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Fórmula do ritornelo

silvio ferraz, 2008

Existe um cruzamento entre a filosofia de Gilles Deleuze e a música, sobretudo a


música do século XX. Poderia até mesmo dizer que este cruzamento se potencializa
nas parcerias que realiza com Félix Guattari, como em Kafka, por uma literatura menor
e Mil platôs e O que é filosofia?. Não são poucas as passagens em que figuram nomes e
idéias de Pierre Boulez, Olivier Messiaen, Luciano Berio, Dieter Schnebel, John Cage.
São também marcantes, neste campo cruzado as palestras e aulas sobre tempo
musical realizadas no Institut de Recherche et Coordination Acoustique/ Musique.
Nos escritos com Guattari são diversos os conceitos que circulam desde os escritos de
compositores para a filosofia e vice-versa. A idéia de personagens que se
autonomizam, tal qual observa Messiaen sobre o ritmo em Igor Stravinsky: os
personagens rítmicos. A noção de espaço liso e estriado, proposta por Pierre Boulez
em seu Penser la musique aujourd’hui. O conceito de rostidade que se cruza facilmente
com o rosto em Visage de Berio. A presença marcante de Cage no último capítulo de
O que é filosofia?. Poderia dizer ainda o mesmo quanto ao rizoma que é como a erva
daninha “Você a planta num certo terreno e, bruscamente, ela se põe a proliferar
como erva daninha”, nesta imagem realizada por Boulez em Par volonté ou par hasard.
Ainda nesses mesmos textos nasce o conceito de ritornelo, este fortemente ligado à
música e que tem como ressonância de fundo a música de Mozart, passagens de
Mussorgski, e que poderia extrapolar para todas canções infantis que perpassam a
música de Schumman e Brahms. O ritornelo é a ladainha, o rondeaux, as rondes
primaveris que volteiam em Stravinsky.

O conceito que pretendo trabalhar neste artigo, o de ritornelo, tem um espaço


especial dado seu aparentemente fácil cruzamento com a música. Mas os conceitos
em Deleuze e Guattari, ou mesmo em qualquer outro filósofo são entes que
conversam quase que entre si. Trazer um conceito para fora do campo da filosofia e
fazê-lo conversar com não conceitos muitas vezes acaba em naufrágio, ora por serem
empregados quase que como metáforas, ora por se tornarem como que pequenos
dogmas. Não saindo muito deste campo da filosofia no qual nos colocamos desde o
início do artigo, um conceito não é uma afeto, um percepto ou um funtivo. Para a
conversão do conceito em afetos ou perceptos é necessário torná-lo sensível como o
fizeram, por exemplo, os autores citados acima. Neste sentido o principal foco deste
pequeno artigo é tornar sensível na forma de um funtivo o conceito de ritornelo.

Sobre o ritornelo, poderia se dizer que ele já se infiltrava na obra de Deleuze mesmo
antes de seus trabalhos com Guattari. Deleuze escreve por ritornelos musicais. Suas
frases são costuradas como quem tece um tema, uma melodia, uma grande textura
sonora ou mesmo uma paisagem sonora. E não se trata dos ritornelos formais da
música tradicional (um grande tema que volta, uma parte que é repetida), mas de
micro e macro ritornelos que se entrelaçam como nos jogos de permutação. É assim
que frases como “o simulacro é o sistema em que o diferente se refere ao diferente
por meio da própria diferença” ou, “o presente é o repetidor, o passado a repetição,
mas o futuro é o repetido” perpassam seus escritos. Impossível não sentir aí a
ressonância de Beckett mesmo que das pequenas “Mirlitonades” escritas dez aos
depois de Diferença e Repetição.1/2 Não se tratando da reiteração de grandes blocos
formais, Deleuze realiza pequenos ritornelos de matéria não formada, ritornelos de
transientes, e seus rondeaux se colocam como um modo de dobrar a escrita e fazer de
cada palavra um vórtice de conexões. Da escrita de Deleuze poderia se dizer que ela
se faz uma arte do tempo, como na música de Messiaen.3 E este tempo é o tempo da
ruminação, uma força de lentidão daquelas que faz o leitor ir e vir sobre uma mesma
frase, mas que à primeira vista parece veloz.

O ritornelo é assim uma pequena usina de maquinação de diferenças e nele ressoa a


idéia de repetir o diferente. De certo modo Deleuze retoma a fórmula de Gabriel

1 Beckett, S. Poèmes suivi de mirlitonnades. Paris: Minuit. 1999. p.36. (“escutem-nas / se juntarem / as
palavras / às palavras / sem palavra / os passos / aos passos / um a / um”).
2 DR. p. 437 e pp. 160-161. As obras de Deleuze aqui citadas estarão citadas por abreviação de seus títulos,

MP1-4 - Deleuze e Guattari Mil Platôs, vols 1 a 4. Trad.bras. Coord. Ana L. De Oliveria. São Paulo: Ed.34,
2002.[1980]
QF? – Deleuze e Guattari. O que é a filosofia? Trad.Bras. Bento Prado Jr. E A.Muñoz. São Paulo: Ed.34, 1998.
[1991]
ES – Deleuze, G. Empirismo e Subjetividade. Trad. Bras. Luiz Orlandi São Paulo: Ed.34, 2001. [1953].
DR - Deleuze, G.. Diferença e Repetição. Trad. Bras. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio: Graal, 1985.
[1968]
3
Sobre esta questão da relação repetição e música, ver: Ferraz, S.. Música e repetição: a diferença na
música contemporânea. S.Paulo: Educ. 1997.
Tarde em Les lois de l’imitation, e quando fala em repetir o diferente ele praticamente
retoma a idéia de imitar a invenção: imitar a invenção falsificando a invenção, imitar
as forças não formadas da invenção, com o que dá-se sempre origem a uma nova
invenção. Neste sentido, no ritornelo não são as matérias formadas que voltam, mas
as forças que conectam fragmentos de matérias, que conectam transientes. No
ritornelo a repetição é aquela que vai de uma matéria não formada à outras, não
existem linhas fáceis de relações hereditárias, mas um contágio de micro-pontos
soltos. O repetir é como que plantar um punhado de caos e dar-se conta de que as
coisas proliferam como ervas daninhas que ao ser plantada em um terreno se
espalham em outros.4 Não se trata da repetição de uma forma, de um nome, um
termo conhecido, mas sim do fato de que há sempre uma “falha” que ninguém viu
muito bem, de uma sonoridade, um acorde, um gesto pequeno (ou grande) mas
quase invisível que se conecta livre com outros. É como se numa melodia, uma nota
do acompanhamento, o timbre da voz do cantor, uma nota que é cantada por mais
tempo, um pequeno trinado em uma das notas,5 um glissando, um portamento,
surgisse solto levando a escuta para longe da simples melodia que se desenhava.

A repetição de matérias não formadas desfaz a idéia de que é preciso criar elementos
que unifiquem, que liguem um som a outro, uma imagem a outra. Se as formas
musicais, as melodias, as cores, as massas sonoras e visuais não se relacionam
facilmente, seus micro-fragmentos não passam pelo mesmo problema. Lembrando
Deleuze em Péricles e Verdi: a filosofia de François Chatelet, é como “como se houvesse
uma relação não humana” nas coisas, micro relações que se dão o tempo todo entre
as matérias não formadas. E todo processo de estruturação, de gramaticalização, de
regimento, não passa de um mecanismo de limitar as relações. Acreditávamos que
era o contrário, que para algo se relacionar a algo seria necessário algum mecanismo
de repetição de matérias formadas, de partes, de termos, de significados, mas não, as
relações se dão e toda estruturação não passa de um modo de limitar as relações. O

4
Cf. Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, Ed. du Seuil, citado por Deleuze, G. e Guattari, F.. Mil platôs,
vol.1. p. 14.
5 Notando que até nas construções mais precisas da música de Arnold Schoenberg existiam traços

inexplicáveis, Adorno não os deixa soltos e os denomina como sendo o registro sismográfico do
trauma inconsciente (Cf. Adorno, T.W.. Filosofía de la nueva música. Trad. Esp. Alfredo Muñoz. Madri:
Akal. 2003. pp. 43, 45, 129).
caos não é o lugar da ausência de sentidos ou relações mas o lugar em que os
sentidos proliferam livres e a arte é aquele lugar em que, de dentro de uma ordem
quase que obrigatória, a qual o artista tem de vestir conforme sua época, deixam-se
pontos soltos, arestas mal aparadas, aquilo que o mestre-escola chama de erros.
Pequenos lugares sem nomes onde toda matéria ainda não formada constitui-se
autônoma, um personagem autônomo, para se conectar e desconectar à primeira
escuta, à primeira leitura ou visada. O jogo do ritornelo é aquele em que as matérias
não formadas autonomizam-se e saltam fora dos domínios formados, para se
conectarem a outras, em outros domínios, e assim manterem seu movimento.

Ritornelo

Como Deleuze e Guattari definem o ritornelo? Não o definem, rodeiam como


Giacinto Scelsi quando compõe como quem realiza um “viaggio al centro Del
suono”.

Ritornelo é o termo musical que nos diz o canto circular, o voltar sobre um mesmo
tema, o voltar ao início da música e tocá-la novamente. Mas em Deleuze e Guattari o
Ritornelo vai além da terminologia musical e das reiterações rítmico-melódicas às
quais está associado na prática musical. Em torno do ritornelo Deleuze e Guattari
põem a girar um outro quadro conceitual bastante complexo, desfilando por sua vez
uma série de conceitos como território, linha de fuga, código, meios, ritmos.

Mas o que interessa aqui é que o ritornelo implica uma operação de movimento, um
movimento que consiste em fazer um território e deixar o território, em reunir e
abandonar coisas para depois conectá-las e desconectá-las. Um movimento que
consiste em partir de fragmentos de coisas que se conectam livre, atrelá-los a formas
e mecanismos de relação e notar como as pequenas arestas mal aparadas trazem de
volta fragmentos autônomos que abrem o campo de relações. É assim que Deleuze e
Guattari dizem que o ritornelo parte do caos e se destina ao cosmo, distinguindo três
aspectos (ou movimentos): (1) o curso-recurso, a ladainha, o canto reiterado dos um
território advindo do movimento em torno do eixo, a criação de um estilo (3) o
abandono do território e o desenho das linhas de fuga. Ou seja, o ritornelo
caracteriza-se pelo movimento de eleger um eixo; de traçar um espaço em volta deste
eixo e deixar com que alguns elementos se estratifiquem e se crie a consistência
necessária para tornar expressivos tais elementos; esbarrar então numa linha
vertiginosa que quase desfaz tudo: um corte, um acidente, uma sensação qualquer
que não estava no quadro de possibilidades do território.6

Este corte, acidente, elementos solto, inaugura o quadro de conexões com aquilo que
podemos chamar de “futuro”: linhas de conexão que não estavam previstas no
modelo formado original, que não estavam previstas nem nas formas antecedentes
nem naquelas que as seguem, linhas que desfazem a idéia de original-antecedente,
de referência, pois cada momento é um espaço de conexões originais – de originais
transitórios. Neste sentido não nos interessa a origem, aliás, nunca temos a origem,
sempre estivemos no meio, neste lugar de conexões.

Para facilitar o percurso proposto até aqui, vale pensar os três aspectos do ritornelo
como uma proto-seqüência: o seu ponto de partida é o Caos. O ritornelo vai sempre
do Caos ao Cosmos (MP4, p.118). Mas o que se entende por Caos? Ecoam aqui a
teoria do caos, as idéias sobre caos nas artes e na ciência do séc.XX, a idéia de caos
em Paul Klee e Prigogine. O caos se “define pela velocidade infinita na qual se
dissipa toda a forma que nele se esboça”. Ou seja, nele não há forma fixa. Isto não
significa que não há formas, mas que no caos elas são imensamente transientes,
provisórias. No caos toda forma se dissipa e toda matéria não chega a ter forma (QF?,
p. 15). Deleuze e Guattari continuam lembrando que é do caos então que nascem o
que denominam como Meios e Ritmos, potências talvez anteriores à forma e à
matéria. O que podemos entender por Meios e Ritmos?

Os Meios, são sempre vibratórios, como um som. Ou seja, os meios são assim como
as variações de estados periódicas ou não (no caso do som diríamos variações de
pressão) como em uma onda senoidal. Desta forma podemos entender um Meio

6Criton, Pascale. “A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984: O ritornelo e o galope” .


Alliez, Eric. Deleuze: uma vida filosófica. S.Paulo: Editora 34. 2000. p.495. Ver também MP4, p. 382.
como sendo a presença de uma onda, e é a freqüência desta onda que determinará o
Código do Meio. Veja-se bem que Código aqui não é uma linguagem, uma aparato
complexo de relações de representação, mas apenas uma freqüência, uma variação
periódica ou não de um fator que freqüenta um Meio. Podemos imaginar que cada
pessoa tem movimentos de ir e vir, de entrar e sair de casa, de se locomover e
repousar, e que tais movimentos são reiterados de tempo em tempo, desenhando
ciclos, períodos, que por sua vez desenham o código de um Meio. O ato de andar é
assim um código que resulta dos movimentos de um corpo. É assim também com os
sons em uma música: movimento de vai e vem, de aparecimento/ desaparecimento/
reaparecimento. Deleuze deixa claro a respeito disto: “cada Meio é codificado,
definindo-se um código pela repetição periódica” como na poesia de Christophe
Tarkos quando escreve: “Je suis blanc, je suis tout blanc. Je ne sais plus ce que ma
pensée pense. Je ne comprends plus ce qu’elle veut penser, […]”.7 As palavras
voltam em suas sonoridades mas conectam-se soltas com outras sonoridades e séries
de palavras e blocos de palavras.

Como são diversos os Meios que compõem uma imagem, cada código no ciclo do
ritornelo está em constante transcodificação, o que equivale a dizer que todo ciclo, ou
onda periódica, pode ser modulado ou modular outro ciclo. Ser modulado
corresponde a dizer que cada ciclo sofre a interferência dos outros, assim como em
Van Gogh o amarelo de uma superfície é modulado pela cor da lâmpada que o
ilumina, ou assim como nos sintetizadores um som modula outro e dá lugar a uma
terceira onda resultante da diferença entre as duas.8 Em ondulatória, se uma onda
tem a freqüência X e sofre a interferência de outra de freqüência Y (que representarei
aqui por X.Y)temos por resultado uma onda complexa que também oscila à
freqüências de (X–Y).9

7 Tarkos, C. Caisse. Paris: Pol. 2000.


8 Na música eletrônica destacam-se dois modos de síntese Sonora recorrentes: a síntese por modulação
de freqüência (FM: p.(i.m) onde p = valor da onda portadora; m = valor da onda modulante; i = índice
de modulação, divisão de um valor freqüencial pelo valor da modulante) e por modulação de
amplitude (AM: p.m). Neste artigo restringirei os exemplos à modulações de amplitude para facilitar
os exemplos. Para uma leitura mais detalhada de tais fórmulas ver Roads, Curtis. Computer Music
Tutorial. Massachussets: MIT press 1996.
9 No início do séc.XVII, o violinista Giuseppe Tartini compõe sua Sonata del diavolo para violino solo e

observa que ao tocar duas notas agudas uma terceira mais grave se agrega às duas, o que denominou-
O que é importante frisar até aqui é que periodicidade, código, ciclos, mas estes não
estão encarregados de significar nada. Quando falamos de código não
necessariamente falamos de um algo que representa outro. Ter um código é
simplesmente completar um ciclo e reiterar o ciclo.

Fig.1 – amostras de senóides e intermodulação de uma senóide por outra que lhe é semelhante,
porém defasada.

Seguindo em sua viagem do ritornelo, Deleuze e Guattari imaginam então que do


Caos nascem Meios que se intermodulam e que terminam por gerar outros elementos
sendo tais elementos o que chamam Ritmos. Para cada par de meios temos então,
como visto acima, um Ritmo que é fX – fY (freqüência de Y subtraída à freqüência de
X).

Fica assim que: quaisquer coisas quando colocadas lado a lado interferem umas nas
outras, pois as coisas se intermodulam fazendo nascer um Ritmo que é a diferença

se posteriormente por som diferencial (il terzo suono). Ver seu Trattato di musica secondo la vera scienza
dell'armonia de 1754.
(diferença intensiva, já que complexa e não mensurável) de uma e outra onda. Cada
coisa assim realiza um interferência nas outras que a circundam. Vem daí que os
movimentos de um corpo são modulados pelo espaço e pela velocidade das
partículas que o circundam e atravessam. Algumas interferências podem ganhar
permanência, outras não, e isto pode depender do tipo de intermodulação que
geram, do tipo de onda que resulta desta intermodulação: ondas periódicas de longa
permanência, periódicas de pequena permanência, e ondas aperiódicas.

A idéia de Deleuze e Guattari não está restrita apenas aos corpos concretos. Temos a
línguas, os gestos, a fala, os sinais, todos aqueles códigos que não aceitam apenas
uma transcodificação mas pedem uma decodificação, ou seja sua tradução. Palavras
se intermodulam também, interferem umas nas outras gerando verdadeiras
palavras-sínteses como o Snark de Lewis Carrol, mescla de shark com snake; um
tubarão-serpente ou uma serpente-tubarão? Reúne-se então a este sistema a noção de
Ritmo, sendo ele é esta energia que escapa ao embate entre dois corpos, entre dos
códigos. Não se trata assim de decodificar, nem mesmo se sabemos que algo é
codificado, pois vivemos as intermodulações e não temos tempo de codificar e
decodificar cada gesto e som de uma conversa.

Meios e Ritmos são assim as circunstâncias para o nascimento do território, para a


dança do ritornelo. Com Meios e Ritmos podemos imaginar corpos complexos
compostos de um sem número de imagens; corpos multifacetados, compostos de
imagens multifacetadas.10 As imagens nascem conforme o dia, a hora, o lugar, a luz o
vento. E todas imagens se intermodulam, estando tudo o tempo todo em movimento
de diferenciação: de nascimento de novas ondas periódicas ou aperiódicas,
permanentes ou provisórias. Não é preciso pensar no que une cada uma das partes
deste corpo. Não é necessário uma forma a priori, nem mesmo a idéia de uma
urflanze, planta original que existiria como matriz de todas as outras, tal qual
imaginara Goethe em sua Metamorfose das Plantas.11 O corpo, agora pensado como

10
Cf. Deleuze, Gilles. “Image Mouvement Image Temps”, in: webdeleuze
11
Goethe, J. W. Metamorfose das plantas. trad. port. Maria Molder. Lousane: Imprensa Nacional. 1993
“partes sem um todo”,12 constitui uma espécie de campo energético com limites
externos em que as partes infinitas se intermodulam: uma maneira singular de se
intermodular que começa em algum lugar e vai até outro, mas se desfazendo aos
poucos, como uma mancha de óleo na água. Neste sentido os autores do conceito de
Ritornelo imaginam o corpo composto de diversos Meios: Meio interno, Meio
externo, Meio anexo e Meio intermediário constituindo zonas de modulação
diferenciadas.

Tem-se assim o primeiro passo para uma fórmula do ritornelo: o território é


composto da reunião de Meios (M) e Ritmos (R) – componentes territoriais –, onde os
Ritmos são a diferença entre os Meios, ou seja, a onda resultante da intermodulação
de Meios. E os Meios são formados de imagens multifacetadas13 (a, b, c, d…n), que se
inter-conectam e se intermodulam ((a.b), (b.c), (a.c), (a.b.c)) nos Ritmos. Ou seja:

M = (a, b, c, d, …n)
R = [(a.b), (b.c), (a.c), (a.b.c), ….]14

Meios e Ritmos são aquilo que Deleuze e Guattari chamam de componentes


territoriais (CT), donde:

CT = [(M1 , M2 , M3 ,… Mn ) , (R1 , R2 , R3 ,… Rn)]

As componentes territoriais são, assim, nada mais do que uma reunião de meios e
ritmos que podem ou não intermodularem-se. É o que Deleuze e Guattari chamam
de um agenciamento territorial, reunião singular de elementos.

Um segundo passo para se pensar o ritornelo é trazer para sua dinâmica a noção de
território, pois ainda não temos o território. É como na pergunta de Hume, retomada

12
A imagem de “partes sem um todo” que caracteriza o que Deleuze e Guattari chamam de Corpo-sem-Órgãos é
tomada aqui do “poema XLVII” de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa quando diz
“A Natureza é partes sem um todo”.
13
Sobre tais imagens multifacetadas vale dizer que suas faces, as quais podem ser também tomadas por novas
imagens, emergem incessantemente e não são fixas.
14
O sinal de multiplicação aqui corresponde a modulação de uma onda por outra.
por Deleuze em Empirismo e Subjetividade, “a idéia é o dado tal como ele é dado, é a
experiência. O espírito é dado. É uma coleção de idéias”; a questão está em “como
uma coleção de idéias devém um sistema?” (ES, p.12). Num agenciamento territorial
temos apenas a reunião e intermodulação dos Meios mas é preciso um outro passo
para que se dê lugar à intermodulação dos Ritmos pelos Ritmos, dos Ritmos pelos
Meios e para que disto nasça alguma consistência. Talvez a chave esteja nas
permanências, nos períodos permanentes ou fracamente transientes.

Os Meios compõem o território e é no território que pretendemos chegar. É no


território que os Meios se agrupam e que se afetam mutuamente, o próprio território
afetando os Meios e sendo os Meios. Se notarmos que cada um dos componentes de
um território tem uma certa tendência, uma velocidade, um freqüência, então
poderemos imaginar que não só eles se somam e resultam em diferenças mas que
eles se intermodulam, sofrem interferências uns dos outros. Não manifestam apenas
uma diferença de velocidade, densidade, tendência, mas manifestam uma mútua
interferência. É este o outro passo a que nos referíamos acima. E agora, ao invés de
manifestarem apenas suas direções, seu fluxo, as componentes territoriais começam a
criar pequenas paredes, lugares em que um tipo de dinâmica ganha ou perde
potência. É o que podemos chamar de uma dimensão: ganhar uma dimensão. Não é
mais a simples somatória de Meios e Ritmos, mas uma verdadeira modulação.
Alguns exemplos ajudam a visualizar este jogo, e podemos buscar esta imagem em
Paul Klee quando este desenha as forças de crescimento de uma árvore ou de uma
folha.
Fig.2 – Paul Klee, movimento radial com forças de crescimento e forças de oposição.

No desenho de Klee a folha torna sensíveis as forças não visuais da gravidade e do


vento, assim como a passagem do vento pelas frestas de uma janela torna sensível a
força não sonora do vento. O que se tem agora não é apenas uma simples assemblage,
mas um lugar em que um componente deixa suas marcas sobre outro e é marcado
por estes outros. O que mudou não foram os componentes mas a forma de relação
entre os componentes. Houve assim uma mudança de natureza e não um salto
qualitativo ou quantitativo, e esta mudança se deu simplesmente porque cada
componente tinha um sentido, uma tendência, e porque estes componentes acabaram
por agrupar-se segundo suas vulnerabilidades, segundo suas direções, segundo suas
resistências, desenhando lugares, dimensões. Volto a Hume-Deleuze, e podemos
aludir a idéia de simpatia: “estender-se naturalmente em direção ao futuro, mas na
medida em que as circunstâncias limitam sua extensão” (ES, p.32).

Outro pequeno desenho de Klee em suas aulas traz novamente a idéia de


intermodulação. As linhas fortes modulando o espaço quadriculado. Duas
modulações distintas.
Fig.3 – Paul Klee, “mise-en-forme com estruturas utilizando base dividual-rítmica e acentuação
individual (síntese do dividual e do individual)”.15

É por esta relação intermodulante que devemos também imaginar os meios e os


ritmos também se intermodulando e este é o primeiro momento da presença do
território:

Território = (M1. M2. M3 … Mn ).(R1.R2.R3 …Rn).(R1. M1 ).(R2.M1 )…

Deleuze e Guattari nos dizem que aqui o território se torna expresso por seus
componentes intermodulados. Os componentes se tornam expressivos. Neste
momento também começamos a enxergar grandes amálgamas, coágulos com
tendências distintas, que criam paredes e delimitam com maior rigor o espaço. É
preciso uma tendência, uma “direção exclusiva” , como nota Deleuze em “À quoi
reconnaît-on le structuralisme?”.16 “Aqui acaba o lugar de tal grupo e começa o lugar
de outro”, e assim prossegue o jogo. Neste jogo, pequenos territórios, como um corpo
animal, acabam sendo modulados por grandes territórios, como um estrutura social;
uma linha ou uma cor por um modelo pictórico de época. Neste ponto não

15
Klee, P. Histoire naturelle infinie. Paris: Dessain et Tolra. p.211. 1974.
16
Deleuze, Gilles (post2002). À quoi reconnaît-on le structuralisme?” in: L’île deserte. Paris: Minuit. p.251.
enxergamos mais com tanta facilidade quais os Meios que compõem um território,
enxergamos sim o grande território e, ao invés de uma fórmula em que temos cada
um dos Meios e Ritmos expressos, tem-se um grande território que representa e
submete as diferenças de cada componente a um fator de síntese hierárquica em que
cada termo pode ser observado apenas em razão de um termo que lhe é maior e mais
bem posicionado (um padrão, uma regra, uma norma, uma estrutura superior, um
modelo vigente…). Temos nesses casos apenas T e não mais as modulações de M1 ,
M2 , M3 , Mn e R1, R2, R3 , Rn. T é um grande pacote que esconde os Meios e Ritmos
que o compõem.

Quando damos um nome a alguém e o chamamos pelo nome oficial, é uma estratégia
de substituir os componentes para termos apenas o nome do território, que
supostamente representaria cada uma das tendências do território e que recomporia
sempre uma relação hierárquica entre as componentes do território. É a estratégia de
toda escola de composição musical: escreva primeiro um tema, tenha certeza de que
ele se fecha sobre si mesmo, que é claramente distinto de outros temas, depois crie
todo um trecho submetido a este tema, desenvolva o tema a partir de suas partes
significantes, evite transiências. E este é o que Deleuze e Guattari apontam como o
terceiro ritornelo, aquele em que um ritornelo está inscrito dentro de um outro em
que um conceito de território se põe no lugar das componentes e de suas
intermodulações. Mas o território continua sendo um pacote de interior móvel e de
borda mais móvel ainda, todo tema tem suas arestas mal aparadas. Na borda as
coisas não se definem tão claramente, não ganham forma, são transiências – passam
de um lado a outro –, não sendo notáveis até que uma outra transiência, uma
turbulência qualquer funde uma permanência, mesmo que breve, e lhe dê forma.
Vivemos sempre esta questão quando nos deparamos a separação entre arte do
barroco, do classicismo ou do romantismo, pois na zona de transiências aquilo que
parecia ser uma só coisa manifesta-se como um lugar cheio de detalhes e jogos de
diferenciação que não permitem mais dizer apenas “barroco”, “classicismo”,
“romantismo”.
Como vimos, o território é um lugar de modulações e suas margens são outro lugar
de modulações, e tais modulações (intra e intermodulações) se dão sempre entre uma
componente autônoma de território e outra. Decorre daí a importância que Deleuze e
Guattari dão para a idéia de “entre”: quem modula quem, quais os potenciais de
modulação, e quais seus resultados, quais as formas que nascem das modulações.
Modulações de variações e variações modulantes, sempre constituídas de termos de
maior ou menor duração, de mais ou menos forma e materialidade.

A história da música conhece diversos jogos de constituição de territórios e de


intermodulações. O próprio ato de composição musical implica neste mecanismo.
Muito do que chamamos de intuição não passa de jogos de intermodulação, como na
música do primeiro atonalismo quando, mesmo sem sistematizações, compositores
diversos tendiam a empregar uma escrita musical intervalar (enfatizando o colorido
resultante da ressonância entre as notas) ao invés de uma escrita apenas melódica e
de progressões harmônicas. Hoje em dia ainda sobrevive uma espécie de música
contemporânea naïf não sistematizada que é uma modulação do ato de escritura com
uma sonoridade geral. É como uma criança que chega à casa de sua avó e encontra,
no móvel da sala, os bibelôs; ela não precisa aprender com ninguém sobre aquele
lugar, sobre as velocidades daquele lugar. Alguns pais tentam e simplesmente
quebram o tempo de um ritornelo. As coisas que enfeitam a cristaleira, aquelas coisas
todas são quebráveis, os bibelôs quebram, a permanência perigosa dos bibelôs pede
outras velocidades. É só fazer um gesto um pouco mais brusco e tudo pode quebrar.
Os bibelôs fixos modulam a velocidade da criança. Outro exemplo: as cadeiras em
torno do palco, o palco vazio, aquele lugar em que ninguém vai sentar, ele modula os
corpos que entram no teatro.

Saímos de um ritornelo territorial, onde agenciava-se Meios, a pura reunião de


Meios, passamos ao ritornelo de funções em que os Meios se intermodulavam,
chegamos então a um terceiro ritornelo, o ritornelo de funções com vetores de
desterritorialização (“perder o eixo”) e reterritorialização (“reencontrar o eixo em
outro território”). Neste terceiro, as componentes territoriais não são mais apenas os
Meios e os Ritmos de Meios, mas são os próprios Territórios. Neste momento um
território pode ser modulado por outro território, ou apenas por uma das peças de
outro território, e as peças do territórios modulam outras peças de outro território.
Os Ritmos se intermodulam, os Meios se intermodulam, como numa matriosca russa:
um ritornelo dentro de outro.

Deleuze fala constantemente, em diversos momentos de sua obra, da idéia de


autonomização. Como se as conexões entre componentes, como se as
intermodulações se tornassem independentes e ao invés de termos apenas
componentes moduladas por componentes, é como se as próprias intermodulações
passassem a ser componentes. É o que ele chama de “personagem rítmico”,
terminologia que toma emprestada de Messiaen.17

O que se passa aqui é a inclusão de um ponto que não estava no ritornelo simples,
nem no ritornelo dado dentro de um grande ritornelo, mas na possibilidade
improvável de uma modulação de Meios escancarar o ritornelo. “Alguém varre a
calçada, varre porque tem de limpar a calçada, tudo em seu lugar, vassouras, mão,
pés, migalhas de poeira, chão, vãos do chão, até que o pequeno barulho resultante do
raspar de vassoura desponta do silêncio de escuta e faz nascer uma figuração
pulsante”; ora, como não ser dragado pela cadência rítmica e perder-se num devir
musical, como? De um ritornelo de limpeza, funcional, salta-se para outro, de outra
natureza, e a música modula agora o grande território da limpeza de calçadas. Voltar
a limpar ou deixar-se levar pelas nuanças de tempo e timbre, pelos detalhes
granulares do som resultante, pela sua mudança de matiz, e pela relação de tais
variáveis com a mão, com o peso da mão, com a velocidade de varredura, com a
direção da varredura. Duas possibilidades, fechar o ritornelo num jogo de varrer-
limpar mais varrer+tocar, ou simplesmente abrir-se para um ritornelo cósmico e
deixar com que os pontos sonoros comecem a se conectar livremente com outros
pontos.

17
A idéia de personagens rítmicas é desenvolvida por Messiaen em sua análise da Sagração da Primavera de
Igor Stravinsky. Nesta obra, sobretudo na “Dança do Sacrifício”, Messiaen observa a presença de padrões de
valores fixos contrapostos a padrões de valores evolutivos, com o que distingue as figuras dos personagens
testemunhos e evolutivos (crescente e decrescente).
Em ciclos e mais ciclos sobrepostos, o que se passa não é a emergência de um
princípio unificador ou qualquer outra presença de um elemento ordenador. Não
estamos falando mais de organização, de concisão mas da consistência de um
ritornelo. Os diversos ciclos do ritornelo se entrecruzam, daí Deleuze e Guattari
falarem que o território adquire consistência, que sua forma de manter as
componentes reunidas não é nem o simples fato empírico da proximidade de
elementos, nem a existência de uma formulação abstrata que reúna o todo
heterogêneo com base em um fator de homogeneidade. A consistência vai além da
experiência direta ou mesmo da abstrata, ao mesmo tempo em que, e isto é
importante, as envolve e brinca com elas. A consistência nasce entre as componentes
e os territórios, sempre “entre”. Não entre duas coisas, mas entre ciclos, entre Ritmos
e Meios um agenciamento que implica bem mais do que dois ciclos, dois Meios, mas
diversos ciclos sobrepostos, justapostos e interpostos. O que podemos dizer da
consistência é que ela faz emergir as formas mas seu motor são as forças de
modulação e não a forma que reúne suas partes: a força de modulação do quadrado
preto e do quadrado branco justapostos em uma tela; a linha negra e o branco que ela
separa numa outra tela; o som fortíssimo agudo e o corte que é dado pela entrada
dos graves em pianíssimo; o grito na rua que separa o espaço sonoro e o espaço dos
fatos; aquela única flor em um vaso. E é claro, são muitos ciclos que se sobrepõe: na
preto e branco do quadro existe o contraponto do quadro e da parede, do centro e da
borda; num grito existe o contraponto do grito agudo e forte com sua reverberação
distante, o seu agudo com o grave do ruído das ruas, e assim vai. A consistência está
neste entre que relaciona dois pontos que se tocam, mas os relaciona de modo que
um não se submete ao outro, um não participa em função do outro a não ser por um
breve instante. Um exemplo interessante deste modo de intermodulações pode ser
encontrado não apenas na parte final da Sagração da primavera, analisada por
Messiaen, mas em outras obras de Stravinsky, como na Sinfonias de sopros. Ali
encontram-se justaposições diversas de blocos distintos, ora sonoramente distantes
ora próximos, trazendo como fator de consistência apenas o movimento que a peça
ganha, a sua dinamicidade (seu ritmo).
Existe assim uma grande distância entre as propostas de Deleuze e Guattari e aquelas
que aprendemos com as análises estruturais e fenomenológicas da música: as
componentes não se reúnem por funções, por relevância estrutural ou por um
significado ausente, mas simplesmente por intermodulação de seus ciclos, pela
permanência e provisoriedade dos ciclos, pelo movimento com que afetam um
ouvinte; por consistência. De fato o que temos é uma série de elementos em
contraponto, e estes elementos por sua vez são a emergência de objetos, diria então
que não estamos diante de apenas um território mas em pleno contraponto
territorial. Não se trata de mera sobreposição de objetos, mas de um contraponto em
que não só os pontos relevantes, aqueles capturados pela nosso mecanismo de
racionalização e percepção, mas seus micro-fragmentos, suas pequenas moléculas
parciais, estes todos configuram tal contraponto. Neste ponto o Grande Território
está agora fragmentado em suas micro-componentes territoriais livres. E estas
componentes se interconectam, atravessando de um território a outro, livremente
sem nenhuma regra de conexão. Nosso simples contraponto territorial de (T1).(T2),
onde:

T1= (a1) , (b1) , (c1),…(n1) , (a1b1) , (a1c1) , (b1c1) , (a1b1c1) …

T2= (a2) , (b2) , (c2),…(n2) , (a2b2) , (a2c2) , (b2c2) , (a2b2c2) …

Este simples contraponto salta para uma operação mais complexa em que formigam
cruzamentos inusitados: (b1b2c2),(b2c1),(b2c2b1c1n2) etc. Falamos agora de um
contraponto Cósmico com a permutação irregular dos termos de um e outro
território e que se contrapõem também com outros termos, termos que não
conhecemos e que advém do caos – termos que ainda não estavam formados e que se
formam com o próprio nascimento do território.

O que se passou, o centro de meu território não está mais em A ou em B, mas ele está
desfocado, ele perdeu sua localização fácil, e pela mesma razão A e B não são mais
separáveis: agora tenho um grande consolidado inseparável, como dizem Deleuze e
Guattari. Quem gerou quem? Não se sabe. Sabe-se apenas que não é possível
desfazer o agenciamento sem que haja uma grande mudança de natureza, sem que o
quadro todo, a música toda, a peça toda, vire outra, incomparável e irredutível aos
termos do contraponto. O território foi molecularizado, reduzido a pontos que não
podemos tocar, que ainda não são sensíveis.

Em Qu’est-ce que la philosophie?, Deleuze e Guattari imaginam este jogo de conexões


cósmica como sendo o lugar da arte, da ciência e da filosofia: aquele lugar em que se
mergulha no caos das incontáveis moléculas ainda não sensíveis, de partículas de
presença transiente, de permanência mais breve do que o mínimo pensável pelo
homem. Ou seja, aquele lugar em que os ciclos que definem os códigos não se
completam, não chegam a formar um ciclo ou ter permanência, não dando tempo de
serem capturados pela percepção ou pelo pensamento.

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