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Carlos elson Coutinho

i
CULTURA ESOCIEDADE
NO BRASIL
E SAIOS SOBRE
IDEIAS EFORMAS

111
Uma d as principais características que algo mais do que as leis da escrita ou a
marca a produção intelectual de Carlos coerência do discurso: formas e ideias
Nelson Coutinho é a vinculação de suas são também expressão condensada de
reflexões teóricas (a crítica filosófica e constelações sociais, meios privilegiados
Literária) e a análise histórico-política de reproduzir espiritualmente as
(especialmente da fonnação social contradições reais e, ao mesmo tempo,
brasileira) às lutas sociais do povo de propor um modo novo de enfrentá-
brasileiro. Essa vinculação é também las e superá-las."
marcante em Cultura e sociedade no
Brasil., uma reunião de diversos O processo d e constituição d a formação
ensaios, escritos ao longo d e mais de social brasileira é outro aspecto que
40 anos - o primeiro d eles data de percorre todo o Livro, principal.mente ao
1965 e o mais recente é de 2006. analisar as transformações sócio-
São vários os aspectos que trazem políticas ocorridas ao longo da história
unidade a este livro: a perspectiva brasileira, marcad as pela manutenção
marxista adotada na análise dos no padrão de dominação de classe, que
diferentes temas; a preocupação em são caracterizadas pelo autor com as
compreender os diferentes aspectos da categorias d e "via-prussiana" ou
dinâmica da formação social brasileira, " revolução passiva". É a partir dessa
e seus reflexos tanto na cultura - perspectiva que Carlos Nelson Coutinho
através do trato de romancistas busca compreender o significado da
brasileiros e também do papel do produção teórico-cultural e o legad o de
intelectual em uma sociedade como a autores como Graciliano Ramos, Lima
brasileira - quanto na anáJjse política, Barreto, Jorge Amado, Caio Prado
ao traçar reflexões sobre três Junior, Florestan Fernandes e Octavio
importantes intérpretes marxistas da Ianni ao terem como tema a realidade
reaJjdade brasileira. brasileira, seja na construção de obras
literárias, seja na construção de
A compreensão d e que forma e reflexões teóricas. A unidade entre esses
conteúdo constituem uma unidade, diferentes autores e temas trabalhados
assim como a de que a sociedade d eve pode ser encontrada na constante
ser sempre analisada a partir do ponto preocupação que todos eles nutriam: a
de vista d a totalidade é algo presente ao de não apenas interpretar a realidade,
longo de todo o livro. Nesse sentido, mas também de transformá-la.
pode-se perceber a marcada influência
de dois pensadores marxistas: Gyõrgy
Lukács e Antonio C ramsci, "que nos
ensinam a ver nas formas e nas ideias
Copyright C 1990, Carlos Nelson Coutinho
Copyrighc dcsca edição© 201 1, F.dicora Expressão Popular ltda.

Revisão: Maria Ekti11t Andrtoti


Lmagcm da capa: lasar Stgall Paistzgnn br11Jilnr11 (1925, pintura a óko SQbrt u fa, 64 x 54 cm)
AcmJO do Museu LAsar StgaU - !BRAM/MinC
Projeto da capa: Z4p Design
Projeto grilico e diagramação: Krits Estúdio
Impressão: Cromouu

Dados Internacionais de catalogação-na-Publicação (CIP)


Coutinho, carlos Nelson, 1943-
C871 c Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e
formas I Gar1os Nelson Coutinho. -- 4.ed. -- São Paulo :
Expressão Popular, 2011.
264p.

Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br


ISSN978-85-n 43-187-8

1. Cultura - Brasil. 2. Sociedade - Brasil. 1. Titulo.

coo301
CDU 316.7
catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Para
Todos os dirci1os reservados.
Nenhuma parre desce livro pode ser utiliiada
Learidro Konder,
ou reprodui.ida sem a au1orizaçáo da editora.
lsnaia Veiga Sariema,
Nova cdiçáo ampliada Roberro Gabriel Dias (t),
Edição revista e acualiiada de acordo com a nova regra onogrífica. José Paulo Netto
e Dariiel Tourinho Peres -
l • edição: Oficina do Livro, 1990
2ª e 3• edições: DP&A, 2002 e 2005
4• cd.içáo: Expressão Popular, outubro de 20 11
com quem tenho conversado
sobre muitas coisas,
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA até mesmo sobre estes ensaios.
Rua Abolição, 20 1 - Bela Vista
CEP O13 19-0 1O Sáo Paulo, SP
Fone: (1 1) 3105-9500 I 3522-75 16 - Fax: (11) 3 112-0941
livraria@cxprcssaopopular.com.br
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Sumário

PREFÁCIO •••••••••••••••••• •••••• •• ••••••••••••• •••••••••••••••••• •••••••••••..•••• ••••••• •9

Os INTELECTUAIS E A ORGANIZAÇÃO DA CULTURA •••••••••••••••• ••••••••• . ••. 13

(ULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL . .......................................... ...... 35

Dois MOMENTOS BRASILEIROS DA ESCOLA OE FRANKFURT .................... 73

0 SIGNIFICADO DE LIMA BARRETO EM NOSSA LITERATURA ••••.••••••• •.• •••• 89

G RACILIANO RAMOS .................... ........ .................. .................. 141

0 POVO NA LITERATURA DE JORGE AMADO . . . .......... ........... ........... 195

A IMAGEM DO B RASIL NA OBRA DE ÚIO P RADO J úNIOR ........... ...... 201

MARXISMO E "IMAGEM DO B RASIL" EM FLORESTAN FERNANDES .. ...... 221

0 LEGADO DE ÜCTAVIO IANNI ............. . .. .......... ......................... 241

NOTA BIBLIOGRÁFICA ................................................................ 255

ÍNDICE ONOMÁSTICO . . ............... ..... ............. . .... .. ........ .. ... .. ................ 257
Prefácio

Reúno nesta coletânea os principais ensaios que escrevi, ao lon-


go de ma.is de 40 anos, sobre as relações entre cultura e sociedade
no Brasil. Durante um tão extenso período de tempo, certamente
se alteraram tanto o âmbito de meus interesses temáticos quanto,
muito provavelmente, alguns de meus juízos estéticos e ideoló-
gicos sobre figuras e movimentos da cultura brasileira. Contudo,
não proporia uma leirura conjunta destes ensaios se não estivesse
convencido de que eles possuem uma unidade substancial, tanto
de método como de conteúdo.
Embora o uso de categorias gramscianas se acentue nos ensaios
mais recentes, matizando e requalificando a onodoxia lukacsiana
facilmente percepáveJ nos mais antigos (sobretudo os de crítica
literária), a unidade de método me parece residir num pressuposto
comum a todos eles, o u seja: só é possível entender plenamente
os fenômenos artísticos e ideológicos quando estes aparecem
relacionados d ialeticamente com a totalidade social da qual são,
simultaneamence, expressões e momentos constitutivos. Enquanto
marxistas, Lukács e Gramsci nos ensinam a ver nas formas e nas
ideias algo mais do que as leis da escrita ou a coerência do discurso:
formas e ideias são também expressão condensada de constelações
sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as con-
tradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de
enfrentá-las e superá-las. Os ensaios desca coletânea, ainda que
busquem respeitar a especificidade e a auronomia relativa das
produções culturais que abordam, estão todos dirigidos para um
objetivo principal: o de desvendar a problemática social que tais
produções concribuem para elevar à consciência ou à autocons-
ciência.
No plano do conteúdo, por oucro lado, penso haver um fio
vermelho que atravessa os ensaios, dando-lhes relariva unidade: em
todos eles, empenho-me sempre por demonstrar que o problema
CuLTUM r SOO!OADf NO BMSll 11

central da cultura brasileira - ou seja, cm termos gramscianos, a cultura democrática e nacional-popular no Brasil sem recorrer aos
escassa densidade nacional-popular de seus produtos - tem sua melhores momentos do patrimônio culcural u niversal.
gênese na ausência de um "grande mundo" democrático cm nossa 2) Os seis ensaios scguinccs abordam momentos privilegiados
sociedade (para repetir a expressão lukacsiana que utilli:o no ~­ da construção daquilo que poderíamos chamar de " imagem
saio sobre Graciliano Ramos). a~cia que resulta dos processos alternativa do Brasil". Os dedicados a Uma Barreto, Gracilia.no
de tran.Sformaçáo pelo alto ("via prussiana", "revolução passiva") Ramos e Jorge Amado, além de analisa.rcm algumas determinações
que marcaram a história brasileira, impedindo ou dificultando
a participação popular criadora nas vá.rias esferas do nosso ser
.. gerais d e nossa evolução literária, centam mostrar como a gran-
deza das formas romanescas criadas pelos tr~ escritores resulta,
social. A principal consequência dC$$a constelação s6cio-hist6rica cm grande pane, do fato de que tais formas simbolizam não s6
no plano da vida cultural brasileira foi a p~ndcrância de uma os im humanos rovocados r esse moddo rvcrso de
cultura "ornamental", elitista. que muito SO:Utou a construção modcrninção, ~caro os imp oricn os no senti o
de wm efetiva consciência crítica nacional-popular entre nós. Essa da criação de modos altcrnaâvos de vida e de organização social.
preponderância, contudo, jamais signiScou monopólio: muitos Nesse mesmo eixo é que se situam os ensaios sobre Caio Prado
dos ensaios aqui reunidos visam precisamente a resgatar figuras Júnior, Florcstan Fernandes e Octávio lanni: o objetivo central
que se colocaram contra a corrente dominante. empenhando-se das obras dos tt~ escritores paulistas me pa.rccc ser a compreensão
por revdar cm suas obras as graves distorções humanas e sociais ,. conceicual dessa via "não clássica" de transição para o capicalismo,
~cradas cm nosso país pela "via prussiana•. Ao 67.Cfêm isso, tais bem como de suas ddctérias consequências no presente brasileiro.
guras criaram ao mesmo tempo as bases para o florescimento Embora utilium diferentes meios cognoscitivos (formas simbó-
de uma arte e de uma consciência social alternativas. Também licas ou conc.citos científicos), as imagens do Brasil construídas
busco indicar, cm alguns ensaios, a emergência das novas condi- por Lima Barreto, Graciliano Ramos, Jorge A.ma.do, Caio Prado
ções sociais que tomaram possfvd boje dcvar C$$a cultura crítica Jr., Florcsta.n Fernandes e Octávio lanni convergem num ponto
âlternativa à condição de cultura hcgcmônica - o que nada tem a essencial: daboram uma dura critica da moderniza ~o " russiana"
ver, é importante sublinhar, com cultura "única• ou "oficial". ou "passiva e que mos vitimas e, ao mesmo tempo, propõem
Ao reunir aqui os ensaios, preferi dispô-los não na ordem cro- o esboço de uma alternativa nacional-popular e democrática para
nol6gica cm que foram escritos, mas segundo dois eixos temáticos o nosso país.
principais: Embora não tenha alterado csscncialmcncc meu modo de
1) Os dois primeiros, sobretudo o que dá óculo à colcclnca, têm pensar durante as quatro d6cadas que separam o ensaio sobre

sociedade no Brasil, examinando, cm particular, o r.a::


como meta discutir os problemas gerais da relação coere cultura e

de formação de nossa incclocrualidadc. FJcs fornecem, cena ma-


modo
Graciliano Ramos daqudc sobre Occivio lanni - continuo, mesmo
com o risco de me convcrtct num "animal cm extinção", a me
considerar marxista -, modifiquei muitas das minhas posições:
neira, o cnqUãdtãmcnto hiSc6rico-<:onccitual incroduc6rio para os afinal, para n6s, muxistas, o único modo de não sermos "animais
de.mais textos. O terceiro, dedicado à recepção brasileira da Escola cm extinção" é assumirmos plenamente a condição de "animais
de Frankfurt, permite-me ilustrar, com um exemplo concreco, uma cm mutação". Foi grande, assim, a tentação de rescrever os en-
tese que defendo ao longo de todo o livro, cm particular nos dois saios mais antigos, fu..cndo-os coincidir integralmente com meus
primeiros cnsa.ios: a de que é impossfvd consttuir uma verdadeira atuais pontos de vista. Contudo, salvo no caso de umas poucas
12 CAia.os NWON CounNHO

revisões estilísticas e da supressão de uma formulação qwc hoje


Os intelectuais e a organização
julgo claramente equivocada (isto é, a caracterização do Brasil da cultura
como "scmifcudal", contida na primeira versão do ensaio sobre
Graciliano), preferi consc.rvar os ensaios cm sua forma original,
mesmo quando eles &Iam de coisas hoje tão fora de moda, como
"realismo socialista". Tomei a mesma decisão no que se refere /
à presença de formulações semelhantes cm d.ifetenres ensaios: 1 ,
suprimi-las talvez evita.sse repetições, mas com o risco de, muicas Gostaria de começar com úma questão terminológica. O
vezes, empobrecer ou tornar obscura a argumentação de cada en- título que me foi sugerido para esta exposição, "Os intelectuais
saio tomado isoladamente. Além do mais, isso impediria o leitor e a organização da culrura", é - como se sabe - o título de uma
de julgar se, cm tais possíveis repetições, já não estarão contidos coletânea de cscrioos do cárcere de Antonio Gramsci, que reúne
alguns indícios daquela necessária mutação a que me referi. É o precisamente os textos relativos à questão dos intelccrua.is e da
que sinceramente espero: relação deles com os mecanismos de reprodução culrural da rea-
lidade (sistema educacional, jonWismo etc.). Mas esse átulo náo
é do próprio Gramsci.
úzrlos N~lson Coutinho Os famosos Culnnos átJ cárc~ foram publicados a partir
Rio de Janeiro, kvcreiro de 2011 de 1948, sob a orientação editorial de Fel.ice Platone e Palmiro
Toglian:i, náo na ordem cm que haviam sido escritos, mas agru-
pados segundo grandes temas, divididos cm seis volumes, cujos
.
'
~- cículos foram escolhidos pelos próprios cdirores'. Pois bem: no
caso que nos interessa aqui, não só o título não é de Gramsci,
como também não é muito frequente em suas notas a expressão
"organiz.ação da culrura".
Mas isso náo quer dizer que ela seja infiel ao espírito da reflexão
gramsciana. AD contrário: cem um forte vínculo com o conceito de
"sociedade civil", que, como se sabe, é um conceito central na obra
do fundador do Panido Comunista Italiano. Em certo sentido,
podemos mesmo dizer que, sem uma "organização da cultura",
não existe sociedade civil no sentido gramsciano da expressão.
Vamos resumir alguns tópicos conhecidos. O maior mérito
A primeira edição claa colcdnca (Belo HorU.oncc, Oticína do Livro, 1990) oonlinha um
cnsajosobre "A rca:pç'odc Gramsd no Brasil'", agora induldo, numa vcnioan ..linda, de Gramsci consiste cm ter "ampliado" a teoria marxista clássica
como apêndice ao meu livro Gn.msd Um m.M s.brr - ,_-mJJo polida (Rio de
Janeiro, Ovili:zaçlo Brasilcira, 1999, p. 279-305). En:a o~udi.çk>da E:q>rcmo PopubT, Somcncc cm 1975, sob os cuidados cdi.corials de Valentino Gcmcana, foi publica4a
além de reproduzir o cn.salo sobre. Florcstan Fum.ncles (íá conóclo nas duas edições da (Qtuuúmí tk/ ellJ'mr, Turim, Eliuudi) uma cd~ a\tic:a, que não apcnu apttSC1112 os
colmnca pubUadas pda edicora DPM. !Uo ~)~iro, 2000 e 2005,), i.nd.ul ainda c:adcmos na ordem cm que foram csc:rit.os, mas fornece cambttn as ~tcs dos ccxcos
os ensaios sobre Jorge Amado e Oetavio laruü. e recolhe na lntqva oc aponcamcncos de G~.
14 C.W.0S NE1..50N COUTINHO Cun·uM E SOCRDADE NO 811AS1l 15

1
r
do Estado. Ele viu que, com a intensificação dos p~ de e consenso para poderem funcionar. Papel decisivo, na c.onquista
socialização da política, com algo que de chama algumas vezes dessa legitimidade por um Estado, digamos, de tipo absolutista,
de "estandardização" dos comportamentos humanos gerada pela vinha da ideologia religiosa: a Igreja era um "aparel.ho ideológico
pressão do desenvolvimento capitalista, surge wna esfera social de Estado", fundamental na época do absolutismo. Basta pensar,
nova, d otada de leis e de funções relativamente autônomas e cs- por exemplo, na ccoria do "direito divino" dos reis, da origem
pccí6cas e - o que nem sempre é observado -de wna dimensão di\'.Ílla da soberania do monarca.
material própria. ~essa esfc.ra que de vai chamar de "sociedade Não usei por acaso o termo de Louis Althusscr, "aparelhos
civil", introduzindo uma novidade terminológica com relação a ideológicos de Estado", que a meu ver não é sinônimo do termo
Marx e Engels (para os quais "sociedade civil.. é sinônimo de rela- gramsciano "aparelhos 'privados' de hegemonia", com o qual
ções de produção econômicas). mas retomando alguns aspectos do Gramsci denomina os organismos da sociedade civil. Não quero
conceito tal como aparece cm Hegel (que introduz.ia na sociedade aqui entrar na discussão sobre o valor do conceito de Althusser,
civil as "corporações", isto é, associ.açócs político-econômicas que, mas apenas me servir dde para indicar uma diferença histórica.
de cerco modo, podem ser vistas como formas primitivas dos Na época absolutista. é justo dizer que a Igreja, por exemplo, é
modernos sindicatos). um "aparelho ideológico de Estado". E por quê? Porque havia
Nessa nova situação, ou seja. nas fom>açócs sociais que Gramsci uma unidade indissolúvd entre Estado e Igreja: a Igreja não se
chama de "ocidentais" por contraste com as "orientais" e mais pri- .
'
colocava como algo "privado,, cm face do Estado c.omo entidade
mitivas, o Estado - os mccânismos de poder - não se limita mais "pública... A ideologia que da veiculava (e não se deve esquecer
aos institutos de dominação direta, aos mecanismos de cocrçáo; cm que da.controlava todo o sistema escolar) não tinha nenhuma
suma, ao que Gramsci chama ora de "Estado cm sentido estrito", autonomia cm relação ao Estado propriamente dito. O Estado
ora de "sociedade política", e que de identifica com o governo, \ impunha a sua ideologia de modo tão coercitivo como impunha a
com a burocracia executiva, com os aparelhos policial-militares, sua dominação cm geral: quem discordava dessa ideologia cometia
com os organismos repressivos cm geral. wn crime contra o Estado.
É daro que tais institutos continuam a existir nas sociedades Com as revoluções democrático-burguesas, com o triunfo do
"ocidentais" mais complexas; continuam a ter papel fundamental liberalismo, acontece um fato novo: o que poderíamos chamar de
na reprodução da sociedade segundo os intcrcSSCS de uma classe laiciz.açáo do Estado. As instâncias ideológicas de legitimação pas-
dominante. Mas, ao lado ddes, Gramsci ve a emergencia da sam a ser algo "privado" cm relação ao "público": o Estado já não
"sociedade civil". E o que especifica essa sociedade civil é o &to impõe uma religião, ou uma visão do mundo cm geral; a rcligiáo
de, através dela, ocorrerem rdaçõcs sociais de direção político- deve conquistar consci~ncias, deve confrontar-se, entrar em luta
ideológica, de hegemonia, que - por assim dizer- "completam" a contra outras ideologias, contra outras visões do mundo. Criam-se
dominação estatal, a coerção, assegurando também o consmso dos assim, enquanto portadores materiais dessas visões de mundo, o
dominados (ou assegurando tal consenso, ou hegemonia, para as que Gramsci chama de •aparelhos 'privados' de hegemonia". Por
forças que querem destruir a vdha dominação). um lado, velhos "aparelhos ideológicos de Estado" (como as igrejas,
Pode-se observar que também as formas anteriores de domi- as universidades) tornam-se autônomos, passam a f.u.cr parte da
nação de classe, as formas abertamente ditatora.i.s ou autoritárias, "sociedade civil"; e, por outro, com a própria iotcnsi6cação das
apoiavam-se na ideologia, careciam de algum modo de legitimação lutas sociais, criam-se novas organizações, novos institutos também
(ULTUAA ( SOCllOAl>f. NO 8ltASll. 17

l
autônomos cm face do Estado - os sindicatos, os partidos de .massa, sociedade civil Desse modo, os intelectuais já n2o são mais neces-
os jornais de opinião etc. -, os quais, embora possam ter como sariamente ligados ao Estado ou aos seus aparelhos ideológicos; eles
objetivo a defesa de interesses particulares, ªprivados", tornam-se podem se articular agora com essa esfera de organismos "priv.ados",
wnbém po~dore$ materiais de çylf;W'i, de ideologias. exercendo suas atividades (e, entre das, a de lutar pela hegemonia
Vemos assim que a sociedade civil tem, por um lado, uma política e ideológica do grupo social que representam) aJravés e no
função social própria: a de garantir (ou de oontcstar) a legitimidade sD4 dessas formas autônomas de criação e de difusão da cultura.
de uma formação social e de seu Estado, os quais não cem mais le- Esta, aliás, me parece uma acepção, talvez a mais importante,
gitimidade cm si mesmos, careocndo do consenso da sociedade civil da noção gra.msciana de "intelectual o~ioo". Com a em~ncia
para se legitimarem. E, por outro, que da tem uma materialidade da sociedade civil e de sua organização cultural, os intelectuais
social própria: apresenta-se e.orno um conjunto de organismos ou ligam-se predominantemente às suas classes de origem ou de ado-
de objetivações sociais, diferentes tanto das objetivações da esfera ção - e, por meio delas, à sociedade como um todo - através da
coonômica quanto das objetivações do Estado miau smsu. Diga- mediação representada pelos aparelhos "privados" de hegemonia.
mos que, entre o Estado que diz representar o interesse público Começam a surgir fenômenos desconhecidos em épocas anterio-
e os indivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma res: o intelectual de partido, o intelectual ligado ao sindicato, o
esfera pluralista de organizações, de sujeitos ooletivos, cm luta intelectual que trabalha nos Jornais, nas editoras etc., de partidos
ou em aliança entre si. Essa esfera intcrmcdima é precisamente ou de sindicatos, de associações d e variado tipo, de correntes de
a sociedade civil o campo dos apazdbos privados de hegemonia, opinião; em suma: o intelectual que já não é funcionário direto do
o espaço da luta pelo consenso, pela direção políriro-ideológica Estado (um burocrata executivo), nem tampouco um intelectual
(não é aqui necessário falar sobre o papel dos partidos políticos
nesse quadro: o de agregar as correntes dominantes na sociedade
civil, de promover uma síntese política que sirva como base para
1
).
"sem vínculos" (Mannheim), que - em sua atividade cuJtural -
julga comprometer apenas a si mesmo (este seria o caso típico do
"in telectual tradicional": e um Voltaire, na França do século 18,
a conservação da velha dominação ou para a construção de um poderia bem expressar o que Gramsci 6.gura com esse termo). Sem
novo poder de Estado) . Quando surge esse mundo intermediá- ncccssariamente perder sua autonomia e sua indcpcn~ncia de
rio da "sociedade civil", e quando ele n2o está totalitariamente pensamento, o " intelectual orginico" tem uma maior consciên-
subordinado a um Estado despótico, podemos dizer que a socie- cia do vínculo indissolúvel entre sua função e as contradições
dade passou de seu período meramente liberal para um período concretas da sociedade.
liberal-democrático. A "organização da cultura", cm suma, é o sistema das institui-
O que tem tudo isso a ver com a questão da "organização da ., ções da sociedade civil cuja função d ominante é a de concretizar o
cultura"? Embora Gramsci tenha usado apenas esporadicamente papel da cultura na reprodução ou na transformação da sociedade
o termo, de me parece indicar um momento nccesdrio do seu como um todo. Um momento básico da organização da cultura
sistema categorial; ele vê que, numa for~o social de ripo é o sistema educacional: cada vez mais, com o crescimento da
"ocidental", a organização da cultura já não é algo diretamente sociedade civil, o sistema educacional deixa de ser uma simples
subordinado ao Estado, mas resulta da própria erama oomplexa insdncia direta da legitimação do poder dominante para se tornar
e pluralista da sociedade civil. Mais que isso: aparece como um um campo de luta entre as várias concepções político-ideológicas
e
momento necessário da articulação da afinmçáo da própria (basta pensar, por exemplo, na luta entre ensino laico e ensino
18 CMa.o$ No..loN CoonNHO CULTUllA 1 SOCllDADt: NO 811ASR 19

religioso). E até mesmo nas organllaçócs de ensino ligadas di- c:xaminar como da se criou no passado e vem se transformando
retamente ao Estado ocorre hoje uma ampla batalha de ideias: até nossos d.ias. Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil
se a sociedade civil é rcalment.e autônoma, as universidades, por conhece uma trajetória que leva de uma siru.açáo de completa de-
exemplo, tomam-se um campo de luta pela hegemonia cultural bilidade (ou mesmo a~cia) de sociedade civil até outra situação,
de determinados projetos de conservação ou de transformação a presente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais
das rcla.çócs sociais. A luta de classes se trava também no interior complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória
das universidades. E "organizaçõcs culturais" são wnbbn as insti- é exprcssáo do progressivo ingresso do Brasil, ainda que por vias
tu.içõcs que servem para difundir ideologia de um modo geral: as t:ransVcrsas, na era do capitalismo indusrrial.
editoras, os jornais, os grupos teatrais etc., estejam ou não ligados Vou esboçar aqui um quadro histórico-evolutivo extremamente
diretamente a algum organismo (tipo sindicato ou panido) da esquemático; repetirei muitas coisas já ditas cm outros trabalhos
sociedade civil. meus, nos quais creio que esse esquematismo aparece - se me
Para simplificar: não pode existir sociedade civil efctivamcnce permitem o jogo de palavras - um pouco menos esquemático1•
autônoma e plw:alista sem uma ampla rede de organismos cultu- Se examinarmos o Brasil da época colonial, uma sociedade
rais; e, vice-versa, não pode existir organização da cultura efetiva- pré-<:apitalista (ainda que anio1lada com o capitalismo através do
mente democrática sem estar apoiada numa sociedade civil desse mercado mundial), vcICmos facilmente a completa incxistblcia
tipo. E a luta de classes, sob a forma da batalha de ideias, da luta de uma sociedade civil. Não tínhamos parlamento, nem panidos
pela hegemonia e pelo consenso, atravessa tanto a sociedade civil políticos, nem um sistema de educação que fosse além das escolas
quanto esse sistema de "organização da culwra" (não é preciso de catequese; não únhamos sequer o direito de imprimir livros
insistir aqui sobre o faro de que o Estado, enquanto permanecer ou publicar jornais. Em suma: a organização da cultura, se é que
sob controle capiralista clou burocrático, interfere nessa batalha se pode falar de "organização" nesse caso. era tosca e primitiva.
de ideias, obstaculizando sua Üvn: dialética imanente: tão somente Os intdcctuais, os poucos que havia. eram diretamente ligados à
numa sociedade socialista fundada na democracia política é que administração colonial, à sua burocracia, ou então à Igreja (que
podem se criar as condições para um relacionamento verdadeira- era na época um aparelho ideológico direto do Estado colonialis~
mente autônomo corre as organizações culrwais e o Estado). ta). Há indícios de novidade na época imediatamente anterior à
Independência, mas não pas.çam de indícios.
2 O modo pelo qual se processou nossa Independ~ncia não
Como Marx disse, a chave da anatomia do macaco está na alccrou substancialmente o quadro: a Independ~ncia resultou de
anatomia do homem. Tracei aqui, con.scieotcmentc. as ünhas gerais urna manobra "pelo alto", de um golpe palaciano, e não de uma
das rcJaçõcs entre Estado e sociedade civil, cnttc sociedade civil ativação prévia da sociedade civil (ainda inexistente). Mas as pró-
e organização da cultura, entre intelectuais e sociedade civil etc., prias necessidades políticas do país tornado independente, bem
cal como se manifestam numa sociedade desenvolvida, sob uma como o desenvolvimento econômico, colocaram novas questões:
forma que - ainda segundo uma indicação metOdológica de Marx swgiu a necessidade de elaborar uma camada de intelectuais capaz
- poderíamos chamar de "forma clássica". Essa forma clássica mais de servir ao novo Estado. Isso impôs, por exemplo. a criação de ins--
desenvolvida nos permite pensar a anatomia do caso brasileiro, ou
seja, de uma forma mais primitiva e menos explicitada, bem como Cf. prindpalmcnce o ensaio rol>re "Cuhura e sociedade no Brasir, infoi, p. 35-72.
20 C-.os Nu.!Oll Ú>UT1NHO C ULTURA l SOCIEDADE NO 8AA.Sll 21

tituiçócs de ensino superior (principalmente jurídicas) no próprio podia ser de outro modo, numa situação em que praticamente
país, cm concrastc com a siruaçáo colonial, quando os intdcc.tuais não havia sociedade civil: o parlamento, deito pdo voto ccnsitário
eram formados na metrópole portuguesa. Surge também, com o de uma c:xígua minoria, não podia ser considerado uma entida-
aparecimento de um incipiente mczcado cultural, a nccasidadc de autônoma cm fu:c do Estado cm sentido estrito; 0$ putid0$
de criar os primeiros rudimentos de um sistema de organização da políticos não ccam partidos d e massa, mas simples apêndices do
cultura: publicam-se jornais, editam-se livros, mont.am-sc peças Estado. Por outro lado, o mercado cultural era c:xtccmamentc
de teatro etc. rcsuito; se hoje é quase impossívd ao intelectual sobreviver no
É preciso lembrar que vivíamos então sob um modo de Brasil com a venda de suas obras, pode-se facilmente imaginar o
produção escravista. Um escravismo certamente peculiar, já que que ocorria no século 19.
articulado no nível internacional com o capitalismo, com suas exi- E mais: a cooptação assumia frequentemente o traço do favor
gências mercantis e, portanto, capaz de "imporoa? um certo tipo pessoal. ligando-se a um poderoso, a um proprietário influente, o
de cultura (e de instituições) próprias do capitalismo liberal; mas intdectual c.ra agraciado com empregos, prcbcndas ccc. É verdade
se tratava sempre, no plano interno, de um regime escravista. que essa siwaçáo de subordinação pessoal às classes dominantes era
Isso gera importantes c.onscqu!ncias para a situação do inte- disfarçada pdo status relativamente devado atribuído à condição
lectual. O escravismo cria um grande vazio entre as duas classes de intdcctual. A posse da cultura era um meio de distinção para
fundamentais da sociedade brasileira: por um lado, os escravos que, homens livres mas não proprietários, que não queriam se dedicar
evidentemente dcsorganfaados e carentes de um projeto político a um trabalho efetivo, já que o uabalbo era marcado pdo estigma
global, náo podem absorver os intelcawús como seus intelectuais da condição escrava. Ser intelectual era ser ocioso; e prccisamcnt.c
or~icos'; e, por ouuo, os latifundiários cscravocracas, que preci- na possibilidade de desfrutar desse ócio é que residia o tra~ de
savam dos intelectuais apenas como mio de obra qualilicada para distinção, o status superior do intelectual. E esse status, ao mesmo
a implementação das atividades administrativas do Estado que tempo cm que servia de d.isfa.rcc para a posição dependente do
conuolavam. Não precisando legitimar sua dominação atrav~ da incclectual, acentuava o caritcr ornamental da cultura dominante
bata.lha de ideias, as classes dominantes de então incentivavam uma da época.
cultura puramente ornamental, que serviu para conceder status E nesse clima que surge o que tenho chamado (usando um
tanto aos intelectuais quanto aos seus mecenas, mas que não tinha termo de Thomas Mann recolhido por Lukács) de "intimismo à
incidência efetiva sobre as c.ontradiçõcs reais do povo-nação. sombra do poder". O intclccrual cooptado não tem ncc.cssa.riamcn-
Em tal atmosfera social rarefeita, era dificil para o intelectual tc de ser um apologeca direto d o regime soei.ai que o mantém e do
encontrar o meio próprio para seu florescimento independente, Estado ao qual está ligado. FJc pode, cm sua criação cultural ou
para sua autonomia rdativa. Restavam-lhe poucas opções; a artística, cultivar sua própria intimidade, ou seja, dar cxprcssáo a
principal, quase exclusiva, era aceitar a sua cooptação pelas classes ideologias ou estilos estéticos que lhe pareçam os mais adequados
dominantes, tomar-se funcionário do apardbo de Estado. E não à sua subjetividade criadora. Mas o fato é que a própria situação
de isolamento cm face dos problemas do povo-nação, a ..torre de
~ claro qu.: bou~ intdcauals ~on4w; nw. cm ppaL llCU vínculo culninl com
marfim" voluntária ou involuntária cm que é posto pda situação
os acnvos c:n cxttrioc, rrcóríoo - lwu pauar na poesia ele Castro Alws -, e a luca
abollcloniJu nio se &zia cm notne ele um projeto culninl e polírico cb e.cnvos. mas de cooptação (e pela ausência da sociedade civil), faz com q ue
clc uma ,_,. ordem libcnl que pnntirb o dacnYOivimcnco do apiollsmo. essa cultura elaborada pdos intdccruais "cooptados" evite p6rcm
CumiM f SOO(OAOC NO 8 MS11. 23

discussão as rdações sociais de poder vigentes, com as quais estão republicanas criado em seguida não era de molde a fortalecer a
direta ou indiretamen te comprometidos. sociedade civil. O parlamento con tinuou a ser um mero apbldicc
Por exemplo: o romanósmo, com seu culto da subjetividade, do Executivo; os partidos eram nada mais que con&arias locais a
funciona ccmmcntc como estímulo à evasão. O próprio indianis- serviço de alguns coronéis envolvidos na poUtica. No essencial,
mo, como Nelson Wemock Sod1é mostrou, é um modo de deixar a vida intdccrual continua restrita a poucos setores das camadas
na sombra a questão mais cande.n te da vida 02.cional da época: a m6dias; continua em grande parte a ser uma •cultura ornamental",
questão da escravidão negra (não me parece carua.I que o romântico algo que Afdn..io Peixoto expressou muito bem quando, ingenua-
José de Alencar, "vanguardista" literário, fosse - além de político mente, definiu a literatura como sendo "o sorriso da sociedade".
conservador - um convicto escravista). O na.tu.ra.lismo, tão diverso As polbnicas culturais abrem fissuras na superfkie hom~nca
do romantismo sob tantos aspectos, tem um ponto semelhante: ao da camada intdcctual, mas não tocam nas questões de fundo:
dizer que a "rn.isé.ria brasileira" é &uto de condições fa.ta.i.s. naturais, não passam, no mais das vezes, de tempestades cm copo d'água.
eternas, de raça e de clima, os naruralistas desviam a atenção d os Pamasianos, simbolistaS, românticos tardios: todos se identificam
ponros concretos, histórico-sociais, porunto modificáveis, que numa comum concepção de cultura, ou seja, uma concepção
estão na raiz daquda miséria. elitista, aristocratizante, ornamental.
Esses dois exemplos parecem-me indicar bem a caracterís-
tica central da cultura que nasce no solo da cooptação: trata-se 3
de uma cultura que promove uma "apologia ináimd' (Lukács) Mas seria errado não ver que algo começa a se mover, algo
do c:x.istentc, que justifica a estrutura social não mediante a sua que explodiria à luz do sol sobretudo a putir dos anos de 1920.
defesa direta, mas mediante a sua misti6caçáo ou ocultamenro A sociedade brasileira vai se tornando mais complexa (ou men os
(caso do romantismo); ou medi.ante a afirmação de que, embora simples), o capitalismo vai se tomando o modo de produção
feia e desumana, ela é imutávd, e q ue devemos nos resignar a da dominante também nas rdaçóes internas. Nossa estrutura social,
(como no naturalismo). ~evidente que existem cxccç.ócs. e não é com a Abolição, com os primeiros inícios da "via prussiana" n o
casual que elas sejam precisamente as maiores 6guras do período, campo, começa a se tomar mais próxima da estrutura de uma
do ponto de vista cultural; basta pensar em Manuel Antônio sociedade capitalista. ainda que continue atrasada e fortemente
de Almeida ou em Machado de Assis, que souberam - cm suas marcada por restos pré-capitalistas; n0V2S classes e camadas sociais
criações literárias - escapar dos impasses gerados pela culrura d o se apresentam no cenário político do País. Antes de mais nada,
"intimismo"•. começa a surgir uma classe operária formada ainda essencialmente
Essa siruaçáo não se alterou radicalmente durante a Primeira por scmiartcsáos; os primeiros esboços de industrialização, a gran-
República. Também a República, como a lndcpcnd&icia, foi fruto de imigração de finais do século passado, criam um bloco social
de uma mudança "pelo alto"; foi pouco mais do que um golpe contestatário, que põe cm discussão de modo o~do (o que
militar; as grandes massas, que continuavam desorganizadas, talvez ocorra n o Brasil pela primeira vez) o moddo "prussiano",
não participam de sua proclamação. O arremedo de instituições eliósta e marginalizador de dominação poUrica, econômica e social
até então dominante.
Tcn102ponur algunwducauwdcais ·~· cm meu cnsaiosolm: Uma Barrno, Começa assim a surgir, com a introdução do capitalismo,
ilf/nt, p. 89- 139. com o início das lucas operárias e com as agitações das camadas
24 C-.os Nu.soN Coumot0 (UU\/llA f SOCIEOAOf NO BIIAS._ 25

médias, um germe do que se poderia chamar de "sociedade.civil". nascente, incorporando corporativamente os sindicatos à estrutura
Multiplicam-se as associações proletárias; cm consequbicia, surge do Estado (e destruindo sua autonomia), instalando cm 1937 uma
uma ainda raccfeita mas ativa imprensa operária, de orientação ditadura aberta que fechou partidos e parlamentos, criando, com
predominantemente anarquista. Temos aMim que, a um embrião o Dep~entQ de Imprensa e Propaganda (DIP), um arremedo
de sociedade civil (associações sindicais e primeiros grupos poüticos de organismo cultural totalitário (ou seja. uma tentativa de pôr
de artesãos e operários), corresponde um embrião de organização a cultura dirct2mcnte a serviço do Estado}. Mas a diversificação
cultural exterior ao Estado (a imprensa e as associaçócs culturais da forma.çáo social brasileira prosseguia; o próprio capitalismo "à
dos proletários). prussiana", impulsionado pelo Estado gctulista, encarregava-se
E nesse quadro, a meu ver, que se pode explicar o "fenômeno" de promover essa diversificação. Tmha-sc agora um pressuposto
Lima Barreto; Lima é o primeiro grande intclecruaJ brasileiro a se (que se podia ocnamentc reprimir, porém não mais eliminar) para
beneficiar diretamente dessa maior explicitação das contradições a criação de uma sociedade civil, de uma org:miz.açáo da cultura
sociais, dcs.ça pámcira (ainda que incipiente) tentativa de organii.M menos vincuJada a um Estado onipotente.
a partir de baixo a vida política e cultural brasileira. Lima publicou O romance nordestino - um grande protesto literário e.onera
grande parte d e sua produção cultural, sobretudo jornalística, o modo "prussiano• de modernizar o país - é um exemplo vivo
nessa nova imprensa operária que surgia cm sua época. E em de que então se tornara possível, e não mais apenas como cxccçáo
seu principal romance, Policarpo Qwzm7111l, ele faz uma crítica que confirma a regra, criar uma cultura não ditista, não intimista,
demolidora da sociedade brasileira, atingindo-a cm seu ponto ligada aos problemas do povo e da nação' . Uma cultura, cm suma,
talvez mais típico: no modelo de desenvolvimento "prussiano", nacional-popular.
"pelo alto", que o florianismo e o militarismo (tema central do E não me parca: possivd desligar a irrupção de fenômenos
romance) encarnavam tão bem. como a ftoração de importantes estudos sociais no período (é de
E tampouco é casual que, cm 1922, assista-se a um fato da 1933 a primeira tentativa séria de interpretar a história do Brasil
maior importância na vida do país: a fundação do Partido Co- à luz do marxismo: o ensaio pioneiro sobre a Evo/uçdo polltica Jq
munista do Brasil. Temos com isso, pela primeira vez cm nossa Brasilde Caio Prado Júnior) da tcndbtcia à sociali:viçáo da política
história, a criação de um partido político feita a partir de baixo; que, apesar dos evidentes limites, começa a se manifestar nos anos
e d e um partido n ão s6 independente do Estado, mas até mesmo de 1930. A Aliança Nacional Libertado ra e a Ação Intcgtalista
antagônic.o a d e. O PCB, embora ainda não fosse um organismo d e Brasileira são movimentos políticos de massa de proporções até
massa, representava o embrião de um aut!ntico partido moderno, então desconhecidas cm nossa história. Essa socialização da polftica
que é momento básico de urna sociedade civil efetiva. indica que já estavam cm andamento os processos que levariam
O modo "prussiano" pelo qual se deu a chamada Revolução d e à criação no Brasil de uma socicd.adc civil autônoma e pluralista.
1930 - mais uma manobra "pelo alto", fruto da conciliação entre Mas que se tratava ainda de embriões débeis, com raízes rcc.entcs
setores das classes dominantes e da cooptação das lideranças polí- e tenras, é algo que o pr6prio golpe de 1937 iria comprovar: mais
ticas das camadas médias emergentes (expressas no "tenentismo")
- quebrou em grande parte as tendências que se vinham esboçando A crida roinanac:a da •vb pNS$iana" n.io aparece apenas nm tt.edemes romances de
Gracllb.no Raino5. Basta pensar nos romances de José LiN do Rego que traiam cfa,
antes. M as n ão as d estruiu inteiramente. ~ certo que o Estado ~ hwmanas provocadas pela capiw lzaçio do latifilndio, pela con'V'l:rdo do
pós- 1930 lutou para cxónguír a autonomia da sociedade civil vdho engenho ru moderna usiiu.
CuLTUM f 500(DAO« NO BMML 27

urna vez foi possível às classes dominantes se servirem do Estado, para a defesa de seus interesses e de seus ideais. Tudo isso amplia
de mecanismos de dominação "de cima para baixo" (e que agora o campo da organização material da cultura; urna ampla e muiw
apresentavam traços terroristas e totalitários tomados de emprés- vezes fecunda batalha das ideias começa a ter lugar entre nós. Há
timo ao fucismo internacional), para cmptt:cndcrcm um processo um accnruado empenho social da intelectualidade, um maior
de modcmiz.açáo capitalista conscrwdora: afutando o povo de compromctimcnco com as causas populares e nacionais.
qualquer dcci.sáo, quebrando qualquer veleidade de autonomia A possibilidade de subsistir fora da cooptação e do &vor dos
da sociedade civil na.sccntc. poderosos, graças à rede de organizações culrurais que se amplia
Essa debilidade da sociedade civil - ~ bom nio esquecer - (com a publicação de jornais e .rcvi.st.a.s independentes, com o au-
revela-se tam~m pelo lado oposto: no car.itcr abertamente "gol- mento do número d.e editoras, com uma crcsccnte autonomia das
pista", igualmente autoritário e elitista, que marcou a atuação das rcdm-criadas universidades etc.), permite ao intelectual escapar
forças poUticas renovadoras do período. Longe de apostarem no ma.is facilmente dos impasses a que é levado pela siruaçáo, pouco
fortalecimento da sociedade civil, as forças populares apostavam confortável cm muitos casos, do ªintimismo à sombra do poder".
no golpe. no rtsch blanqui.sta. na açio de cáguas minorias, como E isso não vale apenas para os intelectuais desligados do aparelho
se viu cm 1935, quando o movimento de massas esboçado na de Estado: muitos produtores de cultura que retiram seu sustento
ANL - que fora posto na ilegalidade - ~ abandonado cm f.avor material de cargos públicos, ao poderem agora se beneficiar do
de uma quanclada. clima de ativação da sociedade civil, colocam-se claramente ao lado
das forças progressistas, comprometem-se com posições poUticas
4 e visões de mundo que colidem frontalmente com a dominação
Esses embriões de $0dedadc civil, esses pressupostos de uma de classe encarnada pc.lo Estado do qual são funcionários.
autonomia da cultura, f.avorccidos ademais pela sicuaçáo interna- Isso demonstra, a meu ver, o car.itcr mecanicista e esquemá-
cional, aparec.criam de modo mais claro cm 1945, com a redc- tico das teses que afirmam ser o intelectual brasileiro, enquanto
mocratiz.açáo do país. Fato significativo ~que. pela primeira vez, intdccru.al, um membro das classes dominantes; ou que afirmam
o Partido Comunista do Brasil, lcg;alizado, toma-se um partido ser ele obrigado a assumir posições elitistas, ou mesmo reacio-
de massas; e revela, na ~poca. compreender melhor do que cm nárias, tão somente por ser funcionário público. Basta lembrar
1935, embora de modo a.inda insu6ciente. a impordncia da luta que Lima Barreto, "max.imalista" radical, violento critico do
democrática, do fortalecimento da sociedade civil nos combates militarismo, foi por muitos anos um pacato funcionário do
pelo socialismo cm nosso país'. Os sindicato1 opcrúios, embora Minist&io da Guerra. A questão ~ muito mais complexa. Em
continuassem atrelados à cutela do Ministbio do Trabalho, co- primeiro lugar, é certo que há uma tcnd!ncia dos intelectuais
meçam a ter um peso crescente n2o só nas lutas econômicas, mas ligados diretamente ao Estado no sentido de adotarem urna cul-
inclusive na vida política nacional. Tambhn as camadas m~dias rura intimista, elitista; mas essa tcndencia s6 se impõe na m~dia,
buscam formas de organização indcpcndcntcS, nos partidos e permitindo naturalmente as exccç6cs, que não são poucas. E, cm
fora deles: escritores, advogados, jorrulliscas criam associações segundo lugar, essas exccçócs aumentam, tendem mesmo a deixar
de ser exceções, no momento cm que se cscrurura uma sociedade
' Sob~ o PCB cm l 94S. ti. Landro Konda. A "-a.V e•~,.. BIWll4 Rio civil, cm que começam a se formar diferenciações no mundo da
ck Janrim. Gtul, 1980. p. ·~!. cultura: surge para o intdcctual, mesmo para aquele que con-
Cumnv. ( SOCllDAOf NO BRASii. 29

tinua ligado "profissionalmente'" ao E.atado, uma possibilidade ao Al-5, tentou por rodos os meios dcsttoçar o embri1o de socie-
bem mais concreta de romper as paredes do mundo fechado do dade civil autônoma que se vinha esboçando. E ~ evidente que a
"intimismo" e de ser influenciado pela riqueza da vida culrural. organização da cultura não foi poupada. Não ~ casual que, entre
pelo ambiente pluralista da batalha dcmocmica das ideias. A as primeiras medidas do regime ditacorial implantado cm 1964,
relação de dcpend~ncia entre cooptação e adoção de uma culcura estivesse o fechamento dos principais instirutos dcmocriticos de
elitista tende a relaxar, a deixar de ser uma tcn<Uncia donúnantc, organização cultural da qx,ca, os Ccnttos Populares de Cultura
no momento cm que surge ou se fortalece uma sociedade civil (CPCs) e o Instituto Superior de Estudos Brasilcitos (Iscb), bem
articulada. Com amarga lucidez, Carlos Drummond de Andrade como a dissolução do Comando dos Trabalhadores Inrclccruais
lembrou que não se deve confundir •servir sob uma ditadura" (CTI) e intervenções nas universidades.
com "servir a uma ditadura". Todo o esforço da "polltica cultural,. do regime se voltou no
O clima favorável à dcmocrati7.açio da vida ruhural aberto cm sentido de dar força às correntes clitiscas e/ou cscapistas no plano
1945 sofreu altos e baixos (basta pensar no fechamento do PCB cultural. E isso era obtido principalmente de dois modos: por
cm 1947, no clima de guerra fiia que marca o governo Outra), um lado, reprimindo e censurando os intelectuais que defendiam
mas pode-se dizer que a tend~cia no sentido de t1ma democrati- uma orientação cultural nacional-popular, com o que se abria
Ufáo gual da vida brasikira continua a se impor, ampliando-se espaço para o monopóUo de f.uo das correntes "intimistas"; por
bastante no final do período pré- 1964, sobretudo a panir do outro, quebrando a autonomia da sociedade civil, autonomia
governo Kubirschck7. Mas, mesmo assim, ainda são pouco sólidas que, como vimos, é a base n~ria para uma cultura pluralista
as bases de um novo caminho (democrático) para a vida nacionaJ e democrática.
e de uma nova hegemonia (nacional-popular, e mo mais elitista) Outro f.uor conspirou ainda para obstaculizar a demoçrati-
na cultura brasileira. zação da cultura. O regime ditatorial-militar criou as condições
políticas necessárias à passagem do capitalismo brasileiro para
5 uma nova etapa: a etapa da dominaçio dos monopólios, a etapa
Isso se tomou evidente quando, cm 1964, uma aliança entre do capitalismo monopolista de Estado. Com isso, introduziu-se
os vários segmentos das classes dominantes conseguiu aunca.r o um faro novo no sistema de organização da cultura: uma parte
processo de democratização cm curso, impondo mais uma vez uma substancial deste, a dos mcios de comunicação de massa, passou a
solução "prussi<1.na" para os problemas decom:nccs da necessidade ser dominada por grandes monopólios. A cdcvisáo ~ o caso mais
de levar o país a um novo patamar de acumulação capitalista. O evidente, mas o fenómeno se manifesta tam~m cm outras áreas,
novo regime ditatorial, panicularmcntc no período que se seguiu como a grande imprensa, o cinema etc. O "capital mínimo" (Mane)
necessário à criação de um organismo cultural tomou-se agora tão
1 elevado, cm scrorcs fundamentais, que somente os grandes grupos
Em 1958, o PCB indla>u dar.unente caa 1cndmcb, que coosidasY2 - malgndo os
ICUS altos e baixos - "uma rcndbx:b permancnuº: "As !Orças - que crcsc:em no monopolistas podem dispor dele.
aeio da todedadc bruilcira. prindpaJmcnrc o f>'okuriado e• burguesia. ~impondo Mas devo advertir que mo penso como Thcodor W. Adorno;
um novo cuno ao clacnvolvim.cnto polírico do país (_.). Eac novo amo se realiza no não acho que a indústria cultural seja um sistema monolítico, sem
sentido da dcmocnàzaç5o. da atcnÃO dos diRitos poUõeof a camadas ada Ytt mal$
:unplu." ("Dccbnçto do CC do PCB", ID1l'ÇO de 1958, úr.: PCB; V"mlt {111#1! ik f#Utiu, brechas. Mesmo antes que se chegue a uma radicaJ inversão de
São Paulo, Cltodas Hum21\U, 1980. p. 8). ccnd~ncia, a uma siruaçio na qual os organismos de difusão culru-
C UlTIMA f SOClfDADf NO 8AASa. 31

raJ sejam apropriados coletivamente pela c.omunid.ade. atrav~ dos o país, envolvendo operários, mulheres, jovens. setores médios,
produtores culturais associados, o que só ocorrerá numa sociedade intdectuais, até mesmo setores das classes dominantes, atesta a
socialista fundada na democracia política - mesmo antes disso, pttscnça j:i efetiva dessa sociedade civil.
t para qi« possamos chegar a isso, a luta pela dcmocratiz.açáo da É certo que o regime militar rudo fez ~ abafar esse flores-
cultura pode e deve obter ganhos parciais de grande impordncia cimento da sociedade civil desde o momento cm que percebeu
e significação. as imensas potencialldadcs democráticas de sua atuação. Mas a
Por um lado, é preciso lembrar que há ainda setores culturais ditadura brasileira náo foi uma ditadura fucist:a "clúsica", ou
em que pequenas e m&üas empresas podem operar, garantindo seja, um regime reacionário com bast tk 1llllSSllS º'K""irAdtt. Não
assim uma maior variedade de orientaç{)cs, um maior pluralismo; é dispôs de organismos de massa capazes de luw e conquistar a
o caso da indústria editorial, da chamada imprensa alternativa, da hegemonia na sociedade civil, para depois destruir sua autonomia
montagem teatral etc. E, por ou.a o lado, à medida que a resistblcia e fu.er funcionar sew organismos como "correias de transmissão"
democrática vai pondo fora de funcionamento os insuumentos de de um Estado totalitário, como ocorreu na Icllia ou na Alemanha
repressão e de censura, os próprios monopólios da cultura - penso fascistas. J!. certo que a ditadura brasileira lutou para oonquistar- e.
particularmente na tdcvisáo e na grande imprensa escrita - co- cm alguns momentos (quando da sua implantação e nos anos do
meçam a abrir mais espaços às~ da sociedade civil, a dar "milagre"), conseguiu até mesmo obter - o consenso de pondccl-
passagem relativa ao pluralismo que oda tem lugar. Além disso, ve:i.s parecias da população. Mas se tratou sempre de um consenso
com a conquista de um regime de c&tivas Ubmbdcs democráticas, passivo, que pressupunha a atomização das massas e não se expres-
podem-se conceber formas diretas de controle - exercidas canto sava mediante organizações de apoio ativo à ditadura. O regime
pelos próprios produtores çU)tyrais quanto pelos organizadores da militar, cm suma, era desmobilizador; sua tentativa de lcgitima?o
sociedade civil - sobre a geração dos programas tdevisivos e sobre não se fundava numa ideologia claramente fascista, mas na luta
a informação cm geral. contra as ideologias em geral, contra a própria poUtica, acusadas
E mais: malgrado o caráter ddctério da "política cultural" da de "divid.i.rcm a nação" e de impedirem assim a "segurança" que
ditadura, nem rudo foram sombras na cultura brasileira durante os "garante o desenvolvimento". E, na mesma medida cm que era
anos do regime militar. Não quero me referir a.penas à resist~ncia obrigada a dispensar a org;uúzaçáo das massas, a luta no interior
passiva ou ativa da esmagadora maioria dos intelectuais, que - in- da sociedade civil, a ditadura dispensou também o concurso de
dependentemente de suas posições idcol6gic:as- c.oloca.ram-se cm intelectuais orginicos que elaborassem uma ideologia totaliwia
oposição às medidas repressivas do rqime no plano da culcu.ra. H :i a seu serviço: o que da c:xigja dos intelectuais, do mesmo modo
um fato que me parece ainda mais sígni&ativo. j{ que escl na raiz como o haviam feito os velhos regimes autoritários brasileiros, é
dessa rcsistmcia: é que o regime miliw - modernizando o país, que eles continuassem a cultivar o seu • intimismo à sombra do
promovendo um intenso desenvolvimento das foiças produtivas, poder", deixando aos tecnocratas "anti-ideológicos" a discussão e
ainda que a serviço do capital nacional e multinacional, ainda que o encaminhamento das questões decisivas da vida política.
conservando traços essenciais do auuo no campo - deu impulso Ora, durante a fuc do chamado "milagre econômico", essa
aos fatores objetivos que levam a uma difcrcndaçio social e. como "ideologia da não ideologia" (de fundo neopositivisca) pôde
tal, à wnsuuçio de uma autbltica sociedade civil entre nós. A desfrutar de um relativo consenso entre setores médios e servir à
intensa sede de organização que, nos últimos anos, atravessou legitimação parcial d o regime. Mas, a partir do inicio da crise do
32 C-.os NWOH CovnNHO ( UlTUllA f SOCIEOAl>l NO 8 11AS1l 33

"moddo" e da reativação e reorganização da sociedadc.i:iviJ - o Criaram-se assim as condições para que os intelectuais com-
que cem lugar cm meados dos anos de 1970 -, essa ideologia preendam ~ ~tro. como uma cxigancia de sua própria sobrcvi-
entrou cm bancarrota. Como vimos, o regime militar não tinha vancia como produtores de cultura, a necessidade da construção
(e não podia çriar) movimentos de massa capaus de organizar de uma sociedade deni<>Çráti~. A ÇQnquista da democracia - de
o consenso na sociedade civil, de torná-lo relativamente cstávd, um sistema de organizações culturais aberto e pluralisr.a. apoiado
mesmo cm épocas de dificuldades e crises. Para lutar pela obtenção numa sociedade civil autônoma e dinâmica - torna-se a base para
desse consenso, de se viu forçado a empreender uma tentativa de o florescimento de uma cultura nacional-popular entre n6s; mas a
"autorrcforma", a abandonar a repressão como único inscrwncnto elaboração e difusão de tal cultura, contribuindo para a hegemonia
de governo; e essa autorrcforma, para ser cxequfvd, implica de dos trabalhadores (do braço e da mente) na vida nacional, é por
ccno modo a necessidade, por pane do regime, de fazer política. seu rumo um momento indiminávd na conquista, consolidação
Mesmo lutando para conservar o seu monopólio de decisão, a e aprofundamento da democracia, de uma democracia de massas
ditadura foi obrigada a respeitar cm certa medida os espaços con- que seja parte íntCgJaDte da luta e da construção de uma sociedade
quista.dos pelas forças democráticas na sociedade civil, a conviver socialista cm nosso pais.
com a presença de algo que escapava ao seu controle. Confuma-
se assim, de certo modo, a tese do PCB cm 1958: malgndo os (1980)
retrocessos, a democratização da vida brasileira - que se apoia no
dcscnvolvimcnro da sociedade civil gerada objetivamente pela
modcmizaçáo capitalista - parece ser wna tcnd~cia permanente
e, a longo prazo, irrevcrsívd.
O próprio desenvolvimento do capitalismo, ao criar um
mercado de força de trabalho intdcccual, alterou a situação dos
produtores de cultura: a possibilidade de que eles exerçam sua
função já náo depende do f2vor pessoal, já não resulta da coopta-
ção. O velho int.clcctual elitista. prestigiado por possuir cultura,
converte-se cada vez mais cm ttabalhador assalariado. Experimenta
agora a necessidade de se organizar, como qualquer outro grupo
social, para lutar por seus intcrcs.scs cspcd6cos, entre os quais
não se sirua apenas a melhoria das condições de trabalho; e, entre
essas últimas, ocupa lugar de destaque a sua autonomia enquanto
criador. A luta pelo especifico articula-se aqui com a luta geral,
ou seja, com a lura pela liberdade de expressão, de criação e de
crítica, que só podem ser asseguradas plenamente num regime
democrático aberto à renovação social. De casta fechada, de cor-
poração de notáveis, os intdccruais passam a ser uma parcela do
mundo do trabalho.
Cultura e sociedade no Brasil

O presente ensaio não tem a menor prctenSáo de esgow- nem


histórica nem sistematicamente - os muitos e oomplcxos proble-
mas que aborda. Deve ser lido como um conjunto de anotações
mais ou menos fragmentá.rias sobre alguns tópicos que me parc-
c.cm decisivos para a correta colocação e o justo encaminhamento
da questão culrural entre n6s. O que unifica relativamente essas
anotações é que elas partem de um pressuposto - o de que não
é possível compreender a problemática da cultura brasileira sem
examinar algumas características da nossa intelccru.alidadc, ligadas
ao modo cspcd6co do desenvolvimento social cm nosso país - e
desembocam numa perspectiva: a maneira pela qual a "questão
culrural" se resolverá no futuro imediato vai depender, cm medida
não desprezível, da resolução dos complexos problemas colocados
pela renovação democrática e social de nosso país.
Isso não quer dizer, contudo, que essas anotações pretendam
ser "normativas" no sentido estreito da palavra. Ou seja: não tbn
a imençáo de diw ao criador culrural cenas regras estéticas e/ou
determinados procedimentos político-morais sem cuja obscrvincia
"não haveria salvação" para ele. Na criação a.rústica ou culrural cm
geral, "não há salvação" para o criador se ele não se comprometer
radicalmente com os valores e prindpios que considera os mais
adequa.dos à sua personalidade enquanto criador. Nesse sentido, se
há alguma "norma" proposta neste ensaio, é a defesa intransigente
da mais ampla e radical liberdade de criação culrural.
Todavia, mesmo com o risco de repetir o 6bvio, gostaria de
advertir que essa liberdade de criação me paJ"C<X condicionada por
dois "limites". Em primeiro lugar, operando sempre num quadro
histórico-social concreto, a liberdade de criação implica condi-
cionamentos sociais, dos quais o criador pode ou não estar cons-
ciente. E, dado que a liberdade cm geral é também conhecimento
da necessidade, como queriam Hegel e Engels, então a cspcdfica
36 Cw.os Nu.SOM Col!TIHHO CUlTllM E SOOCOADf llO 8MSIL 37

liberdade de criação não será restringida- mas, ao contrário, será nado e determinante, com o desenvolvimento do capitalismo em
potenciada - se o criador tomar consci~cia das implicações sociais nível mundial?
(tanto do ponto de vista da gênese quanto dos efeitos) de sua pro- Colocando na pergwu:a a questão do capitalismo, já indicamos
dução cultural. Um dos objetivos deste ensaio é precisamente o de boa pane da resposta. Enquanto formação social espccl6~ e; rda-
tentar esboçar alguns desses condicionamentos concretos no caso tiv:amcntc autônoma, o Brasil emerge na época do predomínio do
brasileiro e, com isso, contribuir para uma tomada de consciência capital mercantil, na época da criação de um mercado mundial.
destes por parte dos produtores de cultura. Nossa pré-história como nação - os pressupostos de que somos
Em segundo lugar, a mais ampla liberdade de aiaçáo tem como resultado - não residem na vida das tribos indígenas que habita-
contrapartida necessária a mais ampla liberdade de crítica: se só ao vam o território brasileiro antes da chegada de Cabral: situam-se
criador cabe. cm última insdncia., ddinir os conteúdos e as formas no contraditório processo da acumulação primitiva do capital, que
de sua criação (o que de fará de modo tanto mais livre quanto tinha seu centro dinimico na Europa Ocidental. Os efeitos culturais
mais for consci.e nte dos condicionamentos sociais a que me referi), d~ processo furam assim descritos por Marx e Engels:
ao crítico cultural cabe o direito de exercer a sua p lena liberdade Em lugar do antigo bo.lamcnto de rtgiõcs e nações que se bastavam a si próprias,
de avaliar - em nome dos critérios que considerar válidos - os dcscnvohocm« um intaclmbio univcm.I.• uma unM:rsal in~ das
resultados concretos dessa aiaçáo. t evidente que a prática d~ nat;i6cs. E dslO se rcfm: wno à produção mataial quanro à produção incdcctual.
dupla liberdade, de criação e de critica, implica de ambas as partes ~ criações culturais de uma nação tomam-se propriedade ex>mum de todas. A

a possibilidade do acerto ou do fracasso (com todas as suas gamas csaeitcza e o c:xdusivismo nacionais comam-se cada vci mais lmpoS3ívcis; das
in.úmcras literaturas naciol12is e locais, na.soe uma litcnrura universal.1
intermediárias). Mas a decisão quanto a isso não pode, cm nenhum
caso, depender de outra insdncia que não seja a própria dialética O objetivo central do colonialismo, na época do predomínio do
da vida cultural, na pluralidade de suas orientações e tendências. capital mercantil, consistia cm extorquir valores de uso produzidos
Talvez possa parecer supérlluo insistir nisso; mas houve e há fatos pelas economias não capitalistas dos povos colonizados, com a fina-
concretos que tomam necessário eliminar dúvidas e preconceitos, lidade de cransformá-los em valores de troca no mercado internacio-
se é que efetivamente desejamos criar cm n<>SfO país, também no nal. A subordinação dessas economias agora "pcriféricasn ao capital
plano da vida cultural, uma efetiva democracia pluralista. mercantil metropolitano se dava no terreno da c.irculaçáo: era, para
usarmos com certa liberdade um célebre conceito de Marx, uma
1. SullORDINAÇÃO FORMAL E s~ REAL: ~ fimna/', que mantinha essenáalmcntc intocado o modo
OU COMO AS IDEIAS •e.NTRAM NO LUGM•
Um dos primeiros tópicos para uma jwta conceituação da • K. Marx e F. Engels. M.Nfasto M PllniM <Ãm1Utis11t, in: 14, Ohrms aa/hi;J,u, Rio de
"questão culrural" no Brasil é a análise da idaçáo entre cultura jaocin>, Vitória, 1956. "tOI. 1, p. 29.
brasileira e culrura universal. Em sua dimensão ontológico-social, ' Pan os conceitos de subonlimç.So (ou subsunção) formal e ttal, cf. K. Man, O ~itplJA/,
Rio de .Jaocíro, Ovilizaçio Brasilcin, 1968, Uvro 1, p. 585 e: a; e /ti. , O upillll, LMo
é este um problema que não pode ser resolvi.do no plano de uma /, C.,lnJo V1 (btlJiio), Sio Paulo, Ciblc:ias Humanas, 1978, p. 51-70. A P" g-.:m da
análise imanente das "fontes" e "inB~clas'". Há uma prévia ques- Alho~ fon.nsl p.n a real, garantindo a sodalizaçf.o das forças produtiva.'- aia
tão histórico-genética a exigir resposta: de que modo se articulou os prmui-tos ~Is pua que a produção se liberte de sua forma social capi12lis12:
do mesmo modo. ~ di:ra que a passagem COITC$j)Ondcntc, numa economia
a evolução das formas:õcs econômico-sociais brasileiras, de cuja "pcrifáia"' mc:om que au;am ai bax:s mmriais 1111n711U- naâoaa.is- i-ra a nipcraçio
reprodução e transformação a n0$Sa cultura é momento determi- da ckpcndbida ao capial intcmadonal.
38 ÚM.OS NWON ColnMto CUl.TUAA e SOOEOAOI! llO 811AS11. 39

de produção do povo colonizado. O faro de que a cxtorsáo4J"CSCCJltC riadores i.ns.istiam excessivamente na tese da autonomia do nosso
de valores de uso levasse, com o passar dos tempos, a uma altttaç:ão modo de produção, chegando mesmo a afirmar que o processo de
das bases econômicas e sociais do modo de produção inrcmo num circulaçáo no período colonial era posto pdo modo de produção
sentido mercantil e mesmo capitalista (ou stja, que gradualmente se interno, cm vez de ser- oomo penso- o ponto através do qual esse
passasse da subordinação formal à subowiinação mú) é um resulrado modo de produção tomava-se formalmente subordinado ao capital
não intencional do processo de colonização, não sendo c:aractc:rístico (mcn::antil) internacional.
de seus inícios (voltarei depois a essa questão). Sem entrar aquJ nos detalhes da ampla polemica acerca da
O esquema acima indicado vale wnbém para o aso brasileiro; natureza desse modo de produção pré-capitalista da era colo-
mas apresenta aqui uma especificidade da maior importincia, que nial, assumo como hipótese a de que se tratava de um modo de
não pode ser negligenciada na avaliaçáo de nossa dependência colo- produção escravista (de resto, o adjetivo colonial não me pa.rcce
nial e que tem amplas consequências no plano da cultur.t. Não havia caracterizar o modo de produção. no sentido de acribuir-lhe novas
cm nosso território uma formação cconômic.o-social que, mesmo leis, mas indica precisamente o seu vínculo de subordinação for-
primitiva, fosse capaz de fornecer cxccdcntcs de vulto ao processo mal ao capital iotcmacional: uma subordinação que ccn:a.mentc
de circulação do capital mercantil colonialista. O problema, assim, sobrcdctermina essas leis, que são podm as leis gerais de todo
era o de criar um aparelho produtivo que se articulasse diretamente modo de produção escravista com dominincia mercantil"). É o
com o mercado mundial. Mas o fato de que o modo de produção elemento escravista que fomoc:e a marca determinante da formação
vigente na era colonial tivesse sido posto e npotto pdo movimenco cconômic.o-social. Ele interfere, por um lado, na produúvidadc
internacional do capital não significa, como pensam muitos de econômica do sistema, que se mane~ estacionária (ao contrário
nossos historiadores, que se tratasse de um modo de produção capi- do que ocorreria no fcod.alismo"). com todas as con.sequ~ncias
talista, ainda que "imperfeito" ou "incompleto"~. Tais historiadores que disso resultam para a criação ulterior de um mercado interno
não levam na devida conta o fato de que a característica essencial e, portanto, para a forma "prussiana" que prevaleceria quando da
do modo de produção capitalista - característica que está na base traru.ição para o capitalismou. E, por ouao lado, vale ressaltar
da lei do valor-trabalho e, por conseguinte, de todas as demais leis 11
De qualquer modo. ~me: de grande: intett.S$<: o livro de: Jacob Gorendcr, O anw·
que operam nesse modo de produção - é a cxistencia do trabalho W- co/niiJ, São Paulo, Áric:a. 1978, ccnamc:ntc uma das mais 16cicb.s rdlc:c6cs sobre
"livre", do trabalho assalariado, que praticamente inexiste n.o Brasil o noao modo de: produção na q,oca c:o&onial.
11
durante toda a era colonial. Mas tampouco me parece correto que, Sobre os estímulos ao aumento da produtividade oo f'nid•lismo, cm conmstc: com o
bloqueio ccc.nológico do csc:ravismo, á. Pcrry And=on, D./JiuWbiu J fa"""ksimo,
numa justa reação à teoria do "capitalismo colonial", ouuos histo- Miliio, Mondadori, 1978, p. 116 e ss.
" Todavia. do ponro de: vista dc:s.a uusição. a qucsdo nio se alicn c:ac:ncialmc:ncc se se
•• Um dos principais dcÍ<:nrottl cb ccscdo "capicalismocn&oaial bnsUciroº ~Caio Prado Jr. co~ a p~ do faidaljano no Brasil. O dc:cimo i c;oosa.w que essa uusição
Fernando Hc.nrlquc Cardoso. por sua vez, f.ala em ºapimllanolncompleto" (á. AMl<ni· •prusmnaº" deu com a corucrvaç5o de fonms de: tt2ba1ho fundadas na cocrçio cxuae-
llrinM '~.Rio de janeiro, Pa e Tan. l 97S. p. 1°'"106). A consequrnci:a conómlca. formas que. como se sabe. do c:arxtcrisdc:u wiro do acravis:mo quanro do
mais problemática da dc6nição do modo de ~ ooloaiaJ como aphallsu ~ que fcudaWmo. Referindo« ao .W do. Estados Unido., Lcnia ob.crtou: ºAs~
assim se ttnnüu por rcdurit o problema p i cb cnmiçfo i-a o apitallano no Brasil c:c:on6micu do amtflismo não 1c: distinguem "~ c:m nada das do feudalis:m.o
ao problema mais especifico cb inclwuiallDçflo; com mo. padHc a poaibilidaM de ( ... ). E.ncon.uamos ai pauagnn da c:murura escravista - ou feudal, o que: no caso dá no
opc:r.u de: modo fecundo com a rncgoria de w pcummaº, que dcnoca precisamcnt.e mamo - da agricultura para a c:murura mc:ramil e: capicalhc{ (V. 1. Lenin, ºNouvdlcs
um procmo no qual a translçio para o capi11li1111cuccKaim aQ!lllC1'\'llÇlo !k dcmcntOf donná sur les lou du dmlopcmau du capicalilroc da.Da l'agriculnm", in; /J., Onwm,
pfé.apiallsw, wi10 na infrxsmnura quanto no ~. Pvis, &lidons Soaalcs. 1973. vol. 22. p. 21 e 106).
40 CAAlos NtLSOH CounHttO CuuutlA E SOOEDAOE llO BllASll. 41

a marca escravista sobre a estrutura d e classes: a degradação do A cultura universal, assim, não era algo externo, imposto pela
trabalho manual, que é muito mais intensa no cscravismo do que força, à nossa formação social, mas algo potmdalmmte interno, que
no feudalismo, opera no scnàdo de criar &ixas "médias" maigi- ia se tornando efoti:vammu interno à medida que (ou nos casos cm
naliz.aw pelo sistema (tanto nas cidades quanto no campo), que que) era recolhido ca.Wmilado por uma~ ou wn bloco de~
s6 podem se reproduzir através do "favor" dos poderosos. Mais ligados ao modo de produção brasileiro. Nascido no momento cm
adiante, veremos a fundamental impordncia do "favor" na for- que.se forma o mercado mundial, e como conscqu&tcia de sua ex-
mação d.a intelectualidade brasileira. pansão, o Brasil - desde sua origem-Já é herdeiro potencial daqude
O fato de que os pressupostos d.a nossa formação cconômico- patrimônio culrural universal de que falam Marx e Engels. A história
sociaJ estivessem situados no exterior teve uma imporcante d.a cultura brasileira, portanto, pode ser esquematicamente definida
consequência para a questão cultural. Isso signiflca que, no caso como sendo a história dessa assim.ilação- mecânica ou crítica, passi-
b rasileiro, a penetração d.a cultura europeia (que se estava trans- va ou mnsfonnadora - da cultura universal (que é ccrcamcnrc uma
formando cm cultura universal) não encontrou obstáculos prévios. cultura altllJllcntc clifcrenciada) pelas v.irias classes e camadas sociais
Em oueras palavras, não existia uma significaàva cultura autóctone brasileiras. Em suma: quando o pensamento brasileiro "importa"
anterior à colonização que pudesse aparecer como o "'nacional" uma ideologia universal, isso é prova de que determinada classe ou
cm oposição ao "universal", ou o "'aut&tàco" cm contraste com o camada social de nosso país cncontt0u (ou julgou encontrai) nessa
"alienígena". Basta pensar no mundo árabe. na China e na Índia, ideologia a expressão de seus próprios intcrcsscs brasilnros de classe.
ou mesmo no Peru e no México, paracompn:cndcr im..rliar:amcnte Quando surgiu no Brasil a classe operária, por exemplo, não foi
a diferença com o caso brasileiro. No Brasil, mesmo na época da nos nútos bororos ou nas religiões africanas que ela foi buscar sua
subordinação formal, ou seja, mesmo quando o modo de p ro- aprcssao~ ,.,J. • ad uada.
~'""m4. ~. ~
dução interno ainda não era capitalista, as classes fundamentais Antes de prosseguir, cabe dissipai um possível mal-entendido.
d e nossa formação econômico-social colonial encontravam suas Embora condicionado pela relação de dependência (ou de subordi-
cxprcssóc.s ideológicas e culturais na Ewopa14• Com sua habitual nação econômica). esse vínculo com a cultura universal não impõe
lucidez, Antonio Candido registra o fato (o qual, cm sua &ricidade, necessariamente um caráter dependente ou "alienado" à totalidade
independe de juízos de valor): de nossa cultura". Por um lado, no interior de nossa formação
lmiw-, para nós, foi integrar, foi nos incorporarmos à cultura ocidcn13.1, da social, há a presença de classes antagônicas, com perspectivas
qual a nossa era um d~bil ramo cm crcsdmcnto. Foi igu.almcncc manifC$CU' a diferentes diante d o problema d.a dependência política e econô-
tcn<Uncia conna.ncc de nossa cultura. que $C111pn: tomou os vilorcs europeus mica, da subordinação (formal ou real) ao capital mundial; por
como meta e moddon.
o utro, no seio da cultura universal, su rgem correntes ideológicas
diversas que rcBctem no plano das ideias - para nos expressarmos
.. ~ cvidtntc que a culrun lndlgcna e. em panialbr. a mltun neva daanpc:nham um de modo simplificado - o antagonismo entre progresso e reação.
papel dcclsivo rui formação de noua fisionomia c:Wrunl apeciBcamc:ntc brasileira. M:as Ora, é nacural que se formem "afinidades eletivas" entre as classes
tal papel OOOrTCU sempre no q~ de um am•lp- com u matrius cwopeias (basta anàcoloniais e anà-impcrialistas e as correntes ideológicas pro-
pcruar. por c:xanplo. no proo:uo ooonido na m(aslaa populw). Quando raisrinm conu:a
esse am:llgaau, indcpcndcntcmcruc do valor monl ckaa ~. as culturas lndia " EaAideiade wm ·~ csuutural datultura brasileira. porca11$1 dasúuaçãocolonial
e ntgn rrarufomuram.sc ou an li:>lclon: ou .. CifH ' r ~ grupoc marginais. ou senúa>lonial, foi a pos~ domímnce a11rc os intd«tuais líp:loa ao lac:b. Sobn: isto.
,. A Candido, !11noJ.tri411 • J. li1mUJ1n1 tll /J#rlsil, C..-. Monte Ávila. 1968. p. 27. cf. e.aio Navarro de Toledo, lsdl:fa/trlutk ~. ~P:tulo. Ária, 19n. p. 81·90.
42 C-0S NWOH COlll1NHO CULTIIAA E SOOIOAD[ NO 8AASIL 43

grcssiscas; ou entre os beneficiários da dependência e as torrentes burguesa. Schwarz obsc.rva: "Era inevitável (...) a presença entre
reacionárias. O processo não é c.cnamcotc mecln.ico, comportando nós do raciocínio econômico burguês - a prioridade do lucro,
a possibilidade de "erros" ou "desvios": mas me~ justo dizer com seus corolários sociais - , uma vez que dominava no comércio
que, quando "transplantada" para o Brasil por WIU cla.s:sc pro- internacional, para onde a n~ economia era voltada"", Mas,
gressista e anticolonial, uma corrente cultural avança.da contribui como aquela ideologia übe.ral não se adequava inteiramente ao
para formar cm nosso país uma consci~cia social efetivamente modo de produção interno (que não era capitalista), revela-se
nacional-popular, contrária ao espírito da dependência, àquilo que objetivamente como uma "ideia fora do lugar": "Esse conjunto
Nelson Wcmeck Sodré chamou de "ideologia do colonialismo" ideológico [liberal] iria chocar-se contra a escravidão e seus de-
(ou seja, a adoção por brasileiros de correntes culturais - como o fensores, e o que é mais, viver com des"".
racismo - que justificam a nossa situação de dependência)". Há assim - se bem interpreto Schwarz - uma curiosa e
Como quase toda reprodução social, também a da depcndencia paradoxal dialética de adequação e inadequação. É certo que o
é uma reprodução ampliada, que implica a longo praw transfor- liberalismo expressa interesses efetivos das camadas dominantes:
mações de qualidade. Ocorre, assim, uma progressiva conversão livre-cambismo no comércio internacional, cálculo racional n.a
da dependencia através da subordinação formal cm dependência comercialização dos produtos de exportação, garantia de igual-
através da subordinação real; isso se dá quando o próprio modo dade jurídioo-foanal entre os membros das oligarquias rural e
de produção interno, sob a ação combinada de fatores endógenos comercial etc. E, cm outr0 nível, expressa também os interesses
e exógenos, vai se tornando efetivamente capitalista e se subor- dos homens üvrcs, mas não proprietários, que viam assegurados
dinando não mais ou apenas ao capital mercantil ou comercial, pela ideologia liberal seus direitos formais à igualdade com os
mas também, e sobretudo, ao capital industrial ou financeiro senhores e sua diferença cm fu:.e dos escravos. Mas, diante do
internacionais. Essa conversão cria novas condições para a nossa fenômeno da escravidão, da desigualdade estabelecida como fato
história cultural. Quanto mais passa a predominar a subordinação natural, do trabalho fundado sobre a coerção c:xtracconômica e não
real, tanto mais vai dcsaparec.cndo aquele fenômeno que Roberto sobre a üvre concr.uação no mercado, o überalismo brasileiro de
Schwarz, cm sua lúcida análise da cultura brasileira do século 19, então revela sua fu:c "inadequada" e "fora do lugar". Além disso,
chamou de "ideias fora do lugar". tampouco se pode Í21ar cm regulamentação liberal no relaciona-
Segundo Schwarz, o mais claro exemplo dessa "inadequação" mento entre os "grandes" e os homens üvrcs sem propriedade.
entre ideia europeia e realidade brasileira é a importação do libe- O "f.i.vor", que marca tal relacionamento, consagra vínculos de
ralismo no século 19. O vínculo do modo de produção interno dependência pessoal, de tipo pré-capitalista; é, por conseguinte,
(ainda não capitalista) com o capital mundial~ sobretudo na época um modo de relacionamento autoritário (mesmo quando pater-
imediatamente anterior e posterior à Independência, levou o bloco nalista) e antiliberal.
das classes dominantes no Brasil de então - formado pela junção É essa dialética de adequação e inadequação que, a meu ver,
da oligarquia latifundiária e escravocrata com os representantes altera-se com a passagem à subordinação real. Com o início da
internos do capital comercial - a adotar uma ideologia liberal
" Robato Scbwuz. Ao wncaú>r 11S """"4s. S1o Paulo, Duas Cidades. 19n, p. 14. Pelos
motivos q~ indicarei an rc:gulda. não concordo com a goe~ que Scbwan fai
Nelson Wmieclt So<W, A ~ Mco/4~ Riock Jllldro.Ovi1lz.1çlo BrullEin, pano$6tulo20 (cf. pormmplo, ibUL, p. 19c 24) de sua ccsc dc"idcias fura dclugai.
1965. p. 11- 16. " lbúl., p. 1-4.
(ul.TuttA E SOOEDADE NO 8AAS«. 45

industrialização, ou, mais precisamente, com a transição do modo 2 . Os EFBTOS DA .,VIA PRUSSIANA• SOBRE A INTELECTUALIDADE

de produção interno à fase propriamente c:apitali.st:a (o que já se ve- BRASU.EJRA


rifica wn~m em certos setores da agricultura na época da abolição Somente se tivermos cm mente esse vínculo estrutural da
da csaavarura, ainda que isso se dt de modo "prussiano", ou seja, cultura bwikiri çom a cultura universal é que poderemos ava-
com a conservação de traços pré-capitalistas}, as ideias importadas liar corretamente o sentido e a atualidade do problema de uma
vão cada vez mais "entrando cm seu lugar", tomando-se mais ade- cultura. nacional-popular cm nosso país, sem com isso cairmos
rentes às realidades e aos inte~ de classe que tenwn expressar. na armadilha de um fu.lso "nacionalismo cultural". Mas, antes
E isso porque a estrutura de classes da sociedade brasileira vai se de abordar esse problema, é preciso indicar outra determinação
tornando essencialmente análoga àquela da sociedade capitalista hist6rico-gcnética essencial da cultura. brasileira, gerada dessa feita
cm geral. Com isso, as contradições ideológicas que marcam a não tanto no nível do caráter dependente de nossas relações de
vida culruraJ brasileira do século 20 aproxúrwn-sc cada vez mais - produção, mas - através da mediação d essa base econômica - no
ainda que sem jamais se igualarem inteiramente - às contradições nível do tipo de articulação entre as classes e o poder político que
ideológicas próprias da cultura universal do pcc(odo. foi característica da evolução histórica do Brasil.
Já não se pode dizer, por exemplo, que o "maximallsmo" Essa problemática pode ser rcswnida na ideia de que o processo
libertá.rio de Lima Barreto esteja simplesmente "fora do lugar"; de modernização econômico-social no Brasil seguiu wna "'via prus-
na verdade, a ideologia de Lima expressa - e prn:isamcnte em siana" (Lenin) ou uma "revolução passiva" (Gramsci). Recordemos
sua contraditoricdadc interna, cm seus limites, cm seus eventuais as caracccrísticas centrais do fenômeno: as uansfonnaçócs ocorridas
"desvios" com relação às mauí:.zcs europeias - a concreta proble- cm nossa história não resultaram de aut&lticas revoluções, de movi-
mática das camadas urbanas subalternas que vão sendo geradas mentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da
direta ou indirccamencc pelo cccscimento da indústria. Para usar população, mas se proc:cssa.ram sempre attavés de uma conciliação
uma expressão de Lucicn Goldmann, essa ideologia aparece entre os representantes dos grupos opositores economicamente
como o máximo d e "consciência posslvd" dessas camadas nas dominantes, conciüaçáo que se expressa sob a figura política de
duas primeiras décadas d o século 20. Uma observação análoga reformas "pelo alto". É evidente que o fenômeno da "via prussiana"
valeria para o movimento modernista de 1922: sem discutir aqui - tal como Lenin o formula - tem sua expressão central na questão
o conteúdo ideológico desse movimento., parece-me que a ten- da passagem para o capitalismo, no modo de adequar a csm.itura
tativa de renovação das técnicas an:.ísticas a partir da imponação agrária às necessidades do capicaJ• . Mas, generalizando o conceito,
do vanguardismo europeu pode ser interpretada como a expressão pode-se dizer que - na base de uma solução "prussiana" global para
do necessário esforço de adequação daa "forças produtivas" da a questão da cransiçáo ao capitalismo - todas as grandes alternativas
arte ao novo universo cotidiano que o capitalismo, cm sua forma concretas vividas pdo nosso país, direta ou indiretamente ligadas
moderno-industrial, ia int.roduz.indo na vida brasileira, sobretu- àquela transição (lndcpcndMcia, Abolição, República, modificação
do cm São Paulo. Os exemplos poderiam ser multiplicados, até do bloco de poderem 1930 e 1937, passagem para um novo patamar
mostrar como a irrupção do ncopositivismo ou da concraculcura de acumulação cm 1964), encontraram uma resposta "à prussiana";
na vida cultural brasileira mais recen te concspondcm - sem "estar
fora do lugar" - à passagem do capitalismo brasileiro para a etapa "' Cí. V. 1. Lenin, OPrrlf"IV'll' 11prio tÍll S«Wl~ "" prilMirtl rmilMfü l1ISSll tlt
do capicaJismo monopolista de Estado. 1905-1907, SSo &ulo. Citncias Humana, 1980.
(ULTUAA f SOCIEDADf NO 8- 47

uma resposta na qual a oonciliação "pelo alto• jamais csooodcu a o Estado, vcrifioou-se um fottalccimenco do que Gnmsci chama de
intenção expUcita de manter margina.lizadas ou reprimidas - de "sociedade poUtica" (os aparelhos burocráticos e militares que exer-
qualquer modo, fora do âmbito das decisões - as classes e camadas cem a tÍIJmi1JllflÍQ attavés do governo) cm dcttimento da "sociedade
sociais "de baixo'"'. Portanto, a transição do Brasil para o capita- civil" (do conjwuo de apa.rclhos ideológicos attavés dos quais uma
lismo (e de cada fase do capitalismo para a f.i.sc subsequente) não classe, ou um bloco de dasses, luta pela hegmwnill ou pela capacidade
se deu apenas no quadro da reprodução ampliada da dcpend~ncia, de dirigir o oonjunto da sociedade). Ora, esse moddo de evolução
ou seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação política e seus resultados sobredctcnninam - e conscqucntcmcntc
real cm face do capital mundial; em estreita rclaçáo com isso Qá alrcram - omododerdacionamcnto"dássioo"(noscntidoqucMarx
que uma solução não prussiana da questão agrária asseguraria as dá a essa palavra) enttc os intelectuais e as classes sociais.
condições para o desenvolvimento de um capitalismo nacional não Em primeiro lugar, a debilidade da sociedade civil é responsável
dependente), essa cransição se processou t4mÍJlm segundo o modelo pela minimização de um dos papéis essenciais da cultura, precisa-
da "modernização conservadora" prussima". mente o de expressar a oonsciência social das classes em choque e
Enttc as várias oonscqubtcias da "via prussiana" ou da "revolução de organizar a hegemonia ideológica de uma classe ou de um bloco
passiva", há uma de pan:.iwlar ~cia também no plano da rulrura: de classes sobre o conjunto dos seus aliados reais ou potenciais. A
dado que o instrumento e o local da oonciliaçãn de classes foi sempre rulnua brasileira tornou-se assim cm grande pane uma rulnua "or-
namental", Já que não c:xistia (ou erao:assivamcntc débil) o medium
próprio da vida rulcuraJ: a sociedade civil. Em segundo lugar, um
" Esx c:onaeico •ampliado• ck vb prussWia apamz cm G,&gy Luláa. "Não~ por acaso
que Lenin indica cm via (seguida pela Alcmanba) como um caso dpic:o de alanGC inrcr- dos modos de isolar os grupos populares dos processos políticos
naciorul., como uma via dcs&vomd paa o augjmm1o da modcma _.,,.,ade burguesa; constitui precisamente em "assimilar" os seus virtuais representantes
de a chama de llÜt prvssilmA. E.m. oblcmiçio de Lenin nio ~ia limiada à qucuão ideológicos, incluindo-os - naruralmente cm posição subordinada
agrária cm sentido cstriro, mas apllcada a rodo o dacmolvimcoto do capialismo e à
$Uperesm.uun política que de assum.íu m ~ IOdo .fW bwgum da Alemanha" - nos novos blocos de poder que iam resultando dos processos de
(G. Lulcks, ÚI ~Ma. "'fl-.Turim, Eina.ldi, 1959, p. 50). Em muitas de suas conciliação pelo alto. Isso se faz. essencialmente, através dos vários
:uclliscs cone.mas da $0Çic1c!ade e da culrun da Almpoha e da Hwigria. LJlc:áa aplicou mecanismos de CDOptllflÍD das camadas médias (cm particular dos
de modo fecundo seu c:onceico "ampliado• de via pnmiaoa: Ó., poc cranplo, o rcu ensaio
sob~ B8a Bart6k \li mandarino ll'ICfllviglioso c:onao raliamione". Ur. RiNISdl4., n. 37.
intelectuais) pelas classes dominantes. Esses mecanismos vão desde o
18/'19/ 1970, p. 18-20),ondcderdaciona ~cco.witmde "via pnm1ana• e "fàvor" concedido a homens livres, mas não proprietários, na época
de ·mdmismo à sombndo poder". t ~obmwr .i.i.quco cooctito lubaiano da escravidão, passam pelo recrutamento da burocracia civil e mi-
de •vb prussiana" t essc:nàalmcnce ao&go ao c:ona:ito pmlàano de •revolução p:miva"
(ou •rcYOlu~n:scaunçáo•, ou• rm>luçSo pelo al1X>"), c:óm o qual Gramscl p«tcndc
litar a partir da época do Segundo Império e sobretudo do período
sincc:clllr a ausbida de pattlc:ipaç$o popular e o dpo de modemiuçio c:oftRS"r.ldon ql.IC varguista e chegam até a criação pelo regime militar - mediante
fonm proprioc do caminbo ialiano pu2 O capi " Nem IC ~ caqucoer quit cais mecanismos de redistribuição de renda - de um setor privilegiado
c:oru:ic!toos foram dcsenvolvicb por Luldcs e poc ~ u imtadva de dctttminar a.1 de tecnocratas dotado de alto poder de consumo.
rahc:s históóas do f.ascismo, rcspcctiv.uncntc, na Alnóánha e na Icltia.
u Ou, cm ouuu palavras: se tiYCSSC oc:onido uma ~ dl..:na para a nossa xculu O escasso peso dos aparelhos privados de hegemonia e dos
qucsdo agrária. uma sol~ dcmocrúico-m'olodonúla e aio "pnmjana•, isso reri.a partidos políticos de massa na formação social brasileira - em que
abctto o espaço efetivo pan uma indusuialhaçfo CCftmda no mercado interno popubr. "o Estado era tudo [e] a sociedade civil era primitiva e gelatinosa'"'
uma tal iodwtriallução - expandindo« de baixo para cima - poderia ter evitado a
monopo~ pra:oa: e a dcpcndtocb ~to c:mri9r, CJ~ ~ na rait do
modelo capitalisca dcpcndcocc-associ>do que óedvunmtc uiwifou. u A. Granuci. ~ Jo """"-· Rio de jandro, Qvil.ixaçio Brasileira. Y. 3. 2000, p. 262.
CuuullA l SOOlDAOE NO 811AS1L 49

- condenou os intdectuais que se recusavam à cooptaçio pelo o intclccrual cooptado a se colocar diretamente a serviço das clas-
sistema dominante à marginalidade no plano cultural e, para nos ses dominantes enquanto ideólogo; ou seja, não o obriga a criar
expressarmos com cena vulgaridade, a seríssimos problemas no ou a defender apologias ideológicas diretas do existente. O que
plano da subsisttncia econômica". E isso para não falar na repres- a cooptação faz~ induzi-lo - acrav~ de virias formas de pressão,
são poUtica direta contra os intclccrua.is que tentar.un se ligar às experimentadas consciente ou inconscientemente - a optar por
camadas populares (ou que são por elas produzidos), repressão que formub.çóes culturais anódinas, "neutras", socialmente assq,ticas.
não foi um fenômeno marginal na história das relações entre os O "intimismo à sombra do poder" lhe deixa um campo de ma-
intelectuais e o Estado no Brasil. Temos assim um claro "desequi- nobra ou de escolha aparentemente amplo, mas cujos limites são
líbrio" na luta cultural: enquanto as classes dominantes encontram determinados precisamente pelo compromisso deito de não pôr
com reb.tiva facilidade os sew representantes ideológicos ou os cm discussáo os fundamentos daquele poder a cuja sombra ele é
seus "intelectuais orginicos" (veremos logo mais que at~ mesmo a livre para cultivar a própria "intimidade"•.
cultura "ornamental" serve ideologicamente à conservação social), No interior desse espaço fechado a um contato orgânico com a
as camadas populares são frequentemente "decapitadas" e lutam realidade do povo-nação, o intelectual cooptado pode experimen-
com grandes dificuldades para dar uma 6gwa sistemitica à sua tar o seu isolamento não como uma aprazível "torre de marfim",
autoconscibtcia ideológica. Basta pensar nos países que não segui- mas como wna "danação" da qual não pode se libe.rta.r. Se a maior
ram uma "via prussiana" para o capitalismo (como a França) o u parte das ideologias ou das obras de ane criadas no terreno d o
que superaram posteriormente os seus efeitos {como a Itália pós- "intimismo" são apologttícas, elas o são naquele sentido media-
fucisca) pa.ra compreender as diferenças com o caso brasileiro. tizado que Lukács - partindo da ideia de que não há ideologia
O conjunto desses pressupostos prepara um clima favorável a socialmente "inocente" - resumiu na expressão "apologia indireta"
que a cultura se desenvolva naquele clima asfixiante que - valendo- do cxistente17. Por exemplo: n o caso brasileiro, o culto da evasão
me de uma expressão de Thomas Mann recolhida por Lukács - subjetivista no velho romantismo ou na novíssima contracultura,
chamei em outro local de "intimismo à sombra do podcr"n. Esse o pessimismo ontológico dos naturalistas, o cientificismo (que
"intimismo" liga-se diretamente ao problema da ornamentalidade se pretende anti-ideológico) dos escruturalist:as etc. são apologia
da cultura.. O processo de cooptaÇáo ~obriga necessariamente do existente apenas na medida cm que afastam da 6rica da arte
ou da ciência social as contradições concrecas da realidade, cm
•• O v{naJo de ckpcndbx:U do inidccnW bnsilcito .o e.ado fui bem ~ por que cransformam o essencial em inessencial ou vice-versa, obs-
Anronio Candido, qur chcg;a por isso a consuw, cm noaa 1ltcratu12 oitoccnrim, "um
ccno conform4mo de ío.nna e de fundo" (Candido, li_ , . '~. São Pilulo, curecendo ou impedindo uma justa consci~ncia dos problemas
Nacional. 1965, p. 99). ~modo aJnda mais I~. Wúni« Nogudr.a GaMo observa: efetivos do povo-nação (para evitar mal-entendidos: a relação
"O Em.do (... ) rc encarrega de dJspcosv o incdccwal de qualquer papd na produçio,
NStcntandcH> por meio de cmprcp bwocdtic:ol. doaç6cs. p~ pttbcn<W etc. ~
wl m que o lntcleawl rc toma peça do ~ de EKado. com u conscqufociu pua " •eonrudo. reria P"°"' de c:squcmatlsmo cmcndcr asa tcndmcla como manifcsaçlo
SU.t obra qur se podem p.r nu. (...) Endo. o que te pode im2ginar ~que, com maior ou de uma clara adcdo i.mcdiatamcnte polfóco-ldtOlógica ao poder mabdccido, às for-
mcn« boa -.oncadc. volunQl'i.amcnte ou a COftltlflD'lO e mamo com nris5imas cxaç6cs mu ma.is re:idonúús de dominaçSo soc:hl. cmbon cambml essa adcdo OCIOm:$lC cm
hon- os uudcctuais brnilciros adaan l ldco'ogia da dure dominante e procunm alguns cuos. O 'inúmismo à IOmbn do poder' combinou·sc frcqucnccmcnte com um
não cnfrmar o fiado, do qwJ dqxndc dircwncmc sua sub.i~" CW. N. Galvão, inconfonnismo dccbndo. com wn mal-csur subjetivamente sincero dian.te da siruaçlo
s.t." Guos. Sio Plulo, Duu Odadcs. 1976. p. 40-41). 0
IOCbl domiNntc (iMtlmt, p. 92).
1) Cl C. N. C.OUdnho, "O <igitifiado de Uma Sumo cm - limmln·. infN. p. 89-95. 11
e. Lulck:s. ÚI Jimwà#N MU. . , . ,. rir., p. se 205·206.
(ULTUllA l SOCICOAOE NO BMSIL 51

que estabeleço aqui cnttc cooptação e "intimismo" é uma.relação Podemos encontrar, na vida ideológica brasileira. toda uma série de
tmánuüzJ, que, se é válida para a média, n.áo o é c:vidcntcmcnte fonnulaç.6cs que - por seu espírito e até por sua letra - antecipam
para cada caso singular). a célebre dcdaraçáo do político mineiro Antônio Carlos antes da
A tendência objetiva da cra.nsformação social no Brasil a se Revolução de 1930: "Façamos a revolução ancC$ que o povo a &ça".
realizar por meio da "conciliaçáo pelo alto" marca de vários modos Vejamos uns poucos exemplos. Na véspera da Independência, o
o contnído da cultura. brasileira. Antes de mais nada, surgem entre liberal Hipólito da Costa - de seu exílio londrino - já afumava:
nós manifestações cxplícicas da ideologia "prussiana", que - cm "Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém
nome de uma visão abertamente elitista e autoritária - defendem se aborrcc.c mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo
a exclusão das massas populares de qualquer participação ativa nas povo". E quando, após a Indcpcn~ncia, um liberal considerado
grandes decisões nacionais. Citando declarações nesse sentido de avançado como Evaristo da Veiga defende a Constituição contra o
pensadores como Fari2s Brito, Gilbcno Frcyrc, Oliveira Vianna, perigo do absolutismo, não hesita cm dizer. "Modifique-se o nosso
Miguel Reale, Francisco Campos, Eugbtlo Gudin e outros, Lean- pacto social, mas conserve-se a cssbicia do sistema adowio. (...)
dro Konder assim sintetiza a cssbicia do pensamento autoritário Faça-se tudo quanto é preciso, mas evite-se a revolução"•.
e de direita entre nós: Essa tcnd~cia ao ecletismo - à conciliação ideol6gica - não se
O pluralismo da ideologia da direita prcsaup6c wna unidade substancial profun- manifesta apcms nos pensadores liberais moderados. Até mesmo
da. inabali~l: todas as cocrmtcs comcrvadoras, religiosas ou lcig;as. oàmisw ou intelcctua.is progressisas, nada ligados em sua atividade cultural
pcssimisw, met2&icas ou $0Ciol6gicas, monallstas ou d nicas, àcnti.ficistas ou ou política às tendências incimistas e ao espírito de c.onciliaçáo/
místicas, concordam cm um determinado ponto essencial. Isto é cm impcdfr cooptação, são pressionados pela siruação objetiva a confusas sín-
que as massas populares se organizem, reivindiquem, f.açam policica e aicm teses ecléticas, que minimizam ou danificam seriamente o caclter
um2 vcrdadei~ democramª.
cm última insdncia progressista de ideologia que professam. Nel-
Mas o elitismo antipopular n.áo aparcoe apenas cm pensadores son Wcrncck Sodré registrou processos desse tipo na produção de
autoritários e de direita. A conciliação social e política encontra Euclides da Cunha, que combinava declarações de simpatia pelo
um reflexo ideológico na tendência do pcnwncnro brasileiro ao socialismo com a aceitação de elementos ideológicos de fundo
ecletismo, ou seja, à conciliação igualmente no plano das ideias. racista,,. Poderíamos lembrar ainda outros exemplos. Basta pen-
Fones contaminações de "prussianismo" aparcocm também cm sar no modo pelo qual os líderes da Revolução Praieira de 1848,
nosso pensamento liberal, tornando-<> por vezes ac.cnruadamentc como Antônio Pedro de Figueiredo, tentavam combinar elementos
moderado e mesmo conservador'. O liberal dcfcndc a mudança que do socialismo utópico com o ecletismo espirirualisra moderado,
se tomou noccssária, valendo-se para tanto de formulações ideoló- inspirado cm Victor Cousin; na bizarra síntese de marxismo e
gicas progressistas; mas, ao mesmo tempo, recusa as consequên- positivismo tentada por Lcônidas de Rezcnde, nos anos de 1930;
cias últimas do progresso, por temor explícito da "anarquia" e do na inflluaçáo de posições irracionalistaS na pesquisa sociológica e
"caos" que vêm "de baixo", das forças populares ainda "imaturas". filosófica do Iscb, essencialmente voltada para uma análise crítica
e racional de nossa realidade; ou na "coexist~ncia pacífica", cm
,. l..andro Kondcr. "A unidade da dittt12", iir.}mYI 4'I ~ 20/ 0911979, São P:iulo.
p. "·
n Em 1cncUnc:ia íoi bem analisada, pua o .mlio 1l', p« P&U1o McrQdance, A ttnsahtnq ,. Ambu as dt1Ç6cs csdo cm Mcrodanrc. •/· tú.. p. 62 e 117.
ttNmltlM,. ,.. Brssil. Rlo de Janeiro, Saga. 1965. ,, N. W.Sodd.A~4'f~.m..p. 101 - 161.
52 CwoJ NWOtl C011T1NH0 CuuvAA l SOO(IMO( NO 8AASIL 53

alguns dos intclcctuais escruturalistas de nossos dias,4c posição enquanto tendência altcnnriva no seio da cultura brasileira. Antes
politica de esquerda com uma metodologia de tipo oeopositivista de rudo, é fundamental ressaltar que tais determinações - pelo
(e, como tal, filosoficamente rcacionária)P. menos é esta minha convicção - não resultam de uma escolha
Todos ~ exemplos pretendem mostrar que a tendência ao pessoal. não são normas arbitríri2.s que cu pretenda impor de fora
confusionismo ideológico, ao ecletismo tc6rico objetivamente à prática criadora de artistas e ideólogos. São detcrminaçóes postaS
"moderado" (no qual elementos progressistaS são "temperados" e repostas por um movimento cultural efetivamente existente ao
com dcmcntos reacionários), ná.o resulta simplesmente de uma longo da história do Brasil, ainda que cm posição qU2SC sempre
escolha subjetiva dos intelectuais, de um eventual oportunismo subalterna: um movimento que, apesar de (ou graças a) suas inú-
constitutivo deles, mas sim de condicionamcncos obj~tivos de meras diversidades internas, unifica-se enquanto alternativa real à
nossa formação histórica e social. Escapar da "via prussiana" e de cultura "ornamental" ou "intimista", a qual, pelas raz.ôes expostas,
suas sequelas anticulturais não é um movimento que dependa ocupou uma posição tendencialmente hegcmônica ao longo da
apnuts da disposição pessoal dos intdcctuais. A coragem e a reti- hist6ria de nossa vida cultural. Nesse sentido, o nacional-popular
dão moral são certamente necessárias, mas não suficientes. Dado apa.rccc objetivamente como oposifátJ ámwmlrica, no plano da
que na raiz do "intimismo" está a separação entre os intelectuais cultura, às várias con6gurações concretas assumidas pela ideologia
e a realidade nacional-popular, uma separação posta e reposta do "prussianislno" ao longo da evolução brasileira.
pela "via prussiana", o antídoto contra tal veneno não pode ser Embora a situação italiana divirja em muitos pontos da bra-
produzido simplesmente no laboratório imanente da própria cul- sileira, acredito que a definição gramsciana do nacional-popular
tura: a superação do "intimismo", canto no nível pessoal quanto - precisamente na medida cm que Gramsci o concebe como
social, passa pela orginica integração dos intclecruais com a luta alternativa à cultura elitista, gemia na Itália pela prcdominància
das classes subalternas para se afmnarcm como sujeitos efetivos da "revolução passiva" como forma de cransformação social e
de nossa evolução social e política. Uma luta que tem por meta pelo consequente proc.esw de "cransforrnismo" (de cooptação)
a destruição do elitismo impUcito na "via prussiana", com a con- dos incdccrua.is" - possa contribuir grandemente para iluminar
sequente abertura de um processo de renovação dcmoc.rárica que algumas contradições também da nossa vida cultural.
envolva todas as esferas do ser social brasileiro. Na ldlia. o termo "nacional" - observa Gcumc:i- tem um signi6ado muito restrito
idcologicamcrnc; de qualquer modo, ~ a>incidc <X>lll "popubt", já que na ldlia
3. 0 NAOONAL-f'Of'Ul.All COMO ALTONA11VA À OJLTURA os intdcc:ruais estão disa.nfCS do pcwo, isto ~ da 'n;,çio', ligando-tc, ao concririo,
.,INTIMISTA• a uma IJ'adjçáo de casta. que jamais fui rompida por um func movimento pol.lôco
Sem a menor pretcns:áo de csgocar a questão, vamos a seguir popular ou nacional que atuasse de bai%O pua cima (.•.). Os incdccruais ~ swgcm
do J>OYO. ainda quando acidentalmmcc algum ddcs ~ de origem popular. Ido te
enumerar algumas determinações essenciais do nacional-popular scnccrn lig:ados ao povo (a Ido ser de modo rccórico). ~ ex>nheocm nem JCnccm
auas ,,.......,qdadcs aspinçõcs e scntimenl05 dilWos; ao concririo, aparcoem diante
., a.. rcspcaiv:uncntc: para°' llc:kres d2 Praidn, P. Ma iante. A"'~ "11'fSLTu11- do povo mmo algo scpar.ido, suspc:mo no ar, ou seja. CX>IDO uma ca"2 e Ido a>mo
J.,,,, rit,, p. 1"6-161; para L de Racncle. Anc6ftio Palm. ~ ""1 ilkúufü«lfir111 uma ;anio1l-ç5o, oom funções orgWas. do próprio povo.,.
no Bnuil. Sio Piulo, Grijalbo, 1967. p. 223 e a ; para o 1scb. Jxiob Gorcnd~. "As
conmccs sodol6gicas no Bruil". in: F.RwMs SKilis, o. 3-4. 1958. p. 335-352; e, p:m o u a. Gn.nuci, ~ dL, v.5. p. 286-287.
esuurunlillno. Ferreira Gulb.r, "Vangw.rdismo e aaltun popWIJ 119 6rwr, ln; Tmuu ,. JbiJJ.., v. 6, 2002. p. 41-43. Num IClltido ponrivo, Gt:IJl'IJCI ddlnlu o llad<1fla!..populu
ú CilnrlJu HIUM...s, São Paulo, 1979. YOI. 5. p. 80-81. ligando-o c:xplid tamcntc ao hlstodcisnwr. "Humanidade 'autbiôca', 'fundamental'. pode
(uLTVAA 1 SOCltDADf NO 8llASIL 55

A descrição gnunsciana adequa-se muito bem ab- caso brasi- Por isso, é preciso insistir rcsoluwncntc no f.lto de que o nacio-
leiro: o nacional-popular, assim, é - visto pelo la.do negativo - a nal-popular não se confunde - antes conB.ita - com o fechamento
quebra desse distanciamento entre os intelectuais e o povo, distan- provinciano e popularcsco diante das conquistas efetivamente
ciamento que está na raiz. do florescimento da cultura "intimista" progrcs.sisw da culwra mundial". Pelas ruõcs gcnttico-sociais a
ou do elitismo cultural e que, DO mais das vcus, náo resulta de que já aludi, um tal fechamento seria simplesmente impossível.
uma escolha voluntária do intclccrual.. Quando defendido por artistas ou pensadores progressistas, esse
Mas se trata desde já de dcsf:azcr um poss1vd mal--cntendido "nacionalismo cultural" conduz a sérios equívocos, que se expres-
quanto à natureza do nacional-popular. Como vimos, a cultura. sam no empobrecimento da expressão estética e/ou na limitação
brasileira vincula-se organicamente - tanto cm sua &.cc ttacionária das potencialidades críticas da consciencia ideológica das forças
quanto cm sua face democrática e progressista - ao patrimônio populares. Por isso, na verdade, o "nacionalismo cultural" encon-
culrural universal, que lhe serviu e serve de inspiração e alimentação tra afln.idades detivas mu.ito maiores com as forças reacionárias,
permanente. Assim, se o nacional-popular é essencialmente wn assumindo quase sempre os traços de uma ideologia rctr6grada.
modo de articulação entre os intelectuais e o povo {que fàz desses Nesse caso, não é que se defenda uma suposta cultura nacional
intelectuais- na expressão de Gr:amsci - "intelectuais org;inicos" das autônoma contra a cultura estrangeira, mas antes se designa
correntes populares), de náo pode ser entendido, DO que se rcfcrc como "nacional" o atraso brasileiro, os elementos anacrônicos de
às suas figuras concrctaS e ao seu conteúdo, como algo oposto ao nossa estrurura•social, ao mesmo tempo cm que se luta contra o
universal, como simples afirmação de nossas prcteruaS raí7.CS cu1tu- "idealismo" e a "f.llta de realismo" da cultura progressista mundial
rais "autônomas" contta a pcnco:açáo do "cosmopolitismo alienado" quando comparada à nossa vida social concreta.. Isso é mu.ito claro,
etc.Decerto, n2o se crata de afumar que cal posrura absuawncntc por amiplo, cm Ar.cvcdo Amaral, um dos principais teóricos do
cosmopolita não exista entre n6s: da se manifesta sempre que a re- autoritarismo n o Brasil: "Contra essa orientação [da democracia
cepção de uma conente cultural universal se fu de modo abstrat0, liberal}, no sentido da universalização artifkial de um regime
sem nenhwna tentativa de concmizá,.Ja e enriquecê-la no confronto político, ergue-se a reação vigorosa do espírito contcmpodneo
com a rcalldadc brasileira. Em palavras mais precisas: há cosmopo- com a afirmação da ideia nacional"" .
litismo abstrato rodas as vezes que a "importação" cultural não tem Os exemplos poderiam ser multiplicados. Se observarmos nossa
como objetivo responder a qucstóc:s colocadas pela própria realidade história. veremos facilmente que tal "nacionalismo cultural", desde
brasileira. mas visa tão somente a sat.isfattr exigências de um círculo a época da luta da Coroa ponugucsa contra a pcncuação de ideias
restrito de intelectuais "intimiscas". Nesse sentido, podemos afumar iluministas no Brasil até os recentes ataques da ditadura contra
que essa postura "cosmopolita" é uma das manifestações da culrura o marxismo cm combinação com a defesa de uma "democracia
elitista e não nacional-popular. é por estarem separados do povo,
cmpamiados nos limites do "intimismo", que certos intelectuais são J)
l.ulcli::s viu bem os dois momcnros do processo: "O particular c:ari.rcr do daenvolvimcruo
incapazes de proceder àquela concrctizaçáo e àquele enriquecimento do povo alemão (isto ~ segundo uma via pnwianal apresmr:a, wnbém cm literatun. 0$
do patrimônio universal. f.Wos polos a) de um abst.1110 cosmopolltismo (concnposto ao rca.I in1cmaciooalísmo) e
b) de um provi.ncianistno teSuito, que ~1crncn1c se manifesta como cba.uvinismo
~nário (conrnpocto ao rca.I paaiotiwlo)" (G. Lulács, .Ra1ini Utk#hi t/JX/XSN'IJÚ,
significar co.l'.ICttWDCntc, oo campo anlsdco, uma única coisa: 'hlitoriddãdl, ou Jtjt. )O
Millo. Ptlli'ÍMlli, 1965, p. 19).
cati1cr 'naàonaJ.popuW' do cscriior" (;bili., p. 122). ~AmaQJ. "Real.ismo político cdcmocr.lda". ln: °"-ir JWldu. n. 1, 1943. p. 3 1.
56 ÚAlOS Nruo11 COUTIHHO CULTURA f SOOEDAOf NO 8llASIL 57

relativa" ("adeqwada" à realidade brasileira). serviu sonprc para porém, não deve levar de nenhum modo à negação do seu radical
impedir - cm nome da recusa de "ideologias exóticas" conrrárias pluralismo. Como Lukács observou, "a obra de arte autwtica - e
à "índole" do nosso país- a concreta assimilação dos inst.r umentos somente esta pode se tomar a base de uma fecunda universalização
idcol6gicos capazes de conduzir efetivamente o povo brasileiro à histórica ou estética - sati.sÍ'az as leis estética& apciu.s na medida
sua afirmação nacional e democrática. Por isso, tem razão Mer- cm que, ao mesmo tempo, as amplia e aprofunda"". Não há as-
cadante quando observa: "A preocupação de adaptar, de ajuscar a sim normas a prúJri para a arte de inspiração nacional-popular:
c::xpcá~ncia estrangeira às condições nacionais, decorre do próprio é direim e tkwr de cada artista exercer a máxima liberdade de
espírito de conciliação"». Em outras pala~ o "nacionalismo crfação, no sentido de encontrar o seu modo peculiar e próprio
cultural" é uma das principais manifestações ideológicas da "via de ampliar e de aprofundar as leis estéticas do gênero dentro do
prussianâ antipopular (é claro que nada tem a ver com esse qual trabalha. Port211co, a unidade da arte nacional-popular é algo
"nacionalismo cultural" retrógrado a luta contra a penetração de apc~ tendencial, que só pode ser estabelecido postfotum, e que
produtos culturais alienados, impostos ao nosso povo sobretudo por lSto está cm permanente modificação; além do mais, é uma
através dos modernos meios de comunicação de massa; como unidade na diversidade, que retira sua força e vitalidade do mais
veremos adiante. uma das características do nacional-popular é amplo pluralismo de estilos artísticos, de temá.ticas, de tendências
precisamente a capacidade de distinguir cnue o válido e o não ideológicas etc.
válido no seio do pauimônio cultural universal). O mesmo pluralismo constitutivo pode ser indicado no caso
Um ouuo erro seria o de identificar o nacional-popular com do pensamento social. Assim, é possível constacar a presença de
um determinado estilo ou com uma determinada temática, no uma consci~ncia nacional-popular tanto nas teorias pedagógicas de
plano estético, ou com uma única posição idcológic::a, no plano Paulo Freire, inspiradas numa concepção cxisççoc;iallsQ de fundo
do pc.m amcnto social''. São cxprcssócs do nacional-popular, por cristão, quanto nas pesquisas ou nas propostas políticas baseadas
exemplo, tanto As memórias tk um sargmm tk mi/leias de Manuel nos prindpios do materialismo histórico. Eoquanco o realismo
Antônio de Almeida, que se vale de um estilo realista tradicional, como método (e não como estilo) pode ser considerado o f.tcor que
quanto A mrtÍitafão sq/Jre o Tietê de Mário de Andrade. que recorre unifica a posterúJri o nacional-popular no terreno estético, no caso
às conquistas técnico-expressivas do modernismo e da vanguarda. do pensamento social esse f.tcor me parca: residir numa concepção
Mas pode-se dizer que, através dessas variações estilísticas neces- humanista e hi.storicista do mundo, ou seja, numa concepção que
sárias, há um método artístico comum - o método do reaümw afirma o papel da práxis na transformação das estturu.ras sociais e
critico (na acepção que Lukács dá a esse conceito) - que unifica que concebe a ciwcia como um dos instrumentos para iluminar
"" ~as várias cxprcssócs concretas do nacional-popular e guiar essa práxis transformadora (e cabe aqui recordar ainda a
no terreno estético. Essa ideia da unidade do nacional-popular, eficácia do conceito cngclsiano-lu.lcacsiano da "vitória do realismo":
tanto no plano do pen.sarnento social quanto, sobretudo, no da
R P. Mcrc:adantt. A e~"~ rlt., p. U.0. arcc, não é condição necessária para a realização de um produto
,. N5o t aqui o local pua apor a.s ncasd.riar dlfcn:nçu que a quallfiaçlo de nadona.1- nacional-popular a adoção consciente pelo produtor cultural de
popubr aprcscma quando referida à arte ou ao pensamento social. O n~nal-popular,
dccmo, rtfcrc-sc apenas l ickologia. no scnUclo de concq>Çio do mundo: lig;a-sc assim
l cimóa social e • a.nc 1.paw iu medida cm que am K líg:am, dt dlfucntcs MO<ioi, " G. Lulb Esll'da, Turim. Eimudl, 1970. vol I, p. 579. Pus o neasd.rio plunallsmo
a oomtcbçõcs ldcol6gicas. da edtta cstérla. á. íHt/mt. p. 629-6S4.
C UllVM 1 SOCllOAOI NO BMSIL 59

wna ideologia ou conccpçáo do mundo explicitamente p~cssis­ tem a ver com as condições históricas ou nacionais que tomaram
ta; tamb6n aqui, s6 portfetum é possfvcl- a panir de uma análise possfvcl seu surgimento, todo produto estético incorpora os seus
c:onacta de cada caso concreto - definir o caráter nacional-popular pressupostos - a sua gmesc histórico-nacional - como momento
ou não de um produto cultural singular). indiminávd de sua cstrurura cspcrificamencc artística. Assim, quan-
Por outro lado, deve-se evitar cuidadosamente que - no plano to mais um artista se vincular à totalidade das contradições do seu
d.a objetivação estética - se confunda o nacional-popular com a povo e de sua nação, quanto mais se tomar (como diria Machado)
imposição de uma temática predeterminada. A consciâlcia a.nfs.. "homem de seu tempo e de seu país", tanto mais lhe sccl possível
tica nacional-popular se manifesta não na temática, mas sim no devar-sc àquele nfvd de particularidade - de univcrsa.lid.adc ~
4ngulo de abordagem, no ponUJ de vis't4 a partir do qual o criador - sem a qual não cx:i.ste grande arte.
estrutura sua obra. Ao que cu saiba. foi Mac.lwio de Assis - cm Há ainda outra dctcnninaçáo do nacional-popular que me
seu c.élcbrc ensaio sobre o lnstinUJ de NICÍOna/i<hrk- quem pri- parece importante destacar. Rdiro-me à capacidade de distinguir,
meiro indicou c:xplicitamcncc entre n6s essa determinação básica a panir do ingulo de visão próprio de uma classe concrc:tamentc
do nacional-popular: nacional-popular, entre os clcmenros d.a cultura universal que
Nesse ponro, manifesta-se h vcus uma opinilo que 1t11ho por errónea: ~ a que servem efetivamente ao povo-nação (no sentido de aumentar-lhe o
s6 n:c:onhccc espfriro nacional rw obras que tl'2tcm de assunco local (...).O grau de aucoconsci~ncia) e os que conduzem ao beco sem saída do
que se deve exigir do cscriror, an tes de rudo, ~ certo sentimento Cntimo, que "intimismo" indiretamente apologético ou a posições claramente
o tome homem do seu tempo e do seu país, ainda quando uatc de assuntos rcacionmas. Também nesse ponto, o exemplo de Lima Bancto
remotos no tempo e no espaço•.
me parece significativo. Apesar d.a debilidade de sua formação
Uma questão importante é saber qual o conteúdo social, de clas- teórica, Lima sempre revelou wn profundo instinto nacional-
se, desse 4ngulo nacúJnal-popularde abordagem do real Mas também popular cm suas avaliações do patrimônio cultural universal. Foi o
aqui vale o prindpio dialético de que "a VCidadc é sempre conacta". caso quando, cm contraste com muitos dos seus contcmporincos
1ao somente a análise concrcu de cada período é capaz de indicar envolvidos pelo "intimismo", ele àdic:ula.riz.ou as bravatas pré-f.ls-
qual classe (ou bloco de classes) é capaz de se constituir cm classe cistas do "modernista" D 'Annu.nz.io no Fiwnc, contrapondo-lhes
efetivamente nacional - isto é, de superar wna visão fundada cm a solidez nacional-popular d.a ação de Lenin e d e Tro tski à frente
seus estreitos intcrcsses "ocont>mico-c:orporativos" - e, desse modo, do jovem Estado soviético; ou quando, referindo-se a Nictzschc,
de servir de suporte para a formulação de uma figura cultural de tipo tratou-o como um d os responsáveis ideológicos pelo espírito bc--
nacional-popular, ou seja, com dimcnsáo "ético-políáca" (valho-me licista que 01lminou na Primeira Guerra Mundial imperialista;
aqui de categorias~.) E esse vínculo com a conacticidade ou ainda quando expressou, ances de morrer, uma posição e.ética
nacional-popular não entra de modo algum cm c:onmdiçáo com o diante d.a importação acrítica de certas modas literárias europeias
caráter univcrs:a.liz.antc de toda grande criação artística. Ao contrário (como o fururismo). mas sem por isso d eixar de recomendar aos
de uma objcávaçáo de ciâlcia natural, ruja val.idadc imanente nada jovens escritores que se inspirassem n os exemplos "europeus" de
.. MM:hado de Assis, •Noticia cb anW lilctllrun bnsikin. ltwimo de nacion.alid.ulc",
Dostoievski, Tolstoi e Gorki". Para Lima Barreto, assim, não se
.
br: /J. , DmtMll'-· Rlo dc Janciro, Aguilat. 1992. vol m.
p. 80~. a.
wnbém Cl, rcspcc:âvamanc, Uma Bantto, Fri.-s e lfflljMs. SSo Paulo, Brulllcnsc. 1961, p.
u intcrc:mnrcs obfcrvaç6c:s de /utrojildo Padra JObrc mt tmo madiad.iano; ltt: /ti., 20Z.207;/ti., l iyms«sitldtwM, Sio Ptulo. Brulliente, 1960, p. 119-120: e/,/.., FtfNJ
MM'htiM lk Assú, Rlo de Janeiro. Sio ~ 1~9. p. -'S-85. ~ lfflljMs. rll..,p. ~9. canu J~ A. cb Omua, 27/07/1919(rli. cm Fnncbco dc
60 CAAl.os NuJON CovnNHO CUlTl.lllA 1 SOCl(OAOf NO BllASll. 61

tratava de contrapor o "nacional" ao "cstrangc.iro", mas de distin- romances indianistas de Alencar, o "romantismo revolucionário"
guir, no seio do patrimônio cultural tornado universal, enc:rc o que do primeiro Jorge Amado, cenas produções teatrais do CPC,
poderia se tornar demento organicamente nacional-popular de muitas das canções de protesto de inícios e meados dos anos de
nossa própria cultura ou, ao contrário, o que Krviria para reforçar 1960, um modo de conceber a "poesia engajada" do quaJ Thiago
o predomínio das correntes djtistas e "intimistas". de Mcllo tornou-se talvez a mais ápica cxprcssáo etc.
E, como toda manifescaçio cultural significativa, o nacional- Talvez não fosse equivocado - diante de certos fenômenos cul-
popular apresenta camb6n aquilo que poderíamos chamar de sua turais contcmporincos - f.llar camb6n de uma "doença senil" do
"doença infmcil" ("infmtil" não cm sentido cronológico, mas nacional-popular. Ela se manifesta quando certos dcmentos dessa
enquanto expressão de um escasso nfvd de maturidade: o que quer oriencaçáo realista e bistoricista, despojados, porém, de sua inten-
c:üz.cr que a "doença inf.antil" pode coexistir ou mesmo suceder ção crítica e tor.alaadora, sã.o urifu.ados em produtos caraacrísticos
ma.nifcst2çõcs m2duras do nacional-popular). Podemos considerar de urna arte puramente "agradável"', digestiva ou comercial, cujo
essa versão "infmtil", csquematicarncncc, como manifcscaçio da valor estético é praticamente nulo e cujas implicaçóes ideológicas
"má conscimcia" do intdcctual intimista, que deseja mais ou me- são frequentemente negativas. O meio de propagação privilegiado
nos sinceramente se identificar com o povo, mas que é incapaz de dessa "doença senil" é certamente a indústria cultural; é assim que
f.uê-lo "de dentro", assumindo a "consciência possfvd" das classes podemos f.i.cilmcnte detectar o uso castrado do nacional-popular
populares como ponto de vista estruturador de suas criações: a cm várias novdas de televisão ou cm muitos dos filmes produzidos
ligação desse intelectual com o povo é assim - para usarmos uma para o chamado grande público. O fenômeno também se manifcsca
expressão de Gramsci anteriormente citada - "apenas retórica". no campo da literatura ou da música popular".
Dessa identificação retórica, "de fora", surge uma atitude patcrna-
lisca, que pode se expressar concretamente de divc.rsos modos: as 4. As CONDIÇÕES ATUAIS DA LUTA PELA OEMOCJlATlZAÇÃO DA
reais contradições populares aparecem dissolvidas num ambiente CUlTURA
de fantasia; atribuem-se ao povo valores idealizados próprios da Sob muitos e fundamentais aspectos, o golpe de 1964 - e a
camada intdcctual; as figuras populares sáo tratadas como crian- nova situação que de instaurou no país - marcou um divisor de
ças simpdticas, mas sempre como ma11f4S etc. Essa variedade não águas tambhn na esfera da vida cultural. O ingresso do Brasil na
impede que a vcrsáo " infmtil" do nacional-popular - que seria época do capitalismo monopolisca de Estado (CME) - ingresso
mais justo chamar de populismo - desemboque quase sempre, do f.i.cilitado e impulsionado pelo regime miliw - trouxe alterações
ponto de vista cst:illstico, numa espécie de retórica romântica e/ou imponantes na esfera da superestrutura, tanto no Estado cm
de naturalismo fundado na exploração do pitoresco. Exemplos: os sentido restrito quanto no conjunto dos organjsmos da sociedade
civil; e isso nio poderia deixar de ter c.onscqu&icias no terreno da
Assis~ A riM lk UllU &rrn., Rio de Jancúo. Jo« OOmpio, 1975. p. 321). A
produção cultural.
produção joma1lsdc:a de Uma Bumo, l'CW.\Ída cm Yários -.olumc:s de ..w obras com·
pktu eclitadu por F. de A. 8atboca (S5o P.ulo. Bniaíl1cme, 1958 r ss.) l um pttrio.o
in.nrumctito para anallsu a íonnaçto de uma ideologia naàonal·popular no Brull S5o u a., para a littttiun. Walniae Noguôra Galrio. "Amado: rapcitC»O. rapcidwl•, br:
°'
pouquíssimos. att ago12, arudof dcdicadol a csa parte de sua atividade cultunl; t /ti., s..t-. lk : -. til.. p. 13-22; e. para a música popular. Gilberto V-.onc:dlo.. ·o
de rc:JAlw o belo cOAlo de Nlrojildo Pcrdn. ·l'oliç6cs polilkas de Uma Bam:w·, in: wnblo-jou·. 111: liJ. . M'1ial J»pJa: tkolhoM~ RJo dcj1JlCiro, Graal. tm. P·
!ti., Oúb /nrp,,,., Rio de janeiro, Civilizaçlo 8l'Mllcira. 1963, p. 34-~. 75.-82.
CulT\IAA f SOOlOAOf NO lllASll. 63

Não pretendo me deter aqui cm ccnos fenômenos que se das tend~cias culcurajs •mtimi.sw", estimulando o Oorcscimcnro
expressam do modo mais evidente na generalização da censura de uma cultura ncuttalizadora e socialmente asséptica (o que era
como prática de rdacionamcnto entre o poder e a cultura; ta.is feito, cm particular, ar.ravés da repressão às correntes naclonal-
fcnômenQ$ 1 refletindo a tentativa de quebrar a autonomia da popularcs, abrindo assim espaço para um quase monopólio dtfato
sociedade civil e de reprimir o seu pluralismo cm nome da oni- das correntes "intimistas"). A 6poca do chamado "vazio culcural",
pot~ncia do Estado, são apenas o aspecto mais saliente da ação do que seria melhor designar como 6poca da cultura esvaziada- e que
novo regime político exigido para a implantação do CME num domina. digamos, no período entre 1969 e 1973-, representou o
país de capitalismo hipen:ardio e, por isso mesmo, dependente<>. momento cm que a conBubicia da censurai repressão com as trlldi-
A prática sistemática da censura, aliada a um claro terrorismo çóes •intimistas"/ncutra.lizadoras atingiu aquilo que um cccnocrata
ideológico, pode ser considerada como a face aberta da ..política poderia chamar de "ponto ótimo" na tentativa de marginalização
culcural" vigente após 1964 e, cm particular, no período posterior das correntes nacional-populares e, con.scqucntcmcntc, de remoção
a 1968, ou seja, à decretação do AI-5. Seria simplista reduzir a isso do pluralismo como traço dominante de nossa vida cultural.
o quadro das rdaçócs entre a cultura e a sociedade nos últimos Quando aludi a novas dctennina.çõcs, pensei csscnàalmcnte no
anos; mas seria ainda mais perigoso esquecer que tal face condi- grande estímulo emprestado pelo CME à c:xpansáo e consolidação
cionou, através ccn:a.mentc de múltiplas mediações. a totalidade de uma poderosa indústria culrural cm bases não s6 capitalistas
da produção culcural sob a vigência do regime militar. (o que já vinha ocorrendo antes de 1964), mas também cada vez
Não se pode esquecer, porém, que a eficácia - relativa - dessa mais monopol.isas. O processo atinge mais duramente, decerto, os
face abertamente repressora operou num quadro para cuja ca- grandes meios de comunicação de IDaS$l, como a televisão, a grande
racterização global contribuíram também outras determinações, imprensa, a produção de disco$, o cinema etc. Mas os cfcitos da
tanto as legadas pdo passado (e que foram rcprodu:z.idas e am- monopolização se Í2zcm igualmente sentir sobre a indústria editorial
pliadas, no que tinham de negativo, depois de 1964) quanto as e a produção t.catr.a.I, embora aqui a presença de empresas médias
geradas pelos novos dementos inttodu:z.idos cm nossa formação e até mesmo de pequeno porte assegure um maior pluralismo de
econômico-social pelo processo de crescente monopolização do oricnt2ÇÕCS e, por conseguinte, uma faixa de autonomia bem mais
capical. O papel das detenninaçócs herdadas e rcprodu:z.idas é de consistente. Por outro lado, a universidade - enquanto importante
imediata identifkaçáo: reforçando os traços autoritários da "via fator de produção e reprodução cultural - foi submetida n.áo s6 a
prussiana", dcvando a um nível superior a exclusão das camadas processos repressivos diretos, mas também a uma crcsc.cnte ..racio-
populares dos processos de dccisáo política, o novo regime refor- nalização" cm sentido capitalista, a fomw de divisão do crabalho
çaria também - direta, mas sobretudo indircwncnte - o papel incdcctual que, adequando-se aos mecanismos da reprodução do
capital, dificultam enormemente, cm seu interior, a fonnaçáo e
sistemarizaçáo de uma cultura crítica e glohaliz;mtc. Portanto, as
u J. Owin (O m"f"'1Js- tk Pllm. SJpM. São Paulo. O bic:W Hunwus, 1978, p.
628 e ss.) foi - ao que cu saiba - o primeiro a empregar o conooito de "capitalismo duas tcn~cias - repressiva e monopolista "racionalizadora" -
hlpcrwdio•• indicando com ele um prooosao ele indu.nrialluç4o que se <li quando o contribuíram para deprimir fortemente a presença de um quadro
capital monopolista jl domina cm aca1a m~ (ou tcja, na~ do imperialismo). pluralista também na pesquisa e no ensino universitários.
Enquant0 o capitalilmo t:uWo leva o pala que o apcrimcna a uma mooopolWoç:io
p~ que pode m.nafonm-lo cm ~ impcrialifu (Alemanha, Japão), o caph:a-
De imediato, esse processo de monopolizaçio da indúsuia
Usmo h.ipcrwdio «>ma« nec:awúmcntc ~do impuW.ísmo. cultural gerou uma force expansão q114ntiJ4tiva dos chamados
CUl.TUAA f SOClCOADll NO BllASll 65

bens cultura.is, o que, antes de mais nada, serviu pan ocultar o ciedade civil fossem mais pluralistas- uma "articu.laçáo orgânica",
fenômeno do vazio culruraJ, que é obviamente um fenômeno de como disse Gramsci. Os altos salários pagos pelos monop6lios
natureza qll2ljtativa (um processo similar ocorre na produção da cultura funcionam como um poderoso atrativo. Por outro
universitária; aqui, a "moderrn.iz.açáo conservadora" possibilitou lado, a divulgação da cultura requer agora um "capital m frumo"
um nfvd de formação técnico-forma.lista ou empirista dev:ulo, (Marx) impensável cm épocas anteriores, quando predominavam
nus que esconde a pobreza conteudistica e o esvaziamento social métodos que poderíamos chamar de anesanais ou semiancsanais.
que marcam com frequência o ensino e as obras gera.das no imbico Dcsaparccc assim em grande pane a possibilidade, para o produtor
uruversiclrio). AJém disso, seria ocioso lembrar o fato de que a de cultura, de manter-se autônomo e, como tal, independente; de
generalização da "lógica" capitalista e monopolista no plano da profissional liberal, o produtor da cultura toma-se cada vez mais
cultura provoca um espontâneo priviJegW:nenco do valor de uoca assalariado de grandes empresas. submetido cm úJtima instância
sobre o valor de uso dos objetos cultura.is, o que abre caminho à "lógica" do lucro máximo e às exigencias anticulturais de ws
para a criação e difusáo de uma pscudocultura de massas que, empresas. t certo que se trata de um processo contraditório, já
cransmitindo valores alienados, serve como instrumento de ma- que também a indústria cultural apresenta "brechas" e colera mar-
nipu.laçáo das consciências a serviço da reprodução do existente. gens de manobra; e essas "brechas" e margens poderão ampliar-se
Tal privilcgiamento náo se manifesta apenas na difusão da "doença substancialmente à medida que o processo de transição para um
senil" do nacional-popular a que já me referi; mais grave é o fato regime de liberdades democráticas avançar cm nosso país, ou seja,
de que ele leva à importação em série de produtos pseudocultura.is à medida que diminua a ação repressiva direta do Estado sobre os
gerados nos países imperialistas, frequentemente preferidos pelos mas:s meáúz e estes se vejam obrigados - pela própria pressão dos
mASS meáút por serem majs baratos que os produtos nacionajs. E consumidores - a satis&ur demandas culturais de uma sociedade
isso não cem consequblcias de.letérias apenas no terreno cultural e civil mais aberta e pluralista. Mas seria perigoso csquoccr, em nome
ideológico em si; essa importação ameaça também o trabalho e a dessas conuatendências, o fato de que a monopolização capitalista
sobrcvivencia de inúmeros artistas e intelectuais brasileiros. Todos dos meios de divulgação cultural aumenta objetivamente as já
esses fatos negativos da indústria cultural - comuns a qualquer for- antigas dificuldades para a criação e divulgação entre nós de uma
ma de capitalismo monopolista - assumiram entre nós proporções culruraJ nacional-popular democrática e pluralista...
ainda mais atastróficas na medida em que ocorreram no quadro Não quero de modo algum traçar um quadro unilateralmente
de um regime polltico fundado na repressão e no arbítrio. pessimista. Apesar dessa trfpUcc oposição - da ccnsuralrepressáo,
Um ouuo fator negativo que não pode absolutamente ser da herança elitista da intelectualidade, da expansão monopolista
subestimado - canto mais que reproduz uma das tendências mais da indústria cultural-, seria absolutamente equivocado ignorar a
negativas na formação da intelectualidade brasileira - é que a in- presença da corrente nacional-popular, ou, mais amplamente, de
dústria cultural monopolista aparece como um novo e poderoso uma corrente cultural de oposição democrática durante os anos
meio de cooptação dos intelectuais pelo sistema de dominação, do regime militar. Essa presença foi decisiva sobrerudo em termos
do qll21 essa indústria cultural é hoje peça de destaque. Em ouuas qualitativos. O que de mais expressivo se criou nessa época - do
palavras: essa indústria cultural aparece como uma nova e eficiente
" Sobre o c:arittt contraditório cb liberdade de criação no capitalismo, cf. o bdo ensaio
forma de cortar a ligação dos intdcaua.is com a realidade nacional- e.
de Lulda, "Anc livn:: ou am: dirigida?". Íll: /J/., MJtnànM t " ' " " " ' IJ1m1111rt1. São
popular, da qll21 poderiam ser - se os organismos cultura.is da so- Paulo, Explt'Sdo Popular. 2010. p. 267-28S.
CullUM 1 SOOlOAOt: NO BRASii. 67

l111J"isif()ri4/ de José Carlos Capinam ao Poema sujo de Ferreira seus mdhores representantes a abandonar progressivamente, cm
Gullar, do Quarup de Antônio Callado a Gota á'água de Paulo muiras de suas produções, a alegoria irracionalista e a optar por
Pontes e Chico Buarque, d.a &vista CivlÜUflÚJ Bratikira às pes- uma dura crítica, nada populista nem ~ua, d.a cotidianid.adc
quisas do grupo Ccbrap, para darmos apenas alguns c:xcmplos - capital.isra moderna que o CME ia implantando cm nosso país.
inclui-se c.crt2Jllcntc, através de uma ampla pluralidade de esólos Foi assim que produções como flllUÍAS abertas de Caetano Veloso
e de orientações ideológicas, na tend~ncia cultural que definimos (para d.annos apenas um exemplo) convergiram objetivamente
como nacional-popular. com Sinal fichado de Paulinho d.a Viola ou com Cotúli4M de
E não s6 isso: at~ mesmo a pare.ela mais significativa dos Chico Buarque (e também aqui me limito a exemplos singulares)
autores (consciente ou inconscientemente) ligados a correntes para criar em nosso país uma música nacional-popular de alto
"intimistas" náo hesitou cm se colocar claramente cm oposição nívd, adequada - cm seu pluralismo e em sua complexidade - às
às tendwcias totalitárias e antipluralistas d.a "poUtica cultural" d.a cxig~ncias dos novos tempos.
ditadura. E essa posrura, cm muitos casos, foi ai~ do engajamento Essa ccndwcia oposicionista predominante na cultura bra-
desses intelcauais enquanto cidadãos, envolvendo também a sua sileira pós- 1964 reflete, antes de qualquer coisa, o ~to de que o
produção cultural como tal. Vejamos um exemplo concreto: sob regime militar jamais desfrutou de um consenso estável junto às
muitos aspectos, o movimento tropicalista cm seus iolcios - na camadas m~as urbanas, de onde provbn - cm sua esmagadora
medida cm que tendia a dcsistoricizar as contradições coocrcras maioria - os nossos intelectuais. Mas rc8ctc também, ao que
d.a realidade brasileira e a eternizá-las numa abstração alegórica e parece, o processo de complc:xi6eaçáo e de diferenciação que o
irracionalista (o Brasil como "absurdo" etc.) - pode ser considerado desenvolvimento do capital.ismo introduziu na sociedade brasi-
expressão do "intimismo". Mas nio se deve deixar de registrar a leira e, por conseguinte, na própria camada de intelectuais. Esse
presença, na evolução do tropicalismo, de um saudável esforço no processo começa a se manifestar já antes de 1964; o crescimento
sentido de conquistar para a arte brasileira novos meios expressivos de uma sociedade civil mais rica e articulada, apoiada cm grande
e, sobretudo, de figurar uma nova tcmá.tica, resultante do modo parte na dinamização do movimento de massas, ~ responsável
"prussiano" de implantação do CME entre nós (coexistência de um pela radiealiuçáo poütica dos intelectuais a partir do final dos
sofisticado capitalismo de consumo com a conservação do atraso anos de 1950, uma radicaliução que - malgrado alguns limites
nos meios rurais e nas periferias urbanas). Malgrado um demento nacionalistas ou "populistas" - apontava no sentido de inverter a
de unilateralidade, a produção "tropicalista" - como podemos hegemonia a~ então desfrutada pelas correntes "intimistas" (é um
avaliar hoje, muitos anos após seu aparecimento- contribuiu para período no qual, por exemplo, o Instituto Superior de Estudos
superar os evidentes limites de um "populismo" que se comprazia Brasileiros e os Centros Populares de Cultura cxcrccm um papel
cm "cantar" um otimismo ing~uo e, cm última análise, desmo- importantíssimo na produção cultural e artística.) Assim, o regime
bilizador, na esperança vaz.ia de que esse "canto" exorcizasse o implantado cm 1964 já encontra os intelectuais numa posição de
"escuro" dominante. Na verdade, o tropicaüsmo nio se opunha ao hostilidade e mesmo de oposição aberta.
nacional-popular, mas àquilo que antes chamamos de sua "doen- ~certo que as medidas imediatamente tomadas pelo novo regi-
ça infantil". Essa diaMcica interna do movimento tropicalista - a me - desde o restabelecimento aberto de um modo de dominação
contradição dinimica entre a conquista de uma nova temática polJtica imposto de cima para baixo a~ a tentativa ditatorial de
e seu tratamento ainda tendencialmente alegórico - levaria os quebrar a autonomia dos organismos d.a sociedade civil (partidos,
68 CAltLOS N EUOH CõunNHO ( 111.T\lltA E SOOEDAOI! NO 8-.Ull. 69

sindicatos, universidades, associações profissionais, organismos os salários dos que conseguem obter uma colocação" . As.run é que,
culrurais etc.) - representaram um duro golpe nos pressupostos que ao Wfo de uma minoria tecnocrática privilegiada, vai se ampliando
se vinham criando, ainda que de modo embrionário, no sentido de um setor da intdecrualidade - particularmente o setor ligado às
uma hegemonia cultural das correntes d~moçráticas QY n~cional­ chamadas "humanidades"1 ou seja, à produção ideológica e à criaç:áo
populares41. Direta ou indiretamente, o regime militar lutou para artística - para o qual a c:xpcctativa de cooptação perde inteiramente
impor as condições favoráveis ao predomínio da cultura elitista. sua l37.áo de set". Em sua grande maioria, os intelectuais passam a
Mas foram vários os fatores que obstaculizaram, no conjunto do compreender, mais ou menos difusamente, que seu destino peswa1
período iniciado em 1964, a emergência efetiva dessa hegemonia está ligado organicamente ao fim da "via prussiana"; à construção
cultural do "intimismo". Antes de mais nada, cabe recordar a de uma sociedade efetivamente democrática. em que a riqueza e
resistência ideológica e política. ativa ou passiva. da esmagadora o pluralismo da sociedade civil abram espaços para a sua atuação
maioria dos intelectuais. E, em segundo lugar, devc--se lembrar que autônoma; à rrali=zação de um "modelo" de desenvolvimento eco-
a própria modernização econômica promovida pelo regime - ainda nômico não ma.rginaliza.dor, que cenha nas camadas assalariadas
que fosse uma modernização conservadora, de tipo "prussiano" e da população (nas quais os incelcctuais estão hoje incluídos) o seu
dependente e, por isso, antipopular e antinacional - abalou seria- destinatário e o seu sujeito.
mente uma das bases sociais mais sólidas da culrura "intimista": Em suma: criaram-se os pressupostos infraestruturais para
o caráter de "favor" pessoal de que se revestiam os processos de uma identi6caçáo entre os intelectuais e o povo-nação. Mas o
cooptação da intelectualidade pelo sistema dominante. que faur para que tais pressupostos se convertam cm resultado,
O mercado de força de crabalho incelecrual - impulsionado pela levando a uma efetiva democratização da culrura brasileira? Antes
emergência da indústria culrural monopolizada - faz com que os de mais nada, há uma batalha a cravar no próprio plano da cul-
intelectuais não mais sejam, pelo simples fato de serem intelectuais,
"mandarins" privilegiados aos qu:üs a posse da cultura fornece prcs- O problema do dC$Ctnprcgo de diplomados - com a c:omcqucntc fomuç5o de um
dgio e status. A gcneraliução das relaçócs capitali.stas no âmbito da ·cxérdm culru.ral de ~ - ~ um dos frutos da dcs:a.suoA e danagógia politia
culrura os vai convertendo, no momento mesmo em que aumenta uniYCt"Sitá.ria do tcglmc militar. t c::cno que. cm paro:, o C$pcacular awncnro das vagas
llllMnitárw ocorrido após 1964 c:oncspondcu às cxigincias do dcscnvolvimcnro ca·
seu número e complcxifica suas funções, em rraba.lhadores assala- pia.lisa.. Mas um dos objetivos da política de aumento das vagas foi a de criar entre as
riados a serviço da reprodução do capital. Ora, se ainda existe coop- camadas mállas uma cxpecutiva de mobilidade social asandenre, que pretendia ICl'Vir
tação, esta opera agora através dos mecanismos impessoalizados do à ampliação de uma adrudc &vorávd ao rcgim< entre tais camadas. O colapso dcsla
poUôca não 5C manífuu apenas no desemprego de dlplomados (que resulta na n~
mercado; e esse mercado produz. entre outras coisas, diferenciações cbquda expectativa): rcvda-$C ambém o.a dtterioraçio r:idica.I da.s condiçócs do ensino
salariais excrcmadas entre as diferentes categorias intelectuais. E isso unívc:rsitário, que rc comou majoritariamen1c ministndo cm instiiuiçócs prívac:W, com
para não falarmos no swgimento do que poderíamos chamar de prtjulzo indwivc de sua funçio na reprodução do sistema ccoo6mico social vigente.
a
Por ourro lado, an! mesmo os iocdcauais privilcgbdos que obt~.m altos salários cendc:m a
"exército cultural de reserva", que se expressa no amplo desemprego alo nuis encarar a sua •C>Ot>pQÇão" como um "&vor dos podcro«os. t cem> que podem
ou subemprego de intelectuais, contribuindo ademais para rebaixar swgir ncac caso fenómenos de corrupção lmclec:rual: mas o F.aro ~~ a siiuaçSo de
asabtbdo lev.i cspontaocama* ao estabdecimcruo de oonfli1os de in!Cttl$C cnttt os
írudcauais bem rcmutieados (massubonlinados ao apitai) e os pau6cs. Em muitos~
Sobre a rtuurc:za e 0$ limite$ dessa "hegemonia da esquerda• na vida culrum brasileira tals cooilltw podem assumir a fonna ele uma luta dessa lntdccruais pela sua auto00mi:.l
da qxica, á. Robaro Schwan. "Culnua ~ polidca. l ~- 1969", i"' !ti., OJNIÍ tkfnillill cnquaruoprodUW!:'Cl<kçiil!i.!!2-Emsuma:o c:onoeiro~·~~·. apllc::adc;>
t oflht/JatrMÜs, Rio de Janeiro, P.uc Tara. 1978, p. 6 1-92. sem mcdia96cs. ~ do problcmáóc:o q uanto o de "aNtoc:raáa operária".
CuLTI.i«A r soatoAOE NO BllASIL 71

tura. E a tarefa primordial dessa batalha ideológica, no.Brasil de contribuir para o desenvolvimento de aspectos de uma arte ou de
hoje, é precisamente a de contribuir para a superação do elitismo uma concepção do mundo efctlvarnente Ugadas à vida da nação e
cultural e para uma cransformaçáo cm sentido nacional-popular do povo (já nos referimos ao fàto de que correntes originariamente
da cultura e da intelectualidade brasileiras. Estimulando as obras º
"in~", WIDQ trnpicalismQ, wnaibuíram decisivamente
que se encaminham no sentido do nacional-popular e revelando para a superação do "popuJismon e para o amadurecimento do
ao mesmo tempo o beco sem salda (ideológico e estético) da visão nacional-popular na música brasileira; uma mesma argumentação
do mundo elitista ou "intimista", a crítica - se feita no quadro do poderia ser desenvolvida cm relação ao papel do modernismo na
respeito ao pluralismo e à diversidade, que são traços indiminávcis evolução da literatura brasileira posterior a 1922)".
de toda cultura aut~ntica - poderá contribuir para a expansão Mas, como a própria formulação de Gramsci deixa claro, os
hegemônica de uma nova cultura brasileira efetivamente demo- problemas da democratização da cultura não se esgotam na defi-
crática, cfctivarncncc nacional-popular. Essa crítica não pode se nição de uma justa perspccàva para a batalha das ideias. Há todo
basear cm critérios estéticos estreitos e normativos; não se trata um quadro social, econômico e político que tem de ser criado para
de impor aos criadores certas "regras" arbitrariamente escolhidas. que a cultura brasileira possa efetivamente se desenvolver de forma
Gramsci coloca a questão com grande lucidez: ná.o elitista. É o quadro de uma democracia pluralista de massas.
Parece evidente que devemos &lar de luta por uma nova 'culrura' e não por uma Enquanto regime que assegura as liberdades formais fundamentais,
'nova arte' (cm sentido imediato). (...) A arte é sempre ligada a deccrmin.ada a democracia de massas garante o clima nco:ssário para o amplo
cultura; e é lutando para reformar a cultura que se chCflil a modificar o 'oontcúdo' Aorcscimenro da Ubcrdadc de criação e de crítica, um clima no
da arte, não de fora (pretendendo uma arte didática, de tese, moralista), mas qual a influência ou hegemonia dessa ou daquela corrente se pro-
sim de dentro, porque a5$lm se modifica o homem inteiro, na medida cm que
se modl6c:un SEUS SEntimcnros, 5UllS con~pçóes. bem como ~ rcbções das
cesse cada vez mais conforme os critérios iman.cntes ao próprio
quais o homem é expressão ncccsWia... mecanismo da dialética cultural. Por outro lado, na medida cm
que assegura os canais necessários para que a produção cultural
Por outro lado, lutar pela e:xpansáo hegemônica de uma orien- responda aos problemas colocados pelas grandes massas e retome a
tação cultural - no caso, da oricntaç:áo nacional-popular - não das para enriquecer-lhes a autoconsciência., a democracia de massas
pode significar de nenhum modo a negação do pluralismo. A luta faz com que o pluralismo da cultura seja expressão do pluralismo
pela hegemonia respeita o pluralismo e dele se alimenta em dois dinâmico e da riqueza efetiva da vida concreta das várias classes e
níveis. Em primeiro lugar, concebe a unidade do nacional-popular camadas nacionais. Finalmente, já que seu caráter progmsivo (de
como uma unidade na diversidade, como uma unidade que retira constante ampliação e aprofundamento) leva a democracia de
sua força e sua capacidade expansiva da mais ampla variedade de massas a propor concretamente a democratização da economia,
manifestações individuais. E, cm segundo, não s6 reconhece a
necessidade social e o direito à cx:ist~ncia de correntes não nacional- " Já cm 1957, Nm1ro Toglilltl- o dirigauc comunlsu 1121iano- se valia de pol$lbilidadcs
desse tipo ~defenda a libmbdc de cri.aç6o nos po.lscs JOClalisw: "Há ouao motivo
popularcs, mas ram.b ém - mesmo no quadro de uma crítica global que aconselha, nesse campo, a não pór &dos à in~dgaçáo e à~ artí$tia; e t qu.c:
de seus eventuais limites artísticos e/ou ideológicos-admite a pos- uma &tcnninada oricnração de pesquisa formal, por acmplo, mesmo se no momento
sibilidade concreta de que produções culturais "intimistas" possam se apresenta mbil e negarlva. e como tal pode e deve ser aiâcada. poderá :unaohl apa-
n:o::r como uma capa qu.c: foi ncccssúio auavmar ~ arlngir novas e mais profundas
fomm de aprc:ssão ' • portanto, wn progiaro de roda a aiação an.lstica" {P. T~.
.. f\. <i=i, Úll/n'Ms, m.. Y. 6, 2002, p. 70. Opnr sedu, Roma, Riunitl. 1977, p. 869).
72 Cw.os NcLSON COUT1HHO

com a luta para pôr 6m à dominação dos monopólios, ela abre Dois momentos brasileiros
com isso a possibilidade concrct2 de que os producorcs de cultura da escola de Frankfurt
se apropriem socialmence dos meios de difusão cultural de massa.
hoje cm grande ~e sob poder dos monopólios; e não ~ prcciw
diz.er o que isso significaria no sentido de tomar real e efetiva a
liberdade de criaçáo assegurada no plano formal.
Em oucr.a.s palavras: só a construçáo de uma democracia de Uma definição sumária da Escola de Frankfun é tareh irreali-
massas pode quebrar dc6nitivamcote os estreitos limites de cast2 zável: não somente por causa da riqueza dos tem~ abordados por
cm que a "via prussiana" emparedou a grande maioria d os nossos seus integrantes (que vão dos pressupostos epistemológicos da teo-
intelectuais e, desse modo, criar um novo tipo de rclacionamcnco ria social à sociologia da música. do conceito de Estado autoritirio
- de dupla mão - entre os intclecruais e o povo-nação; momenro às relações entre psicanálise e marxismo, da filosofia da história à
decisivo nesse processo será assegurado pela aurogcstáo dos or- indústria cultural). mas wnbmi - e talvez sobretudo - por causa da
ganismos de difusão cultural pelos próprios produtores culturais variedade de posições assumidas por seus principais rcpn:scntantes.
associados. Ora, nesse ponto, a "questão cultural" -convcncndo-sc Fdiunentc, para o objetivo destas notas (o de examinar alguns
em momento privilegiado da "questão democrática" - encontra a aspectos da recepção da Escola no Brasil). posso deixar de Lado
base para a sua soluçáo. Lutando pela dcmocrati7.açáo da cultura, os essa definição, tomando como pressuposto a unidade relativa da
intelectuais combatem efetivamente pela renovação democrática da problenútica frankfurtiana: o u seja. a crítica da cultura moderna à
vida nacional cm seu conjunto; e, ao mesmo tempo, Lut2ndo por luz. de algumas categorias (como as de rcificaçáo e alienaçáo) reco-
essa renovação democrática, asseguram condições mais favoráveis lhidas essencialmente da uadiçáo hegeliano-marxista que se inicia
11
à expansão e florescimento de sua própria práxis cultural.,. com Histórúl e ronsdênda de classe, a obra juvenil de Lukács •
Mas, se não é aqui o local adequado para uma avaliaçáo das
(1977-1979) diversidades internas da Escola (tanto sincrónicas quanto, sobre-
tudo, diacrônicas). parec:e-mc import20te oomeça.r por registrá-las:
'° ~ auaio foi conduSdo e publJado pda primdra va cm 1979. Se ddxannoc de lado a
na medida cm que a influmcia de Frankfurt no Brasil levou, como
rcpraÃo abcra e a cmsun expllcia, rodas a demais r.cndbxm idcncifiadas cm sua úlóma
putr oonànu:ltn a caaacriz2r a vida IOâal bmílcin e. cm panicubt, a sua vida culnnl. veremos, a resultados substancialmente diversos, cabe perguntar
Algumasdclu aa! mmno1e1m1ruanm d.pokdo6m.cm 1985, do ttgimc mílitw. Aadoção se tal diversidade é fruto da própria heterogeneidade imanente à
no Brasil de poUdas abatamcn(t ncolibcnis D01 pa:tXllàvb de Fanando CoDor de Mcilo
e de ~ Henrique Canm> reforçou a mooopWnçio do c:apial e a dc:pendtncia
Escola, se é motivada pela variação histó rica do contexto cm que
cm &oc do imperialismo. 1- vale paniailanncmr cm rclw;io à indúmia cultuai, qur 1e ocoacu entre nós a rcccpçáo d os fraokfu.rtianos, ou - o que me
IOmOU ada YC1 mais monopollsc:a e danac · Jjrwia Se há um f.uo nooo é que agc>a a parece mais veros:símil - se rcsult2 de uma combinaçáo das d uas
indúsub cukunl nSo s6 c:oopa in•dtmWJ "ti aclid WS', mas cambém aia seus pr6prios
incdemuls "orgWcm", cx:ramcncc nu.is indinadol a oooârlenr os bens cultuais oomo
coisas. O fato é que, no interior da unidade relativa que indica-
meras mcn:ador ias. Em rcbçto à unMnicbdc. 1egioowc um awncnco O'CIOCntC do $C(l)C
privado e uma dara decaionçio do 11CUW público. ho;e ampGnlCll(C minoridrio. &isum, )I Uma ViÃo íonancncc afóca da &cola de Franlcfun. aporu:ada a>mo manikscaçso de
oomo xmprc. ~ nm o &co é que~ rdmva lqµnouia do ncolibcnlWno no ~ rominàca. pode tcrcnmnu:acb cm J.G. Mcrquiof. W..,,, _,,;,,,,, 1..oodrc:s.
pcriodo p61-ciimorial (indusiYe no go.ano Lub) nSo pcnniõu que a ~ abatas Nadí.n, 1986. p. J 11 · 1 ~. 15S.18S. Embora oona>nkcm muitO& pomosoom a anilisc
pdQ ~ ck dcmoaaàzaçio polldca lõ.an apaa ck modificat ~tt. dt Merquior, rdo eou do dtia> quanto de ~ o V1loc analltlcn politivo de mulm
c:nae oums coisu, a vida cultural brMilcira. (AJmJo ~ , , _ - ~] formulaç6ts "ui~ da F.xola de Frankfun, como te: YCri cm xgukb.
74 Culos Nu.SOM C~ CuLTllllA E SOCtf:DAl>f NO BRASIL 75

mos acima, a Escola de Frankfurt passou no Brasil da condição não só com os textos frankfun:ianos citados, mas também com
de esámuJo intdec::tual à contra.cultura irracionalista, no início trabalhos de Lulcács, Gramsci, Goldmann, Althusscr, Baran e
dos anos de 1970, para a de base teórica de uma vigorosa defesa Swcczy, Adam Schaff e muitos outros.
da razão contra o suno irracionalista do arua1 "pós-moderno". A Foi a peculiar situaÇio b~cira dessa agitada segunda metade
contradição parece à primeira vista tão gritante que cabe indagar dos anos de 1960 que determinou, cm grande pane. o modo
se, por trás das a~das, não haverá pelo menos algum demento como se deu essa primeira recepção da Escola cnue nós. Por
de continuidade. exemplo: dependeu dessa situação, e não da eventual superiori-
dade intrínseca dos textos de Marcusc, o f.lto de que esse autor
1. MARCIJS( E A C~CUlTUltA l'Uf'INIQUIM tenha desfrutado, na vida intclcaual brasileira da época. de uma
A Escola de Frankfurt chegou ao Brasil no final dos anos de inAuência incomparavelmente superior à de seus companhei·
1960. Ao lado de muitos livros de Marcuse, for:un cnráo publi- ros de Escola. Já conhecido internacionalmente como uma das
cados importantes ensaios de Benjamin, Adorno e Horkheimer; principais fontes ideológicas das rebeliões estudantis europeias e
na mesma época, Robcno Schwarz. empregava com brilho cate- norte-americanas, Marcusc chcga:v:a ao Brasil no momento cm
gorias frankfurtianas cm suas análises literárias, e José Guilherme que um amplo setor da intelectualidade de esquerda não julgav:a
Mcrquior - então hcidcggcriano - publicava o primeiro estudo mais encontrar nas posições do Partido Comunista Brasileiro (e da
brasileiro de conjunto sobre os principais pensadores da Escola13• cultura marxista que lhe era próxima) uma resposta adequada aos
O processo se inseria numa saudávcJ teod~ncia à a.bcrtura do desa.fios da realidade. A ..Grande Recusa" proposta por Marcusc
pensamento social brasileiro para as mais importantes correntes da parecia conuibuir para o encontro de tal resposta, naqucJc clima
cultura universal concempodnca; uma tend~ncia que, ~ do de "impaciência revolucionária"" em que estava imersa boa parte
golpe de 1964, manifestou-se com intensidade ao longo de toda da nossa incclcctu.alidade. Assim, num primeiro momento, um
a década de 1960. Para falarmos apenas no marxismo, foi este o Marcusc lido apressada.mente tornou-se componente não secun-
período cm que - quebrando um quase monopólio anterior dos dário da sopa eclética que formou a bagagem teórica da pretensa
manuais soviéticos- a bibliografia ma.rxista brasileira se enriqueceu "nova esquerda" brasileira: misturado com Mao Tsé-rung, Régis
Debray e Louis Althusscr, com os quais pouco ou nada tinha cm
De Hcrl>erl Maraasc. fonm publicado. no Brasil, com: 1968 e 1973. os ac:guinccs comum, Matcusc parecia fumcocr elementos para uma contestação
livros: 0 f»- "1t~,,./, Ó# I d~ /'°" t#.r "1IJ6 -n. crizW ,/,, radical que envolvia, ao mesmo tempo, a ditadura (identificada
~. C.~ t wwlu (iodoJ pela Zahar), O fim ti. IMJ>itt (Pu e Tema).
UJUt Ct>Urt com o capitalismo) e o mablishmmt marxista encarnado
O 1M1'CÍl7M swlltW e hú. 'tnlOÚlplo (pela Sap. depois Pu e: Tem). De Walter Bcn-
jamlm, apatttttam pdo mcnc. ~ Yet"6es do msalo "A obra de artt na ipoc:a de sua pelo "velho" PCB (que, embora em alguns casos buscasse renovar
rqM'Oducividadc úcnlcã e, cm 1975. wm oolednea, A MtNlaw/MM, 111 ~ (Rio seu patrimônio culru.ral com autores como Lukács e Gramsci,
de j2Ddro, Tempo Brullciro), que c:ontán um imponmcc CRudo JObrc 8audd:airc. De
continuava essencialmente preso às tradições esclerosadas da
Horkhdmct e: Adorno, foi publ.l ado um aplwlo d.a Di.lmü h ~ JObrc
"A indústria culrunl"; e:. cio último, albn ck dim ~do ensaio "Moei.as= ccmpo: Tece.eira Internacional). Se, no plano político, a tática da "acumu-
sobre o Jan• e de um.a do 1c:rco "lddas paA wm toeiologia da música", ap:uucu cm lação de forças" propoSta pelo PCB aparecia a esses intelectuais
1975 uma c:olcdnea. Os cnsalOI de Robcno Schwan ado cm A snri4 ' • Jaa11foM,
Rio de Janeiro. Civilizaçio Bruilclra, 1965: e o estudo de Mc:rquioC' ~ Anu ~,.,,.
Mirrrwu, ~ / Bntjoli11, Rio de J111elro. Tempo Bruileiro. 1969. Em bibliognfi~ » 0 1tt1110 fOl cunludo pdo lukaGíano aicmlo Wolfpng Harich, Critia idll,,.,.on-
nio prcccndc 1er c:uusm. rlwÚl:z:Ü1llUÍll, MUJo. Fdrrindli, 1972.
76 CMlos NcLSOH CounNHO ( ULTUAA f SOCllOA.0€ NO 8llA.SIL 77

como reformismo oportlUl.ista, o racionalismo humanisca de Não posso me deter na questão de saber até que ponto a obra
Lukács e o projeto nacional-popu.lu de Gramsci eram vistos, no de Marcusc foi lida corretamente pelos que a transformaram cm
plano da cultura, como demasiadamente vinculados a proposras base ideológica do irracionalismo "concraculcural". Diria apenas,
csrético-idcológicas conservadoras e/ou popu.lisw. Não é assim de brc:vcmcncc, que - se tomarmos os ensaios marcusianos dos anos
surpreender (embora talvez seja de lamentar) que Marcusc, cujas de 1930 (não casualmente inéditos, cm sua esmagadora maioria,
edições se multiplicavam, tenha sido certamente bem ma.is lido no Brasil da época)-cssa leitura unilateralmente "concraculcural"
na época do que Lukács ou Grarnsci, que tinham suas traduções di6cilmcntc se sustenta: apoiado numa interpretação hegeliana do
brasileiras vendidas cm estantes de saldo a preço de banana. marxismo, Marcusc fomcc.c nesses ensaios imporCUltcs contribui-
Com o rápido fracasso da luta armada, à qual alguns desses ções para uma crítica concreta das tcndencias totalitárias que v~
intelectuais "impacientes" aderiram e com a qual muitos sim- florescer no ..capitalismo organizado" da época, indicando com
patizaram, o espírito da "Grande Recusa" sofreu uma alteração precisão as suas rahcs culturais. Contudo, se analisarmos seus tex-
profunda. Por um lado, a vertente althusscriana- sob a cobertura tos ma.is divulgados entre nós, Eros e civili,:A.fio (1955) e O homem
de um falso revolucionarismo teórico que se reduzia a decretar uniáimmsioNÚ (1964), as coisas se complicam: identificando de-
"cortes epistemológicos" radicais - refluiu para uma escolástica senvolvimento cicncffico-tccnol6gico com dominação repressiva,
acadbnica e estéril que, combinada e fundida com a do escru- valorizando Orfeu e Narciso contra Prometeu, dcsqualif1cando o
turali.smo, passou a dominar uma parte substancial da produção trabalho produtivo (para ele, ncccssariarncntc alienado) cm nome
universitária e editorial no campo das ci!ncias humanas. Por de um trabalho lúdico ou libidinal, pregando uma "sexualidade
outro lado, entre os que mantiveram o espírito da "Grande polimórfica" e urna "nova sensibilidade" como antídotos con-
Recusa", a "impaci~cia revolucionária" rapidamente assumiu tra a repressora razão instrumental, esses trabalhos de Marcusc
uma nova feição: de oposição política (ainda que equivocada) - malgrado os seus indiscutíveis pontos de interesse - deitam
a uma opressão concreta, ela se converteu numa rejeição cão raízes numa concepção do mundo essencialmente romântica e
global quanto abstrata à "cultura" cm geral. O mal já não seria irracionalista. Não foi assim casual que a concraculcura brasileira
tanto a ditadura ou mesmo o capitalismo enquanto formação dos anos de 1970 se tenha v.ilido abertamente de Marcu.sc {basta
econômico-social, mas todo um legado cultural que, baseado pensar nos artigos de Luiz Carlos Macid, publicados sobretudo
na razão e na ciência, funcionaria essencialmente, segundo os cm O Pasquim)><; e se, no final, essa concraculcura terminou por
defensores dessa corrente, como uma insdncia repressora da se tornar cada vez mais "orientalista" e abertamente mística cm
subjetividade humana. E foi então que a obra de Marcusc, lida suas formulações teóricas, a ponto de não mais se reconhecer na
apressadamente, serviu como ponto de partida para essa passa- inegável sofisticação tc6rica "ocidental" de Marcusc, isso não anula
gem do gauchisme ao irracionali.smo aberto: de csúmulo para o fato de que o autor de Eros e civilização desempenhou um papel
a contestação armada à ditadura, Marcusc tornou-se fonte de imporCUltc no florescimento do irracionalismo brasileiro dos anos
inspiração para os movimentos da chamada concraculcura, ou, de 1970. Um irracionalismo com o qual, diga~se de passagem, o
mais precisamente, daquela versão tropicalista da I<Mlturltritlr
romântico-anticapitalisra que floresceu e se desenvolveu aqui ~ Os ardgos de LWx Cub Maàd fonm depois ruiolhldotcm N-t'MlnlrtàA. ]#nw/imtO
~ 1970ll!J72. Rlo de Janàro, Elcloc*. 1973. Lendo-te essa colcdnea,
no iolcio dos anos de 1970. pode-se F.acilmcnu pcrccbcr a·~· da conu1ICll!l\U"l brvikira de MamiK e ~
par.a Heidegger e o orienttlismo.
78 ÚolllOS Nwoll ÚlYTINHO CulTUAA f SOClfO.t.D€ HO BAASU. 79

dos anos de 1980 - malgrado todas as inovações "pós-modernas" era essencialmente "estético-cultural" no período anterior, cm
- conserva uma marcante Unha de continuidade. função da dura c.cnsura ditatorial - foi ampliado com o retomo
Deve ser creditada à lucidez de Marcusc a sua preocupação de temas explicitamente políticos. É o momento, por c:xcmplo, cm
fina!, expressa sobretudo em Contr4rrn!fJ/UfM e T'(W/ta (1972, que Antonio Gramsci - que fora quase esquecido durante todo o
edição brasileira de 1973). no sentido de denunciar os excessos período que vai de 1968 a 1976 - emerge como um dos ponros
antirracionalistas que ele agora enxergava nos movimentos con- obrigatórios da reBc:xáo marxista entre nós" . Parcc.e--mc supérfluo
t.raculrurais da outrora "nova esquerda" internacional. Mas, infe- insistir no valor positivo dessa ampliação temática para a reflexão
liz.mente, quando esse Uvro foi pubUcado no Brasil, a influência intdccruaJ no Brasil e, cm particular, para a rcffc:xáo que se ins-
marcusiana já entrara aqui em franco declínio (a defesa da razão pira no marxismo. Mas cabe tam~m registrar que, num curioso
entre nós, na sombria primeira metade dos anos de 1970, foi movimento pe.n duJar, ocorreu por algum tempo uma c:xccssiva
cm grande pane - embora, decerto, não exclusivamente - obra "politiuçáo" do espaço cultural, com uma relativa "desativação"
dos lu.kacsianos: escolhendo travar uma luta cm duas frentes, das problemáticas estéticas e crítico-culturais que ma.rearam as
contra a "m isé.ria da razão" dos esrruturaliscas e contra o aberto polemicas do período anterior. Decerto, essa transitória "desati-
irracionalismo da contraculrura, os lu.kacsianos brasileiros, então vação" era resultado da urg!ncia de encaminhar e aprofundar a
ligados ao PC B, terminaram isolados e, nesse isolamento, náo transição da ditadura à democracia,, uma tarefa na qual se empe-
foram infrcqucnces da pane deles manifestações de sectarismo e nhou a grande maioria da intdccrualidadc. independentemente da
de intolerância''). Por conseguinte. o primeiro momento de Frank- diversidade de suas conccpçócs do mundo e da cuJcura. Mas era
furt no Brasil - um momento Ugado essencialmente ao nome de também natural que, uma vez alcançado um regime de liberdades
Marcusc - serviu sobretudo ao fortalecimento do irracionalismo. democráticas, a polêmica especificamente cultura! e ideológica
U m analista superficial jamais poderia prever que o seu segundo e voltaSSC à supcrficie e rcconquistaSSC o lugar que lhe é de direito
arual momento, capitaneado essencialmente pelo brasileiro Sérgio no espaço intclccrua1 brasileiro. Digo "de direito" porque, sem
Paulo Rouanet, viesse vinculado a uma radical defesa da razão; polemica sobre conccpçócs do mundo e da cultura. não há luta
e a uma defesa que se manifesta, como veremos, no combate a pela hegemonia; e, sem luta pela hegemonia, náo existe uma vida
tendências culturais que, cm alguns casos, podem ser apontadas política saudável, ou seja, democrática e pluralista.
como sequelas da antiga influência marcusiana. É precisamente nesse quadro de reativação do debate especi-
ficamente ideológjco-ailruraJ que tem lugar o segundo momento
2. R OUAHET E A DEFESA DA RAZÃO brasileico da Escola de Frankfurt. Cabe notar, antes de mais nada,
O ocaso de Marcusc foi também, por algum tempo, o ocaso da que esse segundo momento é muito mais amplo e diversificado do
Escola de Frankfurt entre nós". Com a reativação da vida politica que o primeiro: cm vez do quase monopólio marcusiano de final
a partir de meados dos anos de 1970, o espaço intelccruaJ - que dos anos de 1960 e início de 1970, vemos agora serem editados
no Brasil alguns dos mais importantes crahalhos de Horkhcimcr,
S> O grupo lulcaaiano brasildro era fomudo 02 q.oca por Leandro Kondcr, Luh Sérgio
Henriques, J'* Paulo Nccto, Gilvan P. Ribeiro e por mim. O lcicor pcrccbe.ci que. se a 19m . onlk utiliu amplamcnrc categorias franlcfurtianas. E Flávio R. Kot:hc publica
observação acima o>mporta um aucodogio, o>mporta wnbán uma aucocrfrica. &njlmrirt d- AillmuJ: "trfrorti.1 (São Paulo, Ária, 1978).
" H4, pelo mCllO$, du.vaccç6c:J Neve período, RobmoSchwaripuhliaosni aalcnrc " Cf. C. N. Courinbo. "A n:o:pçio de Gramsci no Brail", in: /JJ., Cirrunsd. llm t#wl#
cnWo sob~ o pómclro Machado, Ao WNtÓlrt 11S " " - (São Paulo, Duas Cicbdes, t#rc ln' pmsAm<ntJO rlisia. Rio de Janeiro, Civilít.a~ Brasileira. 1999, p. 279·305.
CULTURA f SO(l(OADE NO BRASIL 81

Adorno, Habcnnas e, sobretudo, Bcnjamimsa. Por ouuo lado, ressurreição "pós-moderna" da velha cootracultura brasileira dos
com Sérgio Paulo Rouanet, a Escola se "'naruralizou" definitiva- anos de 1970, a qual, como vimos, sofreu forte influência do
mente: sew últimos livros", de marcada inspiração frankfu.rtiana, frankfurtiano Marcusc. Talvez possa ser interpretado como wn
wntribuem náo somente pan wnsolidal a el~çio da ensaístiça "ato ~o" o fato de que Rouanct, quando cnwncra as vcncntcs
brasileira ao n.ívd de sua melhor congênere internacional, mas teóricas que estariam na raiz dessas "subculturas" antirracionalis-
chegam mesmo, cm minha opinião, a dar uma significativa con- tas, cite explicitamente Foucault e os nouveaux phiÍl>sophes, mas
tribuição para o enriquecimento da problemática &ankfurtiana omita o nome de Marcu.sc e (por que não lembrar?) de um certo
em termos universais. E mais: com seus instigantes artigos sobre a Benjamin f:ascinado por suas experiências com drogas. E é curioso
cultura brasileira de boje.., Rouanct colocou a Escola de Frankfurt que o único Marcusc a que de se refira seja o do último período,
no centro de uma das mais importantes polêmicas culrurais desse precisamente o Marcusc autocrítico de Conmtrm10/11Çáo ~ mJOlta.
início da mal chamada "'Nova República". ~a esses artigos que Todavia, recordar tais omissões pode aparecer como uma mesqui-
vamos dedicar o restante deste ensaio. nharia diante do que é mais importante nos ensaios de Rouanct:
De certo modo, o que primeiro poderíamos dizer, num co- des nos recordam que a Escola de Frankfurt. liberada de seus
mentário sobre esses artigos polêmicos de Rouanct, é que ndes momentos mais "dionisíacos", mais romintico-anticapitalistas,
Frankfurt se pôs contra Frankfurt: quando Rouanet critica o possui alguns instrumentos eficientes para denunciar o irraciona-
irracionalismo que entrevê cm muitas "subculturas jovens", que lismo e propor soluções culrurais bastante pr6ximas da tradição
reconstirucm "a polarização clássica entre a vida e a teoria que dialético-racionalista que me parece estar contida na produção de
0orcsccu ( ...) no romantismo", certamente está criticando uma Gramsci e do melhor L1kács da última fase. E é a essa vertente
frankfu.rtiana - que se propõe liberar a razão das repressões que
Tamb6n sem nenhuma pmcnsáocxaustiva. daria: de HorkhcimcrcAdomo, DitJltiu
a aprisionam, e não identificá-la com a repressão e, portanto,
tltJ ad.r«immkl (Rio de Jandro, Zahar, 1985): de Benjamim, H~. Orip Jo tlrinM condená-la sumariamente - que Rouanct pertence.
INmot# lllmtiú e Olmu esalhú/,u, v. 1, 2 e 3 (roei°' pela Brasiliense, Sfo Paulo, 198+ São muitos os pontos cm que concordo plenamente com
1989): de Habennas. Ctmhm- ~ intnrM (Zahar), Pt11J1•1mmslTUf.W Jo ~­
Rouanet. Por exemplo: quando ele aponta no "nacionalismo cul-
ÜJmo hirt6.W (Brasílicn.se), M,,J,mç. mnmmJ Jo efml p11blk• e C.W iÚ k:f.iim;,J,,,/,
no "'PilllÜmlo t11nlio (Tempo Brasikiro). Cabe ainda regiruu dlW antologias, sobre rural", na crítica xcn6foba à cultura universal, uma manifestação
H~ (organizada por S. P. Rouanct e B. Freyag) e sobre Bmfamm (por Flávio oáo só irracionalista, mas objetivamente reacionária" . C.Ompartilho
R. Kodw:). publicadas na coleção "Grandes Omri.uas Sociais", da cdl1012 Árlc:a. Sfo igualmente seu combate ao chamado "p6s-modcmo", ou seja, seu
Paulo, respcaivamcn1c cm 1980 e 1985, bem como a colednea de 1orto.s &ankfunianos
pubUcados pela Abril Culrun.I, Sfo Paulo, na colcc;io "Os Pensadores, vol. Xl.Vlll, empenho cm conservar a necessária distinção entre a alta culrura,
1975, com ririas ttediçi6cs posteriores. por um lado, e, por outro, a cultura popular e de massas: somente
Rdiro-me a Upo e o •wfa. ltinmlrios ~mo W.Jm. Bmji111fín (Rio de Janeiro, através da alta cultura (e, muito cm particular, da grande arte) é
Tempo Brasileiro, 1981); T~rilt l'fÚ/'4 •~(Rio de Janciro-Fomlcu, Tempo
Brasildro-Uruvc11idadc Fcden.I do Cc:an. 1983): A flUÁO uliJH1 (São Paulo, Brasiliense,
possívd ao indivíduo dcvar-sc à autoconsciê.n cia de sua partici-
.. 1985); e As -6n Jo í/Mmmismo (Sio Paulo, Companhia das lerras, 1987).
CT. Ságio Paulo R.ooanc1. "Ycrdo-amatdo h cor do 005$0 irnclonali.smo". in: Ft>UNrim,
pação no gênero humano, na medida cm que por meio dela se
apropria dos iruuumcncos capazes de romper a falsa consciência
17 de novembro de 1985;c /4 , "Ble&ndonomollwlo", ibúl, l5 dcdcumbrode 1985 alienada e particularista que o impede de desenvolver uma ade-
(republicados cm As '1lda M illlminismo, ris., p. 124-146). Mas á. tamblm a cotrcvú12
de Rouana publiclda an Vtjir. de 29 de janeiro de 1986, Todas as d~ de RolWICt
contidas neste ensaio do rctind.as desses seus a& cnbalhos. .. CT. tupl'll. •CuJiura e IOCicdadc no Br.uil". P• 54 e a.
CULT\JM ( SOCllOADE NO BMSIL 83

quada postura crítica diante do mundo cm que vive. 'Runbém Finneganí Wake, e sim a tdcnovcla". Uma análise menos abstrata,
me parece corresponder a uma política cultural efetivamente mais diferenciada, deveria não só levar cm conta a possibilidade
democrática sua atitude cm face da língua culta (que me recorda de que a consciência alienada e o irracionalismo se manifestem
o combate similar de Gramsci pela língua nacional e contra o fi:- r.ambém no interior da alta cultwa (e este me parece precisamente
tichismo do dialcco); ou sua corajosa denúncia das manifestações o caso da obra de Joyce tomada como c:xemplo por Rou.anet), mas
de anti-intdccrualismo que vicejam hoje entre alguns setores do também, invCl'SaOlcntc, como veremos a seguir. a possibilidade de
movimento operário brasileiro (cm particular, mas náo apenas, cm que obras da cultura de massa (como algumas tdcnovdas) expres-
algumas correntes minoritárias do P1}. Em todos esses ponros, que sem elnnmtos de uma consciencia crítica e náo alienada. Embora
sáo decisivos cm seus ensaios, Rouanet demonstra que pode haver certa.mente não seja essa a intenção de Rouanet, o fato é que sua
uma convcr~cia de princípio entre uma postura gramsciana e posiçáo frankfurtiana conduz a um certo imobilismo: por um
lulcacsiana em face da cultura e um frankfurtianjsmo "apoHnoo", lado, devemos proteger a culrura popular, que de identifica. em
baseado no que há de mais lúcido nas reflexões de A.domo, de mais de uma oporrunidade, com o folclore (licerarura de cordel,
Benjamin e de Habcnnas. artesanato nordestino etc.); por outro, trata-se de valorizar os
Mas, de um ponto de vista grarnsciano (que, diga-se de passa- produtos da alta cultura. operando ~ralmmk (por meio
gem, pode e deve ser enriquecido com algumas reflexões lulcacsia- da democratização da sociedade) no sentido de que o povo tenha
nas), sinto-me tentado a levantar algumas objcções às formulações acesso a seus produtos. E, finalmente, cabe proteger ambas contra
da Escola de Frankfurt, mesmo cm seus melhores momentos. Em "a cultura de massas, nacional ou estrangeira", adoroianamcntc
primeiro lugar, diria que a colocação geral de Rouanct pressupõe concebida como o reino da alienação e da manipulação.
distinções demasiado rígidas entre os vários níveis da cultura e> Com Gramsci, eu diria que uma política cultural democráti-
mais concretamente, da consciencia social que se expressa através ca - sem deixar de lado, evidentemente, os fatores cxtraculturais
das obras culturais. Deccno, de nos advene para o fato de que de democratizaçáo - deve operar de modo que a "recomposição
"a alta cultura e a cultura popular sáo as duas metades de uma da totalidade cindida" se processe Utmbhn por meio de um pro-
totalidade cindida"; mas, ao mesmo tempo, afirma um pouco resig- gressivo potcnciamento das virtualidades de pensamento crítico
nadamente que essa totalidade "só poderá recompor-se na linha de contidas nos níveis culturais inferiores. Mais explicitamente: o
fuga de uma utopia tendencial". Em segundo lugar, revelando uma que Rouanet designa como culrura popular é, essencialmente, o
fone inBuencia adorniana, parece considerar como essencialmente que Gramsci chama de "folclore", ou seja, um amálgama bizarro
alienada toda a cultura de massas (que ele distingue corret:a.mentc de elementos bctcrogbleos provenientes da culrura superior do
da cultura popular), isto é, a cultura gerada pdos modernos meios passado {é o caso, muito cla.ramente, do romance de cordd, cita-
de comunicação". É o que me parece resultar de sua afirmação do por Rouanct). Através dessa cultura popular, forma-se o que
de que "a ameaça à sobrcviv&tcia da literatura de cordd não é o Gramsci chama de "senso comum": um conjunto de concepções
do mundo hetcrogencas e contraditórias que organizam a práxis
" ~dos explícitos modvos de cndca ttndmd1lma11c nutxista, crdo q ue não~ dif!dl dos "simples", fornecendo-lhes normas para a açáo. Para Gramsci,
pcn:d>cr na r.adial oposiçio c:k Adorno à indústria rulrunl W1Ü>b\ unu posiçio di-
cim, ou stja. um indlsfuçivd nu.1-csw- dianic do "agradável", do mero tliwrrissmtm1.
f. inm"Emntl! ~ q1U?, mi sua Ettltial (Turim, Eill3udi; vol. 2, p. 1.288-1.336), (DWJto, ele oio condena o llfO do agradável cm obl'3S culturais. mas liln 1 W2 confudo
l..Wdcs iambém lnsisic na subsunci.al d.istinçio cnuc o "agt2dávd" ~o "cmtico"; no com o cspccilic:amcnic CS'tttico.
(ULTVllA f SOOfDAOl NO 8llASIL 85

a luta por uma nova cultura (momento da luta por uma nova milhares de pessoas escutem a Nona Sinfonia pelo cidio ou pela
hegemonia) implica um esforço no sentido de "depurar" o "sen- rclcvisáo, mesmo que essa audição se de entre duas propagandas
so comum" e elevá-lo ao nível do "bom senso". ou seja, a uma de dcnrifrlcio, caso a alternativa para isso seja a de que jamais a
concepção do mundo mais organizada e sisccmácica que, liberta escutem, por nio poderem fiequenw uma adequa<b sala de con-
de anacronismos e mesclas bi:z.arras, coloque-se à altura da mo- c.crtos. Mas, cm segundo lugar. pcriso também na possibilidade de
dernidade e se converta cm instrumento de uma práxis crítica. que determinados.gêneros culturais criaáos pelos meios de comu-
Todos sabem o imenso papel que Gramsci atribuía aos "grandes nicação possam contribuir para elevar progressivamente o gosto
intelectuais" - e, como cal. à alta cultura - nesse processo de acústico popular (tomando assim menos utópica a "recomposição
elevação da consciência folclorista a.o nível do bom senso (ou, se da totalidade cindida") e. sobretudo, para operar aquela difusão
quisennos, da cultura nacional-popular). Mas tal processo não massiva de determinadas concepções do mundo de teor crítico
pode ser confiado à simples esperança numa "utopia tendencial": desejada por Gramsci. Gosta.ria de sublinhar que se trata de uma
sem jamais propor o desprezo ou o abandono da alca cultura, possibi/kiatk, que coexiste com a (e é frcqucnccmcntc derrocada
Gramsci chega a diz.cr que - no nlvel tÍ4 conscibuia social - o fato pela) possibilidade contrária. ou seja, a de que tais gêneros sirvam
de que uma concepção do mundo já elaborada seja difundida para difundir uma cultura alienada, regressiva e manipuladora
entre as massas, tornando-se "bom senso", é mais importante do (Gramsci apontou uma ambiguidade similar quando analisou o
que a realização de uma descobert2 teórica espcdfica que reste romance-folhetim e o melodrama italiano). EntICtanco, se admitir-
limitada a um circulo restrito. Por ouuo lado, para o autor dos mos que, apesar de rudo - ou seja. de suas limitações intrínsecas e
Cadernos do cdrcere, essa obra de difusão e renovação cultural não de seu acual controle pelos monopólios-. os meios eletrônicos de
s6 não é incompacfvel com a grande arte, mas é mesmo urna de comunicação comportam aquela possibifühdc positiva, então se
suas condições: "~ lutando por uma nova cultura - diz. ele - que trata de lutar para que ela se convcrt.a cm realidade, suplantando
se chega a modificar o 'conteúdo' da arte"" . a possibilidade negativa contrária.
Ora, no mundo moderno (que deve cen:amcncc ser criticado, Quando falamos cm gênero criado pela mldia eletrônica, é
mas náo romantic:amcncc recusado em bloco), a difusão de massa claro que logo nos vem à mente. no caso brasileiro, a telenovela,
de uma cultura crítica pode cnconttar nos meios eletrônicos de aliás fart2mencc citada por Rouanct. Ao contrário do que supõe
comunicação um instrumento privilegiado. Rcfuo..mc, cm pri- o radicalismo de Horkhcimcr e Adorno, para os quais não há
meiro lugar, ao caráter positivo da difusão pela mi.dia de obras diferença entre Victor Marurc e Charles Chaplin, ambos subme--
culturais de nível superior (algo com o que o próprio Rouanet cidos à barbárie de urna indústria culrural que eles veem como
talvez concorde, já que afirma que "até c:crto ponto a indústria globalmente alienada e alienante, considero um progresso que as
cultutal é neutra em matéria de conteúdos"); com o perdão de telenovelas brasileiras não sejam mais escritas por G lória Magadan
Adorno, citado por Rouanct, parece-me muito importante que e. sim, digamos, por Dias Gomes. Não ~me alongar aqui sobre
a questão, mas creio que muicas de nossas recentes cclenovelas.
" Raumo aqui concicito1 gnmscianos C:Xpta80S nos ~ "- dtmr, Rio de J.t.ndro. com todas as insuperáveis limitações fomuzis do gênero e com
Ovili:r;oçJo Bn.sildn, 1999-2002, cm panicubt nos vs.. 1. 2 e 6. Nas vdhas ~~ todos os esquematismos que sempre podem ser apontados cm
bnsíklns. dcs podem sa mcontrados cm C..""1(M .IU/Jtiu '4 ~ Ülnwrw1J1 t
IJiiú IUliotui, Oi iNNau.fk t • '"flflllu{M ú oJnus (Rio de Jandro, Ovilluçlo seus contnídos concretos, difundem grande número de dcmencos
Bruilcir.a. rupc:aMmmrr 1966, 1968 e 1968). culturais críticos, os quais - embora óbvios ou mesmo banais para
CUl.TUAA ( SOCl[OAl)f "° BMM.l 87

os que são funiliariz.ados com a alta cultura - chegam atrav6 "irracionalismo" não cem fins, mas que é apenas a manifcstaÇáo
ddas, pela primeira vez, a uma massa de milhões de telespecta- ideológica de uma ~ (ou de um bloco de classes) historica-
dores. Produções desse tipo podem diminuir a dcfuagcm cnttc o mente concret2. A que interesses sociais serve o irracionalismo
folclorismo anacrônico, hoje prcdominance na rulrura. do povo, e que Rouanct tio lucidamcnrc denuncia e combate? Na medida
uma consciência nacional-popular mais rica e desenvolvida. Nesse cm que o marxismo frankfuniano, com sua declarada predileção
sentido, considero m.anifcstaçáo de elitismo a condenação prévia da pela aitica cultural "cpocal", deixa inteiramente de lado a qucst.áo
telenovela enquanco g&tero, sob a alegação de que, por operar no da luta de classes, não é de surpreender que não haja nos ensaios
nível do agradável e não do estético, da jamais poderá alcançar o de Rouanet nenhuma resposta a essa qucst.ão.
patamar arústico-idcol6gjco de obras como, por c:xcmplo, DouúJr Seria uma ilusão ing&ua supor que se possa fucr uma •reforma
FallStuS ou Viva o pqvo brasikiro". intelectual e moral" (Gramsci) de modo exclusivo, ou automa-
Por tudo isso, no plano da política cultural, a concepção fica.mcntc, atrav6 da difusão propiciada pela múlia clctr6nica:
gramsciana de uma inter-relação dinâmica e rctroalimcntadora devemos à Escola de Frankfurt, e cm particular a Horkhcirncr
entre os vários níveis culturais me parece mais fecunda do que a e Adorno, uma consciência mais lúcida e perspicaz dos imensos
visão estática e, cm última instância, conservadora que resulta das riscos regressivos contidos na indústria cultural. A adoração bas-
concepções de Horkheirncr e Adorno. É nesse ponto que julgo baque das virtudes da múlia, t.áo bem denunciada por Rouanet, é
cncrcvcr uma linha de continuidade, no seio de uma marcada certamente uma manifestação equivocada, que deve ser duramente
descontinuidade, entre os dois momentos da recepção da Escola combatida. Mas também me parcc.c perigoso ignorar as potencia-
de Frankfurt no Brasil: na medida cm que opta por trabalhar num lidades dos meios de comunicação de massa, quando submetit:Íbs à
nívd demasiadamente abstrato, "ftlos6fico-univ~", a Eswla de pressão e ao rontrok de 11ma socie"'1de civilfone e ámromitka, no
Frankfun - seja cm sua versão "contraeultural" marcusiana, seja processo de elevação do senso comwn folclorístico ao "bom sen·
cm sua atual figura racionaliSta encarnada por Rouanct - tende so" crítico. Enquanto aparelhos de hegemonia, também os meios
a deixar de lado muitas mediações sociais concretas, sem as quais eletrônicos são terreno de uma "guerra de posições" entre blocos
é impossível rcaliz.ar uma análise histórico-materialista da cultura sociais conflitantes. Numa vertente frankfurtiana diversa daquela
e, como con.sequwcia, propor uma política cultural democrática de Adorno, foi esta a conclusão a que chegou Benjamin, cm seu
e socialiSta, que não perca de vista a quest.áo da luta pela hege- belo ensaio sobre A obrrz de arte na época de sua reproáutibiliJade
monia entre diferences blocos de classe. Porque, afinal, quando técnia Se quisermos evitar o espírito de Kulturlrrirlt romintica
Rouanct nos diz que o irracionalismo brasileiro "se apropriou que condena inapclavclmcntc o desenvolvimento cccnol6gjco,
(...) das três tcnd~cias mencionadas [anticolonialista, antielitis- e se temos de reconhecer que a cxpansáo dos meios de comu-
ta e antiautoritária], usando-as para seus próprios fins", não me nicação é algo inexorável no mundo moderno, então temos de
parece manifestação de sociologismo vulgar lembrar-lhe que o atualizar, parodiando, a lição de Benjamin: diante das tentativas
.. Um clitcuno1cmdlwuc JCria cambán ~. czn:amcncc cm maiot mc:Wda, par.a a DOSA
de "pscudocstctização" da miJúz a serviço da alienação e do em-
brutecimento, a rcspoSta do comunismo é politizar a cultura de
música popu1u: num pa& orwk a aha Utt:rarun qmK scmp~ cxprmou um esc:mo gr.w massas. Contudo, para que essa arriscada operação não se converta
de conscitnda nacional-popular. foi arnvá dcm música - de Nod Rosa a Cacuno
Vdoso r Otia> Bwrque - quegn.ndt pane da popubçk>enconuou insaummros pm cm populismo, ou mesmo cm c;ini$mo ("se o csrupro é inevitável,
forju o acu "bom tcruo". ou acja. a 1112 condncb aídca. relaxe e aproveite"). mas se mantenha gramscianamentc no nível
88 CAAl.os NtlJOH COUTINHO

de urna proposta nacional-popular abcna à alta cultura~ aos seus


O significado de Lima Barreto
insubstituíveis valores estéticos e ideológicos, as advcnências da em nossa literatura
Escola de Frankfun são indispensáveis. E temos de agradcc.cr a
Rouanct por nos tê-las recordado, com lucidez e coragem.

(1986)
A forruna crítica da obra de Lima Barreto é um dos fenô-
menos ma.is dcsconcenantcs da historiografia literária nacional.
Com efeito, desde o seu aparecimento até hoje, no momento cm
que transcorre o cinquentenário da morte do escritor, essa obra
vem despertando reações cctrcmamcntc contraditórias, que vão
do entusiasmo apaixonado de alguns à rejeição mais ou menos
categórica de muitos. Deve-se ainda observar que esse entusiasmo
se expressa frequentemente sob a forma de uma simpatia calorosa
mas pouco atenta ao essencial, enquanto a rejeição assume muitas
vezes o aspecto de um desprezo "aristocrático" pelas pretensas
debilidades "formais" do grande romancist2 popular.
O mod.o pelo qual se processa essa forruna, assim, evidencia
em primeiro lugar como o pensamento progTcssista brasileiro -
apesar dos avanços realizados - ainda está distante de uma correta
e adequada reavaliação crítica de nossa própria herança cultural.
Na verdade, mesmo da parte de seus admiradores, habitualmente
siru.ados à esquerda, a exata significação de Lima passou desperce-
bida; o autor de Triste fim de Policarpo ~rmna - uma das poucas
obras-primas com que conta o romance brasileiro - é elogiado
enquanto notável "cronista" do mundo urbano carioca, enquanto
corajoso defensor das camadas populares etc., mas sem que se
avalie o seu significado real no fortalecimento e aprofundamento
de uma tradição rcaJist2 autenticamente nacional-popular. Por
outro lado, tal como ocorre cm relação a Graciliano Ramos, não
são poucos os que insistem erroneamente no caráter "memorialistâ
da obra de Lima, na pretensa natureza biográfica dos seus roman-
ces; esse biografumo, ademais, cm mãos de analisw superficiais,
leva à afirmação de que o caráter profundamente crítico da obra
d e Lima decorreria dos "ressentimentos d e um derrotado", das
Cut.lUAA ( soomAOt NO BRASii. 91

"amarguras de um homem de cor", dos "desequillbrigs de um "via prussiana" e Gramsci designou como "revolução passiva". Em
alcoólatra" etc. Em suma, mesmo nos casos em que se ressalta vez das velhas forças e relações sociais serem extirpadas aaavés de
o valor documental de suas "'crônicas" ou o interesse humano amplos movimentos populares de massa, como é característico da
de suas "confissões", deixa-se de lado o que distingue Lima do "via francesa", a alteração social se fez aqui mediante conciliações
naturalismo populista que caracteriza grande parte da literatura entre o novo e o velho; ou seja, se consideramos o plano imediata-
brasileira "de esquerda". mcnc.e político, mediante um reformismo "pelo alto", que excluiu
Em segundo lugar, é inccressance observ:u como a intermitên- inceiramentc a participação populac. Como consequência desse
cia do seu prestigio e de sua influência pode ser cornada como claro "moddo" de evolução, difunde-se a imprcssáo de que a mudança
indício do quadro geral apresentado, cm cada época concreta, pela social asserndha-se a um "destino fual", inteiram.coe.e independen-
culrura brasileira. Assim, nos períodos cm que se destaca a função te da ação humana; e, como concrapartida desse fatalismo, ganha
crítico-social da arre, o papel que da desempenha na formação força cm outras áreas a suposição - igualmente equivocada - de
da autoconsciência da humanidade, Lima Barreto encontra o que aquda mudança resulta cáo somente da ação singular de "in-
devado posto que lhe é devido no quadro de nossa literatura. Ao divíduos excepcionais". No quadro desse profundo divórcio entre
contrário, nas époc2S cm que floresce uma visá.o fonnalisca ou povo e nação, toma-se assim particularmente diBcil o surgimento
esteticista da ane, desce sobre a obra do romancista um absoluto de uma autêntica consd~ncia democrático-popular.
silêncio, interrompido apenas pdas d esdenhosas afirmações de Esse fato, dcccno, tem profundas repercussões negativas
que de desconheceria os "inscrumentos específicos da escrita". Isso cambém na formação e no caráter da intdeccualidade brasileira.
não é de modo algum casual. Lima Barreto não pode ser "reinter- Desenvolveu-se entre da, praticamente desde os inícios do Bra-
pretado", ou seja, mutilado ou empobrecido a fim de servir aos sil independente, uma forte tendência a situar-se naquilo que
prop6sitos das correntes cstericiscas ou reacionárias no campo da Thomas Mano, referindo-se aos imdccruais alemães, chamou de
literatura; o inequívoco caráter realisca e democrático-popular d e "intimismo à sombra do poder"',. Dcscrcnccs da possibilidade de
sua obra se impõe com tal evidência, de modo tão absolutamente influir decisivamente sobre as mudanças sociais, que se processam
insofumávd, que os cultores brasileiros do esteticismo só podem sempre mediante acordos de cúpula entre as classes dominantes,
reagir diante dela com o silêncio ou a mistificação. os intdcctuais tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-
se num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é
1 respeitada precisamente na medida em que náo se põem em jogo
A exata determinação do significado de Lima Barreto na evo- as questões decisivas da vida social, as concretas relações sociais
lução da literatura brasileira requer, como condição preliminar, de poder. Essa sicuaçáo é agravada pelos craç.os característicos da
o estabelecimento - ainda que sumário - de algumas linhas de-
terminantes dessa evolução, náo apenas no específico campo dos 41
O camo apattec no mAlo manniano Grolllku t sofrimmt4 ~ RkhtlrrJ W<rpn. àwlo
problemas escéticos, mas igualmcnce no que se refere ao quadro e oomcmado por Gyõrgy 1..Wcáa, T1mtus M111m, Paris, Maspcro, 1967, p. 162 e"-
histórico-social em que da se processa. Este oooocho foi amplamente uriliudo por Lukáa cm suas atúliscs literárias (scmptt
O caminho do povo brasileiro para o progresso social - um em rd.:açio com o problc1112 d.a "via prussiana"), servindo-IM como Ao condutor na
oompreeru:lo ck mu.iros problemas d.a história literiria akmi e bú.ng;ara. No pn:sc:nrc
caminho lenco e irregular - ocorreu sempre no quadro de uma
cnaalo, valho-me dcssa.s idciatc RipO<I lukaaWias, na tcnllltiva de~ p~
conciliação com o acraso, seguindo aquilo que Lenin chamou de c:spedfkos d.a cultura bruilein..
92 CAALos NclJON COVTINHO Ôft.T\JAA f SOCICOAOt NO 8AASll. 93

formação social de nossa intelcctUalidadc: nwn pcríodD cm que complica.dos meios pelos quais a insatisfuçáo romântica inicial,
predominava urna radical separação entre as da.sses e cm que o expressa cm sua tentativa de desvincular-se do passado colonial,
trabalho permanecia sob o estigma da condição servil, os inte- terminou por desembocar numa forma cspcd6c:a daquilo que antes
lectuais - oriundos quase sempre da dassc m&iia - utilizav.un chamamos de "intimismo à sombra do poder... Na opinião de So-
a culnua como meio de diferenciação, de prestígio e elevação ~.o indianismo- voltado contra o demento colonial encarnado
social, acentuando assim o seu isolamento com relação à concreta pelo português - ocultava na verdade um desprezo pela realidade
realidade nacional-popular. Se a isso acrescentarmos o fato de que social concreta do então presente brasileiro, pelo demento popular
os intelectuais dependiam, para o seu sustento, quase sempre de encarnado na figura do escravo negro". Transformando o índio
uma integração no aparelho burocrático do Estado, teremos as no autêntico representante da nação brasileira, o indiarusmo
linhas histórico-soei.ais gerais da cspcd6ca modalidade brasileira do ressaltava o seu valor ideal - expresso atra\'6 das deformações de
"intimismo à sombra do poder". Do romantismo ao concretismo, um subjetivismo romântico - cm oposição à mesquinha e prosaica
sob formas aparentemente variadas, essa tendência caracterizou realidade da época; mas, ao mesmo tempo, cumpria uma função
uma corrente significativa e quase sempre dominante da intelec- social claramente cscapista. ao deixar na sombra as concradiçócs
tualidade brasileira. sociais concretas do Brasil de então. O culto romântico de um
Contudo, scri2 prova de esquematismo entender essa tendência índio mitificado (que vemos se expressar tão claramente na prosa
como manifestação de wna dara adesão imediatamente poUtico- de José de Alencar ou na lírica de Gonçalves Dias) situava-se
ideológica ao poder estabelecido, às formas mais rcaciorWi.as de perfeitamente no interior daquela esfera de suposca autonomia
dominação social, embora também essa adesão oco~ cm muitos tolerada pelo poder estabelecido. Por outro la.do, nos casos cm que
casos. O "intimismo à sombra do poder" combinou-se frequen- o pathos romântico voltava-se para os problemas do presente, de
temente com um inconformismo dcd.arado, com um mal~ servia claramente a finalidades de ocultamento das contradiçócs
subjetivamente sin.ccro diante da situação social dominante. O que essenciais da realidade (como ocorre nos romances de Joaquim
determina os limites do "intimismo", cm úláma instância, é o fato de Manuel de Macedo) ou à expressão quase exclusiva de problemas
que ele capitula diante dos preconceitos ideológicos gerados espon- privados e superficiais de uma subjetividade isolada (como cm
taneamente pela Via prussiana", ou seja, ao subjetivismo extremado grande pane da nossa lírica romântica). Em todos esses casos, o
que vê nos indivíduos cxc.cpcionais as únicas forças da história, por romantismo não escapa essencial.mente aos limites estreitos do
um lado, e, por outro, ao fatalismo pseudo-objetivo que amesquinha "intimismo à sombra do poder".
ou ~lvc o papel da ação humana na criação h.ist6rica. Facilmente Uma tendência similar rcvda-sc também cm nosso natura-
se perceberá que esses dois preconceitos, no plano estético, dão lismo, embora fosse pretensão explícita da corrente naturalista a
origem respectivamente ao romantismo e ao naturalismo. O fato ruptura com o monopólio romântico da época. ~ indiscutívd que
de que o "modelo" prussiano seja algo permanente na evolução o naturalismo europeu, cm seus melhores representantes, como
brasileira, por sua vez., explica a razão por que essas duas tendências Émilc Z.Ola, pane de uma recusa subjetiva da prosaica realidade
antirrcalistaS - sob formas estilísticas cxtrcmamcntc variadas - se do capitalismo. No caso brasileiro, essa recusa volta-se contra o
manifestam ao longo de toda a nossa história cultural.
i. Cf. N. W. Sodtt. Hist6rút J. lilmllVnt lmuikint. Rio de Janc:hv, Oviliiação Brasileira,
Tomemos inicialmente o caso do nosso romantismo cm sen- 19().4, p. 199-294, h<m como o 1C11 belo cnulo aobn: Jo.K de Alcnar, em /J., llnkpt
tido estrito. Nelson Wcrncck Sodré descreveu com acuidade os M r./mrWinM, Rio de janeiro. Civiliiação Brasileira, 1965, p. 41-59.
(Ull\IAA l SOCIEDADE NO BAAS!L 95

Segundo Reinado, no qual predomina um estagnado equilíbrio fruto das vicissitudes histórico-a>nc.retaS de nosso país, aparecem
de classes, com predomínio da pseudoaristocracia rural escravista. no naruralismo como produto de uma "fatalidade" ambiental
Mas, no plano objetivo da criação artística, o nacuralismo capi- e biológica, sobre a qual a ação efetiva dos homens não teria
tula diante do aspecto imediato dessa estagnação, ao considerar nenhum poder. Assim, no sentido ideológico mais profundo, o
a realidade que descrevia - a repressão e alienação das mais ín- episódio naruralista - tanto cm suas vcrsócs urbanas quanto nas
timas potencialidades humanas - como algo eterno e imutável. "senaniscas" - não reprcscnta uma ruptura essencial com a tradição
O predomínio fatalista do "ambiente" fctichizado sobre a ação romântica. f.ssa continuidade, ademais, expressa-se igualmente no
humana, que foi ainda mais incenso no naturalismo brasiJciro do nívd estético-formal, dado que - como já se observou repetidas
que cm sua matriz europeia, terminava por transformar o protesto veu.s - o nosso naruralismo herda não apenas a ênfase romintica
originário dos naturalistas em conformismo real, numa resignada no plano do estilo, mas igualmente a preferência temática (também
aceitação das misérias humanas que descreviam em seus romances. de origem romântica) pelo pitoresco e pelo exótico.
Essa tendência à resignação e ao imobilismo conformista aparca:, Em tais condições sociais, ou seja, nas condições de um país
em última instância, como uma capirulação da intelectualidade scmicolooial imerso na "via prussiana" de desenvolvimento, a cria-
diante do aspecto fatalista que a "via prussiana" emprestava ao ção de autênticas obras estéticas rcaliscas torna-se muito difkil. A
nosso desenvolvimento. O fenômeno é bastante evidente no mais quase completa estagnação social e a impossibilidade de captar no
importante (inclusive sob o aspecto estético) de nossos romances plano fcnomên.ico imediato ações humanas significativas (capazes
naturalist.as, O cortifo de Aluísio Azevedo. .Descrevendo as dcswna- de servir de objeto à 6guraç:áo artística) acentuam ainda mais a ten-
nas condições cm que vive a população pobre d o Rio de Janeiro, dência dos criadores a situar-se no plano do "intimismo à sombra
o romancista descreve ao mesmo tempo a paulatina capitulação do poder". O romantismo, por um lado, busca na evasáo subjeti-
de todos os personagens às pressões dissolutoras do "ambiente", à vista diante do prosaísmo dcsumaniz.antc da realidade concreta o
pretensa fatalidade de leis de hcrcd.itariedade entendidas de modo seu cspcclfico material poético, ao passo que o naruralismo, por
fetichista, com o que termina por amesquinhar e empobrecer outro, recusando o subjetivismo dessa eva.são, limita-se a dcsacver
radicalmente todas as figuras humanas que constrói. a estagnação e a considerá-la como algo "fatal" e imutável.
Do ponto de vista estético, deve-se observar que o nacuralismo Contudo, essa marcada oposição à arte que surge esponcanca-
brasileiro revdou-se absolutamente incapaz de criar autênticos mcntc da atrasada realidade brasileira apresenta influências diversas
tipos humanos que pudessem se inscrever na autoconsciência na- em cada gênero literário específico. No caso dos gêneros "objeti-
cional; essa iocapaci.dadc congênita do naruralismo já havia sid o vos", como a épica e o drama, que se centram na representação de
observada pelo marxista Paul Lafa.rgue, ao comparar os persona- ações humanas significativas, esse prosaísmo antiartístico derrota
gens de B·alzac com os de Zola, mas se acentua decisivamente no ou prejudica seriamente a maioria dos aniscas brasileiros. Mas na
Brasil, cm decorrência da pobreza humana objetiva e da escassa lírica, que se constrói a partir da explicitação de uma subjetividade
integração nacional que caracterizavam nossa sociedade semico- elevada à universalidade concreta, as tendências aludidas- tanto o
lonial. E, do ponto de vista ideológico geral, essa resignação final " intimismo à sombra do poder" quanto a pobreza humana obje-
implfcica na figuração naturalista do mundo, ainda que muicas tiva da realidade social - podem mais &.ci.lmcnte ser contornadas,
vezes involuntariamente, desembocava numa nova versão do " in- dando lugar a algumas expressivas "vitórias do realismo" (reside
timismo à sombra do poder": as contradições sociais e humanas, aqui a razão de dois fàtos até agora não muito bem explicados: a
96 CAAl.os NtlS()fj COUTINHO CULTVAA l SOCl( OAOf HO 8AASll. 97

superioridade estética da Ürica no seio da Üteram.ra brasileira; e, lndcpcndlncia, sem se comprometer com as formas "prussianas"
cm estreita relação com isso, a existência de uma expressiva conti- que caracterizaram efetivamente a rcaJiz.açáo da Independência e
nuidade evolutiva no caso desse gênero, continuidade incciramcncc que já dominavam soberanamente na época em que de viveu e
inexistente no plano do romance e, em particular, do drama). criou. A profunda verdade estética de Leonardo - o primeiro tipo
Essas "vitórw do realismo" ocorrem frequentemente já na lírica autenticamente nacional-popular na literatura brasileira - decorre
de inspiração romântica, cm que um intenso pathos subjcúvo de precisamente dessa cspccífica verdade do seu conteúdo histórico e
recusa e inconformismo diante do sufocante ambiente imposto humano. E isso acentua ainda mais o demento fortemente crítico
pela "via prussiana" encontra em muitos casos um elevado teor do realismo de Almeida: o seu romance figura concretamente, de
poético e humano; embora o realismo de Castro Alves apareça modo imediatamente estético, as alternativas democráticas do povo
muicas vezes mesclado com uma retórica romântica abstrata, a brasileiro, as potencialidades humanas que poderiam Aorcsccr caso
obra abolicionista do poeta baiano pode ser apontada como um fossem efetivamente rompidas as ataduras retrógradas e sufocantes
concreto exemplo de superação lírica dos limiccs impostos pdo impostas pela "via prussiana".
'intimismo" dominante. Bem mais complexo e completamente diverso (cm seus aspec-
Aqui nos interessam mais de perto - dadas as suas rdaçõcs com tos estéticos e ideo16gico-históricos) é o modo pdo qual Machado
a obra de Lima Ba.rrcto - as "vitóíW do realismo" que se expressam de Assis, cm sua obra da maturidade, logrou alcançar uma plena e
no plano específico da criação épico-narrativa. A primeira delas profunda vitória do realismo. Machado oáo se vale do anacronismo
aparece cm Mmi4rias de um sargmt.o de milíeúJ.s, de Manuel Antô- histórico de Almeida pa.ra escapar às dificuldades impostas pdo
nio de Almeida. Situando a ação de seu romance numa época cm prosaísmo de sua época; a matéria de seus romances é o tempo
que a mobilidade social parecia tornar-se uma possibilidade con- presente, a época do Segundo Rcinado 1 quando as devastações
creta, ou seja, na época imediatamente anterior à lndcpcndencia, humanas causadas pela "via prussiana" haviam alcançado um ponto
Almeida consegue emprestar a seus personagens - quase sempre cxt:rcmo. Na sufocante aanosfcra de uma falsa "segurança", parece
provenientes das camadas populares da época - wna sagacidade não haver mais lugar para nenhuma ação humana independente
prática e uma alta capacidade de iniciativa, o que faz de Mem6- e significativa, capaz de revelar cstcócamcntc o núcleo humano
rias o digno rcprcscnwne brasileiro das melhores tradições do dos homens. Graças à universalidade da sua concepção do mundo
romance picaresco universal. Mais concretamente: o romance de e do homem, po~m. Machado tomou-se o implacável critico
Almeida aproxima-se da forma aberta do grande realismo ingles do romanesco dessa falsa segurança, dessa insensata forma de vida
s«ulo 18, cm particular de Ficlding (Tom fones) e de Dcfoc (MoU baseada no "intimismo à sombra do poder"; com uma aguçada
FIAIUÍers), ou seja, de um tipo de romance que expressa uma época sensibilidade realista para a distinção entre a máscara superficial
na qual o capitalismo - liberando as potencialidades humanas e a ~ncia íntima dos homens, Machado vai paulatinamente
reprimidas pelo feudalismo e incentivando uma ampla mobilidade revelando - através da espantosa descoberta de Bentinho, das
social - ainda oáo revelara inteiramente sua face contraditória e amargas c:xperiblcias de Brás Cubas e de Rubião - como eram
repressora da individualidade. Se as MmuJrias conseguem alcançar hip6criras e precárias as bases daquela estabilidade obtida às cusras
um tio significativo nível de realismo, isso se deve, antes de mais do aprisionamento numa mesquinha vida privada. Derrubando
nada, ao fato de que Manuel Antônio de Almeida conservou-se com seu humor sereno mas explosivo as paredes que protegiam
fid às promessas de progresso anunciadas no período das lutas pela aquele "intimismo à sombra do poder", Machado foi capaz de
98 úw.os Nll.SON CoU'TINHO (ull\IAA E SOCIEDADE llO 8llASIL 99

emprestar às suas figuras a universalidade concreta requerida pela Uma continuidade desse tipo inexiste nos países que adotaram
autêntica configuração épica do mundo. A similaridade temática a "via prussianan ou a "revolução passiva" como forma de desen-
imediata com o naturalismo de tipo flaubcniano náo deve ocultar volvimento. Em primeiro lugar, isso decorre da radical separação
esta diferença essencial: Machado atinge o nyc;.lt;Q CS$Çflçfal dos entre os ·lDtClccnws
· e o povo-na~;- em segYJ'Id-º • da
__ r-. ......cn,,.r:>o
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problemas que aborda, enquanto o naru.ralismo limita-se à des- e da heterogeneidade sociais decorrentes da a~ncia de um sujeito
crjção de suas cascas superficiais. nacional-popular unitário, que intervenha continuadamente na
criação da história (gerando, entre outros, o fenômeno da divisão
2 do país cm "regiões" mais ou menos autônomas); e, finalmente,
f.s.ça rápida alusão às obras de Manud Antônio de Almeida e de como consequência, da a~ncia de tipos humanos exemplares que
Machado de Assis, os dois maiores exemplos de vitória do realismo se expressem através de ações independentes e significativas. Por
na arte narrativa brasileira do século 19, tem um objetivo preciso: isso, cm tais países, o realismo assume quase sempre um caráter
indicar o fato de que não existe cnttc os dois romancistas nenhu- c:xccpcional, não apenas no sentido estrito de não habirual, mas
ma continuidade orpruca, que os seus meios estilísticos e os seus também naqudc de fenômeno im:pctfvel. Assim, não se pode diz.cr
recursos ideológicos - embora se orientem cm ambos os casos para que Machado tenha recolhido a tradição de Manuel Antônio de
o realismo e para o hwruuüsmo - são basicamente diversos. Em Almeida, ou seja, que tenha adequado aos novos tempos - como
outras palavras: o modo pelo qual cada um ddes alcança a vitória Soljenitsin cm relação a Dostoievski, ou como Martin du Gard
do realismo aparece como um fenômeno singular e irrepedvd, ca- em relação a Balzac - os meios estilísticos e ideológicos utilizados
rente de qualquer exemplaridade. É indiscudvd que não existe, na pelo autor de Mn1Wrias. Na verdade, de recriou por sua própria
literatura universal, nenhum exemplo de continuidade homogênea, conta (a partir, quando muiro, de certas constelações estilísticas e
de c:xcmplaridadc absoluta; não ocorre jamais, por parte dos rca.listas ideológicas da literatura universal) instrumentos basicamente di-
expressivos, uma simples rcpccição das soluções estéticas e ideológícas versos dos de Almeida cm sua tentativa de alcançar o realismo.
encontradas pelos seus antecessores. Mas, nos países que seguiram É esta a razão essencial pela qual a obra de Machado, apesar
uma via não prussiana de desenvolvimento, nos quais a contínua da profunda influência imediata que c:xerccu, não foi capaz de
intervenção popular na criação da vida nacional :wegu.ra a formação invcncr a tendência dominante, ou seja, a tendência a cultivar
de um amálgarrul sócio-humano relativamente homogêneo e con- a arte no estéril terreno do "intimismo à sombra do poder".
tinuo, a litcrarura apresenta também uma marcada continuidade: Esse efeito libcrador tornou-se ainda mais problemático por
os novos escritores tomam como ponto de partida, ainda que para Machado, obrigado a lutar contra grandes obstáculos pessoais
superá-los dialeticamente, os problemas e as soluções encontrados e sociais, ter sido impelido a algumas conciliações exteriores,
por seus antecessores. Basta aqui lembrar, como exemplos, as linhas assumindo enquanto personalidade literária certas formas da-
que levam de Balzac a Rogcr Martin du Ga.rd. na litcrarura francesa, quele " intimismo à sombra do poder" que, cm seus romances e
ou de Pushkin a Gorki (ou, ainda, de Dostoievski a Soljcnitsin) na novelas, desmistificara impiedosamente (nesse sentido, o destino
literatura russa: apesar de grandes diversidades, os romancistas fran- pessoal de Machado aproxima~sc bastante das vicissitudes de
ceses e russos evidenciam wna marcante unidade e homogeneidade, outro humanista: Goethe.) Mais do que isso: a "serenidade" e
que decorre essencialmente da profunda ligação entre eles e a vida a distância irônica do estilo machadiano, instrumentos de sua
nacional-popular de seus respectivos países. crítica social mordaz e profunda, foram frequentemente confim-
100 Últl..oS NEISOH Ú>llT1NHO CUlTUllA 1 SOCJ(OAO[ NO BllASll 101

didas com desumanidade, com uma "impassibilitr Aaubertiana Não é casual que Lima, ao buscar um modelo para opor-se a
equivocadamence transposta de sua vida pessoal para o inrerior Machado, indicasse o nome de sete escritores estrangeiros" . Isso
d e sua obra criariva61 • Aquela excepcionalidade que caracteriza evidencia até que ponto ele estava consciente do seu isolamento,
o realismo brasileiro, aliada às c;onçiliaç~ exteriores e a ~ da singularidade de sua missão literária oo qy~rQ de wna lite-
característica idcol6gico-estilística de sua obra, impediram que ratura cm que o realismo era algo excepcional, ao passo que as
Machado de Assis cxe.rcesse uma influência posiàva imediata no tend~ncias continuas e permanentes orientavam-se decisivamente
sentido d e dissolver a continuidade das tendências "intimistas", para o escapismo e para o antirrealismo. Assim, embora objeti-
nas quais se situara (e continuava a situar-se) a maior parte da vamente injusto, o combate de Lima à herança machadiana fuz
intelectualidade brasüeira. parte de sua lura mais geral, histórica e esteticamente correta, por
Reside aqui a razão profunda dos ataques que Lima Barreto, um autêntico realismo crítico nacional-popular. Carecendo de
ao longo de sua vida. não cessou de dirigir a Machado de Assis. instrumentos teóricos adequados (que, cm sua época. ninguém
O ponto central desses ataques não seria, como ocorreria pouco possuía no Brasil}, de não foi capaz de perceber o f.ato de que a
ap6s entre os primeiros modernistas, o pretenso passadismo da Ün- obra de Machado representava objetivamente um movimento na
guagnn romanesca de Machado. Lima Barreto - empenhado num mesma direção.
combate desapiedado e quase solirário contra todas as manifesta- Todavia, além dessa justificativa geral, a compreensão por
ções do "incimismo à sombra do poder", contra todas as focmas parte de Lima Barreto do seu anragonismo cm relação a Machado
de esteticismo aristocratizante - escolheria um outro alvo: o que manifesta ainda wn outro elemento correto. Embora de modo
lhe desagrada. no autor de Brds Cubas, é precisamente a aparente confuso, Lima captou um traço essencial da diferença estilística
f.Jca de humanidade, o suposto abandono das especificas funções (determinada cm última insdncia por questões de conteúdo)
sociais e humanistas da literatura. Numa carta a Auscrcgésüo de entre sua própria práxis literária e aquela de Machado. Os efeitos
Ataíde, escreveu Lima: da "via prussiana" sobre o desenvolvimento literário brasileiro
Gostei que o senhor me scpar.usc de Madudo de Assis. Não lhe negando os manifestavam-se concretamente: a criação de um novo realismo,
m~ritos de grande escritor, sempre achd no Machado muita secura de alma, adequado aos novos tempos, não podia se fazer a partir de Ma-
muíca falt:t de simpatia hununa, falta de cntuSiasmos generosos, uma porção chado, mas implicava a necessidade de um rompimento com a sua
de scsuos pueris. Jamais o imitei e jamais me inspicou. Que me falem de Mau- herança. Mais prcci.samencc: o desenvolvimento da herança realista
pa.ssam, de Dickco.s, de Swift, de Balzac, de Daudcr - vi lá, mas Machado, de Machado requeria, paradoxalmente, o completo abandono
nunca! At~ cm Turguenicff, cm Tolstoi, podiam ir buscar os meus modelos;
mas, cm Machado, não!'"
de sua temática, de seu estilo e de sua visão do mundo. A nova
realidade impunha umestiJo menos sereno, menos "equüibrado",
no qual as preocupações "artísticas" não mais podiam ocupar o
lugar dominante. Lima extrai, ainda que sem plena clareza teó-
" A crl'tia d4ses cqulvocos podescr cnco.nuada cm Aruojildo Pcrcic:a, MMbaJ,, tk A.siü,
Rio de Janeiro, São José, 19.59, pan:iaila.rmcme p. 89-112. Mas cmamemc a mais IU· rica, as conclusões desse faro, capacitando-se assim - como diria
d da "leitura" de Machado de Assis j~ prodU'Zida flO Brasil ~ :aquch contida cm Robc:no
Schwarz. h wnat/ti, 11J IHu.tw, São Paulo. Dtw adadcr, l 9n, e lá.. Um maar "" Na lltcrarun universal. Um2 $CDW-SC pankubrmcntc ligado aos ru.uos. Assim, cm
pmfrri4 J.. capilltÍimw, São Paulo, O\W Cidades, 1990. cana. a um escritor csm:antc, escri~ cm 19/08/1919, dizia de: "Leia sempre nmos:
" Carta a Ausnql;silo de Ataídc, 19/0111921, in; Uma Barreto, Ccrmpontlhrci4, São Oosiolm.ki, Tolstvi, TW'gllCOidf. um pol!al de Gorki; mas, sobrmido o Oo.woimkl
Paulo, s~ilicnsc. 1956. tomo a. p. 256-257. da O- "41 -1101 e do Crimu Outito.(ibúl., p. 17 1).
102 CAAl.os NWOH COUTINHO Cul TUltA E SOOEDADE MO B~l 103

Francisco de Assis Barbosa - a "inaugurar revolucionariamente a não mais alcança o nfvel es~tico e a verdade histórico-humana de
fase do romance moderno no Brasil"'°. seus três romances citados.
A prática demonsuari2, ademais, que a conservação do moddo Ainda mais significativo, todavia, parece ser o completo csva-
machadiano para além das condições concretas que lhe deram úamcnto que o estilo de Machado- rompido o equilíbrio dialético
origem deveria conduzir paulatina.mente ao seu esvaziamento de seus vários componentes (equilíbrio assegurado pela especifi-
maneirista. Os três grandes romances machadianos, precisa- cidade do conteúdo que expressava) - haveria de sofrer cm mãos
mente aqudes que inscrevem o seu nome no cume da literatura dos seus inúmeros imitadores da época pamasiana. Temos aqui
nacional (Brds Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro), têm wna comprovação negativa, mas altamente expressiva, daquela
como objeto imediato de sua figuração a época da estabilização descontinuidade a que aludimos: para continuar efetivamente o
imperial, embora tenham sido publicados no período que vai da realismo de Machado, era preciso - como Lima o intuiu - romper
desintegração do Segundo Reinado à República pós-florianista. decisivamente com a sua herança imediata. Com efeito, na obra
Entretanto, Machado já percebe o modo pelo qual os elementos dos epfgonos, o "distanciamento" machadiano será acentuado, mas
capitalistas modernos penetram no velho mundo escravocrata; e com inteiro abandono da cortante crítica social que de expressava
indica como essa penetração, longe de representar urna ampliação origmariamente; a "serenidade" ganha a fisionomia da pose aristo-
dos horiz.ontes humanos, contribui para reforçar - na medida cm crática, ao ser esvaziada da universalldadc histórico-humana que
que se processa nos quadros da "via prussiana" - a miséria humana assumia em Machado; e, finalmente, a "artísticidade" converte-se
da vida social brasileira. Desse modo, a exuaordinária universa- num objetivo em si, numa nova versão do " inómismo à sombra
lldade de sua obra é paradoxalmente beneficiada pelo aparente d o poder" , não mais aparecendo como o resultado estiliscico (não
desc.onhccimento das agitações ideológicas e poüticas republicanas artificialmente buscado) de urna profunda verdade do conteúdo
que se iniciariam já a partir dos anos de 1870; ao abandonar essas humano e ideal. Tudo isso desembocaria na concepção de Afrânio
agitações superficiais (que muito prometiam, mas que cumpriram Peixoto da literatura como o "sorriso da sociedade", concepção
tão pouco) em troca da representação da continuidade da "via contra a qual Lima - com lucidez crítica exemplar - combateria
prussiana", Machado capeou u m aaço essencial e duradouro da implacavelmente.
evolução histórica brasileira. Contudo, quando o ingresso do Reagindo contra a herança imediata de Machado, Lima Bar-
Brasil na era imperialista (que coincide com o advento da Repú- reto expressa a sua categórica rejeição ao "intimismo" e, ao mes-
blica) aguça intensamente as contradições, levando o "moddo mo tempo, lança as bases de sua luta - solitária na época - pela
prussiano" a uma nova fase, o equilíbrio assegurado pela ironia e retomada da linha realista no que ela tinha de essencial. Como
pelo distanciamento com os quais Machado forjara o seu estilo poucos críticos prof1SSionais de seu tempo, Lima soube avaliar
da maturidade deveria romper-se. Isso já se revda na própria obra corretamente a pobreza estética e humana dessas novas versões,
machadiana; com efeito, é inegável que em seus últimos romances, cada vez mais envilecidas, do "intimismo à sombra do poder".
particularmente cm Esaú e jacó, no qual pretende captar mais de Diz-nos de, no GtmZ11ga tk Sd:
perto as agitações republicanas dos novos tempos, o grande realista A nossa emotivid2de literâria s6 se interessa pelos populares do sertão unica·
mente porque sáo pitorcsoos e talvez não se possa vcriflc:u a verdade de suas
criações. No ITWs, é uma continuação do exame de portugu~ uma m6rica a
fruicisco de A.ssís &sbos:l. "PreAcio" 1 Ll1n2 Barreto. ~ do eJtrllJllq bAíllJ
CtmitJNI, SSo Paulo, Bruilicnse, 1970. p. 14. se d~nvolvcr por este rema sempre o mesmo: Dona~Oulc:C, moça de Botafogo
104 ~os NCLSOfl ColmHHO

cm Petrópolis, que se casa oom o Doutor Frederico. O oomcodador seu paí


nio quer, porque o tal Frederico, apcs:ar de dou1or, nio 1cm emprego. Duke já atingia no pia.no muodiaJ a fase imperialista) sem ter resolvido
vai à superior.a do ool4ão das innis. F.ssa CfCr'CVC à mulher do ministro, antiga os impasses históricos decorrentes da "via prussiana". Com isso,
aluna do ool4io, que arranja um emprego pano rapaz- Esci. :1C1bada a história dissolver-se-iam inteiramente os apa.rcotcs traços de "estabilidade"
(...). Ená ai um grande dr.ama de amor cm 005SaS leiras, e o cerna do KU cido da qx>ca imperial, ainda hoje louvados pdos hiscoriadorcs reacio-
liccririo. Quando tu 1ccls, na 1ua 1erra, um Dostoievski, uma George Elliot, um
nários, que os assumem como fetiches (basca pcruar no mito da
Tolstoi - gig:ances desses, cm que a força da visão, o ilimitado da criaçáo, nio
cedem passo à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dot daqucbs "democracia coroada"). Com a República, iniciava-se uma época
gentes donde às vezes não vieram - quando?1' aguda de contradições soda.is tomadas evidentes; o fundo regime
de trabalho escravo, com o conscqu.cotc surgimento de wna classe
É evidente que Lima propõe a cri2çáo de uma literatura desse de crabalhadorcs assalaria.dos. fula i.ogres.ur um novo protagonista
tipo {cujos modelos, sintomaticamente, vai mais uma vez buscar na história brasileira, o que, pela primeira vez, fundava a possi-
na literatura universal), ou seja, de uma literatura que conjugue bilidade objetiva de se encontrar uma aJtcmativa concreta para a
indissoluvelmente a grandeza estética com wn profundo espfriro "via prussiana". A tentativa "republicana" de prosseguir nessa via
popular e democrático, com uma aberta tomada de posição cm antidemocrática já não podia mais se processar no quadro de uma
favor dos "humilhados e ofendidos". Ao contrário da maioria aparente "estabilidade social"; as formas burocrático-ditatoriais da
dos seus contcmporincos, ele esd conscienrc da necessidade de "via prussiana" deveriam substituir as modalidades "paternalistas"
encontrar, para a adequada representação dos novos tempos, um próprias do Segundo Império. Do seu ingulo de visão profun-
estilo diverso daquele que caracteriza a obra machadiana. damente nacionaJ-popular, alheio a quaJqucr conciliação com o
Com efeito, o início da Primeira República - na medida cm "moddo prussiano", Lima Barreto captaria correta.mente a ~ncia
que dera seguimento à "via prussiana", promovendo aperui.s um classista do novo regime;
reagrupamento de forças no seio da oligarquia dominante - frus- Sem ser monarquísta, não amo a república (... ). O n0$$0 rcglmen atual l da
trara decisivamente as esperanças de renovação democrática vividas m:aU bruw plutoc:racia, l da m:aU intensa adubçio ~ dcmentos estranhos,
pelos melhores representantes da geração de 1870 (como vimos, já aos capitalistas inicmaciooa.is, aos agcn1es de ~os. aos charbtks úntos
na época, Machado tivera a lucidez de acolher com ceticismo essas com uma sabedoria de pacoúlh.a71•
esperanças e ilusões). A simples mudança de regime político, como O aguçamento dessas contradições rcftctc-se também na lite-
Lima semprc ressaltou, cm nada aJccrara os vícios fundamentais da rarura brasileira. A sutil ironia machadiana deve ser substirulda
formação hisró rica brasileira. Mas isso não significa, de nenhum pela amarga sátira contra os poderosos, uma sátira que não hesite
modo, que o período desconheça a irrupção de fuos novos. Ao cm converter-se cm impiedoso sarcasmo. O "distanciamento", o
contrário: coincide com a implantação da República ranto o peculiar modo encontrado por Machado para se manter fid ao
aguçamento da dcpcndblcia brasileira ao capital intcmacionaJ, humano numa época cm que as camadas populares permaneciam
inclusive através da indústria nasccnrc, quanto o tumultuado esmagadas e imobilizadas pelo regime do trabalho escravo, tem
surgimento das primeiras lucas de classe entre o proletariado e a de se converter agora numa clara tomada de posição cm favor
oligarquia dominante. O país ingressava na era capitalista (que das classes sociais que apontavam para um caminho novo, cm
favor daqueles "humilhados e ofendidos" que já começavam a se
11
Unu Barmo. Vi.ú 1 tMrtt Jt M. j . ~llUI" i/.t Si, Sio P.lulo, Bruilierue, 1956, p.
71
133'134. Unu Barreto, Ctti.w J, Rtitu> # /111'1Jbo11, S1o Paulo, Brasilkruc, 1956. p. 8-0.
106 CAAlos NfUOH CounHltO CulfuttA E SOCIEDAOt NO BllASIL 107

anunciar como sujeitos políticos. Não é casu.aJ que Llma Barreto A determinação dos problemas ideológicos e históricos vividos
seja contemporâneo do surgimento das primeiras man.ifcstaçócs do por Lima Barreto não é de modo algum tardà cxcerna à análise
proletariado organizado cm nosso país; somente esse surgimento imanente de sua obra literária; com efeito, é a panir dessa recusa
podia possibilitar ao cscriror aquele "ponto de Arquimedes" situado global do "modelo prussiano" - tanto cm suas ve.rsóes tradicionais
fora da "via prussiana•, capaz de revelar-lhe a integralidade das quanto "modernizadoras" - que Lima figura e critica, no plano
contradições sociais e humanas decorrentes dessa via. espcc.ificamcn te estético, a realidade social de seu tempo. Em sua
Em sua tomada de posição diante da realidade social, Lima obra, ele não se limita a apontar algumas "manias" sociais, capaz.cs
Barrcro nio se situaria apenas, como muitos dos seus contcmpo- de correção por meio de reformas no interior do sistema, como
r.\ncos progrcssisras, ao lado dos '"industrialistas" modcmizadorcs frequentemente ocorre no naturalismo brasileiro {basta mencionar
contra o passadismo "agrarisca". Ele não se limitou a denunciar a aqui, como exemplo, o interessante romance O Ateneu, de Raul
aliança entre a "moderna" República nascente e o imperialismo; Pompéia). A sua demolidora denúncia da imprensa, da burocracia,
enxergou também a tcndencia de "agrarisw" e "industrialistas" das formas políticas da época republicana, inclusive do militarismo
a se fundirem numa nova eoalizão, continuadora da tradicional Aorianista, são momentos dessa crítica histórico-universal, feita
"via prussiana", ou seja, uma coalizáo que continuaria a excluir cm nome de um novo caminho alternativo para a evolução brasi-
qualquer autmtica panicipaçáo popular (essa nova coalizio, após leira. É assim possível que ele tenha, algumas vcus, tratado com
inúmeros atritos entre os seus componentes, chegaria ao poder demasiado "rigor" certas manifestações culturais ou políticas que,
com a chamada Revolução de 1930). Dcccno, não pretendemos vistas à luz das carcfu imttliacasdo período (consolidação da forma
afirmar que Lima tenha compreendido e assimilado uma visão republicana de governo), desempenhavam um papel rdativamentc
ma.rxis~ ou mc:smo coerentemente socialista do mundo; nem positivo. Talvez seja o caso do jornal que escolheu para combater
tampouco que, cm sua simpatia pelas classes populares, tivesse (no /salas Caminha) e, mais amplamente, do movimento Aorianista
alcançado uma clara consciência do papel específico que nelas (contra o qual se volta parti.c ularmcnte no Policarpo Quaremuz).
desempenhava o proletariado industrial. Não apenas isso seria Mas essa aparente "injustiça", que podia ser problemática para
praticamente impossível cm seu tempo, como - o que é mais um dirigente político, não o prejudica absolutamente enquanto
importante - não era de modo algum condição necessária para o romancista: ao contrário, faz dele não um interessante "cronisca"
êxito realista de sua obra. Esse b:ito podia ser alcançado através da época ou da cidade, não um panAccá.rio de valor relativo e
de seu anarquismo mais ou menos sentimental, de seu bizarro transitório, mas um dos maiores reprcscntanccs da Unha humanista
"maximalismo", pois eles expressavam a íntima adesão de Lima e dcmoccit.ico-popular na litcrarura brasileira.
a uma perspectiva nacional-popular decisivamente contrária a
qualquer conciliação com a "via prussiana"'>. vol12 ao cam: "Todo o mal csú no c:apil2llsmo, na insemibilidack moal ela burgucsb.
na su:a ganincb sem ÍTclo ck esplcíe a.lgunu. quc s6 ~ n:a vi<h dinheiro. dlnhciro,
mon:a quem morrer, sofr:a quem soficr (...). Cabe bem - homens de coraçio clestjar
De qualqUC1' modo, UJM nunca hcsirou cm apontat no capitalismo :a origem ck 1od0f e apelar par:a um:a convu.Uão violenta que destrone e disaolv:a ck vez csa J«inlu ittkris
OI n~ males e de defender a rtYOluçio doe "muimallaw" (ou seja, doc bokhcvi· de poUticos, comcrcianca, lndusui:W, pre>Wruw, jonW!sw .,/hoe. que nos saqueiam,
qucs). desejando-a wn~m para o Bruil. Num :artigo CICli10 cm nulo ck 1918, de diz: noc csf:aimaro, cmbolc:adoc auás clas leis rq>Ublic:anas. 2 preciso, pois Mo há outro meio
"Nós, OI brasileiros, dcYemos iniciar a nossa Rnotuçio Social (•••) Confesso que foi a de c:xrcrminá-la (lbú/., p. 163-164). Sobre a idcolop de Uma. d. o bdo cns:aio ck
rcvoluçio rum que me irupirou rudo issio. (•••) A &ct do mundo mudou. Ave RW:sbJ Ntn>jildo Padn. "Po6içóa politicas de Uma Sumo", indWdo cm CriJfa ÍllJ/ll,..
(...)"(Uma Surtto, &t-t.u. Sio Paulo, Braslliauc, 1956. p. 96). Em março de 1919. Río de janeiro, Qvilizaçio Bruilcia. 1963, p. 3+5'1.
108 CAAl.os Nu.SOM CD\nlNHO (Ull'UllA E SOCIEOAOf NO llAAs.L 109

3 São &nuzráo, Angústia e V'uias Secas, cada um a seu modo, recriam


Entretanto, apesar de intuir corretamente os problemas esté- diferentes estruturas romanescas, surgidas na literatura universal
ticos e ideológicos da literatura da nova época, Lima nem sempre cm épocas históricas bastante diversasn. Uma mesma defasagem,
conseguiu resolver adcquadamcncc, cm sua práxis criativa, as tare- mu14#1 mlltllndi.s, ocorre entre a etapa romàntico-juvcnU de Ma-
fas a que se propusera. Seria uma explicação equivocada - diante chado e o seu período da maturidade. Dependendo apenas dos
do auror de Trisu fim de Poli.carpo Quaresma, uma das maiores próprios rccwsos para a conquisra do amadurecimento humano e
realizações estéticas da literatura brasileira - falar cm "falta de expressivo, o u seja, carentes de uma s6lida tradição onde se apoiar,
talento"'•. As causas dos desníveis internos que podemos indicar os realistas brasileiros - até mesmo os de maior grandeza - estão
na produção narrativa do romancista devem ser buscadas num sempre sujeitos a esses desníveis e fraturas .
nívd mais profundo, ou seja, naquela ausência de continuidade Nesse sentido, a irregular trajetória de Lima não é um F.ito
subStancial na evolução do realismo brasileiro, ausência que impõe excepcional. O pleno aroadurcdmcnto obtido no Policarpo
uma linha fragmcnclria e cheia de altos e baixos. Essa descontinui- Quaresma representa um cume a dividir uma interessante e
dade obriga o escritor a recomeçar sempre "do início", a descobrir significativa via ascenden te (Gonuga de Sá, !Sllfas Caminha)
por sua própria conta os meios estético-ideológicos adequados à de um período fi nal extremamente problemático (Numa e a
reprodução da realidade; e, mais que isso, eb se insinua froqucn- ninfa, Clara dos Anjos}. Não estou negando, decerto, que o
tcmcntc no próprio interior da produção de cada escritor tornado extremo isolamento de Lima, aliado à forma autodissolvente (o
isoladamente. Assim, forçando um pouco a mão, poderíamos aJcoolismo) que encontrou para reagir à hostilidade crescente do
dizer que "recomeçar do início" não vale apenas para cada escritor meio, influíram de algum modo sobre essas fraturas internas,
$ingula.r, 111as ~rÇ m~mo ~º"da, o bra singular (ou, pelo menos, sobretudo na medida cm que contribuíram para diminuir-lhe a
para cada etapa singular na produção do escritor, como é o caso força criativa nos últimos anos de vida. O que estou afirmando é
em Machado de Assis). Em outro local, analisando a obra de que essa problemática pessoal é em grande pane o efeito, na vida
Graciliano, momei não apenas o evidente desnível cxisrencc entre do escritor, daquelas tendências histórico-sociais hostis à arte,
Caah e os demais romances, mas indiquei também o futo de que características da sociedade brasileira. Ou, cm outras palavras:
que tanto a problemática pessoal do escritor quanto os desníveis
" Em KU péssimo ensaio sobre Lima Barrcco, Eugâtio GomC$ (.AJf'«'os Jo rtm111n« '-ri· da sua obra, sem deixarem de se influenciar reciprocamente,
kiro, Salv:ador, Progresso. 1958, p. l 5}-173) olo se Umir.a a defender essa ase insusc.cn· devem ser rdacionadas enquanto momentos parciais à totalidade
clvd. Afirma ainda que Lima sctit conscicoce ~"'2 "&.lmde calcnto•, rcpn:scntando
concreta da vida social e cultural brasileira. Por outro lado, de-
na ridkub figura de Roe - um cronisu licerário que, no ÚitÍIU Orminh.z, 1e suicida
ao oonvroccr·se de SU2S debilidades cmdvas - a própria problenútic:a pessoal. Mas o vemos recordar que, embora a plena realização estética de Lima
absurdo das análises de Eugbüo Gomes mo pua aé nas 20 páginas do seu ensaio, nem só tivesse ocorrido no PolicArpo, isso não anula a importância
sequer uma ~ t mCflCionado o Políaupo Qwms...... enquanto o único ccxco de Uma e a significação - inclusive estéticas - dos demais romances do
qoc:, ru opiniJo do c:r(rico, aprc:sa11.ari2 indldos de calemo Hccririo seria... o Gonus11
úStl. N.ío mcpueccca.ru;alque um pl'C(cnso "machadiaoo", oomoc~ Eug1!nioGomC$, escritor carioca. Ainda que tenhamos a intenção de concentrar
prckrislC o Gonus11, nem mm pouco que, a partir de suas conccpç6es cstédca.s "intimi$- nossa análise no Policarpo, aludiremos aqui brevemente às demais
w•. deixasse: inrciramcntt de lado o Polk.upo. Esse ensaio pode sa comado assim como tentativas romanescas de Lima.
um daro sintoma da incapocicbdc dos aitic:os conxrvadorcs, mesmo quando sensíveis e
Inteligentes (como ~o aso de Eugmio Gomes), de comprttndcrcm e 2r:ciwem 2obn
de Llnu Batrcto no que ela tem de cspcc:ffico. Cf. "Gr:tciliano Ramos". i11fiw, p. 141-194.
11 O C-.OS NQSO!j CoonHHo (IJUUAA E SOCIEDADE NO B IWll 111

Gonzaga de Sá- publicado em 1919, mas concluído ao que de Janeiro - não consegue fornecer um quadro épico org2nico e
rudo indica em 1906-1907 - pode ser considerado o primeiro adequado. Assim, enquanto os epígonos de Machado simulavam
romance de nosso autor. Além dos dados documenca.is de que a "se.rcnidade" na medida em que criavam pscudoaçõcs em tomo
dispomos hoje, contribui Pª"'ª c::scabclcccr essa cronologia a cons-- dos problemas "petropoUtanos" de dona Dulce e do doutor Fre-
tacação de uma contradição interna que vemos na obra: com derico, Lima - que evita completamente essa mistificação, mas
efeito, embora já assuma no conteúdo as tarefas "participantes" que permanece influenciado pelo mito da "se.rcnidade" cstillitica
da literatura da nova época, Goruaga de Sá se apresenta ainda - termina por alcançar essa "scrcn.idadc" ao preço de abandonar
sob a decisiva influência dos preconceitos estéticos impostos pelo qualquer tentativa de figuração romanesca. O novo conteúdo - o
epigonismo machadiano, ou seja, pela ideia equivocada de que a marcado protesto humanista contra a burocracia, contra as classes
serenidade e o distanciamento são a única forma concreta (inde- dominantes etc. - não encontra ainda uma forma adequada.
pendentemente do conteúdo) para o romance, ou mesmo para t curioso constatar que Lima, embora reconhecesse explicita-
a ane em geral. Assim, de modo certamente involuntário, Lima mente o caráter "desequilibrado" do Isaías Caminha, escrito quase
pagou nesse primeiro romance um pesado tributo ao "culto ma- simultaneamente ao Gom:aga, tenha preferido publicá-lo antes
cbadiano" então em vigor, embora já o denunciasse - até mesmo que este último. Numa cana que escreveu a Gonzaga Duque, em
no interior de Gonzaga de Sá - como um profundo descaminho. 7 de fevereiro de 1909, explicando as razões dessa prcferencia,
Temos aqui um caso, para parodiarmos o famoso conceito de ele põe cm evidencia alguns problemas estéticos essenciais de sua
Engels e de Lulclcs, de "derrota do realismo". produção inicial:
Pode-se observar, ao longo de Gonzaga de Sá. a completa inca-
Era um tanto cerebrino, o GonrAga t:k SJ, muito calmo e s;,kne, pouco aces-
pacidade do autor para criar uma "fábula" romanesca, para dispor a sível, poru.nco. Mindcí (para publiação] :u &cortÍJiç6t1 tio scri114o l!llúu
narrativa de tal modo que o protagonista pudesse explicitar na ação Caminha, um l.iVTo tinigual, proporiralmmu mal feito, hrll111/ por wus, 1'141
e através da açáf> os conteúdos humanos e ideológicos (profunda- sincn-o smtpre (.•.). [Ele] tenciona di1.Cf aquilo que os simples 12ros não d.i-
mente críticos) de sua personalidade. Dcccno, Lima já evidencia uro, de modo a csdartd-los melhor, cbr-lhes imporclncia, cm vinudc do
ter percebido na bizarrice- na cxuavagância do caráter - um traço poder da forma literária, agid-los, por~ s4tJ imporlllntespil11l o MSSO tÚstino.
Querendo fazer isso e fazer compreender aos outros que há importàn.cia na
típico do peculiar modo brasileiro de reagir ao ambiente mesqui-
questão q uc eles trlltam com canta ligclrcu, n1 lllÍO me afastd átz lilnlttMra,
nho imposto pela sociedade (essa problemática, como veremos, irá 'º".forme fa} 'º"ctbo (...)".
ocupar o centro do Policarpo). Mas, apesar disso, ainda se revela
incapaz de estruturar wn mundo concreto no qual essa bizarrice Vemos aqui, como sempre, uma correta. intuição de Lima:
possa se explicitar de modo autenticamente romanesco. Para obter o /salas Caminha, ainda que "desigual", correspondia melhor
a aparência de "serenidade"', para encontrar um estilo "equilibrado", não apenas à própria concepção que o autor tinha das tarefas da
Lima deve renunciar inteiramente à figuração de ações concretas e literatura ("agitar questões importantes para o nosso destino"),
à cstrucuraçáo efetivamente narrativa de um enredo. Ao contrário mas também, e sobretudo, às necessidades objetivas da arte e da
dos romances de Machado, em que essa ação e esse enredo ocupam sociedade brasileiras da época. Em suma: o Gonzaga pode ser
o posto central, no Goruaga tk Sd vemos uma coleção fragmentária considerado, apesar da novidade do seu conteúdo, como um
de comentários do autor e de "opiniões" do personagem, aos quais
o "cenário" exterior - a calorosa e tema descrição da cidade do Rio Llnu Barrtto, CormpoNlhrriA, m.. como 1, p. 169-170. Os grifos são meus.
112 C-OS Nu.soH CouTNto C u lTUllA l S()(IEDADl NO B1uun 113

prolongamento epigonal da velha concepção "calma" e '!oolcne" educando o protagonista - no bem e no mal - a ver o mundo sem
do oficio literário; o Isaías, ao contrário, marca o início de uma ilusões. O romancista lança as bases de um importante "romance
nova etapa - cspecificameotc moderna - do realismo brasileiro e, de fonnação" brasileiro.
graças a isso, já expressa o concreto significado de Lima Barreto Nessa sua trajetória de desilusões, o jovem lsa.ías termina por
no seio de nossa evolução literária. ingressar, como condnuo, num dos principais jornais da grande
As & coráafóes Jq escrivão Isaías Caminha podem ser conside- cidade. Trata-se de uma cxccJcote oporrunidade para Lima apre-
radas como tentativa de criar um romance brasikiro de "ilusões sentar, com um tom de devastador sarcasmo, o quadro humano
perdidas". Com efeito, Lima propõe-se figurar nele o modo pelo e social da imprensa capit.alista moderna. Não parece casual que
qual a mesquinha sociedade da época destrói paulatinamente os Lima tenha escolhido, como fonte de inspiração para essa apre-
projetos de realização humana e de elevação JC>Cial do protagonista. sentação, precisamente o mais moderno jornal brasileiro da época,
Como Lucien de Rubemp~. o personagem de Balzac. lsa.ías é um no qual os traços capita.listas se evidenciavam com maior destaque
moço pobre provinciano que - confiance nas promessas demo- não apenas no estrito sentido técnico-jomalistico, mas também
cráticas da época republicana e na mobilidade social prometida no que se refere à sua posição política "modcmizadora". Mas o
pela asccnsáo do capit.alismo - d.irigc-se pa.ra a metrópole na ten- jornal tomado e.orno modelo serve-lhe apenas de pretexto para
tativa de expandir sua personalidade, de fruir adequadamente as a criação de um aut~tico símbolo realista.: ao contrário do que
potencialidades pcswais que c:xpcrimenta subjetiva.mente. E, tal afirma a maioria dos críticos, essa escolha não prcj udic.ou - antes
como cm llwóes perdidas, as d esilusões se sucedem: não apenas a f.avorcccu - a universalidade conacta, o nívd de particularidade
"brilhante" sociedade metr0politana vai revelando paulatinamente realista com a qual ele figurou o fenômeno humano e social da
sua essencial vacuidade interna, sua mesquinhez objetiva, como imprensa moderna. Assim, Lima é capaz de perceber e evidenciar
também o mito democratizante da elevação social evidencia csteticamcnce alguns d os cra.ços mais caraterísticos da imprensa
dolorosamcnce seu caráter meramente ideológico. E o ro mance capitalista, tais como a intencional manipulaçáo da opinião pública
de Lima introduz um elemento especificamente brasikiro nessa a sc.rviço de mesquinhos interesses, a corrupção e a prostituição de
problemática universal das "ilusões perdidas": as vicissitudes de grande pane dos jornalistas etc. Adernais, apesar do modo carica-
Isaías comprovam que as afirmações "oficiais" sobre a igualdade rural (..misto de suíno e símio" etc.) através do qual representa a
social dos negros brasileiros, difundidas na época republicana, maior pane dos integrantes do jornal, não são poucas as autênticas
pós-abolicionista, escondem os mais desumanos precon ceitos figuras humanas, dcvadas à condição de tipos realistas, que ele
raciais. O jovem provinciano mulato, apesar da superioridade que nos apresenta na segunda pane da obra.
apresenta diante dos bem-nascidos que encontra, apesar da sua Gosta.riamos de recordar aqui o diretor do jornal, Ricardo Lo-
sagacidade e inteligência, deve permanecer sempre numa posição bcrant, no qual se misturam sugestivamente traços de gcne~dade
subalterna, sujeito a constantes humilhações. Com a habilidade paternalista com uma constante tentativa de manipular dcspotica-
compositiva de um grande romancista. Lima Barreto - na pá- mcntc os seus empregados. Oscilação bastante c:x;prcssiva do caráter
mcira pane dessa obra - constrói um rico e articulado mundo contraditó rio, simultaocamcnre progressista e reacionário (ou,
romanesco, colocando seu personagem cm contato com alguns numa palavra, "prussiano"), da burguesia brasileira (nesse sentido,
tipos significativos do ambiente social metropolitano, os quais, Lobcrant é um precursor de Paulo Honório, o protagonista de SátJ
na medida cm que expressam alternativas humanas concretas, váo &rnarrio de Graciliano Ramos). Podemos também lembrar a 6gura
114 C.Wos Nu.so11 COllTillHO CulTURA E SOCIEDADE NO BRASll 115

e o destino de Aoc, wn mcdlocrc colunist:a literário - inrcinmcntc dos bastidores do jornal Por um lado, a evolução de Isaías não
envolvido no ambiente do "intimWno à sombra do poder" - que rruüs se processa. na segunda parte da obra, cm orgânica relação
termina por cnconuar no suiddio um meio de escapar à dolorosa com a realidade social objetiva; de se torna um quase espectador
autoconsciblcia de sua mediocridade. Em suma: não apenas na dos eventos, não sendo assim asual que o seu destino final - ou
6guraçáo de alguns tipos. mas indwivc na explicitação das cara.c- seja. sua completa desilusão pcssimist2 diante do mundo - decorra
tcrfsticas humanas e S«i4is da imprensa moderna, o balas Caminha praticamente de uma crise de melancolia puramente subjetiva. que
alcança um alto nivd de realismo, de universalidade estética. coincide (de modo paradoxal) com o momento no qual obtém,
Mas, apesar disso, o romance não consegue dcva.r-sc, no con- graças à "generosidade" paccmalista de Lobcraot, a tio ambicionada
junto da composição, à toc:alidade orginica que caracccri?.a a grande asccnsáo social E, por outro lado, a figuração da vida no jornal -
ane épico-narrativa. Em sua cuidadosa biografia do romancista, apesar dos momentos típic.os e realistas que apresenta - termina,
Francisco de Assis Barbosa observa argutamcntc: cm última i.nsdncia, por se tom.ar a mera clcscriçáo naruralista de
Da história do fracasso ck um rap:n de cor, intcllgcntc. bom e honesto, enfim, uma objetividade moru, na exata medida cm que aparece como
com rodas u qualidades para vencer na vida, o Uvro como que se tranSÍorm.a, simples ccnirio exterior desligado da ação do protagonista. Em vez
do meio para o 6m, num verdadeiro pan.flcro contn a imprensa da época, cm da firme integração épico-narrativa entre o herói e o mundo, que
contraStc. ai~ ccno gon10 cbocanrc, com o desenvolvimento harmonioso dos vemos no citado romance de Balzac (assim como no romance rea-
primeiros capltulos .
lista cm geral), temos no /salas Caminha uma fratura compositiva
&se caráter dcsarm6nico, porém, não reside canto no modo que prejudica essencialmente, sobretudo cm sua segunda pane, a
"panfletário" pdo qual Lima desmistifica impiedosamente o fcn6- verdade estético-humana e o poder evocativo do rommcc.
mcno social da imprensa moderna; cm llusÕl!spnriiáas, Balzac realiza Isso não significa. todavia, que esse romance de estreia repre-
uma dcsmistiflcação similar, talvez ainda mais implacável, sem com sente, como é o caso do Gonzaga tk Sá. um completo fracasso.
isso comprometer cm nada - ao contrário, até aprofundando - o No quad.ro de uma literatura objetivamen te pobre, como a nossa,
amplo e harmonioso realismo do seu notávd romance. Por outro o /salas - ao colocar com profundidade rcallsta alguns problemas
lado, também seria erndo atribuir a frarura interna do balas ao seu decisivos da nossa vida social cm sua nova fase, inaugurada com a
indiscuóvcl caráter de roman à clef, visto que, como di«cmos, Lima prodamação da República - desempenha um destacado papel na
consegue dcvar os tipos e as situaçócs reais ao nível de símbolos formação de uma autoconsciência estética brasileira efetivamente
estéticos rcali.stas. nacional-popular. Além disso, nunca será demais insistir sobre
As razões dessa frarura interna de Isaías Caminha devem ser a sua fecunda ~. e não apenas estilística, no quadro de
buscadas, ao contrário, num defeito interno da composição es- nossa evolução literária; com o /salas, pela primeira VC'l., swge na
trutural, d o qual Lima - ao referir-se a seu romance como sendo literatura brasileira uma criação estética valiosa e modnrut, isto é,
"desigual" - n:vcla estar consciente: tio logo Isaías ingressa no jornal, adequada aos novos tempos, n2 qual a vida social é representada
o romancista altera inteiramente o seu fuco narrativo, praticamente à luz de uma perspectiva ideológica cone.r etamente nacional-
abandonando o personagem e concentrando-se na apresentação popular'. Todavia, é incgávd que a primeira tentativa de Lima no
" Que me seja pcnniticb unu comp:anç:M> amcrónic:a: 11>.-ncando dcxqu.Uairios at~
Fr.mcitco de Assis Batboa, A tNú tk LJ,,... &mrt., Rio de Janeiro. Ci~ Br:asildra. ÜQQf iim.ibm, oromance Qt-vp, de Anc6oio Calbdo, publicado cm 1966. apracnca
1964, p. 25 1. unu lmpordncb e poswi wn significado do mesmo tipo qu.c Of do ÚIÚIU. na medida
116 CAAlos Nu50ff COUTINHO CumMA 1 soo10ADE NO 8AASll 117

sentido de daborar o novo estilo exigido pela época - um estilo e rico, é imposslvcl considerá-la como uma realização estética
"panicipante", "antiartístico", "brutalmente" rcaliml- não alcança bem-sucedida; Lima perde-se &cqucntcmcntc na simples acusa-
plenamente o justo termo médio aristo~co entre as "exigencias ção, o que o impede de criar âpos humanos autêntic.os. A figura
do dla" e as leis estéticas universais da grande arte. de Ca.ssi, por exemplo, na qual se centra a novela, não consegue
Isso aconteceria, como já dissemos, no Policarpo ~resma. atingir o poder de convicção Ütcrária, já que se traci de mera
Mas, antes de analisarmos esta obra-prima mais de peno, gosta- caricatura, incapaz de ganhar autonomia diante do demolidor
ríamos de f.uer algumas breves observações sobre as dWlS mais ódio que o romancim c:xpcrimcnca contra ele. Clara, por sua
ambiciosas produções do último período de Lima (posc.criores ao vez. aparece como urna vítima indefesa, sem afirmar cm nenhum
Policarpo), ou seja, Numa~ a Ninfa e Clara dos Anjos. Publicado momento uma interioridade própria, uma autenticidade humana
cm folhetins num jornal da época, Numa ~ a Ninfa pretende c.onvinccntc. Uma concepção maniqueísta do mundo atravessa a
desmistificar os figurões da Primeira República, denunciando novda, prejudicando decisivamente o seu nível de realismo. Há,
o modo covarde e mesquinho pelo qual capitulanun diante das porém, uma figura que - pelo seu poder evocativo - deva-se sobre
pressões militaristas contidas na candidatura Hermes da Fonseca. as demais: a digna figura do btt.arro Mamunaque. Como vemos,
Mwtos dos seus cernas, adernais, são retomados claramente do desde Gonr.aga lk Sd até C/am do Anjos, passando sobretudo pelo
Policarpo, como é o caso do combate ao bonapartismo militarisci Po/icJzrpo, o tema da bizarrice desempenha um papel decisivo no
e à insensatez buroccltica, para não falarmos na problemática da universo estético de Lima. Mas o que signifia exatamente, tanto
bizarrice, aludida a propósito da interessante figura de Bogóloff. no plano social objetivo quanto na obra de Lima, essa questão da
Todavia, mwto mais que o /saias Caminha, esse folhetim rcsscntc- bizarrice? É o que tentaremos esda.rccer agora, analisando mais
se dos defeitos do roman à clef. de urna vinculação dcmasWbmente de perto a sua obra-prima.
estreita aos "eventos do dia", aproximando-se bem mais de uma
reportagem satíria dos costumes políticos da época do que de uma 4
autêntica figuração romanesca do real. O seu interesse. assim, é Antes de mais nada, cabe afastar alguns possíveis equívocos: a
puramente documental. transformação da bizarrice cm kitmotiv, ao longo de toda a obra
Já Clara dos Anjos - onde o autor resume numa novda suas de Lima Barreto, não expressa uma simples preferência pessoal
ambições juvenis de um amplo romance histórico sobre os proble- do autor, algo como uma idiossincrasia; tampouco pode ser visa,
mas raciais do povo brasileiro, que chegara a conceber como um ao modo dos defensores do caráter "memorialista" da produção
Germinal negro -aprescnci uma problemática diversa. Parece que do romancist:a, como a imcdiaci cransposição para a obra de uma
Lima o projetou como uma das SWlS obras mais imporunces, nda experiência pessoal. Não há dúvida de que a biografia de Lima
colocando todo o seu ódio plebeu contra a injustiça, o calor do - como se pode ver não apenas cm seu modo extravagante de
seu generoso paúios de solidariedade aos humilhados e ofendidos. tentar conservar a dignidade pessoal, mas também na sua singular
Mas, apesar do profundo interesse humano da novela, centrada e contraditória ideologia política - apresenta alguns traços mar-
sobre a sedução de uma jovem de cor por um personagem branco cadamente bizarros. Mas não é diffcil perceber que essa bi.ia.rricc
pessoal de Lima é somenc.c a expressão, na vida do csc.ritor, de
cm que assúu.12 o reinicio de uma noY:a etapa realista cm noaa liu:mun. airuanc!o-sc
cm dan opociçlo a um pu!Qdo llWQ.do pcb in8ublda das vm6c:s Yanguaidistat" do um fenômeno social objetivo m2is amplo. A expressão Literária
Ydho *lntlmismo à 1e>mbn do podct". desse fenômeno, assim, decorre do profundo realismo do autor
118 CMu>s NnSOH CounNHO CuLTUAA E SOOIOADf NO 8MSIL 119

do Policarpo (de sua figuração cnmca da realidade objetiw), e não Manud Antônio de Almeida e por Machado de Assis ba.scaram-
de uma abstrata tendência ao autobiografl.smo. se cm meios expressivos que já não podiam servir aos propósitos
Será útil deAnirmos, desde logo, o fenômeno que aqui nos espcdScos {historicamente determinados) que nortearam a práxis
interessa. E, p~ fu.!.-lo, recorreremos a Lukács: criativa de Lima &mto.
Com efeito, a bizarrice~ uma ttrta adaptação, que se f.tt no imerior do sujeito e Já observa.mos como a época da Primeira República, acen-
que decorre das possibilidades de ptitic:a social própria que lhe~ permitida pela tuando os impasses e os limites estruturais da "via prussiana".
ordem cspocffia da realidade. Mais oorrcwncnre: dcoorrc do fuo de que, se um impusera o abandono das formas estilístico-narrativas de Almeida
homem pode se m-dat capaz. cm scu furo íntimo, de cnfienw a cransfonnação ou de Machado. A necessidade de criar um novo realismo, fun-
ncgariva das fomw fcnombtkas dadas de uma sociedade (...), de modo tal que
sua integridade in1erior, ameaçada por cais formas. c:onsiga resistir à prova, se
dado clara e diretamente na crítica social, impôs a Lima a wcfâ
isso oc:orrc, endo a c:on~ dessa recusa numa prática social propriamente de encontrar, no seio da realidade brasileira, uma forma de ação
dita (c:on~ que se coma bumaiumenre nccasma} n5o pode ulcrapassar- que se revelasse objetiv:uncnte contrária ao moddo de desenvol-
por ca.usa de sua inc:ompatibilidade soci•l!D('llcc dcccrminada - os limites de vimento dominante, mas que conservasse simultaneamente a sua
uma interioridade abscrativa mais ou menos dcformancc. Disso decorre que o tipicidade, ou seja, que correspondesse a uma possibilidade social
c:arárcr desemboca na cxccnrricidade, na cxtravapncia".
concreta, e não a um desejo subjetivo do escritor. Pda descrição
Pode-se já constatar como a descoberta e a figuração da pro- de Lukács, vimos que a bizarrice representa uma manifestação
blemática da bizarrice indicam a profundidade com que Lima peculiar do caráter humano, decorrente da necessidade (livremente
penetrou no a.mago da reaJidade social brasileira, criticando cm adotada) de aruar objetivamente num meio social cujas formas
sua atividade romanesca as especificas deformações humanas de- fenom~oicas obstaculizam ou impedem a atividade autônoma
correntes da "via prussiana" seguida pelo Brasil. Mais do que isso: a comunitariarnentc respaldada, isto é, a atividade capaz de explicitar
figuração das deformações bizarras da ação humana, que ocorrem sem cooflitos o núcleo humano do agente. A bizarrice, assim, é
necessariamente nesse quadro histórico-social "prussiano". indica um modo peculiar pelo qual se manifesta a incapacidade - histó-
o modo peculiar atrav~ do qual Lima alcançou uma expressiva rica e socialmente determinada - de adequar esse núcleo humano
vitória do realismo. Com efeito, no seio de uma realidade mar- subjetiva.mente preservado a um mundo social objetivamente
cada pela fragmentação nacional, pelo caráter "espontâneo" das alienado. Em sua luta para conservar a autenticidade subjetiva
transformações sociais, as ações humanas significativas- capazes sem se isolar completamente do mundo, o bi.z.arro sofre uma de-
de simbolizar esteticamente a ~eia da realidade - tendem a formação de personalidade que o aproxima da extravagância, da
assumir formas extremamente peculiares. muit.as vezes bizarras, excentricidade, até mesmo da patologia. Desde o Dom Quixou de
requerendo do romancista que as quer descobrir e representar Cervantes até os principais romances de Soljenitsin ou de Hcirinch
uma grande sensibilidade acústico-ideológica. Diante dessas difi- Bõll, passando por O idi.ota de Dostoievski, essa possibilidade de
culdades, capitularam cm maior ou menor medida, como vimos, deformação bizarra da personalidade ocupa um destacado papel
os rominticos (que se refugiaram numa "ação" mítica puramente no mundo da figuração romanesca. Mais do que isso: nos casos
subjetiva) e os natura.listas (que substirucm a ação pelo "ambiente" cm que a defasagem entre interioridade e exterioridade assume
fctichizado). Por outro lado, as vitórias do realismo obtidas por formas extremadas, o que ocorre nas épocas de intensa alienação
social, é quase inevitável que o romance realisca - fundado na
" G. l.uláQ. S.ljminyM, P.W. Gallinwd, 1970. p. lll- 123. rcprcsent2ção de ações significativas cm sua relação com o mundo
120 CAA1os NWOH Úl\mNHO (UUUllA E SOCIEDADE HO BllASIL 121

objetivo - assuma, na configuração dos seus personagcn5> a repre- Essa apreensão já aparece no Gonzaga tk Sd. sem impedir que esse
sentação de comporramcntos m2is ou menos bizarros (é evidente projeto de romance, apesar do seu interesse documental, represente
que a bizarrice é uma ampla faixa que pode ser superada "para objetivamente um completo fracasso estético. Esse talento revela-
çima", nQ ~ublim~, wmo oçorre no Q}lixok, ou "para baixo", na sc, sobretudo, na habilidade com que Lima wrntrói ~~o quadro
mera patologia individual, como cm muitos romances naturalis- épico-narrativo da ação do seu tipo bizarro, cumprindo assim,
tas; mas que pode também c:onstiru.ir, como no citado romanc:c simultaneamente, as duas exigências b:ásicas do gênero romanesco:
de Dostoievski, nas obras de Soljcnitsin, no Opinióa de um cÚJwn por um lado, essa relação c:om o mundo objetivo explicita, canto
de Heinrich BõU ou na obra-prima d e Lima Barreto, um correto em sentido positivo quanto negativo, o núcleo subjetivo do herói,
particular dialético de tipo simbólico-realista). ou seja, no caso concreto, aquda complexa dialética pc)a qual a
A bi7.arrice aparcc:c assim, para empregarmos a terminologia do bizarrice, surgida subjetivamente a panir da luta para conservar
jovem Lukács, como um modo peculiar de manifest:açã.o do "herói o núcleo da personalidade, desemboca objetivamente - num
problemático", ou seja, daquele herói que busca valores autênticos movimento que vai da comicidade à mais profunda ttagicidade
em um mundo degradado, mas que, precisamente por causa dessa - no completo esfac:clarncnto desse núcleo; e, por outro, com a
degradação objetiva, relativiza ou deforma os próprios valores au- construção desse quadro épico, Lima nos apresenta a "totalidade
tênticos que norteiam subjetivamente sua ação... É precisamente de objetos" que Hegel e Lukács apontam como exigência da repre-
através dos seus traços bizarros que Policarpo Quaresma deva-se sentação romanesca do mundo, ou seja, apresenta aquele quadro
à universalidade concreta do autêntico tipo romanesco realista, ou humano-institucional no qual e através do qual ganha contcú.d o e
seja, converte-se cm "herói problemático". E Lima obteve essa ele- sentido, no bem como no mal, a interioridade do herói. A ausência
vação, essa correta realização das leis estéticas do gênero romanesco, dessa "cocaJidadc d e objetos" cm face da trajetória do herói, que
na exata medida cm que o seu tipo expressava adequadamente, vemos ganhar corpo na segunda pane do lsaúl.s Caminha, pode ser
simbolicamente, uma relação humano-social específica e peculiar apontada como a causa cstéti~crurural do c:arátc.r problemático
da realidade brasiJeira. Enquanto tipo biz.arro, Policarpo Quaresma desse importante e significativo romance.
torna-se o símbolo das contradições humanas impostas pc)a "via No Trimfim tk Policarpo Q!uzmma, ao e.onerário, encontramos
prussiana" seguida pelo BrasiJ: através da figuração do seu triste a s(nrcsc orgânica do herói e do mundo, da ação individual repre-
d estino, Lima concretiza - c:om meios espccificamcncc artísticos sentativa e da "totalidade de objetos", síntese que aparece como
- urna demolidora e implacável crítica àquda sociedade que con- condição estética básica da vitória do realismo no romanc:c. Mas
dena ao ridículo, à extravagância e à bizarrice as mais profundas cabe ainda uma concretização: é evidente que essa "totalidade de
e autênticas inclinações do nosso povo n o sentido de realização objetos" não pode ser figurada, como supõe o naturalismo, através
humana e, mais concretamente, da realização humana através da de uma cacaJogação cxtc.nsiva de todos os seus traços. O romance
participação criadora no melhol'll!Dcnto da sociedade. realista deve selecionar os momentos significativos, hicrarquizando-
O invulgar caJcnto que Lima evidencia no Policarpo não se os cm função da específica problemática humana típico-simbólica
revda apenas nessa sua apreensão da bizarrice como tema privile- que pretende abordar; c:om essa seleção e hierarquização, o mundo
giado de um romance crítico-realista especificamente brasileiro. criado no romance pode elevar-se à condição de "microcosmo", de
símbolo evocador de uma totalidade intmsiva de relações humanas.
• G. Luk4a. A uori4 "4 ro,,.,,11«, São Paulo, OlW Cidades/ Editor:a 34. 2000. O ra, esses procedimentos sdctivos de composição.estão na base
122 CAM.os Nu.SON ColinMto CUUUllA E SOOCDAOt NO 8AAS!l 123

do Policarpo; com cfcico, o que interessa a Lima, na totalidade causa do isolamento da personalidade (obrigada a se ocultar por
c:xtensiw da sociedade brasileira, são aqudas conexões capazes trás dos papéis sociais objetivos impostos pela vida burocrática),
de expressar, do modo nuis significativo possível, os uaços do esse preço é a deformação bizarra daquelas qualidades. Desligado
"modelo prussiwo" que pretende combater. Esquematizando um do contato criador com a realidade, incapaz de explicitar-se numa
pouco, poderíamos dizc.r que essas conexões cxprcssivas, tal como práxis social adequada. o pa1hos oacional-popubr de Policarpo as-
se configuram no universo do Policarpo, são a burocracia (que sume a forma cxtravagante de um nacionalismo f.tnático, ufanista,
aparece concretamente, no romance, não apenas na representa- fundado em mitos romântico-reacionários.
ção do mundo das repartições burocráticas, mas também através Ainda que sem jamais pôr em dúvida a retidão subjetiw do
das deformações que esse mundo impõe a vá.rios personagens seu personagem, Lima Barreto dissolve no humor os elementos
secundários) e o milir.arismo {ou, mais propriamente, aquela equivocados desse nacionalismo. O importante é ressaltar que essa
manifestação de "transformação pelo alto", sem participação po- crítica autenticamente democrática ao filso nacionalismo ufànista
pular, que é representada aqui no movimento 8orianista). Tanto assumido por Policarpo é rcalh.ada com meios especificamente
a burocratização quanto a "transformação pelo alro" são formas estéticos, ou seja, através da figuração narratiw de sua completa
sociais voltadas para a eliminação das massas populares na criação inadequação à realidade (que assume estilisticamente a forma do
da história: aparecem assim como cxprcssõcs emblemáticas da "via humorismo); essa inadequação culmina na proposta, claramente
prussiana.., da "revolução passiva" e, desse modo, manifestam-se bizarra, de adoção do tupi-guarani como língua nacional brasi-
também, de forma acentuada e típica, na vida social brasileira. leira. Deve-se obscrV2r que, na representação dessa ambivalência
Já no inlcio do romance, Uma nos apresenta a figura do Major do herói, expressa na contraditoricdade entre suas correcas inten-
Policarpo como a de wn homem que, incapaz de explicitar seu ções de participação social e os con teúdos equivocados que da
núcleo no vazio mundo burocrático em que é forçado a viver, de- assume, Lima figura aquele demento "problemático" assinaJado
senvolve no isolamento de sua subjetividade um profundo amor por Lukács na personalidade dos heróis romanescos, nos quais a
pelo seu país. um. profundo desejo de empregar seus talentos e busca de valores autênticos, cm função da solidão e do isolamento
capacidades a serviço do progresso nacional. Assim, ironizado a que são socialmente condenados, assume traços objetivamente
pelos que querem "levar ao ridículo aqueles que trabalham cm degradados. Já nessa primeira parte, portanto, assistimos aos mo-
silêncio para a grandeza e a emancipação da Pácria"", o herói de mentos iniciais da critica humanista que Lima fu. da bizarrice,
Lima Barreto V2i "lCV20do a vida, metade na repartição [burocrá- uma crítica que - sem ocultar as qualidades humanas prcserV2das
tica], sem ser compreendido, e a outra metade cm casa, também pela bizarrice - indica os seus limites essenciais. Trata-se, mais
sem ser compreendido". Suas melhores qualidades humanas, a do que de uma critica, de uma profunda auUJcrltica, fundada na
inteireza de caráter e um profundo desejo de participação social, tcntaów democrática de compreender a razão dos fracassos cm
conseguem se manter incólumes diante daquilo que Lukács cha- que cênl culminado as melhores ações do povo brasileiro. Ao con-
mou de "transformação negatiw das fomus fenomênicas dadas trário, a crítica de Uma à burocracia - que também já se expressa
da sociedade"; mas o preço dessa manutenção, prccisarnc.nte por na primeira pane do romance - é simples e direta: a burocracia é
apresentada como força social essencialmente contrária ao hunu-
" ~Ivo indicaçAo em contririo. oodu 21 cilllÇ6es daqui pm a frente rui mní<b.s de Uau
no, como um elemento próprio do mundo da alienação. Náo é
Bamto, Trimf"'t J, Afiatrr ~. SJo Paulo. Braslliaisc, 1956. casual que, enquanto a crítica à burocracia assume estilisticamcnte
124 CAALos NnSON COUTHio ( 111.TUllA ( SOCllDAOI NO BIWll. 125

a forma do sarcasmo, a autocrítica da bizarrice pode SC1 expressa social da terra; •E a terra não era dele [de quem a trabalh2va]. Mas
atra\Ú do humor. de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava. por
Voltando à figura de Policarpo, podemos ver como a sua ai'? Ele vira até fazendas fechadas com as casas cm ruínas ... Por que
primeira tentativa de convcnc.r o bizarro núcleo interior cm ação csg ac;apuamento, CSSC$ 4tifúndios improdutivo$?" AJém dim,
objetiva imediatamente social (a proposta de adoção do tupi- descobre que as instituições jurídicas consagram e defendem o
guarani como língua nacional) desemboca no absoluto fracasso latifúndio:
tragicômico. Rompe-se o seu prcclrlo equilíbrio, a~ então assegu- Aquda rcd.e de leis, de posturas, de c6digos e de preceitos, nas mãos dC$SCS
rado por seu isolamento, pela redução do personagem aos limites ~cs. de tais caciques K uansformavam cm potro, c:rn po~, cm insuumemo
de um "pequeno mundo" puramente pessoal: essa ruprura leva de $uplkios para tortwv os inimigos, oprimir as popubç6c$. crcst:1t· lhcs a
Policarpo às ponas da loucura, da patologia. Porém, graças aos iniciativa e a índcpcnd&cia, abatendo-as e desmoralizando-as.
seus recursos interiores e à soüdaricdadc de um reduzido círculo Mas, embora já perceba alguns elementos essenciais da problc-
de amigos e parentes, de retoma rapidamente o seu equilíbrio mitica social brasileira, a visão do mundo de Policarpo está longe
psicológico perdido. Mas essa "cura" de Policarpo, como a de Dom de übcnar-sc das deformações impostaS pela sua bizarrice e pelo
Quixote no início do romance cervantino, é apenas aparente: a seu isolamento (no plano subjetivo) e pela "prussianização" da
sua fuga no campo não impede o prosseguimento da dialética da sociedade brasileira (no plano objetivo). Em vez de enxergar num
bizarrice, a qual, pouco depois, iria conduz:i-lo novamente à ação e, caminho democrático-popular, numa autêntica transformação ..a
mais uma vez, à ruptura - desta feita definitiva - de seu superficial partir de baixo", a solução para os problemas que agora percebia,
cquillbrio. Com excepcional talento compositivo, Lima utiliza Policarpo - cm função de sua falta de vinc:uJações concrccas com
esse período da tentativa de "cura" para ampüar decisivamente a a vida social - começa a se tornar entusiástico defensor de "um
figuração crítica da "totalidade de objetos" na qual se processa a governo forte até a tirania". Em outras palavras: o major "des-
ação do hcr6i. cobrira" - e, cm sua bizarrice, assumira com cxaccrbado pathos
lão logo abandona o hospício, o major Policarpo, aconselhado subjetivista - a problemática da "revolução pelo alto", ou seja,
pela afilh2da, resolve instalar-se no campo. Mas a manutenção da da ápica modalidade de transformação social nos países que
bizarrice rcvda-se desde o início: enquanto a afilhada supunha seguem a "via prussiana". Essa modalidade implica a crença de
que a ida para o campo iria afastá-lo de seus antigos propósitos, que alguns indivíduos excepcionais, ou quando muito uma CÜtc
Policarpo aproveita a oportunidade para pôr novamente cm esclarecida, podem substituir - enquanto sujeito histórico - as
prática suas teses nacionalistas abstratas. Pretende demonstrar mass2S populares, que se supõe condenadas à apatia e à ignorância.
de modo concreto as "maravilhas" do solo brasileiro, pois - tal Não há dúvida de que essa "soluçá.o" aparece e se difunde, muitas
como os ufaniscas - está convencido de que temos uma terra na vcus, entre círculos "progressistas"; no plano objetivo, contudo,
qual "cm se plantando tudo dá". Paulatinamente. porém, esse da reforça a continuidade da "via prussiana", na medida cm que
nacionalismo uh.nista - cm contato com a prática concreta do conserva o povo afaswfo das grandes dcci.sões histórico-políticas.
trato da terra - começa a sofrer imponantcs alterações: o major Trata-se, cm suma, apesar das eventuais apadncias em contrário,
não apenas descobre a falácia objetiva dos mitos ufaniscas como de uma solução reacionária e antipopular.
começa a descobrir também, o que é mais importante, as causas É evidente, porém, que Policarpo - como muitos dos intcgran-
reais do auaso brasileiro. Assim, enxerga com clareza o problema ces do movimento 6orianisr:a - não tem clara consciência, num
126 CAAl.os NnSOH CovnHHo CUlTVAA ( SOCJ(OAl)f NO BitAK 127

primeiro momento, dessas limitaÇ6cs essenciais do "der;potismo leva a propor o tupi-guarani como üngua nacional brasileira. O
iluminado". Movido pda cocr!ncia e retidão subjetivas do seu mesmo se pode dizer do Oorianismo: enquanto a maioria dos seus
caráter bizarro, o major não hesita cm passar imediatamente à adcn:ntcs visa apenas a objetivos egoístas. Policarpo o assume como
ação c:oncrcta, tio logo cW>ora suas novas posições. Uma aparente o real caminho para a "salvação da Pátria". A bizarrice, portanto,
coincidência - mas que Lima explora como elemento estrutural não reside tanto n o contnúlo das posições de Policarpo (que são,
rigorosamente necessário no quadro do romancc - permite-lhe na verdade, elementos ideológicos próprios da realidade contra a
essa passagem: a sua ªsegunda incursão" no mundo da ação so- qual se choca), mas sim na forma pela qual tais elementos são as-
cial processa-se agora no seio do amplo quadro histórico-social sumidos. Essa similaridade de fundo corre Policarpo e a sociedade
definido pdas lutas entre o movimento Aorianista (que defendia a ainda mais acentua a crítica radical implícita no romance de Lima:
República rcdm-instaurada) e os membros rebelados da Armada a radicalização das ideologias dominantes através da bizarrice do
{que se punham a favor da monarquia). Policarpo julga descobrir major não revela apenas a falácia objetiva delas, o seu caráter de
cm Floriano o Henrique IV brasileiro, ou seja, o déspota iluminado meras ideologias, mas também acentua a hipocrisia burocrática
capaz de promover a "revolução pelo alto" necessária ao progresso dos personagens conformistas, que não são capazes de assumir
social da Pátria. Sem atentar para mesquinhos intcrcssc:s cgo{Stas ou cocrcn ccmcntc nem mesmo os preconceitos ideológicos que de-
para sua comodidade pessoal, o major - cheio de novas esperanças fendem e difundem. Esse modo especificamente romanesco de
e ilusões - dirige-se ao telégrafo e escreve: "Marechal Floriano, criticar as ideologias dominantes não é uma pccul.iaridade de Lima:
Rio. Peço energia. Sigo já. - Quaresma". Essa feliz passagem hu- cm sew romances, Balzac e Stcndhal - para ficarmos apenas cm
morística não deve ser vista como uma simples boutatú: o modo exemplos maiores - efetuam uma crítica semelhante, na medida
pelo qual Policarpo manifesta sua adesão ao florianismo é o meio cm que mostram como a sociedade do capitalismo individualista
estiUstico encontrado por Lima para evidenciar, com notável força deve condenar ao fracasso rodos os personagens que assumem o
plástica, a continuidade da bizarrice como craço ainda dominante individualismo, de modo amplo e consequente, como norma vital
na nova fase de atuação objetiva que se abre para o personagem. e como conteúdo da ação. I..cva.nd.o as contradições da ideologia
Neste ponto, seria interessante chamar a atenção para um nacionalista abscrata ao seu paroxismo, Policarpo Quaresma torna-
elemento do romance, bastante expressivo da aguda $cnsibilidadc se uma encarnação viva da insensatez humana da "via prussiana"
estético-ideológica de Lima: tanto cm seu nacionalismo uf.uústa seguida pelo povo brasileiro.
quanto cm sua adesão à "'revolução pdo alto", o Major Policarpo Mas voltemos às vicissitudes do nosso personagem. A partici-
apenas radicaliza - de modo bizarro - os elementos ideológi- pação de Policarpo no movimento Oorianista é uma trajetória de
cos degradados da realidade que o envolve. O que o diferencia desilusões, explicitando amplamente a dialética entre a bizarrice
radicalmente dos personagens "médios• do romance, ou seja, subjetiva e a ação objetiva no mundo social: a integridade do
d os conformistas e dos acomodados, é o fato de que ele assume personagem choc:a~sc duramente com as "acomodações" do meio.
tais dcmcncos com radical sinceridade subjetiva, com completa A bizarrice, tratllda por Lima no nível do humor, vai convcrtcndo-
coerência, não hesitando cm conduú-los às últimas insdncias. O sc paulatinamente numa dolorosa consciência trágica, tal como
nacionalismo uÍ<lnist2, nos burocratas, era apenas a capa ideológica sucedera outrora ao Cavaleiro da Triste Figura. Mwto cedo, Poli-
para cobrir h ipocritamente o atraso social objetivo da Nação; cm carpo desilude-se com a eficácia da "revolução pdo alto". Cheio
Policarpo, ao contrário, torna-se uma crença profunda, que o de esperanças, o major elabora um memorial sugerindo medidas
128 CAAlos NWON Ú>UT'NiO (Ul'IUAA ( SO(l (OAD( 110 Biv.siL 129

concretas para enfrentar os problemas nacionais, sob1etudo os Embora já demasiadamente w-dc, Policarpo descobre no fim
agrários; mas, ao expor pessoalmente seus projetos ao Marcchal- do romance - tal como Quixote - que noncara a sua vida por
Prcsidcntc, este - tomado pdo "aborrecimento mais mortal" e uma ilusão: o seu fànático nacionalismo uf.utlsta, como de agora
revelando um espírito profundamente antipopular ("mas pensa compreende, baseava-se num mito, cm um conceito de pátria
você, Quaresma, que cu hci de pôr a enxada nas mãos de cada que "certamente era uma noção sem consistência racional e que
um desses vadios?" ) - termina por definir secamente o seu então precisava ser rcvisca". Essa tardia autoconsciência da inutilidade
entusiástico partidário como um simples "visionário". dos próprios esforços - ou, cm outras palavras, a compreensão
E as decepções se acentuam, culminando no momento cm que por parte do "herói problemático" d o caráter ilusório de sua bus-
Policarpo, já convencido da insensata no movimento de que fazia ca solitária de valores autênticos num mundo degradado - não
parte, assume conscientemente o risco de denunciar ahcn:amencc, é apenas uma singularidade de Policarpo Quaresma. Trata-se, ao
numa carta ao Presidente, o massacre dos marinheiros revoltosos. contrário, de uma característica estrutural permanente do gênero
Nesse momento, sua ação e sua personalidade superam os quadros romanesco, como podemos ver não apenas no ~ÍXQ~. mas cun-
da biurrice, conservando desta - o que não é casuaJ- tão somente bém nas obras de Balzac, Stcndhal, Dostoievski, Thomas Mann
a correção e a retidão interiores. Lima rcvda aqui, com profundo etc. Porém, através desse demento fonnal, Uma pôde transpor
realismo, a complexa dialética da bizarrice: a extravagância como para o seu universo romanesco um importante conteúdo de sua
forma solitária de conservar o núcleo humano rcvda os seus limites visão do mundo: aquele amplo internacionalismo humanista que,
essenciais no c:xato momento cm que- sem alteração da estrutura embora d e fundo anárquico-libertário, permitiu-lhe assumir uma
bizarra e, consequentemente, do isolamento cm fàce de qualquer posição correta diante da Primeira Guerra Mundial (cujo conteúdo
sujeito social efetivamente comunitário - passa-se a.o dom ín io da imperialista enxergou com clareza) e da Rcvolu~o Socialista de
ação objetiva no "grande mundo" da vida social. Nesse momento, 1917 (que saudou com entusiasmo).
a bizarrice pode convcncr-se cm simples patologia (como ocorre Do ponto de vista imediato, a crítica de Lima à realidade
cm O ú/iQ14 de Dostoievski) ou cm tragédia (é o caso do Po/iearpo social brasileira concentra-se no movimento Aorianista. Coloca-
Quarmna). Ao abandonar a ação romanesca cm troca da "sereni- sc aqui uma importante questão: até que ponto é historicamente
dade'" d o estilo, o Gonzaga tk Sd nio pudera figurar essa dialética. justa a caracterização do florianismo (e, cm particular, do próprio
No Poücarpo Quarmna, ao contrário, cm que a explicitação da Marechal Floriano) empreendida por Lima? Antes de tudo, é pre-
bizarrice se processa cm ligação orgânico-narrativa com a "tota- ciso repetir algo bem conhecido: a verdade poética, que eleva os
lidade dos objetos", a verdade estética e a verdade do conteúdo eventos ao nível da universalidade concreta, do símbolo evocador
humano encontram uma exemplar síntese realista. da autoconsciência humana, não se identifica mecanicamente
Essa dialética da bizarrice articula-se assim, no romance de com a verdade historiográfica. Como já Aristóteles observara, não
Lima, com uma demolidora crítica social das misérias e dos interessa ao artista o que efetivamente ocorreu, a singularidade
impasses humanos da sociedade brasileira. A autocrítica de Po- cm sua nudez faetual; interessa-lhe sobretudo o que poderia - e,
licarpo - expressa não apenas na patttica carta à irmã Addaidc, dadas certas condições, até mesmo deveria - ter ocorrido. Em
mas sobretudo cm suas rdlcxócs finais antes de ser executado outras palavras: a arte autbláca não figura a realidade imediata,
- convcnc-se numa violenta acusação à realidade social "que se mas sim o "verossímil", aquilo que Hcgd chamou de "possibili-
vai fazendo inexoravelmente, com sua brutalidade e fealdade". dade objetiva", que~ um modo ontológico mais essencial e mais
130 CAAa.o5 NELSOH CoonNHO CuLTUM E SOOlDAM HO 811A51L 131

profundo da realidade como um todo. Por outro lado, a grande a forma republicana de governo. Mas também é incgávd que,
arre não apenas reproduz o real, como ocorre nas ciências (in- visto à luz de uma perspectiva nacional histórico-universal, o
clusive na história), mas também - e simultanC2mente - avalia florianismo não apresentou nenhuma ruptura essencial com a
e julga a realidade a partir de um ponto de vista genericamente "v~ pMSiana" antidemocrática seguida pelo nosso país; além de
humano (histórica, dassística e nacionalmente determinado). não tocar na questão do monopólio da terra, que era na época
Assim, quando um fato histórico aparece cm uma obra de arte, a base da dominação oligárquica de tipo prussiano, tampouco
o que interessa não é saber se os seus detalhes estão fielmente criou os dementos necessários para encaminhar uma efetiva
reproduzidos, mas sim até que ponto o artista representou cor- part.icipaçáo popular na vida pública brasileira. Mais do que isso:
retamente a rdação entre o fato histórico (entendido cm sua com o floriaoismo, inaugurou-se entre nós uma nova variante
dimensão essencial, universal e concreta) e o desenvolvimento da "via prussiana", da "transformação pelo alto", ou seja, o mi-
do gênero humano (da classe, da nação etc., através das quais litarismo aberto. Como muito poucos na época, Lima enxergou
esse gênero se concretiza historicamente). plenamente os perigos dessa variante. Logo após o Policarpo,
Tomemos um exemplo concreto: é evidentemente "injusta", voltaria a denunciar asperamente o militarismo cm Numa e a
do ponto de vista biográfico-historiográfico, a c:a.ractcrizaçáo que ninfa, tomando já aqui como pretexto a candidatura presidencial
Tolstoi nos apresenta, em Guerra e paz, da figura de Napoleão de Hermes da Fonseca (no mesmo sentido, deve ser entendida a
Bonaparte. O general que conquistou a Europa e consolidou as sua adesão poütica à campanha "civilista" de Rui Barbosa). Assim,
aquisições essenciais da Revolução Francesa não poderia, eviden- ao "esquecer" os eventuais lados positivos do florianismo e ao
temente, ter sido aquela mesquinha figura que André Bolkonski concentrar-se na representação de sua essência antidemocrática,
contempla no final do romance. Todavia, isso não anula a ver- Lima estava expressando, como Tolstoi no caso de Napoleão, uma
dade superior dessa caracterização, se a analisarmos no conceito verdade humana superior: combatendo o movimento florianisca,
estético-humano da obra de Tolstoi; essa verdade decorre da justeza o escritor combatia - com um pressentimento histórico-universal
essencial da posição colstoiana, expressa esteticamente ao longo digno de um grande realista - os impasses e as deformações
do romance, segundo a qual o verdadeiro sujeito da história, o humanas geradas por essa variante militarista da "via prussiana"
real criador dos valores humanos, não é o "indivíduo superior", (seria um equívoco entender o antiflorianismo de Lima, como
mas sim a própria comunidade popular cm movimento. Assim, alguns já o fizeram, ligando-o ao suposto, mas jamais compro-
à luz do desenvolvimento do gênero humano, bem como das leis vado, "monarquismo" do escritor.)
estéticas que apressam esse desenvolvimento, aquela "diminuição" Mas, embora esteja no centro da ação, a figuração crítica da
de Bonaparte aparece como uma colocação correta e fecunda. diaMtica da bii.arricc (cm suas relações com o "caminho prussiano")
Se avaliarmos o Policarpo em nome de uma mesquinha exa- não esgota o universo histórico-estético criado pelo Policarpo Q}4a-
tidão documental, talvez possamos considerar injusta a crítica resma. O caráter participante do realismo de Lima impunha-lhe
de Lima ao florianismo, bem como exagerada e "caricarural" a a busca de alurnativas concrcc.as, a elaboração de uma penpectiva
sua figuração do chamado "Marechal de Ferro". Com efeito, de superação, através da criação estética de tipos e de destinos
sob alguns aspectos imediatos, o florianismo apresentou traços humanos. No quadro da estagnação social da Primeira República,
progressistas, sobretudo na medida cm que contribuiu para con- era bastante diflcil, sem cair numa utopia romântica, encontrar
solidar definitivamente, contra a revolta restauradora da Armada, figuras humanas positivas capazes de representar essa altemati-
132 ~OS N 11.50H '°'1TIHHO CUlTUAA ( SOCJCOADE HO BAASll 133

va"'. O movimento operário, como vimos, já era suficiente para como "plenitude limitada": um tipo popular que, embora incapaz.
fornecer ao romancista um "ponto de Arquimedes" situado fora de se apropriar amplamente de todas as potencialidades do gênero
da "via prussiana", ou seja, para lhe fornecer uma base ideológica hwnano cm dada época (apropriação que, nos períodos de alienação,
histórico-universal para sua crítica radical de nossa sociedade. Mas permanece como concreta p<mibilidade apenas para alguns indivf-
essa base era ainda na época baseante abstrata; alheio ao romantis- duos excepcionais). logra nio apenas conservar o núcleo humano,
mo, Lima não poderia encontrar oo mundo proletário de então, mas também evitar as unilateralidades provocadas pela divisão
que mal começava a nascer, a universalidade concreta requerida do trabalho e, desse modo, desenvolver-se harmoniosamente no
para a criação de autênticos tipos realistas. Na verdade, somente interior de ccnos limites socialmente determinados. Ao contrário
na d&:ada de 1930, cm particular no romance nordestino, a classe do bizarro, cuja tentativa solitária de uJtrapassar os limites conduz
operária começa a aparecer, como força humana autônoma, cm ao desequilíbrio de caráter, o tipo popular "limitadamente pleno"
nossa literatura realista; mas, mesmo então, não é casual o f.tto alcança uma harmonia capaz de convertê-lo, muiw vczcs, numa
de que esse aparecimento quase sempre ocorra no quadro de figura rd.ativamcntc exemplar. O camponês Platão Karataicv, que
tendências românticas (como no primeiro Jorge Amado). nem aparece cm Gwmz e p4Zde Tolstoi como uma concreta alternativa
tampouco - o que é o outro lado da medalha -que o proletariado popular à vacuidade humana dos indivíduos aristocráticos ou buro-
con tinue ausente na obra da figura máxima do romance nordesti- cratizados, é talvez a mais bem realizada concretização literária desse
no, Graciliano Ramos. Ligado profundamente ao mundo urbano, tipo humano. O encontro entre de e Pierre Bczukhov, ocorrido no
por outro lado, Lima não poderia enxergar alternativas concrctaS final do romance, representa para este último uma profunda cxpc-
no mundo camponês, como frequentemente o fizc.ram - e aqui riencia moral, um exemplo alternativo a indicar novos caminhos,
com pleno âito realista - os romancistas nordestinos. embora canto Pierre quanto o próprio Tolstoi tenham compreendido
Entretanto, no mundo das cidades, particularmente entre os claramente as limitações desse tipo humano. Em outras palavras: a
"humilhados e ofendidos" com os quais está a simpatia plebeia de exemplaridade reside na harmonia, enquanto a limitação encontra-
Lima, surgem alguns tipos humanos que aparecem objctiwmcntc se no "primitivismo", na ausência de desenvolvimento de certas
como alternativas concretas à vacuidade e à deformação ética que potencialidades já alcançadas pelo gênero humano.
vemos se manifestar nos membros das classcs dominantes e dos Essa duplkidadc, ~complexa dialética de plenitude e limjta-
meios burocráticos. A maior expressão literária dessa alternativa çáo, aparece claramente na figura de Ricardo Coração dos Outros.
popular, no mundo romanesco de Lima. é a simpática figura de Manifesta-se, por c:xcmplo, no f.tro de que a sua extraordinária
Ricardo Coração dos O uuos. O poeta popular é uma dara expres- simpatia por Policarpo (cm quem reconhece imediatamente a
são daquilo que Marx, a partir de obscrv3çócs de Goethe, designa gc.n crosidade de caráter) nio se faz acompanhar por uma ad equa-
da compreensão da problemática humana do amigo: por outro
lado, essa limitação se rcvda na incapacidade de Ricardo cm
P.an mar n:W-m1cndidoc Ido~ nccadrio que o rcaUsmo formule al1cnwms oonaaas.
Em muicos cuo.. basta-lhe propor - como diria Tc:hdiov - "quen6cs razoávds"", qur orientar-se adequadamente no complexo mundo no qual vive,
ponham c:m cauu as soluçiõcs &isas do mundo que~ para ci12rm0S um c:xcmplo cm dar respostas para além do seu "pequeno mundo" pessoal.
concmo, ~ale o cuo de Machado de Asili. Todavà, no dpo de realismo proposto por Mas que a sua "plenitude limitada" o coloque eticamente acima
lima (ou Kja. no realismo fun~ na cxplíci12 tomada de posição), que com:spondc
a pttlodot históricos matados por con~ f9ÇialJ intensas, 2 form~ de alm· da "sagacidade" maquiavélica dos exploradores e dos bllrocratas
n:uiv.u roma-se demento citnm1r.al neccsdrio da composição. é algo que Lima evidencia, com notávd força plástica, através
CuLTUllA E SOClfOADf HO 8AASIL 135

da Umpida decisão final de Ricardo de colocar-se firmemente ao considerada como uma precursora do humanismo que marca a
lado do major em desgraça. Enquanto todos os falsos amigos de atuação d e Madalena, importante personagem de São lknutn:/Q,
Policarpo afastam-se ddc, pretextando "dificuldades pcs.roai.s" ou de Graciliano). Encarnando essas possibilidades, ela aparece no
apelando para um "bom-senso" conformista, Ricardo - ao lado mundo de Lima Barreto - l1JD C$Çritor fulsammtc a~do de
apenas de O lga - náo hesita cm empenhar-se, mesmo com o risco misoginia.. - como um aucêntico tipo positivo. Desde o início,
de p rejuízos pessoais, na luta para salvar o major. Através do para- somente Olga compreende adequadamente o major Policarpo;
lelo entre a covarde reação dos Gendícios e do Dr. Armando, que somente ela é capaz. de perceber, por trás ou através das aparên-
se pretendem "sábios" e incdcctuais, e a correta dccisáo moral d e cias bizarras, a infinita grandeza humana do seu padrinho, mas
Ricardo, um ingênuo e simplório cantor popular, Lima Barreto distanciado-se ao mesmo tempo, com sagacidade e lucidez, dos
expressa - com meios puramente literários de caracterização - sua conteúdos equivocados cm que se manifesta essa grandeza. Inca-
dara e decidida tomada de partido: apesar de suas limitações, a paz. de romper com a mesquinhez e o convencionalismo da "boa"
"plcnirudc" popular é uma efetiva alternativa humana à corrupção sociedade em que vive, Olga assume exteriormente, durante algum
moral das classes dominantes. tempo, as apar&lcias do conformismo e da alienação (casamento de
É também diante da decisão moral ocasionada pela prisão de conveniência etc.}; mas, apesar d essa resignação, conserva íntegro
Policarpo que a figura de Olga - cuja inteireza humana aparecera o núcleo humano, o seu agudo senso moral, que se explicitariam
até entáo d e modo claro, mas ainda discretamente - assume a sua plenamente por ocasiáo da sua aquiescência ao pedido de Ricardo
plena explicitação. Seria dar provas de um sociologismo vulgar e para ajudar o major depois de sua prisão.
esquemático querer determinar essa inteireza moral da afilhada Já anteriormente, quando codos ironizavam a adesão bi.zar:ra
do major a partir de sua vinculação com essa ou aquela classe de Quaresma ao florianismo, Olga havia sido capaz. de avaliá-la
social. Lucicn Goldmann, analisando o fenômeno da rcificação, corretamente, embora as suas simpatias estivessem com os opo-
observou corretamente: sitores de Floriano:
O dcsenvolvim.enro da produção capital.im., fundado sobre o fator puramente A rnoça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e n:agirdo fato sobre as ideias
quantitativo do valor derroca, dinúnou progressivamente a oomprccn.sáo dos e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar, censurar: scnáu-o, porim, tão
homens para os elementos qualitativos e SCNfvcis do mundo natural. A se.nsi· oocrcncc com ele mesmo, t4o de 1Uordo com 11 substJlfrill till vil1ll ~ tk mesmo
biJidade para tais elementos tomou-se cada vez mais o privil4io 'dos poetas, fobmal'll, que se limitou a sorrir complacente: - O padrinho...
das crianças e das mulbetCS', ou seja, dos indivíduos situados à rruirgcm da
vida ccon6mica"'. O que a moça admira no major Quaresma é exatamente essa
capacidade d e fabricar por si mesmo a su bstância da p rópria
A conservação do núcleo humano cm Olga e a sua sensibili- vida, essa disposição interior que o faz- contra a aceitação con-
dade para os problemas éticos r~m suas raízes nessa possibilidade formista e alienada da moral burocrática vigente - conservar-se
marginal con tida no desenvolvimento do mundo da alienação;
desligada da vida econômica, Olga consegue afirmar eticamente ~ surpn:mdcntc que ali mcmio Prancisa> de AsÃ$ 8arl>ooa. a quem dcYCmos um iroponan-
a sua interioridade, colocand o cm segundo plano mesquinhas dssimo a:abaJho de .levanwnento bloglilia> e de edição da obn de~ afume o quinte
consid erações de interesse egoísta (nesse sentido, Olga pode ser •Ao c:ontririo dos~~ de mçosvigol'OIQS, gane vív.i. de ame coao, as
mulheres que~ nos seus romma:s do apenas dc:scnhadas. vagas. impnxlsas. f.alandc>-
ll:a a densidade, por causa ialw:z dc:llc daa>nhedmcnro daalnu fmúnioa• ~A viM
lk i.J1'111 &nrto. til., p. 278). O biógrafu, narunlmaur, esqueceu« da 6gw:a de~
136 C-.os NWOH CounlH> ( UlTUAA E SOCIEDADE NO 8AASll. 137

preso à essência humana dos homens. Essa aguda compJCensáo Deve-se observar que a trágica e pessimista autocrítica de
da problemática de Policarpo prepara Olga para a sua decisão de Policarpo (que desemboca num desespero sem perspectivas) não
enfrentar o marido, de romper finalmente com a crosta da alie- aparece como desfecho do romance. Para esse posto e função,
nação sob a qual vivera, afirmando também da - mas, neste çasQ, Lima escolheu as considerações finais de Olga, posteriores à sua
sem nenhuma bizarrice - o próprio núcleo conservado íntegro. fracassada tentativa de ajudar o major, considerações que, de
Não é casual que, ao aceitar a proposta de Ricardo para ajudar o acordo com a concepção do mundo do romancista, orientam-se
padrinho, Olga tenha motivado no crovador (apesar das profundas para o futuro. Após ouvir ofensas ao seu padrinho, chamado de
diferenças sociais entre ambos) as seguintes reflcxóes: "traidor" e de "bandido", Olga.
Ele cntio pensou com admil'2çáo naqucb moça que. por simples amizad.e, se (...) ergueu-se orgulhosamente e ccve vcigonha de ter ído pedir, de ter descido
<bva a cão arrisca.do sacri6cio, que tinha 11 11/ma t4o "" ak1111« tkúz mama; e do seu orgulho e de tc.r cnxcm.lhado a grandeza moral do padrinho com o seu
a sentiu bem longe desse mundo, desse nosso cgolsmo, dCS$a nossa baixeza, e pedido. Com tal i;cntc. era melhor ~lo deixado morrer só e heroicamente num
cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento. ilhá! qualquer, mas levando para o túmulo inrciramenrc i.ntacro o seu orgulho,
O encontro desses dois personagens, simbolizando a aliança a sua doçura, a sua pcnonalldade moral (...). Saiu e andou. Olhou o céu, os ares,
entre a "plenitude limitada" das camadas populares e a revolta as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas remis, já tinham crr:ido
contra a alienação, não é simples casualidade: expressa-se aqui, de tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhara de ter no sangue o sangue
de dez. mil inimigos. Fol'2 h2 quatro séailos. Olhou de novo o c:éu, os ares, as
modo concreta.mente estético, a visão do mundo de Lima Barreto. árvores de Sanca Tcte7.a, as casas, as ig1tjas: viu os bondes passamn; uma locomo-
O lga e Ricardo, com efeito, significam para o romancista alterna- tiva apitou; um carro. puudo por uma linda parelha, all'2VC$SOu-lhe na liuitc.
tivas concretas à mesquinha atmosfera burocrática que dissolve a quando já a entrar no campo. Tutha havido grandes e inúmcns modificaçócs.
humanidade dos homens. É fruto da justeza estética e ideológica Q.ic ÍOl'2 aquele parque? Talvez. um ch.aroo. Tinha havido grandes modl6caç6cs
da concepção de Lima o fàto de que Olga seja escolhida para en- nos aspcaos, na fisionomia <b terra, ta.IVt'Lno dim.a. .. EspcR:mC» mais, pensou
da: e • u serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Ouaos.
carnar a perspectiva final - de confiança no humano - esboçada
pelo seu romance. Embora reconhecendo os méritos da "pleni- Para além das trágicas contradições que ainda dilaceram a
tude limitada" de Ricardo, embora afumando inequivocamente sociedade, Lima nos ensina a confiar nos recursos de que a huma-
a grandeza ética oculta pela bizarrice de Policarpo, Lima enxerga nidade dispõe para superar tais concradiçóes. Como Olga, também
ao mesmo tempo os limites e as contradições essenciais dessas sem alimentar ilusões, pôde ele concluir seu romance com uma
duas possibilidades humanas. Mas seria quase impossCvel, sem afumaçáo de confiança na humanidade.
cair no romantismo, construir o seu romance em como da figura
de Olga; em contaco direto com a alienação vigente, a inteireza 5
do seu caráter sofreria deformações (como é o caso de Policarpo) Com Lima Barreto, iniciou-se para a literatura brasileira uma
ou perderia aquela capacidade de simbolizar a conservação do nova etapa - moderna e popular - do realismo. Tanto em sua
núcleo humano. Assim, é graças à lucidez artística de Lima que a obra estética quanto cm sua produção jornalística, o romancista
dialética da bizarrice ocupa o centro da composição, enquanto a carioca rompe decisivamente com qualquer ve.rsáo do "intimismo
conservação íntegra e harmoniosa do humano aparece de modo à sombra do poder, afirmando com clareza a dimensão humanisca
marginal, ainda que para assumir no fim da obra o sentido de uma do oficio literário. Diante de todas as qucstóes que enfrentou,
ampla perspectiva histórico-universal. como escritor ou periodista, ele sempre tentou encontrar {e, na
138 Gw.os NlL.SON CounNHO C uLTUAA l SOCKDAOE NO 811AS1l 139

esmagadora maioria dos casos, efetivamente encontrou) uma o mais expressivo e talentoso representante de nosso "vanguardis-
resposta autenticamente democrática e popular, capaz de abrir mo". Enquanto o modernismo, na figura de Oswald, tornava-se o
novos horizontes - ideológicos e estéticos - para a cultura e para precursor da nova vanguarda b1"2Silcira, Lima Barreto inaugurava
a an.c de nosso país. uma linha oposta, a linha do realismo crítico nacional-popular,
Uma Barreto é assim um divisor de ;igu.a.s na evolução literária na literatura contemporânea de nosso país.
b1"2Silcira. Rompendo radicalmente com as tendbtcias cstcticisw lnfdiz.mcncc, os antigos obstáculos histórico-sociais à formação
e cscapistas predominantes cm sua~. propôs teórica e pratica- de uma linha conúnua na evolução do nosso realismo não foram
mente um novo realismo. Seria baseante oponuno, nesse sentido, inteiramente removidos após a monc de Lima. Apesar de já encon-
compará-lo com o movimento modernista, que continua a ser trar agora resistências maiores, a "via prussiana" terminou sempre
considerado - com um radicalismo unilateral - o único iniciador por predominar nos movimentos de cransformação ocorridos nos
d.a licc.rarura contcmporinea no B1"2SiJ. O modernismo, na verdade, últimos 50 anos, impedindo conscqucntcmcncc a continuidade da
rcvc o múito de pressentir e propor a necessária renovação de nossa linha realista. O romance nordestino - o mais expressivo movi-
literatura; mas, pelo menos cm seus mais significaávos representan- mento realista cm nossa história literária do século 20 - não pôde
tes iniciais, colocou as questões ligadas a essa renovação cm bases partir diretamente da temática urbana de Lima; mas é indiscuávcl
preponderantemente formalistas'). Lima Barreto, ao contrário, que recolhe dele (consciente ou inconscientemente) tanto a visão
compreendeu e formulou a necessidade taro~ de uma mwvaçáQ do mundo democrático-popular quanto o conceito "participante"
do conuúdo huma1JQ, ligada a uma proposta de transformação d.a do oflcio literário. O pioneirismo de Lima evidencia-se quando
sociedade. Propôs assim aos escritores a tarefa, que continua atual, observamos o seguinte fato: depois dele, já não mais foi possível
de relacionar organicamente i literatura às grandes questões hwna- construir o realismo crítico com base na "serenidade" estilística
nas e histórico--sociais d.a nação e do povo b1"2Silciros. ou no humanismo "distanciado" de Machado de Assis. Em José
Nessa oposição, por conseguinte, é que deve ser buscada a l..ins do Rego ou cm Graciliano Ramos, cm Antônio Callado ou
razão do frontal ataque que Uma, num dos seus últimos artigos, no último &ico Veríssimo, podemos sempre constatar a retomada
dirigiu à Semana de Arte Modc.ma e, mais concretamente, à do espírito "participante" e da profunda consciência social que
versão futurista do então nascente vanguardismo". Não é casual ma.rearam a práxis literária do autor do Poli.carpo ~rmna. Nes-
que esse ataque, cm muitos pontos, se aproxime essencialmente se sentido, Lima continua a ser um modelo - o que não implica
da autocrítica do mode.mismo realizada cm I 942 por Mario de evidentemente a ideia de "cópia" ou "imitação" - para o realismo
Andrade", que já então - graças ao seu profundo humanismo - b1"2Silciro de hoje. R.crirar Uma do injusto esquecimento cm que
afastara-se decisivamente das tcndbtcias "cxpcrimcntalisw" que o querem sepultar, m-xaminar sua obra cm função dos problemas
dominavam a obra e a agitação literária de Oswald de Andrade, gerais da literatura brasileira, não são assim tarefas acadêmicas ou
meramente "literárias": fuzc.m parte da ncccssária e urgente rea-
'" Não~ 3Cju.i o lugar para wm avallaçio cxawciva da problcmáóado modmtismo. Valioas valiação crítica de nossa herança cultural progressista, entendida
indica96cs nax x:nrido Cldo no cnAio de Lufa Strgio N. Henriques, "Conlt':ldiçi6a como ponto de partida para a construção de uma nova cultura
do modernismo". incluído cm Vários A.utoca, /WJ"- ~ ~ ,.. /i_ , . brasileira democrática e nacional-popular.
lmuildl'll. Rlo dcjandro, Puc Terra, 1974, p. 57-74.
" CT. Unu lbrrcto, Frlnu 1 ""1fo,41, S5o Paulo, BruUimse, 19S6. p. 67~.
., Mario de Andrade, Aspmo1J,, li-IVl'll /mui~;,., ~ Paulo. Martins, 194.3. (1972)
Graciliano Ramos

Na solidão de individuo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.
(...) llhas perdem o homem.
DnmrmqnJ

1
A obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro pro-
cesso de formação da sociedade brasileira contcrnporinca, cm suas
íntimas e essenciais dctcrminaçócs. Nada existe nele cm comum
com aqudc regionalismo estreito que foi uma das manifestações
brasileiras do naturalismo "sociológico". O destino de seus perso-
nagens, seu modo de agir e reagir cm f.acc das situações concretas
cm que se encontram inseridos, são manifestações típicas de toda
a realidade brasiJeira. No "regional", a Graciliano interessa apenas
o que é comum a toda a sociedade brasiJcira, o que é "universal".
Mas não um universal abstrato e absoluto, pretensamente válido
cm qualquer circunstância; a universalidade de Graciliano é uma
universalidade concreta, que se aliment:a e vive da singularidade,
da temporalidade social e histórica. O que lhe interessa não é a
c::xcmplificação, através da literatura, de teses e conccpçócs aprio-
rísticas; é a narração do destino de homens concretos, socialmente
determinados, vivendo cm uma realidade concreta. Por isso, pôde
de descobrir e criar verdadeiros tipos humaMs, diversos canto da
média cotidiana como da caricatura abstrata.
A crise da sociedade brasileira apresentava-se no Nordeste
com cores mais vivas e intensas do que no resto do Brasil. Os
movimentos de renovação e de cransformação que começavam a
esboçar-se (apenas a esboçar-se) por todo o país - expressando-se,
entre outras coisas, na chamada Revolução de 1930 -, chocavam-
142 CAAlos Nn.soH CovrlHtlO

se no Nordeste com barre.iras mais firmes, com obstácul06 quase o povo de qualquer participação criadora cm nossa histórica. A
intransponíveis. As esperanças de renovação democritica da estagnaçio social condenava os homens a uma vida medíocre, ao
sociedade eram violentamente cortadas; a ausência de uma classe cátccrc de um "pequeno mundo" restrito e sem perspectivas, scpa-
social efetivamente (e não apenas potencialmente) revolucionária ~ de uma autbttica vida social e comunitária por paredes bastante
condenava os que pretendiam luur por uma nova comunidade espessas. Esta realidade mesquinha, que impunha aos indivíduos
à solidão e à incompreensão. De certo modo, na medida cm que uma radical alienação, afutando-os da evolução histórica conacta,
aí as contradições eram mais "clássicas" (no sentido de Marx), o era comum a todas as classes sociais brasileiras; mas enquanto umas
Nordeste era a região mais típica do Brasil; a sua crise expressava, se sentiam à vontade nos estreitos limites deste "pequeno mundo",
cm toda a sua crueza, a crise do conjunto do país. Não é assim um outras compn:cndiam que só com a destruição de tal cárcere seria
acaso que tenha sido o romance nordestino da década de 1930 possível a abertura para uma vida autêntica e humana.
o movimento literário mais profundamente rcallsta da história O desenvolvimento do capitalismo, que se processava sem
de nossa literatwa. E, no seu interior, GraciJiano é a figura mais rupru.ra.s com a economia pré-capitalista e dependente, não
alta e representativa. Foi cJc quem mais radicalmente se libertou apresentava as mesmas caractcdsticas revolucioná.rias que tivera
da mistura de romantismo ("revolucionário" ou reacionário) e na Europa Ocidental: cm vez de contribuir para romper as pa-
de naturalismo que ainda vemos existir cm grande pane de seus redes daqucJe ..pequeno mundo", mais ainda as fortalecia, cola-
contemporâneos. Neste sentido, Canis funciona, cm sua produção borando para transformar o isolamento e a solidão passivos cm
literária, como uma catarse: escrevendo-o, Graciliano se liberta individualismo ativo e prático. Impossibilitada de realizar a sua
do naturalismo, percebendo na prática as suas limicaçõcs para revolução democrática, a nossa burguesia jamais chegou a ten tar
representar as determinações mais profundas da realidade humana a criação do cit:oym (do homem que sintetiza cm si a vida pública
do povo brasileiro. Com São Bernardo, Graciliano marca - cm e a vida privada) ou da comunidade humana aut~ntica (na qual
sua obra e na história do romance brasileiro posterior a Lima os incercsscs individuais e os interesses coletivos formam uma to-
Barrt:to - a passagem da crónica à hisuJrút co~. a superação de talidade orgânica). Esses sonhos do humanismo burgu~ europeu
um naturaJismo que se conten tava cm descrever a superfkic da revolucionário revcJaram-sc, com o processo de desenvolvimento
realidade por um realismo verdadeiro como a vida. de economia capitalista, uma ilusão utópica: o egoísmo indivi-
Na época, a sociedade brasileira se apresentava como uma dualista da luta pelo lucro, a cisão radical entre o bourgeois e o
formação social scmicolonial cm crise. O esgotamento das po- citoym, a redução do homem a simples mecanismo da produção
tencialidades de nossa economia pfé.clpita.l.isca não fora seguido capitalista, o consequente fracionamento da comunidade - eis o
por uma renovação radical, pela criação de uma forma moderna que substitui, na realidade, os ideais grandiosos do homem total
de economia e de rdaç.ôcs sociais. A ausência de uma economia e da comunidade democrática. Contudo, a simples formulação
integrada, estruturada cm tomo de um mercado interno único, desta ideologia humanista, bem como as trágicas tentativas de
era causa e efeito da inc:xistbtcia de uma classe burguesa orgânica, levá-la radicalmente à pcltica (Robespierre e oucros), marcaram
que estivesse cm condições de promover uma autbttica revolução profundamente a realidade europeia. Mesmo como ideologia utó-
democrática. A fragmentação de nossa sociedade, típica de uma pica, o humanismo revolucionário desempenhou um papel ativo
economia pré-capitalista, impedia a form.ação de uma verdadeira nas sociedades ocidentais, ensinando os homens a verem além dos
c.omunidadc humana, de uma vida pública democrática, afutando estreitos horizontes de um "pequeno mundo" 6Jistcu. A tragédia
(ULTUU l SO(l(OAl>I NO B~l 145

dos que prctendcr.un, mesmo após a vitória do "burguês""60bre o em determinados casos, ele representa um esúmuJo à perpccuaçáo
"cidadão" no interior da revolução dcmocritica, guiar suas vidas de nossa velha sociedade cscagnada; cm ouaos, apresenta-se como
por essas iJusócs grandiosas de realização humana, vem represen- possibilidade de renovação e de progresso; finalmente, revelando
tada nos realisw franceses do $éwlo 19, cm &haç, Stcndhal e prematuramente as suas naturais limitações e oontradiçócs inter-
Flaubcn (que se pen.se nos destinos de Lucicn de Rubcmpré, de nas, cria condições para a abcnura de uma perspectiva - ainda
Jullen SorcJ e de Fr&Mric Morcau). abstrata nos anos de 1930 - rumo à nova sociedade pela qual será
No Brasil, bem como na quase generalidade dos países colo- superado, o sociaHsmo.
niais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida Assim, não obstante todas as suas ümitaçócs, o capitalismo
por uma época de iJusócs humanistas e de tentativas - mesmo utó- não deixou de traz.c.r elementos novos para o quadro de nossa
picas - de realizar na prática o ideal do "cidadão" e da comunidade realidade. Esses elementos constituíam o novo que brotava no seio
democritica. Os movimentos neste sentido, ocoaidos no século da velha sociedade scmicolonia.l; contra a estagnação e a inércia
passado e no início deste século, foram sempre agitações super- dominantes, surgem aqui e aH determinados indivíduos incon-
ficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. fomados, possuídos por uma força interior que os leva a romper
Aqui, a burguesia se ligou às antigas claSSC'S dominantes, operou com uma cxistencia mesquinha e a buscar um sentido autentico,
no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as ainda que individualista, para as suas vidas. Essa "inquietação", esse
transformações políticas se tomavam necessárias, das eram fciw "inconformismo" - que o jovem Lukács, usando a terminologia
"pdo alto", através de conciliações e concessões múruas, sem que de Goethe, chama de "dcmonismo" - , tem uma de suas fontes
o povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua principais, aqui como na Europa, no desenvolvimento do capi-
vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, cm vez de talismo. O fato de que Graciliano tenha percebido esse elemento
promover uma transformação social revolucionúia - o que im- novo - e que o tenha configurado artisticamente cm suas devidas
plicaria, pdo menos momentaneamente, a criação de um "grande proporções, sem c:x.agcros românticos ou reduções natural iscas - é
mundo" democrático - , contribuiu para acentuar o isolamento mais uma prova do seu profundo realismo.
e a soüd.áo, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma A contradição entre um mundo aHcnado e indivíduos incon-
mesquinha vida privada. formados que lutam contra a aücnação, aliás. é o conteúdo essencial
Tudo isso torna extremamente problemática, entre n6s, a do gênero romanesco. Quebrando as barreiras e as estratificações
criação de autenticas obras épicas realistas. Tambán na Europa, fossilizadas da sociedade feudal, superando a mediocridade da
com o triunfo da burguesia sobre o proletariado cm 1848 e com vida rural, conoibuindo para a unificação do mundo cm tomo
a triviaHzação ou abandono do antigo humanismo clássico, o de um mercado único, promovendo o domínio e a conquista da
romance tende cada vez mais ao naturalismo estreito, à mera natureza, o capitalismo representou um formidável estímulo às
descrição do "pequeno mundo'; só com o realismo russo, com o potencialidades criadoras do homem. Por outro lado, estabele-
surgimento de um herói não individualista - expressão de uma cendo uma sociedade rigidamente individualista, dilacerada pela
época d e crise radical dos valores burgueses - , é possível a recriação luta de todos contra todos pelo lucro e pela riqueza pessoal, esta
de uma nova estrutura romanesca realista. Encrc nós. a penetração formação social fracionou a comunidade humana, destruiu aso-
e evolução do capitalismo ganha características bastante originais, lidariedade e a fraternidade, condenando os homens a urna vida
pclacxiscencia simultânea e contraditória de vários de seus estágios: solitária. Qualquer uansccndencia - seja religiosa, seja histórico-
146 ÚJll OS Nu.SON Covi1NHo ( UlTUllA f SOCIEOA.Of NO BAASll 147

geral - é destruída; os valores universais dcsaparec.erarn• no céu acrescentar que esta conexão "de modo algum significa que o
vazio do homem burgu~. O sentido da vida - outrora dado ou romance só possa refletir esta realidade tal como ela se aprcsenca
pela participação na comunidade humana (como na Antiguidade direta e empiricamente"''.
clwica) ou pela crença em dogma,, religiosos (como na Idade Ora. como veremos, é precisamente c.5ta a forma estrutural
Média) - é agora uma busca individual e solitária, voltada para dos romances de Graciliano Ramos. Representando uma reali-
valores mediatos e problemáticos. dade fragmentada {a nossa sociedade semicolonial, penetrada
O jovem Lukács definiu a estrutura deste novo gênero épico, por dementas capitalistas). que desconhece um "grande mundo,,
surgido com o advento da burguesia e do capitalismo, como uma comunitário, Graciliano representa também as lutas individuais
pesquisa de valores autênticos cm um mundo convencional e por descobrir, no interior deste mundo alienado e/ou em oposi-
vazio, por parte de heróis problcmáticosu; ou, numa Unguagem ção a ele, um sentido para a vida. Através da estrutura romanesca
histórico-concreta, como uma luta pela realização individual clássica, ele representa a realidade profunda - e não apenas as
num mundo burguês, no qual inexiste a comunidade humana aparências empíricas - da sociedade brasileira, na qual a lenta
e o homem está condenado à alienação e à solidão. Lukács nos evolução do capitalismo, em alguns casos, entrava em contradição
informa ainda que esta busca de valores é sempre votada ao com o nosso ancini regime, em ourros contribuía para solidificá-lo,
fracasso enquanto inexistir a comunidade humana autêntica e, finalmente, já começava a apresentar o seu caráter limitador e
(ou seja, o socialismo ou a luta concreta pela sua criação), já a determinar uma abertura para o sistema social que o superará.
que a realização humana individual só é poss1vcl cm uma so- Essa evolução determinava uma nova tomada de posição por
ciedade comunitária na qual, como diriam Marx e Engels, "o parte das classes sociais brasileiras, fazendo surgir, em algumas
livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre dcbs, o "inconformismo" e a " inqui~çion que tornam possívd
desenvolvimento de todos"'" (está em jogo, naturalmente, a o aparecimento do "herói problemático", que não mais aceita
verdadeira realização individual - que implica o homem total, passivamente a estagnação e o marasmo da sociedade anterior, do
harmonicamente desenvolvido, não alienado - , e não a falsa "mundo convencional e vazio". A dife.r ente natureza dessa reação
"realUaçáon burguesa, que consiste numa autoflagelação e au- contra a alienação, dessa busca de valores autênticos, bem como o
tolimitação consentidas). Goldmann observou argutamentc a seu resultado, decorrem da diferente classe social a qual se vincula
existência de uma homologia entre a forma romanesca, descrita o "herói problemático". Nessa fusão de indivíduo e classe, reside
pelo jovem Lukács, e a estrutura da sociedade capitalista, bem um dos pontos mais altos do realismo de Graciliano. Seus perso-
como entre a evolução desta forma e a evolução do capitalismo"'. nagens são sempre tipos autênticos p recisamente na medida cm
O próprio Lukács, cm sua fusc marxista, fala da "estreita conexão que expressam em suas ações o máximo de possibilidades conti~
entre a forma romanesca e a estrutura específica da sociedade das nas classes sociais a que pertencem. A obra de Graciliano, cm
capitalista", com a vantagem - em relação a Goldmann - de sua totalidade, apresenta-nos um painel desses diferentes "heróis
problemáticos", ou seja, uma representação literária das diversas
• G. Lukáa. A tttrl4 "'1 ronwn«, SSo P2.ulo, Duas Cidades/ Ec!Jcora 34. 2000, cm l"lfd· atitudes típicas das classes sociais brasileiras (com exceção do
cular p. 23-96. proletariado) cm face do "mundo alienado" .
., K Mai:x c F. ~"'1/ltni"'1 ~ m: Virias Aurores, OMiotifoto~
150~ Rio de J~ Pru1o. C.Oninplll&~ ~Abramo. 1998, p. 29.
'° L. Goldmann, ~ llM H>d4f4t'~ ,/,, tom41t, Pvis, G~Hmard. 1964.• p. 16-37. " G. Lukác:s, ú l'Vmlln h~w. Paris, Plon, l 96S, p. 156.
148 CMlos NWOH COll11NHO CUlTllllA r SOCllDADf NO BllASIL 149

2 to da totalidade do real. S6 uma literatura que represente esses


úut/s, o primeiro romanc.c de Graciliano, foi escrito entre dois momentos - a saber, o mundo alienado e os homens que
1925 e 1928. Essa época representa, na história do romanc.c lutam con tra a alienação, podendo esta luta ser trágjca, c:ômica,
brasileiro, um período de domínio quase inconcraswio do na~ mgicômica ou vitoriosa - tem condições de reproduzir a diaUtica
ruralismo, que encontrara no "regionalismo" modernista, isto é, essencial da ooncradit6ria realidade moderna.
na reconstrução superficial de ambientes e de costumes exóticos, Essa negação da práxis humana criadora leva o rui.ruralismo a
um forte inc.cntivo. Embora con tenha elementos que anunciam o considerar os homen s como mecanicamente determinados pelas
vigoroso realismo da década de 1930, úutls é - cm sua estrutu- circunsdncias exteriores, notadamente pelo "ambiente", enten-
ra, cm seu conteúdo e nas técnicas literárias que manipula - um dido como um fetiche independente da ~o humana. É o que
romanc.c naturalista. ocorre a Graciliano, cm Úldés. O universo desse romana: não
O naturalismo representa, com relação à estrutura romanesca ultrapassa a representação da supcnkie da realidade; trata-se de
clássica, a supressão de uma das duas áramali peno1UU que com- uma crônica, do relato quase jomalistico de uma cidade do inte-
põem o grande romanc.c realista: o hmJi problnNJtico. As obras rior nordestino. Um t~nue enredo, disposto cm torno de um fait
estruturalmente naturalistas limitam-se à descrição do muNÚJ diwrs, não consegue organizar e unificar o unive.r so do romanc.c,
convmdonai e wu:ú>, isto é, à reprodução supcrficiaJ de ambientes criando-lhe uma estrutura que fosse an~oga à estrutura global do
e de indivíduos médios (cotidianos). Trata-se da primeira mani- real. Naturalmente, parc:clas da realidade, isoladas d o conjunto,
festação literária da decadência burguesa, isto é, de uma época na estão rcproduzídas cm Cuth; não, porém, o movimento da to-
qual a rígida divisão capitalista do trabalho, alienando os homens talidade do real, ún ko conteúdo que pode permitir ao escritor a
oom relação à história, dificulca-lhcs uma visão de conjunto da construção de uma forma ~pica verdadeiramence artística. Insis-
realidade global. O naturalismo limira-se a reproduzir a su perfkic timos: a estrutura romanesca - com seus dois momentos: o herói
da realidade, jamais cransccndcndo (pelo menos de uma maneira problcnú.tioo e o mundo alienado - é a única capaz de reproduzír,
o~ica) o fenômeno empírico imediato. Ora, a realidade imedia- do ponto de vista da grande ane narrativa moderna (literária ou
ta de uma sociedade capitalista é a total muólação do indivíduo, cincmatogr.ffica). a ~ncia da realidade contemporânea.. Aban-
sua transformação cm "coisa", cm joguete de um determinismo donando um daqueles momentos. canto o conteúdo quando a
fatalista; a maioria dos homens adapta-se às oondiçõcs de alienação fonna se ftagmcncam, dando origem a uma obra problemática
vigentes, ac.citando passivamente a sua redução a meras peças de ou inteiramente fracassada.
uma engrenagem que eles não compreendem e que, por isso, os Os personagens de úutls são todos determinados mecanica-
dctc.r mina do exterior. Assim, descrever apenas a realidade cotidia- mente pelo ambiente cm que vivem, inteiramente adaptados ao
na, como pretendem os naruraliscas, significa muólar a realidade "pequeno mundo" filisteu que é sua realidade imediata. Preocu-
global, desconhecendo as forças que reagem - mesmo que de uma pado apenas cm f.azc.r o inventário de um ambiente provinciano,
forma igualmente alienada - contra a alienação capitalls~ Em Graciliano passa a nos apresentar uma oolcçáo de figuras inexpres-
ourras palavras, significa dcsc:onhcc:cr aquele "incorformismo", sivas, todas elas passivas e aoomodadas cm fac.e da inércia do meio
aquela inquietação "demoníaca", aquela manifestação evidente cm que vivem . Joáo Valério. que narra a ação, é o personagem
de uma práxis humana criadora, que não aceita passivamente a ccnt:ra.I. Esta ccnt:ra.liuçáo não decorre, contudo, como nos ~
alienação e que representa, oonscqueotcmentc, um ourro momen- manccs rcaliscas, de uma verdadeira h ic.r arquizaçáo do real. isto
150 úuu.os Nt.LSOH úwnHHO CU\T\lllA f SOOfOAOf HO 81Wll 1 51

é, de uma escolha consciente do autor entre os iodivfduoS de que Nem mesmo no apagado e ~uc conjli1'> cmtrrd (o amor de
trat.a no sentido de contrapô-los uns aos outros, como represen- Valério pela mulher de seu patrão) é expressa uma ten~cia pro-
tantes de diferentes atitudes típicas cm fuce da realidade. O tipo funda da realidade, ou tampouco revelada, attavés dele, uma atit:udc
central rcalistt, por isso,~ sempre exrtpeú>naÍ! representa, conm. que st opusesse à cotidianidade superficial e imediata. Por isso,
os demais personagens do romance - muitos dos quais, como Graciliano não consegue atingir nenhuma generalização a.rósdca
tipos cotidianos, encarnam o mundo convencional -, um outro verdadeira e orginica; a ação se restringe ao mundo convencional,
aspecto d o real, uma possibilidade de ação contra a alienação aos fails áWm da vida cotidiana. A atitude inesperada de Adriáo
implícita no próprio movimento da sociedade. Essa hierarquia, Tavares, suicidando-se ao saber que é •ttaído", é rcalmcncc uma
condição básica da composição do romance realista, tem como quebra do cotidiano, um f.uo e:xccpcionaJ; contudo, tal como vem
fundamento o movimento do herói problemático, que vai da dcsaita no romance. essa atitude é inexplicável: a partir da vida do
asccnsáo (decorrente da etpmznça cm triunfar na luta contta o personagem, nada poderia justificar tal oomportamcnto. Adernais,
mundo) ao desfecho desta luta {pela derrota, ou - cm casos mui- a sua ocorrência não lança nenhuma luz sobre os outros problemas
to raros - pela relativa vitória). Esse movimento torna possível, aflorados no romance; ao que me parece, o f.tto foi inserido com
por um lado, o desenvolvimento épico da ação e, por outro lado, a única fi.naJidadc de, fucndo Luísa viúva, oolocar João Valério
o "fechamento" da forma, a ncccs.sária resolução dos problemas diante de uma nova realidade, que comprovasse mais uma vez a
contidos no desenvolvimento da ação. sua mesquinhez e a sua fraqueza humana (as quais, no romance.
Inexistindo cm Canh o "movimento" do herói, o romance são apresentadas como decorrendo apenas das limitaçôcs do "am-
resulta cm mero acúmulo inorgin.ico de &tos superficiais, sem biente"). Apresentando uma realidade estática, que não se move cm
ligações Intimas entre si. Na busca de uma forma que "fcclic" o nenhuma direção, ~apresenta também personagens csclricos,
universo do romance, o naturalismo é obrigado a praticar aqui- sem nenhuma modificação essencial do pri.odpio ao fim do roman-
lo que Hegel chamou de m4 infinituár: a totalidade poética é ce; como principal oonscqu&lcia dessa cstaticidadc, tais personagens
confundida com a catalogação de múltiplos eventos singulares, não t&n uma ~csc soci.a1 concreta, não tem nem p~-história nem
buscada numa txtmsão impossível e não na concenttaçáo intmsiva história. A ação e as situações não são mais do que pretextos para
das tend~cias essenciais. Por isso, não obstante o conflito central que características apriorísticas se manifestem exteriormente. Ao
que existe cm Canh, o narrador é obrigado - cm sua tentativa contrário do romance rcalisca, que é sempre simultaneamente uma
de abarcar a totalidade, requisito da narração épica - a inserir no biognzfia do herói problemático e uma crônica social (oomo será o
romance uma infinidade de eventos sem nenhuma ligação com caso de Si'1 &rnmrJo e de AngústUt). Caals é apenas uma crbnica.
a ação central, destinados somente a reproduzir o "ambiente" (a Além disso, ou por isso mesmo, wth se caraacriza pelo
descrição do banquete na casa de Vitorino, as rclaçócs entre Mana predomínio quase absoluto do que Lukács chamou de "método
Varejão e o pai, o noivado do promotor etc.). Além dos eventos descritivo"" . Desconhecendo a unidade d o real, o método des-
"in úteis", lú também os personagens "inúteis", que nenhuma critivo reproduz uma série de quadros isolados, servindo a ação
importância apresentam para o d cscnvolvimcnt0 e o desfecho (que é o objeto da épica) como mero pretexto para ligar entre si
da ação central: nesse sentido, aliás, são inúteis quase codos os
personagens de Outh, mesmo os mais bem caracccrizados (como " C. Lulda. "Namr ou d~·. in: /J., Mllnfi.nn. , u.,V J. 11_."'"'· São Paulo.
Evaristo Barroca, por exemplo). Üprudo Popular. 2010, p. 149-185.
152 <MI.os Nli.SON COOTIHHO CUl.11.IAA E SOOIOAOl NO BRA511. 153

esses fragmentos autônomos, que podem ser psicológicos,'SOcioló- nele, o que é um dos seus maiores méritos, aquela tcndencia a
gic.os etc. Já o "método narrativo", que predomina nos romances superar a mediocridade naruraJista através da descrição de qua-
rcalista.s, reduz rudo à ação, englobando nela todos os momentos dros patológicos e exóticos. O romance apresenta uma contenção
- exteriores e interiores - do personigcm e do mundo dos objetos estilística positiva, uma r~çio saluw contra a '"enfuc• romântica
(que se pense na relação orgânica que o narrador cstabclece, cm dos nossos rururalisw. Por outro lado, a profunda ironia do autor
São &rnarr/Q, entre o desenvolvimento psicol6gic.o d.a ambição revela uma atitude cr(tica cm làcc d.a realidade, uma insatis&ç:áo cm
de Paulo Honório e a construção d.a fazenda cm todos os seus face da estagnação social. Mas esta insatislà.çáo é apenas do autor,
aspectos objetivos). Tendo como finalidade não a descrição de já que não se encarna concrcramcntc cm nc.n hum personagem:
tipos vivos e concretos., mas a reprodução de "ambientes", úuth Graciüano ainda não percebera o novo que broava d.a velha ~­
f2z uso exagerado d.as t&:nicas descritivas, aptas a reproduz.ir coisas !idade brasileira, não conseguindo transcender, por isso, a simples
{ou homens-coisas), mas não concretas ações humanas. descrição de um "pequeno mundo• estático e morto. O próprio
Lukács, no mesmo ensaio, rambém nos f.Ja sobre a estreita Graciliano, posteriormente, foi um dos que mais acentuaram as
ligação entre o método descritivo naruralista e as tcndâtcias ao fraquezas do seu primeiro romance. Conrudo, mais importante
formalismo abstrato, alegórico. Após ter reduzido a realidade à do que isso é o fato de ter de realizado uma autocrítica também
sua pura imcdiaticidadc fenomênica, o naturalismo enfrenta a prática, e de nos ter d.ado, após úuth, três d.as maiores obras-
necessidade de generalizar os eventos descritos, os quais, como primas do realismo crítico brasileiro.
vimos. não possuem íntimas ligações dialéticas entre si; em vez
de uma generalização concreta, obtida pela relação dos eventos e 3
de uma ação ápic.a, que seja a síntese partiodar do singular e do Com São /JernmrJq, publicado cm 1934, opera-se uma com pic-
universal, o rururalismo é obrigado a recorrer a alegorias, isto é, a reviravolta ru obra de Graciliano: superando a visão ideológica
a rransformar o evento singular fccichizado cm simples portador e artística do seu primeiro romance, de cria uma d.as obras mais
de uma ideia abstrata, existente apenas na consciência do autor. autenticamente realistas d.a literatura brasileira. Penetrando nas
O Graciliano naturalista não fugiu à regra: obrigado a generalizar dcrerrnilUÇÕCS essenciais de nossa realidade, Graciliano reencontra
a miséria moraJ do "pequeno mundo" dos personagens, a bruta- a estrutura romanesca clássica e a visão humanista que haveria de
lidade e a selvageria de Valério, ele recorre à imagem dos cactés, ser o fundamento de sua práxis artística ulterior. Ao lado das ra-
estabelecendo um paralelo não orgânico cntrc a realidade presente zões biográficas que tornaram possível esse salto, acreditamos que
e a vida dos índios selvagens. Aquele "romance histórico" sobre foram as próprias transformações ocorridas na realidade brasileira
os cactés que João Valério inutilmente tentava escrever - e cuja a sua causa fundamental . Entre Caais e São Jkrnarr/Q, situa-se a
cxistâlcia no romance não apresentava nenhuma ligação com a Revolução de 1930: apesar de suas notórias limitações, de seu
caracterização do personagem ou com a ação central, sendo um caráter de transformação "pelo alto", ela permitiu perceber com
mero evento solto e isolado - revela a sua "necessidade": tratava-se mais precisão as forças sociais cm choque na realidade brasileira,
de uma alegoria, de um recurso não orgânico de que o autor lança rc:vdando o quanto era aparcnrc e superficial a solidez d.aquela
mão para tentar uma generalização e provar uma use. sociedade estagnada e mesquinha e indicando as tendências
Comparado com a gcncraHdade dos nossos romances natura- renovadoras latentes e encobertas. Em estreita ligação com esses
listas, Cutés revela indubitavelmente um saldo positivo. Inexiste movimentos da renovação, Graciliano passa a ter uma ação efetiva
(Ul.rutA f SOCJ((W)( NO BAASll 155

na vida social, não só exercendo cargos públicos, como somando e do humanismo, encarnadas nas classes sociais brasileiras. Essa
posição prática cm face dos problemas do seu ccmpo. captação concentrada d.o movimento ela realidade deve se estruturar
Essa passagem da observafáo à participação, ao que nos em tomo de tipos excepcionais, superiores à m6dia cotidiana, que
parece, é o aspecto pessoal - socialmcnce determinado - do encarnem em si o máximo de possibilidades concretas contidas ~m
processo que conduz Graciliano do naturalismo pessimista ao cada uma daquelas forças sociais em contradição. É o que ocorre
realismo crítico e humanista. Sempre que o escritor se coloca em Sáo Bernardo: Paulo Honório e Madalena são verdadeiros sún-
em face de sua sociedade como um simples observador, ainda bolos de suas classes precisamente na medida em que expressam,
que irônico, perde a possibilidade de utilizar os critérios seletivos em suas ações decisivas, as atitudes típicas mais profundas que das
que permitam superar o contingente e o inessencial, no sentido comportam. Não é o mero "ambiente" externo, desligado da ação
de uma penetração profunda no real e da dcscobcna das forças concreta dos homens, que determina o universo e a problemática
essenciais que o determinam; o verdadeiro realismo cede lugar às humana desse romance; é justamente enquanto reagem ao "ambien-
vulgares descrições naturalistas ou às "profundas" pseudoaná.Lises te" que os tipos criados se definem e modelam a sua personalidade.
psicológicas". Só a defesa dos valores humanistas - a luta contra O bacltgrouná de Sáo &rnardo é wn ambiente humano: a história
as forças que mutilam o homem, destruindo sua integridade - concreta em sua evolução contraditória, a oposição de homens
pode permitir ao escritor a criação de uma cst.r utura romanesca contra homens, de classes e.onera classes (encarnadas concretamente
orgânica e viva (não impona se ele está ou não consciente de em indivíduos singulares), e não a adaptação de homens-coisas a
que defende tais valores). Tal como na arte em geral, também wn determinismo mcclnico e exterior.
no romance o fundamento da universalidade anística é a defesa É na luta contra o seu primitivo status quo, a miséria e a baixa
da humanitas contra a alienação. condição social, que Paulo Honório começa a definir sua persona-
Essa defesa é o núcleo de Sáo &rnarrlo. À transformação do lidade. Ele não aceita passivamente a realidade dada: sua ambição
conteúdo corresponde, em Graciliano - como em todo verdadeiro poderosa, cm que estão evidentes os traços da penettaçáo capitalista
artista-, uma transformação formal: a composição frouxa e inor- em nossa sociedade, leva-o a buscar na riqueza e no domínio - em
gânka de Czais cede lugar a uma intensa concentração d.ramático- suma, na ascensão social - o sentido para a sua vida. Gracüiano
novclística, a uma escruru.ra "fechada" e análoga à estrutura global capeou aqui um dos traços essenciais do capitalismo nascente: o
do real. Em vez da descrição exrensiva de fragmentos do real (como crescimento da mobilidade social, o rompimento com as barrei-
cm Caetls), São &rnarrlo apresenta - como seu núcleo central - o ras coaguladas do pré-capitalismo. Essa luta pela ascensão social,
conflito que opõe, por um lado, as forças que reduzem o homem naruraJmencc, é solitária e individualista; ela define os valores
a uma vida mesquinha e miserável no interior da alienação do que regem a atividade de Paulo Honório, ou seja, a propriedade
"pequeno mundo" individual e, por outro, as que impulsionam o sobre as coisas e sobre os homens. Ora, quando inexiste o niJs,
homem a descobrir um sentido para a vida mediante wna "abertura" a fraternidade e a solidariedade, a relação entre os indivíduos -
para a comunidade e a fraternidade e da consequente superação da como Hegel brilhantemente observou - não pode deixar de ser a
solidão. Em suma. trata-se do conflito entre as forças da alienação relação entre o servo e o senhor". Paulo Honório reduz tudo ao

" Sobre o vínçulq ~!J'( ·~· e "dgçrição·, por l!!1l 12®, e erurc "p;m_icipação" e " ·o individual perante o indlvid!!M IÓ g CONm'il mediante o sacriftào do ouuo" (Hegel,
"narraçio", por ouuo, cf. G. LWcács, "Nun.r ou clcsc:r:cwr ?", d1, Ertltíu. Usboa. Guimuic5. 1959. v. !, p. 97).
156 C-.os Nu.soH CovnNHO CuLTullA E SOCJEOAOE NO BIV.Sll 157

seu interesse egoísta: os homens sáo apenas instrumcntQS de sua com Madalena. Desenvolve um ciúme doentio - que é próprio
ambição, meios que ele utiliza para a obtenção do próprio fim, dos que veem a pessoa amada como um objeto, como uma posse
ou seja, a rcaliviç:ío individual a que se propõe. -, impedindo assim Madalena de levar uma vida autêntica, con-
A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira pane forme as suas convicções. Personagem trágica, dilacerada entre um
de São Bernardo. Note-se que Graciliano, ao contrário dos natura- mundo vazio e alienado e um ideal (ainda) utópico de solidarie-
listas, não nos apresenta um burguês acabado, estático e definido dade, Madalena recusa o compromisso com a inautenticidade e
de urna vez por todas: de narra a evoluf'Ú' psicológica de Paulo se suicida. Esse ato repercute, na vida de PauJo Honório, através
Honório, o dermvolvimmro de sua violenta e apaixonada ambi- de uma dolorosa tomada de consciência: sua soUdio ainda mais
ção, cm estreita ligação com a "totalidade dos objetos" que torna se acentua (inclusive com o abandono da fucnda por parte de
possível a realização de seus desejos. Essa dcscnfrcad.a ambição outros personagens). e ele percebe a inutilidade de seus esforços,
capitalista é o conteúdo do "dcmonismo" d e Paulo Honório. Sua centrados na busca de uma realização humana apoiada na pura
necessária solidio determina a unilatcralização de sua personali- ambição egoísta. Seu "pequeno mundo" revela-se um cí..rccrc. uma
dade: de aliena-se à fu.coda, é possuído por sua própria paixão. A "danação". O momenro trágico encerra o romance: nem Paulo
construção de um burguês: essa construção é, simultaneamente, Honório nem Madalena conseguem se realizar humanamente.
a criação de um novo "pequeno mundo" de paredes tão espessas Esse desfecho trágico, embora formalmente idêntico para am-
quanto o anterior, que a inquietação de Paulo Honório superara. bos, possui uma narurc:zasociaJ e humana inteiramente antagônica.
Nesse novo "pequeno mundo", contudo, ele julga por aJgum TaJ diversidade decorre da diferente atitude de ambos em face da
tempo estar inteiramente realizado. reaJidade, o que decorre por sua vez da diferente classe sociaJ a que
Trata-se, porém, de uma tr:igica ilusão. Levado ainda por penencem. São /krnartÍIJ é um romance de "ilusões perdidas": par
uma nnalidade egoísta, úpica de um proprietário, Paulo Honório um lado, da ilusão de que uma vida solitária e o pequeno mundo
pretende se casar: é preciso ter um filho que seja o herdeiro das do proprietário possam proporcionar uma realização humana
riqucus que acumulou. Não é o amor que o move, pois os egoístas digna e autêntica; por outro, da ilusão cm conciliar um ideal de
não conhecem o amor; de busca a mulher como quem busca um solidariedade humana com a existência solitária no interior de um
objeto, uma propriedade. Este f.uo corriqueiro, porém, é transfor- mundo vazio e prosaico. Dessa forma, Graciliano - mesmo reco-
mado por Graciliano num momento rigorosamente necessário no nhcc.cndo e analisando os aspectos positivos d o capitalismo - põe
desenvolvimento da ação romanesca: através dele, revela-se toda a nu seu caráter contraditório e autolimitador, sua incapacidade
a limitação dos valores egoístas construídos por Paulo Honório. de destruir efetivamente, e não apenas aparentemente, o cárcere
Madalena, a esposa que escolhe, é o seu oposto radical: para ela, de solidio. Contudo, por outro lado, não podem ainda deixar de
uma vida verdadeiramente humana se confunde com a superação ser abstracas as perspectivas que apontam para um mundo novo.
do egoísmo na realização da fraternidade autêntica. O sentido Na ausência de uma classe social verdadeiramente revolucionária,
de sua vida é por ela buscado no rompimento com o "pequeno permanecem solitários e impotentes os indivíduos que se opõem ao
mundo", na abertura para uma autêntica comunidade humana; capitalismo: o socialismo aparece ainda como uma pura aspiração
seu profundo humanismo chega mesmo a implicar, ainda que subjetiva, sem encontrar na realidade as possibilidades concretas
abstratamente, a aceitação do socialismo. Deformado e mutilado de sua execução. O humanismo abstrato de Madalena, úpic.o de
pelo seu egoísmo, Paulo Honório não compreende e não se intcgn setores progressistas de nossa classe média urbana, apesar de apon-
158 <MI.os NELSON Ú>VTIHHO CULTUIV. f SOCl(l)AI)( NO Biv.siL 159

tar para um fururo mais humano, revela-se igwlmente.-incapaz Essa originalidade estrutural do romance de Graciliano - a
de quebrar as paredes do pequeno mundo da prosa cinzenta e saber, que um mesmo personagem seja simultaneamente demen-
alienada da sociedade brasileira da época. to do "i;nundo convencional" e "herói problemático" - tem suas
O caráter cxc;cpcional de Paulo Honório, entre outras coisas, ra1z.es na pr6pria realidade brasileira, em sua especificidade com
expressa-se na complexa integração dos valores pré-<:apitalisw relação à europeia. Decorre, a meu ver, do duplo carácer da nossa
e dos valores capitalistas que formam a sua personalidade". burguesia e de nosso capitalismo nascente: ao mesmo tempo em
Movido por uma sede de lucro e de domínio que é própria do que representa um papel progressista, criando condições para o
capitalista, Paulo Honório é - no essencial - um burgu~ típico; surgimento do "inconformismo" cm face da cstagnação anterior,
mas pcrmancc.em cm sua mentalidade ccnos aspectos arcaicos, o capitalismo brasileiro - por causa de sua debilidade e de sua
como, por exemplo, o seu apego à vida rural e a sua incapacidade incapacidade de organizar a inteira sociedade a partir de um
de ambientação na cidade. Ora, Umicado pela estreiteza do meio pomo de vista globalmente hcgcm6nico e inovador - é obrigado
rural brasileiro, ainda essencialmente dominado por relações pré- a conciliar com o velho e o caduco, com as forças que mancam
capitalistas, d e escl impedido de dirigir a SU2 ambição "demoníaca• o nosso ar.raso secular, e a se opor, conscqucnternemc, às novas
para horizontes mais amplos, tão amplos quanto pudesse permitir forças verdadeiramente renovadoras. Em suma, o capitalismo
o capitalismo urbano; por isso, mais ainda se acentuam as paredes brasileiro, desde o seu surgimento, já apresenta manifestações de
de seu pequeno mundo e de sua solidão. Mas, precisamente por crise estrutural, convivendo com a gestação de perspectivas que o
causa desca pe.rmanancia de valores arcaicos, Paulo Honório é o transcendem. O herói do romance europeu da época de consoli-
representante úpico da burguesia brasileira, de uma burguesia que dação da burguesia podia se basear, em sua luta concra o filisteís-
se ligou organicamente à mesquinhez da sociedade pré-capitalista e mo e a vacuidade do mundo burguâ triunfante, nos valores do
que renunciou, talvez definitivamente, aos prindpios democráticos humanismo individualista da burguesia revolucionária. O Brasil,
e humanistas do seu perfodo de asccn.sáo revolucionária nos países como vimos, nio conhcc.eu sequer um esboço desse humanismo;
hoje desenvolvidos. Na estrutura romanesca de São &marrúJ, Paulo mesmo os mais consequentes entre os nossos burgueses, os que
Honório representa - se visto do ângulo de Madalena - o "mun- encarnam a mais alta possibilidade de ambição e de progresso
do convencional e vaz.io", aquela espessa realidade que condena contida cm sua classe, são obrigados a conciliar com o cárcere do
ao fracasso as melhores aspirações do "herói problemático". Ao "pequeno mundo", a limitar os seus esforços ao restrito campo
mesmo tempo, porém, ele também é um "herói problemático", permitido pelo desenvolvimento vacilante e conciliador de sua
precisamente na medida em que os elementos capitalistas que classe (referimo-nos, naturalmente, aos indivíduos que, embora
formam a sua personalidade condicionam a busca de um sentido excepcionais, se mantêm no interior das possibilidades burguesas,
novo para a vida, fundado em sua ambição de elevação social, busca sem romper com essa dasse e buscar horizontes mais amplos fora
que o leva a se chocar-se com o mundo estagnado e a adotar uma dela). Assim, a força que se opõe e derroca as suas ambições não é
atitude diversa da m&iia cotidiana dos demais fazendeiros. apenas, como no romance europeu do principio do século 19, a
realidade circundante: essa força é sua própria limitação interior, a
" Nthon WancckSocW, rd"erlndo·fu ~uloHonório, obtc:rvaarguwocnrequctcu "dúme incapacidade - que é a de sua classe-de superar o que neles existe
uadia o KnWncnlo poacs5ivo de uma 6gura cm que ac YCri&a a inBuàoàa de uma &se
de muc:bnç2 de rebçõa aplalism rubmruíndo vdhas rcbç6cs de JCllili1crvidio• (N, W. de "mundo convencional e vazio", ou seja, o "pequeno mundo" da
SocW. OjitW lk otri#r. Rio de Janeiro, ~ Bruilón. 1965. p. 20). solidão e do egoísmo, a conciliação interior com o atraso social.
160 CAALOS NEUOH CoonNHO CuLTUllA E SOCIEOAD( NO BAAStl 161

Aliás, o próprio Paulo Honório - que é o narrador ficócio condenada ao fracasso. Com a evolução da sociedade burguesa na
d e São Bernardo - adquire, no final do romance, uma rigorosa Europa Ocidental, com a estabilização sempre maior do capitalis·
consciência de sua condição e de sua problemática (consciência mo, esse individualismo se transforma cada vez mais em egoísmo
que é a determinante direta daquilo que o jovem Lukács mama
de: fili d
rd~e1Lo
___stcu, pe_ ~Lm
. a grand~ e a autenttça'!.li!!.
. ..1-de que am
. da
"conversá.o", isto é, da descoberta da inutilidade de seus esforços possuía nos personagens de Balzac e Stcndhal (grandeza e auten-
anteriores). Assim, ele nos diz: ticidade que permitiam a esses escritores a criação de autênticos
Coloquei-me acinu da minha classe, ccio que me devcl bastante (...).Julgo "heróis problemáticos") e dissolvendo-se nos conB.itos mesquinhos
que me danoncei numa ema.d a(...). Não consigo modiSc:ar· me, é o que mais e limitados de que iria se alimentar o naturalismo. Só no realismo
me aflige (...). Os sentimentos e o.s propósito.s (de Madalena) esbarraram com russo, ootadamente em Tolstoi e Dostoievski, vemos surgir um
a minlu brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e novo tipo de "herói problemático" (ao lado de uma renovação
brutal. A profissão é que me deu qualidades tio ruins".
do antigo tipo): o indivíduo que busca realizar-se através da in-
Ou, cm outras palavras, o t:ributo pago à "'elevação" acim.a da tegração na comunidade hum.a.na, superando o individualismo,
própria classe - à inquietação "demoníaca" - é a condenação a mas que - graças à inexistência objetiva desta comunidade - está
vivc.r na solidão e no egoísmo. O destino crágico de Paulo Honório também condenado ao fracasso (que se pense na trágica derrota
é o destino d pico da burguesia brasileira, incapaz - pelas próprias do Príncipe Mishkin e na impotência de Aliocha Karamazov e de
limit:açócs sociais e humanas - de superar o ..pequeno mundo" Nekludhov)". Essa modificação da estrutura romanesca correspon-
do interesse privado e de abrir-se para uma vida comunitária e de ao período de crise radical dos valores burgueses, notadamentc
autenticamente humana. os do humanismo iodividualist:a.
Madalena, ao contrário, apresenta uma problemática humana Ao que nos parece. Madalena é um "hetói problemático" do
inteiramente diversa. Ela se opõe radicalmente ao mundo aliena- segundo tipo. Sua impotência trágica decorre, igualmente, de
do, buscando um sentido para a vida, wna verdadeira realização sua solidão: mas d e uma solidão socialmente diversa daquela de
humana, na &aremidade e na solidariedade com os seus semelhan- Paulo Honório. Ela é solitária porque ainda não existe, como fato
tes. E.scc é, naruralmente, um tipo novo na rustória da evolução objetivo e histórico, a comunidade humana aurêntica; ou, cm
da cscrurura romanesca: o do "herói problemático" individual outras palavras, sua solidão decorre da inexistência, na sociedade
que pesquisa um valor autêntico comunitário e transcendente. brasileira de ent.áo, das classes sociais que tornariam possível, se
Os heróis individualistas do grande realismo franc& do século não o estabelecimento, pelo menos a possibilidade concreta d.a
passado sáo problemáticos na medida cm que, ignorando os va- criação efetiva de uma nova sociedade, de um "grande mundo"
lores cransindividuais, centram o sentido de suas vidas - e de sua humanista e democrático. Neste sentido, ela é o oposto de Julien
oposição ao mundo prosaico e alienado - na realiz.ação individual, Sorel, o protagonista de O ~lho e o ~: a solidão de Julien,
na ambição de progresso pessoal. Ora, toda realização individual seu total distanciamento do mundo e dos demais homens, resulta
autêntica (isto é, não filisteia) no mundo burgu~. onde inexiste da 6ddidade que manteve ao jacobismo tardio, encarnado na
a comunidade humana e onde a alienação se tornou a realidade figura de Na.poleão, que a evolução histórica já havi.a superado e
imediata, é impossível, estando a luta por ela necessariamente
Examinei nuis dca.lhadamcmc esta problemática cm meu ensaio "Arualidack de {}o$.
roicvsld", incluldo cm C. N. C.Outinho, Litm11M111 t lnutumbmo, Rio de Janeiro, P:n ~
'° Gr:ociliano !Wnos, Siio &m.rú, São P2uk>, Martins, 1964, p. 165-167. Tcmt, 1967. p. 191·215.
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destruído. Em Madalena, ao contrário, a solidão decor.11t do seu do tempo que vai da etpn'll1Jfll e da ilusão que ela inicialmente
caráter pioneiro, do fato de ter ela antecipado os valores que ainda alimenta, ao casar com Paulo Honório, à pertiA dessas ilusões, à
permaneciam implícitos na classe social (ou conjunto de classes) a comprt:msáo da vacuidade de suas esperanças. Graciliano figura
que da se ligava; sua tragédia t a tragédia do revolucionário - no -•=-
aqw,. como grande (Çjf,Wta, o tn"unfo 1.Y • ..l-de $QQ'al
.J_ n~l\!.ill, ~ ob"ctl
1-_~
caso, do revolucionário possiwl - que se antecipa à hist6ria. Por sobre as aspirações e os sonhos meramente subjetivos. Ao tomar
outro lado, ao contrário de Padilha (assim como Jullen Sorel ao conscibicia do caráter ilusório de sua busca de realização humana,
contrário de alguns heróis balz.aquianos). ela não aceita o com- Madalena prefere o suiddio à conciliação com a inautenticidade;
promjsso com a realidade vigente, a adequação (mesmo que mo- mas, como em todo grande romance, há também aqui uma evo-
mentânea e apenas tááca) à vacuidade e a imoralidade do "mundo /u;ão que a conduz, da falsa consciência inicial, à consciência de
convencional". Uma autenticidade apenas parcial, pela metade, é si como personagem trágica.
para da - como para os grandes heróis da tragédia. tal como esta Madalena, como dissemos acima, é a expressão c:xucma das
foi escudada pelo jovem Lukács e por Goldmann" - sinônimo d e possibilidades contidas cm um segmento da classe média urbana
uma total inautenticidade. O universo dos seus valores é regido que tinha como ideologia um humanismo sincero, mas abstrato, e
pela categoria do "tudo ou nada"; esse radicalismo impotente é a que - por sua própria condição de classe média e pelas condições
expressão, ao que nos parece, de uma das atitudes típicas da classe do atraso brasileiro - permanecia isolada e desconhecia os meios
média, de indivíduos solitários que, desligados da história conacta. de levar à prática os seus ideais de solidariedade e de fraternida-
não compreendem as suas mediações dialéticas, aquilo que Lenin de. Em São Jkrnare/I), nos personagens secundários, vemos ainda
chamou de "astúcia do real". encarnadas outras aárudes típicas de nossa classe média: em "seu"
É bastante problemática, a partir de uma tal caracterização, a Ribeiro, o saudosismo impotente da classe média rural; cm Padi-
criação de um personagem romanesco realista, não romântico. A lha, o recalque e a frustração como bases para a aceitação, ainda
profundidade de Graciliano, sua fidelidade simultânea aos prin- abstrata, do socialismo; em O . Glória, o autossac.rifl'cio pela familia
dpios da ane e à realidade que pretende expressar, afasta este pro- como forma de emprestar um sentido à vida etc. Por não terem
blema. Em primeiro lugar, fazendo de Madalena um personagem interesse direto na determinação da estrutura romanesca de São
central, por ceno, mas secundário com relação a Paulo Honório; &nulre/I), deixamos de analisar aqui com mais vagar essas atitudes
e, principalmente, cm segundo lugar, apresentando-a inicialmente e esses personagens.
como portadora de uma ilusão - e, como tal, de uma esperança-, Dois conflitos dialeticamente inter-relacionados - o conflito
qual seja, a de poder viver autenticamente, sem compromissos, no entre Paulo Honório e Madalena e o conflito entre as forças da
interior de um mundo inaut~ntico e alienado. Com isso, inclui- reação e do progresso tal como se aprescncavam cm nossa realidade
sc a dimensão temporal na caracterização de sua problcmááca, o - formam o núcleo de São &mardo. O desenvolvimento desigual
que não ocorre no caso da problemática do herói tcig.ico; trata-se e duplamente contraditório do nosso capitalismo, determinando
uma especificidade nas contradições humanas e sociais, leva Gra-
" Cf. G. Lukács, "M=fisica dclla ~a·, in: /d., L'tmi""' ~ k fomu, Milio, Sugar, cUiano à criação de uma estrutura romanesca baseante original,
1963, p. 305-347; e: L Goldmann, ú áini cw:hl. Paris, G~ínwd, 1955. p. 71-94.
cm que - cm orgãnica síntese dialética - coexistem demcntos de
H.i uma diferença. para a qual chamo a acençlo do lcicor, enttt o ha-dí "4 ~ (do
~19 literário c:spcdfico) e o daúno mitw do herói probkmi1ico, ilto t, do h<rdi dois níveis diversos da evolução da forma romanesca: o "herói pro-
""-~. blemático" individualista, ápico do romance frands da primeira
Cum1u E socieoADE NO BMSll 165

metade do século 19, e o ..herói problemático" que busca.valores meio rural. Tipos cotidianos e médios, nenhum personagem de
comunitários, ainda que de forma abstrata e solitária, surgido com Ctutés dispõe-se a realizar a c:x:pcriência, abandonando o interior
o realismo russo da segunda metade do mesmo século. Apesar agreste e atta.sado pela vida cm uma metrópole. O humanismo
disso, ou c:xacamcntc por isso, Sú &rn4rdo me parece: ser o mais de Madalena e a eclosão de um movimento revolucionário, cm
perfeito, o mais "clissico" dos romances de Gracili.ano: foi nele São &rnardo, podem fazer crer que - embora a vida no meio
que, com maior perfeição, o romancista alagoano soube encontrar rural esteja ncccssariamcntc condenada ao fracasso e ao estan-
- para expressar a contraditória realidade brasileira- uma estrutura camento - talvez na cidade, de onde vem Madalena e onde se
romanesca orgânica e profundamente realista. inicia a "revolução", exista alguma esperança, alguma perspectiva
de ab"'11Tll para uma vida mais rica e autêntica. Na realidade, o
4 universo de São &rnaráo náo autoriza tal aença: é evidente que
Após a "dassicidadc" de São &rnarrkJ. pode parecer estranho, aquela "revolução" mudou muito pouco (por exemplo, permane-
ao leitor superficial, que Graciliano tenha escrito um romance cem int2CtaS as relações de propriedade rural). e que Madalena,
bastante diverso do ponto de vista técnjco, no qual são mais evi- também na cidade, era uma solitária, obrigada a ir para o interior
dentes as afirudades com a chamada "vanguarda". Na realidade, cm busca da estabilidade cconôrruca mCnima. Contudo, São &r-
Angústia é um romance tecnicamente "vanguardista": além do uso narrkJ náo é o romance das contradições que o capitalismo traz à
frequente do monólogo interior, cm sua forma da livre associação vida nas cidades, dos problemas especfficos da nossa classe média
de ideias, encontramos nele uma radical fragmentação do tempo, urbana, de nossos " humilhados e ofendidos". Angústia seria este
o que o aproxima das mais audaciosas experiências do romance romance. Situando os problemas num nível mais avançado do
de vanguarda. Contudo, se aprofundarmos nossa análise, supe- desenvolvimento capitalista-embora para isso náo seja necessário
rando o nível imediato dos processos técnicos, reencontraremos um avanço no tempo, mas apenas um deslocamento no espaço
cm Angústia a estrutura clássica acima descrita, o respeito às leis sociogcográ.Aco - , esse romance já nos mostra a impossibilidade
uruvc.rsais da grande arte épica: cm suma, o profundo realismo da própria ascensão social individual, que ainda fora possível no
que Graciliano, com São IkrnarrkJ, já introduzira na literatura caso de Paulo Honório.
brasileira contemporânea. Como o dissemos acima, nenhuma Angústút é o relato da história de Luís da Silva, último mem-
inovação formal importante, num verdadeiro artista, é pura expe- bro de uma fam.üi~ rural cm decadência, que tenta "vencer na
rimentação: ela decorre da ncccssidadc de expressar um conteúdo vida" abandonando o campo pela cidade. EJe logo compreende o
novo, de concretizar artisticamente a abordagem de um novo caráter ilusório dCStll tentativa; nem cm Maceió, nem mesmo no
aspecto da realidade. ruo de Janeiro, Luís da Silva consegue se afumar. AD contrário:
Esse novo conteúdo, cm Angústia. c:x:prcssa-se por uma accn- aí ele conhece a miséria mais c:xm:ma, inclusive a mc.n diclncia.
ruaçáo dramática das paredes do "pequeno mundo", do cátccrc Trata-se de um novo elemento na obra de Graciliano, o da miséria
da solidão e da impotência cm que está encerrado o homem econômica; nem cm Caeth (onde inexiste qualquer ligação entre
brasileiro. Em Ctutis, há sempre a perspectiva - ainda que tênue a situação econômica e o destino dos personagens) nem cm São
e mal esboçada - de que a superação do provincianismo, a ida &rnttrrkJ (já que Paulo Honório ainda pôde superar a sua inicial
para uma grande cidade, possa propiciar uma realização humana, condição de rruséria, ascendendo na escala social) a rruséria de-
uma expansão das potencialidades esmagadas pela limit2ção no sempenha um papel decisivo na tragédia dos personagens centrais.
Cul TUltA l SOCtfOAOl NO BltASll. 167

Não é o caso cm Angústia (como náo o será cm .V'u/as &Cill}; aqui, a ligação amorosa em si o agente determinante da tragédia dos
as deformações psíquicas do personagem, sua frustração agressiva personagens; da náo faz mais do que tomar realidade o que já era
e sua incapacidade de equilíbrio, estão todas centradas sobre a sua uma possibilidade implícita cm ambos, a saber, a incapacidade de
m.iséria, sobre a sua inferioridade coonõmica e social. tu dificulda- superar a solidão, de quebrar as paredes do cárcere do cgo{$mo,
des econômicas haviam-no levado a prostituir todos aqueles valores descobrindo a verdadeira comunidade com os outros homens.
que Madalena, por viver desligada da necessidade de sustento ou Pois nenhum dos dois conhece realmente o amor, a integração
por ter sido amparada por D. Glória cm sua juventude, pudera com a pessoa amada cm uma verdadeira comunidade espiritual
conservar: a solidariedade humana, a honra, a dignidade pessoal. e sensual. Em Paulo Honório, o casamento se confunde com a
Para conseguir um precário equilíbrio econômico, Luís da Silva transmissão da propriedade (e o desejo de amar vem muito mais
foi obrigado às mais graves conccssócs e compromissos: a bajular, tarde para modificá-lo); em Luís da Silva, com o puro erotismo.
a se vender como jorrullista e como artista. A se tomar, em suma, Onde inexiste a comunidade humana e os homens estão atomiza-
um ªbicho", urna ªcoisa", como ele mesmo diz.. Obrigado a um dos entre si, como na sociedade burguesa, também o amor sc:xu.al
trabalho alienado (ou diretamente a serviço de convicçócs que não se toma cada vez mais problemático. Ele tende, agora, a ser a c:x-
eram as suas, enquanto jornalista, ou inteiramente desprovido de dusividade dos que o fundamentam em uma comwn identidade
sentido criador, como era o trabalho burocrático), Luís da Silva de projetos, dos que buscam uma integração da vida privada com
é obrigado a renunciar às suas esperanças anteriores, a destruir o a vida pública (evitando que o amor se transforme em uma paixão
"demonísmo" que o havia feito emigrar para a cidade e buscar a mórbida e monomaníaa), dos que conseguem superar o egoísmo
p rópria realização como intelectual. e o individualismo. Os solitários e os egoístas não conhecem o
E nesta acomodação aparente com o "pequeno mundo", amor; e Paulo Honório e Luís da Silva, bem como Marina, são
com a alienação e o filistdsmo, que encontramos Luís da Silva solitários e egoístas.
antes de conhecer Marirua - "um cidadão como os outros, um Com o aparecimento de Marina, Luís da Silva volta a experi-
diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da mentar uma esperança, superando o marasmo em que se encon-
Silva qualquer"." Graciliano, através do seu autoirônico narra.dor trava: durante algum tempo, a ideia de casamento domina seus
fictício, descreve com exatidão a vida mesquinha de seu persona- pensamentos. Reduzido a não poder ambicionar senão pequenas
gem, dividido entre a repartição onde trabalha mecanicamente coisas, Luís da Silva aprende que nem mesmo estas lhe são permi-
e a redação do jornal onde vende, não sem conOicos íntimos, a tidas: Marina é seduzida por Julião Tavares, um rico comercia.ote
sua consciência. Um f.uo novo, contudo, surge neste aparente acidentalmente ligado a Luís; fu.scinada pelos prazeres mundanos
marasmo, quando de já não mais alimenta ilusões: Mari.02.. E e pelo dinheiro que Tavares lhe oferecia, ao conttário de Luís, ela
sem dúvida um f.uo importante, digno de registro, que tanto desf.ai. o casamento, não sem ances consumir as parcas economias
em S4'J &rna,Jq como cm Angústia tenha sido a ce.n tativa mais do "noivo". Toda a carga de fruscração e de agressividade, que Luís
imediata de superar o isolamenco e a solidão, a ligação amorosa da Silva rccaJcara e disfuçara através de uma vida mcsqllinh2 e
individual, a causa imediata da tragédia dos dois personagens "acomodada", agora volta à tona: Juliio Tavares lhe aparece, numa
centrais. Naturalmente, Graciliano não nos quer dizer que foi contradicória dialética psicológica, como aquilo que no fundo ele
ambicionara ser e, ao mesmo tempa, como cudo o que despreza e
" G. Ram~ .Anptd.ir, SSo Paulo. Manlns. 1961 , p. 18. repugna. Nessa aácude, Graciliano retrata magiscraJmente a psi-
168 CAM.os NtLSON ColmNHO (UlTUM E SOCllOAOE NO 8JV.Sll 169

cologia ápica do pequeno-burgu~: a luta por atingir a condição monl4ca, necessariamente marcada pela degradação, pelo caráter
de grande burgu~. por subir na hierarquia social, e o profundo puramente negativo e incsscncial (o jovem Lukács chega mesmo
recalque que decorre da constatação de que é impossívd essa a dizer que o herói do romance ou é louco, ou criminoso). Essa
ascensão (salvo em casos cada vez mais raros), o que conduz à degradação decorre da w/iJiiq do herói, de sua impotencia, de
revolta e à frustração agressiva. Tal revolta se acent\12 02 luta que seu desllgamcnco da vida popular, de seu egoísmo: a luta contra
Luís empreende por não cair nas esferas mais baixas, por não se o mundo hostil não é revolucionária, coletiva, mas sim a marú-
proleari2.al' inteiramente.: o seu passado de mendicância e a pre- fcstação de uma revolta individual, necessariamente marginal.
sença decadente de "seu" Ivo estão em fu:c dele, pecmanentcmente, Contudo, apesar das formas degradadas que assume, essa luta
como possibilidades ameaçadoras. "demoníaca" é uma manifestação do que há de mais humano
Luís da Silva, após o rompimento do noivado, agarra-se a uma no homem: sua insatisfação cm &.ex do real alienado, sua busca
ideia fixa, torna-se um monomaníaco: s6 destruindo o seu rival- e desesperada da realiuçáo individual autêntica. A ação de luís da
Julião Tavares personifica tudo o que ele não ~ tudo aquilo que Silva - o assassinato de Ju.liáo Tavares - revela, com evidência, a
o conduziu a uma vida inútil e sem sentido - é possivd recuperar ambiguidade a que nos referimos. Ela contém o que de melhor
o cquilibrio perdido, afirmar-se como homem autêntico, superar existe cm Luís: a sua aspiração à liberdade e à autonomia, o seu
a sua condição de coisa inerte e desprezfvd. O assassinato lhe ódio contra a opressão e a indignidade. Mas, ao mesmo tempo, a
aparece como a única mane.ira de afirmar uma liberdade sempre solidão do pcrsomgcm- que o impede de transcender o aparente
desejada e jamais alcançada, a única forma autêntica possível de e encontrar os fundamentos essenciais de sua aspiração e de seu
romper com a alienação: ódio - condena-o a uma ação degradada e impotente: liquidan-
Nas rcdaçllcs. na rcpaniçio. no bonde. cu era um uouu, um infeliz, mumdo. do Tavares, um simples indivíduo, Luís da Silva não destruirá a
Mas, ali, na estrada deserta, Uuliiio Tavares] voltar-me as costas como a um máquina capitalista de exploração, a deificação do dinheiro, que
cachonoscmdcnccs! Não. Dondcvinhaaqudagr.mdcza? Porqucaquclaqu- são os fatores que possibilitam a existência e a ação do repelente
rança? Eu era um homem. Ali cu era um homem (...). A obsessão ia dcsapa.rcccr. comerciante; nem tampouco -e esre é o conccúdo da "conversão"
11vc um dedumbramcnto. O homenzinho da repartição e do jornal não era
cu (...). linham-mc enganado. Em uinta e cinco anos haviam-me convencido
f1nal de Luís, da tomada de consciE.ncia da inutilidade de seu ato
de que só me podia mexer pela voncadc dos ouuos. Os mergulhos que meu gratuito - lhe permitirá reconquistar a dignidade perdida, atingjr
pai me dava no poço da Pedra. a palmar6rú do mcstrC Antônio Justino, os a liberdade e a verdadeira realização individual. Extinto o brilho
berros do sargcn10, a grosseria do chefe da repartição, a impcrtinlncia macia passageiro de sua ação c:xtrcma, Luís da Silva recai na monotonia
do diretor, rudo virou fwiuça. •• de sua vida mesquinha, na absoluta e integral falta de sentido cm
Aqui, como cm todos os grandes romances do realismo críti- que já o encontráramos antes dos eventos descritos no romance.
co, manifesta-se o caráter ambíguo, simultaneamente autE.nóco lmediatamcnte após o assassinato, ele já nos diz: "(...) Veio-me
e degradado, do valor pesquisado pelo herói problemático. Em a certeza de que me havia tomado velho e impotente. - Inútil,
um mundo onde, como diria o jovem Luk.ács, Deus está ausente rudo inútil".'º'
- ou seja, onde inexistem valores universais, onde não tem lugar Assim, aquda possibilidade de libertação e de realização, que
a comunidade autêntica -, toda pesquisa de valores é sempre de- havia consumido as melhores energias ainda c:xistcnres cm Luís da
100
1bUI.. p. t76- tn. Ili flril/,. , p. 179,
CutTuM 1 SOOEDAl>f NO 811AS1L 171

Silva. revela-se uma possibilidade abstrata, falsa e inconsistente. à indignidade e à corrupção moral não o conduz a uma atitude
Nesta distinção entre possjbilidade concreta e possibilidade abs- verdadeiramente revolucionária, mas à revolta vazia e à frustração
trata, reside uma das características mais profundas do realismo agressiva. A condição de revolucionirio - de efetivo transformador
de Graciliano. Ao contrário do romance antirrcalisra - que, des- da realidade e, como tal, de hom~ verdadeiramente livre - é
ligando o persorugcm da concreta rcalidadc humana e social, nio pr6pria dos que, cransccndcndo a solidão e o individualismo,
mais tem critmos (se nio os puramente subjetivos) de hierarquizar colocam-se do ângulo de uma comunidade rcvolucionúia, de
as ações humanas, pelo seu confronto com o real-, Graciliano uma consci~ncia-prúis de classe, já que só um sujeita.totalidade
sabe relacionar a aspiração com a rcalidade, distinguindo entre pode penetrar e transformar a totalidade do real: só enquanto
a possibilidade puramente subjetiva e abstrata e a possibilidade participante de uma comunidade é que o homem pode se realizar
objetiva e concreta. Assim, ele nos mostra que, longe de conduz.ir inccgralmcnte, abrindo livre curso à manifestação da integralidade
a uma solução, o ato puramente individual de Luís da Silva não de suas possibilidades. Como Ma.d.alcna e Paulo Honório, ainda
altera a realidade, nem sequer a sua pr6pria realidade individual. que por ra:z.ócs diversas, Luís da Silva permanece solitário - e a
Os indivíduos, enquanto átomos, são impotentes: a possibilidade solidão, dctcnninando a radical impo~ncia, equivale a uma "da-
de mudar o curso das coisas, de influir sobre a realidade e sobre naçãon, a um inapelável fracasso.
si mesmo, cstá intimamente ligada à participação na vida social, Como Canis e São &rtuzrJq, também Angústia é um romance
ao fato de oio mais ser o indivíduo um sujeito isolado, mas um narrado na primeira pessoa. Esta aparente identidade, porém, nio
momento do sujeito histórico coletivo. A concepção do mundo nos deve fazer perder de vista as radicais diversidades. Em úutis, a
subjacente à "vanguarda" liteclria, ao fazer da solidão e do iso- narração na primeira pessoa tem a única finalidade de destacar um
lamento do indivíduo uma realidade metafisica e "eterna", eleva personagem, fazendo dele o tipo central; como vimos, trata-se de
igualmente o desespero e a impottncia à condição de realidades um processo de composição inteiramente arbitrúio e inorginico.
eternas, nio apenas históricas e sociais. Em Graciliano, como no Em São &rtuzrJq, jamais o narrador perde a objetividade, apesar
realismo cm geral, esta solidão e esta derrota - embora socialmente de tratar de sua própria vida: o fato de a narração ocorrer após o
necessárias a partir da "sjruação" concreta cm que determinados desenrolar dos acontecimentos garante ao narrador a onisciencia
personagens estão inseridos - não sáo transformadas cm metafisica épica ncccssária ao processo de hicrarq11ização e seleção da realida-
conáifáo hum4na; decorrem de certas condições objetivas e histó. de, isto é, à objetividade estrutural do romance. Por outro lado, o
ricas, notadamcntc da posição de classe dos tipos representados e duplo tempo - o da oco~cia dos eventos e o da narração - tem
da alienação do mundo cm que vivem. por finalidade nio só garantir esta "disdncia• do narrador diante
Desta forma, o pcquena.bwgu~. m1f"41Jm pequmg-burguis, dos fatos, como também ressaltar a patética "conversão" final de
não pode se libertar da miséria e da limitação do "pequeno mun- Paulo Honório. Trata-se, portanto, de dois romances tcenicamente
do". Historicamente soliclrio, ele está socialmente condenado à nio problemáticos: um ligado às técnicas cspcdficas do naturalis-
impotência e a uma liberdade puramente abstrata. E Luís da Silva mo, outro às do romance realista tradicional.
é um típico representante de nossa classe média; típico, inclusive, Angústia é um caso inteiramente diverso: aqui, o monólogo
na medida cm que - transcendendo com sua ação a média coti- interior (cm sua forma radical da strram ofconscWu.mess) substitui
diana de sua classe - encarna uma possibilidade máxima de ma- frequentemente, como t«Dica narrativa, a narração épica tradi-
nifestação contida na revolta individuilista. Seu ódio à bwguesfa, cional; ademais, o emprego de um tríplice tempo - o da narração
172 ~ NWOH Ú>llTlNllO

do presente, o da recordação da inBncia e do passado e o dos Graciliano relaciona com a realidade -dando prim2zia a esta
devancios subjetivos, o tempo subjetivo interior - inuoduz..nos - rodas as f.tnwias imaginárias e as evasões subjetivas do tempo
cm um fuiclstico universo de fragmencação e cstilhaçamenro. A interior de Luís da Silva. As fuiwias imaginárias dcc.orrcm d.a
substituição do tempo real pelo tempo subjetivo é um proctSSO já aspiração, objetivamente explicada, de uansccndcr - ainda que
antigo no romance, sendo urna das características de muiw narra- apenas subjetivamente - os limites de sua vida mesquinha e mi-
tivas de "vanguarda". A partir do momento cm que, colocando-se serável: ªEsse passatempo idiota dá-me uma espttic de anestesia:
passivamente cm f.tcc da alienação do indivíduo com relação ao esqueço as humilhaçócs e as dívidas, deixo de pensar". Por outro
mundo histórico (alienação que é o nível imediato da realidade no lado, das sofrem o crivo do confronto com a realidade, o que
capitalismo), alguns romances de "vanguarda" transformam a sub- mosua a sua falsidade e inconsistência (que se recorde o próprio
jetividade individual fctic:hix.ada na única matéria de suas análises, assassinato e sua inutilidade): "Quando a real.i dade me cnua pelos
desaparece também - ao lado do mundo e da realidade- o tempo olhos, o meu pequeno mundo desaba". Os recuos no tempo, a
histórico objetivo no qual se inserem as ações humanas, tempo do narração interpolada da in&cia e do passado do personagem,
qual o tempo subjetivo é apenas um momento subordinado. Por tbn como finalidade a ampliação da objetividade épica, isto é,
isso, a fragmentação e o estilbaçamento - que são apenas a c:xprcssáo o fornecimento da pri-história do personagem, das razões e dos
de um ponw ~ vista subjetivo sobre o real - tomam-se a própria condicionamentos de algumas de suas ações atuais. Por exemplo:
realidade: a rcsttiçáo do indivíduo à sua estreita subjetividade não "Sempre brinquei só. Por isso cresci assim, besta e mofino". Além
é apenas o tema ccncraJ, mas o princípio de composição estrutural, disso, tais recuos se fundamentam também no desejo de cvasão do
a visão artística e ideológica do mundo. Naturalmente, o resul- presente, que é uma das componentes psíquicas mais profundas
tado de tal procedimento náo pode deixar de ser a di$$0luçio da de Luís da Silva (sendo, Por isso, um dos mcios usados para a sua
objetividade épica, da relação o~ca entre a ação do sujeito e a caracterização). Também aqui, porim, Graciliano está consciente
"totalidade dos objetos" do mundo exterior histórico; como con- do caráter puramente subjetivo e absuato dessa evasão, da sua
sequência, temos a UTÚ'irAflÍO do gênero romanesco e a dissolução impossibilidade de modificar a realidade presente:
daquela forma que permite o realismo verdadeiro e profundo. A Tenho me esforçado por iomar-me aiança - e cm coruequb>àa ITÚSNIO coisas
arte se confunde então com o depoimento pessoal. atuais a coisas antip (... ). Procuro um rdUgio no passado. M2S Dio posso
Não é isso o que ocorre cm Graciliano. Tal como seu grande me esconder i.ntciramcnte nele. Não sou o que era naqude tempo. Falta-me
contcmpoclnco, Thomas Mann, de não confunde as tlcnicas de uanqullidade, &ha·me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu
demais e sujou.'«1
"vanguarda" - o monólogo interior e a fragmentação do tempo
- nem com o conteúdo nem com a forma estrutural. A estrutura Finalmente, o monólogo interio r jamais é aqui um fetiche,
formal de Angú.sti.a se funda sobre a dialética do herói (problemá- um objetivo cm si: Graciliano náo visa à mera reprodução na-
tico) e do mundo (alienado); e isto, cm primeira instância, porque turalista de uma associaçáo de ideias, dos mecanismos psíquicos
a solidão dos seus personagens não é mais do que urna modalidade de um homem ontologicamente isolado, sem nenhuma relação
possível de sua integração no social. Por isso, nesse romance, as orgâiúca com a realidade objetiva; nem busca tampouco, através
técnicas de "vanguarda" são englobadas pela narrativa épica ua- do monólogo interior, a "rcvdação" alegórica de absuaçócs vaz.ias
dicional, que representa as ações humanas como uma dialética de
sujeito e de objeto, de consciência e de realidade. '"' //riJ., rctpcajV2Jnma: p. 141, trl. 107, 14-18.
174 Últl.OS N ELSON CoumotO CULTUllA 1 sootOAOI NO 8llASIL 175

e pseudoprofundas. Ao contrário, Graciliano busca precisamente, logo a sua interior ambiguidade e contraditoricdade. Já observa-
com o auxilio da stream ofconscioumess, tomar imod.iat:amcnte mos, na análise de SáQ Bnnaráo, como esta complexa estrutura
evidente uma realidade concreta e essencial: o desequilíbrio e a dialética da realidade determinou, igualmente, o nascimento de
dissolução psíquica do personagem, rcprod~indo ç0m m~or uma complexa estrutura romanesca, não obstante a identidade
intensidade dramááca o seu desespero e a sua derrota socialmmu fundamental (na diversidade) entre ela e a do romance realista
condicio1UUÍos. Trata-se, portanto, do emprego de uma ticmCll vi- tradicional. Em Vuias Secas, seu último romance, Graciliano nos
sando a acentuar a realidade para melhor narrá-la (para rcproduzi- apresenta um setor da realidade brasileira que ainda não fora (ou
la artisticammu), e não da substituição da realidade essencial o fora apenas cm proporções mínimas) penetrado pelos elementos
pela reprodução mcclnica de associações mentais fctichizadas capitalistas em sua forma moderna: a realidade agropastoril da
ou por alegorias metafisicas; cm suma, cm Angústia, o monólogo região nordestina assolada pelas secas. Em SáQ Bnnaráo, a fazen-
interior é sempre um instrumnuo do realismo, nunca um fim cm da que serve de órulo ao romance é um empreendimento que a
si. Por outro lado, nos momentos cm que se acentua a dissolu- ambição de Paulo Honório - através da introdução de inovações
ção interior do personagem-narrador, Graciliano - pua evitar a tcenológicas - tranSforma num dpico exemplo de penetração de
perda da objetividade - recorre à ironia: cm face de suas próprias elcmcncos capitalistas modernos no campo brasileiro; Vuias Secas,
fantasias e aspirações, Luís da Silva mantém quase sempre uma ao contrário, nos apresenta um quadro evidente da dcc:ad!ncia
atitude irônica, autoirônica, que lhe garante, enquanto narrador, de nossa estrutura agrária pré-capitalista, decadência que, nesse
o necessário "distanciamento". caso, não foi seguida por nenhuma renovação capitalista (inclu-
Assim, através de técnicas vanguardistas, Graciliano constrói sive n.o estrito sentido tecnológico). Daí o papel preponderante
um dos romances mais realistas da Üteratura brasileira, cuja eJtTU- da seca, o seu caráter de &talidade trágica: os homens concretos
tura muito se aproxima daquela dos romances dostoicsvskianos que formam a realidade econômica estão socialmente desapa-
de herói individualista (como Crime e castigo, por exemplo). Em relhados para enfrentá-la. A baixa rentabilidade econômica da
vez da mera descrição paranaturali.sta ou alegórica da soüd.áo e do região é causa e efeito do desinteresse e do conservadorismo do
desespero de homens abstratos, como ocorre cm grande parte dos proprietário; as formas scmisscrvis de remuneração do trabalho,
romances da "vanguarda" subjetivista, Graciliano nos apresenta bem como, na maioria esmagadora dos casos, o fato de que o
urna interp"tafáo poltica, que implica a representação da gênese trabalhador rural não dispõe da propriedade, fazem deste um
social e das consequências humanas, da solidão e do desespero de nômade, sempre obrigado a abandonar a terra no momento cm
um homem concreto, dpico: um pequeno-burgu~ brasileiro. que a seca anuncia a destruição. Em suma, inexistem condições
sociais (e, conscquenccmentc, tecnológicas) de resistir vitoriosa-
5 mente à seca. Essa decadência econômica, aliada à inexiscência
SáQ &rnawúi e Angústia, que viemos de analisar, têm como de uma economia mercantil integrada e integradora, rarefaz ao
conteúdo temático a contradição, que se estabelecia cm nosso extremo a realidade social que nos é apresentada no romance os
país, entre uma sociedade semicolonial cm decadência e o desen- camponeses estão condenados a uma vida nômade e soUcl.ria, à
volvimento de elementos capitalistas; também estes elementos luta contra um mundo inóspito, cuja hostilidade aparmtemmte
capitalistas - por força da especificidade de nossa formação histó- se encarna no desencadeamento de forças naturais incontroláveis.
rica e da natureza geral do próprio capitalismo - revelavam desde Como vemos, embora num universo social baseante diverso,
176 CMlos NWON Ú>llTINHO C ULTURA E SOCIEDADE NO 8AASll. 177

ressurge aqui a problemática central de Graciliano: a solidão do seguida, ao baixo nível tecnológico da exploração agropecuária, o
homem como determinante de sua impotâtcia trágica em face dos que torna os homens impotentes na luta contra os fatores naturais
problemas que a sociedade lhe coloca. como obstáculo que se opõe (como a seca). Em suma: a problemática de Fabiano decorre dire-
à realização humana e a uma vi~ a11tcntiçamente vivida. tamente do caráter retr6grado e improdutivo da nossa estrutura
O enredo de Vuúzs secas, correspondendo a esta realidade relati- agrária. inccirarnentc inadequada para proporcionar um nível de
vamente simples e pouco densa, apresenta-se também ele simples: vida até mesmo medíocre aos trabalhadores rurais brasileiros.
cm vez dos longos desdobramentos que caracterizam o romance Obstaculizando o avanço das forças produtivas e dispersando os
realista do período de formação e ascensão da burguesia, temos camponeses, o latifüodio - o monopólio da cerra - toma-se a causa
aqui uma realidade quase linear, sem conflitos dramáticos intensos da exploração e da miséria no campo brasileiro; é o lari.fiíndio - e
e restrita a um cuno período temporal na vida de uma família não a seca, que s6 tem efeitos catastr6ficos por causa da estrutura
de retirantes. Tangidos pela seca, Fabiano e os seus migram em social de dominação da nacure:za, que tem no monopólio da terra a
bwca de uma região mais favorável; terminam por se fixar numa sua peça central - que encarna o "mundo convencional e vazio" que
fazenda abandonada, na qual Fabiano passa a trabalhar após entrar impede Fabiano de levar uma vida aut~ntica e humana. Solitário,
em acordo com o patrão, sempre ausente e distante; com a volta conscq uencementc impotente, Fabiano é presa fácil da exploração
da seca, eles são novamente obrigados a abandonar a fazcnda e e do embwtc, impossibilitado de reagir não s6 às trapaças de seu
retomar a migração. O romance situa a ação entre essas duas secas, patrão (nas quais a exploração se faz evidente e imediata), como
isto é, no período do estabelecimento provisório de Fabiano. A às violências do "soldado amarelo", que representa o governo que
profundidade de Graciliano, entre outras coisas, revela-se no fato garante e protege a dominação latifundiária.
de que - nesse cuno período de tempo e nesse limitado espaço Por isso, Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as condi-
- ele aflorou e .reproduziu a totalidade dos problemas implícitos ções adversas que o mund.o lhe impõe. Não pode comprar a carna
no desdobramento da ação, sem necessidade de recorrer a largos de lastro de couro, única aspiração de Sinha Vitória; não pode
panoramas e ações paralelas, o que não corresponderia ao baixo reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de
nível psicológico dos personagens nem à pouco densa .realidade um governo do qual não panicipa e que lhe aparece como um
na qual eles acuam. Temos assim, relacionados em uma estturura fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão,
organicamente coerente, os vários problemas que generaHz.am e daquela k.afkiana irrupção em sua vida de um ordenamento social
tipificam o universo agrário brasileiro, representados em situações que de não tem condições de compreender, já que não contribuiu
e destinos humanos concretos: a exploração social, a solidão dos para criá-lo. É sua solidão radical, sua marginalização involuntária
personagens, a consciência contraditória (entre passividade e da comunidade humana, sua &lta de intcgraçáo com seus seme-
revolta) do trabalhador rural brasileiro, a frwtração de suas mais lhantes, que o tornam impotente e passivo, obrigado a aceitar e a
ínfimas aspirações, as possibilidades (concretas e abstratas) de capitular em face das regras de um jogo que lhe parece absurdo,
transcender a situação de miséria etc. regras que ele não discutiu, de cuja confecção náo panicipou e
Como dissemos acima, só aparentemente o nomadismo de cujos aurores ignora. Desligadas do "grande mundo" da história,
Fabiano decorre de um fenômeno narural, ou seja, da seca: ele se da participação criadora na vida pública, as camadas cra.balhadoras
liga, em primeira instância, ao &to de Fabiano não ser proprietá- do campo brasileiro - da qual Fabiano é um típico representan-
rio, o que o impede de vincular-se definitivamente à terra; e, em te - estão igualmente condenadas (socialmente condenadas) ao
178 CAALOS NWON CouTMto

restrito "pequeno mundo" da solidão, o qual, neste caw, não para garantir as condições mínimas que possibilitem a manuten-
possui nem mesmo os "refinados atrativos" do seu equivalente ção da vida humana, é preciso se opor à realidade e buscar uma
nas classes dirigentes. via que aponte para fora daquele universo de miséria e de morte.
Contudo, a passivi<bde se combina em Fabiano com um Portanto, o valor buscado por Fabiano, que o leva a contrapor-se
profundo sentimento de revolta. Este sentimento de insaris&çáo a um mundo alienado - busca e contraposição que f.u.cm dele, cm
revcl.a-sc frcqucntcmcotc: cm sua contraditória atitude cm fu:c do sentido bastante lato, um "herói problemático"-, é simplesmente
"soldado amardo" (e do governo que ele representa}, no seu difkil a vü/4 como realidade imediata. Desligado da classe social à qual
desafio lançado a todos quando está ~bado nas festas da cidade, pcnc:ncc, Fabiano não pode compreender claramente os meios
no seu desejo irrealizado de abandonar aquela vida de rnisúia e pelos quais é possível a rcalizaçáo do seu desejo de viver. Por isso,
humilhações pelo cangaço etc. Todas essas aticudcs revcl.am, cer- este desejo se apresenta nele como uma aspiração problemática,
tamente. possibilidades de reação ao mundo hostil e desumano; como uma busca solitária.
contudo, ainda que Fabiano não execute nenhuma delas (nem Não levando à prática nenhuma das possibilidades abstratas de
mate o soldado, nem brigue oom todos, nem se tome cangaceiro), reação acima expostas. Fabiano permanece disponível para se en-
sabemos - como também Graciliano o sabia- que elas não passam gajar na única possibilidade de resolução d os seus problemas, que,
de possibilidades abstratas, formuladas a partir de wn projcro pu- "" universo do romance, apresenta-se como concreta: a integração
ramente individual e que, por isso, são impotentes para modificar na economia capitalista, o u pelo :i-ccsso à pequena propriedade
a realidade. A execução de qualquer delas revelaria, mais cedo ou da terra, ou pela sua transformação cm operário wbano. Este
mais tarde, sua abstratividadc, contribuindo assim para tomar é o conteúdo das reflexões de Fabiano, quando de sua segunda
dcAnitivamente insolúvel a problemática do nosso personagem. "retirada": "Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi
Apesar da passividade exterior (da não execução de seus "pla- esboçando(...). Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam
nos"), cm nenhum momento Fabiano desiste de lutar, de resistir depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas,
ao mundo hostiJ, de buscar uma situação que o arranque da seriam diferentes deles".'°'
condição de animal e o conduza a wn mínimo de dignidade que Nacuralmcntc, a longo prazo, essa integração no capitalismo
tome possível uma vida realmente humana. O conteúdo de seu seria a fonte de novos problemas, que Fabiano ainda não pode
inconformismo - a força "demoníaca" que o impele para a &ente. pcrcebcr. Contudo, tÍmlro do uniwrso do romance, isto t, cm fu:c
mantendo sempre viva a esperança - nio é a complexa busca de do valor buscado - a vida, pura e simplesmente - , essa perspectiva
valores autênticos (individualisw ou comunitários) que caract.criza representa uma possibilidade concreta de superação dos problemas
o romance do capitalismo evoluído: é a manifestação imcdiaa essenciais que são aí aBorados (ainda que os substitua por outros},
do que há de mais elementar no homem, o seu ~o tk viver. E já que pode criar as condip;es que pcnnitam a Fabiano ou aos seus
é este simples desejo de viver, de autoconscrvar-sc, que o opõe descendentes manterem uma vida minimamente digna. Deve-se
dccisiv.amcntc a um mundo inóspito, a um sistema de monc e frisar que essa pctspecriva não é jUSta apenas do ponto de vista da
destruição, pois a acomodação ao sistema do latifUndio significa, estrutura formal de Vuias &cas, da c:oa&lcia interna da obra; ela
para o trabalhador rural brasileiro, uma monc lenta e inexorável. A representa o próprio movimento essencial da realidade brasileira,
passividade absoluta, a adequação àquele mundo vazio e estático, é
uma opção - consciente ou não - pela autodestruição: para viver, 'º' G. Ramos. v-..w-. São Paulo. Martins, 1963, p. 169.
180 CAll.os NfUOll ColmNHO CuLTUAA r SO()(OADI NO BllASIL 181

na medida cm que o desenvolvimento capita.lista pode- o que não Fabiaoo, tomado isoladamente, individualmente, pode por
significa necessariamente que o f.ará - elevar o nfvd de vida dos ccno fracassar, não conseguindo resistir à nova soca, ou jamais
trabalhadores rurais levando-os a uma condição mínima de sub- se tomar um pequeno proprietário ou um trabal..bador urbano.
siscência de que dcs hoje não desfrutam. A forma, cm Graciliano, Mas sua dassc conseguirá - tem a possibilidade concreta de f.azb.
é uma maneira justa de representar artisticamente o movimento lo - destruir o sistema social que a oprime, atingindo um nível de
e a estrutura da realidade. vida com condiçôcs mínimas de dignidade. Na medida cm que
Assim, na obra do romancista alagoano, Fabiano é o único o verdadeiro tipo realista é uma fusão dialética (não mecânica)
"herói positivo", não no sentido de que se realize hwnanamcntc, de indivíduo e de classe, de singular e de universal, Fabiano -
triunfando na luta contra o mundo hostil aos seus projetos (como mesmo enquanto indivíduo - possui a possibilidade de realizar
o T<nn jonc de Ficlding, por exemplo); mas no scnódo de que é o objetivamente os valores mínimos a que se propõe. Por isso, cm
único que tem a possibilidade concrrta de &zê-lo, ou seja, o único Vuias secas, seu futuro é um futuro abcno, contendo a possibili-
ruja solidão- mesmo no interior de sua situação concreta presente dade da realização ou do fracasso. E essa abmurrz para o futuro,
- não é ncccs.sariamcnte trágica, já que pode ser superada. E essa ao contrário da ncc.cssária r:ragicidade de Paulo Honório e Luís
possibilidade decorre, naturalmente, não de Fabiaoo enquanto in- da Silva. é dada - cm ambos os casos - pela própria realidade
divíduo, mas da classe social à qual pertence. Pois todo indivíduo, brasileira: enquanto a burguesia latifundiária e a classe média
mquanto individuo, possui uma ampla margem de liberdade para tradicional não podem transcender, enquanto classes, o "pequeno
adotar este ou aquele ponto de vista de classe. Ao contrário do mundo" da misma brasileira'04 - sendo necessariamente trágicas
que pensa o mecanicismo - ou, cm litcraruca, o narural.ismo -, a ou grotescas cm sua tcnt<ltiva de fazê-lo - , a camada trabalhadora
participação do indivíduo em uma determinada classe social não rural é uma classe potencialmente revolucionária, que participa do
é um fato mecânico, estabelecido de urna vez por todas. Esta par- conjunto de das.ses sociais que tem real iotcrcssc na destruição da
ticipação revela-se, precisamente, nos momentos decisivos da vida mislria brasileirrz e na criação de um '"grande mundo" democrático.
de um homem: na atitude e na maneira de reagir cm face de um Naturalmente, Fabiano - e mesmo toda a classe a que pcncncc
problema vital colocado pela realidade, atitude e reação que podem - podem fracassar cm sua busca de realização humana, tendo as
difc.rir das assumidas noml2lmente na vida cotidiana. Dessa forma. suas (ainda confusas) esperanças convertidas cm trágicas ilusões
Paulo Honório, Madalena e Luís da Silva, enquanto indivíduos, (como tem sido o caso até nossos dias); entretanto, há a possibi-
não são apriorisr:icamentc condenados à tragédia; sua r:ragicidade lidade concreta de que isto não ocorra. Tal possibilidade, assim,
se toma ncc.css:$ria no momento cm que, diante de determinado é suficiente para permitir a Graciliano esboçar urna perspectiva
problema, eles assumem a posição de determinada classe - e esta otimist2 cm seu último romance, sem com isto sair dos amplos
classe, enquanto classe, não comporta nenhuma perspectiva ou limiccs do verdadeiro realismo.
possibilidade (concreta) de solução para o problema cm questão. Trata-se de um caso raro, não muito comum na história do
Paulo Honório não cooscgue superar o seu egoísmo burguês, Ma- romance, essa criação de "heróis positivos", isto é. de heróis que
dalena permanece cm seu radicalismo solitário pequeno-burguês realizem os valores implícitos na sua ação, triunfando do mundo
e Luís da Silva não transcende a revolta marginal e inconsequente hostil. ou que, simplesmente, apresentem uma possibilidade
que é a única que o seu isolamento igualmente pequeno-burguês
permite: daí a r:ragicidadc de suas vidas. '" Uso o wmo no scncido cm que Hcinc usou "m!Xria alemã".
CULTVM l SOOfOADf ..O 8AASIL 183

concreta de fazê-lo, não tendo a sua " busca" um caráter-neccssa- mais adequada, já que mais próxima do pathos positivo d.a epo-
riamence trágico. Este foi o caso, por exemplo, do grande romance peia (na qual a "positividade" do herói é absoluta). Além disso,
inglês do século 18 (que se pense em Tom fones, de Fielding, ou para que o personagem contivesse cm si as várias possibilidades,
cm MoU F/andm, de Defoc). Tratava-se de uma época de ascc:ruáo para que f~ um personagem "aberto" (de positividade posdw/),
da burguesia, de rompimento das limitações feudais., sendo a vi- Graciliano aproxima Fabiano - mais do qualquer outro de scw
tória do herói a expressão da vitória dos valores individualistas da personagens realistas - do universal, d.a "média". Fabiano não
burguesia sobre os valores estratificados do feudalismo. Quando a realiza nenhuma das possibilidades extremas contidas cm sua
sociedade burguesa se solidificou, revelando sua própria limitação classe (por exemplo, a revolta consciente. a adesão ao cangaço, ao
e vacuidade, essa vitória do indivíduo contra o mundo, contra as beatismo etc.); mas, com isso, não perde a sua singularidade, a
formas vigentes d.a alienação, tomou-se cada vez mais problemá- sua individualidade, ainda que não seja - como Paulo Honório,
tica: o individualismo se faz trágico e revela o seu caráter ilusório Madalena e Luís d.a Silva - um tipo excepcional. Mas ele tam-
(que se pense cm Balzac, Stendhal ou Flaubert). Graciliano, em pouco é uma encarnação alegórica de princípios abstratos, como
V'~ secas, reencontra elementos d.a forma estrutural do roman- o são, por exemplo, os "camponeses" do romance Corpo vivo, de
ce inglês, naturalmente com diversidades gritantes e profundas: Adonias Filho. Ao lado d.a exigência formal, estrutural, a própria
aqui não se trata, certamente, d.a concretização de uma vitória, realidade permitia essa caracterização: ela se baseia, sobretudo, na
como em Fidding e Defoe, mas de sua possibilidade (como é o baixa complexidade d.a psicologia de nosso trabalhador rural, o
caso, ademais, de grande parte dos romances socialistas, em que que toma diflcil e problemática, ainda que não impossível (como
o combatente pelo novo mundo - mesmo que parcialmente der- o demonstram alguns romances de José Lins do Rego), uma ca-
rocado - tem a possibilidade concreta de triunfo futuro: que se raeterizaçáo mais singularizada e individualizada. Mesmo como
pense, por exemplo, na heroína de A mãe, de Gorki); e não se trata tipo médio - e, no caso, talvez precisa.mente por isco -, Fabiano
também do capitalismo como realidade efetiva, triunfàntc - como é um tipo autêntico e realista, um tipo particular, ainda que mais
no romance inglês - , mas sim como horizonte, como perspectiva voltado para a universalidade do que para a singularidade (que se
de solução (para insistir no paralelo: como o socialismo aparece recorde a afirmação de Lukács, segundo a qual a particularidade
em alguns romances socialistas). - a tipicidade - é um ponto cuja fixação varia no interior de um
Essa estrutura e esse universo determinam, cm Vidaf secas, campo, o qual tem por limites extremos a universalidade abstrata
novas diversidades técnicas, estilísticas: a concentração novdística e a singularidade bipostasiad.a).•Oj
e dramática, própria dos romances cm que fracassam as tentativas
do herói (Bahac, Stendhal, o Graciliano de São &rnardo e An- 6
gústia). cede lugar a urna composição aberta, relativamente linear, Trabalhando sobre urna realidade social e humana extrema-
cm que as partes possuem uma maior autonomia relativa, embora mente complexa - que comporta cm si, cm siru.açáo de simultânea
se mantenha a organicidade (como é o caso em Tom fones e em contradição e integração, sistemas sociais diversos e em diversas fases
Mo// Flanders). A diminuição d.a dramaticid.ade - aliada à solidão de evolução -, Graciliano recorre, cm sua tentativa de captá-la a.reis-
dos personagens, à sua dificuldade de comunicação - determina
de imediato, em V'~ secas, a supressão quase cotai do diálogo. •os G. l..ulcács, /,,woJ"{k 11 1111111 tt111itJ1 1'IJll'ldru. Rio de ]lllleiro. Oviliuçio BruilciD,
A possível "positividade" do herói torna esta composição aberta l 970, p. 242 e ss.
184 C-.os Nruot1 CounNHo Cu rruM f 'IOCIEt>AOE HO BAAS>l 185

ricamente, a diversas formas de estrutura romanesca. Ele recria, ao na qual, em alguns casos, o capitalismo já surge como limitação e
reproduzir a total.idade brasileira cm seus vários níveis de evolução, como fator de intensificação da alienação (determinando assim,
algumas das formas básicas que a estrutura romanesca assumiu cm ainda que abscracunente, uma aspiração e uma tendência para o
seu proc.c:s.so histórico-sistemático de desenvolvimento. A ncccssária socialismo); e. cm outros, como fator de progresso e de liberta-
tragédia do individualismo burguês determina, cm São Bernardo e ção cm face da velha sociedade semicolonial. O fato de que esta
cm Angústia. a recriação da esourura própria de Balzac e Stcndhal, procura tenha sido cm Graciliano coroada de 6tito - graças ao
com o "herói problemático" que busca a realização humana a partir recnconuo da estrutura formal dos grandes clássicos, não como
da sua individualidade, sendo derrotado no combate com o mundo forma vazia e mecanicamente aplicada, mas como forma co~ta
alienado e prosaico, mas tomando consci&icia, no final, da inuàli- ek um contníáo concnUJ, como reflexo artístico da realidade bra-
dade de seus csforçcs. Essa mesma problemática, intenSificada ao sileira - faz dele, ao mesmo tempo, um clássico e um realista, o
ponto da dissolução interior do indivíduo, determina cm Angústia construtor de urna obra na qual os prindpios a.rústicos universais
a absorção de recursos técnicos desenvolvidos pela vanguarda (do e a reprodução do hic et nunc não estão cm contradição, mas cm
mesmo modo como, por exemplo, nos últimos romances de Tho- orgbica e viva unidade.
mas Mann). A crise do individualismo, a luta por encontrar um A relação entre a estrutura romanesca e a realidade, contudo,
sentido transindividual para a vida - expressão de wna época em não é uma relação direta, fundada apenas sobre uma homologia
que o indivíduo, enquanto indivíduo, já oáo é mais um valor cm acidental, mas uma relação dialética mediatizada por uma visão
si-, encarna-se no ripo de "herói problemático" representado por do mundo. Esta visão não é jamais, no caso da verdadeira arte,
Madalena, o qual busca um valor comunitário, mas que, dada a uma visão puramente individual: o verdadeiro sujeito da criação
inexistência objetiva da comunidade e o caráter soütário da busca, artístiç.a (ou w!Nral c:..m ~ntido amplo) é o gênero humano clas-
é impotente cm face da realidade e fracassa igualmente (este tipo de sística e historicamente determinado, isto é, um sujeito-total.idade
herói surge, no romance moderno, com O IdúJta de Dostoievski). cujo ponto de vista permita uma visão totalizante das relações
A complexa dialética que relaciona, cm São Bernardo, os dois tipos humanas globais, garantindo assim a universalidade necessária
de "herói problemático" fundamenta a criação de uma estrutura à criação da grande arte. O conteúdo mais geral da visão do
romanesca original, que expressa a especificidade de nossa contra- mundo que se expressa de modo smslveJ (não conceituai) nas
ditória realidade (uma originaüdade similar pode ser encontrada obras de arte realistas é o humanÍSmQ: a defesa da humanitas - da
em Os irmãos Karamaz.t>v, na relação entre os dois tipos de lvá e integridade e da unidade do homem - contra a alienação e a
de Aliocha.) Finalmente, com Vidas secas, temos o esboço de um mutilação do indivíduo e da comunidade autêntica. No caso
"herói positivo" - cuja problematicidade pode se tornar acidmral. concreto do romance, este humanismo expressa-se sobretudo,
deixando de ser ~cessária -, com a consequente criação de uma salvo raras exceções, cm sua forma negativa: na crítica radical dos
estrutura aberta, mais próxima da composição livre da épica clássica fundamentos de um mundo alienado, que obstaculiza ou impede
do que da concentração novelística d pica do romance do sécuJo 19 as melhores aspirações do homem, condenando-o à soüdáo e à
(este é o caso, também, do romance picaresco do sécuJo 18 e, cm impotência trágica. Ao lado desse aspecto negativo e crítico, en-
circunstâncias diversas, de alguns romances socialista.s). tretanto, a defesa da humanitas expressa-se também numa forma
Em todos esses casos, Graciliano procurou transcrever artisti- parcialmente positiva na criação do "herói problemático", isto é,
camente aspectos da nossa realidade, daquela complexa realidade na representação da práxis criadora e prometeica do homem que
CULTUllA f SOCICOA.I)( NO 8RASll 187

não se conforma passivamente à alienação e luta por ..-iconuar se baseia no humanismo militante do proletariado - fundamcnta-
um sentido autêntico para a vida, mesmo que. cm muitos casos, sc, cm muitos casos, na consciência possível da classe operária,
seja esta luta igualmente alienada - porque fundada cm seus sempre que esta, por condições históricas determinadas, aliena-se
próprios recursos individuais - e, por isso, impotente e trágica. à ideologia burguesa vulgar e trai o humanismo milit<Ultc que é a
Em suma, as lutas do herói problcmitico, sua busca desesperada sua verdadeira expressão idco16gica.
e sua impotente oposição à alienação - desespero e impotência Voltemos a Graciliano. Enquanto sua visão do mundo se ex-
decorrentes sobretudo de sua solidão - , constituem um violento pressava cm um pessimismo impotcntc'.i, que negava a ação do
protesto contra a alienação capitalista e uma afirmação, ainda que homem sobre o "meio ambiente", ele revelou-se incapaz de criar
por vcus igualmente alienada e abstrata, das profundas aspirações WJU verdadeira estrutura romanesca realista: daI o naturalismo,
do homem a uma vida autêntica e comunitária. e a consequente dissolução da forma, que vemos cm Caah. Sua
Entendido cm sua generalidade, é este humanismo o fun- verdadeira criação romanesca corresponde ao período no qual
damento idcol6gico da esuutura romanesca. Entretanto, com a Graciliano assimilou e defendeu os valores do humanismo. Mas
evolução da vida social, tal humanismo adquire formas conactas essa defesa s6 se tomou possível porque Graciliano se colocou
e diversas, cm relação com a classe social e com a época histórica do ponto de vista de um grupo social que critú4va a sociedade,
que constitui sua infraesuurura. Em outras palavras: o hWD2filsmo que expressava cm sua práxis uma potencial subversão da ordem
implícito na forma romanesca como gênero literário cscl sujeito vigente, do mundo alienado e do cárcere da solidão. Ao que nos
a variações históricas q ue determinam dialeticamente as variações parece, o humanismo de Graciliano, sua visão do mundo, são o
no interior da própria estrutura romanesca, ou seja, as diversidades máximo tk contciJncia possíveldo J>OllO brasikiro, isto é, do conjunto
históricas tanto da natureza do herói quanto da sua relação com de c1a.sses sociais que se opõem à realidade scmicolonial e que lutam
o mundo e com os valores implícitos cm sua ação. Desde logo, pelo desenvolvimento independente, nacional e democrático de
devemos advertir que a visão do mundo humanista quase nunca é nosso pais, não hesitando, nesta luta, cm formular WJU perspec-
a expressão da consciência real de uma classe, mas de sua consciên- tiva socialista, ainda que abstrata (tal como as próprias condições
cia posrlvef•; isto é, o escritor (ou o anista, ou o pensador) torna permitiam). Acreditamos que s6 a adesão ao ponto de vista deste
coerente e orgânica, ICV2Jldo às últimas consequências, a visão do conjunto de classes poderia permitir, a um escritor brasileiro da
mundo apenas esboçada ou intuída- e sempre hcrcrogcncamcnte, década de 1930, a criação de uma estrutura romanesca realista.
cm composições não orgânicas com outras visões do mundo - pe- A definição por esta ou aquda classe no interior dessa frente
las classes sociais das quais são os representantes ideológicos. Daí
porque o romance realista burgu&, ou crítico, é o oposto radical da '
07
De wna mancin crrõnea, a meu YCt, doís inidlgmtcs crfrioos de Graclliano Ramos
visão do mundo real da burguesia dominante; ele se fundamenta gcocnllxar.un esse pcssimlsmo para toda a obra do romandm, transformando-o cm sua
ideologicamente no humanismo burgu& clássico, que é o máximo vls1o do mundo F2I- Trua-se de Antonio Canclldo (" Aoçto e oonllmo•, in: G. Ramos.
CMtá, São Paulo. Mutins, 1961, p. 53) e Rolando Morei Pinto (G~ a--
de consci~ncia possível do gênero humano cm dada etapa de sua t • •· Assis. s. e., 1962, p. 25), que &bm, rapcaivamcnce, cm "pcaimismo radic:ú"
evolução histórica. Da mesma forma, o romance socialista- que e cm "c:edc:ismo. padmismo e nqptivismo". Altm dislo. une esses dois crlóoos uma
aocntuaçio exagrr.da do upca:o autobiopifico da. roM11Jtta de Gracili.ano- o que. cm
minha opinião, contribui pouco para a análise liJmlrltt e ~ de tais romancr.s.
Nio obstante, o belo ensaio de Ondido continua xndo wna imporwuc conuibuiçio
pa.ra o conhecimento da obra do rormodsa a1agoano.
188 CAM.os NE1.50N Ú>UnNHO ÚILTUM f SOO(OAOl NO BMSIL 189

única (cqujya}ente brasileira do Terceiro Estado europeu).traria atinge uma perspectiva simultaneamente positiva e negativa, sem
consequências altamente problemáticas. A partir da consciência. a qual o romance ccalista é impossível. Pois é preciso criticar o
mesmo possível, do conjwno dos crabalhadores rurais ou da classe mundo cm sua degradação, cm sua vacuidade alienada; mas é
média urbana, seria basWltC difícil a criação de uma gmide fllte: preciso rcconhccc:r também que, apesar de cudo, de é ainda su-
essas classes não possuíam um ponto de vista global, universal, 6cienccmcntc positivo para permitir e condicionar o nascimento
sobre a realidade brasileira, já que estavam interessadas apenas de "heróis problemáticos", isto é, para manter um mínimo de va-
cm uansformações parciais, em reformas (os trabalhadores rurais, lores que fundamentem o "inconformismo demoníaco" de alguns
por exemplo, não tinham condições de formular claramente, pelo indivíduos ou grupos.
menos de imediato, uma perspectiva socialista; os seus inccresses Aliás, a nosso ver, não é Graciliano o primeiro pensador ou
se confundiam com o acesso à pequena propriedade, com uma escritor a fundar uma visão coerente sobre um conjunto de classes
reforma agrária capitalista). O proletariado, por sua vez, ainda era (sendo esta visão coletiva diversa das visões paniculares das classes
enue nós uma classe majoritariamente desorgaruzada, impotente que compõem o conjunto). Este é o caso, mutatis mutanáis, de
e marginalizada; a adesão explícita aos seus pontos de vista - à Rousseau e dos n:volucionários jacobinos franceses. A ideologia
sua consciência possível - levaria quase necessariamente, no plano democrática de Rousseau era o máximo de consciência possível
da criação artística. a uma queda na utopia, à negação radical da de todo o povo, do Tcrc:ciro Estado que se opunha ao feudalismo
realidade e, consequentemente - como foi o caso dos nossos "rea- e ao filistcísmo, mas que já apontava rambém para uma crítica do
listas socialistas", como o primeiro Jorge Amado - , ao romantismo próprio capitalismo. A burguesia repudiou a ideologia democrá-
"revolucionário", ao antirrealismo. A adesão à burguesia, cm seu tica de Rousseau e de sua encarnação jacobina {que se pense na
sentido esuito, determinaria limitações não menos evidentes, já reação tcrmidoriana), enquanto o proletariado, cm sua evolução,
que a nossa burguesia jamais formulara - nem tinha condições superou-a dialcticamcnrc (basta lembrar Babcuf e a Conjuração
potenciais de f.u.ê-lo - urna visão do mundo humanista própria, dos Iguais). Disso resultou o uágic.o isolamento dos jacobinos cm
rigorosamente independente tanto da ideologia do colonialismo 1793, seu dilaceramento interior, a manifestação concreta da real
quanto do humanismo militante do proletariado. Graciliano contraditoriedade que Rousseau e Robespierre ignoravam. Mas,
uansccnde o humanismo bur-gub possível à burguesia brasileira, apesar desse &acasso prático-polític.o, o dcmocratismo igualitário
na medida cm que rejeita qualquer compromisso com o mundo de Rousseau representou, cm seu tempo, um dos pontos de vista
decadente, com o colonialismo cm crise, com o "pequeno mundo" mais elevados e profundos que a humanidade havia alcançado, o
da solidão e do egoísmo, e em que aceita, ainda que abstratamente, máximo de consciência possível no interior da sociedade europeia
a perspectiva do socialismo; mas tamb6n não atinge, em SU4 obra de então. Como ideologia, como visão do mundo {e também e.orno
tÚ ficção, a concrcticidadc do humanismo proletário, já que era fator de organização da vontade coletiva, como d.iria Gramsci),
impossível, a partir de um ponto de vista inteiramente crítico do apesar de seu caráter poUticamcnte utópico, o igualitarismo re-
capitalismo nascente, a formação de uma perspectiva globalizante volucionário - a expressá.o politicamente mais radical do grande
e a fidelidade ao real. Precisamente na medida cm que se apoia hu manismo clássico - cumpriu a sua missão histórica.
sobre um conjunto de classes realmmte n:volucionário -e que não O mesmo pode ser dito da visão do mundo dcmocrático-
se isola da sociedade, não se marginaliza de uma práxis concreta, bumanista de Graciliano. Também a realidade brasHeira, cm sua
mas tampouco concilia com a "miséria brasileira" - , Graciliano evolução, demonstrou a contraditoriedadc implícita na aliança das
Cumiu. 1 SOOEDAD( NO BllASll. 191

forças anti-imperialistas e democráticas; nem por isto, conwdo, o principais personagens d o romance socialista náo são mais pro-
ponto d e vista do humanismo democrático popular deixou de ser blemáticos (a náo ser na medida cm que a sua problcmaticidadc
o ma.is adequa.do, cm dado momento histórico, para a criação de decorra do ca.rátcr problemático da comunidade da qual partici-
grandes obras realistas capazes de figurar a oomplcxa e rontrad.icória pam): os $CUS valores são claros, definidos pela $\la participação
sociedade brasileira. E cabe ainda observar que, não obstante esta na comunidade. Essa comunidade, entretanto, manifesta a sua
contradito ricdade, o humanismo de GraciJiano abre-se para o problcmaticidadc cm dois casos: 1) na medida cm que não sã.o
futuro e tem os elementos para superar a necessária ilusáo sobre a inequívocos, mas sim ambíguos e contraditórios, os meios pelos
q ual se assenta: como Rousseau, G raciJiano náo se recusa a criticar quais os valores - a revolução socialista e o humanismo proletário -
violentamente o filistcfsm o burgu~. jamais confundindo o grande devem ser conquistados na rcalidadc (que se pense na comunidade
humanismo com a defesa d os interesses particulares da burguesia; revolucionária dos comunistas chineses, cm A condipí.o humana d e
como Thomas Mann, este lúcido hwnanista d e nosso tempo, Malrau:x: ela está dilacerada entre o espontancísmo revolucionário
Gradliano não se recusa a enxergar no socialismo o h orizonte e a disciplina imposta pela Internacional); 2) na medida cm q ue
n o qual o humanismo burgu~. conservando-se e superando-se, a própria formação da comunidade é problemática, estando ela
d esemboca ncccssariamcncc*. permanentemente ameaçada de dissolução pelas forças do mundo
E aqui se coloca um problema fundamental na análise da obra hostil (recorde-se a dificiJ formação da comunjdadc dos colcoses,
de G raciliano: qual o lugar que ele ocupa na história da evolução cm Temu tksbravadas de Cholokhov). N ão importam aqui as
do realismo? ~ ele um realista crfcico ou um realista socialista? A variações interiores da estrutura do romance socialista. mas sim
distinção entre as duas formas d e realismo náo é, de modo algum, sua característica difcrcnc:Wiora essencial: o caráter comunitário,
um p roblema puramente estilístico, o u de tema, o u mesmo do não mc.r amcntc individual, do " herói problemático"'".
método: i um problnnll tk estrutura. N o caso do romance, a passa- Inexiste na obra romanesca de G raciliano este tipo de "berói
gem d o realismo critico ao realismo socialista tem como principal problemático comunitário" (ou, sob o utro àngulo, h eróis indi-
caracterfstica a substituição do "herói problemático• individual viduais ligados organicamente a uma comunidade). t certo que
por um herói comunitário; ou seja, no realismo socialista, o "herói d ois romances d e G raciliano -SálJ Bernardo e Angústia- possuem
problemático" q ue busca valores autênticos, entrando cm choque
com o mundo vazio e alienado, n áo é mais um indivíduo solitá- .., Coube a Goldmann a dacobcru e dc.:riçio dasa forma auutural do romance, de-
rio, mas uma comunidade problnndtica. Enquanto indivíduos, os senvolvendo t ampliando o csqucnu p elaborado por Lukm cm 1916. cm A ~
"1 ~'· Em Goldmann. cnucanto, cal cscnnur.a ê a>loc:ada como momcnco de
tl'Ulllçlo cncrc 1 dlssoluç5o do lndividw!Umo (Doscoicvskl, os primdroc ro~ de
•• Eim mama ~o do mimdo. 20 que me pattce. nJo encontrou uma cxprcsdo a>nccicwl Malr.aux) t o que de dwm de "romance não biogr.illco de sujclco incxlStentê (que
(filoe6f1Cl) táocoettntequanooa:udsóca, dcvidaa Gracillano. lsto foi unadopoulguns iria de Kafka ao -"'"" ,.,,,,,,,). Cl L Goldnwin, P,,,, llM s~ .IM to1'llDI, eis.,
teóricos do extinto lscb. ootadamcntc por Álvaro Vldn P-tnto, cm sc:u inrcrcssance Uvro p. 33, 103 e n. e 193. A meu ver, csu cscnuur.a - com su.u diversas manifesiações - #.
C4nsdhttú ~ rr~ NICÚINÚ, Rio de Janeiro. lscb, 2 v., 1960. Conrudo, escrevendo o mo~co de tralUiçio entre as diversas modalidades de realismo critico e a furuca
qu:asc 30 anos após Gncili2no- nwn período no qwl as concndiçõos inrcnw cnm as epopeia IOCialis12, isto ê, o ~ épico que poderi subttlruir o ronw>ae e do qwl o
cbsx.s que a>mp6cm o poYO brasildro p hmam aringido um rúvd bem mais elevado PwMA ~de Ancoo Malcarcnlto ê o primeiro esboço. Admitida nosu hipótese.
-. Vieira P-uuo parece-me rcr tbbondo n5o uma •61ofo6a-. ou wm viÃo do mundo, w momcnoo pnha asaim uma gcandc imponinàa na ripologia histcSrieo-simmália
do poYO bnsUciro. mas wm cxprado do múimo de consciCncia poafvd de.~ d.u formu romancsas, sendo a csaurun do que K cem chamado a~ aqui de -realismo
nuis radic:aiJ eh burpem. Por eumplo. a :iai~ do socWismo ~ mulco nuls cbn e IOCiali.suº (cf. meu ensaio ºProblcaw ib lir.mrun IOYiáicaº. ln: C. N. Coll[inho,
evidente cm Gracillano romandsa do que - livro do digito professor Vicita PinlO. u-, """""""- eis., p. 227-253).
192 <MI.os Nll.SOH COUTINHO CUlTURA E SOOIDAOt NO BRASii. 193

uma clara, embora abstrata, perspectiva social.isra; Madalena e um absurdo colocar C holokhov esteticamente acima de Thomas
Moisés apontam para um universo novo, para uma comunidade Mann pela simples razão de ser o primeiro um comunista militante
humana autêntica. Enrrecanco, cm nenhum dos dois romances e o segundo, um burgu& humanista e consciente. O humanismo
esta perspectiva 5C concrcáza ao pomo de determinar o inteiro marxista, naturalmente, fomocc ao artista um ponto de visu mais
universo da obra, transformando o herói problemático cm uma adequado sobre o real, possibilitando-lhe ma.is &cilmentc superar
comunidade e o socialismo cm um valor concreto e efetivo. O a alienação e descobrir as relações humanas essenciais; mas isto
humanismo de Madalena é abstratamente socialisca, contém o pode ocorrer, em determinadas condições hist6ricas, também com
social.ismo como uma possibilidade, como uma tendência; mas o humanismo crítico e democrático que se fundamenta cm uma
Madalena permanece uma heroína individual, buscando sua concepção burguesa do mundo. Em suma, a evolução histórico-
realização humana no plano individual (ainda que aspirando à sistcmática da estrutura romanesca - do realismo critico ao ~
fraternidade e à comunidade). Por isso, ela é uma solitária, uma mo socialista- não implica uma correspondente evolução do valor
impocence, necessariamente condenada à tragédia. Também Moi- artístico, como pensam os marxistas vulgares: cada uma dessas
sés, personagem secundário de Angústia, é um solitário, dissociado estruturas, id&iticas na diversidade, representa a form4 coermte e
da comunidade, antes ansiando pelo social.ismo do que lutando orginica de reproduzir artisticamente - através de uma visão do
concretamente por ele. GraciJiano, por ccno, critica a sociedade mundo universal - um determinado e espcclfico "estado geral do
capitalista, denuncia a alienação que lhe é incn:nce, a brutal redu- mundo" (Hegel). Desta forma, é o universo da obra, sua coerência
ção dos homens aos estreitos limites de sua vida privada, pondo a interna fundada no reflexo da realidade essencial, e não a posição
nu suas insolúveis contradições (embora evitando, como realista, ideológica do autor - a qual pode, ademais, estar em contradição
q~qucr anticapitalismo romântico, isto é, reconhecendo o que com a visão do mundo subjac.cntc à obra-, é o universo imanente
o capitalismo representava de progressista na estagnada sociedade da obra que define o seu valor artístico.
brasileira). Essa crítica, no entanto, como é o caso nos realistas Mantendo-se no interior das estruturas "clissicas" do roman-
críticos, permanece no interior do universo do capital.ismo: a co- ce, centradas sobre o herói problemático individual, Graciliano é
munidade humana aut~ntica e o homem novo (literariamente: o um realista critico, um dos maiores rcalisras críticos na literatura
herói positivo) são possibilidada, aspirações subjetivas para onde se brasiJcira. Seu otimismo problemático, que compreende a tragédia
dirigem alguns personagens; ainda não são, contudo, uma rea/id;uk como um dos seus momentos dialéticos, é a componente funda-
efrtiva, o sujeito da ação romanesca, como é o caso nas verdadeiras mental do seu humanismo, de sua visão do mundo literária; esta
obras-primas do romance socialisca (A mãe, Terras desbravaáas, A visão, como vimos, é o máximo de consciência possível do povo
condição humana ecc.). brasiJciro cm determinada época, isto é, do conjunto de classes que
Goscaríamos de sublinhar que este afastamento de Graciliano - do proletariado aos setores mais radicais da burguesia, passando
do realismo socialista não implica, tÚ nmhum modo, uma dimi- pelo campesinato e pelas classes médias progressistas - esteve "aJ-
nuição do seu valor artÍstico ou ideológico. Um escritor socialista mmu interessado em destruir o velho BrasiJ, substituindo o cárcere
não é artisticamente superior, por uma nccc:ssidade a priori, a um do "pequeno mundo" mesquinho por uma renovação democrática,
escritor realista crítico: cada um deles, quando verdadeiro artista, pelo "gnuidc mundo" de uma comunidade autêntica. ~essa visão
reproduz a essência da realidade através de destinos e situações tí- do mundo que permite a Graciliano representar os conilitos hu-
picas, criando a estrucura romanesca adequada a rcprodui.i-la. Seria manos típicos de uma sociedade duplamcnce contraditória, já que
dilac:crada não só pela contradição entre o pré-capitalismo,,:aduco O povo na literatura de Jorge Amado
e o capitalismo moderno, como também pelas novas contradições
internas que o capitalismo trn necessariarncnce consigo.
Daí a arualidade pemunente do velho Graça. a grandeza do
seu realismo vigoroso e profundo. O esmagamento dos mdhorcs O povo, cm suas múltiplas cstratificaçócs, não tem sido objcco
anseios e das melhores esperanças, a derroca trágica dos que lutam privilegiado de representação na literatura brasileira; ainda mais
por superar um mundo v:azio e alienado e por encontrar o caminho escassas t&n sido as obras signi6carivas cm que o ponto de vista
da comunidade hwnana democrática são constantes na história uti.l.izado na 6guraçáo cstérica seja o das camadas populares. Isso é
brasileira. Mas, por sobre as tragédias momentâneas e individuais resultado, cm grande pane, como observei cm outroS ensaios contidos
(embora socialmente necessárias), Graciliano Ramos ensina-nos a neste volume, do modo pct:uliar pdo qual o Brasil se modernizou,
ver a pcrspccriva de um futuro mais brilhante, ainda que sem nos pelo qual evoluiu para a consolidaçio de wna formação cconômico-
iludir sobre os obstáculos e as dificuldades na luta por alcançá-lo. soc:W plenamente capitalista. Valendo-se de uma terminologia di-
Analisando o Doltwr Faustus de Thomas Mano, Lulclcs concluiu ___ ,J:! _ .J _
vcnJn~ -
" • • .. .. 1 - . .. .. 1 -
via pms.s•ana , revo uçao passiva , contrarrcvo uçao
com uma frase que se aplica, mUl4tis mu11tndis, ao nosso caso: "O permanente", "modernização conservadora" -, pane significativa
momento trágico pcrmanc:cc cm toda a sua obscura tristeza: no do pensamento social brasileiro converge na fixação dos traços
encanto, observado do ponto de vista do dcscnvolvimcnco da hu- decisivos desse processo de modcmizaçáo: as reformas ncccssárias à
manidade, [o romance manniano) é tão pouco pessimista quanto consolidação do capital.ismo foram sempre feitas pelo alto, atra~
as grandes tragédias de Shakespeare" .11• da conciliação cncre diferences setores das cla.sscs dominantes, com
a permanente tcntaeiv2 de c:xduir o pavo de qualquer participação
(1965) decisiva nas decisões que envolvam as grandes questões nacionais.
Boa pane da nossa literatura, consciente ou inconscicntcmcncc,
adequo u-se a essa modalidade antidemocrática e antipopular de
modernização, afastando as camadas populares de qualquer pro-
tagonismo efetivo no universo de suas figurações estéticas. Disso
resultou uma produção literária que, rruUgrado o seu eventual valor
formal, era e é muicas vczcs portadora de uma visão "intimista",
marcada objetivamente por um viés elitista. Com as muitas exce-
ções que confirmam a regra (e nio é casual que essas exceções, de
Manud Antônio de Almeida a Castro Alves, de Machado de Assis
a Uma Barreto, sejam figuras de pámciro plano na literatura bra-
sileira do século 19 e início do século 20), contribuiu escassamente
para a formação de uma aut~ntica consciência nacional-popular
cm nosso país. Na maior parte das vezes, ela nio pretendia ser (e
''" G. l..ulda, "ThOfTU$ Maon e~~ d.a am moderna", Í1!; /Á., ~ sHrr Utnw1J1f11, não foi) mais do que o "sorriso da sociedade", na emblemática
IUo ele Janeiro, Ovilizaçl.o Brasildra. 196S, p. 249. expressão com que Afrânio Peixoto dcflniu a literatura cm geral.
196 CAAlos N[l.S()fj C011T1HHO C ULTURA f SO(l(OAO( NO BRASIL 197

Apesar de seus inumeráveis méritos, não me parccc que.o mo- sarnente, dos velhos valores de um mundo rural cm dccadencia
vimento modernista de 1922 - pelo menos em sua formulação pelo universo das relações capitalist:as, num processo cm que o
inicial - tenha representado uma efetiva ruptura com essa tendência novo conserva do velho precisamente os scw traços autoritários
"inám.ista" dominante. Essa rupnira me parece rcpmcnrada de modo mais perversos, diminando, ao mesmo tempo, algumas formas
inequívoco, ao contrário, pelo romana: nordestino dos anos de 1930, de solidariedade humana funiliar que a velha ordem ainda com-
o ma.is significativo movimento realista já ocorrido em nossa prosa de portava. Tanto Graciliano quanto José Llns, contudo, também
Seção. Não é casual que o romanc.c nordestino - entre cujas figuras perc.cbcm e figuram cm suas obras as potencialidades alternativas
mais representativas encontra-se precisamente Jorge Amado - tenha que emergem das camadas populares., o que lhes permite - como
surgido logo após a Revolução de 1930, talvez a mais típica manifcs.. à generalidade do romance nordestino - não confundir a dura
tação daquela. modalidade de transição excludente a que me referi. crítica do capitalismo cmcrgcn~e com a apologia noscllgica da
O segn:do da chamada Revolução de 1930 fui muito bem revelado velha ordem scmicolonial cm extinção.
por Antônio Carlos, o líder mineiro da Aliança Liberal: ~Façamos ~também no interior dessa problemática que se situa a pro<ÍU·
a revolução antes que o povo a f.aça". A nova ordem surgida após çáo lite.rária inícial de Jorge Amado. Em sew primeiros romanc.cs,
1930 ccn:arncnte introduziu muitas das reformas modemizadoras particula.rmcntc nos dedicados à região cacaucira, de nos mostra
necessárias à expansão e consolidação do capital.ismo; mas o fez - sempre através da construção de destinos humanos ópicos, ou
sempre no quadro da conciliação com o atraso, sobretudo com o seja, com meios cspcci.6camentc literários - como a introdução
latifúndio, conservando a.çsim, e projetando para o fururo, os traços de valores capitalistas no universo social, através sobretudo do
profundamente autoritários de nossa formação social anterior. O acirramento do individualismo, fu..se cm estreita combinação com
povo já se anunciava como um possívd pror.agon.ista, como o indica a pcrman~ncia do ethos autoritário da velha ordem. Ao mesmo
o temor de Antônio Carlos; mas, precisamente por isso, tratav:.i.•se tempo, e com uma intensidade que talvez não encontremos cm
de reprimi-lo ou de tentar manipulá-lo, mantendo-o à margem da nenhum dos sew contemporâneos, Jorge Amado se empenha na
nova ordem "moderna" que se pretendia construir. construção de tipos populares alternativos, que apontem para a
O romanc.c nordestino forneceu talvez. o mais lúcido ccsremu- superação daquda poculiar modalidade de capital.ismo que ia se
nho dos impasses e das contradições geradas por esse processo de implantando cm nosso país. Decerto, cm não poucos casos - o
"revolução pelo alto". Ninguém expressou melhor do que Gra- mais típico dos quais me parece ser a última parte de Capitães de
ciliano Ramos, por exemplo, os limites humanos da nov:.i. classe arria -, essa busca de tipos humanos alternativos ultrapassa os
dominante que emerge da modernização conservadora: a figura amplos limiccs do realismo e assume uaços utópico-românticos, re-
de Paulo Honó rio, personagem central de São &rnarrio, na qual vdando menos o movimento concreto do real do que as generosas
se mesclam os uaços mais despóticos do antigo senhor de escravos posições poüticas do escritor baiano, o que se fu cm detrimcnco
com a ambição e o egoísmo desmedidos da nov:.i. bwguesia, é talvez da lógica estética imanente do universo romanesco.
a núxima expressão, em nossa literatura, das consequências éticas Não é aqui o local para discutir cm profundidade até que
e humanas da modernização promovida sem (e contra) o povo. ponto a adesão de Jorge Amado aos paradigmas do chamado
Também na obra de outro notávd romancista da época, José Llns "realismo socialista" prejudicou sua produção romanesca dessa
do Rego, podemos vivenciar as tragédias humanas que têm lugar primeira fase, que se encerra com Os subterrân~s á4 /ibert:ituk. A
quando da substituição do engenho pela usina, ou, mais prcci- criação d e tipos alternativos que apenas "ilusuam" a ideologia do
198 c.-m N!UON CoonNHO Cut TUllA E SOCllOAOE "º BllASIL 199

autor, sem brotarem da dinimica do universo social estetiq,mente processo de ttansfurmaçáo pelo alto (no qual os velhos oligarcas vão
reconstruído, não é uma característica apenas de Jorge Amado: progressivamente abandonando o Coronel Ramiro Bastos e sendo
é um ümice que ele partilha com outros imponances escritores cooptados pda proposta s6 aparcntememte "modemizadora" de
socialirnas da época. Porém, mais importante do que registrar esse Mundinho Falcáo, na tentativa de, mais um.a vez, "f.17.er a revolução
limite - que, diga-se de passagem, nem sempre prejudica o realis- antes que o povo a fàça"), destaca-se a autenticidade e sagacidade de
mo presente em suas principais criações do período - , é constatar Gabriela: da sabe operar nos intersácios abcnos pdo impacto dos
como a força criativa de Jorge Amado muicas vezes triunfou sobre novos costumes sobre o f2lso moralismo vigente, utilizando a seu
suas equivocadas concepções estético-ideológicas. Referindo-se a favor todas as mudanças que iam sendo geradas, ainda que lenta e
Balzac, Engds cunhou a noção de "vitória do realismo", buscando contraditoriamente, pelo processo de modernização cm curso. Sua
indicar como a fidelidade ao mundo esteticamente figurado leva resistblcia é individual, como também é individual o combate de
codo grande escritor realista a abandonar, em sua práxis criativa, Ten:z.a Batista - essa versão brasileira da Moll Flanders de Daniel
os próprios preconceitos ideológicos. A obra de Jorge Amado é Dcfoc - para afumar sua personalidade num mundo marcado
uma confirmação da fecundidade dessa noção cngclsiana. Se a pela hostilidade contra os que vbn "de baixo", sobretudo quando
"vitória do realismo" não consegue se afumar cm todos os seus se trata de um.a mulher. Mas é esta, precisamente, a resistblcia
romances iniciais (ela me parece particularmente comprometida possível num universo social condicionado pelo antidernocratis-
na trilogia Os subterrâneos da liberdade). cercamente está presente mo, pela modcmizaçáo excludente. Muicas vcz.es essa simpatia
em muitos ddes, em particular cm Terras do sem fim, sua melhor pdo povo leva Jorge Amado a aceitar acriticamcnte muitos dos
produção dessa primeira fase.. preconceitos vigentes nas camadas populares. Mas o fato é que,
A denúncia do stalinismo, cm 1956, par ocasião do XX Congres- indicando quase sempre com realismo a presença dessa resistência,
so do Paródo Comunista da U nião Soviética, levou Jorge Amado a Amado nos mostra - através de recursos especificamente estéti-
rever radicalmente SU2S concepções estéticas e ideológicas, levando-o cos - como o povo brasileiro não é a massa amorfa manipulável
ao abandono dos dogmas do chamado "realismo socialista". Ao mes- imaginada pelos defensores dirimas das transformações pelo alto,
mo tempo cm que deixa de ser um "stalinista ferrenho", para usar sua mas sim um corpo social vivo e complexo, que detém os recursos
própria autocaracterizaçáo, Amado conserva uma visão do mundo para se tomar um dia o principal protagonista de nossa vida social,
humanista e socialista, enriquecendo-a agora com urna explícita política e cultural.
e consciente adesão ao valor universal da democracia. Com isso, Um outro modo de rcsis~ncia, dessa feita coletiva, é a afir-
fortaleceu-se a sua capacidade de criar tipos populares autenticamente mação pelo povo, aberta ou veladamente, de seus próprios valores
rcallstas. As alternativas ao capitalismo autoritário, àquela ordem culturais e simbólicos contra a marginalização ou mesmo a repres-
cujos valores de continua a denunciar, são cada vez mais buscadas são impostas pelas classes dominantes. Em Tenda dos milagres, que
na própria vida cotidiana das camadas populares, nos múltiplos o autor cem razão em considerar o seu melhor romance, Amado
recursos éticos e cultw:ais de que o povo dispõe para enfrentar, com nos mostra cxcmplanncnte o modo pelo qual as nossas classes
astúcia e sagacidade, as siruaçõcs de oprcs.sáo e humilhação a que é dominantes conccbcram e continuam a conceber a modernidade
submetido pelos "de cima", pelas classes dominantes. no Brasil: "moderno" seria impor a cultura e os valores "brancos",
Isso já se evidencia claramente em Gabriela, cravo e canela, o "primeiro-mundistas", extirpando - até mediante a repressão -
primeiro romance dessa nova fase. Contra o pano de fundo de um o "acraso" representado pelas pretensas "superstições" negras e
200 C-.os Nll.50tf CouTINHO

populares. A luta pela legalização e reconhecimento dos.cultos A imagem do Brasil na obra


afro-brasileiros, cravada por Jorge Amado tambbn quando par- de Caio Prado Júnior
lamcnt:u" comunista, encontra cm Tmáa dos milagra a sua mais
bela expressão literária: pelo menos cm dado momento de nossa
história, a conquista pelo povo do direito de expressar abcrnuncntc
seus valores, sua rcligiio e sua cultura significava um modo de
romper com um aspecto importante da ideologia da modc.mização 1
conservadora. Com lucidez realista, Jorge Amado faz com que Embora tenha consagrado a maior pane de sua obra historio-
Pedro Arcanjo - um dos seus personagens mais bem construídos gráfica à análise de nosso passado, é inegável que o objetivo central
- , ao mesmo tempo cm que luta tcnazmcncc pela legalidade dos da rdlexio de Ca.io Prado Júnior - o ponto focal a panir do qual
cultos afro-brasileiros, suspenda o juízo quanto ao seu eventual se articula o conjunto de sua ampla investigação histórica - é a
conteúdo de verdade. O que conta - é o que parece nos dizer compreensão do Brasil moderno. Não é casual que o ótulo de sua
Jorge Amado - não é tanto discutir o conteúdo de verdade dessa história geral de nosso país - previsa. para quatro tomos, mas dos
ou daquela expressão cultural (essa é uma discussão a ser travada, quais foi escrito apenas o primeiro, dedicado à "Colônia" - seja
dcmocraticamcncc, com instrumentos especificamente culturais); Fomulfáo do Brasil contnnpon1neo'' '. Pode-se traçar urna Unha con-
o fundamental é assegurar ao povo, à sua cultura e aos seus valores, ón ua que liga entre si a identificação do "'sentido da colonização",
condições de alcançar um pleno protagonismo na consuução da efetuada no brilhante capítulo com que se inicia essa sua obra-
sociedade brasileira e, cm particular, de uma cultura aurcntica- prima sobre a colônia (de 1942), e as propostas para a "revolução
mencc nacional, democrática e pluralista. bràsilcira", explicitadas cm sua úlcima produção signiAcativa (de
Tanto cm sua vida quanto cm sua obra, Jorge Amado sempre 1966). Mesmo quando trata do passado, Ca.io Prado tem sempre
reafumou sua crença - para nos valermos de suas próprias pala- cm visa. a investigação do pmm~ como história, o que implica
vras, cm Terna &tist11 - "na vida e na invencibilidade do povo, para de, enquanto marxista, uma análise dialética da g~ncse e das
mesmo quando levado às últimas resistencias, quando restam perspectivas desse presente.
apenas solidão e morte". Isso faz dele - ao lado de Lima Barreto, Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua reflexão
de Graciliano Ramos, de João Ubaldo Ribeiro e de alguns oucros historiográfica, isso indica que nela estão contidos, a.inda que só
- um dos maiores porta-vous das camadas populares na Htcrarura implicitamente, conceitos de "transição" ou de "modernização". Se
brasileira. Essa crença nos inesgotáveis recursos de que disp6c o de quer pensar o presente como história, tem de responder ncc.es-
povo (crença que se traduz literariamente cm figuras como Ga- sariamcntc à seguinte questão: de que modo e por que vias o Brasil
briela, Quinc:as Berro d'Água, Pedro Arcanjo, Tcreza Batisa, Tieta evoluiu da situação colonial originária, através do império e d.as
e tantas outras) faz de Jorge Amado uma d.as máximas cxprcssóes várias repúblicas, para a constelação histórico-social que apresenta
artísticas da consciencia nacional-popular cm nosso país.
111 Os dcnu.ls volumo. qw: C$l2IÚJn "cm pnpuo" cm 19S7. conlOfmc podemos ler n.a
(1992) "orclhi' à S-cdlçio de~ Jo iJnlsJI ü~ c.14nil. SSo l'lulo. Brasili~
19S7 (1• cd.: t~}, teriam os scguintc1 ónalos: 1) "A ~luçM> e a orgal\hação do
·o
Emdo nac1oiu1 (l 803· 1850); 2) Império ~ as insóruiç6ca do Bruil N~ (1850-
1889); 3) "A Repúbllc:a e o Brasil cooccmporinco".
202 CAAl.os NrLSOH Cou11NHO Cuuuiv. l SOOIOADE NO BRASIL 203

hoje? Embora exista cm sua obra urna cena ambiguidade a g:spc.i- é muito rico (essa relativa pobreza é sobretudo evidente cm suas
to da caracterização do ponto de partida - ou seja, do modo de obras de filosofia) . Nos trabalhos de história, por exemplo, cem
produção e da formação econômico-social vigente no Brasil antes pouco peso o cone.cito de "modo de produção", o que o leva por
da Abolição -, t indubitável que o historiador paulista não hesita vczc:s a confundir, na análise da Colônia e do Império, o predo-
cm identificar como plenamente capitalista o Brasil republicano. mínio inequívoco de relações mercantis com a existencia de um
Em oposição ao modelo in terpretativo dominante na Terceira sistema capitalista (ainda que "incompleto"), erro derivado da
Internacional e no Panido Comunista Brasileiro (pelo menos a prioridade metodológica que ele conscientemente atribui à esfera
partir de 1930), de insiste cm que nosso país não é e jamais foi da circulação cm detrimento da esfera da produção",. l.sso f.tt
feudal ou scmifcudal e, por isso, não careceu nem ca.rcc.c de uma cambém com que de utiliz.c de modo pouco rigoroso a noção de
"revolução agrária e anti-imperialista" para se tornar moderno e burguesia: seriam "grandes burgueses nacionais", por exemplo, os
capicaliscam. Mas, por outro lado, Caio Prado reconhece traços latifundiários csc.ravocracas do Império'". Resulta igualmente do
cxtrcmarncntc peculiares cm nosso capitalismo - traços que po- desconhecimento do cone.cito marxista de capital.ismo de ~tado
dcrfamos chamar de "não clássicos"-, dedicando boa pane de sua (ou de capitalismo monopolista de Estado) o emprego tardio
pesquisa a identificá-los e descobrir-lhes a gênese. Nesse sentido, da imprecisa noção de "capitalismo burocrático" - um termo
a questão que antes formulamos ganha maior concrcrudc: quais inventado por cx-crocskiscas para definir o regime social vigente
foram as vias para o capitalismo e que consequências tiveram na na União Soviética stalinisca - cm seu esforço para identificar as
constituição de nosso presente? peculiaridades do presente brasilc.irom.
Na Literatura marxista, existem dois conceitos extremamente Esse rcgistto, naturalmente, não decorre da pretensão - que
fecundos para analisar vias "não clássicas" de: ~c:m para o seriâ mesquinha e ridícula-de submeter recrospcctiva.mcntc Caio
capitalismo, ou, numa linguagem menos precisa, para a "moder- Prado a um exame de marxismo. Ele é feito aqui não tanto para
nidade": o de "via prussiana", elaborado por Lenin com o objetivo indicar os eventuais limites de sua produção, que ccrcamcncc
principal de concciruar a modernização agrária; e o de "revolução cx.istcm, mas sobretudo para sublinhar a sua criatividade e os seus
passiva", utilizado por Grarnsci para determinar processos sociais extraordinários méritos pioneiros enquanto intérprete marxisllt da
e políticos de transformação "pelo alto". Não há, na obra de Caio história brasileira. Nesse terreno, as categorias ma.rx.istas de que
Prado, nenhuma referência explícita a ta.is conceitos, nem é de Caio Prado dispunha - e muicas das que inventou - pcrmitirarn-
supor que ele os conhcccssc, sobretudo a noção de "revolução lhc chegar, na maioria dos casos, a a.ná.l.iscs lúcidas, fecundas e
passiva", elaborada por Gramsci nos Cadnrws do cá~ e tomada quase sempre juscas. Por exemplo: a prioridade atribuída à esfera
pública somente no final dos anos de 1940. Caio Prado jamais da circulação não o impediu de definir de modo substancialmente
cita Gramsci e não é frequente (se excetuarmos as referências a O
imperUl/ismo) que cite Lenin.
"' Em ~ J.o BtrUil '1111k711~ ti1.. p. 266. de d.iz: ºA Wlisc eh csuutun co-
O registro dessa ausência sugere uma observação mais geral: mercial de um país rcvda scmptt. melhor que a de qualquer um dos actorcs paniailatcs
o estoque de categorias marxistas de que se vale Caio Prado não eh produção, o canta de W1U economia, sua narurcza e Olplllzaçio-.
"' CT., po• CM'mplo. C. P. Júnior, &o~ po/llk1t J.o Bnuil t fllllnl mw/41, S5o Paulo.
llt e __
BruUicruc, 1957 (I • cd.. 1933), p. 81 ; e /J. Hist4rill ~"'.,,,;"' J.o BfrlSiJ. São Paulo.
uu crido ao p:wdlgma tcrcdro-intmuciorulha eJd sobMudo cm Uio ~ Jr., Br.ullimse, 1959 (l• cd. 1945). ptwinl.
A mJOl"(k lmui/d,,,, Sio Paulo, Brasillenx, 1987 (I • cd..: 1966), p. 29-75. "' CI. C. P. Júnior, A MJOIM(M /miJiki,,,, rit., dmudo p. 122 e "-• 232 e u . e 2SS eu.
204 CMlos Nu50N CôuTINttO (UlTIMA l SOCltDAOf NO 8 MSll 205

adequado a formação econômico-social da era colonial, iden tifi- São aqui indicadas duas vias principais, que Lenin chamaria de
cada por ele como um cscravismo mercantil fundado na grande "americana" (ou "clássica•) e de "prussiana". A via "cl2ssica" implica
exploração rural, produtora de valores de troca para o mercado uma radical cransfonnação da csaurura agrária: a antiga propriedade
internacional. Suas in<ilaçócs nc:ssc domínio, rccchcndo um p~italisca é dcstruída, convertendo-se cm pequena exploração
tratamento categorial mais adequado, foram decisivas na elabo- camponesa. Nesse caso, nio s6 dcsaparcccm as relações de tnbalho
ração de imponantes trabalhos marxistas posteriores, como os de p~italiscas, fundadas na coerção cxttaec:0nômica sobre o craba-
Fernando Novaes, Ciro Flamrnarion Cardoso e Jacob Gorcndcr. lhador, mas também é erradicada a velha classe rural dominante, já
Do mesmo modo, o desconhecimento de noções como a de ..via que são eliminadas as formas econômicas cm que d2 se apoiava e
prussiana" tampouco foi obstáculo à formulação de contribuições de cuja reprodução dependia a sua própria reprodução oomo classe.
definitivas para a compreensão dos processos e das modalidades de Diverso é o caso da '"via prussiana": aqui a velha propriedade rural,
modernização conservadora ocorridos no Brasil. Pode-se mesmo conservando sua grande dimensão, vai se tomando progressivamente
dizer que, graças ao aporte da experiência cspcdfica do Brasil e empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de for-
de algumas regiões da América Latina. Caio Prado con tribuiu mas de trabalho fundadas na coerção cxuaeconômica, em vínculos
para o enriquecimento do próprio conceito maocista de vias "não de dependência ou subordinação que se siruam fora das relações
clássicas" para o capitalismo. "impessoais" do mercado, e que vão desde a violência aberta até a
intromissão na vida p rivada do ttabalhador. É eviden te que isoo per-
2 mite a conservação (ou mesmo o fon:alccimcnto) do poder poUtico
Quando Lenin tenta conceituar a cilvcrsidade de vias para do velho tipo de proprietário rural, que continua a ocupar postos
o capitalismo, inovando cm relação ao marxismo cvolucion4~ privilegiados no aparelho de Estado da nova ordem capitalista.
e unilinear da Segunda Internacional, constrói sua tipologia a O leitor atento de Caio Prado não terá dificuldades cm reco-
partir do modo pcJo qual o capitalismo resolve a questão agrária. nhecer a proximidade de suas análises da questão agrária brasileira
Recorda Lenin: com a descrição leniniana da "'via prussiana". Para o historiador
Marx já dWa que a forma de propriccbde agrária que o modo de produção paulista, a modernização de nossa estrutura agrária não se deu
capiralisu encontra na história, ao começar a dcscnvolvcr-sc, não corresponde segundo uma "via clássica"; não se pode f.tlar, no caso brasileiro,
ao capiralismo. O proprio capitalismo aia para si as formas com:spondcoccs da supressão ra<ilcal da grande propriedade pré-capitalista e de sua
de ~ agririas, partindo das velhas formas de posse da cena (....). Na substituição pcJa pequena propriedade camponesa. Observa ele:
Alemanha, a cransfonnação das formas medi~ de propri~ agrária se
proc:c:ssou, por a.uim dizer, qu.indo a via rcfunnisca, adaptando-se à roán.a, à A situação oo Basil se apresenta de forma distinca. pois na base c na origem de
tradição, is propriedades feudais. que se foram transformando lemamcncc cm nossa csuuru.ra agrária não mconrramos, cal como na Europa. uma economia
fueodas de Ju.nkcrs (.•.). Nos Esados Unidos, a cransformação foi violcnca (...). camponesa. e sim a grande exploração rural que se perpetuou dc:sdc os Wcios da
As cerras [dos lacifundiiriosl foram fracionadas; a grande propricdaàc agrária ciolo~ bcasilcira a~ .-.- dias; e se adaptou ao sistema capita.Usca de produ-
feudal se c:onvcncu cm pequena propriccbde bwgucsa. "' ção através de um processo a.inda cm pleno dcscnvoMmcn10 c não inteiramente
complccado (...) de substiruiçáo do trabalho escravo pdo crabalho livre.'"

117
Caio Pndo Júnior, A fWS1M ~ ""Bntsil , Sio Paulo, Br.r.si.licntc, 1979. p. 158
"' Cf.•V. l. Lenin, OPITlf"l1'l'l •prlo ti. t«:W~. ~ ~ulo. Cil:nchs Hunww, (Os mtllos contidos ncaaa ~ foram publicados na Rnillll Biwil~, entre
1980, p. 63. março-abril de: l 9C>O e janciro-fc:vcrdro de: 1964).
206 CNILOS NEl.SOH CO\ITiflHO CULTUllA E SOQ(DAOl NO BllASll 207

Penso que Lenin não hesitaria cm definir como "não clássica" (obrigação de comprar no "barracão") e no seu direito civil de
essa peculiar adaptação da "grande exploração rural" escravista, organizar a própria vida privada (impedimento de morar com a
herdada da Colônia, ao capitalismo- uma adaptação que conserva, família ou de rcccbcr visitas etc.). Tudo isso encontra sua múima
além da grande propriedade, traçe» KJ"Vis nas relações de trabalho. QeprcssáQ - pc:n$a Caio Prado - na completa ausência de direitos
Característica da via "não clássica", ou "prussiana"', é precisa.mente social-crabalh.istas no campo, situação que vigorou até recente-
essa complexa articulação de "progresso"' (a adaptação ao capitAilis- mente (e, de certo modo, continua a vigorar até hoje). Em seus
mo) e conservação (a permanência de importantes elementos da trabalhos dos anos de 1960, o autor de A lfuestlÚI apriA M Brasil
antiga ordem). Mas, além de registrar a presença desse processo considerava a superação dessa situação como a tarefa primordial
de "modernização conservadora" (na feliz expressão de Barrington da "revolução brasileira" no campo. Cabe registrar que essa mo-
Moore Jr.) no Brasil, Caio Prado aponta também seus traços espe- dalidade de '"via prussiana", além de conservar o poder político
cíficos e mesmo singulares, o que permite distingui-lo de outros do grande proprietário rural, permitiu ao capitalismo brasileiro
casos igualmente "não clássicos", como o da própria Alemanha dos cxcrc.cr uma supcrcxploraçáo da força de trabalho, Wlto rural
junknJ, ao qual se refere Lenin. Ao contrário desse país, o que no quanto urbana, com o que se manteve um craço marcante da era
Brasil se adaptou "conservadoramcnte" ao capitalismo não foi um colonial: o baixíssimo padrão de vida do produtor direto.
domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifündio Um dos principais méritos dessa araccerização caiopradiana
peculiar: uma exploração rural de tipo colonild (ou seja, voltada da natureza de nossa formação social moderna, definida objeti-
desde as origens para a produção de valores de uoca para o mercado vamente como um apitalismo "não c/ds.sico", foi precisamente
externo) e fundada cm relações escravistas de crabalho. o de permitir ao historiador apresentá-la como capitalista. Esta
É errado supor - afirma Caio Prado - que os elementos do ve- não era uma posição consensual entre os marxistas, pelo menos
lho que se conservaram no novo sejam "restos feudais". Diz de: até os anos de 1960. Ignorando a problemática das formas "não
O que existe e tem servido de comprovaçio e cxempli6caçio d.o 'feudalismo' clássicas" de transição para o capitalismo (e as peculiaridades da
brasileiro si.o rcmanes«ntC$ de rdaç6cs C1t"11111isuu, o que ~ bem diferente, formação capitalista que delas resultam), os marxistas brasileiros
tanto no que respeita à narurcza institucional dCS$U relações, como, e mais - sobretudo os ügados ao PCB - afumaram durante muitos anos
ainda, no que se refere às conscqu~ncias de ordem cconõmica, social e que o Brasil era um país "scmifeudal" e "scmicolonial", que se
poliria daI dccorrcntC$.111
defrontava ainda, por conseguinte, com a tarefa de efetuar uma
Entre tais consequências, Caio Prado enumera inúmeras "revolução democrárico-bwgucsa" ou de "libertação nacional".
formas de coerção cxtracconômica sobre o trabalhador rural, o Nessa afirmação, estava implícita a noção - falsa - de que para
que cria para este "uma situação toda cspccial de dependência e ser plenamente capitalista um país tinha que seguir uma via"~
constrangimento que não existe para o trabalhador urbano""': o sica" de cransição e apresentar todos os traços de um capitalismo
proprieclrio exerce sobre a pessoa do seu morador, por exemplo, igualmente "clássico". Os inúmeros equívocos a que isso conduziu,
uma dominação que vai além do uso de sua força de trabalho canto na teoria como na prática, são apontados por Caio Prado cm
adquirida no mcrado, já que interfere na esfera do consumo A TnJOlução bnzsikirrz.. De particular importância, de resto, é sua
clara afirmação de que não só a formação econômico-social cm
'" Cf. A rrwiMç"1 bnuilnn1.. dJ. p. 104. geral, mas também a cstrurura agrdria do Brasil são de natureza
... a:. A 'fWSIM ~, ril., P• 96 e pilSSim. capitalista:
208 CAia.os NIUOH CounNHO CVlT\lllA E SOOEOAOE NO 8AASll 209

Os polos principais da csuurura socW do campo brasileiro - da de~ não $áo as investigações de Caio Prado convergem objetivamente com as
o ' latifundiário' ou 'proprietário senhor feudal ou scmifeudal', de um lado, aniliscs de Gramsci acerca da "questão meridional" ttaliana111•
e o camponés, de outro; e sim, respcaivamcntc, o empresário capiWista e o
mbalhador empregado, assalariado ou assimilávd econômica e socialmente 3
ao assalariado. 1»
Ainda que a questão agrária ccnha lugar de destaque na deter-
É possfvd que, no ardor de uma justa polêmica, Caio Prado minação da via de transição à modernidade, um posto central nesse
tenha em alguns casos superestimado a possibilidade de assimilar processo pode também ser ocupado, cm momentos determinados,
determinadas formas de remuneração do trabalho rural (como a por uma outra "questão nacional", inclusive de natureza supcrcs-
parceria) ao assalariamento"'; mas é inegável que ele definiu com crutural. É esta a posição de Lenin, ao comparar a Rússia com a
muito mais rigor do que os defensores da tese dos "restos feudais" Alemanha: "É a questão agrária que encarna agora na Rússia a
a real natureza da moderna estrutura agrária brasileira. questáo Nteionaldo desenvolvimento burgues (...).Na Alemanha,
Por outro lado, graças à sua utilização tácita do conceito de entre 1848 e 1871, ela consistia na unificação [na criação de um
vias "não clássicas" para o capitalismo, Caio Prado combateu cor- Estado nacional unificado], e não na questão agrária".11< Em outras
retamente a ideia d e que esses "restos servis" constituíssem óbices palavras: é o modo de resolver a "questão nacional" central que irá
ao desenvolvimento do modo de produção capitalista entre n ós, indicar se a implantação ou consolidação da fonnação ccon6mico-
como sempre supôs o dualismo cepalino e aquele implícito nas social capitalista será de tipo "prussiano" ou, ao contrário, de tipo
propostas d o PCB. Antecipando posições que pouco tempo depois "clássico". Lenin prossegue:
seriam retomadas e aprofundadas por Francisco de Oliveira, Caio Osanos 1848- 1871 foram [naAlcmanhaJa~pocadeumalucarcvolucionária
Prado afirma: ç ÇQn~l11cioniria çncrç <!!!a$ vias para i !!Jli6~o, Q!! $tja, pi~ a $0-
(...) as sobn:vivências pn!<apitalistas nas relações de cralnlho da agropccuá.ria luç2o do problema NUiqn;J do desenvolvimento burgu& na Alemanha, uma
brasileira, longe de gerarem obstáculos e contradições opostas ao dcscnvolvi- das quais conduz.ia à uníflcaç2o atravél da república da Grande Alemanha, e a
mcnco capialista, têm pdo concrário oonuibufdo par.a ele. O "negócio" da outlll au:avél da monarquia prussiana.1n
agricultura - e ~ nessa base que se csuurura a maior e principal pane da eco- Também a Itália, cm meados do século passado, dcfrontava-
nomia rural brasileira- não se mantém muitas vcz.cs senão graças prccisamcmc
sc com o desafio da const.r ução de um Estado unificado, que era
aos baixos padrões de v.lda dos trab.11.hadorcs, e pois ao reduzido custo da mio
de obci que emprega. w cotá.o a questão básica de sua transição definitiva para o capita-
lismo. Como se sabe, a solução que predominou foi a de uma
De passagem, poderia recordar que, nessa recusa de uma vi- transformação "pelo alto": a casa real do Piemonte, sob a direção
são dualista - para a qual o lado "atrasado" seria um empecilho, de liberais moderados, liderou um processo de "arranjos políticos"
e não algo funcional, ao desenvolvimento do lado "modern o" -, entre as várias classes dominantes das diferentes regiões italianas,
algumas das quais baseavam ainda sua dominação cm formas
1111
Cf. A rnKJÚJfb b1'1Ui/dn1,. riJ., p. 105.
111
Cf., para uma critica dessas posiç6cs de Caio Prado, á. Guido Man1cp, A tto""m/JI IU cr. cm patticubr. os msalos contidos cm Anronio Gramsci, A 'f"6'ÁO mniÁilllllll, Rio
po/ltiu bnt.Sildnt. S5o Paulo/Petrópolis, Pol.is/Voz,,s, 1984. p. 250" ~. de Janeiro, Paz e Tera, 1987.
122
Caio Prado Jr., A TnJO/"flo bl'1Ui/drw. tit.., p. 97-98. Cf. Fr.ancisco de Olivdra, vA cco- 114
V.l. lcnjn, •1...cttrc l I. Skovo·rsuov.Slépanov•, in: Onmrn. Puis, Ed. Socialcs, 1973.
nom~ brullcin: critic2 i r:Wo diulim", ln: /imJJJs C,,/mp, n. 2, S5o P.aulo, ou rubro
~·· 16. p. 122.
de l 9n. p. 3-82. l2) /bUL., p. 124.
210 C-.os NELSON c:oun..oo (UlTUM E SOOEl>AD< NO BRASIL 211

econômico-sociais de tipo feudal; com isso, as massas populares cm questão, embora conduz.idos "pelo alto", levaram a mudanças
da península foram excluídas de qualquer papel determinante no efetivas: com a Independência, diz Caio Prado, "é a superestrutura
novo Estado nacional unificado. Foi buscando compreender as poUtica do Brasil-Colônia que, já não correspondendo ao estado
vic~icudes da unifk.açáo italiana - o chamado Ri.sorgimm«J -, bem das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, se
como suas consequ!ncias para o presente da lcllia, que Gramsci rompe. para dar lugu a outras formas mais adequadas". Essas
elaborou o conceito de "revolução passiva", vista por de como mudanças, contudo, não anulam o fato de que, na nova ordem,
um processo de modernização oposto à revolução popular "ativa" "permanece mais ou menos intacta a orgao.ização social vigente"
de tipo jacobino: enquanto esse tipo de transição ocorre quando na época colonial. E por que isso ocorre? A rcsposca de Caio Prado
uma classe ou bloco de classes conquista a hegemonia, mobili- é raxativa:
z.ando efetivamente as massas populares e conduzindo-as a uma
A forma pela qual se operou a emancipação do Brasil [cem] o car.her de 'amnjo
eliminação radical da velha ordem, a "revolução passiva" consiste policico' (..•), de manobras de bastidores, cm que a luta se d=rola cxdusi-
numa sequwcia de rruUlobras "pelo alto", de conciliações entre vamcnic cm tomo do príncipe-regente(...). Resulta dai que a lndcpcndênci.a
diferentes segmentos das dites dominantes, com a consequente se f.rz por uma simples cransfc~ncia política de poderes da metrópole para
exclusão da participação popular. Decerto, a "revolução passiva" o novo governo brasilcilo. E, na f.Uta de movimentos populares, na f.Uca de
opera mudanças necessárias ao "progresso", mas o faz no quadro participação direta das lll2SSaS nesse processo, o poder ~ todo absorvido pclu
classes superiores da cx-ooltmi.a (...}. Fez.se a independência pr.uicamcntc à
da conservação de importantes elementos sociais, políticos e eco- rcvdia do povo; c is:so (...) afutou por completo sua participação na nova
nômicos da velha ordem. As massas, desorganizadas e repri.midas, ordem política. A indcpcndênci2 brasUeira ~fruto mals de uma classe do que
faz.em sentir sua presença. mas sobrcrudo através de movimentos da nação tomada cm $Cll conjunto. 111
sem incidência efetiva, algo que Gramsci chamou de "subvcrsi-
vismo esporádico e dementar". E um dos modos pelos quais as Essa explicação da Independência como cransformação "pelo
classes dominantes quebram a resistência à sua dominação, além alto" - que implica mudança, mas talvez sobretudo conservação
naruralmcn rc da repressão aberta., é a cooptação das lideranças dos - não esgota os pontos de aproximação entre a análise de Caio
grupos opositores: um processo que o pensador italiano chama Prado e a de Gramsci. Escudando os movimentos populares
de "cransformismo"ru. que marcaram o período de consolidação do Estado imperial, o
As analogias entre o Risorgi~nto italiano e os eventos que historiador paulista chega a conclusões semelhantes às do autor
constiruem o processo da Independência e da consoüdação do dos Catkrnos dlJ cárure também no que se refere à presença cm
Estado imperial no Brasil são significativas. Assim, não é casual tais movimentos de um "subversismo esporádico e dementar".
que Caio Prado Júnior, escrevendo sobre esses eventos cm 1933 Assim, referindo-se à Balaiada - mas cm observação que poderia
- praticamente no mesmo momento, portanto, cm que Gramsci valer, mutatis mutandis, para todos os levantes da época regen-
elaborava no cárcere seu conceito de "revolução passiva"-, tivesse cial -. diz Caio Prado: "Em vez de um levante d e massa, logo
chegado a resultados muito semelhantes aos do pensador italiano. aproveitado para a realização de uma política consequente, o que
Antes de mais nada, tanto para ele como para Gramsci, os processos vemos (...) [são] apenas bandos armados que percorrem o sertão
'" Para uma síntese: do conceito grmuci2Do de "revolução passiV2". á . C.N. Coutinho.
Gramsn. Um tSnuJo ~brt 1tt1 J>fflSID'IOI~ polirito, Rio de Jan~íro, Oviliuçio Brasikín.
1999, p. 191-219. "' Ca.io Pnd.o Jr. &ol"{d" ~lltk11 tilJ 8r11Jil. cit., p. '49-50.
CulTIJRA r SOCllOAOt "° BAASa. 213

cm saques e depredações".''" Embora náo use a gramsciana cx- Alemanha a soluçáo "prussiana" da questão agrária precede a so-
prcssáo "sociedade civil,. (mas sim "esuurura política democrática luçáo igualmente "prussiana" da qucstáo da unificação nacional, e
e popular"), Caio Prado indica na ausência de auto-organiz.ação enquanto na Itália as duas questões sáo resolvidas "passivamente"
e de coesão dos grupos subalternos - o que os impede de se ao mesmo tcmpoi nota~sc no Brasil uma sequência cronológica
tornarem acorcs poUricos efetivos - as raízes da derrota de uma diversa. A solução "pelo alto" da qucstáo do Estado nacional unifi.
via "jacobina" para a resolução de nossa qucstáo nacional. O cado precede e condiciona a soluçáo "prussiana" da modernização
principal grupo subalterno, os escravos, estava impossibilitado agrária: conservando a grande exploração rural e o domínio polí-
por condições objetivas e subjelivas de alcançar um grau efetivo tico dos propriecários de cerra e de escravos, a "rcvoluçáo passiva"
de o rganização: que se inicia com a Independência e se consolida com o golpe
(Os escravos) nio formam wna musa c:ocsa (...) e, por isso, rcprcscncun um da Maioridade prepara o desfecho "prussiano" para a questão da
papel poUtico insignificante (...). Falavam aos escravos bra.silciros todos os adaptaçáo da estrutura agrária ao capitalismo no plano interno,
dcmemos para se constimlrcm, apesar do seu considerivd número, cm &tores no momento em que se esgotam as potencialidades das rcl.çóes
de vuho no cquih'brio político o.acional. cscravisus de trabalho. Nesse sentido, ambos os movimentos furam
O mesmo pode ser dito da ª população livre das camadas mé- importantes degraus na lenta e "náo clássica" marcha do Brasil
dias e inferiores": "náo atuavam sobre da - prossegue Caio Prado para o capitalismo, deixando ademais profundas marcas cm nosso
- fatores capazes de lhe dar coesão social e possibilidades de uma presente. Caio Prado observa corretamente: "A cvoluçáo política
eficiente atuação política". E, logo após, ele fornece o diagnóstico progressista do lm~rio corresponde assim, no terreno econômico,
dessa situação de amorfismo, de falta de coesão: "A economia à integração sucessiva do país numa forma produtiva superior: a
nacional, e com ela nossa o rganização social, assente como estava forma capita.Wtâ."' E, quando isso ocorre de modo definitivo,
numa larga base escravista, não comportava naturalmente uma com a Abolição e a República, as condições estavam preparadas
estrurura política democrática e popular" .'J:t E, se a rebeldia das para mais uma "revolução passiva", aquela que leva à criação da
camadas subalternas revelou-se impotente, cm função da rcpressáo república oligirquica. Caio Prado náo deixa de registrar o fato,
estatal e da desorganização interna, as contradições no seio das ainda que só de passagem, quando observa que a proclamação da
classes dominantes podiam ser resolvidas, e efetivamente o foram , República mobilizou táo pouco as camadas populares que "uma
pela via da cooptação e do transformismo: simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar [do Im-
Os governos que se seguem à Maioridade ttm toei.os o mesmo caráter. Se bem pério] o último suspiro" .'>2
que, dife.rcnciados no rótulo com as designações de ' liberal' e 'conservador',
1odos cvolu.lram em igual sentido, sem que essa variedade de nomenclatura 4
tivesse maior signiSc:açáo. Por isso mC$0\0 ~ comum, e mal se C$tranha, a pas- Com suas análises da formação do Estado nacional e da cvo-
sagem de um político de um para ou tro grupo.',,.
luçáo agrária brasileira, Caio Prado lançou os fundamentos para
Poderíamos destacar aqui, numa análise comparativa entre uma a.dcquada compreensão marxista da via "náo clássica" de
vias "náo clássicas", uma especificidade brasileira; enquanto na transição do Brasil para o capitalismo. Registrou, com sagacidade e
i 1t /hl.. P· 7-4.
"' //JiJ, p. 63. UI //,U.. p. 91.
1
" lltül... p. 81 . Ul JIJ.úi., p. 9(.
214 ÚlltlOS NWOH Ú>llTIHHO (ULTUllA C SOOCDADE NO BMSIL 215

criatividade, as bases materiais e os processos políticos que geraram anterior de forças e, por conseguinte, torruun-se matriz de novas
uma formação social certamente capitalista, mas assinalada por modificações". • )4
características profundamente autoritárias e excludentes. Náo creio Embora certamente reconheça que o caminho "não clássico"
que nenhum pensador marxista brasileiro da época ccnha decumi- para o capitalismo brasileiro gerou mudanças cm nossa estrutura
nado com tanta propriedade as raú.cs do Brasil moderno. Aliás, na social, Caio Prado tende a pôr ~nfasc maior no momento da
América Latina, penso que somente José Carlos Mariátegtú (cujo conservação, da reprodução do velho. Ainda cm t 9n, repetindo
esroque categorial marxista, diga-se de passagem. era igualmente uma ideia frequentemente expressa cm sua obra mais recente,
reduzido e problemático) realizou uma obra semelhante para um afuma o seguinte:
país concreto, ao analisar a i.ndependência peruana como uma Eucncialmcnrc, ex>m as adapaçóc:s ncccssárW dcrcrminadas pelas roncing&cias
"revolução abortada" e ao apontar as danosas consequências desse do nosso tempo, somos o mesmo do passado. Se não quanciu.civamente, na
"aborto" nas várias esferas sociais do Peru moderno'". E náo me qu.alidadc (...). Embo12 cm mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro
parece casual que esses dois pensadores ccnham realizado suas se perpetuou e continua muito semelhante. Isto ~ na base. uma economia
fundada na produçio de matfrias-primas e gfocros alimc:núcios d.cmandados
investigações à margem dos - ou mesmo cm aberta oposição aos nos mercados intcmacionals.'"
- modelos te6ricos que a Terceira Internacional, já sob direção
stalinista, tentava impor ao marxismo latino-americano, através, O Brasil não só conúnuaria essencialmente "colonial", mas a
sobretudo, de nossos partidos comunistas. agricultura teria ainda, na estrutura global do país, um papel de
Mas, se Caio Prado determinou adequadamente as raízes de "primordial importância""'. Ora, para que isso possa ser afirmado,
nos.so capitalismo, não creio que tenha sempre feito o mesmo Caio Prado Júnior é obrigado a contrariar as evidências empíricas
cm relação à caracterização do Brasil de hoje. Nesse caso, sua e a concluir que, no Brasil contemporâneo, não há "nada (...)
interpretação, expressa sobretudo cm obras mais recentes, apre- que se as.semelhe a um processo de industrialização digno desse
senta pontos problemáticos. As razões dessa problcmaticidade me nome"'" .
parecem residir n o fato de que, se o historiador paulista captou Mesmo quando reconhece a ocorr~ncia de fatos novos, o
com acuidade o momento "conservador" d e nos.sos processos historiador paulista tende a tratá-los como "aparências" que não
de cransição, tendeu a minimizar e subestimar os elementos de alteram a "essência" - ou quantidades que não mudam a quali-
"modernização" que eles também trouxeram consigo. Gramsci, dade - . isto é, como manifestações que, longe de implicarem a
quando trata dos processos de transformação "pelo alto", emprega superação do passado, contribuem para acentuar seus traços mais
cm alguns casos o termo "revolução-restauração", pretendendo perversos. Este me parece ser o caso, por exemplo, de sua teoria
com isso indicar que o momento "restaurador" ou "conserva- ca.rdia do "capitalismo burocrático": no Brasil, ao lado de um setor
dor" d esse ripo de transformação não impede que através dela •>< A. G12nuici, CukrMs "4 cJrrnr, cil. , v. 5, p. 208.
ocorram também modificações efetivas na ordem social. Diz "' Caio Prado Jr. A rrvo/Ufb lmuibira. dt., p. 240.
Gramsci: "As modificaçócs moleculares [promovidas pelas 're- '" 'Ld p. 30. ES$a Clfllualicbdc do campo E reafi.~ em 1978, n<> prcBcio que Caio
fula.,
voluções passivas') modificam progressivamente a composição Prido escreveu pan sua c:olcdnca aobrc .A 'I~ 11plrl4. dt., p. 12- 13.
'" Cf. .A rrvo!Mr.Jo bl'dsilnr11, d t., p. 243. De ceno modo, essa wcatíva ~ - feita
cm 1977 - mocli6ca suas posiçóes :anteriores, mais .quilibr:adas, ~"'sempre dcicas,
l1l Cf. J. C. Mariíicgul, Se~ OU1Ji111 J, inttTJlrttafh J. m1/Uuk P"""""'• Sio Paulõ, iõbrt á industri.álizaçio e: suas potcncialid:ulcs; cí., por exemplo, Hlsilrúi m1nJmk6 J,,
Expiemo Popular, 2010,piusim. BrASil. d r., p. 263-274.
216 C.W.0S NCl.JOfl (()U'IWjHO Cum1u. l SOCllOADt NO BllMll 217

burgues "ortodoxo", que se desenvolve com base no livre mercado, com o apoio da intervenção estatal, consolidou definitivamente
teria surgido uma burguesia gerada e alimentada pelo Estado. o modo de p rodução capitalista no Brasil - seja subestimada (ou
Não é diflcil perceber que Caio Prado mistura aqui duas ordens mesmo ignorada) na representação caiopradiana. do Brasil mo-
de fenômenos. Ele regism corrct2.mente a ocorrtncia encrc nós derno. Todo esse período parece poder ser subsumido na infclii
de manifestações de corrupção na máquina estatal, as quais, na expressão com que de caractcriwu o governo Goulart: um "pe-
intensidade com que ocorreram e ainda ocorrem no Brasil, são cm ríodo mal&dado"''". E tampouco é casual que, cm sua ccnd&icia
pane resultado de uma visão patrimonialista do Estado, que tem a subestimar as novidades, de se refira aos primeiros 12 anos da
suas raízes cm nosso passado e são expressões de nosso "atraso". É ditadura militar - que devaram nosso capitalismo ao estágio de
justa sua indignação contra tais &tos e, cm particular, a crítica que capitalismo monopolista de Estado - como um período que "não
f.az a uma cena subestimação dos mesmos pela esquerda. assinala efetivamente(...) nenhum sinal significativo de mudança
Mas essa indignação o impede, por outro lado, de distinguir essencial do passado". 1• 1
entre esse fenômeno perverso, mas relativamente marginal, e um Embora tenha sido um dos mais duros críticos do paradigma
traço básico, estrutural, de nosso capitalismo "não clássico": o terceiro-intcmacionaljsta, pode-se conscatar que, na análise do
processo de industrialização no Brasil, verificando-se tardiamente nosso presente, Caio Prado se aproxima cm muitos pontos do
cm nivd mundial, demandou - tal como ocorreu cm outros pa.{scs "cscagnacionismo" contido cm tal paradigma: o desenvolvimento
que seguiram também vias "não clássicas", como a Alemanha e o brasileiro, sua passagem definitiva pa.ra a "modernidade", estaria
Japão - uma ampla e precoce participação do Estado na acumula- bloqueado pelo "acraso", seja nas relações agrárias, seja no setor in-
ção de capital, não só através de processos de regulação, mas tam- dustrial, um "atraso" proveniente, pensa ele, da limitação cstrurural
bém da criação de emp~ diretamente produtivas. Não é aqui o do mercado interno e da dcpcndblcia ao imperialismo. E, além
lug:u para tratar cm detalhe das especificidades do capitalismo de dessa aproximação, ocorreu também uma curiosa convergência
Estado no Brasil (que a época ditatorial posterior a 1964 contri- objetiva entre o Caio Prado tardio e os teóricos do "desenvolvi-
buiu para transformar cm capitalismo monopolista de Estado).,.. mento do subdesenvolvimento", como André Gundcr Fra.nk e
Mas cabe pelo menos subUnhar que, cm vez de representar um Ruy Mauro Marini, o que levou a um mal-entendido no plano
obsclculo para o desenvolvimento capitalista "saudávd" e de ser político: A TnlO~ brasikirtz. publicado cm 1966, terminou por
uma manifestação de nosso "atraso•, como supõe Caio Prado'"• alimentar a ideologia da ultracsquerda no Brasil, a qual se baseava
a intervenção do Estado constitui elemento decisivo na acumu- na &isa alternativa entre "socialismo j:i'' ou "ditadura fascista com
lação de capital e. em panicular. no processo de industrialização. estagnação econômica". Essa alternativa não está absolutamente
constituindo assim um traço - e um traço substancial - de nossa presente no livro de Caio Prado; mas a sua visão do Brasil como
"modernidade". Não é, pois, casual que a "revolução passiva" que
se inicia cm 1930, se fortalece com o Estado Novo e prossegue na ''" lin6.. p. 23. Tambán o go.ano J<ub;uchdt reoc:l>cu dwúsimas cri1icu d.e Ca.io Pndo.
época populista - uma "revolução" que, industrializando o país não IÔ cm A ~ ~ mas já "°' cnWoc dos anos d.e 1950, publiadoc na
Rnútll /Jnuilinu,,, Ct'do que de nio só subadmou o incg:lvd cksmvo!Yimcnto d.a
111
R.cmcro, pan uma disawáo do problema, a meu cnsalo ·o capitalismo monopolista industrializaçlo que se lnicb na c:n V1lgUisu e proacguc na c:n popullsu, mas ignorou
d.e Est.do no Br.uil•. in: C. N. Coudnho, A ~ N>- wlÍl>r 1111/tJmA/, ""mn compkumcucc o crescimento e ariv\\çk> d.a toeicdadc civil nda ocorrido, sobmudo no
msll~s, Rio dcjandro, Salamandn, 1984. p. 163-195. "pcriodo malfa<lado" do governo Coubrt.
,,. Cl. ••• Caio Prado Jr., A trtJOÚlfM bt.südn1, tit. , p. 2«.
., por Clmlplo. A rnoÚJfM ~"'· d1., p. 123.
218 C-.os NELSON CO<mNlta Cum~A 1 SOCIEOADE NO BllASIL 219

estruturalmente atrasado e estagnado podia contribuir W>jcriva- democracia só para a burguesia e os aspirantes a burgues (...) não
mcnte para alimentá-la, como de fato ocorreu. é rcaliz.ávd : [a democracia] ou será de todos ou de ningu~". "' Se
Finalmente, cabe observar que essa visão •atrasada" pare- houvesse desenvolvido essa formulação, Caio Prado teria definido
ce ser responsável pela insuficiente formulação da questão da corretamente as tarefas atuais da "revolução brasileira": somente
democracia política ruas análises do h istoriador paulista'". Se o atrav6 da plena realização da democracia - que não é um valor
Brasil ~ plenamente capitalista, mas chegou a essa situação atra- burgues, mas sim universal, "d e todos· - é que chegaremos ao
v6 de processos de transição que configuram wna ordem social socialismo. Caio Prado, como vimos, foi um n otável precursor
exdudente e auto ritária - como nos ensina Caio Prado -, então dos marxistas que h oje buscam entender o caráter "não clássico"
a p rincipal tarefa histórica que se coloca hoje ao nosso povo, ou da transição para o capitalismo no Brasil. Se tivesse avançado cm
seja, o conteúdo da "revolução brasileira", consiste cm inverter essa sua intuição sobre o valor universal da democracia, ter.-sc-ia tor-
tend~cia "prussiana", por meio da consolidação daquilo que, cm nado cam~m um estimulador dos que se empenham arualmcoce
sua obra de 1933, o historiador chamava de "'c suurura política cm pensar de modo novo o vfncuJo estrutural entre socialismo e
dcmocri.tica e popular", agora tomada possfvd pela cmcrg~cia de democracia. De qualquer modo, parece-me incgávd que, sem a
novas condições objetivas e subjetivas. Ao limitar as metas atuais obra de Caio Prado, a interpretação marxista do Brasil seria hoje
da "revolução brasileira" à modificação das relações t:rabalhisus no substancialmente mais pobre.
campo e à "libertação nacional"' cm face do imperialismo, Caio
Prado pagou um tributo às concepções tcrcciro-intcmacionalisw (1988)
da democracia, que minimizam os aspectos cspcci6camcnte po-
lfticos desta última cm favor de seus pressupostos econômicos e
sociais.
Contudo, no final do a~dicc que escreveu cm 1977 para
A mJOÚJfáJJ lmzsikira. parece esboçar-se - ainda que só cmbrio-
nariarnente - wna formulação que situa Caio Prado, tambbn
nessa questão, para ai~ do horizonte da Terceira Internacional.
Ddlnindo a democracia como "participação efetiva dos governados
na ação e no comportarne.n to do governo", de conclu.i que "uma

E.te ~ um dos ponr:os oormos da crfcica dlrigida a Calo Pnido, c:m 1966. por Assis T•·
141

vucs. pscud6nlmo sob o qual era cnoo obripfo a se oculw um imponanrc dirigcnrc
comunista, Muco Anrbnlo Codho (cf. A. T11V2.rCS, "Caio Pnido e a teoria da rnoluçfio
btuílcita". ín: Rnisw ~ Btraílmrl. n. 11-12, dc:umbio de 1966/março de 1967.
p. 79). Tambán ~ justa a obscmição segundo 2 qual Caio Prado "nem xqucr cogjrou
de examinar u canudas m6dhs wbanas" (íbU/. , p.m. Em .,as>nài. a meu.,.,,, clcconc
da cauralidadc que de wibui ao campo. em c:ocucqublda de sua visão "auuada" do
Bruil. ApcAr de~ pmincnrcs. o anigo de T11V2.rCS - quc mcrcccu uma longa
rapoA2 de Calo Pndo, ioduid1 iw cd.iç6a mais ruaua de À rrJllÚlf# mRJdM -
rcprodui. no cucnclal, o pculMiigma anaUôco da Tuccira lnccmxional.
Marxismo e • imagem do Brasilw
em Florestan Fernandes

1
Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em
suas obras, o que poderíamos chamar de uma "imagem do Brasil".
lm2gcns desse tipo articulam sempre juízos de f.uo com juízos
de valor, na medida em que não se Umitam a fornocer indicações
para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso
país (como, por c:xcmplo, o sistema colonial, a industrialização,
a consciência do empresariado, o movimento sindical etc. etc.),
mas se propõem - para além e/ou a partir disso - a nos dar uma
visão de conjunto, que impUca não só a compreensão de nosso
passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para
entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspecti-
vas para o futuro. Forçando um pouco os termos, poderíamos
diur que tais "'imagens" contêm sempre uma aniculação entre
ciência e "ideologia", ou entre ser e dever-ser, o que nos permite
classificá-las - conforme sua perspectiva seja conservadora ou re-
volucionária - como de direita ou de esquerda. Para darmos uns
poucos exemplos, há "imagens do Brasil" nas obras de Gilberto
Freyre e de Oliveira Vianna, q ue são de direita, ou na de Caio
Prado Júnior, que é de esquerda.
Florestan Fernandes insere-se entre esses poucos pensadores
em cuja obra podemos encontrar uma "imagem do Brasil". Diria
mesmo que o mais vaUoso de sua vasta produção teórica - que
abordou com competência tantos e tão variados temas, da orga-
nização social dos tupinambá aos fundamentos metodológicos da
sociologia, dos problemas do negro às mudanças sociais no Brasil,
das questões da escola pública às vicissitudes da revolução latino-
amcricana - é precisamente essa " imagem do Brasil" q ue da nos
fornece. Tal "imagem" é apresentada, sobretudo, cm A revo/u;áQ
222 CAAlos NNOH Coum•HO Cuuviv. l SOCllOA.Ol NO 8AASll. 223

burguesa no Brasil"•, que cu não hesitaria cm definir como a sua nossos dias. Certamente, seria do maior valor a realização de uma
obra-prima, cnuc outras coisas pelo papel central que ocupa cm pesquisa que situasse a obra de Florcstan na hist6ria do marxismo
sua produção teórica, na qual representa, de resto, um claro ponto brasileiro. Como é 6bvio, trata-se de uma tarefa que não posso
de inflexão. Com cfcico, embora Florcstan retome nesse livro cernas enfrentar ~yi, Irei me limiw a propor algumas comparações
já abordados cm obras anteriores, o fuz cm ouuo nivd: trata-se do enae a sua "imagem do Brasil" e aquela de Caio Prado, seu mais
seu primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente brilhante precursor marxista, tentando indicar t6picos concretos
como pomo de vista metodol6gico. Essa centralidade de RBB se nos quais Florcstan, cm minha opinião, avança com relação ao
confirma, de resto, quando constatamos que as análises da socie- autor de FomutfÍÍD do Brasil contnnpordneo (o que não anula o fato
dade e da vida politica brasileiras presentes nas produções poste- de que sua reflexão, como também veremos, continua a apresentar
riores de Florestan, sobretudo nos livros de combate e nos muitos aspectos problemáticos). Como subsídio inicial para encaminhar
artigos jornalísticos que reuniu cm várias coletâneas, inspiram-se essa comparação, permito-me lembrar que - tal como cm Caio
indubitavdmcntc nas formulações já expostas no livro publicado Prado Jr. e outros autores marxisr:as -, o tema central da "imagem
cm 1975. do Brasil" cm Florcstan é a questão da "revolução burguesa"', ou,
Antes de mais nada, é preciso sublinhar o fato de que a "ima- mais precisamente: 1) dos processos que nos conduziram à "mo-
gem do Brasil" proposta por Florcstan é urna imagem marxista dernidade" capitalista; 2) das espcciflcidadcs que, em função da
e, portanto, revolucionária. Se não é difkil apontar a presença modalidade assumida por essa "revolução burguesa", tomaram-se
hegemónica do método funcionalista nos primeiros trabalhos de próprias do nosso capitalismo; e, finalmente, 3) das tend6lcias e
nosso autor, é também indiscudvd que o seu empenho te6rico- caminhos que apontam para a superação dessa formação econô-
metodol6gico assume, sobretudo a partir de RBB, uma explicita e mico-social em nosso país.
consciente dimensão marxista. Com isso, Florcstan se insere numa
tradição que se inicia com Octávio Brandão {o qual, malgrado 2
suas evidences debilidades teóricas, é o primeiro a tentar formular Uma das primeiras observações a fazer, nessa comparação
uma "imagem do Brasil" à luz do marxismo)'º, passa por Caio enac Caio Prado e Florestan, é que ambos divergem, cm pontos
Prado Júnior e pelo Partido Comunista Brasileiro"' e chega até substantivos, da "imagem do Brasil" formulada pelo PCB e pela
maioria dos seus "subprodutos". De modo exacmarnentc esquemá-
"' "º
Aorcstatt flcrrundC$, A '""'~ /111rpa11 Brruil. &sim tÚ I~ ~· tico, poderíamos resumir assim essa "imagem" pecebist2: segundo
Rio dr janriro, Zahar, 1975, a seguir citada no corpo do cc:xco como RBB, seguida.
ela, o Brasil continuaria a ser um país "atrasado", scmicolonial
quando nc<:el$lrio, pelo número da página.
us CE. Fri~ Maytt [pseudónimo de Occlvlo Bcand4oJ. Agrtlrlsmo ' i,,,J~. &wtio e scmifcudal, bloqueado cm seu pleno desenvolvimento para o
l'Nlnàslll·latb.islll solm" 10J0il4 til S. P""f;,, 11pnrri tiL &um"" Brail, São ~ulo. Anita capitalismo pela presença do latifúndio e da dominação imperia~
Garibaldl, 2006. (A cdlçlo origiiW 4! dr 1926). Para WD2 dcva.st:adora aíúca d.cs:sc livro lista. Em consequ~ncia, carcccríamos ainda de uma "revolução
de Brandio. cf. Leandro Kondcr, A tlnror11 "4 ái11Udr11, São Paulo, Exprcssio Pop..W,
2010. p. 181 - 186.
democrático-burguesa", que deveria ser feita com a participação
"' Em 1933, Calo Prado Jr. publia seu primeiro~ millXÍSl2. Ew/uç"4 po/Jti<11 tio de uma "burguesia nacional" supostamente anti-imperialista e
Bnuil Em 1942 e 1945. n:spcctiv:uncruc, public:a.rá N"""fÚ tio BrtUÜ conrmrpor41'1H.
Co/Jnia e H isllrill «01ffinrk11 "4 Bf'IUÍÍ. Os ~ livros conhcoeram inúmeras n:cdiçõcs. PCJJ, S4o Paulo, Difd, 1982. 3 v. Para urna "im2gcm do Brasil" próxima àquela do PCB,
.sobmudo peb Brulliwse, S4o Pmlo. A "lnugcm do BruU" presente m uajetór:U do cabe também c:onNlW' :u ágnlllcarint obru ck Nelson Wan«.k Sod.rt. JObraudo ;u
PCB pode ser reconsuulcb a partir dos docwncnros colcwlos cm Edgard Caronc, O cscritaS a partir da década dr 1960.
224 ÚIU.OS NWON COUTINHO (ULTUAA E SOCJEDADE NO 81tASlL 225

antifeudal. Em grande parte, tratava-se da aplicação ao Brasil alto, nos quais a conciliação coere diferentes frações das das.ses
do moddo de análise dos países periféricos daborado pelo VI dominantes é um recurso para afas12r a participação das massas
Congresso da Internacional Comunista, realizado cm 1928, um populares na passagem para a "modernidade" capitalista.
modelo cujos principais dcmentO§ fol'i-lll extraídos de uma abusiw Embora Caio Prado não c;onhecessc nenhum desses dois
generalização da realidade chinesa da época' 47• Independentemente conceitos, ccrt2Jllcnte chegou cm sua obra a muitas conclusões
do caráter mais ou menos sofisticado com que foi apresentada essa análogas às de Lenin e de Gramsci. podendo-se assim dizer que
"imagem" pccebista, o que se pode constatar é que, cm todas as suas ele "reinventou" os conceitos dos dois pensadores marxisw. Basta
variantes, da desconhece o fato de que o Brasil já havia realizado recordar aqui, por um lado, suas brilhantes análises da "questão
sua revolução burguesa e que, cm consequência, pelo menos desde agrária" no Brasil. nas quais mostra como-a transição para a mo-
a República, nossa formação econômico-social já era, ainda que dernidade se deu cnttc nós não s6 com a conservação da grande
com importantes especificidades, de tipo capitalista. Ora, tanto propriedade rural herdada da Colônia, mas também com a ma-
Caio Prado quanto Florestan rompem com essa visão: para dcs, nutenção de restos pré-capicalistas (corrct2Dlente definidos por de
o Brasil contemporâneo é um país plenamente capitalista, que já como escravistas e n.á o como feudais); e, por outro, sua instigante
teria experimentado portanto uma "revolução burguesa", mas - e exposição do processo da Independência brasileira, ddinida como
é esse "mas" que torna tão significativas as suas obras, inclusive uma revolução pdo alto, produzida por meio de "arranjos" de
no quadro do nosso marxismo - uma revolução burguesa de tipo cúpula entre as classes dominantes, com completa exclusão do
"não clássico". protagonismo das camadas populares"'.
Na tradição marxista, há pdo menos dois conceitos dabora- Dcccno, Florestan Fernandes dispõe de um estoque de cate-
dos para apreender processos de uansição "não clássica" para o gorias marxistas bem mais rico do que aquele utilizado por Caio
capitalismo, ou seja, processos que não seguiram o paradigma das Prado: Florcstan não s6 conhece muito bem a produção teórica
revoluções inglesas do século 17 ou da Grande Revolução Franc.esa de Marx e Engels"' como também revela ter estudado profunda-
do século 18: refiro-me à noção de "via prussiana", daborada por mente Lenin, cuja presença, de resto, é marcante cm sua produ-
Lenin, e à de "revolução passiva", cunhada por Gramsci. Em Lenin, ção teórica a partir de RBB. Nessa obra, cnconttamos ainda uma
a noção serve sobretudo para definir os processos de cransiçáo para referência a Gramsci, autor que Caio Prado. mesmo cm sua obra
o capitalismo no campo, evidenciando o fato de que, nos casos de posterior à publicação dos Cadernos gramscianos (final dos anos
"via prussiana", conservam-se na nova ordem fundada pdo capital de 1940), parece desconhecer inte.i ramente. Contudo, mesmo
claras sobrevivências das formas pré-apitaliscas, como, por exem- reconhecendo a grande familiaridade de Florcstan com a literatura
plo, o uso da cocrçáo e:xtraeconômica na extração do excedente marxista, é importante f.azcr- aqui dois rcgiscros. Embora cite várias
produzido pdos trabalhadores rurais; cm Gr.un.sci, o conceito é obras de Lenin na substanciosa bibliografia contida cm RBB, é
usado para conceituar processos de modcmizaçáo promovidos pelo surpreendente que não conste enttc elas O programa agrdrio áa
sociai-dnnocracia, escrito cm 1907, que é o textO cm que o rcvolu-
"' P:a.ra a cxposiçio e crítica dcs1a "imagem" pcccbim. c.f. Caio Prado Júnior, A rrtJO/,,ç.14
lmuüdrrt, Sio Po.wlo, Brasilkruc, 1987 (I• od., 1966), sobmudo p. 29 e$$.; e pcob '" Cf. "A imagem do Bruil m obra de Calo Prado Júnior", mprt1. p. 201-219.
Gon::ndcr, "A revolução burguesa e 0$ comunistai, in: M. A. O"lnao (org.), O J4INr ,., 8asu rcairdar aqui a looga "lnuoduçáo" que Fio= Cl(;l'CVtu para o volume sobre
mili11w~, F.n.16kn sofm /Wm11111 FmrtlNla. Sio Pmlo, UNESP-~ e Tem. 1987, p. soow·.
Mlrx-fintt.ls. Histdrill. Coleção "Granda Cicntims São Paulo. Ária, 1983.
250-259. p. ?-144.
226 CAAl.os ND.SON COUTINHO (Ul'IVM f !oOCM!DADl NO 81\Al'l 227

cionário russo apresenta de modo mais sistemático o seu c;onccito De qualquer modo, e.orno já disse, é indiscudvcl que Florcstan
de "via prussiana", ou seja, de um caminho *não clássico" para o elabora a sua "imagem do Brasil" mediante um estoque categorial
capitalismo. Talvez por isso, Florcstan - embora se valha cm sua marxista bem mais rico do que aquele presente na produção de
análise do Brasil de determinações muico próxinw daquelas conti- Caio Prado. Ao wmrário de Florcstan, que qU2$e sempre se apoia
das no conceito de Lenin - jamais emprega explicitamente, e.orno cm c.onccitos, Caio constrói suas análises de modo bem mais "in-
tampouc.o o fu Caio Prado, a noção de "via prussiana". Por outro ruitivo", o que as toma muitas vezes ambíguas ou pouc.o precisas.
lado, embora o únic.o te:xtO de Gramsci indicado na mencionada Vejamos um exemplo concreto. Florcstan da explicitamente que o
bibliografia seja o volume da edição temática dos Cukrnos ~ Brasil evoluiu para o presente capitalista a partir de uma formação
cárcerr referente a II lüsorgimmUJ- ou seja, precisamente aquele econômico-social fJW 1UÍO mz atpiJalist4. No autor de Formllf'ÚJ
onde estão c.ontidas as principais observações do auror italiano ® Brruil etmtnnporônn1, ao contrário, a definição da natureza
sobre "revolução passiV2" -, Florcst:lJl tampouc.o se w.lc, pelo me- cc.onõrnico-social de nosso passado aparece de modo impreciso, ou
nos explicitamente, desse c.onccit:o gramsciano. Mais do que isso, seja, atribuindo à circulação a prioridade oncológica na definição
ele parece não ter apreendido correu.mente o sentido dessa noção de uma estrutura econômica, uma atribuição que c.ontrada clara-
gramsdana, já que afirma (embora c.om a cautela de dizer "pro- mente a lição marxiana. Isso, evidentemente, prejudica sua "ima-
vavelmente") o seguinte: "Se se considerar a Revolução Burguesa gem do Brasil" não só no que se refere ao passado, mas também
na periferia e.orno uma 'revolução frustrada', e.orno fucm muitos ao presente. Por exemplo: embora de diga, superando os limites
autores (.provawlmmu seguindo implicações da interpretação de da " i~m" pcccbista, que o Brasil moderno já é plenamente
Grarnsci sobre a Revolução Burguesa na foi.lia), é preciso proceder capitalista, ainda que conservando "prussianamente" dcmentos
com muito cuidado" (R.BB, 294, grifo meu). Na verdade, Grarnsci da velha ordem colonial, termina por subestimar as novidades
não se refere à "revolução passiV2" como uma "revolução frustrada", inttoduúdas cm nosso país e por construir assim uma imagem do
isto é, fracassada ou inexistente; ao contrário, trata-se para ele de Brasil c.oncemporânco onde o que predomina não é a emergência
um tipo espcdnc.o de revolução cxitosa. ainda que feita através de do novo, mas sim a c.onscrvaçáo do velho'''.
conciliações pelo alto e da exclusão do protagonismo popular, o Florestan, ao contrário, afirma explicitamente que o Brasil, nas
que gera um processo de transformações polltico-sociais do qual épocas c.olonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual sua
resulta, cm suas palavras, uma "ditadura sem hcgcmonia"'!it. Ora, classe dominante- formada pelos latifundiários escravistas - não se
é precisamente este o tipo de revolução burguesa que Florcst:a.n movia, ao contrário do que supunha Caio, com base numa lógica
julga ter ocorrido no Brasil, sendo evidente, ademais, a analogia capitalista, mas se o ricntaV2 por ouera "racionalidade", chamada
entre a "ditadura sem hegemonia" de Gramsci e sua própria noção por de de "patrimooialista". É precisamente essa c.orreta pcrccp·
(sobre a qual voltaremos cm seguida) de "autocracia burguesa". çáo que lhe permite constatar a emergência, a partir da expansão
Cabe ainda observar que, quando Florcstan emprega cm sua obra de relações comerciais na época imperial, de duas novas camadas
(o que, aliás, fu com frequência) os termos "hegemonia" e "so- sociais: a dos fazendeiros de café e a dos imigrantes (R.BB, sobre-
ciedade civil", nunca os emprega no sentido específico c.om que tudo 86 e ss.). Tais camadas, embora sem romper intcirarnenrc
os mesmos são utilizados na obra de Gramsci.
'" Pira um maior dcscnvolví.mcnro ~ aspcaos da rdlcdo do autor de A ITWlll('9
''° A. Granuci, ~ 4 Urt-rrr. rit., v. 5. P• 330. lmtsilnt11. cf. wnbém "A imagem do Bwil 112 obra d., Caio Pr.ido Júnior".,.,,,,,.
228 C.W0S Nu.SOH CovnNtto Cuuuiv. E SOOf OAOE NO Biv.sll 229

com a "velha ordem" patrimonia.lista, começam a agir segundo cransição da "sociedade cst:ament:al" para o capitalismo, Florcstan
uma racionalidade propriamente capitalista, o que lhes possibilita nio deixa de fàzcr intervir nessa análise a noção da luta de classes,
desempenhar o papel de protagonistas da "revolução burguesa" o que novamente o aproxi.rrul do marxismo. Por outro lado, cabe
que se processou cm nosso país. anotar que o uso de noções wcberianas cm RBB restringe-se, cs-
Mas, com efeito, tampouco Florestan escapa de algumas scncialmence, às pancs 1 e Il do livro, que Flo rcst:an nos adverte,
ambiguidades. Revelando estar ainda preso ao "ecletismo bem na "Nota explicativa'° (RBB, p. 9), terem sido escritas cm 1966; na
ccrnperado"'" que marca sua produção inicial (mas do qual, a pane III, redigida cm 1973-1974, como ele tarn~m nos informa,
meu ver, liberta-se quase incciramcntc a partir da última parte de a noção de "sociedade est.amcnt:al" cede lugar aos conceitos de "es-
RBB), Florcscan - seguindo nisso Max Weber - dc:finc essa or- aavi.smo" ou "escravi.smo colonial", oriundos da tradição marxista.
dem pfé...capicalista como uma "sociedade cstamcnt:al e de casta", Tudo indica - mas se trata apenas de uma sugcst.io para posterior
reservando apenas para o capitalismo a designação de "sociedade exame - que, entre 1966 e 1973, Florestan aprofundou os seus
de classes". Não posso aqui me deter sobre o fuo de que, segundo estudos marxiscas, em particular do pensamento de Lenin, cujos
o marxismo - pelo menos depois de A úkologia alnn4, em que conceitos, de resto, estão fortemente presentes nessa parte III de
Marx e Engels parecem ainda supor que classes sociais só exjstcm RBB, precisamente aquela mais madura do livro cm quesdo.
no capitalismo - , a presença de estamcntos ou de ordens, isto é, Há ainda um outro tópico no qual Florest:an vai certamente
de segmentos fundados numa explícita desigualdade jurídica, não além de Caio Prado. Enquanto este último deixa o problema da
implica de nenhum modo a negação da realidade econômico-social especificidade de nossa "revolução burguesa" na sombra - mais
das classes'". Se é verdade, como lemos no Manifostq comunista, sugerindo pistas do que efetivamente formulando conceitos -,
que "a história de todas as sociedades até agora tem sido a histó- o primeiro coloca explicitamente a questão e busca dar-lhe um
ria das lutas de classe", então é tarefa dos marxistas dc:finir com tratamento teórico adequado. Ele diz com clareza, tendo prova-
precisão quais eram as classes sociais que formavam a estrutura velmente como alvo os autores pcccbistas:
do Brasil nas épocas colonial e imperial e como se processavam Não existe, como se supunh2 a partir de uma concepção europodnuica (vili-
as lutas entre elas. da para os ~ 'dissioos' da Revolução Burguesa), um único modelo búico
Na verdade, já cm RBB, Florcstan não se recusa a enfrentar essa dcmocrúia>-burgub de uansformação capitalista. (...) At~ reocntcmcntc, só JC
tarefa: embora se valha de uma terminologia weberiana ("patri- accicav.un intcrp~vamcncc oomo Revolução Burguesa manifcstaÇ6a que se
aproximassem tipicamente dos 'casos dássicos'. (...) Tr.uava-sc, quando menos,
monialismo•, "estamento" CTc.). ele nos apresenta nesse livro uma de uma po$içáo inccrprcaôva unilateral" (RBB, p. 289-290).
aruilise das motivações comportamentais dos senhores de escravos
que se aproxima cm muitos casos de uma análise m.ar:xisa. já que Florestan coloca assim, com plmtt conscihJcilz. o mesmo proble-
tais motivações são por ele vinculadas à sua gênese nas relações ma já enfrentado por Lenin e por Gramsci, ou seja, o da definição
sociais de produção. De rcno, quando analisa os processos de de vias "não clássicas" para o capitalismo.
Ora. essa consciência lhe permite, sempre cm comparação
'" Gabrid Cobn, •o a:ktismo bem 1empcnc1o· . 111: o "«r ,,.w-, a1.. p. '48-53. com Caio Prado, o uso de recursos teóricos mais precisos para
,,, AlJis. ~ mo o que F1on:sa.n palttiC supor cm tnhal1- imecfuwncncc poslaiorcs a entender não apenas o específico modo da revolução burguesa
RBB: ºAo11e m w o dtlprcgo simuldncodcconcdros oomo 'asa'. 'cswncoto' e 'cbssc'.
~ide.se aquilo que Rrii i Jiftml(ll nlfrlfia na t\'Oluçio cb e:smdfiaç5o IOàll no
no Brasil, mas também a particu.Widade do capitalismo que irá
Br:uil" (F. Fernandes. Clrrwl•~. São P&ulo, Huc:ir«. 1'n6, p. -47). resultar dessa revolução. Sem negar que a conservação do "atraso",
230 CAalos NWOH CovnNHO CuuUllA f SO('l(OAI>( NO BllASll 231

da dependencia externa, da "selvagem" exploração do ttabalho, manifestam da mesma forma onde a Revolução Burguesa segue
do ·autocratismo" etc. gera importantes derccminaçócs espccffi- seu curso 'clássico' ou /iberaJ..ánnomlticor (RBB, p. 327). Almi
cas de nosso "moderno" capitalismo, Florestan evita, porém, ao dessa depcndencia ao colonialismo e ao imperialismo, Florcst:m
mesmo tempo, a tendência caiopradiana de dar prioridad~ a c;ús menciona wnbém, como fator explicativo da via "não clássica"
elementos "atrasados" na caracterização de nosso presente: graças no Brasil, o caráter t11rriio de nosso desenvolvimento capitalista,
a uma visão mais mccüatiz.ada, de ressalta também os traços novos que se processaria num momento histórico no qual, já tendo o
que o capitalismo introduz na vida social brasileira, destacando socialismo ingressado na agenda política mundial, ocorreria uma
entre eles a industrialização e a urbanização, o revolucionamento batalha de vida ou mone entre ele e o imperialismo (RBB, p.
do universo de valores, a nova estratificação social etc. Com isso, 352). Ora, segundo Florcst20, isso faz com que a burguesia bra-
a "imagem do Brasil" elaborada pelo nosso marxismo dá um sig- sileira prefira se aliar às velhas classes dominantes e aos segmentos
nificativo passo à &ente, possibilitando uma visão mais precisa e militarCS cm vez de tentar um compromisso permanente com as
complexa não só das contradições do nosso presente, mas também classes subalternas. compromisso que, se realizado, implicaria uma
das tarefas estrat~cas que se colocam aos que prcrcndcm construir ampliação dos direitos de cidadania entre nós. Em estreita anicu-
um novo futuro. laçáo com a dcpendenci.a, que toma a burguesia brasileira carente
de autonomia, o temor ao proletariado e ao socialismo contribuiu
3 ainda mais para fazer com que essa classe adotasse, na busca da
Lenin, na definição dos pressupostos de uma via "não clássica" consolidação de seu domínfo, o caminho de uma "concrar:rcvolução
para o capitalismo, recorre sobretudo ao modo de resolução da prolongada" (RBB, p. 31 Oe ss.). que utiliza politicamente formas
"questão agrária". Florestan, ao contrário, sublinha uma outra mais ou menos expliciw de poder "autocrático".
característica para explicar a "não classicid.ade" brasileira: para Dcceno, esse caráter dependente e tareüo de nosso desenvol-
de, com efeito, a peculiaridade de nossa revolução burguesa rc- vimento capitalista explica muito do caráter de nossa "revolução
sulwia essencialmente do f.uo de que esta se processa num país burguesa", mas - ao contrário de Florestan - penso que nio explica
dependente, primeiro do colonialismo, hoje do que ele chama rudo',.. A Alemanha e o Japão, por exemplo, embora nio fossem
de "imperialismo rotai". Para Florcstan, residiria sobretudo nesse países dependentes, experimentaram vias "não clássicas" para o
caráter dependente e subalccmo de nossa formação social a razão capitalismo, marcadas também, pelo menos durante um longo
por que não seguimos urna "via clássica" para a modernidade; ou, período, pela construção e preservação de estruturas políticas
mais precisamente, foi por termos sempre ocupado uma posição abertamente ditatoriais; além disso, embora cm ambos os casos
dependente no quadro do capitalismo internacional que não pu-
demos conhecer uma revolução burguesa capaz de forjar cm nosso '" Parece-me lmporwuc registrar que há a.urorcs ma.rxistu bruikitos que, embora por
c:unlnhm nem icmptt scmdha.nccs aot de Florcswi. mmbhn insistem cm definir nossa
país uma superestrutura política que, referindo-se a Barringtoo
"nio dmiddadc" na uanslçlo pua o aplcalllmo recorrendo prloritaria.mencc a als
Moore Jr., nosso auror chama de "libcral-<iemocrática". Ao dencar dctcrmlnaçi6cs p~nta ela depcndbicia do Bra.sll ao mcrado inrcmaciona.I. ~ o
os traços mais perversos do que define como a "autocracia burgue- aso. pot' acmplo. de J. Owin (0 ~ J, Pllú s.Jpdo. S5o Paulo. Ci&ic:W
sa" brasileira, Floresta.o nos adverte para o faro de que cais traços Humanas, 1978). de Ricardo Ancuncs {0.wupmrit, mwliUJou,..mM"" Brruil. S5o
Pm.lo, Corto-Ensaio, r cd., 1988) e de Antonio Carlos Maxuo (&Mo~ bwtpniit ""
"são ripicos da organização e do funcionamento d.a sociedade de /JnsiJ. 8do Horizonte, Of1cina do Uvro, 1989), quuc rtfcmn a uim "vamlonial" ou
classes sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido (e não se "colonial·pruaU.na" para definir a modalidade dc noua "rcwluçio burguesa".
232 CAAl.os NCUOH CounHHO CuuUAA e SOOfDADt NO 81tAS11. 23 3

estivéssemos diante de capitalismos •tardios•, isso não impediu No primeiro deles, Florcstan disseca as lutas de cla.ssc que culmi-
que Alemanha e Japão se tomassem, por sua vez, países imperia- naram no golpe de 1964, por ele corretamente definido e.orno
listas. Como vimos, para Lenin (e, de certo modo, wnbém para uma "contrarrevolução preventiva", dcsfcchada por uma burguesia
Gramsci), o filror decisivo na geração de uma via "não clássi<:aª para finalmente unificada pelo temor comum de seus vírios segmentos
o capitalismo é um fator interno, residindo sobretudo no modo à tumultuosa asccnsáo dos movimentos populares no início dos
pelo qual o capitalismo resolve a "questão agrária": a via clássica anos de 1960. No segundo, ele conceitua os principais traços
implica uma solução revolucionária, com a destruição da grande polltico-institucionais do regime que resultou do golpe, regime
propriedade pré-capitalista e a criação de um campesinato livre, ao qual dí o nome de "autocracia burguesa"11' ; segundo Florestan,
enquanto o caminho "não clássico" rcm lugar quando a grande esse regime - que Gramsci ccrumcnte subsumiria sob o tipo
propriedade e a velha cla.ssc latifundiária se conservam, introdu- geral definido por ele como "ditadura sem hegemonia" - seria a
z.indo progressivamente e "pelo alto" novas relações capitalistas. expressão da impossibilidade estrutural da burguesia brasileira de
Ora, a percepção disso é um dos pontos fones da "imagem do ampüar minimamente suas bases de consenso junto aos segmentos
Brasil" presente na obra de Caio Prado, que dedicou importantes subalternos, o que a obrigaria a recorrer de modo sistemático e
estudos à analise de nossa "questão agrária"•», nos quais mostra permanente à coerção aberta contra os "de baixo·.
que o velho latifündio se tomou capitalista sem perder muitas Finalmente, no terceiro de tais complexos problemáticos,
de suas velhas características, cm particular o uso e o abuso de Florcstan já se revelava capaz - embora estivesse escrevendo cm
formas de "coerção c:xcraeconômica" sobre o trabalhador. Penso 1973-1974-de apontar as principais características do "projeto
assim que a definição Borcstania.na da especificidade da ªrevolução de abertura" que cotão apenas se iniciava, um projeto proposto
burguesa" no Brasil ganharia ainda mais cm densidade se, além pelo regime militar para enfrentar as crescentes dificuldades eco-
das determinações resultantes do caráter dependente e tardio do nômicas e poUticas cm que estava sendo envolvido. Para nosso
desenvolvimento capitalista entre n6s, incorporasse também as autor, a implementação desse projeto significaria apenas que "a
determinações provenientes do modo de resolução (ou de ná.o autocracia burguesa leva a uma democracia rescrita típica, que se
rcsoluçã.o) da nossa "questão agráriaª, tão bem c:onccirualiz.ado poderia designar como uma dmwcracúz tk cooptllfÃO• (RBB, p.
na obra de Caio Prado. 358-359). Ou seja: mediante um proc.csso que Gramsci eh.amaria
Mas, independentemente disso, o f.tto é que, com base cm
seu conceito de uma revolução burguesa de tipo "não clássico•, ,,. Embon Flocaan imha indicado com pm:ido o. miiçx» caencials do regime diworW
implanwido llO Brasil depois de 1964, inclusive negando ODrrcwncote que de pudcuc
Florcstan não só reexaminou momentos essenciais de nosso pas- scrctr.KU:rizado como •fucisa• (j2quc nio recorrü à Olpl~dat mams), pa=e-mc
sado, mas também propôs uma brilhante interpretação marxista impróprio o IC'U emprego do termo "au.toc.rada butgucA•. R.ccomndo 1 um1 pai6-
- talvez. a mais lúcida de que dispomos até hoje - daquilo que, dica mudança de "Pttsldc:otcs•, o poder diiatorW bruilciro da q,oc:a não ic: encarnou
numa únla pcs-. e, ocssa medida, mo pode su c:lwnado de "auroaiciOD". lndaplo
na época cm que R.BB foi publicado, constiruía o nosso presente JObrc u ru.6cs do uso clcuc termo por Aoratan, o amigo <Xdvio bnn.i me deu uma
histórico. Essa análise Borestan.iana do presente desdobra-se cm aplicaçio convincente:: o autor de RBB ccria se valido de uma cxprcsdo cu.nluda por
três complexos problemáticos cscrcitamcnte articulados entre si. Lc:nin para caracu:rizar a 1utocraci2 mrism cm sua última f:ase, quando - sem dcUar
de ftt aurocritloo (o a:ar JC: diW mesmo "aurocnu de todas u R.ússias-) - o aarumo
ji a1U2V2 csscncialmcncc ODmo um Estado bwgub. Insisto. pomn. cm que 1 "lkcnç:a
•» a:.. por c.umplo. OS latOS reunidos cm Calo Prado Júnior, A fW11M .r;rrm. ,,. BlwsiJ, po«ia" a que Aorman rccorTcU não anub de nenhum modo a iua comu ~
SJo Pauic>, Bruillmsc, 1979. ODnrcudúda do poder dkacorW resultancc do golpe de 1964.
( ULTIMA ( SOClfOADf NO BMMl 235

de "cransformismo", o regime buscava pcrpctuac-se no poder por RBB, era absolutamente comprccnsfvd que Ftorcstan subestimas--
meio da cooptaç.áo de alguns scgmc.n tos moderados da oposição, se as potencialldades desse processo de abertura, já que de só iria
mas sem abandonar - um fato sobre o qual nosso autor insistia sem efetivamente tomar corpo e dimensão nacional a partir das greves
vacilações - a sua natureza essencialmente autocrática. Com base do ABC, QCQrridas entre 1978 e 1980, e da memorável campanha
cm sua análise das características espcclficas da nossa burguesia. pdas "diretas-já', que 01lmina cm 1984. Por isso, também é com-
Florcscan negava en&ticamentc a possibilidade de que da pudesse prccnsfvcl - cmbora isso expresse mais um wishfo11 thinkingdo que
se reciclar cscrururalmentc, adotando formas mais consensuais ou uma análise realista- que sua obra-prima se enc.cnc sugerindo que
democráticas (hegem6nicas, com o diria Gramsci) no exercício do tínhamos apenas uma alternativa: ou a pcrman~cia da "aurocracia
seu poder de classe. Por isso, de nos adverte que "não se pode d.iz.cr bwgucsa" (ainda que sob as novas vestes da "democracia de ooop-
que w
ditadura de classe [implantada cm 1964) seja transitória" tação") ou a "revolução Socialista" (concebida, de resto, como urna
(RBB, p. 350). De resto, como veremos, essa negação se mantém explosão violenta). Vejamos o que de diz, no último parágrafo de
cm seus escritos poste.riores a RBB: até sua morte, Florcstan sem- sua obra-prima:
pre supôs que - embora pudesse alterar alguns traços inesscnciais No oontc:no hisrórico de rebçócs e oonflicos de da.ssc que csá emergindo, tanto
do seu modo de dominação - a burguesia brasileira seria incapaz o E.nado aurocritioo poderá servir de pião para o advento de um autblcico
de renunciar a estruturas autocráticas de dominação, já que tal capitalismo de Estado, strict# smsu, quanco o represamento sistenátioo das
renúncia poria seriamente cm risco não só o seu poder, mas a sua pressões e das ccns6es antiburguesas poderá prccipiw a dcsagrcgaçio revolu·
cioniria da ordem e a eclosão do socialismo (RJJB. p. 366).
própria cxist~ncia como classe.
Os fatos subsequentes à publlcaçáo de RBB, embora tenham
4 confirmado algumas das previsões ali formuladas, parecem ter
Essa suposição me parece estar na raiz de concepções equivocadas desmentido outras tantas. Por nio ter avalfado adequadamente
presentes na produção teórica e jomalística do último Florcscan. as potencialidades do procmo de abertura, Florcsun continuou
Embora denunciasse com lucidez. os limites "cransformistas" do subestimando, cm seus últimos trabalhos, o peso que os setores
projeto de "abertura", Florcscan parca: ter subestimado - cm seus populares - e, cm particular, a nova classe trabalhadora - tiveram
trabalhos posteriores a RBB - o fiuo de que w
projeto foi acravcs- nos fenômenos da transição democrática e, consequentemente, na
sado e contraditado por um processo de abertura, isto é, por um definição das instituições poUticas (sobretudo a Constituição de
movimento social objetivo que rcsulcou da ativação da sociedade 1988) que dde derivaram. Dada a concreta corrclaçáo de forças que
civil, em partirular dos segmentos Ugados ~classes ttabalhadoras'". então se manifestou, essa nova institucionalidade foi fortemente
O "processo" de abertura, acuando de baixo para cima. abriu e con- marcada pdas lutas das classes subalternas; a meu ver, a transição
quistou espaços que nem de longe estavam previstos no "projeto" - ainda que, cm seu momento resolutivo, tenha reproduzido a
gciscl iano-golbcriano, que previa apenas uma reforma da autocraci2 velha tradição brasileira dos "arranjos" pelo alto - foi também de-
"pelo alto", com a conservação de suas caraacrísticas essenciais. terminada, pelo menos cm parte, pdas pressões que provinham "de
Ora. em 1974, no momento cm que cscrevcu a última parte de baixo". Por isso, não é de modo algum casual que a Constituição
de 1988, que recolheu cm seu texto muitas dessas prcss6cs, tenha
0
' ~a di~ca cnuc 'projeto" e j>roa:uo" de abcnun, d. C. N . Coutinho, ç.,._,, se tomado - desde o governo Collor até o governo Cardoso - um
,.m ~ 'l«ÍllÜmto, Sio &ulo. Concz, 2000. p. 87 e ss.
l'Ormrt<. ÓUlli# dos principais alvos da luta que a burguesia vem cravando para
236 CM&.os NELSOH CouruiHo C Ul.TUllA E SOCllOA.Df NO BllASll 237

consolidar enttc nós uma nov:a forma de dominação de~ Em c.12ssica", que implicou cm momentos decisivos o uso sistemático
sua caracterização d o período, Florestan reteve apenas o momento de formas abertamente ditatoriais e coercitivas, combina-se com
da "reforma pelo alto", tanto assim que designou o contraditório uma generalização problemática, isto é, com a afirmação de que
processo de transição wmo uma "transa~o ço~ra·; cm a nossa burguesia c:am:cu e carecerá snnprr, para poder c:xcrccr
conscqu~ncia, a nova institucionalidade lhe aparecia como nada seu domínio de classe, dessas formas ditatoriais ou "autocráticas"
mais do que uma cn~ima manifestação da "autocracia burguesa", de poder poUtico (uma análise empírica constata que o recurso a
ou, em suas próprias palavras, como o "último e surpreendente formas "não clássicas" de revolução burguesa não impede que o
refügio [da ditadura] ".'"' Por isso, ele continuou a supor até o fim pais que as adotou conheça, cm determinadas etapas de sua his-
que o único caminho para a luta pela democracia e pelo socialismo tória, estrururas poUticas liberal-democráticas; basta recordar aqui
no Brasil seria o de uma revolução explosiva e violenta. Num texto os casos do Japão, da Alemanha, da Itália ou da Espanha). Essa
escrito cm final de 1985, por exemplo, ele nos diz.: generalização faz com que Florcstan não leve cm consideração,
O que se descroçou? A ilusão de que um país como o Brasil possa c:xpungir-sc cm suas análises, alguns períodos históricos cm que a burguesia
de i niquidades~ por rodos pacfficos (...). A democracia erige uma brasücira se viu obrigada a recom:r a formas de dominação que
ra-olu~ social (que) rebenta de baixo ( ...). Os caminhos pacfficns c:sdo blo- implicam dcmcntos de hegemonia (no sentido gr:amsciano). ou
queados e as 'esquerdas' (...) precisam apreDder a avançar rcvolucionariamcntc seja, à busca de um relativo consenso junto às elas.ses subalternas.
na dircçio de sua orpnhação insticucion.al.'"
Penso que um movimento desse ópo ocorreu durante o chamado
Desse modo, Florestan parece não ter visto que as novas "período populista", quando a burguesia - atrav~ da ideologia
condições abcrcas pela derrota da ditadura impunham às forças nacional-dcscnvolvimentista - buscou (e cm grande medida
populares a adoção de uma nova estratégia de luta, estratégia que obteve) uma hegemonia "seletiva" junto a segmentos das dasscs
- para usar os conhecidos conceitos de Gramsci - já não devia subalternas, cm particular aos trabalhadores wbanos enquadrados
recorrer à "guerra de movimento", ao choque frontal, mas sim na C LT'M. Mas é outra a opinião de Florcstan. Para ele, "a 'de-
à "guerra de ~ição". O que, se essa minha avaliação é correta, magogia populista' (...) era uma abcn.a .manipulação consentida
implica a occcssidade de substituir a proposta de uma revolução das massas populares. (...) Não existia uma ámwmlcüz burguesa
"explosiva" e violenta pela de uma revolução "processual", fundada .fozc4. mas uma 11utl>C1'1lda burguesa áissimulaá4' (RBB, p. 340).
numa luta permanente pela hegemonia. Também o período que se inicia com o "processo de abertura" e
Esses limites da "imagem do Brasil" no último Florcstan que chega até nossos dias pode ser caracceriz.ado, a meu ver, como
parecem-me resultar, de resto, não só dessa subestimação do um contexto no qual a burguesia - constrangida pelas condições
processo de abertura na avaliação da nova institucionalidade cons- imposcas não só pela nova correlação de forças entre ela e as
truída depois de 1985, mas também de uma discuávcl afirmação dasscs subalternas no plano intc.mo, mas também pelo contcXtO
já presente cm RBB. Nesse livro, a correta análise florcstaniana da internacional - volta a buscar formas hcgcmônicas para consolidar
revolução burguesa no Brasil como manifestação de uma via "não sua dominação. Mas, assim como afirma que a época populista
não passou de uma "autocracia burguesa dissimulada", Florcsr.an
"" Sobre essa "hegemonia scktin" na q,oc:a popu.lis11, cf. C. N. Coutinho, •Crise e rcckf,,.
niçjo do ~o bnsi)droº, bJ: A. M. ~ e 1. Labaupin (orp.). R.Ms.111 twaútwWNll
1 EsuM ~. Sio Pa..Jo, Lofob. 1993, p. 84 eu.
238 C.-0S NCISON CovnNHo C Ul TUllA ( IOCJl OAO( NO Biv.s.l 239

também supõe. como vimos, que o período iniciado cm J 985 é humana do nosso povo. A democracia que começamos a co~
apenas o "último rcfiígio da ditadura". trui.r na época da transição só se consolidacl de modo definitivo
Ao fazer essas observações críticas, não pretendo de modo al- e só rcaJizará plenamente seu valor universal no horizonte da
gum negar o fato indiscutível de que, com seu salutar radicalismo, sua progtcssiva radicaliz.ação, ou seja, da sua transformação em
Florcsran desmistificou muitas das ilusões que dominavam setores democracia socialista..
importantes da esquerda cm sua avaliação da siruaçáo aberta com
a chamada "Nova República", uma expressão que, lucidamcn tc, 5
ele sempre fazia acompanhar ou de aspas ou de um ponto de in- As críticas q ue sugerimos aqui, ao tentar analisar a herança
terrogação. Quando hoje - à luz do que agora sabemos sobre os teórica e política de Florcstan, não pretendem ser mais (nem tam-
governos Samcy, Collor e Cardoso - rcc:xaminamos a denúncia pouco ser menos) do que propostas de autocrítica. Embora talvez
florestaniana das tcnd~ncias regressivas e conservadoras comidas nenhum marxista t.cnha elaborado uma "imagem do Brasil" tão
na nova fase histórica que então se iniciava, somos forçados a rica e lúcida como a que Ftorcstao nos legou, sabemos - como de
constatar que muito daquilo que a alguns de n6s parecia na época também o sabia - que "o proletariado não deve recuar diante de
manifestação do "sectarismo" do velho Florcsta.n era. ao contrá- nenhuma autocrítica. pois só a verdade pode levá-lo à vitória e. por
rio, a confirmação da sua lucidez analftica e da sua capacidade de isso, a autocrítica deve ser seu clcrncnto vital".'" A tarefa coletiva
previsão. Oeccno, continuo pensando que as alternativas contidas de elaborar uma "imagem do Brasil" com base no marxismo - para
na conjuntura que se inicia no Brasil depois de 1985 não cabem a qual, depois de Caio Prado Júnior e de Nelson Wemcck Sodré,
no estreito dilema formulado no final de RBB e reproduzido nos Florcstan Fernandes deu certamente a maior contribuição - é wna
últimos textos de Florcstan: ou "autocracia burguesa", ainda que tarcfa sempre cm aberto, pdo que jamais poderemos nos satisfàzcr
mascarada sob novas formas, ou "revolução socialista", concebida com os resultados já obtidos. Para o cumprimento de tal tarcfa,
ademais como um processo explosivo que rompe radicalmente Florestan não contribuiu apenas com suas brilhantes reflexões
com a nova institucionalidade que resultou da transição. Essa rc6ricas, mas também com o seu extraordinário exemplo moral.
institucionalidade. que os trabalhadores contribuíram para criar, O radicalismo com que de cmpn:cndcu sua atividade intdeaual e
parece-me ser o ponto de partida da nossa dificil luta para derrotar política, sobrcrudo na última fase de sua vida, é uma lição que n6s,
a reestruturação do poder burguês (que agora tenta se consolidar incdecruais macxistas (mas não só marxistas}. não podemos e não
sob a hegemonia do neoliberalismo) e, ao mesmo tempo, para devemos esquecer. Conaa os crânsfugas e os capitulacionistas, a>naa
construir - por meio de uma estratégia reformista-revolucionária os que optaram pela falsa "democracia de cooptação", o exemplo de
- as condições para a implantação do socialismo cm nosso país. Florcstan Fernandes nos recorda que o lugar dos intdecruais dignos
Mas agora sabemos, graças, entre oucras coisas, ao radicalismo de desse nome é ao lado das classes subalternas, na difkil, mas cada vez
Florcstan, que a esquerda brasileira não pode ttavar essa luta se não mais necessária. luta pela revolução democrática e socialista.
se libertar de uma dupla ilusão: por um lado, a de que os avanços
obtidos na construção de nossa democracia já estejam definitiva- {1998)
mente consolidados, mesmo no nível da superestrutura política;
e, por outro, a de que. ainda que os consigamos consolidar, tais "' Gy&gy Lulda, His#rV ~a~ ,/, iMM, Porto-Rio de Jandro, Escotpi»ElfOI,
avanços sejam suficientes para realizar a vetdadeira emancipação 1989. p. 107.
O legado de Octavio lanni

A obra de Octavio lanni, que é o tema deste Colóquio, mere-


ce ser discuóda cm profundidade: trata-se de wna obra extensa,
que abordou diferentes cernas e passou por diferentes fues. Ela
deve servir como inspiração e desafio para novos escudos que
aprofundem suas ideias e também corrijam alguns de seus limi-
tes, mas que, sobretudo, deem oonónuidade à imagem do Brasil
que de construiu nos seus trabalhos.tum enorme praur poder
rememorar aqui a figura de Octavio lanni, que aprendi não s6 a
admirar como intdcctua.1, mas t.ambém a csómar profundamente
como ser humano.
Podemos abordar a sua obra de diferentes ângulos, já que de
se dedicou a inúmeros campos do saber. Escreveu livros tratando
dos processos de modernização capitalista no Brasil, de questões
de teoria, de nossa produção cultural e de nossas relações raciais,
de fenômenos sociopollticos da América Latina e, Snalmcnte, dos
problemas da gfobal.iz.açáo. Mas cabe registrar que, se de abordou
vários e múlóplos temas, sempre o fez valendo-se metodologica-
mente do ponto de vista da totalidade, ou seja, do ponto de vista
do marxismo.
Tal como seu mestre Aorcstan Fernandes, Octavio sempre se
disse wn sociólogo. Tenho dúvidas, porém, se um masxista, como
era o seu caso, pode :Lccitar a atual divisão acadbnica do trabalho
cientifico e diu:r-sc simplesmente um "sociólogo". Com base cm
Gr:unsci e cm Lukács, creio que a sociologia é um modo limitado
de abordar a realidade social. Não vou aqui cnttar nessa discus-
são - longa, profunda, complexa - das rc12.ÇÕCS entre muxismo
e sociologia, mas creio que há na sociologia, qualquer que seja a
sua orieot.açáo teórico-metodológica, wna tcnd!ncia a dcsisto-
ricizar a análise do real e a desvincular os fenômenos sociais de
sua b~ econômica. Já que lanni nunca fez isso, não me parece
inteiramente adequado caracccriiá-lo, tal como ele mesmo o fazia,
242 ÚALOS NRSQfj CouTwlHO CUl.TUllA E SOCIEDADE NO BllASI\ 243

como um sociólogo. Ele era mais d o que isso, na exata medida bem temperado"."' Octavio e Fernando Henrique chegaram mes-
cm que, enquanto marxista, abordaw os fenômenos sociais numa mo a publicar, cm 1960, um livro cm comum."' Mas ni o se deve
rumcnsáo bem mais ampla do que a d os "escudos sociológicos", esquecer que, quando alguém pensou cm rccd..ita.r o livro, num
ou seja, precisamente naquela dimensão dada pelo ponto de vista momento cm que Cardoso já e.r a presidente da República, O cta-
historicista da totalidade. vio recusou-se a fazê-lo por ruscordar rarucalmcntc das posições
Devemos lembrar que Octavio foi um dos primeiros sociólo- teóricas e políticas então adot3das pelo seu antigo colega.
gos, com aspas ou sem aspas, a adot2r explicita.mente no Brasil o É certamente cm grande medida por causa dessa base me-
método histórico-diaJético na abord2gcm dos fenômenos sociais. todológica que a obra d e Octavio lanni é tão importante para a
Como se sabe, formou-se nos anos de 1950 na USP, cm tomo comprccnsáo do passado, do presente e (não hcsit2ria cm d izê-lo)
de Florcstan Fernandes, um importante grupo depois conhecido do futuro do Brasil. Em seus primeiros trabalhos (sobretudo no
como Escola Paulista de Sociologia. Dele fuiam parte dois jovens já clássico As metamorfoses do escravo, de 1962). ele nos forneceu
pensadores, certamente brilhantes, ambos preocupados cm ut:il.iza.r contribuições d ecisivas para a compreensão do período colonial
nas suas pesquisas o método histórico-dialético. Refiro-me, é claro, brasileiro."' Em obras mais tardias, de nos revelou alguns d os
a O aavio lanni, mas também a Fernando Henrique Cardoso, de traços fundamentai s da constituição d o Brasil moderno, no
quem - apesar de sua tardia solicitação neste sentido - não de- período que vai de 1930 até o golpe de abril de 1964."' Em
vemos esqucc.cr o que de escreveu nesta época e mesmo algumas A ditadura do grande CApirar, finalmente, encontra.mos uma das
décadas depois. De C ardoso, recordo, cm particular, o bdo livro mais lúcidas análises da natureza de dassc da rutadura implantada
sobre Capitalimw e esmzvidáo, publicado cm 1962, no qual há uma no Brasil cm 1964, uma análise que, como veremos aruantc, evita
longa introdução cm que de c:xpóc com brilho, valendo-se sobrc- claramente o uso de categorias ambíguas - como "autorit2rismo"
rudo de Lukács e de Sartre, os prind pios do método dialético. '" e "burguesia de Estado", então desenvolvidas por seu ex-colega
Diria mesmo que Oa:avio e Fernando Henrique, nesses primei- Fernando Henrique Cardoso"' - e desvenda o vínculo estrutural
ros trabalhos, aplicam um pensamento dialético mais rigoroso d o entre aquela ditadura e os interesses priwdos do grande capital
que aquele que Florcstan aplicava à época. É daro que Florcstan se nacional e internacional.
apropriou mais tarde das categorias marxistas, particularmente no Do conjunto dessas importantes obras, que abrangem uma
final dos anos de 1970, o que se expressa, sobretudo, cm sua obra- análise do passado e do presente de nosso país, com projeções
prima, A revoi"f'ÚJ burguesa no Brasil'" M as, até o início d os anos
"' G. Cobn, ·o cdcdsmo bem 1empcndo· . 111: M. A. D'lncao (org.). O 111bn- ml lil6nu.
de 1% 0, quando seus dois jovens assistentes já eram marxistas, ÕUlti41 sobrr ~ ~. Si<> Paulo. UNESP-Pu e Terra. 1987. p. 48-S3.
Florcstan ainda ad otava cm seus estudos o método funciona.lista, ,., O. bnnJ e F. H. Canloeo. c.r~ mff.iUJ,+ IKMl nrt Ft.~ Sio PàuJo, Comf*\hia
ou, mais precisamente, como ruria Gabriel Cohn, um ªedctismo &litora Nxiooal, 1960.
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Sio P-.wlo, Difusão Europeia do Livro. 1962; 2• ediçio. ttYisa e 1tt1pliam, Si<> P-auJo.
Curitiba, Hucitcc-Scientb a Labor, 1988.
"' F.. H. ~. C.pillÚÍmtlJ e amwü/b "" Bnuil-.iáiMflll. Si<> Pa.ulo, Difuslo Ewopcía '" a:. cnc~ outrw. O . l.'lllnl, O (YJ"'f'"' i"1 popatlimo"" Brasil, Rio de Janeiro, Clvilluçio
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em Florucan Fen:iandc:r, p. 221-239. ,., a. F.. H. Ca.tdoso, A~ ~ ~. RJo de Janci~ Pu e Terra. 1975.
Cul.TIJAA r 500lOADt NO 8AAsll 245

para o futuro, emerge o que poderíamos chamar de wna "imagem isso inviabiliwu a possibilidade de uma revolução jacobina cm
do Brasil". Entendo por "imagem do Brasil" não a descrição de nosso país.
elementos parciais de nossa realidade social, ou mesmo de nossa Ternos aqui uma das ra.íz.cs dos recorrentes processos de mo-
realidade global, mas a tentativa de compreender a gênese histórica dernização pelo alto, com exclusão das classes subalternas, que
dcst2 realidade e de identificar as tendências contraditórias que ela marcaram a história brasileira. Chamados de "via prussiana" por
comporta no presente e que apontam para o futuro. Há grandes Lenin ou de "revolução passiva" por Grarnsci, a análise de tais
pensadores que contribuíram, cm maior ou menor medida, para processos ocupa um lugar de destaque na obra de lanni. Recordo
a elaboração de uma imagem do Brasil. Uma imagem de dircit2, aqui, cm particular, um pequeno grande livro seu, O de/o da mlO-
por exemplo, pode ser encontrada na obra de Gilberto Freyrc ou Úlfáo burgueur,., cm que ele discute as formas que a modernização
de Oliveira Vianna; uma imagem de esquerda, ao contrário, apa- capitalista assumiu no Brasil. Chamando cais formas de "revolução
rece, sobretudo, nas obras de Caio Prado Júnior, Nelson Wemcck de cima para baixo", ou mesmo de "contrarrevolução'", ele apre-
Sodré e Florest<ln Ferfl2Jldes. senta nesse livro uma importante rcscn.ha crítica dos aurores que
Com sua produção, lanni colaborou dccisiva.mcnce para en- forneceram subsídios para a elucidação desta peculiar via seguida
riquecer essa imagem de esquerda, ou, mais prccisamcncc, uma pela modernização burguesa no Brasil.
imagem marxista do Brasil. Nesse sentido, cabe lembrar que, O tema que me foi proposto é a questão do Estado na obra
altm de contribuir para uma correta compreensão dos processos de Occavio lanni. Creio que não me afastei do tema ao f.ucr
de modernização capicalist2 que ocorreram cm nosso país, sobre- essas observações iniciais, voltadas, sobretudo, para esclarecer a
tudo a partir de 1930, ele teve uma forte preocupação no sentido metodologia usada por nosso autor e o quadro de conjunto cm
de esclarecer as raízes coloniais do Brasil moderno. Lembro aqui que se inserem suas reflexões sobre o Estado. Com efeito, lanni
de novo de um de seus primeiros trabalhos, As maamoifo~s do sabe que é impossível abordar a questão do Estado sem vinculá-
escravo, importante contribuição para a compreensão da pré- la organicamente com a totalidade social. Como marxista, de
história da modernidade brasileira. Nele, lanni mostra que os recusa a ideia de que o Estado possa ser crarado como um sujeito
escravos no Brasil formam uma casca (ou um estamenco) e não autônomo, situado acima do movimento das classes sociais. Ao
podem ser considerados membros de uma mesma classe social. contrário, lanni sempre nos mostra a rclaçáo de depcnd!ncia que
Todos os escravos se identificam, no plano jurídico, pela falta de existe entre o Estado e os movimentos da sociedade, cm particular
liberdade, de direitos, constituindo assim uma casta ou cstamcnco; os movimentos das classes e das frações de classe. Isso não significa
mas eles se inserem diversamente nas relações sociais de produção que de subestime o papel do Estado na formação da ordem social
e, portanto, integram diferences classes sociais. Isso explica, entre capitalista e, muito panicula.rmcntc, da ordem social capitalista
outras coisas, a razão por que os escravos brasileiros nunca foram brasileira, na qual o Estado se reforçou cm função precisamente
capazes de construir uma autêntica consciência de classe, que se dos processos de •revolução de cima para baixo".
manifestasse acravts de uma vo ntade e de uma ação coletivas. Em Em uma de suas primeiras obrasm, ele insiste na importância
conscqu~ncia, o principal grupo subalterno de nossa formação de estudar o papel do Estado na história de nosso país. Já no
cc.onômico-social da q,oc:a da Colônia e do lmpbio não foi ca-
,,. O. lanni. O N.1# J. fftlOl"{b ~ Pcuópolís. VOU$, 1984.
paz de opor uma efetiva resist~ncia coletiva, a partir de baixo, à "' Q , lanni, EJllllÍIJ u111fuJJmw. Es"""'rsl«i.J,ÍntÚlsm.Jíu{lllMB,.,;~ Rio ck J111d10,
dominação das classes que ocupavam o poder. Entre outras coisas., Q vilizaçto Br.uild12, 1965.
246 Últl.OS NELSOH CcxmNHO CULTURA f SOClfOAOE NO BllASll. 247

prefácio a esse importante Üvro, adverte: "As relações do Estado ção marxista. Pode-se mesmo dizer que, em sua imagem do Brasil,
com a escrurura social e o progresso econômico é fenômeno pouco de deu mais atenção às classes sociais do que Caio Pr2do Júnior
examinado pela sociologia. No Brasil, d e não foi senão objeto de e, de ceno modo, do que o próprio Florcstan Fernandes. Caio
rdlex~ çsp~""'. Qu<1.Ddo ~cm "refl~õcs esparsas", penso P~o. p<>r e:x:emplo, tem UJl\a, noçio de bwguC$ia c:xmmamcntc
que Octavio estava se referindo ao tratamento inadequado que imprecisa; de se referia aos proprietários de terras e de escravos da
a questão do Estado recebeu enue nós e não tanto à ausência época imperial como "grande burguesia nacional", o que eviden-
desse tratamento. Por exemplo, na obra de Oliveira Via.nna. e de temente é um equívoco. Na análise do BrasU contcmpodneo, o
Auvedo Amaral, o Estado ganha grande destaque, mas aparece grande historiador paulista subestima o papel da classe operária;
como demiurgo das relações sociais. Para esses pensadores, o BrasiJ assim, num Üvro táo interessante como A m10l"fáo brasikiram,
seria uma sociedade amorfa, carente de uma organização social praticamente não aparecem as figuras do proletariado industrial
sólida, cabendo a um Estado autoritário a tarefa de organizar a e das camadas médias urbanas; já que a atenção do historiador
sociedade e a nação de cima para baixo; essa formulação, como pauüsta para nossas classes subalternas está quase toda concentrada
se sabe, inspirou a prática política do Estado Novo varguista e no t.rabalhador rural assalariado. Ianni, ao contrário, deu maior
pode ser considerada uma justificativa ideológica da "revolução atenção, cm suas análises do Brasil moderno, à pluralidade das
de cima para baixo". classes e frações de dassc, tratando com maior rigor sua inserção
Ianni se opõe claramente a esta fetichização do Estado. Sem na moderna estrutura social brasileira.
negar sua impordncia, como vimos, ele liga o fenômeno estatal à Cabe, portanto, insistir: embora sempre dedicasse grande aten-
tocalidade social. Com efeito, na pane final deste seu livro, lemos: ção ao papel do Estado cm nossa formação histórico-social, Ianni
"'A interpreta?o que eu aqui proponho vai num crescendo, ou nunca o abordou como um organismo autônomo; ao contrário,
seja, da atividade real do Estado ao fluxo histbico tÚJ sistema em sempre relacionou a estrutura e a ação do Estado ao movimen-
que lllJUtla [atividatk tÚJ Estado) ganha smtido" m. Portanto, com to contraditório das classes sociais. De resto, refletindo sobre o
base na sua metodologia dialética, ele mostra como é impossívd Brasil, ele não poderia deixar de dar atenção ao imponantc papel
conceituar adequadamente o Estado fora do que de chama de que o Estado reve cm nossa história. Precisamente cm função
"fluxo histórico", ou seja, fora do contexto das lutas de classes, às do que ele chamou de "revolução de cima para baixo", tivemos
quais, de resto, é dedicado o capítulo N de Estado t capitalismo."' quase sempre no Brasil uma situação que Gramsci chamaria de
Houve sempre na produção teórica de lanni esta insistência no fato "oriental" - ou seja. "na qual o Estado é tudo e a sociedade civil é
de que a luta de classes, cm suas inúmeras formas e mediações, tem primitiva e gelatinosa" -, uma situação que gera com frequência o
um papel central na explicação não só dos fenômenos estatais, mas que o pensador italiano chamou de "ditadura sem hegemonia""'.
também dos demais fenômenos históricos, ou seja, na explicação Uma importante corrente do pensamento social brasileiro busca
do movimento de conjunto da tocalidade social. explicar este fortalecimento do Estado como herança do iberismo,
Este reconhecimento da centralidade da luta de classes é outro
ponto cm que lanni se üga, de modo consciente e explícito, à trad.i- '"' Caio Prado Júnioc, A~ bnzsiki,., Sio Paulo, Bro$lllcnsc. 1966. P1fll u1n2 anílisc
menos sunúria deste livro, cf., "'P"'• "A inugcm do BM na obra de Calo Prado Júnior.
m lbiJ., p. x:m. .iobl'Ctlldo p. 201-219.
"' '"-.•J p. 261. Grifo meu.
lv'9., ,,. A. Gl'illlUd, ÚltÍmltJJ IÍJJ a/rrm. Rio de janeiro, Ovili~ Br.uildra, 6 v.• 1999·2002,
'" lnthul~ predmncn tc "As lut11S de dassc". Ibiá., p. 12?-169. rcspcctiY2111cntc v. 3, p. 262, e v. S. p. 330.
248 CAAl.os Nu SOH CovnNHO CUlT\lllA l SOCICDAOE NO 8MStl 249

do patrimonialismo etc.; estou pensando aqui, sob.reruda. num "populismo" boje virou xingamento: qualquer governo ou ten-
brilhante analista do Brasil, o wcberiano Raymundo Faoro, que dência política que não aceite os ditames neoliberais do mercado
tende a explicar esse Estado forte apenas a partir das raízes ibéricas desregulado e leve cm conta os interesses das camadas populares
e do caráter patrimonial~t.a de nossa burocracia.'" Ao contririo, recebe a alcunha suposwncntc infamante de "populista".
Octavio lanni vai buscar nos processos cspcdficos da revolução laooi recusa claramente essa lcitura asséptica do populismo.
burguesa no Brasil a origem deste fon:alccirncnto do Estado, como Ele nos diz claramente, cm O co/.apso do popuiimw no Brasil e cm
já vimos ao falar de seu livro O cic/q "4 rnJO/uç4o burguesa. muitos outtOS de seus trabalhos sobre o tema, inclusive os que
Neste ponto, ele partilha com Caio Prado Jr. e Florcsun tratam de outros países da América Latina, que o populismo é
Fernandes urna importante conclusão: o Brasil transitou para o wn peculiar modo de luta e de aliança de das.ses, bem como uma
capitalismo, é cercamente um país capiwista, pelo menos desde a ideologia que justifica um modo próprio de dominação burguesa.
Abolição e a República, mas operou esta transição mediante o que Ele é bastante claro: "O populismo terá sido apenas urna etapa na
poderíamos chamar de uma via não clássica, ou seja, daquilo que hist6ria das relações entre as classes sociais no Brasil (...). O po-
Lenin designou como "via prussiana" e Gramsci, como "revolução pulismo é um sistema de antagonismos. Como política de aliança
passiva". Nem Caio nem Florcstan parecem ter conhecido, ou pelo de classes, é uma política de aliança de contrários"',..
menos não empregaram cm suas obras, esses conceitos de Lenin e Escrito logo ap6s o golpe de 1964, O C'Ol.apso do populismo
de G ramsci; lanni, ao contrário, refere-se a eles cm alguns momen- mostra exatamente como este golpe foi a resultante da crise dessa
tos de sua reflexão. De qualquer modo, indcpeodcnccmcncc do iost.ávcl aliança de classes, urna aliança que se expressava no Í2to
nome usado para designá-la, a ideia de que o Brasil tranSitou para de que alguns segmentos da classe operária urbana foram hege-
a modernidade capitalista através de wna via náo clássica (e não de monizados pelo projeto nacional-dcsenvolvimentista dos setores
uma revolução jacobina, desencadeada de baixo para cima) parece mais industriali:rados da burguesia. Com a politização crescente
ser hoje um sólido pattimõoio da imagem marxista do Brasil. E a das massas, porém, lanni acredita que "ampliavam-se as condições
obra de Oa:avio lanni ccn:amcote contribuiu para isso. para uma solução propriamente revolucionária; constituíam-se as
Podemos constatar a centralidade das lucas de classes também condições para uma revolução socialista"'". O golpe é precisamen-
nas muitas análises que Octavio dedicou ao populismo no Brasil te o resultado da ação das várias frações da burguesia no sentido
e na América Latina. "Populismo" é certamente um conceito de cortar pela raiz essas tcndblcias socialistas, para as quais - na
ambíguo. Com efeito, tem sido frequente na literatura sobre o opinião de lanni - já apontava o movimento popular, sobretudo
populismo a tentativa de usar o termo para esconder duas coisas: depois da ativação política dos crabalhadorcs rurais. Em suma,
primeiro, o caráter de classe do Estado na época dita populista; e, para ele, o populismo e seu colapso são fenômenos que só podem
segundo, o f.uo de que ocorreu nessa época uma intensa luta de ser explicados a partir da luta de classes.
classes, disfarçada pelo fato de que os subalternos apareciam - e Uma outra obra na qual o Estado apa.rccc claramente articulado
eram assim crarados não só pelos líderes populistas, mas também com a análise dos processos sociais é Estado e p/.anejammto e~onô-
por alguns dos intérpretes do período - sob a forma de uma
m assa amorfa a que se dava o nome genérico de "povo". Aliás, 171
O . lanni. O ro/4ptti JiJ J>Of#Í.ismo M BrirsiJ., Rio de Janeiro, Civiliz.açlo Bruildn., 1968,
p. 213.
"' R. Faoro. 01 tÚMI ""'*""·Porto Alegre. Gtobo. 1958. 11
' ' """ · p. 140.
2 50 CAM.os NtUOfl C.0llTlllHO CuLTUllA 1 SOOlDADf NO 811A.S1L 251

mico"" Brasil•, que busca mostrar o papel do Estado brasileiro na Oclibcradamcntc ou não, os membros da cccnocsuurura cscu.al põem cm
construção dos pressupostos e dos fundamentos da modernização prática objetivos econômicos e técnicas de conuole das rclaç6cs de produção
capitalista de nosso país. Embora este papel resulte cm grande e de apropriação por meio das quais se preserva ou modifica o modo pela qual
as difcrcntC$ das5CS soci.ais e certos grupos soei.ais rcprcsc:m:amcs de cada classe
parte do tipo de modernização "pelo aJco" a que já nos referimos, participam da renda nacional'"'.
que implica o recurso permanente à coerção (à "ditadura sem
hegemonia" de Gramsci), o balanço que esse livro nos apresenta Portanto, não é cm nome da modernidade, ou da construção
da ação do Estado brasileiro p&--1930 não é um balanço inteira- da nacionalidade, que o Estado brasileiro interferiu durante tanto
mente negativo. Além de criar as condições para uma intensa e tempo na esfera da economia: ao contrário, o fez para garancir os
rápida modernização das forças produtivas, segmentos das dasscs interesses de determinadas dasscs e frações de classe.
trabalhadoras-embora quase sempre privados de direitos polícicos Essa natureza de dasse do Estado brasileiro pós-1930 volta a
e, cm muitos casos, até mesmo de direitos civis - obtiveram no ser reafumada rom ênfàsc cm A áitaáura do gmntk C4f>ital, no qual
período alguns importantes direitos sociais. lanni tenta caracterizar a forma e o conteúdo social do Estado que
Não posso aqui me deter no tema, mas lembro que Gramsci, vigorou no período que se inicia rom o golpe de 1964. Esse livro foi
ao caracterizar o que chama de "revolução passiva" (e o período publicado em 1981. Poucos anos antes, em 1975, Fernando Hen-
histórico tratado por Ianni nesse livro pode ser considerado como rique Cardoso havia publicado Autoritarismo e dnnocratizafáo"J,
uma revolução passiva de longa duração), dizia que esta modali- no qual formula - ao lado de algumas interessantes observações
dade de transformação pelo alto expressa o movimento pelo qual cópicas - uma estranha teoria. Segundo de, com a ampliação da
as classes dominantes, para conservar o seu poder, concedem algo intervenção estatal na economia, reforçada pelo regime p&--1964,
aos "de baixo", que apresentam suas reivindicaçócs de modo ainda teria se criado no Brasil uma suposta "burguesia de Estado", forma-
"esporádico e derncncar""'. Não me parece casual que, pouco da pelos executivos das empresas estatais. Estaríamos diante, para
antes de tomar posse na prcsid~ncia da República, Fernando de, de uma nova classe social, cujos interesses seriam antagónicos
Henrique Cardoso tenha afumado que um dos objetivos de seu àqudes do capital privado; seria precisamente essa "burguesia de
governo seria pôr abaixo o que chamou de "Estado varguista•. Na Estado" a verdadeira rcsponsávd pela ditadura (que ele prefere
verdade, o que de tinha cm vista era, precisamente, destruir os chamar de "aucoricarismo"), ao passo que a burguesia privada seria
poucos dementos positivos desce Estado p&--1930, já que isso era liberaJ (inclusive cm política!) e defenderia o firo do "autoritaris-
condição para empreender uma aberta política neoliberal, fundada mo". Ora, dizer que a participação do Esttdo na economia é causa
na privatização do patrimônio público e na implementação de do autoritarismo, enquanto a ação do capital privado favorece a
contrarrefonnas antipopuJares. democracia, é levar claramente água para o moinho do libcraJis-
Porém, mesmo ressaltando traços positivos no "Estado mo privacista. É até possível que, na época, Cardoso não tivesse
varguista", lanni não esquece sua natureza de ~ Permitam- plena conscirocia das implicações liberais ou neoliberais desta sua
me citar neste sentido uma passagem de Estado e púznejammto formulação, mas o &co é que, anos depois, já na presidencia da
econômico: República, não hesitou cm pôr tais ideias em prática.

uo Ç(., l ll/rllo llOQ 167, "' O. lanni, Eslllli# t p~lll "'"'"'kv•~ {'i1. , P· ~ 16.
"' A. Gramsd, ~ Jo r4rr~. cd. cit., v. 1. p. 393. IU a.. 1t1p,.,,_, ft()(2. 169.
252 CM.os NWOH CoulN«> CuLT\IM C SOOIDAl>f NO 8 MSIL 253

A ditadura do gra.nde capital. ao tentar caracterizar o período gica de Ianni está o rganicamente ligada à cocr&tcia da sua ação
pós-1964, não se vale absolutamente deste f.a.Lso conceito de "bur- ético-política ao longo da vida. Octavio nio contribuiu apenas
guesia de Estado". Para Janni, com efeito, é muito evidente que para a nossa compreensão da realidade brasileira e mundial: de é
a ditadura pós- 1964 (designaçio diante da qual não tergiversa) é cambém um exemplo moral para os qµc buscam, através da defesa
uma ditadura a serviço do grande capital privado, seja de nacional das causas populares e da emancipação humana, uma vida mais
ou internacional. Como já havia mostrado cm obras anteriores, de digna e dora.da de sentido.
sabe que o papel do Estado na economia brasileira foi, na maioria
esmagadora dos casos, o de sustcntaçio e fomento à acumulação (2006)
privada. Se as empresas estatais não eram lucrativas, isso ocorria
porque sua função não era a de obter lucro para si mesmas, mas,
ao contrário, a de repassar a mais-valia nelas geradas para os seto-
res privados do capital, que num primeiro momento não tinham
condições o u não estavam inccrcssados cm investir nos setorcs-
chavc da economia.
lanni mostra isso muito bem cm seus livros, mas o faz pacticu-
lacmcntc cm A áitlldura do grande capit4l. Prosseguindo o que já
fora iniciado na era Vargas, a ditadura militar adorou elementos de
planejamento econômico e interveio na economia com o objetivo
de assegurar condições de maior lucratividade para o capital pri-
vado, nacional e internacional. O aparelho estatal foi reforçado e
concentrado no Poder Executivo como insuumcnto para &vorcccr,
orientar e dinamizar a acumulação privada do capital. Juntamente
com Brwil: radiogra.fia de um mode/Q (1974)'.., de Nelson Wcmcck
Sodré, A áitlldura do gra.nde capital foi e continua a ser uma das
principais contribuições m.arx.istas para a compreensão da natureza
da ditadura militar brasileira.
Gostaria de concluir sublinhando q ue Oaavio Ianni, cm seus
quase 50 anos de atividade intelectual, sempre se manteve fiel ao
principio metodológico básico do marxismo, que consiste cm
adotar, na tentativa de entender os fenômenos sociais, o ponto de
vista da totalidade, o que tem como conscqubtcia dar centralidade
à historicidade contraditó ria do real e, portanto, à luta de classes.
Mas gostaria de ressaltar também que essa coerência mctodoló-

,.. N. W. Sodré, Brt11il: ~foi tk ""' ~'4. Petrópolis. Vcncs, 197( .



Nota bibliográfica

Os ensaios reunidos neste livro, reproduzidos aqui com modi-


ficações, foram publicados pela primeira vez, quase sempre com
diferences óculos, nos seguintes locais~

1. "Os intelectuais e a organização da cultura", in: Temas de


c:ibici4s humanas, São Paulo, n. 10, 1981, p. 93- 110. Conf~ncia
pronunciada cm São Paulo, cm 28 de junho de 1980, como parte
do curso de Hisr6ria do Brasil promovido pclaAuphib (Associação
de Universitários e Pesquisadores de Hist6ria do Brasil).
II. "Cultura e sociedade no Brasil", in: Encontros com a Civi-
lização Brasikira, Rio de Janeiro, n. 17. novembro de 1979, p.
19-48 (reproduzido cm C. N. Coutinho, A dmwcracúz como vak>r
universal, São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 61 -92).
UI. "Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfun", in:
Pmmça. &vista tk polf#ça ç rulrum) Rio d<: Jan<:iro, q , 7, m3IÇQ
de 1986, p. 100- 112.
IV. "O significado de Lima Barreto em nossa literatura", in:
Vários autores, Realismo e anti-~a/ismo na litnrztura brasikira, Rio
deJaneiro, Paz e Terra, 1974, p. 1-56.
V. "Graciliano Ramos", in: Revista CiviliZIZfáO Brasileira, Rio
de Janeiro, n. 5-6, março de 1966, p. 107-150 (reproduzido cm C.
N. Coutinho, Literatura e humanismo. Ensaws de critica marxista,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 139-190).
VI. "O povo na literatura de Jorge Amado", in: Vários Auto-
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Palavras, 2000, p. 57-62. Conf~cia pronunciada em Salvador
no 1 Simp6sio lntcrnacional sobre a obra de Jorge Amado, l O a
13 de agosto de 1992.
Vll. "A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior", in:
Maria Ângela D'Jnçao (org.) 1 Hiddri4 e k/eaL Ensaios sobre Caio
Pra® Júnwr, São Paulo, Editora da Uncsp-Brasillensc, 1989, p.
256 WlOS NWON Ú>\/T1NHO

(ndice onomástico·
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pela Uetj, 22 a 23 de novembro de 2006. AMA.00,jorge - 11,12,61 , 132,
188, 195-200, 255 e
AMARAL, Azevedo - 55, 246 CALU.00, A.nconio -66, 115, 139
ANDERSON, Peny-39 CAMPOS, Francisco - 50
ANDRADE. Mário - 56, 138 CANDIDO. Anto nio - 40, 48,
ANTUNES, Ricatdo - 231 187
ARISTÓTELES - 129 CAPINAM, José Carlos - 66
ATAIDE. AusucpUo - 100 CARDOSO, Ciro Flammarion -
AZEVEDO, Aluúio - 94 204
AZEVEDO AMARAL. Antimio CARDOSO, Fernando Henrique -
}<*de - 55, 246 38.72.242,243,250,251
CARLOS, Antônio - 51, 196
B CARONE. Edg;ud- 222
BABEUF, Gracbus - 189 CASTRO ALVES, Antônio - 20,
BALZAC, Hono~ de - 94, 98-100, 96.
195
112, 114, 11 5, 127, 129, 144, CERVANTES, Migud de - 119
161, 182, 184, 198 CHAPLIN, Clurlcs - 85
BARAN, P2ul - 75 CHASIN,J. -62, 231
BARBOSA, Francisco de Assis- C HOLOKHOV, Mikbail
102, 114. 135 Aloc.a.ndrovitcb - 191. 193

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nomes de pcnonagcos litcrúios ou mirol6gkos. nem óculos de u,,_
2 58 Cw.os Nn!Oll C011T1NHO CULTillll- ( SOCl[OAI)( NO BllA!ll 2 59

COELHO, Marco Antonio (Assis FONSECA. Hermes da - lJ 6, 131 HEIDEGGER. Martin - 74, 77 M
Tavares) - 218 FOUCAULT, Michd- 81 HEINE. Hcinrich - 181 MACEDO, Joaquim Manud - 93
COHN, Gabrid - 228, 242, 243 FRANK. AncW Gundcr- 217 HENRJQUES, Luiz Strgio - 78 MAClEL. Luís Carlos - 77
COSTA. Hipóliro da - 51 FREIRE, Paulo - 57 HOR.KHEIMER. Max - 74, 79, 80, MACHADO DE ASSIS, Joaquim
COUSIN, Victor- 5 1 FR.EYRE. Gilberto- 50, 221, 244 85-87 Maria - 22. 58. 97, 98, 100,
CUNHA. Euclides da - 51 108, 119. 132, 139. 195
G MAGADAN, Glória - 85
D GALVÃO, Walnicc Nogueira - 48, lANNI, Octavio- 11, 12, 233, MAI<ARENKO. Anron - 191
D'ANNUNZIO, Gabride - 59 61 241-253 MALRAUX, AncW - 191
DAUDET, AJphonsc - 100 GERRATANA. Valentino - 13 MANN, Thomas - 21. 48, 91, 129,
DEBRAY, ~ - 75 GOETHE, Johann Wolfgmg- 99. K 172. 184, 190, 193. 194
DEFOE. Daniel - 96, 182, 199 132. 145 KAFKA, Fran~ - 191 MANNHEJM, Karl - 17
DIAS GOMES, Alfredo - 85 GOLDMANN, Lucicn - 44, 75, KONDER. Lc:mdro - 26, 50. 78, MANTEGA, Guido - 208
DICKENS, Charles - 100 134, 146, 162, 186, 191 222 MARCUSE. Herbert - 74-78, 81
DOSTOIEVSKJ, Fiodor GOMES, Eugênio - 108 KOTHE. Flavio - 79, 80 MARJÁTEGUl, Jos~ Carlos - 214
Mikhailovit.ch - 59, 98. 99, GONÇALVES DIAS, Antônio - 93 KUBITSCH EK, Jwccli no - 28, 2 17 MARIN I, Ruy Mauro - 217
101, 104. 119, 120, 128, 129, GORENOER. Jacob - 39, 52, 204, MARTIN OU GARD. Rogcr - 98,
161, 184, 191 224 l 99
OUTRA, Eurico Gaspar - 28 GORKI, Maximo - 59, 98, 101, 182 LAFARGUE. Paul - 94 MARX. Ka.rl - 14, 18. 29, 37, 41,
GOULART, João- 217 LENIN, Vladimir llitcb Ulianov - 47. 65. 132. 142. 146, 204,
E GRAMSCI,Antonio-9, 12-17, 39, 45. 46. 59. 90. 162, 202. 225.228
EUOT, George (pseudónimo de 45-47. 53. 54, 60, 65, 70, 71 , 204-206.209. 222,224-226, MATURE. Viaor - 85
Maty Ann Evans) - 104 75. 76. 79. 81-85, 87, 91, 189, 229, 230.232. 233.245,248 MAUPASSANT, Guy de - 100
ENGELS. Fricdrich - 14, 35, 37, 202, 209-21 l, 214, 215, 224- UMA BAR.RETO. Afonso Henri- MAZZ.EO, Anronio Carlos - 231
41. 11 o. 146, 198. 2.25, 228 226, 229. 232-234. 236, 24 1, qucs de- 11, 22, 24, 27, 44, MEU.O. Fernando CoUor - 72,
245,247,248,250 48, 59, 60.89,90.96. 100-108, 235.238
F GUOIN, Eugbüo- 50 11 1, 112, 11 4, 117, 119, 120, MELLO, Thiago dc - 61
FAORO, Raymundo - 248 GULLAR. Ferreira - 52, 66 122. 123. 134- 139. 142, 195. MERCADANTE. Pau.lo - 50-52, 56
FARIAS BRITO. Raimundo de - 50 200 MERQUJOR. J<* Guilherme - 73,
FERNANDES. Aorcsan - 11, 12, H LUKÁCS. Gyõrgy - 2 1, 22. 46, 48, 74
221-239. 241-244. 247, 248, 256 HABERMAS, Jürgcn - 80, 82 49. 55-57, 65,73. 75, 76, 78. MOOREJr., Barrington - 206,230
FIELDING, Henry - 96. 180, 182 HARJCH, Wolfgang - 75 81 , 82. 91. 110, 118-123. 145-
F1GUEIREDO, Anton io Pedro de HEGEL. Gcorg Wühdm Fricdricb 147. 151. 152, 154. 160. 162, N
- 51 - 14. 35, 73. n.12 1. 129, 150, 168. 169, 183, 19 1, 194, 239. NAPOLEÃO Bonaparte - 130. 13 1,
FL\UBERT, Gustavc - 144, 182 155. 193 241, 242 161
(ULTIMA ( SOCICOADl NO 811.t.Sll 261

NETfO. José Paulo - 78 RIBEIRO, João Ubaldo - ioo VERfSSCMO, &ioo - 139
NlETZSCHE. Fricdrich - 59 ROBESPIERRE. Mnimilicn - 143. VOLTAIRE (pscud6nimo de
NOVA.ES, Fernando - 204 189 François-Marie Arouct) - 17
ROUANET. S«gío Paulo - 78.
o 8~8 w
OUVElRA, Francisco de - 208 ROUSSEAU, Jean-Jacques - 189, 190 WEBER. Max - 228
OLIVEIRA VIANNA, Francisco s
José - 50, 221 , 244, 246 SCHAFF. Adam - 75 z
SCHWARZ. Roberto - 42, 43, 68, ZOLA, &niJe - 93
p 74, 78, 100
PAULINHO DA VlOLA (pseudó- SOORt, Ndson Werncck - 22, 42,
nimo de Paulo CéAr de Faria) 5 1.92. 158,223, 239, 244,
-67 252
PED<.OTO, Afrinio - 23, 103, 195 SOLJENITSrN. Alcxa.odcr - 98, 99,
PERErRA, Astrojildo - 58, 60, 100, 119, 120
107 STENOHAL (psed6rumo de Harui
PINTO, Álvaro Vieira - 190 Bcylc)- 127, 129, 144, 16 1,
PLATONE, Felic:c - 13 182, 184
POMPrn. R:tul - 107 SWEEZY, Paul - 75
PONTES, Paulo - 66 SWJFT, Jo nathan - 100
PRADO Junior, Caio - 11 , 25, 38,
201-2 19, 221-229. 232, 239, T
244, 247.248 T C HEKOV, Anton - 132
PUSHKIN, Alcxa.odcr - 98 TOGUATn, Palm.iro - 13, 7 1
TOLEDO, Caio Navarro dc - 41
R TOLSTOI, Lcon Nikowcvitch -
RAMOS, Graciliano - 1~1 2, 25, 59. 100, 101 , 104, 130. 131 .
89, 108, 109, 113, 132, 135. 133. 16 1
139. 141- 194, 196, 197, 200 TROTSKI. Lcon - 59
REALE. Mjgud - 50 TSt-TUNG, Mao- 75
REGO, José Uns do - 25. 139. 183. TURGUENlEFF, lvan - JOO, 101
196
R.EI C H , WUhclm - n V
REZENDE. Lc6ruda.s - 5 1 VEIGA , Evaristo - 51
RIBEJRO, Gi1Y2n P. - 78 VELO SO , Caetano - 67. 86

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