Você está na página 1de 4

CHAME ESSE POETA, TIRE A PEDRA DO CAMINHO:

EXPERIMENTAÇÃO E POÉTICA NO VÍDEO CEP 20000, PRODUÇÃO DE


PATRÍCIA LAGO E CHRIS PRADO

Lilian Carla Barbosa

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos.


É o risco, é estar sempre a perigo, sem medo. É
inventar o perigo e estar sempre recriando
dificuldades pelo menos maiores. É destruir a
linguagem e explodir com ela.
Torquato Neto

Luto para que todo ABS tenha um WC. e não para que todo WO tenha um OK. mas pra
que todo o QG tenha HP toda a PM, PF, BG, BHC, LSD, CBF, OB, RJ, FMI, PCB, MPB e
CHICO, O, MST, SOS! [...]
É com essa montagem, talvez? De siglas vocalizadas em ritmo de Hip Hop que,
extraídas de ouvido, se tornam incompreensíveis em certo ponto, o modo como as produtoras
do vídeo CEP 20000 escolheram para iniciar a produção audiovisual comemorativa dos 10
anos de existência do Centro de Experimentação Poética 20000. O CEP, como é conhecido,
se estabeleceu como sarau multimídia desde agosto de 1990. Localizado na cidade do Rio
Janeiro, foi desenvolvido, a princípio, por Guilherme Zarvos e pelo poeta Chacal, conhecido
por ter feito parte, na década de 70, do fenômeno poético e cultural conhecido como “poesia
marginal brasileira”.
Para conversarmos sobre a produção audiovisual que envolve meu trabalho de pesquisa
com o CEP, coloco em questão o vídeo produzido pela BL Productions no ano de 2000. Esta
produção foi distribuída pela revista Trip, acompanhada de um CD com músicas e poemas
falados que haviam sido apresentados no sarau até então.
O vídeo apresenta o CEP com imagens que surgem em velocidade agitada e
descontínua, enquanto que a palavra segue o mesmo fluxo, flutuante. É interessante como a
imagem no vídeo ganha força, pois é pela imagem e não pela palavra que algumas
informações são dadas ao espectador a princípio. Há uma confluência de passos, vozes, ruas,
placas, batuques, palco e platéia em direção ao espaço que será apresentado.
Desafio-me a pensar em como os autores do vídeo, ao apropriar-se da maneira como
eles mesmos vêem e pensam o CEP 20000, usaram os processos de montagem para trazer à
tona ressonâncias de suas percepções individuais. Ao longo desta produção, há uma narrativa
com imagens sem nexo entre si, que parece buscar relacionar os acontecimentos que
configuram o sarau a uma máquina turbinada pela deformidade feita nas palavras, nos sons,
nos movimentos corporais, nas atitudes despadronizadas e no pensamento fora domínio da
razão.
Até onde esta montagem, os cortes, a escolha estética pela alta velocidade em que se
passam os quadros é produtora de realidade? Talvez o vídeo tenha resolvido esta questão

LINHA MESTRA, N.24, JAN.JUL.2014 2029


CHAME ESSE POETA, TIRE A PEDRA DO CAMINHO: EXPERIMENTAÇÃO E POÉTICA NO VÍDEO...

coerentemente à intenção de produzi-lo. A falta de continuidade e a ausência de uma


explicação do que seja este Centro que faz 10 anos de existência, vai de encontro ao que ele se
propôs a sê-lo durante este período: descontínuo, pulsante, disforme. O não visível e o não-
dito reforçam o caráter inenarrável que o CEP parece querer para si, enquanto se mostra como
um Centro sem precedentes, que dispensa referência, implicado na loucura.
A efervescência cultural que promove novas formas de interação e mistura as
linguagens plásticas, musicais e poéticas vão sendo caracterizadas pelos efeitos e cortes,
papeis, microfone, corpo, música, gritos, sussurros, dança. Filtros que tornam a imagem
desfocada, enquadramentos que vibram, se aproximam e se afastam rapidamente, a vertigem e
a flutuação, tudo em prol da possibilidade de desprender-se do conhecido, do que possa ser
meramente reproduzido.
Finalmente, nesse universo sem centro, nos intervalos entre as imagens do vídeo, que
não se propõem a manter a rigidez da continuidade – há uma provocação, há a possibilidade
de se re-inventar, de se experimentar em novas articulações, tendões e ligamentos tanto no
corpo físico quanto no pensamento. E de se perguntar de onde provem o caráter vívido que
une esses seres? Desencadeando encontros que tentam tornar visível a infinita possibilidade
de forças que atuam no movimento, na palavra, na imagem.
Assim como a poesia re-significa a palavra dentro do contexto do poema, assim como o
poeta a faz ir além de seu significado dicionarizado, igualmente à palavra, que pode ocupar
outro lugar, ganhar novos sentidos, nós também podemos encontrar maneiras de nos inovar e
de nos experimentar. O que a oportunidade de delirar e ao mesmo tempo de “não se fazer
nada”- palavras ditas pelo poeta Chacal no início do vídeo – pode provocar em nós? Que
estamos sempre pressionados pelo mundo instituído a fazer algo, a dar resultados, a buscar
soluções para os problemas.
Os recortes e seleções de imagens para a montagem deste vídeo não estão desvinculados
do modo como seus idealizadores vêem o CEP ou querem que ele seja visto, por isso elas não
representam o real, mas sim, se dobram sobre palavras cantadas, faladas e efeitos visuais que
distorcem, desequilibram, esvaziam os sentidos do que ouvimos ou vemos. Como se não fosse
preciso compreender o que se diz ou interpretar o que se vê, mas deixar-se conduzir pelo
desejo ao introduzir a experimentação no modo de existência instituído.
O poema de Michel Melamed, que introduz o vídeo, nos insere em um universo
aleatório e vertiginoso de siglas vociferadas, um possível caos-germe para que o poema e as
letras possam ir além da esquemática organização e estruturação clássica dos versos, dos
enredos, podendo deslocar-se da submissão à representação. Como escreve Daniel Lins em
seu texto A Escrita Rizomática: “Cabe deixar viajarem a língua e as palavras, pôr a língua
em variação contínua, pois é assim que se podem esvaziar os conteúdos, desfazer as formas e
deixar passar algo assignificante, informal, assubjetivo” (LINS, 2012). Dando continuidade a
essa vertigem, as imagens do vídeo são incessantemente atravessadas pelo movimento, pelo
vai-e-vem da desfiguração da edição. É possível pensar que o vídeo tomou a forma do Centro
que ele almeja apresentar, ganhando força ao agenciar som, imagem e palavra, sem a
intermediação de explicações, entrevistas ou depoimentos de participantes.

LINHA MESTRA, N.24, JAN.JUL.2014 2030


CHAME ESSE POETA, TIRE A PEDRA DO CAMINHO: EXPERIMENTAÇÃO E POÉTICA NO VÍDEO...

Esse aglomerado de siglas, o quase incompreensível que introduz o vídeo, funciona


como reação química que estremece as regas, continuando citando Daniel Lins: “[...] no
sentido também de vomitar, uma cheia, uma inundação, uma libertinagem, profusões de
signos úmidos, secos, irrigados e, assim, abrir alas para uma língua desviante que fia e
engendra um sentido novo, inédito: uma escrita por vir” (LINS, 2012). Diretamente
relacionado com o emaranhado non-sense de ideias e projeções que iniciam o vídeo, ele é
finalizado pelos versos de uma música, também em ritmo de hip hop, “chame esse poeta, tire
a pedra do caminho/ eu gosto de falar sozinho/ Maria fumaça, tu és minha rainha/ chame esse
poeta, tire a pedra do caminho, gosto de falar sozinho”.
Quais seriam as pedras no caminho: a impossibilidade de publicar nas grandes editoras?
A gramática? A linguagem? O pertencer a um estilo? A timidez? O assemelhar-se com...?
Critérios? Padrões de qualidade? Ainda que façamos parte de vários tipos de agenciamentos
culturais, sociais, ainda que a vida em sociedade crie determinações e limitações enraizadas,
como podemos explorar o novo e inventar possibilidades de fissuras, potencialidades, desvios.
Não deixamos de fazer parte do que nos agencia, o enraizamento existe, mas não é forçoso
mantê-lo fechado – manter a pedra no caminho – a vida pode ser um processo aberto, sem
objetivo ou finalidade, assim como a escrita e o pensamento.
A sigla CEP significa usualmente Código de Endereçamento Postal, porém, os
idealizadores do CEP arrastaram esse significado para Centro de Experimentação Poética, na
intenção de provocar um desvio e dar ao evento um endereçamento móvel, sem ponto fixo.
Sob esse aspecto, a experimentação poética do CEP se aproxima ao conceito de Deleuze,
pondo em evidencia os ensaios abertos e não o que é interpretável, as diferentes combinações
e efeitos e não um processo pré-estabelecido, a improvisação e não os conjuntos de regras e
métodos. Por outro lado, se afasta do conceito, quando entendemos que a experimentação
nada tem a ver com o acaso, não se faz para ver o que acontece, para buscar um resultado,
mas sim, para determinar do que são capazes – nos mais diversos encontros e combinações
possíveis – os corpos, a linguagem, a mente, os agrupamentos sociais, entre outras entidades.
No mais, a produção do vídeo CEP 20000, ao mesmo tempo em que se constrói, se
fragmenta em situações várias, se deslocando do poema à música, da música à dança e deixa à
parte o assombro da certeza. Decentraliza o narrador, não há quem nos conte sua história do
começo ao fim. Talvez nós assistíssemos ao meio, a condensação do estado do significado
para estado do sentido, a transformação da matéria, da palavra, da imagem, do movimento dos
corpos. Vivemos, escrevemos, agimos e pensamos muitas vezes, enclausurados por regras e
convenções, por imposições econômicas e sociais, e por que não libertar a vida?
Experimentar-nos, tirando estas, entre tantas outras pedras no caminho, para dar passos com
forças cada vez mais intensas.

Referências

DELEUZE, G. Del clichê ao hecho pictórico. In: DELEUZE, Gilles. Pintura, El concepto de
diagrama. Buenos Aires: Cactus, 2007. p. 49-88.

LINHA MESTRA, N.24, JAN.JUL.2014 2031


CHAME ESSE POETA, TIRE A PEDRA DO CAMINHO: EXPERIMENTAÇÃO E POÉTICA NO VÍDEO...

BAUGH, B. Experimentation. In: PARR, Adrian (org.). The Deleuze Dictionary.


Edinburgh: Edinburgh University Press, 2010. p. 93-95.

SEMETSKY, I. Experience. In: PARR, Adrian (org.). The Deleuze Dictionary. Edinburgh:
Edinburgh University Press, 2010. p. 91-93

LINS, D. A Escrita Rizomática, 2012. Disponível em: <http://sibila.com.br/novos-e-


criticos/a-escrita-rizomatica/5331>. Acesso em: 13 de março de 2013.

LINHA MESTRA, N.24, JAN.JUL.2014 2032

Você também pode gostar