala e um piano, fazem a ponte entre
as duas realidades, expondo a transição de uma para a outra e,
com isso, abrindo brechas para o julgamento do público.
A construção das cenas, aliás, se favorece de um processo
de criação coletiva que buscava explorar as expressões do jogo
cênico, investindo no esmaecimento da fronteira entre a repre-
sentação de personagens e a presença imediata sobre o palco.
O trabalho incluiu contribuições particulares de cada um do
elenco, provavelmente determinantes para a subjetividade que
se alcança na montagem. O registro das falas se pauta pela
coloquialidade e a confidência. Permite o diálogo direto com o
público – “percebido” do palco – e a expansão do desvelamento
das ilusões até o espaço da plateia: espectadores são incorpo-
rados ao drama dos personagens em duas cenas exemplares da
condição de insconsciência da mulher e do filho órfão.
O Quatroloscinco retoma uma zona sensível de afeto e
cumplicidade que outra companhia mineira, a Cia Luna Lu-
nera, estabeleceu em um espetáculo como Aqueles Dois. Em
comum com os procedimentos do grupo veterano está tam-
bém o recurso ao prólogo, como momento em que as relações
se definem num jogo físico de improvisação. Em Aqueles Dois,

56
Quatroloscinco

improvisava-se um contato corporal próximo, gerador de in-


timidade. É Só uma Formalidade recorre ao treinamento de
boxe como metáfora (e preparação) para o combate (ataque,
defesa, vencer e perder) e para a noção de suporte ou amparo
ao outro: dois dos princípios que nortearão a narrativa.
Vê-se em É Só uma Formalidade, aliás, ecos da poética não
só da Luna Lunera, mas de outros grupos de Belo Horizon-
te, como a Cia. Clara e o Espanca!. As metáforas caras ao
Espanca!, como a chuva de abacates que cai sobre o palco de
Por Elise conferindo materialidade à ideia de que é preciso
ser responsável pelo que se planta no mundo, ressurgem na
montagem do Quatroloscinco reinterpretadas, atendendo às
questões próprias do grupo.
Quedas súbitas e sopros de alívio igualmente inesperados
interrompem a naturalidade do drama, abrindo o espaço po-
etizado de comentário sobre os sentimentos experimentados
no contexto ficional. São também metafóricas (silenciando os
diálogos) as cenas elaboradas para “solucionar” cada um dos
conflitos, e é por meio delas e da música que os pequenos dra-
mas encenados conseguem transcender. Propõem-se, assim, a
uma arte autorreflexiva e consciente da ilusão como alternati-
va à vida que, em sua forma bruta, decepciona.
Ao receber o público no teatro com cumprimentos e con-
versa amistosa, de início, e ao diluir o fim desconstruindo o
momento dos aplausos com a imediata retomada do diálogo
com a plateia e a arrumação do palco, o Quatroloscinco des-
formaliza convenções teatrais, reafirmando com coerência as
ideias da encenação.
O espetáculo foi apresentado nos festivais Verão Arte
Contemporânea, Fringe (Festival de Curitiba) e FIT BH

57
Quatroloscinco

Estética da impotência
Humberto Giancristofaro

Crítica da peça É só uma formalidade, do grupo mineiro Qua-


troloscinco – Teatro do Comum, publicada na Revista Questão de
Crítica, edição de agosto de 2011.

“Estamos cansados do homem, nós sofremos do homem.”


Nietzsche

Após a reviravolta que sacou a humanidade da Idade das


Trevas, o Renascimento formulou uma nova concepção do
mundo, sob a qual, aos poucos, a sociedade europeia e suas
descendentes foram se estruturando. Logo o Humanismo
trouxe a figura do indivíduo e a ideia de uma razão que deter-
mina e referencia qualquer realização. O Racionalismo apos-
sou-se do trono divino, vago na modernidade. O homem e
seus costumes foram dissecados. Com esses estudos, manuais
enciclopédicos puderam ser forjados para auxiliar o caminhar
da sociedade. Não obstante, a referência a esse humanismo se
tornou compulsória e o comportamento do homem se estru-
turou como uma fórmula demasiado humana. O grupo Qua-
troloscinco, procurando desconstruir esse protocolo, levou à
cena É só uma formalidade.
Duas histórias paralelas compõem a dramaturgia dessa
peça. A primeira, fruto das pesquisas de dramaturgia latino-
americana, é baseada no texto Só os babacas morrem de amor, do
escritor argentino César Brie, e trata do filho pródigo (Mar-
cos Coletta) que retorna para o enterro do pai e se encon-
tra com o irmão (Assis Benevenuto). A segunda, um diálogo
entre marido e mulher (Ítalo Laureano e Rejane Faria) que

59
É só uma Formalidade

acabaram de se mudar para uma casa nova, foi completamente


fundamentada pelas improvisações durante os ensaios. Am-
bas incorporam experiências muito pessoais dos integrantes
do grupo, até mesmo presentes na origem de alguns objetos
cênicos, o que foi revelado por eles no bate-papo após a peça:
o vídeo de uma festa de casamento projetado, assim como a
garrafa de champanhe que é estourada durante a peça, são do
casamento do ator Ítalo com a produtora Maria Mourão; as
fotos nos porta-retratos em cima do piano são do primeiro
casamento de Rejane e o álbum de família é uma recordação
do casamento dos pais de Marcos.
Essa exposição da proveniência de tais objetos ajuda a tra-
zer para este texto as delicadas impressões afetivas formula-
das pela estética da peça. Tudo nela é muito íntimo: o trato
dos atores que recebem em cena aberta todos os espectadores,
conduzindo-os aos seus lugares; a conversa que eles estabe-
lecem com alguns durante o espetáculo e, acentuadamente, o
convite aos espectadores para ler um texto, fazer as vezes de
uma figura ausente ou trocar de lugar com um deles. Por meio
desses e de outros artifícios, cria-se um ambiente de empatia
entre todos os presentes. Associada ao fato de a plateia estar
disposta em corredor, essa relação assume uma horizontalida-
de. Com isso, eles podem trabalhar de uma forma mais próxi-
ma no projeto de exposição das condições do humano.
As duas histórias se concentram na família e na influência
dela na estruturação das formalidades particulares. Na narra-
tiva do filho pródigo, Marcos e Assis estabelecem um código
de conduta próximo ao de uma luta e o tencionam com as
ciladas dos apegos à estirpe. Com luvas de boxe nas mãos, o
treino desenrola-se entre diretos e jebs entrecruzados à descri-
ção dos dilemas da educação sexual sofridos na adolescência
do personagem. Parafraseado pelo ritmo de um treinamento
de boxe que os atores encenam durante toda a peça, os temas

60
Quatroloscinco

da falibilidade e do adestramento se mesclam. Por um lado


há uma desmistificação do projeto de progresso, com o qual o
indivíduo supostamente teria sua condição de vida garantida,
mas não é isso o que vemos cotidianamente.
Ou seja, o que é posto em questão é uma crença determi-
nista de que, feito todas as premissas sociais ditas corretas,
estudar ostensivamente, trabalhar de forma empenhada, pagar
impostos em dia e construir uma família são suficientes para
se ter boa cabeça, dinheiro no bolso e ordem no lar, contando
com o mais importante de tudo, sucesso nas realizações. Esta
fórmula, porém, mesmo aos que verdadeiramente a aplicam,
constantemente dá sinais de engodo. Como resultado, surgem
as frustrações, deixando as pessoas afoitas por descobrir a cul-
pa e o erro, a fim de corrigi-los.
Para compreender esse jogo é mister saber que todo o pro-
jeto da formação subjetiva fundada pela modernidade vai,
no período contemporâneo, perder seu caráter centralizador.
Michel Foucault defende essa ideia ao concluir sua analise
histórico-filosófica no livro As palavras e as coisas, dizendo que
o homem é uma invenção recente na história de nosso pen-
samento, cujo fim talvez esteja próximo. Ainda na concepção
cartesiana preservou-se a figura de Deus como fonte do saber.
A moral derivada disso ditava o que deveria ser feito pelo ho-
mem com vistas ao bem maior. Na modernidade kantiana a
moral volta-se para o homem, elevando a racionalidade como
sua condição de possibilidade. Assim as regras são fundamen-
tadas como alicerce nas relações humanas e uma série de acor-
dos estabelece as bases tanto do saber, quanto do poder. Com
o passar dos tempos esses acordos foram ficando velados e
dogmatizados. Na peça, toda vez que o marido, personagem
de Ítalo, é atingido pela recordação de que as regras são acor-
dos, ele tomba no chão, como se tivesse recebido uma rasteira
em suas certezas. Ou ainda, essa condição fica mais nomeada

61
É só uma Formalidade

quando dita pelo filho pródigo sobre sua experiência de au-


sência: “Vi todo o mundo do alto e quis escrever para contar
o que eu estava vendo toda pobreza”.
O grupo Quatroloscinco ilustra que perder, assim como
ganhar, faz parte do jogo. Alimentar as ilusões de que é pos-
sível ter uma vida genial full time esconde a história de fra-
cassos que naturalmente faz parte desse jogo, recalcando-o.
Independentemente de ter conseguido conquistar um projeto
de vida, a peça suscita a falibilidade do homem e como o fun-
damental é entender que a relevância recai sobre o jogo, não
sobre o resultado. Resta seguir em frente.
Por outro lado, a questão do que se apresenta só como uma
formalidade está presente tanto no texto, quando põem em re-
flexão os condicionamentos do contrato social, quanto na ence-
nação, que procura deslocar certas formalidades do ritual teatral,
como mais explicitamente pode ser percebido ao final da peça.
Ela termina com os atores desmontando o cenário, limpando o
palco com a luz de serviço acesa, se despedindo e dando reca-
dos sem deixar o público aplaudir. Na verdade, como isso ainda
soa incabível para muitos espectadores, os aplausos acontecem,
todavia num lugar diferente do costume, não no final da última
cena, mas quando todos já estão indo embora.

62
Outro lado
Assis Benevenuto
Marcos Coletta
Quatroloscinco

“Essa é a estória de pessoas que compartilham alguns anos


de suas vidas dentro de um pequeno espaço. Elas poderiam
ter tomado outros caminhos, talvez nunca teriam se encon-
trado, milhões de combinações possíveis. No entanto, estão
ali. Lá fora, o mundo está um caos e poucos têm coragem de
sair de suas casas. Mas amanhã será um novo dia! Amanhã!
Quando todos viverão outra época da humanidade.”

PERSONAGENS:

ANDRÉ – Assis Benevenuto


CANTORA – Rejane Faria
GERENTE – Marcos Coletta
JORGE – Ítalo Laureano

_______

“Outro Lado” estreou em 27 de outubro de 2011, no Galpão 3


da Funarte MG. Belo Horizonte, Minas Gerais.

65
Quatroloscinco

PRÓLOGO

Os atores estão em cena. O público entra. No fundo, ventila-


dores. Uma mesa no centro. Três cadeiras ao redor. Um palco em
miniatura no canto. Os atores formam um paredão ao fundo, em
frente aos ventiladores. Comem pipocas.

Os ventiladores desligam. Assis tenta sair, Marcos o impede em


movimento brusco.

ÍTALO – Em 1944 nasceu Erno Rubik, em Budapeste, na


Hungria. Mesma cidade sobre a qual Chico Buarque escreveu
aquele livro, de cor ocre, sem nunca ter ido lá.

MARCOS – Nesse livro, o personagem principal está via-


jando de avião e precisa fazer uma escala forçada em Buda-
peste. Lá ele acaba se apaixonando por uma mulher húngara,
e isso faz mudar sua vida inteira. Coisas do destino.

ÍTALO – 30 anos depois ele inventa isso daqui (mostra o cubo


mágico). Em 1980, começa a produção industrial do cubo. Em
apenas dois anos, são vendidos mais de 100 milhões desses.

REJANE – E pensar que no Brasil são 190 milhões de pesso-


as! É, foi isso que o Censo registrou em 2010. A pesquisa tam-
bém mostrou que o brasileiro ficou mais velho e menos branco.

ÍTALO – O cubo tem seis faces de cores distintas. É for-


mado por 27 cubinhos, sendo que um é virtual, pois está no
centro do cubo! Impressionante... Cada face pode ser girada
tanto no sentido horário quanto no sentido anti-horário.

67
Outro Lado

MARCOS – Sentido horário é um movimento circular


de rotação em um plano, que começa no topo do círculo e vai
para a direita, retornando ao ponto inicial. O sentido anti-
horário, logicamente, começa do topo para o lado esquerdo. É
claro, que para vocês, tudo isso está ao contrário, já que vocês
estão do outro lado.

ÍTALO – O cubo mágico tem mais de 43 quintilhões de


possibilidades de configuração! Se alguém pudesse realizar
todas as combinações possíveis a uma velocidade de 1 movi-
mento por segundo, demoraria 1400 trilhões de anos.

REJANE – 10 milhões de pessoas morreram na Primeira


Guerra Mundial. Na Segunda foram 50 milhões. A Guerra
Fria, 20 milhões. O tsunami do Japão matou só 13 mil pesso-
as. Essas matanças enormes são chamadas de Hecatombes.

ÍTALO – Mas o objetivo deste quebra-cabeça é apenas


colocar cada face com uma única cor. O próprio inventor do
cubo demorou um mês pra resolvê-lo pela primeira vez. Exis-
tem muitas teorias para resolver este cubo. Em 2007 pesqui-
sadores bateram o recorde e resolveram o cubo em apenas 26
movimentos. Tiveram que usar um computador, mas foram
apenas 26 movimentos.

MARCOS – Há 100 mil anos, o homem passou a ter a


capacidade de pensar em algo mais do que achar comida, se
abrigar e se reproduzir. Ele começou a se perguntar de onde
veio e para onde vai, tomou consciência da morte, passou a
cuidar dos seus mortos.

REJANE – E daí, a gente se pergunta: qual será o futuro


da ciência? Ela continuará a descobrir novas leis para sempre?

68
Quatroloscinco

A formular infinitas teorias? Ou vai acabar encontrando uma


lei única, aquela que deu origem a todas as outras?

ASSIS – Minha avó falava que o caminho que a gente faz


pra fugir da morte, é o que nos leva até ela. E sendo assim, a
única saída que a gente tem é estar aqui, agora.

ÍTALO – A forma mais simples de resolver este cubo é pela


teoria das camadas. Primeiro se resolve a camada de cima, de-
pois a camada do meio e finalmente a camada de baixo. Cada
uma das seis faces do cubo tem esta peça central que nunca sai
do lugar. Então são essas peças centrais que determinarão a cor
da face inteira. Se este centro é azul, a face será azul, e assim por
diante. Se este centro é azul e este é verde, aqui tenho que ter
uma peça de aresta com uma faceta azul para cá e uma faceta
verde para cá. Simples, né? Aqui está errado, mas é simples...

MARCOS – Mozart, aos 5 anos compôs uma sinfonia,


aos 11, duas óperas. Hermógenes, aos 15, ensinava retórica ao
imperador Marco Aurélio. William Sidis, aos dois anos, lia e
escrevia, aos quatro, falava 4 línguas, aos 10 dava conferências
sobre a quarta dimensão! Gênios Precoces!

REJANE – Júlio, aos oito, deu seu primeiro tiro com arma
de fogo. Mariana, aos 11, ficou grávida do padrasto. Lívia, aos
13, usava crack há cinco anos. Pedro, aos 14, nem sabia ler. Igor,
aos sete, perdeu seu cachorro, um Schnauzer, de coleira azul.

MARCOS – Seu Geraldo, no seu aniversário de 127 anos,


disse que ainda espera viver por muitos anos, olha só...

REJANE – E na Índia! A menina Lakshmi Tatma nasceu


com 8 membros. Seu povo acreditou que ela era a reencarnação

69
Outro Lado

de Shiva! Só que na verdade ela estava ligada a uma irmã gê-


mea siamesa que não se desenvolveu. Aos dois anos, ela foi
operada com sucesso, contra a vontade daqueles que achavam
que ela era um deus.

MARCOS – Essa ideia de Deus foi tratada de diversas


formas por todas as culturas, cada uma a seu modo. Mas, nor-
malmente, Deus é tido como um ser incorpóreo, eterno, que
está em todo lugar, sabe de tudo, e tem poder sobre todas as
coisas. Pra tentar se relacionar com Deus, os homens criaram
as religiões!

ÍTALO - Uma fórmula que conseguisse resolver qualquer


cubo mágico no menor número de movimentos possíveis...

REJANE – ... foi batizada pelos matemáticos como “algo-


ritmo de Deus”!

ASSIS – Deus aprecia uma brincadeira.! (Os outros atores


desafazem a formação inicial)
Estamos em alguma época. O ano, bem, o ano em que es-
tamos não faz muita diferença. É sempre outono, as outras
estações já se foram há tempos. O lado bom disso é que as
pessoas já nem se preocupam mais com a moda. Pelo menos é
o que eu pude ver quando vocês entraram aqui hoje.. (Obser-
vando o público, o ator brinca com alguém da plateia) Mas não
tem problema. Estamos todos fora de moda. Quem somos?
Onde estamos? O que viemos fazer aqui? Não importa. Es-
tamos em um lugar ordinário, mais um dos milhões de mo-
mentos de outono da História. Isso aqui é mais um cubinho
isolado em meio a tantos movimentos aleatórios.

70
Quatroloscinco

A CANTORA começa a cantar “Something Strange”. É um


corte. Vemos que ela se envolve com o que canta. Os outros assistem
entusiasmados. No final da canção, eles batem palmas, puxando o
aplauso da plateia. Os atores assumem seus personagens.

“Something Strange” ²

You can sing all night,


drink until your head hurts.
Dance with all anger
and turn off the lights.
But there’s something strange
that you don’t see.
Oh, you don’t see.
Tomorrow, you will wake up sore.
Drink your coffee and more.
But when you open the curtains,
you’ll have a surprise.
The sun will laugh at you,
and give your prize.
Your face dropped,
your shaky hands,
your bulging eyes.
Your end.

CANTORA – Boa noite. Estou muito feliz que todos vo-


cês estejam aqui. É muito bom vê-los de volta. Ver esta casa

²Música e Letra: Marcos Coletta. Arranjo: Sérgio Andrade.

71
Outro Lado

cheia novamente. Por isso, o show de hoje é especial. Um novo


repertório que preparei para essa ocasião. A música que abre
este show se chama. Se chama... Se chama...

Ela fica incomodada com o palco, a luz, o microfone. Sai do palco.

CENA I – O BAR

GERENTE – Você tem chegado atrasada quase todos os


dias. Ontem, as pessoas já estavam indo embora, estavam tor-
tos sobre a mesa, bêbados à sua espera. Ainda bem que eram
poucos. Queria ver se estivesse cheio.

CANTORA - Fala mais baixo, já pode ter gente aí, não


quero que escutem isso.

GERENTE - Pois então trate de chegar mais cedo das


próximas vezes.

CANTORA – Sabe que não está fácil chegar aqui.

GERENTE - Como gerente desta casa, se não faço as coi-


sas acontecerem da devida forma me ferro.

CANTORA – Todos se ferram. Eu também. Não é só


você. Sei das minhas responsabilidades.

GERENTE – A sua responsabilidade é estar aqui no


horário. Não importa o que acontece lá fora. O que você vai
cantar hoje?

CANTORA – O de sempre.

72
Quatroloscinco

GERENTE – Desistiu do novo show?

CANTORA – Amanhã. Meu novo repertório. Só músicas


de Nina Simone!

GERENTE – Nina Simone... Você já adiou essa estreia


não sei quantas vezes.

CANTORA – Vai ser amanhã. Amanhã isto aqui vai estar


lotado. Todos vão voltar. Eu sei. Eu sinto.

GERENTE – E eu sinto que é melhor você ficar em casa,


como estão fazendo todos. Eu fecho as portas desse lugar e cada
um volta pra sua casa. Quando a coisa melhorar, a gente retoma.

CANTORA – Confie em mim. Amanhã vai estar cheio.

ANDRÉ – O jornal está na mesa. Encontrei o senhor Valentim.

GERENTE – Aquele velho disse se vem me pagar?

ANDRÉ – Ele não me reconheceu.

GERENTE – Como assim?

ANDRÉ – Ele me perguntou quem eu era. Eu disse: Sou


eu! O André! E ele disse que nunca havia me visto, que não
conhecia nenhum André. E saiu apressado.

GERENTE – Estava nos passando a perna.

ANDRÉ – Não! Ele tinha um desespero no olhar. Parecia


que ele estava pedindo ajuda.

73
Outro Lado

GERENTE – Estava era nos passando a perna, André!


Agora tudo virou motivo pro calote! Todos os trambiqueiros e
desonestos estão tirando o maior proveito dessa confusão toda!

CANTORA – Talvez ele esteja realmente assustado com


toda essa história, às vezes até levaram algum parente dele. E
por isso nem reconheceu o André! Devia estar atordoado. Vai
ver perdeu a memória!

GERENTE – Só me faltava essa. Você defendendo aquele


velho cachaceiro.

JORGE ri.

GERENTE – E você também, Jorge. Sabe que está em


dívida comigo...

JORGE – Opa, vamos com calma. Eu sou seu amigo há


anos. Nunca te passei a perna. E além do mais, eu te ajudo a
tocar este lugar.

GERENTE – Este lugar se toca sozinho. Pra beira do


abismo. E ainda leva a gente junto.

JORGE – Então vamos cair com ele.

CANTORA – Você é maluco, Jorge!

JORGE – (De rompante) Ei, o que você sente quando


está lá? No palco?

CANTORA – O que eu sinto? Sinto que estou viva, que


existo pra isso. Toda minha atenção, os meus poros, os meus

74
Quatroloscinco

neurônios se voltam para aquele momento. Eu me sinto


como uma atriz. Encarnando a personagem! Por isso é que
eu tenho que me preparar para atuar frente àquelas pessoas.
Atuar não é tão fácil...

JORGE – Esse é o seu problema...

CANTORA – (Quase um aparte) Eu sou feliz aqui, neste


lugar, com aquelas pessoas, com meu microfone, com minha
luz de ribalta. Eu sou feliz neste vestido, com esta maquiagem
barata. Dizendo as coisas que eu digo, com mais puro senti-
mento. Eu sou feliz neste bar. Aqui é o meu mundo. Meu uni-
verso. Eu poderia passar minha vida inteira aqui. Deste lado.

As luzes do bar começam a falhar.

ANDRÉ – Ligaram para cá mais cedo. Eu atendi. Dis-


seram que se não pagarmos imediatamente a conta de luz,
amanhã não vai ter nem uma lâmpada acesa.

CANTORA – Mas amanhã eu estreio meu repertório


novo! Só músicas de Nina Simone.

JORGE – Então se apresse, ainda dá tempo de escolher


outro bar!

GERENTE – Onde está a conta. André, porque você não


pagou essa conta no banco?

ANDRÉ – Você que me pediu pra não passar pela Norte.

GERENTE – Passa por outro lugar, André.

75
Outro Lado

ANDRÉ – Cadê a conta?

GERENTE – Onde está a conta? Você é que tem que saber!

JORGE – No escritório. Vai, André. Quando você voltar


eu corto seu cabelo.

CANTORA abre o jornal.

CANTORA – Mas isso é um absurdo.

GERENTE – O que?

CANTORA – Como é que eles invadem os lugares, jogam


as pessoas no mar. E não tem nem julgamento. Ninguém tem
direito à defesa. Nem mesmo o direito de ser enterrado...

GERENTE – Deve haver um motivo pra ser assim.

JORGE – Eu começo a temer são esse motivos.

ANDRÉ – Aqui está a conta, 300.

GERENTE – Não temos esse dinheiro em caixa. Se pu-


déssemos esperar pelo menos um ou dois dias.

CANTORA – Não podemos deixá-los cortarem a luz! Ama-


nhã é a estreia do meu novo repertório. Vai ter gente ilustre aqui.

JORGE ri.

CANTORA – Você está rindo de quê? André, olha quan-


to dinheiro tem no caixa, quanto falta. Eu inteiro e amanhã o
bar me reembolsa.
76
Quatroloscinco

JORGE – Você devia sair daqui.

CANTORA – Daqui?

JORGE – É. Sair daqui.

CANTORA – Pra onde?

JORGE – Sei lá... Sair daqui. Se apresentar em grandes tea-


tros, cassinos, com gente ilustre de verdade. Ainda existem estes
lugares. Para onde as pessoas vão, se divertem, bebem, gastam
dinheiro, é lá que estão as pessoas que realmente importam.

CANTORA – Eu gosto daqui.

JORGE – Você só gosta porque sabe que é difícil sair. Está


conformada. Você podia fazer uma grande carreira lá fora.

CANTORA – As coisas tem hora certa pra acontecer.

JORGE – Não sei não.

CANTORA – Sair daqui... Ainda mais agora, do jeito que


as coisas estão. Eu ia acabar me estrepando. Mas espera, es-
pera, as coisas voltarem a ser como antes... Aí você vai ver...
As pessoas vão voltar... Este lugar vai ser um sucesso. Não é
Jorge? Me diz! Você não acha?

JORGE – Não estou achando nada...

GERENTE – Já era pra estar cheio. Antes, à uma hora des-


sas isso aqui já estava lotado. Homens e mulheres de todos os
tipos. Gente importante, artistas. Artistas... Era uma energia

77
Outro Lado

incrível isso aqui... Faz tão pouco tempo. Mas parece que faz
tanto tempo... É recente... Mas está desbotado... Você se lem-
bram da Lígia Abreu? A poeta? Escreveu seu último livro aqui
no bar. Pobre Lígia... Nunca pensei que ela fosse capaz...

CANTORA – Tem que ter muita coragem pra fazer o


que ela fez.

JORGE – Ou muito medo.

ANDRÉ – Faltavam 200. Peguei na sua bolsa. Se precisar


de mais alguma coi...

CANTORA – Paga logo esta conta.

ANDRÉ – Já, já estou de volta.

CANTORA – Cuidado, André! Não entendo porque ele não


usa o carro. Ele gosta de sair por aí correndo, correndo perigo.

GERENTE – Ele é esperto. Corre como um coelho. Co-


nhece todos os caminhos. Ele sabe se virar.

CANTORA – Tem gente aí?

GERENTE – Poucas pessoas.

CANTORA – Amanhã! Amanhã será uma grande estreia.


As pessoas vão se emocionar. Eu vou começar com “Black is
the color”, e no final da música eu vou levantar a mão assim,
olhar para um ponto fixo e abaixar a cabeça devagar. Todos irão
aplaudir de pé. E no final do show, nós vamos colocar o som na
maior altura, e as pessoas vão beber, rir, gritar, gastar dinheiro!

78
Quatroloscinco

A minha mesa vai estar abarrotada de flores, e até uns bilhetes


de homens mais audaciosos. Nós vamos ser felizes!

Um golpe de luz vindo da direção dos ventiladores.

GERENTE – Nossa!

CANTORA – O André está lá fora!

JORGE – Eles nunca passaram tão baixo.

CANTORA – O André está lá fora!

GERENTE – Calma, ele sabe se virar.

CANTORA – Quando é que isso vai acabar?

JORGE – Até acharem todos que estão procurando, mata-


rem e jogarem os corpos no mar.

CANTORA – Será que eles não percebem que isso ater-


roriza as pessoas? Que as pessoas estão parando de sair na rua
por causa disso?

JORGE – Eles percebem sim. É isso o que eles querem.

GERENTE – Calma!! Já passaram... Foi só um susto.


Deve ser só uma operação de rotina.

JORGE – Não sei não...

GERENTE – Canta alguma coisa! Canta alguma coisa


pra distrair o público.

79
Outro Lado

CANTORA vai ao palco. Enquanto ela tenta cantar, JORGE


e GERENTE discutem.

JORGE – É fogo isso?

GERENTE – As pessoas estão indo embora sem pagar.


Cadê o André quando a gente precisa dele? Fecha essa janela,
Jorge! E me ajuda a trancar as portas.

JORGE – Estão passando muito baixo...

GERENTE – (Para a CANTORA) Mais animação! Ani-


mação! (Para JORGE) Já colocou as grades no fundo?

JORGE – Não. Antes vou tirá-la de lá.

GERENTE – Não Jorge, você não vai tirar ela de lá. Ela
está distraindo os clientes!

JORGE – Ela não está distraindo ninguém! Ela não está


dando conta! Olha isso!

GERENTE – Ninguém vai tirar ela de lá Jorge.

A CANTORA desiste da música, desce do palco.

GERENTE – Você cantou muito bem.

CANTORA – Não é fácil cantar pra tão pouca gente.


Além disso, estavam todos tensos e assustados, eu quase não
consegui me concentrar. Acho que até desafinei.

GERENTE – Não. Você não desafina nunca.

80
Quatroloscinco

CANTORA – André! Está tudo bem?

ANDRÉ – Sim. O recibo está no escritório.

GERENTE – Obrigado, André.

JORGE – Viu como eles passaram baixo?

ANDRÉ – Muito. Estavam muito perto. Dava pra ver


dentro da cabine. O rosto, a expressão deles. Dava pra ver
tudo. Tudo. Eu passei pela Norte.

CANTORA – Pela Norte?

GERENTE – O que você foi fazer na Norte?

ANDRÉ – Não cruzei com ninguém. Ninguém. Em plena


sexta feira. Tem muito lixo lá na Norte. Chegam a tampar as
portas das casas.

GERENTE – Os lixeiros também não passam aqui há


uma semana.

ANDRÉ – Sacolas abertas. Os cachorros fuçando. Muitos


cachorros. Um cheiro horrível.

GERENTE - Dizem que em alguns bairros eles não pas-


sam há mais de um mês.

ANDRÉ – E tinha um cachorro lindo. Era de raça. Não


devia ser de rua. Tinha uma coleira azul. (Os outros indagam
ANDRÉ com o olhar, apreensivos e curiosos) E tinha também
uma parede branca, com uma enorme mancha preta, de quei-
mado. Parece que fizeram uma grande fogueira lá.
81
Outro Lado

GERENTE – Fogueira de que?

ANDRÉ – De fogo.

CANTORA – E as pessoas, André. Onde é que elas estão?

JORGE – Trancadas. Tem gente que nem vai mais tra-


balhar. Eu fico impressionado que ainda venha alguém nesse
bar... Porque daqui a pouco, as pessoas não vão sair nem pra
comprar comida. Nem pra parir seus filhos. Nem pra enterrar
seus mortos. Vão deixá-los nos quintais. Ou pedir a eles que
joguem os seus corpos no mar.

CANTORA – Que horror... Não é assim também. Hoje


no metrô tinha bastante gente.

JORGE – É claro. Todos se escondendo debaixo da terra.

GERENTE – Que engraçado, agora são os vivos que fi-


cam debaixo da terra.

JORGE – Quero que saibam que, eu, quando morrer, que-


ro ser enterrado embaixo desta mesa.

CANTORA – Ai, Jorge!

GERENTE – Eu, vocês podem deixar conservando ali no


freezer, está ótimo.

CANTORA – Que brincadeira de mau gosto!

ANDRÉ – Eu quando morrer vai ter uma chuva de pi-


poca. (Todos riem) É verdade! E elas vão cair do céu e vão

82
Quatroloscinco

estourar no ar. E as pessoas vão abrir os guardas chuvas ao


contrário pra encher de pipoca. E todos vão comer muito. Vai
chover pipoca salgada e pipoca doce. E quando todo mundo
já tiver comido tudo, eu vou ser levado pra fazenda dos meus
avós, no Sul, e vou ser enterrado lá.

CANTORA – Eu adoro pipoca!

GERENTE – E sua família, André?

ANDRÉ – O meu pai era estrangeiro, da Hungria. Só o


vi uma vez. Minha mãe ficou no Sul, com meus dois irmãos
mais novos. Foi lá que eu cresci, correndo nos pastos imensos.
Capturando pequenos animais. Vendo bicho nascer, crescer,
dar cria, morrer, secar até virar adubo. (ANDRÉ usa JORGE
para demonstrar sua estória) Um dia eu matei um gambá com
um estilingue, ele estava subindo no telhado. Minha avó pe-
diu que eu o tirasse de lá. Mas eu não tirei. Não tirei. Eu
acompanhei toda a decomposição. Em uma semana ele já não
tinha mais carne, era só pele e osso. Até que depois ficaram só
os ossos misturados na folhas secas.

JORGE – Me tira daqui...

CANTORA – Coitado do bicho.

ANDRÉ – Não é coitado. Ele morreu como tem que ser:


voltando pra terra.

CANTORA – Sua fazenda deve ser linda.

ANDRÉ - Eu ainda vou voltar pra lá.

83
Outro Lado

GERENTE – Você não falou...

CANTORA – O que?

GERENTE – Da sua morte.

CANTORA – E nem vou falar.

JORGE – Por quê?

CANTORA – Porque eu não quero.

GERENTE – É só uma brincadeira.

ANDRÉ – Fala!

CANTORA – Eu acho isso uma bobagem... Tá! Vai ser no


palco, como Cacilda.

ANDRÉ – Quem?

CANTORA – Cacilda!

GERENTE – Ela está falando da atriz...

CANTORA – Ela ainda ficou no hospital, em coma, por


alguns dias. Mas eu não. Eu vou perder minha vida antes da
última nota. Vai ser Pá e Plim!

JORGE – Tomara que não seja aqui, senão não vai ter nin-
guém pra te assistir.

CANTORA – Vai estar lotado! Todas as plateias, os camarotes.

84
Quatroloscinco

GERENTE – Camarote? Ah, então não vai ser aqui mesmo.

CANTORA – Vai ser em um navio. Num cruzeiro.

GERENTE – Olha! Num cruzeiro! Que chique!

JORGE – Chique nada. No final ainda vão jogar seu


corpo no mar!

ANDRÉ – Você merece ser enterrada em um cemitério


bem famoso, do lado daquela Evita Perón! E no aniversário
da sua morte vai haver uma multidão de fãs... Eles vão levar
flores, vão cantar suas músicas.

CANTORA – E irão levar milhões de flores, e chorar, mas


chorar com alegria, porque o mundo vai ser diferente. Todos
estarão em uma outra época da humanidade!

JORGE – E do que vai adiantar tudo isso se você já vai


estar morta e enterrada?

ANDRÉ – Deixa ela.

CANTORA – Deixa ele. É muito triste quando se morre


depois da morte. Quando todos estiverem cantando minhas
músicas, eu estarei lá, em suas vozes.

JORGE – Se não se morre depois da morte, o que estamos


fazendo aqui dentro, escondidos, vamos todos lá para fora de
uma vez, cantar belas canções, comer pipoca!

CANTORA – (Firme) Não estamos escondidos.

85
Outro Lado

GERENTE – Vamos abrir um vinho? Acho que está na


hora do vinho!

CANTORA – O quê que te deu hein? Abrir um vinho?

GERENTE – Seco ou suave?

CANTORA diz “Suave” e JORGE diz “Seco”, ao mesmo tempo.

GERENTE – André, procura um semi-seco...

JORGE volta a se concentrar no cubo. ANDRÉ não sai.

GERENTE – Há quanto tempo você está aí, Jorge? Com


esse seu brinquedo?

JORGE – Muito tempo. Por quê?

GERENTE – Você nunca conseguiu resolver.

JORGE – Nunca. Uma vez quase resolvi, ficou faltando


uma única pecinha. Foi naquela época, quando eu estava in-
ternado, entubado no hospital. Mas depois tudo bagunçou de
novo. E no outro dia eu tive alta... E voltou tudo ao normal...

GERENTE – Existem fórmulas pra resolver este cubo, sabia?


Já vi na TV. Tem gente que resolve isso em poucos segundos.

JORGE – É, tem gente muito inteligente nessa vida...

ANDRÉ – Só tem mais essa garrafa! Eu abro?

CANTORA – Ah, não! Guarda para a estreia, a minha estreia!

86
Quatroloscinco

JORGE – Até lá vai virar vinagre.

CANTORA – Vai ser amanhã, Jorge! Amanhã!

GERENTE – Vocês deviam se casar, sabiam? Morar jun-


tos e ter um monte de filhos. Ia ser uma alegria.

JORGE – Quer casar comigo? (Fala olhando para o AN-


DRÉ) Casar! A gente não precisa ter filhos. A gente adota o
André. Mas eu já vou logo avisando, eu vou ter amantes!

Um segundo golpe de luz vindo da direção dos ventiladores.

CANTORA – Outra vez?

GERENTE – Parece que foi ainda mais perto.

CANTORA – O que será que está acontecendo?

JORGE – O fim do mundo!

ANDRÉ – Está acontecendo alguma coisa.

GERENTE – Devem estar procurando alguém aqui.

CANTORA – Mas, aqui?

GERENTE – Eu vou fechar as contas.

ANDRÉ – Eu vou lá fora ver o que é.

CANTORA – Não, André! É perigoso!

87
Outro Lado

JORGE e CANTORA voltam para a mesa enquanto GE-


RENTE e ANDRÉ observam os ventiladores.

JORGE – Você está com medo?

CANTORA – Estou...

JORGE – Eu não.

CANTORA – Você nem se importa né, Jorge! Você não vê


o quanto estamos sendo afetados por tudo isso? Parece que...

JORGE – Quem afeta quem, minha filha?

CANTORA – Você é muito estranho. Só fica aí com esse


seu brinquedo. Parece que não se importa com nada. Que sua
vida se resume nisso.

JORGE – É isso mesmo. Agora você entendeu tudo. Você


sabe porque eu nunca resolvi esse cubo? Porque eu nunca
quis! É verdade, eu nunca quis... O que eu faço é ficar esco-
lhendo um desses cubinhos, qualquer um. Aí eu fico fazendo
movimentos aleatórios. E aí eu vou vendo aonde ele vai parar
a cada vez que eu movimento uma face. Chega uma hora que
perco ele de vista. Daí oque eu faço? Eu escolho outro cubi-
nho, e começo tudo de novo... O que adianta resolver o cubo?
O que eu faço depois que ele estiver pronto?

CANTORA – Sei lá... Guarda.

JORGE – Sabe, eu poderia ter sido um grande matemáti-


co, ou físico. Fui um aluno brilhante. É verdade. Daqueles que
sentavam na primeira fileira e falavam: “Eu, professora! Aqui!

88
Quatroloscinco

Deixa eu responder, professora! Eu! Eu...” Também poderia


ter sido um filósofo, ou até mesmo um político! Um político!
Já imaginou eu lá em cima, falando assim...

CANTORA – Já. Claro que já... E porque não foi nada


disso, Jorge?

JORGE – Porque eu não quis.

CANTORA ri compulsivamente.

JORGE – Eu me deixei levar pelos movimentos aleatórios.


Agora, estou aqui, sou mais um desses personagens de bar.
Cansado demais pra ser qualquer outra coisa.

CANTORA – No final a gente acaba fixando uma forma,


não é Jorge?

GERENTE – Podemos fechar. Todos foram embora...

ANDRÉ – Eles estão no bairro!

CANTORA – No nosso bairro?

ANDRÉ – Estão entrando em algumas casas. Arrom-


bando as portas!

CANTORA – Você viu isso? Eles vão entrar aqui?

ANDRÉ – Sabe o senhor Valentim? Ele estava com aque-


la cara de desespe...

GERENTE – No meu bar eles não entram!

89
Outro Lado

JORGE – Acho que estão me procurando...

CANTORA – Mas pra quê isso tudo? O que eles estão fazendo?

ANDRÉ – Sabe o senhor Valentim? Ele estava com


aquela cara...

JORGE – Política. É isso que eles estão fazendo.

GERENTE – Mas aqui no meu bar, quem faz a política


sou eu!

ANDRÉ – Calma! Eles estão lá na Avenida Norte. Se-


guem em direção ao Canal. Talvez nem passem na nossa rua.
Talvez eles achem quem estão procurando e vão embora.

CANTORA – Quem são essas pessoas que eles procuram,


André? São criminosos? Terroristas?

JORGE – Já disse, eles estão me procurando.

CANTORA – Chega, Jorge! Merda! Chega! Você não se


importa com nada! Nada!

JORGE – Bravo... Bravo! Eu não me importo... (JORGE


está muito bêbado) Eu não me importo com nada... Alguém aqui
sabe quem são essas pessoas que estão lá fora, arrombando as
casas, matando as pessoas? Jogando os corpos no mar? Vocês
sabem quem eles procuram? Sabem por quê? Ninguém! Ne-
nhum de vocês sabe. Eles não querem que a gente saiba. Eu
assumo a minha ignorância. Eu não posso fazer nada diante
disso, a não ser esperar, esperar até que isso tudo passe... Sabe o
que eu acho? Eu acho que isso não acaba nunca! Nunca. Tem

90
Quatroloscinco

quanto tempo que tudo isso começou, vocês se lembram? Não?


Eu me lembro. Foi quando eu estava internado. (ANDRÉ e
GERENTE arrumam a bagunça pelo bar) E quando eu voltei
pro bar, já estava assim, vazio. Tem anos que você espera pra es-
trear o seu novo show. Você pensa que este bar um dia vai voltar
a ser como era antes? Lamento te dizer, mas não vai. Você não
vai estrear seu novo show. . (JORGE avança sobre a CANTORA.
GERENTE impede) Nada vai ser como já foi. A quem interessa
suas palavras com o mais puro sentimento? Interessam a você!
“Eu vou levantar a minha mão assim, e vou fazer assim”. Pode
abaixar essa mão. Pode abaixar essa mão, porque lá fora já tem
muita gente com a mão levantada e, no entanto, está todo mun-
do na mesma, na pior. (Agora é CANTORA quem avança em
JORGE, mas GERENTE volta a impedir a briga) É melhor que
cada um fique na sua casa, como estão fazendo todos. Esperan-
do a hora em que eles vão arrombar nossas portas e nos jogar no
mar. Volta pro Sul, André, corre o mais rápido que você puder.
Quem sabe lá as coisas ainda estão como eram antes.

Silêncio.

GERENTE – Sabe o que eu sempre gostei em você, Jor-


ge? Apesar de você estragar tudo. Dessa sua capacidade de ver
as coisas de outro ângulo. Parece que enquanto todos estão
olhando para um lado, você sempre olha pro outro. Parabéns..
Mas agora, eu queria que você olhasse para lá. Junto comigo.
O que você vê?

JORGE – Eu vejo uma multidão de fantasmas inertes, in-


capazes de fazer qualquer coisa.

GERENTE – Engraçado. Porque eu vejo milhões


de possibilidades.

91
Outro Lado

Blecaute. Barulho de avião rasga o céu. Foco nas mãos de AN-


DRÉ resolvendo o cubo mágico.

CENA II – AS MEMÓRIAS

Sensação de leveza. Não-lugar.

GERENTE – E agora, este silêncio...

JORGE – Silêncio? Não ouço nada.

GERENTE – É que somos surdos... (Eles riem) Eu tam-


bém tenho uma família, sabia?

JORGE – Desconfiava.

GERENTE – Mãe, pai, irmãos, primos, tios, sobrinhos,


padrinhos... Tudo isso.

JORGE – E onde eles estão?

GERENTE – No leste, as pessoas comem carne de cachorro.

JORGE – É fome isso.

GERENTE – Eu tive um cachorro também. Se chamava


Alecrim. Era um Dog Alemão. Marrom. Pastor! Era um Pas-
tor Alemão. Ele não gostava muito que batessem a campainha
da nossa casa. Avançava em todas as visitas. Aí o meu pai
resolveu doá-lo.

JORGE – E aí?

92
Quatroloscinco

GERENTE – Ele morreu.

JORGE – Seu pai?

GERENTE – O cachorro. Ele se recusou a comer qual-


quer coisa.

JORGE – Sentiu falta. Cachorros são muito apegados.


Eles se ligam ao dono mais que qualquer ser humano.

GERENTE – Será que ele sofreu?

JORGE – E quem não sofre?

GERENTE – Você já foi abandonado?

JORGE – Algumas vezes.

GERENTE – Já abandonou alguém?

JORGE – Algumas vezes.

GERENTE – É a vida, não é?

JORGE – Não é?

GERENTE – Você é como um irmão pra mim.

JORGE – Oi?

GERENTE – Você é como um irmão pra mim!

JORGE – Somos todos irmãos. Não é assim que di-


zem por aí?
93
Outro Lado

GERENTE – Quem diz?

JORGE – As pessoas. É, as pessoas dizem coisas. Falam muito.

GERENTE – Tem uns que falam até demais.

JORGE – Dona Betânia. Morava na minha rua. Falava


tanto, mas tanto, e tão alto, que o marido dela usava um algo-
dão nos ouvidos pra diminuir o barulho.

GERENTE – Abafadores.

JORGE – Abafadores! Destes que os operários usam na


orelha. O problema é quela roncava tão alto quanto falava. Ele
tinha que usar aquilo 24 horas por dia. Ele teve necrose nas
orelhas. Teve que amputá-las. Ficou surdo pra sempre. Mas eu
acho que ele gostou. E depois da morte dela, ele passou a falar
tão quanto ela! Parecia até que ela estava viva, e quem tinha
morrido era ele!

Eles riem.

GERENTE – Dona Betânia.

JORGE – Uma vizinha que eu tive.

GERENTE – Morreu de quê?

JORGE – Câncer na garganta.

GERENTE – Há quanto tempo estamos aqui?

JORGE – Muito.

94
Quatroloscinco

GERENTE – Anos?

JORGE – Muitos.

GERENTE – Eu perdi a noção do tempo.

JORGE – Como assim?

GERENTE – Essa noção, que o tempo corre em linha


reta. Está faltando alguém.

JORGE – Quem?

GERENTE – O..., a... Quem mesmo?

JORGE – Eu não sei. Não vejo nada além de breu. Você


também vê o breu?

GERENTE – Vejo. Está desbotado, mas vejo.

JORGE – Coloque seus óculos.

GERENTE – Não estão comigo. Engraçado, não tem


nada nos meus bolsos.

JORGE – Nem nos meus.

GERENTE – Aonde será que deixamos nossas coisas?

JORGE – No tempo? (ANDRÉ termina de resolver o cubo


mágico exatamente aqui).

CANTORA entra de repente.

95
Outro Lado

CANTORA – Ai, que noite!

GERENTE – Ah! Sabia que estava faltando alguém!

CANTORA – Nossa.

JORGE – O que?

CANTORA – Que silêncio!

GERENTE – É que agora somos surdos! (Riem)

CANTORA – E os surdos se escutam?

JORGE – Sim. Tem coisas que só os surdos conseguem ouvir.

CANTORA – E desde quando estão aqui?

GERENTE – Desde...

JORGE – Muito tempo.

CANTORA – Fazendo o que?

JORGE – Ouvindo o silêncio. Vendo o breu. Lembrando...

CANTORA – Lembrando o que?

JORGE – As coisas que a gente esqueceu.

Pausa longa.

JORGE – Lá fora o tempo deve estar bem seco.

96
Quatroloscinco

CANTORA – Estava chovendo.

JORGE – Chovendo? Mas não é possível!

CANTORA – Um céu limpo não garante que não vá cho-


ver. Minha tia me contava que todos os dias, uma prima dela
se aprontava todinha, se maquiava, se perfumava, e ficava na
sacada da varanda, esperando o homem da sua vida passar. A
prima... Minha tia... A mãe dela mandava ela passear, fazer al-
guma coisa, mas ela tinha medo de que o homem da vida dela
passasse na rua da frente e ela perdesse a sua grande chance.
Um dia ele realmente passou.

GERENTE – E aí eles se casaram.

CANTORA – Se casaram... Não! Não se casaram. Por


azar dela, ele passou na rua de trás, que dava para o fundo da
casa. Se ela tivesse esperado na janela dos fundos, ela teria se
casado. Morreu solteira.

Todos riem.

CANTORA – Ô família de má sorte... O pai morreu dormindo.

JORGE – Mas isso é ótimo.

CANTORA – É ótimo quando você não é motorista de ônibus.


Ele morreu dormindo e levou junto o trocador e os passageiros.

GERENTE – Que desastre!

JORGE – Desastre mesmo é pra quem fica.

97
Outro Lado

CANTORA – É verdade.

JORGE – O que é verdade?

CANTORA – Isso que você disse.

JORGE – E se eu estiver mentindo?

CANTORA – Então eu estou mentindo também.

GERENTE – Eu também tive uma família, sabia?

JORGE – Há quanto tempo estamos aqui?

GERENTE - Mãe, pai, irmãos, primos, tios, sobrinhos,


padrinhos... Tudo isso.

CANTORA – Não está faltando alguém?

JORGE – Quem?

GERENTE – Os surdos se escutam, os cegos se veem. No


fim, todos se entendem.

CANTORA – Nem sempre. Tem gente que morre sem


entender nada.

JORGE – Patrícia. Uma professora que eu tive. Todos os


dias eu levava um bombom pra ela. Foi meu primeiro amor.
Ela ensinava História. Falava das navegações, das revoluções...
Ela tinha uma frase célebre. Sempre dizia que a História é
uma “melancólica casualidade feita de ações avulsas e impre-
visíveis”. Como eu adorava aquelas aulas. Depois de muitos

98
Quatroloscinco

anos eu a reencontrei numa fila de banco, já era uma senho-


ra, bem conservada, mas estava imensa! Me arrependi de ter
dado tantos bombons a ela!

CANTORA – Patrícia, Fátima, Bernadete, Violeta, Tere-


sa, Lúcia, Mafalda. Eu lembro o nome de todas as minhas
professoras. Do jardim até o colegial. Luiza, Cristina, Rober-
ta, Socorro.

GERENTE – Socorro?

CANTORA – Sim, Socorro.

JORGE – Socorro?

GERENTE – Socorro.

JORGE – Socorro.

CANTORA – Socorro.

ANDRÉ – (Seco e forte) Socorro!

Todos olham para André.

CANTORA – E você? Quem é?

ANDRÉ – Eu?

CANTORA – Sim. Quem é?

JORGE – André?

99
Outro Lado

CANTORA – Quem é?

ANDRÉ – Eu sou... uma DIVA. Uma diva! Eu sou uma


cantora famosa!

CANTORA – Uma cantora? Uma cantora! Uma cantora


famosa! Uma das maiores vozes do planeta. Uma estrela. Uma
diva. É isso que você é! Em um navio! Um lindo navio!

CANTORA entrega a ANDRÉ o seu echarpe e o guia


até seu palco. Depois se assenta para ver a encenação seguinte.
ANDRÉ sobe ao palco, cantarola uma música de Nina Simo-
ne. É uma verdadeira diva.

CENA III - O NAVIO

O navio é feito em cima da mesa. JORGE interpreta um gran-


de homem da política e GERENTE o capitão do navio.

JORGE – Mais tarde, agora não. Diga que devo voltar em


uma ou duas semanas e aí sim resolveremos tudo isso. (Vê o
GERENTE) Mas olha quem eu vejo! O nosso anfitrião!

GERENTE – Ah... mas que prazer revê-lo, Sr. Jorge.

JORGE – Senhor? Ah, por favor, meu amigo. Não me


chame de senhor.

GERENTE – Claro. Todos comentaram a sua chegada.


Mas confesso de tive pouco tempo de sair do escritório
para encontra-lo!

100
Quatroloscinco

JORGE – Sim! Aposto que você deve estar afogado de


tanto trabalho! Isso aqui é uma maravilha! Nem parece que
estamos neste país!

GERENTE – E praticamente não estamos! São poucos


quilômetros até a fronteira marítima internacional. Mas, ain-
da dá pra ver as luzes no litoral. Dá até para sentir o calor que
anda fazendo por lá.

JORGE – Sim... Muito calor... O show daqueles malaba-


ristas ontem foi sensacional!

GERENTE – Eram trapezistas.

JORGE – Malabaristas, trapezistas, são todos grandes ar-


tistas, não é mesmo? Bom, mas todos falam da surpresa, a
surpresa, que surpresa é essa?

GERENTE – Vou confiar em você. Mas não espalhe. A


surpresa é uma das maiores vozes do planeta!

JORGE – Não me diga que você está falando de...

GERENTE – Dela mesma.

JORGE – Ah! Isso não tem preço!

GERENTE – O que? Esse navio? Toda essa estrutura?


Ela? Tudo tem um preço.

JORGE – Justamente, meu amigo, justamente. Ontem


ouvi dizer que talvez a previsão de volta ao continente seja
adiada. Como será isso?

101
Outro Lado

GERENTE – Ouviu dizer isso?

JORGE – Comentavam no convés...

GERENTE – Bem, as coisas em terra firme não estão tão


firmes assim, se é que você me entende. E concluímos que
ainda não é boa hora de voltar... Mas isso é conversa para ou-
tro drinque. Hoje, depois do show teremos uma reunião em
minha cabine para tratarmos de alguns assuntos mais sérios.
Será bem-vindo! Veja, chegou a surpresa!

JORGE – Ela é incrível.

GERENTE - (dirigindo-se à CANTORA) Se a oitava ma-


ravilha me permite, caso este drinque prejudique a sua voz, eu
mato o garçom que lhe serviu.

Ela vê o Gerente.

CANTORA – Ah, mas só podia ser você mesmo!


Quanto tempo!

GERENTE – É um prazer!

CANTORA – O meu. Eu poderia viver a vida inteira nes-


te navio maravilhoso!

GERENTE – Você pode viver, se quiser!

CANTORA – Ai, posso? Ah!

GERENTE – Por favor, Jorge, venha até aqui. Jorge, esta


que está ao meu lado é...

102
Quatroloscinco

CANTORA – Por favor, deixe que eu me apresento. Prazer.

JORGE – O meu.

CANTORA – O nosso.

GERENTE – Jorge é um dos...

CANTORA – Um dos grandes homens da política mun-


dial. Eu sei. Não sou tão alienada assim! Aliás, não são só
os artistas que são reconhecidos. Você, Senhor Jorge, é quase
uma celebridade!

JORGE – A milhas de distância dos seus pés! E, por favor,


não quero ouvir ninguém me chamando de senhor!

CANTORA – Ah, já vi que esta viagem vai entrar para


a história.

GERENTE – Já entrou, minha querida.

JORGE – Imaginem nossos nomes naqueles livros enor-


mes de História Mundial!

CANTORA – Me desculpem, mas eu estou exausta, estou


chegando da outra parte do mundo. Mais de um dia viajando.
Preciso de um descanso antes da noite de hoje. E chegar até
aqui não foi fácil, um trânsito aéreo forte. O céu está um caos!
Quando desci do helicóptero me deu um alívio!

GERENTE – Não se preocupe, aqui você terá tranquilidade.

CANTORA – Ah tranquillité, j’aime beacoup! Oui oui oui...

103
Outro Lado

JORGE – E como estão as coisas no Leste?

CANTORA – Bem melhores que do lado de cá. Alguns


protestos nas ruas, mas nada muito grave. O governo está
preocupado com os estrangeiros que estão por lá. Mas nem
todo mundo colabora, vocês sabem como é...

JORGE – Claro, se as pessoas colaborassem tudo seria


bem mais fácil.

GERENTE – Mas vamos falar de coisas mais agradáveis!


Já conheceram todo o navio?

CANTORA – Não, eu acabei de chegar...

GERENTE – O cassino...

CANTORA – Eu acabei de che...

GERENTE – O piano bar...

CANTORA – Mas eu acabei de chegar!

GERENTE – Garanto que não terão um minuto de soli-


dão aqui dentro. Hoje teremos uma grande noite de fogos.

CANTORA – Ah, Fogos! Eu adoro fogos!

JORGE – Mais fogos? Ontem, já era de madrugada quan-


do eu cheguei a ouvir alguns deles.

CANTORA – Adoro!

104
Quatroloscinco

JORGE – Olhei pela janela e vi as rajadas de luz, lindas,


pareciam estar bem distantes. Quase não se ouvia o som, por-
que ele vinha muito depois dos raios luminosos. Parecia cho-
ver pipocas de luz.

GERENTE – Jorge, ontem não tivemos show de fogos.

JORGE – E por falar em show, imagino que sua agenda ao


sair daqui deve estar lotada!

CANTORA – Ah, depende. Primeiro que eu não tenho


data para sair daqui... Mas se for convincente...

GERENTE – Enquanto vocês conversam eu preciso verificar


algumas coisas com a tripulação. Nos vemos logo, no seu grande
show. Passarei no seu quarto para lhe entregar um presente.

CANTORA – Que gentileza. Ah, só uma coisa, é que


quando eu cheguei, ao descer do helicóptero, um rapaz de ca-
belos pretos me ajudou a descer.

GERENTE – Alguém da tripulação?

CANTORA – Sim, um rapaz novo. Não deve ter mais que


25. Cabelos muito pretos, brilhantes... Eu gostaria de vê-lo
antes do show. Em verdade eu gostaria da presença dele na
primeira fileira do teatro esta noite.

GERENTE – Bem, em verdade, nós temos mais de 500 fun-


cionários. Confesso que não faço ideia de quem seja este rapaz.

CANTORA – Um rapaz bem espec...

105
Outro Lado

GERENTE – Mas vou pedir que o encontrem e te aviso o


mais rápido possível.

CANTORA – Sempre gentil.

GERENTE sai.

JORGE – Sem querer ser muito invasivo, mas porque você


quer encontrar este rapaz?

CANTORA - É que eu vou cantar uma música e quando


eu o vi, ele me pareceu ser a própria música. O seu rosto era tão
expressivo, que parecia querer dizer algo muito forte. Não sei.
Nos olhos dele tinha um desespero. Parecia que ele estava pe-
dindo ajuda. Tive uma vontade enorme de conhecê-lo melhor.
Saber quem ele é. E cantar esta música olhando para ele.

JORGE – Mas este rapaz é um sortudo! Ter você cantando


uma música dedicada a ele. Confesso que o invejo!

CANTORA – Não exagere, Jorge.

JORGE – Voltando à proposta que gostaria de fazer. No pró-


ximo mês teremos a posse de um grande presidente no Norte.

CANTORA – Sim, eu sei. Mas já sabem quem vai ganhar


as eleições?

JORGE – Bom, digamos que existe um favorito. E que


tudo colabora para que ele vença. Mas essas coisas, como di-
zem por aí, são segredos de Estado!

CANTORA – E você está me convidando para cantar?

106
Quatroloscinco

JORGE – Se nos desse essa honra.

CANTORA – Cantar na posse de um grande presi-


dente. Que responsabilidade! Vou ter que me segurar para
não desafinar!

JORGE – Você não desafina nunca.

CANTORA – Desafino sim! Você é que nunca me viu nervosa.

JORGE – Ainda fica nervosa?

CANTORA – Mas é claro! Cada plateia é algo novo e


totalmente imprevisível.

JORGE – E o que você sente quando está no palco?

CANTORA - O que eu sinto? Sinto... Que estou viva, que


existo pra isso. Toda minha atenção, os meus poros, os meus
neurônios estão voltados para aquele momento. Eu me sinto
como uma atriz. Encarnando a personagem! Por isso é que
eu tenho que me preparar para atuar frente àquelas pessoas.
Atuar não é tão fácil... Dizem!

JORGE – Mas todos nós já estamos.

CANTORA – Por um lado você tem razão. (Pausa) Você,


que é um homem da política, o que acha disso tudo?

JORGE – Disso tudo?

CANTORA – De todo esse caos.

107
Outro Lado

JORGE – Bom, creio que algumas coisas são inevitáveis,


e fazem parte do curso natural dos acontecimentos. Mas, de
uma coisa tenho certeza: existe um “secreto intento da natu-
reza que opera por trás dos homens”.

CANTORA – O quê? Sabe, tenho muita pena das pessoas


que estão lá.

JORGE – Infelizmente, não podemos fazer nada. A não


ser esperar, esperar, até que isso tudo acabe, tudo isso passe.

CANTORA – E passa?

JORGE – E possamos voltar às nossas vidas. Enquanto


isso, te convido para tomar algo comigo no piano bar. Aceita?

CANTORA – Agradeço o convite, mas agora preciso de


um bom banho e uma meia hora de descanso.

JORGE – Você vai adorar a hidromassagem da sua cabine.


Tenho certeza que te reservaram a melhor suíte.

CANTORA – Ah, você não sabe o que uma hidromassa-


gem faz na vida de uma mulher!

GERENTE volta.

CANTORA – E então, conseguiram encontrar o rapaz?

GERENTE – Digamos que... Sim.

CANTORA – Ele está aí fora?

108
Quatroloscinco

GERENTE – Não.

CANTORA – Onde ele está?

GERENTE – Ele não está mais no navio.

JORGE – Ele saiu do navio?

GERENTE – Ele desertou.

CANTORA – Ai, mas que peralta!

GERENTE – Ele saltou do navio.

CANTORA – O que? Ele saltou do navio?!

GERENTE – Por favor, isso não pode sair daqui. Já dei


ordens à tripulação para que nenhum dos passageiros saiba
do incidente.

ANDRÉ – Mas o que aconteceu?

GERENTE – A equipe de segurança está cuidando de


tudo. Mas, por favor, não deixem que ninguém além de nós
saiba disso. É um apelo que lhes faço.

CANTORA – Vocês não vão buscá-lo?!

GERENTE – Infelizmente, isso é inviável. Pelo que já sa-


bemos ele saltou há mais de uma hora. Na velocidade que
estamos é impossível voltar. E mesmo que voltássemos já está
escurecendo e estamos em um local de fortes correntes marí-
timas. Não encontraríamos o corpo.

109
Outro Lado

ANDRÉ – O corpo? Ele se matou? É isso? Uma morte?

JORGE – Calma, André.

ANDRÉ – Ele... se matou... Alguém se matou no navio!

GERENTE – Uma morte, foi uma morte dentro do navio.

JORGE – Acalmem-se...

ANDRÉ - Ele morreu! Um homem morreu no navio!


Se matou!

CANTORA (a verdadeira) – André! Chega! Desçam daí!


Que coisa de mau gosto!

Eles descem da mesa. Os atores voltam aos seus personagens de


origem. O ambiente volta a ser o bar da primeira cena.

CENA IV – DE VOLTA AO BAR ou A INVASÃO

GERENTE – Era só uma brincadeira.

CANTORA – De mau gosto.

JORGE – A gente só estava querendo se distrair. Pas-


sar o tempo.

CANTORA – O tempo já passou, Jorge! Eu não aguento


mais ficar aqui...

JORGE – Então porque sai daqui! É, sair daqui! Vá cantar em


grandes teatros, cassinos, navios! Com gente ilustre de verdade!
110
Quatroloscinco

CANTORA – Já tem gente aí?

GERENTE – Podemos fechar. Hoje não apareceu ninguém...

JORGE – Antes, à uma hora dessas, isso aqui já estava


lotado! Pessoas importantes, artistas! Artistas... Vocês se lem-
bram da Lígia Abreu?

CANTORA – Ela se matou.

GERENTE – O que?

CANTORA – A poeta. Lígia. Ela se matou. Mas ela não


se matou sozinha. Nós a ajudamos.

GERENTE – O que você está dizendo?

CANTORA – Nós somos cúmplices disso!

GERENTE – Você não sabe o que está falando.

CANTORA – Ela morreu porque nós a deixamos morrer.

GERENTE – Ela morreu porque ela quis!

CANTORA – Porque nós a deixamos morrer! Aquele li-


vro... Era um grito, um manifesto, um pedido de socorro!

GERENTE – Chega! Chega! Pra fora! O bar está fecha-


do. Todo mundo pra fora!

CANTORA – Mas ninguém aqui entendeu nada!


Não entendeu!

111
Outro Lado

GERENTE – Vem, André. Me ajuda a fechar o bar.

ANDRÉ – Eles estão na nossa rua.

GERENTE – O que?!

JORGE – Vão querer entrar aqui.

GERENTE – No meu bar eles não vão entrar!

ANDRÉ – Se quiserem entrar, eles vão entrar, porque são


muitos, eu vi, são muitos. Eles trazem passaportes coloridos
nas mãos, mas as tropas vestem cor de outono. E já passaram
pela banca...

JORGE – O que a gente faz?

GERENTE – A mesa! Vamos usar a mesa para reforçar a porta


dos fundos, me ajuda, Jorge. (Levam a mesa para o fundo da cena)

ANDRÉ – Castro, Batista, Ahmed, Bolivar, Roussef, Reys,


Chaves, Vargas, Pinochet, Salim, Abdulah, Clinton... Todos
vestem cor de outono. As crianças vão brincando de guerra e
a terra, sem fome, engorda comendo corpos famintos...

CANTORA – Deixa entrar. Onde está o vinho, André! Va-


mos abrir logo esse vinagre! Temos que oferecer algo às visitas.

A luz se apaga. Pânico.

GERENTE – O depósito! Vamos todos para o depósito.


Lá é mais seguro.

112
Quatroloscinco

CANTORA – Podem ir. Eu fico aqui.

JORGE – Você está maluca?

CANTORA – Não mais que vocês. Minha estreia. Eles


estão chegando. Só gente ilustre. Eu vou levantar o meu braço
assim... E eles vão aplaudir de pé!

GERENTE – Vem! Você não vai ficar aqui em cima.

CANTORA – Me deixa! Eu quero ficar.

JORGE – Você não pode ficar aqui. Escuta, isso não é mais
uma brincadeira. Isso é real!

Grande golpe de luz vem da direção dos ventiladores e ce-


gam os atores.

ANDRÉ – Tudo vai mal, mas lá de cima a Terra continua


azul, e os corações dos desabrigados em silêncio nas janelas como
namoradeiras prostituídas sempre à espera de Deus. Só nos resta
o pensamento, porque as palavras... E ninguém leu o seu livro,
Lígia, um livro vermelho que só serviu para escorar as portas, mas
as portas não protegem ninguém. Não protegem ninguém.

Os ventiladores estão na potência máxima.

CANTORA – Boa noite. Estou muito feliz que todos vo-


cês estejam aqui. É muito bom vê-los de volta. Ver esta casa
cheia novamente. Por isso, o show de hoje é especial. Um novo
repertório que preparei para essa ocasião.

Nina Simone canta “Black is the color”. GERENTE e JORGE


caminham até os ventiladores. Despem-se de parte de suas roupas.
113
Outro Lado

Tomam a função dos invasores. Vão até o palco, tiram a CAN-


TORA de lá à força. Levam-na até o paredão de ventiladores,
exibindo-a para a tropa metálica. Os invasores preparam a mesa
para o leito de morte da CANTORA. Ela caminha lentamente
até seu destino final. Deixa cair sua echarpe, que se movimenta
no chão arrastado pelo vento. A CANTORA vislumbra seu palco
pela última vez, que se apaga e desaparece. Ela se deita na mesa,
estende a mão, como sempre ensaiou. Os invasores colocam a mesa
na vertical e exibem o corpo da CANTORA morta. Ao final da
música. Blecaute. Silêncio. É possível que o público pense que o es-
petáculo acabou e aplaudam. Se isto acontecer, esperar no escuro até
que os aplausos terminem. Os atores sentam-se sobre a mesa, um ao
lado do outro. Tudo permanece em Blecaute.

CANTORA – O que aconteceu?

GERENTE – O quê?

CANTORA – Não percebem nada?

JORGE – O quê foi?

CANTORA – Este som. Não ouvem? Uma mistura de


vozes, gente falando, carros, ventania, estouros, palmas, risa-
das, pratos caindo, suspiros, choros.

ANDRÉ – Shhhh... Devem ser eles. Estão inventando es-


tórias. Criando realidades.

JORGE – Estão vivendo.

GERENTE – Criando lembranças.

114
Quatroloscinco

CANTORA – O caminho que eu fazia para a escola.


Quando era pequena. Meu pai me apressava, gritava se o ta-
manho da saia era curto demais, se meus cadernos estavam
bem cuidados ou não. O calor do sol batendo na minha cabe-
ça, a poeira da estrada. Eu tinha um sonho recorrente, quando
terminava a aula eu não podia sair porque estava nua.

A luz começa a subir devagar.

JORGE – Shhhh....

CANTORA - Há quanto tempo estamos aqui?

GERENTE – Tempo?

JORGE – Eu também tenho uma família, sabia?

ANDRÉ – Aquele Gambá morto. A terra comendo ele.

CANTORA – Vocês abriram o vinho?

JORGE – No final a gente acaba fixando uma forma.

ANDRÉ desfaz o cubo mágico resolvido.

CANTORA – Foi uma grande noite. As pessoas aplau-


diram de pé.

GERENTE – E onde estão?

CANTORA – Quem?

GERENTE – As pessoas.

115
Outro Lado

CANTORA – Em uma outra época da humanidade, de-


baixo de uma chuva de pipocas.

GERENTE – Vocês se lembram da Lígia Ab...

ANDRÉ – Shhhh......

Muita luz. Os atores observam o público em silêncio. Ao fundo


uma paisagem sonora de guerra, que às vezes parecem ser fogos de
artifício ou mesmo uma festa. Após os sons, uma pausa absoluta. Os
atores agradecem ao público pelo espetáculo da noite.

FIM
******

116
Quatroloscinco

OUTRO LADO – FICHA TÉCNICA


Drama/65min./Classificação: 12 anos

Direção e atuação: Assis Benevenuto, Ítalo Laureano, Mar-


cos Coletta e Rejane Faria

Texto: Assis Benevenuto e Marcos Coletta

Figurino: Paolo Mandatti

Criação de Luz: Marina Arthuzzi

Operação de Luz: Marina Arthuzzi e Maria Mourão

Criação de Cenário: Daniel Herthel

Assistente de Cenotécnica: Wallace Colibri

Trilha sonora original: Marcos Coletta

Arranjo e Assessoria musical: Sérgio Andrade

Of icina em Feldenkrais e Direção de Movimento: Jime-


na Castiglioni

Design Gráfico: Marcos Coletta

Produção: Maria Mourão

Realização: Quatroloscinco - Teatro do Comum

117
Foto de Lz C Frank
Quatroloscinco

Crítica da peça Outro lado


Luciana Eastwood Romagnolli

As questões políticas e afetivas interpunham-se constituin-


do os dois núcleos de personagens de “É Só uma Formalida-
de”, primeiro espetáculo do grupo mineiro Quatroloscinco.
De um lado, estava o descontentamento com as convenções
sociais relativas ao casamento, com as quais o personagem do
ator Ítalo Laureano já não compactuava, mas que ainda sus-
tentavam as ilusões românticas da personagem de Rejane Faria.
Do outro, a frustração de um rapaz cujas ambições profissio-
nais e políticas não se realizaram, no momento em que deve
retornar à casa da família para cumprir o ritual de despedida
do pai morto. A relação com o público se firmava também
dentro de um regime de afetos, instaurado desde a recepção
dos atores aos espectadores, nutrida ao longo da encenação
nos olhares e vozes ternos e mantida para além da sessão por
uma derradeira canção afável e pelas vassouradas do elenco
desmanchando o cenário.
No segundo espetáculo, “Outro Lado”, esse impulso de sa-
tisfazer afetivamente o público cessa, ao menos parcialmente,
dando espaço a uma relação mais distanciada emocionalmen-
te, ainda que invista em momentos de diálogo direto cúmplice.
Nessa nova criação coletiva, o afeto deixa de ser elemento dra-
matúrgico também no nível narrativo, inclusive na interação
entre os personagens, para que questões políticas prevaleçam.
Dito de outro modo, a política de afetos privados cede vez à
política da vida pública e das interações sociais não íntimas.
Ao mesmo tempo, os lados apresentados se multiplicam e
rompem com a possibilidade dicotômica de síntese. O dispo-
sitivo dramatúrgico emula o funcionamento do objeto-fetiche
do espetáculo: o cubo-mágico. Tal qual o volume sólido que

119
Outro Lado

desafia a girar suas peças até que as faces tenham apenas uma
cor cada, a encenação apresenta situações em que os persona-
gens se reordenam em contextos distintos, aos quais se ade-
quam. Como giros na realidade, essas transições não marcam
tempo nem território definidos: estão no campo das possibi-
lidades, probabilidades, casualidades.
Na maior parte dos planos dramatúrgicos em rotação, fica
explícita a construção ficcional com base na representação de
personagens. Antes que essas ficções se estabeleçam, contudo, os
atores adotam uma postura performativa, posicionando-se como
observadores diante do público que adentra o espaço cênico e ao
qual direcionam diretamente suas falas, num disparo de infor-
mações e comentários sobre guerras, probabilidades de histórias
de vida distintas, matemática e Deus, ressaltando o eixo extrafic-
cional palco-plateia. Desse posto, compartilham as diretrizes que
pautarão suas ações quando se voltarem para o eixo intraficcio-
nal, o da relação entre si como personagens. Com essa estratégia,
forja-se desde o início o apelo à contemplação racional por parte
do espectador, convidado não a aderir sentimentalmente, mas a
se identificar com a postura de observador-analista.
Um segundo plano de ação apresenta a história de um bar
decadente onde os funcionários expõem inseguranças por
uma suposta guerra que ocorreria lá fora. Como em “É Só
uma Formalidade”, cabe à cantora que Rejane representa fa-
zer o elogio à ilusão – e, com ele, à representação e ao traba-
lho do atuante. A visão dela será questionada justamente pelo
personagem de Ítalo, de modo que ecoe o embate que havia
entre seus personagens no espetáculo anterior. Também nesse
sentido “Outro Lado” justifica seu título, problematizando as
perspectivas de olhar e probabilidades de ocorrência de con-
dições específicas de vida. Além disso, fora da diegese, para o
grupo os conceitos em pauta no espetáculo fundamentam a
reelaboração de questões reincidentes em suas criações.

120
Quatroloscinco

Assim como com Ítalo diante de Rejane, em outros mo-


mentos os atores rompem o tecido ficcional para afirmar a
atuação e reconhecer o público que os cerca. O tour de force
entre a presença e a representação se complexifica na medida
em que mais camadas representativas vão sendo adicionadas
a cada girar do que se apreende como “realidade”. Assim, aos
atores em diálogo direto e aos personagens do bar, acresce-se
uma terceira situação, na qual estes criam a encenação de um
barco de luxo, onde os mesmos quatro personagens se trans-
formam sem perder referências comuns com os do bar. A ins-
tauração explicita dessa representação dentro da representação
acontece de modo a impedir a ilusão negando a possibilidade
de confusão entre ator e personagem, uma vez que, nesta ca-
mada, é o personagem de Assis Benevenuto quem representa
a cantora. Além disso, as atuações expõem mais um tom false-
ado, parodiando padrões do cinema norte-americano. Assim
como, no bar, Assis quebra a frágil ilusão construída pelos
atores saindo do personagem para jogar aviões de papel na
plateia; no barco, Rejane permanece à margem daquela ficção
dentro da ficção, como espectadora deles.
A função da atriz no espetáculo parece ser a de trazer esse
quinhão de ilusão, manifesta em ingenuidades e risos condes-
cendentes, o que a tornam um contraponto fraco para o jogo
estabelecido entre os demais. Suas personagens não chegam a
ser críveis – o que não significa que os outros sejam, mas a cons-
trução deles não parece clamar por essa verossimilhança tanto
quanto a dela; e este é um paradoxo interessante do espetáculo.
De modo análogo, toda a situação da guerra que ocorreria
lá fora vem como uma realidade distante, invisível, num tem-
po e espaço indeterminados, permanecendo impalpável, sem
concretude. Por um lado, isso descarrega memórias de guerras
distantes, sobretudo no Oriente Médio, sem que a questão da
alteridade cultural se instale, ou seja, sem que a caracterização

121
Outro Lado

de outro tempo e espaço possa diferenciar seus agentes como


“outros”, com os quais não há identificação. Por outro lado,
surte efeito de inverossimilhança: a guerra não se impõe como
uma verdade cênica, e pode-se supor – embora permaneça
impreciso – se não passa de uma ilusão coletiva. Não como
a que impede os convidados de saírem da festa em “O Anjo
Exterminador”, de Luís Buñuel, pois não carrega um aspecto
surreal da falta de sentido – os traços surreais ficam confina-
dos à sequência memorialista; há uma explicação lógica reco-
nhecida, a guerra, a questão é acreditar ou não nela diante de
personagens em outras ocasiões claramente simulam.
Nesse sentido, e olhando amplamente para os trabalhos
do Quatroloscinco, o autoengano – desdobrado em falsidade,
ficção, ilusão – pode emergir como chave de leitura determi-
nante. Se considerado o solo “Get Out”, que Assis escreveu
e apresentou na Janela de Dramaturgia, percebe-se nesses
exemplares criativos do grupo a preocupação com a capacida-
de humana de embarcar em uma visão da realidade, em mode-
los pré-prontos percepção, elaboração e reação, à qual “Outro
Lado” responde com o girar das peças do cubo, multiplicando
as possibilidades e afirmando o acaso a probabilidade, contra
uma verdade engessada.

122
Quatroloscinco

Polifônico
Humberto Giancristofaro

Crítica da peça Outro lado, do grupo mineiro Quatroloscinco


Teatro do Comum, publicada na Revista Questão de Crítica,
edição de março de 2012.

Dando continuidade à sua pesquisa começada pela peça


É só uma formalidade, a companhia Quatroloscinco, de Belo
Horizonte, apresenta outro espetáculo que mescla as possibi-
lidades de confluência entre a realidade e a ficção. Outro lado,
apresentado no Teatro Cacilda Becker na Mostra Mambem-
bão 2012, é uma peça que evoca as infinitas possibilidades
existentes no caos quando se está diante de algo inevitável.
Quatro personagens aprisionados em um bar, em tempos de
guerra, lidam com o determinismo, procurando na ficção uma
válvula de escape razoável.
Em paralelo a isso, o ator Ítalo Laureano desfila as possi-
bilidades matemáticas para a resolução do Cubo de Rubik,
ou simplesmente cubo mágico. Antagonicamente, lembra que
existe a possibilidade de usá-lo como entretenimento infini-
to: acompanhando de forma aleatória a trajetória de um dos
cubinhos pelas faces, sem compromissos de igualar em cores
todas elas. Uma abordagem que, espelhando as possibilidades
dos personagens, sugere o que pode ser feito quando o ideal
é inalcançável.
O entrincheiramento dos personagens no bar, porém, não
supõe que todo efeito possível está totalmente contido na cau-
sa. Nesse ponto, a peça lembra O Anjo exterminador de Buñuel,
no qual um grupo de convidados fica subjetivamente incapa-
citado de deixar uma sala de jantar, sem que nada os impeça
fisicamente de sair. Com o passar dos dias, eles exaurem todas

123
Outro Lado

as condições de sociabilidade do recinto. Em Outro lado, não


é o que eles são capazes de realizar que acaba dentro do bar –
jamais todo o possível é realizado – contudo, para eles o que
não existe mais são as possibilidades de realização diante dos
fatos. Seria um determinismo em absoluto, sem saída. Mas o
efeito que os aprisiona interage simultaneamente com a causa
e também com outros efeitos subjetivos, acarretando um nível
de realidade diferente do nível das causas anteriores. Uma in-
teração que produz uma memória coletiva de algo não vivido
por eles, uma memória de um futuro por vir, mas idealizado,
num determinismo onde a determinação é posta no instante
do acontecimento ou na simultaneidade dos processos. Com
esta posteridade ficcionalizada eles encontram uma forma de
sair daquele lugar.
O método para compor essa fuga depende de três condi-
ções de possibilidade. São como linguagens que se entrecru-
zam para produzir as impressões sensíveis da peça. Começa
por uma enumeração que, ora é trazida pela metáfora com o
cubo mágico, composto determinantemente por faces, cubos
menores e cores, ora pelo elenco dos personagens e de suas ca-
racterísticas. Nesse nível é que as proposições individuais são
lançadas, como propostas disjuntivas, mas que se combinam
para formar o núcleo narrativo. Este segue uma linha monó-
dica, ou seja, uma voz principal numa única temática, envolta
ou não de acordes: pequenos detalhes dos personagens sem
caráter melódico próprio.
Enquanto isso, os fluxos misturáveis entre eles são com-
postos na forma de histórias que são inventadas e mescladas
com suas lembranças. Essa camada é a que confere aderên-
cia aos personagens, e, como lida com o material onírico de
seus papéis, fornece os elementos de resistência frente às difi-
culdades – como a dificuldade de encarar o descompasso em
suas vidas trazido pela guerra. A guerra, com efeito, é o ruído

124
Quatroloscinco

externo que os catapulta para essa busca introspectiva e os faz


passar pela reflexão e pelo revigoramento de uma ética.
A terceira condição faz menção às fronteiras imanentes que
não cessam de se deslocar, formando lacunas ou fendas na nar-
rativa, equiparáveis às viradas de faces que podem ser executa-
das em um cubo mágico. Assim, os topos das cenas são virados
para expor diferentes pontos de vista de uma situação particu-
lar. As diferentes vozes libertas, sem necessitarem atuar numa
mesma realidade, podem produzir uma textura mais extensa e
polifônica. Esse procedimento verticaliza as cenas, sobrepondo-
as para que soem ao mesmo tempo, sem que sejam encenadas
ao mesmo tempo, deixando que ressoem umas nas outras, num
resultado semelhante ao de uma harmonia musical.
A impressão que surge desse efeito é de que a imagem não
fica restrita ao conteúdo das palavras. Na verdade, é uma força
imagética criada para esburacar as palavras, para interromper
qualquer processo de revelação que uma história contada este-
ja trazendo e assim possa dar chance a uma percepção aliviada
da concatenação cognitiva. Uma viragem entre o real dos per-
sonagens e suas ficções. São quase pequenas alegorias carre-
gadas pelo vento – e a imagem de uma parede de ventiladores
em uma das extremidades do palco evoca isso. Outra evidên-
cia dessa terceira linguagem se dá nos corpos dos atores. Eles
concentram seu gestual em movimentos significativos. Seus
corpos falam por cima ou por entre as palavras, ressignifican-
do o que elas contam. A peça, desta maneira, caminha para a
conceituação de que uma imagem estética não é um artifício,
mas se faz por um acúmulo, por um processo polifônico entre
o real e a ficção.

125
Este livro foi composto em
Adobe Calson Pro pela Edi-
tora Multifoco e impresso em
papel offset 75g/m2

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