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“O Homem Pós-Orgânico”: Quarta Ferida Narcísica?

Nelma Medeiros*

Freud uma vez afirmou1 que “o ingênuo amor-próprio dos homens”,


no curso do desenvolvimento da civilização, sofrera três golpes desferidos
pelas pesquisas científicas. Com Copérnico, o primeiro golpe, cosmológico,
destruía a ilusão narcisista de que a Terra era o “centro estacionário do
universo”. Coube a Charles Darwin e seus colaboradores desferir o
segundo golpe, biológico, dado sobre a presunção do homem de ocupar
uma posição dominante sobre a criação. A terceira ferida narcísica partia da
psicanálise, cujo desenvolvimento, impulsionado pelos trabalhos do próprio
Freud, procurava mostrar o debaldado esforço do ego em ocupar o lugar de
governante absoluto da realidade, por causa e a despeito dos investimentos
de energia psíquica que o acossavam, inviabilizando a tranqüilidade assim
almejada, ao mesmo tempo que exigindo (impossível) vigilância constante
contra o movimento da pulsão. Mais violento e doloroso, o golpe
psicanalítico resultava, por isso mesmo, aos olhos de Freud, de mais difícil
aceitação, pois dava fim à suposição de paz e segurança alimentada pelos
homens no curso da civilização. Daí também as resistências que a
psicanálise encontrava à sua hipótese acerca da constituição pulsional do
psiquismo e as conseqüências disso para a organização do mundo, ao
conferir a este princípio um espectro mais genérico e percuciente que não
havia sido ousado até então.
Parece que estamos em vias de sofrer um quarto golpe narcísico 2,
desferido agora pelo impulso tecnológico das duas últimas décadas, que
lançaram o homem diante da (não mais denegável) realidade protética de
*
Professora do Depto. de Ciências Humanas/UERJ. Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia/UFRJ. Pesquisadora do ...etc. – Estudos Transitivos do
Contemporâneo (CNPq – UFJF. 0001)
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suas articulações. Somos levados a reconsiderar, de maneira inaudita, os


abismos conceituais que até agora sustentaram a vontade dicotômica de
nossas realizações. Buscar, fora desse recorte, um outro entendimento
acerca da movimentação artificializante que comove o homem é, sem
dúvida, questão fundamental, pois suas provas de realidade, em todos os
níveis, estão se oferecendo ao mundo de maneira cada vez mais explícita.
Não nos aproximaríamos do momento de reconciliar em novos termos a
razão excessiva que qualifica e movimenta nossa produção com o advento
do mundo protético? Qualquer que seja a resposta para essa pergunta, essa
realidade já está em curso e muitos ainda não sabem o que fazer com isso.
O livro O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e
Tecnologias Digitais, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, de Paula

Sibilia, é uma boa oportunidade de nos inteirarmos dessa discussão. Mostra

domínio e eficiência na seleção e exposição das principais questões trazidas


pelas novas tecnologias, com a mudança do paradigma mecânico e
analógico para o informático e digital. Articula essa virada tecnológica com
as diversas estratégias de poder que se disseminam como mecanismos de
controle que atingem imperceptivelmente nossas práticas e cotidianos,
exibindo novas conexões entre capital e tecnologia, num outro perfil do
capitalismo, agora globalizado e pós-industrial.
É partindo da idéia foucaultiana de biopoder que Paula Sibilia
considera as tecnologias digitais e suas diversas aplicações
(telecomunicações, ciências computacionais, biotecnologias, etc.), para
evidenciar como essa recomposição tecnológica vem agindo sobre a “vida”
e produzindo novos “corpos” e “subjetividades” na sociedade
contemporânea. A chave de leitura que permite acompanhar as
transformações que se operam dentro das práticas tecnocientíficas é a
distinção entre tecnociência “prometéica” – mais próxima das sociedades
industriais modernas marcadas pelo que Michel Foucault chamou regime
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disciplinar – e tecnociência faústica – compatível com as sociedades de


controle, idéia desenvolvida por Gilles Deleuze a partir do trabalho de
Foucault. Dessas últimas a característica fundamental seria o investimento
no sentido de “transcender a condição humana”, evidenciado justamente
nas produções e apropriações das novas tecnologias e sua conversão na
(busca pela) decifração do “mistério da vida”. Temos aí uma gama de
investimentos, da manipulação protética localizada (os biochips ou
wetchips, por exemplo) ao homem “pós-orgânico” e à evolução “pós-
humana” como possibilidade aberta pelos estudos arrolados em torno da
rubrica “inteligência artificial”, associados às biotecnologias.
Mas em que consistiriam exatamente a versão prometéica e fáustica
da tecnociência e as subseqüentes significações daí retiradas, importantes,
segundo a autora, para mais adequada compreensão do que se passa hoje?
A versão prometéica corresponderia ao esforço ocidental da era moderna
no sentido de dominar tecnicamente a natureza, apostando no papel
esclarecedor e liberador do conhecimento científico. Com fé no progresso
material, a tradição prometéica, no entanto, teria se desenvolvido dentro de
certos limites, na verdade co-naturalizados ao conhecimento e, ato
contínuo, tomados como intransponíveis porque sagrados. Assim, “o
progresso dos saberes e das ferramentas prometéicas redunda em um certo
‘aperfeiçoamento’ do corpo, porém este será sempre naturalista e não-
transcendentalista; ou seja, não pretenderá ir além dos limites impostos pela
‘natureza humana’”, sem “ultrapassar o umbral da vida” (p. 46).
Ora, no curso do séc. XX, é justamente a vida que é alçada à
condição de último desafio aos mitos que alimentaram a já decadente e
desmoralizada versão iluminista da ciência. A tecnociência contemporânea,
metamorfoseando Prometeu, torna-se fáustica em razão de sua insaciedade
e infinitização, doravante movendo-se por um “impulso cego para o
domínio e apropriação total da natureza, tanto exterior quanto interior do
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corpo humano” (p. 48), e não mais reconhecendo limites e fronteiras. Nesse
movimento as ciências da vida se encontram com a teleinformática,
desbancando as antigas dicotomias metafísicas – mente-corpo, espírito-
matéria, sujeito-objeto, natureza-artifício –, na busca pela superação da
“condição humana”, das “falências do corpo orgânico”, dos “limites
espaciais e temporais ligados à sua materialidade”. Pois “não basta
simplesmente melhorar suas condições de existência [do homem] e lutar
contra as forças hostis da natureza”, como sonhou a tradição prometéica.
Nosso momento é fáustico “pois o novo sonho aponta para bem mais
longe: visa à transcendência do ser humano” (p. 87).
Mas não estaríamos correndo certos riscos quando focamos nossa
análise partindo do homem e esperando encontrar aí sua solução? Alguns
autores atentam para isso, equacionando a questão de outro modo por
recusá-la nos termos humanistas. É o caso, por exemplo, de Peter
Sloderdijk (trabalhado inclusive por Paula Sibilia), que tem mostrado a
falência desse referencial, reclamando como necessária uma lógica que
possa reconciliar as opositividades tradicionais do pensamento ocidental,
neutralizando-as pelo raciocínio “trivalente”3. Segundo ele, a generalização
da idéia de informação faz exatamente isso, pois permite a passagem “entre
o pensamento e as coisas, como um terceiro valor entre o pólo da reflexão e
o pólo da coisa, entre o espírito e a matéria”, princípio que encontra
ressonância em trabalhos como os de Foucault (poder) e Deleuze
(multiplicidades).
Outros autores, como MD Magno, partem da lógica trivalente, que já
é característica da tradição psicanalítica, para mostrar, a partir desse campo
e corrigindo-lhe a rota, que a própria trivalência depende de uma razão que
sustente as operações de neutralização que ela torna possíveis. Esta razão,
que funda a trivalência, explicaria de maneira ainda mais abrangente e
abstrata a vocação artística que nos qualifica e que se mostra
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despudoradamente hoje, permitindo cortar o nó górdio da questão humana.


Acompanhando o pensamento NOVAmente, em textos como Arte&Fato,
Arte e Psicanálise, Velut Luna, Est’Ética da Psicanálise (Iª e IIª partes),
Psychopathia Sexualis, Comunicação e Cultura na Era Global e, mais
recentemente, nos Falatórios4, encontramos vários caminhos para situar
não apenas o que Magno, seu criador, formalizou há mais de duas décadas
como base mínima de operação da psicanálise, como também modos de
considerar questões relativas à “tecnociência contemporânea” (novas
tecnologias, poder, arte, polaridade e continuidade entre formações, etc.)
que se mostram simples e econômicos em seu encaminhamento.
A dica básica desse pensamento é sugerir que invertamos o vetor de
nossa postura. Ao invés de partir do homem como realidade de apropriação,
infinitização e transcendentação, vamos considerar a possibilidade de uma
razão excessiva que possa qualificar todo e qualquer funcionamento
mental como determinado, em última instância, pela transcendentação, e
definir como Pulsão (aquela mesma freudiana do Além do Princípio do
Prazer) esse empuxo de transcendentação. Recolhendo plenamente a
pulsão freudiana, vamos postulá-la como o Artifício constitutivo de tudo
que há, formulado como Princípio de Haver. Dois aspectos imediatamente
saltam desse princípio: se formos coerentes com o campo aberto por Freud,
Haver é, antes de mais nada, a experiência traumática do impacto de estar
no mundo, e o concomitante reconhecimento – irredutível a qualquer
aparelho de descrição – da impossibilidade de sua evasão 5; mas Haver é
também, como ferramenta heurística, a extensão conceitual neutra do que
diversos campos de saber vêm tentando equacionar como totalidade
dinâmica (seja pela razão logarítmica, quântica, orgânica, informacional,
digital ou outra). Ora, se o Haver é, digamos assim, artifício originário,
toda emergência de funcionamento pulsional que aí surja deve poder seguir
seu princípio artificializante, replicado e replicável em um suporte material
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qualquer (carbono, silício, etc.). É o que Magno chama de Idioformação,


isto é, qualquer formação que se reconheça capaz de referir-se à sua própria
inscrição e experiência de Haver, a idéia de Ídious se apropriando das
significações dispersas na etimologia, a saber, próprio, particular, de caráter
próprio, separado, distinto, original, privado, que pertence em próprio a
alguém, que tem um caráter ou natureza próprios6. A Idioformação sofrerá
então as vicissitudes do constrangimento sintomático aleatório que lhe for
imposto, produzindo, em acréscimo também sintomatizado, ferramentas
secundárias de auxílio (em nosso caso, a cultura), que poderão ou não
facilitar sua performance no sentido de uma abstração que seja compatível
com o princípio de artificiação que a qualifica originariamente. É dessa
composição que resulta a polêmica dos poderes e sintomas, e a possi-
bilidade ou não de indiferenciá-los (eis aí a trivalência que pede
Sloderdijk), justamente porque, em última instância, o que empuxa o
interesse, o gozo, o tesão, atravessando a multiplicidade de formações, é a
reversão absoluta de sua condição de Haver em não-Haver, experiência
impossível que abre, contudo, a comunicação entre os possíveis, regendo
sua articulação: eis aí a razão anterior que reclama Magno para sustentar
toda e qualquer possibilidade de trivalência.
É assim que saudamos o homem – “espécie desafortunada e
corajosa”7 que terá criado outras: um caso sintomático específico do
funcionamento pulsional. É a razão excessiva que explica o périplo do
homem, e não o contrário. A ferida narcísica, qualquer delas, dói porque
nem sempre estamos disponíveis para o exercício de indiferenciação,
afeitos que somos a nossos (deliciosos) sintomas animais, reconstituídos
mimeticamente como humanismo. Por isso é bem-vindo todo trabalho,
como o de Paula Sibilia, que ajude no entendimento de nossos embates
sintomáticos, em qualquer nível. Porque, queiramos ou não, a polêmica
está só começando.
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Março 2003
Notas
1. FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias (Conferência XVIII-1916/17). In: Edição
Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol.
XVI. O mesmo argumento aparece no artigo “Uma dificuldade no caminho da
psicanálise”, que o leitor encontra no vol. XVII da mesma Edição Standard.
2. Cf. MAZLISH, Bruce. The fourth discontinuity. The co-evolution of humans and machines.
New Have and London: Yale University, 1993.
3. SLODERDIJK, Peter. El hombre operable. Notas sobre el estado ético de la tecnología
génica. Trad. Fernando La Valle. In www.otrocampo.com/3/sloderdijk.html
4. MAGNO, MD. Psicanálise: Arreligião. Falatório 2002. Inédito, 2002.
______. Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito. Falatório 2001. Inédito,
2001.
______. Arte da Fuga [Assim se move o (in)consciente]. Falatório 2000. Inédito, 2000.
______. Comunicação e cultura na era global (Seminário 97). Texto inédito. Cf.
www.novamente.org.br.
______. “Psychopathia Sexualis” (Seminário 96). Santa Maria: Ed. UFSM, 2000.
______. Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral (Seminário 95). Rio de Janeiro: NovaMente
Editora, 2000.
______. Velut Luna: a Clínica Geral da Nova Psicanálise (Seminário 94). Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2000.
______. Est’Ética da Psicanálise - Parte II (Seminário 91). Rio de Janeiro: NovaMente Editora,
2003, 2 vols.
______. Arte & Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral (Seminário 90). Rio de
Janeiro: NovaMente Editora, 2001, 2 vols.
______. Est’Ética da Psicanálise: Introdução (Seminário 89). Rio de Janeiro: Imago, 1992.
5. Idem, Falatório 2000, seção 12: “A Razão e a Fé”.
6. Idem, Falatório 2001, seção 2: “Preliminares ao entendimento da marionete”.
7. HOUELLEBECQ, Michel. Partículas Elementares. 3a ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999,
p. 340.

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