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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

DIREITO DA FAMÍLIA E DOS M ENORES

INTRODUÇÃO

A. A noção jurídica de família e as fontes das relações jurídicas familiares

Como é que definimos família? O art. 1576.º do Código Civil fornece uma definição, segundo a qual a relação
jurídica familiar é toda a relação que emerge das fontes enumeradas:
1. Casamento;
2. Parentesco;
3. Afinidade;
4. Adopção.

Esta noção é pouco rigorosa, uma vez que confunde fontes das relações familiares (casamento e adopção)
com as próprias relações (parentesco e afinidade).

O (1) casamento é um negócio jurídico bilateral, integrado por duas declarações de vontade tendentes à
produção de certos efeitos (há quem discuta a natureza de contrato do casamento, este é um contrato
"especial"). E é um contrato celebrado por duas pessoas - do mesmo sexo ou sexo diferente - que pretendem
"constituir família" mediante a formação duma comunhão de vida plena (1577.º). A relação matrimonial
influencia o regime da generalidade das relações jurídicas obrigacionais ou reais de que sejam titulares.

O (2) parentesco é uma relação de sangue, traduzindo-se no vínculo que une duas pessoas, os parentes, em
consequência de (1578.º):
1. Descendência directa ou indirecta (os parentes descendem um do outro) - parentesco em linha recta;
2. Descendência, directa ou indirecta, de um progenitor comum (os parentes descendem de um
progenitor comum) - parentesco na linha colateral. Exs: irmãos, primos, etc.

É mediante a contagem do parentesco que é possível estabelecer uma hierarquia entre as relações que se
formam através dele. O parentesco conta-se por linha e por graus. Para além da distinção entre linha recta e
colateral, temos outras distinções: a linha recta pode ser ascendente ou descendente (art. 1580.º/2),
consoante se faça num sentido ou noutro. Uma vez definida a linha, importa saber o grau; o cômputo do grau
de parentesco vem regulado no art. 1581.º:

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1. Na linha recta, há tantos graus quantas as pessoas que formam o parentesco, excluindo o progenitor;
2. Na linha colateral, contam-se todos os elementos da linha ascendente e descendente, tirando o
progenitor comum - ex: os irmãos são parentes na linha colateral em 2º grau; os primos são parentes
na linha colateral em 4º grau.

O art. 1582.º estabelece um limite à eficácia do parentesco: na linha recta, o parentesco produz efeitos
qualquer que seja o grau; na linha colateral, os efeitos do parentesco produzem-se apenas até ao 6º grau. Os
efeitos do parentesco não têm um tratamento sistemático no Código, mas sim disperso consoante a matéria.
São eles:
1. Efeitos sucessório, art. 2133.º;
2. Obrigação de alimentos (arts. 2003.º e ss.) - obrigação de fornecer sustento, isto é, alimentos, casa e
vestuário. A lei impõe esta obrigação a determinados parentes;
3. O direito de arrendamento para habitação transmite-se aos parentes (art. 1106.º);
4. Da qualidade de parente pode derivar a obrigação de exercer tutela ou fazer parte do conselho de
família (art. 1931.º/1 e 1952.º/1);
5. A lei confere legitimidade para intentar a acção de anulação do casamento fundada em impedimento
dirimente, ou para a prosseguir caso o autor falecer, a certos parentes (art. 1639.º e 1640.º/2, 1641.º).

Quer em matéria sucessória, quer em matéria de obrigação de alimentos, há efeitos comuns a várias formas
de parentesco, quer na linha colateral, quer na linha recta. Mas há outros efeitos que são específicos de
formas de parentesco - ex: as responsabilidades parentais são um efeito específico de uma certa forma de
parentesco, a progenitura.

Por fim, certos efeitos do parentesco traduzem-se em limitações ou restrições à capacidade jurídica:
1. Impedimento dirimente, art. 1602.º/a) e b);
2. Impedimento impediente, art. 1604.º/c) e 1609.º/1/a);
3. Inadmissibilidade de averiguação oficiosa da maternidade e paternidade, art. 1809.º/a) e 1866.º/a).

A (3) afinidade está consagrada no art. 1584.º, e define-se como o vínculo que une cada um dos cônjuges aos
parentes do outro. Tal como resulta da noção de afinidade, a relação entre os parentes dos cônjuges não é
uma relação de afinidade - "afinidade não gera afinidade". O cálculo do grau e a determinação da modalidade
da afinidade baseia-se na relação de parentesco subjacente.

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Sendo a fonte da afinidade o casamento, esta não opera para trás, não tem eficácia retroactiva. Mas cessará
com a dissolução do casamento? O art. 1585.º, 2ª parte, diz-nos que a afinidade não cessa pela dissolução do
casamento. Antes da Lei 61/2008, apenas se dizia isto; hoje, distingue-se entre a dissolução do casamento por
morte e o divórcio:
1. No primeiro caso, a lei presume que não há razão para a dissolução da relação de afinidade, e esta
subsiste;
2. Na dissolução por divórcio, a lei presume, da realidade dos factos, que não razões para a
manutenção da relação de afinidade.

Finalmente, a afinidade pouco interessa para o direito, ou seja, são poucos os efeitos que a lei lhe associa, e
pouco importantes:
1. Os afins não têm direitos sucessórios;
2. A lei apenas impõe a obrigação de alimentos ao padrasto e madrasta nos termos do art. 2009.º/1/f).
3. A afinidade em linha recta constitui impedimento dirimente, art. 1602.º/c).
4. Os arts. 1809.º/a) e 1866.º/a) proíbem a averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade no
caso de afinidade em linha recta.

A (4) adopção vem definida no art. 1586.º - é um vínculo que, à semelhança da filiação natural mas
independentemente dos laços de sangue, se estabelece entre duas pessoas nos termos legalmente
estabelecidos. A adopção tem hoje um espírito inverso ao que tinha antes - este servia sobretudo interesses
do adoptante, para preservar o nome da família, deixar os seus bens, etc. Hoje, a adopção é pensada no
interesse do adoptado, para o auxiliar.

Algumas notas conclusivas sobre as fontes das relações jurídicas familiares:


1. As relações familiares são apenas estas, isto é, os sujeitos não podem, na sua autonomia, criar novas
relações jurídicas familiares. Vale o princípio da taxatividade das fontes das relações jurídicas
familiares.
2. A família não tem personalidade jurídica: em sentido jurídico, a família é integrada por um conjunto
de pessoas, mas não é ela própria uma pessoa jurídica. Apesar de o grupo familiar ser portador de
interesses próprios, o interessa da família é prosseguido através das próprias pessoas que a
compõem.
3. Deve distinguir-se entre a família jurídica e a família sociológica.

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B. A evolução sociológica e jurídica da família

No (1) plano sociológico, verificam-se as seguintes tendências:


1. Nuclearização: a família é, cada vez mais, a família nuclear - pai e filhos menores.
2. Desfuncionalização progressiva: a família perdeu as suas funções tradicionais, como a função política
(direito romano) e a função económica, de unidade de produção. Hoje, a família perdeu as suas
funções externas, ficando reduzido ao seu núcleo essencial fundamental: a mútua gratificação
afectiva, por um lado, e a socialização dos filhos, por outro, com a sua preparação para a integração
na sociedade.
3. Autonomização: verifica-se uma maior autonomia dos cônjuges, quer em relação à grande família,
quer em relação ao Estado. O Estado e o direito retiram-se cada vez mais da regulamentação família,
que é um assunto dos seus membros, o mesmo se verificando em relação às religiões. A primeira
batalha travada contra a legitimação tradicional externa da família foi a da não discriminação dos
filhos nascidos fora do casamento. Resumindo, dentro do casal, “a lei é a ausência da lei”.
4. Fungibilização dos papéis dos membros da família: a realidade da atribuição de funções ao marido e à
mulher, que tinha repercussões ao nível do direito, tende a acabar. A década de setenta logrou
libertar a mulher do estatuto desigual em que o modelo anterior a confinava, para lhe dar um estatuto
igual perante a sociedade e a lei.
5. Acentuação da individualidade dos cônjuges dentro do casamento: é cada vez mais acentuada a
autonomia de cada cônjuge, ou seja, cada membro do casal procurará na comunhão de vida a maior
realização pessoal e a maior satisfação que puder.

Tudo isto se reflecte numa nova forma de família, a família “pura” ou “relacional”, baseada no compromisso
permanente e na gratificação renovada. Note-se que estas alterações, ainda dentro do nosso espaço
civilizacional, não se deram de forma uniforme, sendo por exemplo mais acentuadas nos países protestantes.

E no (2) plano jurídico?


1. Diminuição do conteúdo imperativo do conteúdo do casamento, sobretudo do conteúdo pessoal: por
exemplo, a lei já não fixa imperativamente os deveres dos cônjuges. Antes de 2008, estes deveres
tinham importância pois a sua violação era fundamento de divórcio, o que já não sucede. A própria
tendência de fixação destes deveres está a acabar, já que são os cônjuges que gerem o casamento.
2. Progressiva igualitarização dos cônjuges: isto traduz-se no princípio da igualdade entre os cônjuges.

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3. Acentuação da autonomia de cada cônjuge dentro do casamento: a lei tem vindo progressivamente a
reconhecer a independência dos cônjuges como pressuposto da sua liberdade de contratação com
terceiros e, sobretudo, como pressuposto da liberdade negocial entre si. No entanto, ainda não está
plenamente adquirido que os dois cônjuges possam manter entre si uma vida negocial como se
fossem dois estranhos.
4. Regulação minimalista do divórcio, sobretudo no sentido da sua facilitação: ainda não é possível o
divórcio por simples pedido unilateral de um dos cônjuges entre nós; no entanto, tem-se assistido a
uma facilitação do divórcio quer por mútuo consentimento (no plano temporal e processual: não há
tempo mínimo de duração efectiva, desaparecendo também obstáculos processuais), quer sem
consentimento dos cônjuges, antigo divórcio litigioso (sobretudo no plano dos fundamentos,
bastando a demonstração de qualquer facto que mostre a ruptura definitiva do casamento).
5. Progressiva atribuição de efeitos jurídicos à união de facto, ainda que não esteja totalmente equiparada
ao casamento.
6. Um último traço da evolução jurídica é o fim do dogma do casamento heterossexual, entre nós, em
2010.

Tendo em conta estas tendências, há quem fale de uma crise da família e, sobretudo, do casamento.

C. Relações parafamiliares: a união de facto e outras parcerias

Apenas são relações familiares as que derivam das fontes mencionadas no art. 1576.º. No entanto, para além
destas, existem as relações parafamiliares: relações que, não sendo propriamente relações de família, são
conexas com elas, estão equiparadas a relações de família para certos efeitos ou são condição de que dependem,
em certos casos, os efeitos que a lei atribui à relação conjugal ou às relações de parentesco, afinidade e adopção.
A mais importante destas relações é a união de facto.

1. União de facto

1.1 Introdução

Noção: o que é a união de facto? A união de facto é a vida em comum em condições análogas às dos cônjuges.
A vivência em condições análogas às do casamento significa que os unidos de facto vivem em comunhão de

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leito, mesa e habitação, simplesmente não estão unidos pelo vínculo formal do casamento. Notas:
1. Relações sexuais passageiras, fortuitas, acidentais não configuram uma união de facto.
2. A união de facto distingue-se igualmente do concubinato duradouro (apesar de haver comunhão de
leito, não há de mesa e habitação).
3. A vivência em condições análogas às do casamento exige também a unidade ou exclusividade, ou
seja, uma pessoa não pode viver em união de facto com mais do que uma pessoa.

A união de facto pode revestir várias formas: por vezes, a união de facto é uma situação transitória; outras,
definitiva. Também pode ter várias motivações: o meio social pode ter influência nas motivações para a
união de facto; ou ainda esta pode ter motivações fiscais ou patrimoniais.

Relação entre a união de facto e a Constituição: a Constituição não fala da união de facto nem dispõe
directamente sobre ela.
1. O art. 36.º estabelece a "constituição fundamental da família", sendo que o n.º 1 diz que todos têm o
direito de constituir família e de contrair casamento, em plena igualdade, consagrando portanto dois
direitos: o direito de contrair casamento e o direito de constituir família. Baseados neste duplo
direito, alguma doutrina, onde se integra GOMES CANOTILHO e V ITAL M OREIRA, veio afirmar que, se
a Constituição distinguia estes dois direitos, então o direito de constituir família referir-se-ia ao direito
de união de facto.
2. Esta posição é discutível – ao direito de constituir família é normalmente atribuído o sentido de
direito de procriação, em primeiro lugar, e de estabelecimento das consequentes relações de filiação, em
segundo lugar (esta será a posição de PEREIRA COELHO ). Assim, não é no art. 36.º/1, 1ª parte, que
vamos encontrar a protecção constitucional da união de facto.
3. Outros autores vieram interpretar que tal protecção estaria antes na 2`parte, na vertente negativa do
direito de casamento – a não casar significaria viver em união de facto. Simplesmente, não casar é não
casar, logo esta não é uma interpretação correcta da vertente negativa do direito de casamento.

Excluindo o art. 36.º/1, viramo-nos para o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrada no
art. 26.º/1. Assim, a união de facto não está expressamente prevista na constituição fundamental da família,
mas estará incluída no amplo direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Em resultado disto,
podemos concluir que:
1. Viver em união de facto é um direito que resulta daquele direito fundamental, logo não pode vir a lei
ordinária penalizar, proibir ou punir a união de facto.

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2. Mas também é verdade que a lei pode tratar a união de facto de forma diferente do casamento, já que
se tratam de realidades distintas – enquanto que o casamento é um contrato, a união de facto é
precisamente apenas um puro facto, no qual os sujeitos se querem manter afastados do direito. Esta
diferença manifesta-se, por exemplo, ao nível do tratamento sucessório. Nem se diga que isto viola o
princípio da igualdade, uma vez que o desfavor da protecção da união de facto em relação ao
casamento é objectivamente fundado, justificando-se até onde seja um meio proporcionado de
favorecer o estabelecimento de uniões estáveis, no interesse geral.
3. Mas não só pode a lei ordinária tratar a união de facto de forma diferente, como o deve fazer – seria
inconstitucional aquela lei ordinária que tratasse de igual forma o casamento e a união de facto, ou
que a elevasse ao nível do casamento, regulando-a de forma exaustiva. Isto violaria o art. 36.º/2, que
garante o instituto matrimonial, que o legislador não pode suprimir nem descaracterizar
essencialmente; violaria ainda o direito de não casar; e o princípio da igualdade.
4. Em conclusão: a Constituição não permite penalizar a união de facto nem equipará-la ao casamento:
entre estas duas vale o princípio democrático, que permite ao legislador ordinário conformar livremente
o regime da união de facto.

A união de facto, relação de família? Apesar de a união de facto não caber na noção restrita e técnica de
família do art. 1576.º, devemos entender que o direito português admite noções mais amplas e menos
técnicas de família, válidas em certos domínios ou para determinados efeitos. É o que sucede no direito da
segurança social e no direito da locação, para os quais a união de facto faz parte da noção ampla de
familiares.

Regulação da união de facto:


1. A união de facto começou por ser institucionalizada em 1999, pela Lei 135/99, ainda que antes já
existissem certas normas dispersas que atribuíssem alguns direitos aqueles que vivessem em união de
facto, por exemplo, a propósito de benefícios para Segurança Social. Neste sentido, o regime da Lei
135/99 não consagrava um regime inteiramente novo, porém foi a primeira lei que se dedicou
inteiramente à disciplina.
2. A Lei 7/2001 veio revogar e substituir a lei anterior, apesar de se tratar de uma lei de continuidade e
não de ruptura. Assim, as soluções eram praticamente as mesmas da lei anterior, destacando-se
todavia uma novidade: veio alargar a protecção da união de facto também às uniões de facto entre
homossexuais.
3. Hoje, ainda vigora a Lei 7/2001, todavia com importantes alterações – a Lei 23/2010 introduziu

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profundas alterações.

1.2 Constituição e prova

Constituição: a união de facto constitui-se quando os sujeitos da relação se juntam. No entanto, para que esta
produza os efeitos previsto no art. 3.º da Lei 7/2001, a lei exige a duração mínima efectiva de 2 anos (art. 1.º),
como forma de garantir uma certa estabilidade.

Prova: como se prova a união de facto, já que não há qualquer registo? Depois de 2010, passou a haver um
artigo que regula expressamente esta matéria – o art. 2.º-A. Este preceito admite que se possa provar a união
de facto por declaração da Junta de Freguesia baseada numa declaração dos unidos de facto, sob compromisso
de honra, de que vivem em união de facto há mais de 2 anos.

1.3 Os efeitos da união de facto

Para que os efeitos da união de facto se produzam, é necessário que se verifiquem certos requisitos de
eficácia:
1. A partir da Lei 7/2001, não constitui requisito para a união de facto a heterossexualidade, salvo para
efeitos do art. 7.º (adopção conjunta).
2. A união de facto só produz efeitos se durar há mais de dois anos (art. 1.º).
3. Não deve existir impedimento dirimente ao casamento dos membros da união de facto – é o que
resulta do art. 2.º, que reproduz o disposto nos arts. 1601.º e 1602.º do CC. Isto com duas excepções:
a. Em separação de pessoas e bens, as pessoas podem entrar numa união de facto relevante com
outra pessoa, art. 2.º/c).
b. Os sujeitos têm de ter 18 anos à data do reconhecimento da união de facto, logo podem
juntar-se aos 16.

1.3.1 Enquanto dura a união de facto

Como a união de facto não é um negócio jurídico, não produz efeitos negociais directos, ao contrário do
casamento.

Quanto aos efeitos pessoais:

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1. A união de facto, sendo um puro facto, não produz os mesmos efeitos que o casamento – deste
resultam certos deveres pessoais dos cônjuges, aos quais os unidos de facto não estão vinculados.
2. Todavia, o direito não desconhece a relação pessoal que une os unidos de facto, pelo que a união de
facto produz certos efeitos pessoas indirectos;
a. Tal como um casal pode realizar uma adopção conjunta, verificadas certas condições, assim
também duas pessoas unidas de facto podem, nas mesmas condições, realizar esta adopção.
b. As responsabilidades parentais dos pais unidos de facto em relação ao filho, enquanto for
menor, regem-se pelas mesmas regras que regulam as responsabilidades parentais dos pais
casados. A lei estabelece aqui uma regra de equiparação, enquanto dura a união de facto,
mas também depois da sua separação.

Quanto aos efeitos patrimoniais:


1. Não há um regime próprio para o património dos unidos de facto, ao contrário do que sucede no
casamento, que é um contrato. Não se produzem efeitos negociais patrimoniais directos, podendo
dizer que para este efeitos os unidos de facto são dois estranhos, ficando as suas relações patrimoniais
sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais.
2. Este é o princípio, mas também aqui há certos efeitos que se podem produzir, ou cuja produção se
discute:
a. Discute-se se os unidos de facto não poderão celebrar um contrato a regular os seus
interesses patrimoniais, como o montante com o qual cada um entra para a economia
comum, a compropriedade de certos bens, etc. – o "contrato de coabitação". A celebração
deste contrato será possível, ou seja, não se levanta qualquer obstáculo (desde que não
exceda os limites da autonomia privada e regule apenas os efeitos patrimoniais e não
pessoais), porém entre nós esta não é uma prática comum.
b. No regime dos efeitos patrimoniais do casamento, regula-se a responsabilidade por dívidas no
art. 1691.º/b): se algum dos cônjuges contrair uma dívida para corresponder aos encargos
normais da vida familiar, a responsabilidade é de ambos, ou seja, os cônjuges são
solidariamente responsáveis. Não deverá isto valer para a união de facto? PEREIRA COELHO
entende que sim, uma vez que não se vêem obstáculos a esta ideia, que constava mesmo do
projecto inicial da lei que veio alterar o regime legal da união de facto. Este não será um
argumento definitivo, mas podemos recorrer à analogia entre os casos do casamento e o da
união de facto, já que em ambos os casos há uma vida familiar que gera encargos; e ainda à
criação de uma aparência matrimonial na união de facto, que pode suscitar a confiança de

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terceiros.
c. No regime do casamento, se os cônjuges se divorciarem ou um deles falecer, o outro recebe
pensão de alimentos, ou de sobrevivência. Se esse cônjuge que estiver a receber uma pensão
(quer de alimentos, quer de sobrevivência) casar com outra pessoa, deixa de a receber. Até à
Lei 23/2010, nada se dizia se a pessoa, em vez de casar, passar a viver numa união de facto
(apesar de já haver uma tendência, entre os autores, de equiparação das situações): todavia, a
partir de 2010, temos o art. 2019.º do CC (pensão de alimentos), que diz cessar a pensão de
alimentos com a constituição de uma união de facto.
d. Finalmente, há a possibilidade de os unidos de facto poderem apresentar uma declaração de
IRS conjunta – art. 3.º/d).

1.3.2 Depois de dissolvida a união de facto

O fundamento da protecção legal da união de facto está aqui, na necessidade de proteger o unido de facto
sobrevivente se o outro falecer. O próprio contrato de coabitação pode regular esta matéria; se ele nada
disser, aplicam-se as regras gerais.

No caso de dissolução por ruptura: a lei regula apenas o destino da casa da família, equiparando esta
situação à de um divórcio.
1. Se viverem em casa própria (pertencente a um, ou a ambos em compropriedade), o outro cônjuge
pode, no seu interesse e dos filhos, pedir ao tribunal para continuar a viver na casa a título de
inquilino (art. 1793.º CC). Este mesmo regime vale para o caso de ruptura da união - art. 4.º da Lei da
União de Facto.
2. Se viverem em casa arrendada, o art. 1105.º CC prevê que um dos cônjuges possa pedir que o
arrendamento lhe seja transmitido ou, se o arrendamento tivesse sido feito pelos dois, que se
concentre a favor dele. O art. 4.º manda também aplicar este regime.

Note-se o disposto no art. 8.º/2, segundo o qual a dissolução da união de facto por vontade de um dos
cônjuges tem de ser declarada judicialmente quanto se pretenderem fazer valer direitos da mesma
dependentes: assim, o pedido de constituição ou transmissão do direito de arrendamento deve ser cumulado
com o de declaração judicial de união de facto, ficando aquele dependente deste.

No caso de dissolução por morte:

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1. Enquanto que o cônjuge é herdeiro legitimário, o unido de facto não o é (esta será, talvez, a maior
diferença). Na união de facto, não há efeito sucessório; no entanto, provando-se que o unido de facto
sobrevivo precisa de alimentos, o art. 2020.º determina que o membro sobrevivo tem o direito de exigir
alimentos da herança do falecido. Este direito só se verifica que estiverem preenchidas as duas
condições do regime geral do dever de alimentos: a pessoa que pede os alimentos tem de ter
necessidade deles; e alimentador tiver possibilidade de os prestar. Antes de 2010, o art. 2020.º
estabelecia que o unido de facto tinha de pedir, sem sucesso, alimentos às quatro primeiras pessoas
do art. 2009.º, antes de poder exigir alimentos da herança. Hoje, a herança do falecido é o primeiro
obrigado, podendo o unido de facto dirigir-se logo a ela.
2. Quanto à casa de morada de família: a lei, desde sempre, foi muito sensível à ideia de protecção do
unido de facto sobrevivo, isto é, que poderá haver nestes casos interesses a tutelar, nomeadamente o
interesse da continuidade da habitação. Assim, o art. 5.º da Lei da União de Facto dispõe que, no caso
do proprietário ser o falecido, o membro sobrevivo (que não é herdeiro) pode ficar na casa, pelo menos
por 5 anos, como titular de um direito real de habitação e direito de uso do recheio.
a. O tempo de duração do direito de habitação é igual à duração da união de facto, algo que o
Professor critica.
b. O tribunal, apesar de haver este limite, pode prolongar os prazos, atendendo a razões de
equidade (por exemplo, por situação de extrema carência).
c. Deixando de viver na qualidade de titular de direito de habitação, passa a viver na qualidade
de arrendatário - art. 7.º.
d. Este é o regime depois de 2010; antes, este direito podia ser afastado pelo unido de facto; e
não existia no caso de haver descendentes que tivessem necessidade da casa.
3. Nos temos do art. 5.º/9, o membro sobrevivo tem direito de preferência na compra da casa.
4. Outro efeito importante é a transmissão do direito ao arrendamento para habitação, por morte da
pessoa que viva com ele em união de facto – art. 1106.º/1.
5. No caso de a morte tiver sido provocada por um facto culposo de alguém, gerador de
responsabilidade civil, poderá o unido de facto sobrevivo exigir ao autor da lesão uma indemnização
pelos prejuízos sofridos? Discutia-se se a obrigação de indemnizar o cônjuge sobrevivo, decorrente do
art. 496.º, deveria ou não estender-se para a união de facto: em 2010, a lei introduziu uma alteração a
este artigo, introduzindo o n.º 3, segundo o qual o unido de facto sobrevivo pode exigir uma
indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos. Tratando-se de danos patrimoniais, a
indemnização pode fundar-se no art. 495.º/3
6. Quanto aos regimes da Segurança Social, em caso de morte de um dos cônjuges, o sobrevivo tem

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direito a protecção (pensão de sobrevivência). Com efeito, segundo o art. 3.º/e) da Lei da União de
Facto, as pessoas em união de facto têm direito a protecção social no caso de morte do beneficiário, nos
termos do regime geral (equiparação ao casamento). Antes de 2010, a atribuição destas pensões não era
automática, ao contrário do que sucede hoje, pois tinha de se provar que tinha necessidade e tentar
obter alimentos dos vários obrigados a alimentos. Note-se que esta pensão tem uma lógica diferente
da dos alimentos.
7. Há igualmente outros subsídios previstos para os cônjuges sobrevivos, que também se aplicam aos
unidos de facto por força do art. 3.º/f) e g): subsídio por acidente de trabalho, por doença
profissional, por preço de sangue, por serviços excepcionais e relevantes prestados ao Estado, etc.
8. Por fim, refira-se que o art. 251.º/2 do Código do Trabalho permite ao trabalhador faltar
justificadamente por falecimento da pessoa com quem vivia em união de facto há mais de dois anos.

2. Outras “parcerias”

Para além da união de facto, podemos encontrar outras relações parafamiliares:


1. Relação entre esposados;
2. Relação entre ex-cônjuges;
3. Vida em economia comum;
4. Relação entre tutor e tutelado;
5. Pessoa a cargo de outra.

A mais relevante é a vida em economia comum, institucionalizada pela Lei 06/2001, que contém medidas de
protecção para pessoas que vivam nessas condições. A vida em economia comum significa viver em
comunhão de mesa e habitação, mas já não de leito; por mais de dois anos; e com entreajuda ou partilha de
recursos. Distingue-se da união de facto: quem vive em união de facto vive em economia comum, mas o
contrário não ocorre necessariamente. Na Lei 06/2001, estabelece-se que, no caso de falecer uma das pessoas,
a outra (não herdeira) fica com o direito real de habitação e direito de preferência na compra da casa.

D. Princípios constitucionais de direito da família

1. Direito à celebração do casamento, art. 36.º/1, 2ª parte: não havendo razões objectivas que fundamentem
uma proibição do casamento, todos têm o direito de casar em condições de plena igualdade.

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i. Levado à letra este preceito, levaria a que fossem consideradas inconstitucionais quaisquer normas
que estabelecessem impedimentos ao casamento, o que está fora do propósito deste princípio.
ii. Todavia, o que a legislação ordinária não pode fazer é estabelecer impedimentos que não sejam
justificados por interesses públicos fundamentais.
iii. Discute-se se, quando a lei estabelece o direito de casar, isto não representa uma garantia
institucional de casamento. Ora, se a Constituição fala no direito de casamento, tem pelo menos de
haver uma instituição de casamento; mas a atribuição de características pela Constituição a esse
casamento parece ir longe de mais. Da leitura desta disposição resulta apenas a existência de uma
garantia institucional do casamento, mas já não a garantia de um casamento dotado de certas
características (ex: casamento homossexual). O legislador não pode apenas suprimir a instituição ou
desfigurar o seu núcleo essencial; de resto, tem liberdade de conformação.

2. Direito à constituição da família, art. 36.º/2, 1ª parte: apesar de este princípio ter várias interpretações, a
mais correcta será aquela que reconduz o direito a constituir família ao direito de procriar, em primeiro lugar,
e de estabelecer as correspondentes relações de filiação, em segundo.
i. Rejeita-se a tese de CASTRO M ENDES, segundo a qual o direito de casar e constituir família são um
só – como a realidade mostra, ao lado da família conjugal, há ainda lugar para a família natural,
resultante da procriação, e até a adoptiva.
ii. Igualmente se afasta, como vimos, a tese de GOMES CANOTILHO e V ITAL M OREIRA, que
reconduzem este direito ao de constituir união de facto.

3. Princípio da equiparação do casamento civil ao canónico, art. 36.º/2: não é uma equiparação explícita,
dizendo-se apenas "independentemente da forma de celebração", e é uma novidade da Constituição de 1976.
O Código Civil regula ambos os casamentos, no entanto permanecem zonas do casamento católico ainda
reguladas pelo Código de Direito Canónico, sendo que estas matérias continuam a ser competentes os
tribunais eclesiásticos:

Com efeito, permaneceram certas zonas nas quais continua a ser competente o direito canónico. Nessas
áreas, os tribunais competentes são, por isso, os tribunais eclesiásticos – isto está previsto no art. 1625.º. Se há
um casamento católico que regista uma causa de nulidade à luz do direito canónico, o conhecimento desta
questão é reservado aos tribunais eclesiásticos. Mas não são só questões de nulidade; também a questão do
casamento rato e não consumado (sexualmente, já que a questão da procriação assume um papel
fundamental no casamento católico), uma causa de dissolução do casamento exclusiva do direito canónico.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

A área de competência do direito canónico abrange, por isso:


i. Nulidades do casamento católico;
ii. Dispensa do casamento rato e não consumado;
iii. Ritual do casamento católico.

Como se explica que o art. 36.º/2 estabeleça uma regra de equiparação, e o art. 1625.º fixe áreas de
competência exclusiva? Pode-se explicar por questões históricas – a Constituição de 1976 foi elaborada
simultaneamente à revisão do Código Civil, que manteve deliberadamente o art. 1625.º. Não se pode ignorar
este argumento histórico, logo é necessário interpretar restritivamente o art. 36.º/2, no sentido de que há uma
atribuição tendencialmente exclusiva da lei civil, com a excepção no art. 1625.º. Note-se ainda que, à luz da
Concordata, não se dispõe que os tribunais eclesiásticos têm de ter competência exclusiva nesta matéria (ao
contrário do que sucedia na Concordata de 1940), pelo que o legislador pode alterar o art. 1625.º no sentido
de atribuir igualmente competência aos tribunais civis.

4. Princípio da admissibilidade do divórcio, art. 36.º/2: seja qual for a forma de casamento, é admissível a
dissolução por divórcio. Isto não resulta directamente do texto do art. 36.º/2, mas está implícito.

5. Princípio da igualdade entre os cônjuges, art. 36.º/3: antes da Constituição, falava-se da supremacia do
marido como chefe da família; porém, em consequência do estabelecimento deste princípio, todo o regime
do Código Civil que regulava os deveres entre cônjuges foi profundamente alterado, assim como o que
estabelecia as responsabilidades parentais.

4. Princípio da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, art. 36.º/4: os filhos nascidos
fora do casamento não podem, por esse facto, ser discriminados:
i. A nível material: a lei não pode dar uma protecção mais forte aos filhos nascidos no casamento.
Note-se que isto não impõem, em absoluto, uma igualdade de tratamento. O que não permite é que
sejam objecto de qualquer discriminação que lhes seja desfavorável e não seja justificada pela
diversidade de condições de nascimento (ver, por exemplo, art. 1826.º/1).
ii. A nível formal: a lei e os serviços não podem usar designações discriminatórias.

6. Princípio da atribuição aos pais do direito/dever de educação sobre os filhos, art. 36.º/5: os pais têm um
conjunto de direitos e deveres sobre os filhos (são as responsabilidades parentais).
i. Este direito existe, desde logo, em relação aos filhos: os pais têm o direito de decidir como educar os

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

filhos, embora com respeito pela sua personalidade.


ii. E é um direito que a lei dá aos pais e não ao Estado: no entanto, o Estado coopera com os pais na
educação das crianças.

7. Princípio da inseparabilidade dos filhos dos seus progeniotres: o n.º 6 fixa ainda um princípio segundo o
qual os filhos não podem ser separados dos pais, a não ser por razões objectivas de incumprimento das
responsabilidades parentais).

8. Princípio da protecção da adopção: o art. 36.º/7 remete para a lei a regulação da adopção. No entanto,
parece resultar daqui uma garantia institucional da adopção: a lei quer garantir um instituto chamado
adopção, proibindo o legislador de o suprimir e descaracterizá-la essencialmente

Há outras normas da Constituição que têm implicações a nível familiar, que são normas programáticas, isto é,
que estabelecem que o Estado deve tomar acções no sentido de proteger a família (o que não quer dizer que
os tribunais não a devam ter em conta na aplicação das leis:
i. Art. 67.º: protecção da família (conjugal, natural ou adoptiva);
ii. Art. 68.º: protecção da maternidade e paternidade (esta última só foi reconhecida na Revisão de
82), na realização da sua acção em relação aos filhos, para que a paternidade e maternidade não
impeçam os pais de se realizar profissionalmente e participarem na vida cívica;
iii. Art. 79.º: protecção da infância, com vista ao desenvolvimento integral das crianças.

E. Características fundamentais do direito da família e dos direitos familiares

- Características do direito da família:


1. É um direito onde predomina essencialmente normas imperativas, já que no domínio da família há
valores morais importantes que o Estado quer assegurar.
a. Esta é uma ideia que está particularmente subjacente no plano pessoal; ao contrário dos
efeitos patrimoniais, nos quais há uma margem maior de autonomia.
b. Mas há cada vez menos normas imperativas, mesmo naquele plano pessoal – o direito vem-
se afastando cada vez mais da regulação da família.
2. É um direito marcadamente institucional: aproveita e reproduz o regime espontâneo que surgiu na
família enquanto realidade sociológica, enquanto instituição social (daí o uso generalizado de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

cláusulas gerais e conceitos indeterminados). Mas também é verdade que há circunstâncias


históricas nas quais a lei quer alterar a realidade, como o que sucedeu com a consagração do
princípio da igualdade entre os cônjuges com a Constituição de 76 (na altura este não era um
princípio bem aceite socialmente); ou com o casamento homossexual.
3. É um direito onde coexistem, lado a lado, duas codificações a regular o casamento: o Código Civil e o
Código de Direito Canónico (embora com muito maior expressão no primeiro).
4. É um direito muito permeável às transformações sociais, políticas, ideológicas, religiosas, etc.
Sempre que há grande alterações nestes planos, vemos transformações quase imediatas no direito
da família. Por isso se costuma dizer que o direito da família é marcadamente nacional: mas se isto é
verdade, também o é que cada vez mais se assiste à formação de um direito da família transnacional
comum aos países que partilham a mesma cultura civilizacional. Este direito integra alguns
princípios essenciais que se vão consolidando num espaço para além do nacional, como o da
igualdade entre cônjuges, o do interesse do filho nas questões de filiação, etc. Tanto é assim que
algum destes princípios já integraram algumas convenções internacionais, como a dos Direitos do
Homem.
5. É um direito muito ligado a outras ciências humanas, como a sociologia, psicologia, etc.
6. Nas matérias de Direito da Família, estando em causa matérias e interesses muito específicos,
exigindo conhecimentos psicológicos, sociológicos, etc., existem tribunais especializados em relação
a certas matérias (relações entre cônjuges, divórcio, relações entre pais e filhos): são os tribunais da
família e dos menores.

- Características dos direitos familiares:


1. São direitos indisponíveis: sobretudo os direitos familiares de natureza pessoal, sendo que nos de
natureza patrimonial já há uma margem de autonomia. Os seus titulares não podem dispor deles, o
que significa que:
a. São direitos irrenunciáveis.
b. São direitos intransmissíveis.
2. Ao contrário de outros direitos da relação jurídica com garantia normal (faculdade que um titular
de direito tem de, caso haja violação desse direito, recorrer aos meios coercivos que o Estado
dispõe), os direitos familiares têm uma garantia mais fraca. É a velha doutrina (que ainda se
mantém) da “fragilidade da garantia dos direitos familiares”, sobretudo nos direitos matrimoniais
pessoais. O direito impõe aos cônjuges certos deveres, se esses deveres não forem cumpridos (ex:
traição conjugal) será que se pode intentar uma acção indemnizatória junto do tribunal? Dada a

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

forma como a lei regula as garantias conjugais, que nada diz sobre este assunto, tradicionalmente a
resposta é negativa.
a. Hoje, o nosso Código, no art. 1792.º, fala de uma indemnização por danos patrimoniais. Isto
parece contrário aquela velha doutrina... Mas este artigo tem de ser interpretado
correctamente: (1) está incluído na subsecção relativa aos efeitos do divórcio, logo este
pedido só pode ser deduzido após o divórcio. Isto vai ao encontro da ideia de que, enquanto
o casamento dura, seria contraproducente um pedido de indemnização, agravando os
problemas da relação e intervindo na paz familiar. Por outro lado, (2) segundo normalmente
se entende esta indemnização por danos não patrimoniais parece não poder referir-se aos
deveres especificamente conjugais. Se um marido agride a mulher, está a violar-se um dever
familiar (de respeito), mas há também a violação do direito à integridade física. Este direito
não é especificamente conjugal, pois é pela violação do direito de personalidade que vai
pedir a indemnização. Já se um dos cônjuges trai o outro, será possível pedir uma
indemnização? A corrente doutrinária maioritária diz que não – o dever de fidelidade é
especificamente conjugal, logo não tem grande cabimento o pedido de indemnização. Esta
questão é não obstante controvertida, havendo uma parte da doutrina mais conservadora
que defende a possibilidade do pedido de indemnização nestas situações.
b. E a consequência do divórcio? Este não é propriamente uma sanção, uma garantia.
3. São direitos tendencialmente duradouros, gerando verdadeiros estados da pessoa: os "estados de
família". É o que se passa com as relações entre cônjuges, de filiação, etc. Assim sendo, existe nas
relações jurídicas familiares uma grande necessidade de certeza e segurança, o que explica o registo
civil obrigatório destas relações, bem como a impossibilidade de apor ao casamento e à perfilhação
termo ou condição.
4. Os direitos e negócios familiares são típicos: vale aqui um princípio de taxatividade.
5. São direitos relativos, podendo porém, em certos casos, os respectivos estados gozarem de
protecção absoluta – arts. 495.º/3 e 496.º/2 e 3.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

DIREITO M ATRIMONIAL

A. Conceito e caracteres gerais do casamento

Noção: o casamento é um contrato, celebrado entre duas pessoas, que pretendem constituir família mediante
uma comunhão de vida (art. 1577.º). Apesar de a lei não explicitar em que consiste esta comunhão de vida,
isto infere-se de outras disposições:
1. Trata-se de uma comunhão de vida em que os cônjuges estão reciprocamente vinculados por certos
deveres;
2. Exclusiva;
3. Tendencialmente perpétua.

Note-se que, noutros sistemas e noutras épocas, ao casamento era dado uma segunda finalidade, para além
da instituição de uma comunhão de vida entre os cônjuges: a procriação e educação da prole. Este constava do
ante-projecto do Código Civil e hoje consta mesmo do Código de Direito Canónico, pelo que, em face disto,
pode dizer-se que o Código adoptou uma concepção minimalista do casamento.

Para o Direito Canónico, o casamento é integrado por três elementos essenciais, os “bens do matrimónio”:
1. Procriação e educação dos filhos;
2. Mútua fidelidade;
3. Indissolubilidade.

Caracteres gerais do casamento

1. O casamento é um acto que interessa não apenas ao Estado, mas também à Igreja (ou melhor, as
religiões): antes de ser regulado pelos códigos civis, o casamento era já um sacramento, previsto na lei
canónica. Porém, com a consagração dos princípios da inconfessionalidade do Estado e da liberdade
religiosa, surgiu a necessidade de um direito matrimonial estadual, instituindo-se o casamento civil.

1.1 Sistemas matrimoniais

Assim, podem surgir conflitos, colisões - como se articulam as regulações do casamento provenientes do

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Estado e da Igreja? A propósito desta conciliação, fala-se em vários sistemas matrimoniais, ou seja, vários
sistemas de articulação. Mas quais os interesses que estão aqui em jogo?
1. Em primeiro lugar, ao Estado interessa assegurar a liberdade religiosa, que inclui a liberdade de casar
segundo os rituais católicos.
2. Mas também tem interesse em assegurar a igualdade entre religiões, tratando de forma igual todas
elas.
3. Deve evitar-se, tanto quanto possível, que uma pessoa tenha de realizar dois casamentos. Há muitos
sistemas em que isto se passa assim, quando o Estado não atribui efeitos civis ao casamento: e, ao ter
de realizar dois casamentos, haverá um período em que a união legítima à face da igreja não o será à
face do Estado.
4. Finalmente, o Estado tem interesse em unificar os casamentos, dando os mesmos efeitos e regimes a
todos eles. Este interesse está previsto no art. 36.º/2 da CRP.

Os sistemas matrimoniais: têm surgido, historicamente, vários sistemas (muitos deles já desaparecidos).
1. Sistema de casamento obrigatório perante o Estado: não se admite o casamento civil, tendo este sistema
vigorado na Grécia até 1982. Este é um sistema abstractamente possível que, de facto, existiu no nosso
espaço civilizacional.
2. Sistema de casamento civil obrigatório: o Estado só reconhece efeitos civis aos casamentos civis,
celebrando segundo as suas leis e regulados por elas. O Estado dará inteira liberdade aos nubentes
para casarem segundo as normas da sua confissão religiosa, mas não atribuirá à sua celebração
quaisquer efeitos jurídicos. Este sistema tem a vantagem de tratar igualmente todas as religiões,
todavia obriga as pessoas que professam uma dada religião a realizar dois casamentos. Existe em
muitos países da Europa Central.
3. Sistema de casamento civil facultativo: é o que existe entre nós, evitando o inconveniente da
celebração de dois casamentos. As pessoas podem escolher casar civil ou catolicamente (ou ainda
segundo as regras de outra religião), sendo que a este último casamento o Estado atribui também
efeitos civis. Dentro deste sistema, nas Lições distingue-se entre duas modalidades possíveis:
a. Primeira modalidade: vigora em países como Estados-Unidos, Inglaterra, países do Norte da
Europa, Brasil, etc. Aqui, o casamento católico é equiparado ao efeito civil, ou seja, tem
exactamente os mesmos efeitos, trata-se do mesmo instituto. Não é regulado pela lei católica,
mas antes pelo Estado, divergindo apenas na forma de celebração. Evita o conveniente de se
ter de celebrar dois casamentos, ao mesmo tempo que se garante a existência de um único
direito matrimonial, válido para todos os nacionais.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

b. Segunda modalidade: é a que vigora entre nós. O Estado reconhece eficácia civil ao
casamento católico, todavia admite-o como tal, ou seja, como é regulado pelo direito da
Igreja. Assim, não temos apenas duas forma diversas de celebração do casamento, mas dois
institutos diferentes, já que a lei canónica regula certos aspectos do casamento católico. Nesta
modalidade, o sistema poupa aos nubentes a celebração de um duplo matrimónio, mas à
custa da unidade do direito matrimonial.
4. Sistema do casamento civil subsidiário: existiu em Espanha até 1981. Em princípio, os nubentes devem
realizar casamento religioso, só podendo deixar de o celebrar naqueles casos em que a própria igreja
católica autorizar o casamento civil (ou seja, no caso dos não baptizados). Ou seja, o casamento
católico é o único que o Estado reconhece, sendo o casamento civil apenas admitido
subsidiariamente.

1.2 Evolução do direito português

Principais traços da evolução histórica do sistema matrimonial português:


1. Código de Seabra: não era claro qual o sistema matrimonial previsto – parecia que se adoptava o
sistema do casamento civil subsidiário, mas, como não era investigada a religião dos nubentes e o
casamento civil não podia ser anulado por motivo da sua religião, na prática valia um sistema civil
facultativo. E valia na sua segunda modalidade, uma vez que as leis canónicas eram recebidas no país
e o casamento católico só podia ser declarado nulo no juízo eclesiástico e nos casos previstos nas leis
da Igreja. Havia alguns esforços no sentido de aproximar os dois sistemas, a nível de impedimentos, e
os párocos deveriam enviar a acta paroquial ao registo civil.
2. Primeira República: as coisas modificaram-se radicalmente, tendo sido uma das primeiras medidas
adoptadas a instituição do sistema do casamento civil obrigatório – o casamento seria um contrato
“puramente civil”. Assim, estabeleceu-se que as pessoas só poderiam celebrar o casamento católico
se primeiro celebrassem o civil.
3. Estado Novo: durante a vigência do Estado Novo, em 1940, foi assinada uma Concordata com a Santa
Sé, nos termos da qual voltámos a um sistema de casamento civil facultativo. O Estado passou a
reconhecer o casamento católico e a atribuir-lhe efeitos civis; bem como a atribuir competência de
regulação quase integral ao Código de Direito Canónico, demitindo-se o Código Civil desta tarefa
(com poucas e insignificantes excepções); e consagrou a regra da indissolubilidade do casamento por
divórcio, estabelecido na lei canónica. Mas a Igreja também fez algumas concessões em relação ao
Estado: este pôde aplicar o seu sistema de impedimentos ao casamento católico; regular o processo

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

preliminar e o registo; e decretar a separação de pessoas e bens relativamente aos casamentos


católicos.
4. Código de 1966: manteve o estabelecido na Concordata, praticamente sem alterações.
5. Revolução do 25 de Abril: com a nova Constituição, passou a atribuir-se cada vez menos competência
à lei canónica para regulação do casamento. Mesmo antes da Constituição, foi alterado o regime da
lei canónica quanto à admissibilidade do divórcio, já que a inadmissibilidade do divórcio era um
problema premente: logo após a Revolução, surgiu um movimento de casais que exigiam esta
alteração, tendo sido por isso renegociada a Concordata através da aposição de um Acta Adicional
em 1975. O sistema continuou, todavia, a ser o do casamento civil facultativo, ainda que se tivesse
dado um grande passo no sentido da unificação dos dois casamentos.
6. Actual Código Civil: estabelece uma regra de equiparação, todavia sabemos que há certas áreas que
continuam a ser reguladas pela lei canónica. Continuamos com o sistema de casamento civil
facultativo, naquela segunda modalidade.

É necessário mencionar ainda algumas alterações posteriores à Constituição:


1. Lei da Liberdade Religiosa (Lei 16/2001): até aqui, havia apenas casamentos civis e católicos. Com esta
lei, passou a admitir-se que as pessoas que professam outras religiões possam celebrar o casamento
segundo os ritos dessas religiões, e o Estado reconhece-lhe efeitos civis. Há religiões que se podem
considerar radicadas em Portugal: o Ministério da Justiça, uma vez feito o requerimento pela
religião, tendo em conta a sua presença e o número de crentes considera ou não como radicada em
Portugal. Mas há um requisito obrigatório para que se possa apresentar um requerimento – que a
religião já exista em Portugal com presença social organizada há 30 anos ou, noutro local do mundo,
há 60 anos –, como indicador de seriedade e estabilidade. Há um registo nacional das pessoas
colectivas religiosas. Só depois destes passos todos os sujeitos que professam a religião podem
celebrar o casamento segundo os seus ritos. Mas há uma diferença importante em relação ao
casamento católico, já que os casamentos celebrados segundo outras religiões estes são regulados
integralmente pelo Código Civil, ou seja, vale aquela primeira modalidade do sistema de casamento
facultativo. Têm até nome diferente, "casamento civil celebrado sob forma religiosa".
2. Alteração à Concordata: em 2004, foi revista a Concordata, com duas grandes alterações aqui
relevantes.
a. Até 2004, no texto da Concordata figurava que o Estado português reservava a competência
para apreciar a nulidade do casamento católico e a dispensa de casamento rato ou não
consumado aos tribunais eclesiásticos. Esta obrigação desapareceu, ou seja, o art. 1625.º está lá

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

apenas porque o Estado português quer, pois em termos de direito internacional já não é
obrigado a isso.
b. Antes de 2004, quando houvesse uma sentença proferida por um tribunal eclesiástico, esta
produzia automaticamente efeitos no ordenamento jurídico civil. Já não é assim – os
interessados têm, em primeiro lugar, de apresentar um requerimento (por ex: para nulidade
do casamento); e o tribunal tem de seguir um processo de revisão e confirmação da sentença de
tribunal eclesiástico (à semelhança do processo de revisão e confirmação da sentença
estrangeira. Note-se que o tribunal averigua se a sentença provém de órgão próprio, se foi
respeitado o princípio do contraditório, etc.

1.3 Caracterização do sistema actual

O que podemos dizer sobre o nosso sistema actual?


1. Em relação aos católicos, o sistema é o do casamento civil facultativo na segunda modalidade. Mas
note-se que os católicos sempre puderam optar indiferentemente pelo casamento católico ou civil,
daí o nosso sistema não ser de casamento civil subsidiário.
2. Em relação aos que professam outra religião que se considere “radicada no País”, o sistema é o do
casamento facultativo civil na primeira modalidade.
3. Em relação aqueles que não professam qualquer religião ou professam uma religião não radicada, o
sistema é o do casamento civil obrigatório.

O direito português procurou, todavia, atenuar os inconvenientes do nosso sistema matrimonial, através de
três meios:
1. Exigência de capacidade civil para celebração do casamento católico (art. 1596.º).
2. Por forma a conseguir uma unificação do registo do casamento, o Código de Registo Civil impõe ao
pároco, sob cominação de sanções, a obrigação de enviar à conservatória do registo civil
competente o duplicado do assento paroquial, a fim de ser transcrito no livro de casamentos. A
transcrição é condição de eficácia civil do casamento.
3. Tanto o casamento civil como o católico podem ser dissolvidos por divórcio, com os mesmos
fundamentos e nos mesmos termos.

Do casamento católico, o que é regulado pela lei canónica e pela lei civil?
1. Em relação aos vícios do consentimento, rege por inteiro a lei canónica (art. 1625.º).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

2. Em relação aos requisitos de capacidade, regem ambas as leis simultaneamente (art. 1596.º).
3. Quanto ao próprio casamento, aplica-se apenas a lei canónica quanto ao ritual, mas em relação às
formalidades prévias e posteriores regem a lei civil e canónica simultaneamente.
4. Quanto à dissolução do casamento, continuam a aplicar-se simultaneamente ambas as leis. Isto
porque a dispensa do casamento rato e consumido é uma causa não prevista na lei civil.
5. No que toca aos efeitos do casamento, tanto pessoais como patrimoniais, é o direito civil que se
aplica.

A discussão em torno da constitucionalidade do nosso sistema matrimonial:


1. Certos autores argumentaram que a própria forma do casamento católica seria contrária à
Constituição, que permitiria apenas a forma civil de casamento. Este argumento não faz qualquer
sentido, já que a própria Constituição admite várias formas de celebração de casamento no art.
36.º/2.
2. A verdadeira questão de constitucionalidade está por isso em saber se a possibilidade de regulação do
casamento pela lei canónica é ou não constitucional. São invocados os seguintes fundamentos de
inconstitucionalidade:
a. Art. 36.º/2: o art. 36.º/2 estabelece o aparente princípio de equiparação, mas já vimos que é
necessário interpretar restritivamente este artigo, tendo em conta os dados históricos do
momento em que a Constituição foi feita.
b. Princípio da laicidade do Estado: a admissibilidade do casamento católico iria contra o
Estado laico. Mas não é pelo simples facto de permitir a celebração do casamento pelos ritos
católicos e a regulação do casamento pela lei canónica que o Estado passa a adoptar a
religião católica, logo este argumento também é rejeitado.
c. Princípio da liberdade religiosa: o que este princípio exige é que qualquer pessoa que
professe um credo religioso possa celebrar o casamento segundo os ritos da sua religião, e
que, por outro lado, as pessoas que não professam qualquer credo não sejam obrigadas a
celebrar casamento religioso. Este princípio não exige que o casamento religioso seja
reconhecido pelo Estado como uma mera forma de celebração – logo, permitindo o nosso
sistema aos católicos optar entre o casamento civil e católico, não se vê como ofende o
princípio da liberdade religiosa.
d. Princípio da igualdade em matéria religiosa: é o argumento mais pertinente. Com efeito, não
há igualdade entre as religiões, a religião católica é favorecida – até 2001, apenas se admitia
mesmo o casamento católico; hoje, apesar de se admitir outros casamentos, mantém-se uma

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

certa desigualdade pelo facto de se permitir a regulação da lei canónica. Esta é uma questão
difícil, e o argumento de favorecer a religião católica por ser maioritária é um argumento
vicioso.

Apesar de ser discutível a constitucionalidade do nosso sistema por violação da igualdade em matéria
religiosa, hoje a questão está pacificada entre as várias religiões, sendo o nosso sistema bem aceite.

Caracteres do casamento (continuação)

2) O casamento é um negócio jurídico, no entanto a margem de autonomia, que está pressuposta na ideia de
negócio jurídico, dos nubentes é mínima. Todavia, existe alguma autonomia, ainda que reduzida: na escolha
do parceiro, na forma de celebração, e na decisão sobre o modo de cumprimento de alguns dos deveres
impostos pela lei (art. 1671.º/2 e 1673.º).

2) Sendo um negócio jurídico, é um contrato – art. 1577.º. Há doutrinas anti-contratualistas, que qualificam o
casamento como acordo, como instituição, ou ainda como acto administrativo. Esta última ideia tem sido
desenvolvida de modos diferentes:
1. Uma orientação extrema é aquela que vê na declaração do funcionário do registo civil o elemento
constitutivo do casamento, sendo o consentimento das partes um simples pressuposto dessa
declaração: o casamento seria um puro acto do poder estadual.
2. Há porém orientações mais moderadas – segundo uma delas, o casamento seria um negócio
plurilateral, com três partes: os cônjuges e o conservador do registo civil; outra ainda diz que é um
complexo de actos, integrado por um negócio bilateral (declarações dos nubentes) e por um acto do
poder estadual (declaração do conservador).
3. Todavia, em bom rigor, a presença do conservador do registo civil existe apenas no plano da forma; e
não é necessário a sua presença efectiva na celebração – é o que sucede com os casamentos urgentes.

3) Hoje, é admitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Numa fase intermédia, começou a permitir-se
a união de facto entre pessoas do mesmo sexo; de seguida, admitiu-se um contrato com efeitos equivalentes
ao casamento, mas com um nome diferente por questões de pudor (por exemplo, "união civil registada");
finalmente, admitiu-se o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Também em relação ao casamento homossexual se levantaram problemas de inconstitucionalidade.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

1. Antes da admissão deste casamento, discutiu-se o contrário – a questão da inconstitucionalidade da


proibição do casamento homossexual por violação do princípio de discriminação. O Tribunal
Constitucional foi chamado a pronunciar-se num caso sobre o regime anterior, tendo-se decidido
pela não inconstitucionalidade. Não haveria violação do princípio da igualdade pois tanto os
heterossexuais como os homossexuais poderiam casar, todavia apenas o poderiam fazer
heterossexualmente. Este é um argumento puramente formal, pois será antes no recorte do
casamento que estará a questão da inconstitucionalidade.
2. Noutro caso, discutiu-se se seria o casamento discriminatório ou haveria razões objectivas a fundar a
discriminação. O Tribunal Constitucional decidiu que sim, que havia: a lei ordinária terá autonomia
para regular o casamento como quiser, com o mínimo de razoabilidade. Assim, a ideia do
casamento heterossexual teria algum fundamento objectivo.
3. Hoje, discute-se a constitucionalidade do regime do casamento homossexual. Mais uma vez, o
Tribunal Constitucional manifestou-se no sentido de que a Constituição não se pronuncia sobre este
assunto, ou seja, o legislador ordinário pode regular o casamento como quiser desde que o faça com
base em razões objectivas. Certo, a Constituição de 1976 supunha um certo modelo de casamento –
o heterossexual –, mas não o impõe, ou seja, apenas pode exigir que haja um instituo chamado
casamento.

Nas Lições, defende-se uma tese diferente: entende-se que a Constituição impõe um certo modelo de
casamento, com certas características:
1. A contratualidade;
2. A monogamia;
3. A exogamia (uma pessoa só pode casar com alguém que não seja da sua família próxima);
4. Mas para além destas três características indiscutíveis, diz-se nas Lições que a Constituição impõe
outras duas características: a heterossexualidade a perpetualidade tendencial. Este não é nem o
entendimento do Tribunal Constitucional, nem o entendimento do Professor.

4) O casamento é um negócio pessoal, em dois sentidos:


1. Tem efeitos pessoais;
2. Em princípio, deve ser feito através da própria pessoa (entre nós, em certas situações admite-se o
casamento por procuração – esta é uma situação rara, praticamente só existente no nosso
ordenamento jurídico).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

5) É um negócio solene, o mais formal de todos: a forma exigida para o casamento consiste na cerimónia da
celebração do acto. Quanto ao casamento civil, este tem de ser celebrado perante o funcionário do registo
civil (art. 155.º CRegCiv). As formalidades que a lei teve em vista são as finalidades genéricas do formalismo
negocial; além disso, pode dizer-se que a lei pretendeu acentuar aos olhos dos nubentes o alcance e a
significação do acto matrimonial.

6) É um negócio em que há exclusividade ou unidade – uma pessoa apenas pode estar casada com outra.

7) Finalmente, uma outra característica é a vocação de perpetuidade. O casamento é um estado


tendencialmente duradouro, porém sabemos como esta realidade se está a alterar, sendo que a lei introduz
cada vez mais possibilidades de divórcio. No entanto, ainda podemos dizer que o casamento é
tendencialmente perpétuo em dois sentidos:
1. Enquanto não houver nem acordo dos cônjuges no sentido do divórcio, nem um pedido
fundamentado numa razão objectiva por parte de um deles (não existe entre nós o divórcio por
pedido), o casamento dura.
2. Uma outra manifestação desta ideia é a impossibilidade de aposição de prazo – nos negócios
patrimoniais pode-se apor uma condição ou termo, mas não no casamento (apesar de já ter havido
propostas neste sentido!).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

B. Promessa de casamento

Apesar de o Código prever um contrato de promessa de casamento, este na prática não é utilizado. Está
previsto nos arts. 1581.º e ss. do Código Civil e é um verdadeiro negócio jurídico, e a responsabilidade em
que incorre o nubente é uma responsabilidade contratual.

Que efeitos é que este contrato tem?


1. Do contrato-promessa de casamento resultam duas obrigações de casar; porém, não dá direito a
exigir judicialmente a celebração do casamento. Esta solução já resultaria de qualquer forma das regras
gerais do contrato promessa – os promitentes têm normalmente o direito de exigir o cumprimento
do contrato, a não ser que se oponha a natureza da obrigação assumida. É o que acontece aqui, dada
a natureza pessoal do casamento.
2. A especificidade do regime deste contrato face ao regime geral do contrato-promessa está no facto
de, havendo incumprimento do contrato, o promitente vítima de incumprimento só pode exigir certas
indemnizações, circunscritas a certas obrigações e despesas, e não uma indemnização correspondente
à totalidade dos danos.
a. O limite é estabelecido no art. 1594.º: se um dos promitentes incumprir o contrato sem
motivo justificado (ou seja, de acordo com padrões do "noivo médio"), o outro promitente
só pode exigir indemnização quer das despesas feitas, quer das obrigações contraídas na
previsão do casamento. Daí ser uma indemnização limitada. Pode pedir a indemnização
quem tenha feito as despesas, seja o noivo, os pais ou terceiros.
b. A indemnização é fixada segundo o prudente arbítrio do tribunal, isto é, a indemnização
pode ser inferior aquele limite. Deve atender-se, no cálculo, apenas às despesas e obrigações
que sejam razoáveis, e às vantagens que as despesas ainda possam proporcionar (ex: a
compra de um carro não é um dano).
c. Não haverá lugar, logicamente, a uma indemnização por responsabilidade extracontratual.
3. Rompendo-se o noivado, haja ou não justo motivo, em regra a lei determina que cada um dos
esposados é obrigado a restituir os donativos que o outro ou terceiro tenha recebido em virtude na
expectativa do casamento, art. 1592.º. Para o caso de morte de um dos noivos, a lei estabelece um
regime especial no art. 1593.º: o sobrevivo pode pedir os donativos de volta aos herdeiros ou reter os
donativos do falecido (duas alternativas); e ainda reter nas suas mãos todas as cartas e retratos
pessoais. Apesar de a lei utilizar a expressão “ineficácia”, a obrigação de restituição justifica-se pela
anulabilidade ou nulidade do negócio jurídico, nos termos do art. 289.º.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

4. A lei fixa o prazo de caducidade de um ano (art. 1595.º).


C. Requisitos de fundo do casamento civil

1. Requisitos relativos ao consentimento

O consentimento do casamento tem de ser:


1. Pessoal;
2. Puro e simples;
3. Perfeito;
4. Livre.

Em matéria de casamento, não vigora a regra do regime geral dos negócios segundo o qual, quando o
negócio violar uma regra imperativa, a solução é a sua nulidade se a lei nada disser. No casamento, só há as
invalidades que estão taxativamente previstas na lei – art. 1627.º.

1) Pessoal: em regra, a declaração de casar deve ser prestada pessoalmente, pelo próprio nubente, no acto da
celebração. Esta é uma das principais manifestações do casamento enquanto negócio pessoal (art. 1619.º). A
nossa lei prevê, porém, a possibilidade (rara) de o casamento ser realizado por procuração, arts. 1620.º e
1621.º do CC e arts. 43.º e 44.º CódRegCivil. A existência deste regime explica-se pelo facto de Portugal ser um
país com uma elevada emigração.

Esta procuração é todavia uma procuração muito especial:


1. Requisitos materiais: a lei só admite no art. 1620.º que um dos nubentes se faça representar (n.º 1), e
não os dois; e esta procuração é uma procuração para casar (isto é, é específica e não genérica),
devendo constar a indicação expressa do outro nubente e da modalidade.
2. Requisitos formais: a procuração deve ser outorgada por documento escrito assinado pelo
representado, com reconhecimento presencial da assinatura, por documento autenticado ou por
instrumento público.
3. Art. 1626.º/d): o casamento por procuração é inexistente nas situações previstas.
4. Cessam todos os efeitos da procuração com a sua revogação. A revogação da procuração é não
receptícia, ou seja, produz efeitos logo que é emitida, art. 1621.º/2.

Discute-se na doutrina se esta procuração, por ser tão especial, é verdadeiramente uma procuração.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Normalmente os representantes, apesar de representarem uma pessoa, têm alguma autonomia, distinguindo-
se assim do núncio: neste caso, parece que o procurador é meramente um núncio, que se limita a proferir a
declaração (não se admite, por exemplo, a procuração para casar com pessoa indeterminada). PEREIRA
COELHO entende que, apesar de a autonomia da procuração ser muito limitada, apesar de tudo guarda
alguma liberdade – se o procurador descobrir no noivo uma característica que julga que o outro nubente
desconhece, o procurador deverá ter autonomia para se recusar a casar (salvo se o contrário resultar do
acordo entre eles). Assim, a qualificação mais correcta do procurador será antes a de representante, ainda
com escassíssimos poderes.

2) Puro e simples: não se podem apor à declaração de casamento condição nem termo, ou seja, o casamento é
um negócio incondicionável e inaprazável. Se forem apostas cláusulas condicionais ou de termo (ou ainda se
se subordinar os efeitos do casamento à preexistência de algum facto), o art. 1618.º/2 diz que se consideram
não escritas essas cláusulas, ou seja, o casamento continua a valer sem essas cláusulas.

Esta é uma solução discutível: por exemplo, se se apuser uma condição de o noivo receber uma herança, este
é um casamento não querido, logo a solução da lei valida um casamento não querido. Isto vai contra as regras
gerais da condição, segundo a qual a condição nula invalida o negócio (art. 271.º). Há razões, como a
dignidade e a estabilidade do matrimónio, que são invocadas a favor deste regime, no entanto PEREIRA
COLEHO entende que estas não são suficientes.

3) Perfeito: o consentimento deve ser perfeito, não apenas no sentido de que devem ser concordantes as duas
declarações de vontade, mas também, e sobretudo, no sentido de que não devem ocorrer divergências entre a
vontade e a declaração – algo que a lei presume no art. 1634.º. Havendo uma divergência entre a vontade e a
declaração, no regime geral, temos dois interesses conflituantes: o interesse do declarante que emitiu a
declaração divergente na invalidação do negócio; e o interesse do declaratário que confiou, na manutenção
da validade do negócio. No casamento, não se passa bem assim: see um dos nubentes se engana, terá
interesse em invalidar o casamento; mas não há o interesse do declaratário na manutenção. No entanto, há
um interesse no mesmo sentido deste, o interesse social na estabilidade do casamento.

Quais são as divergências entre a vontade e a declaração que a lei prevê no casamento? Estas vêm
taxativamente previstas no art. 1635.º, dando origem à anulabilidade do casamento:
1. Incapacidade acidental: falta de vontade de acção e de consciência da declaração (isto constitui um
desvio à regra do art. 246.º, nos termos do qual a declaração não produz qualquer efeito).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

2. Erro de declaração: o nubente está em erro relativamente à identidade física do nubente (é o único
erro na declaração sancionado).
3. Coacção física.
4. Simulação.

A anulação da simulação pode ser requerida pelos próprios cônjuges e por quaisquer pessoas prejudicadas
pelo casamento (art. 1640.º/1); nos restantes casos, só pode ser requerida pelo cônjuge cuja vontade faltou
(art. 1640.º/2). O art. 1644.º estabelece o prazo de 3 anos subsequentes à celebração do casamento.

4) Livre: por úlitmo, o consentimento tem de ser livre, o que a lei presume igualmente no art. 1634.º. Para que
tal aconteça, não pode ocorrer nenhum vício da vontade. Quais são os vícios da vontade sancionados no
casamento?
1. Art. 1636.º: prevê o erro-vício. O único erro-vício que conta é o erro sobre o declaratário, e sobre
certas características deste: as qualidades essenciais do cônjuge, de acordo com a sensibilidade do
nubente médio. O erro tem ainda de ser:
a. Próprio, ou seja, não pode recair sobre qualquer requisito legal da existência ou validade do
casamento;
b. Desculpável – este é um requisito que não se exige no regime geral.
c. Essencial, ou seja, ncidente sobre uma circunstância que tenha sido determinante e decisiva
na formação da vontade, de tal maneira que se mostre que sem ele o casamento não teria sido
celebrado. Esta essencialidade é, ao contrário do que sucede no regime geral, não apenas
subjectiva, mas também objectiva (“razoavelmente”).
2. Art. 1638.º/1: prevê a coacção moral. A lei estabelece dois requisitos para a sua relevância (que
equivalem aos requisitos que a lei impõe, em geral, para a coacção de terceiro, art. 256.º):
a. O mal de que for ameaçado seja grave;
b. Seja justificado o receio da consumação da ameaça.

O art. 1638.º/2 prevê ainda o estado de necessidade. E o dolo? É um erro induzido, logo se não está
especificamente previsto significa que não tem relevância especial, sendo tratado como um erro: vale nos
termos do art. 1636.º. No regime geral, distingue-se erro e dolo porque neste último não há qualquer
interesse do declaratário a proteger; ora, como vimos, no casamento não se justifica proteger qualquer
confiança do declaratário.

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Regime da anulabilidade:
1. O casamento é anulável, nos termos do art. 1631.º/b).
2. A acção de anulação só pode ser intentada pelo cônjuge enganado ou coacto, dentro dos seis meses
subsequentes à cessação do vício (art. 1645.º), mas pode ser prosseguida nos termos do art. 1641.º.

2. Requisitos relativos à capacidade

Antes de entrarmos nos impedimentos matrimoniais, há ideias gerais a reter:


1. Por um lado, por ser um negócio especial, há certas incapacidades para casar que não estão previstas
nas incapacidades gerais, como os impedimentos relativos. Mas, por outro lado, há também uma
solicitação no sentido contrário, ou seja, a lei quer favorecer o casamento: assim, pode haver
incapacidades gerais que não se justificam no casamento. Por exemplo, os interditos por surdez-
mudez ou cegueira têm plena capacidade para casar, precisamente porque os interesses resultantes
do casamento não colidem com os défices resultantes da surdez-mudez e cegueira.
2. A consequência da realização de um casamento sem capacidade é a anulabilidade do casamento. No
regime civil do casamento, a sanção-regra é a anulabildiade (havendo também casos de
inexistência), logo é esta a consequência da celebração do casamento sem capacidade. Mas em
certos casos as consequências da anulabilidade são tão graves que se aproximam da nulidade,
designadamente quanto às pessoas que a podem arguir.
3. A lei tem um tão elevado interesse em saber se os nubentes têm capacidade que antes de o casamento
se celebrar organiza um processo destinado a averiguar a capacidade: é o processo preliminar do
casamento.
4. A apreciação dos impedimentos reporta-se ao momento da celebração do casamento, não sendo
invocáveis circunstâncias supervenientes.

As incapacidades para casar são tradicionalmente designadas por impedimentos matrimoniais – os


impedimentos não são propriamente incapacidades, reportando-se antes às causas das incapacidades.
Dentro dos impedimentos matrimoniais, há várias distinções que se costumam fazer:
1. Impedimentos dirimentes e impedimentos impedientes:
a. Os impedimentos dirimentes são aqueles impedimentos que, uma vez verificados, levam à
invalidade do casamento. Ex: o casamento de um indivíduo com idade inferior a 16 anos.
b. Os impedimentos impedientes não levam à invalidade do casamento. Ex: o casamento de um
indivíduo com idade de 16 ou 17 anos, sem autorização dos pais ou do tutor. Em termos

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

práticos, isto significa que há um impedimento, o que significa que o conservador do registo
civil deve recusar-se a celebrar o casamento; no entanto, se o conservador celebrar o
casamento (ex: o menor forja a autorização), o casamento mantém-se.
2. Impedimentos absolutos e impedimentos relativos:
a. Os impedimentos absolutos referem-se à ausência de qualidades em si mesmas do nubente,
isto é, o nubente sofre de uma qualquer incapacidade para casar. Ex: a menoridade.
b. Os impedimentos relativos referem-se à relação entre os dois nubentes, e é nessa relação que
está a incapacidade. Ex: os nubentes são irmãos.
3. Impedimentos dispensáveis e não dispensáveis:
a. Há impedimentos que podem ser dispensados a requerimento dos sujeitos pelo
conservador, havendo razões ponderosas que justifiquem o casamento. Aplica-se apenas ao
art. 1609.º/1.

Quais são os impedimentos propriamente ditos?

2.1 Impedimentos dirimentes - art. 1601.º e 1602.º

1) Falta de idade nupcial, art. 1601.º/a): o casamento é anulável se algum dos nubentes não tenha atingido
ainda a idade nupcial, ou seja, aquela idade mínima que indicia suficiente maturidade física e psíquica e que
a lei exige para que se possa celebrar casamento válido.
1. Este é um impedimento absoluto.
2. 16 anos é, entre nós, a idade nupcial.
3. Note-se que a idade é igual para homens e mulheres, o que antes não sucedia pois a mulher deveria
casar mais cedo – por amadurecerem fisicamente mais cedo e por a sua função se limitar a ter filhos.
A diferenciação da idade núbil devia-se assim a uma discriminação de base em relação à mulher,
cuja idade nupcial era de 14 anos, tendo sido eliminada com a Reforma de 1977.
4. Quanto ao regime:
a. A legitimidade está prevista nos arts. 1639.º e 1643.º.
b. O prazo está previsto no art. 1643.º/a).
c. A anulabilidade considera-se sanada, convalidando-se o casamento desde a data de
celebração, se antes de transitar em julgado a sentença o menor confirmar o casamento (art.
1633.º/1/a)).

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2) Demência notória e interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, art. 1601.º/b):


1. Dado o casamento ser um negócio pessoal, envolvendo interesses pessoais, só os interditos por
anomalia psíquica, que não estão em condições de o celebrar, é que são incapazes de casar, não os
outros.
2. A "demência notória" tem aqui um significado diferente da que é usada na incapacidade acidental –
para efeitos do art. 257.º, a demência é notória quando o homem médio está em condições de a
conhecer. Como sabemos, a perspectiva e a confiança do declaratário não interessa para o
casamento, pelo que a demência notória aqui significa apenas uma demência grave do ponto de vista
clínico.
3. Pela mesma ordem de razões, mesmo que o indivíduo que sofra de demência notória tenha casado
num intervalo lúcido, tal não é relevante. Também sabemos que apenas releva a demência anterior
ao casamento.
4. A demência é aqui um estado permanente ou habitual, não se abrangendo aqui os casos de demência
acidental – nestes casos, o casamento é anulável por falta de vontade.
5. Nas Lições, diz-se que outra razão que estaria por trás deste impedimento, para além da
incapacidade natural de assumir os efeitos do casamento, seria a de evitar que se constituíssem
"famílias menos sãs". Esta é uma ideia algo ultrapassada, de depuração da raça.
6. Regime:
a. Legitimidade: art. 1639.º/1 e 2.
b. Prazos: art. 1643.º/a).
c. Convalidação: art. 1633.º/1/b).

3) Vínculo matrimonial anterior não dissolvido, católico ou civil, art. 1601.º/c):


1. Este impedimento explica-se por o casamento ter precisamente a característica de exclusividade,
evitando a bigamia.
2. Os casamentos católicos, para terem eficácia civil, têm de ser transcritos no registo civil. Assim,
"ainda que o respectivo assento não tenha sido lavrado no registo do estado civil", o casamento anterior
constitui impedimento.
3. Pode acontecer que uma pessoa seja casada, e o casamento não tenha sido registado, e possa casar
novamente: quando os cônjuges pretendam casar novamente um com o outro. Esta questão pode
revestir interesse, tratando-se designadamente de casamento celebrado no estrangeiro e em que seja
difícil e demorado obter os documentos necessários à transcrição – nestes casos, o novo casamento
pode ser um expediente prático, estando excluída a bigamia que este impedimento pretende evitar.

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4. Se o casamento anterior estiver dissolvido, não há razões que impeçam o casamento. Mas há aqui
uma hipótese especial, de uma pessoa ser casada mas entretanto o seu cônjuge desaparece: a morte
presumida dissolve o casamento para este efeito? A regra do art. 115.º é a de que a morte presumida
não dissolve o casamento (civil ou católico) porém o art. 116.º estabelece um regime mais temperado
– o cônjuge do ausente pode contrair novo casamento, considerando-se o casamento anterior...
a. Dissolvido por morte, se o cônjuge desaparecido não regressar - a lei não o diz
expressamente.
b. Dissolvido por divórcio, no caso de o cônjuge desaparecido regressar.

4) Parentesco e afinidade, art. 1602.º, al. a), b) e c):


1. Parentesco em linha recta;
2. Parentesco em 2º grau na linha colateral (irmãos);
3. Afinidade na linha recta;

Notas:
1. São estes os únicos vínculos familiares que constituem impedimentos dirimentes; todavia, deve
entender-se que o impedimento de parentesco também compreende, no caso de adopção plena, as
relações: entre o adoptante e adoptado e as relações entre os descendentes do adoptado e o
adoptante ou entre os ascendentes do adoptante e o adoptado; e ainda as relações entre o adoptado e
outros filhos do adoptante (art. 1986.º).
2. Estão em causa os valores da proibição do incesto, e ainda razões de moral familiar, para além do
respeito pelas convenções sociais.
3. Os impedimento de parentesco e afinidade valem mesmo que a maternidade ou paternidade não se
encontrem estabelecidas, art. 1603.º, admitindo a lei que a respectiva prova se faça no processo de
impedimento ou na acção de declaração de nulidade ou anulação do casamento. Todavia, esta prova
só vale para efeitos de impedimento e não para efeitos de estabelecimento de filiação.

5) Condenação anterior de um dos nubentes pelo homicídio do anterior cônjuge da pessoa com quem quer
casar, alínea d), ainda que não tenha sido praticado com o dolo específico de libertar o cônjuge para casar.

2.1 Impedimentos impedientes: arts. 1604.º e segs.

Os impedimentos impedientes são circunstâncias que apenas impedem o casamento, mas não o tornam

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

anulável se ele chegar a celebrar-se. São simples proibições legais de contrair casamento, sob pena de sanções
distintas da anulabilidade e menos severas.

1) Falta de autorização dos pais ou do tutor para o casamento do menor, art. 1604.º/a):
1. O menor a partir dos 16 anos passa ter capacidade de gozo para casar, atingiu idade núbia, mas sendo
ainda menor, necessita de autorização dos pais ou de tutor. Esta autorização pode ser dada antes da
realização do casamento, ou no próprio acto de celebração.
2. A lei, no próprio artigo 1604.º al. a), fala também na possibilidade de a falta de autorização ser suprida
pelo conservador do registo civil. O Código de Registo Civil (art. 255.º e segs.) acrescenta em que
condições é que o conservador do registo civil pode suprir as autorizações que os pais não quiseram
dar:
a. Quando o menor, apesar de o ser, já revele maturidade física e psíquica;
b. Por outro lado, têm de existir razões ponderosas que justifiquem o casamento – PEREIRA
COELHO não compreende bem esta condição, sendo que apesar de a lei a mencionar, à luz
das ideias que dominam o direito nos dias de hoje, não consegue descortinar onde se quer
chegar (antigamente talvez uma gravidez motivaria o casamento, preocupações que nos dias
de hoje não existem).
3. Sendo conhecido este impedimento impediente, e não suprida a autorização pelo conservador do
registo civil, isso impede a celebração do casamento. Mas se o casamento apesar disso se celebrar,
mantém-se válido, porém a lei determina que se apliquem certas sanções – artigo 1649.º CC. O
menor não fica plenamente emancipado, continuando a ser considerado menor quanto:
a. À administração dos bens que levou para o casamento e os bens que posteriormente lhe
advenham por título gratuito até à maioridade (herança, doação), que cabe aos pais, tutor ou
administrador legal.
b. Porém, dos rendimentos desses bens serão arbitrados ao menos os alimentos necessário ao
seu estado.

2) Prazo internupcial, art. 1605.º: se houve um casamento, e este casamento anterior foi dissolvido, a lei exige
um prazo até a pessoa poder casar de novo. Nos termos do n.º1, este prazo é de 180 ou 300 dias conforme se
trate de homem ou mulher.
1. Porque é que a lei impõe o prazo internegocial? Duas ordens de razões:
a. No caso de morte há sempre um tempo de luto, e o nosso Código, movimentando-se ainda
dentro de certas linhas ideológicas, exige este tempus lugendi. Este tempo de luto apenas

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

existe no caso de dissolução por morte; no caso de divórcio, embora não haja luto, há razões
de decoro social que fazem impor o prazo.
b. A segunda razão é específica da mulher e justifica a diferença de tratamento acima
mencionada: para evitar problemas de apuramento da paternidade (turbatio sanguinis), e as
dificuldade que daí advêm, a lei impõe um prazo maior para a mulher. Porquê o prazo de
300 dias? Por força da presunção do art. 1826.º, se fosse possível um segundo casamento
imediatamente a seguir ao primeiro e nascesse um filho nos 300 dias subsequentes à
dissolução, este filho seria havido como filho do primeiro marido por ter sido concebido
durante o primeiro casamento (por força do período legal de concepção, art. 1798.º); e do
segundo marido por ter nascido na constância do segundo casamento. É certo que o art. 1834.º
resolve os conflitos de presunções de paternidade, mas há interesse em evitar que o conflito
surja.
2. A regra geral do prazo comporta três excepções:
a. Art. 1605.º/2, 1ª parte: se a única razão que justifica a existência de um prazo superior para a
mulher é evitar uma dupla presunção de paternidade, essa razão deixa de estar presente se a
mulher provar que não está grávida ou que tiver tido algum filho entretanto. Apesar de o
artigo mencionar «declaração judicial de que não está grávida», isto já não é assim, apesar de
– o DL n.º276/2001 alterou isto, sendo que a competência para atestar que a mulher não está
grávida para a ser das conservatórias do registo civil, mediante atestado médico apresentado
pela interessada, ou então munida da prova de que teve uma criança no período intermédio.
Assim, o prazo a aplicar à mulher é de 180 dias.
b. 2ª parte: se os cônjuges estavam separados judicialmente de pessoas e bens e o casamento se
dissolveu por morte do marido, pode a mulher celebrar segundo casamento decorridos 10
dias, se da mesma maneira fizer prova ou tiver tido algum filho.
c. Art. 1605.º/4 e 5: nos casos em que a coabitação já cessara entre os cônjuges quando o
casamento se dissolveu, não se exige qualquer prazo, uma vez que não se coloca nem a razão
de decoro social, nem a de turbatio sanguinis.
3. A partir de que data se conta o prazo internupcial? Art. 1605.º/3: depende do modo de extinção da
relação matrimonial anterior:
a. Morte: o prazo conta-se a partir da data do óbito.
b. Divórcio: se a sentença tiver fixado a data em que cessou a coabitação dos cônjuges, conta-se
a partir desta data; senão, conta-se a partir da data do trânsito em julgado da sentença.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

4. Qual a sanção estabelecida para a celebração de casamento quando se verifique este impedimento? O
cônjuge perde todos os bens que haja recebido em testamento do seu primeiro cônjuge, art. 1650.º
n.º1.

3) Parentesco entre tio e sobrinhos, art. 1604.º/c): este requisito pode ser dispensado a requerimento dos
interessados. Não sendo dispensado, é um impedimento impediente, ou seja, impede a realização do
casamento, mas a realizar-se, mantém-se válido. Também aqui há sanções: segundo o art. 1650.º, o tio/tia
ficam incapazes para receber do seu consorte quaisquer benefícios por doação ou testamento.

4) Adopção restrita, art. 1604.º/e) e 1607.º: na adopção restrita o adoptado não é totalmente integrado na
família adoptante (o adoptado não é considerado filho como na adopção plena). É susceptível e dispensa;
não sendo dispensado, o casamento mantém-se. A sanção aplicável é igualmente a do art. 1650.º/2.

5) Vínculo de tutela, curatela ou administração legal de bens, art. 1604.º/d) e 1608.º: este vínculo é
impedimento enquanto não tiver decorrido um ano sobre o termo da incapacidade e não estiverem
aprovadas as respectivas contas. A lei quis assim evitar que o tutor, curador ou administrador se exima da
obrigação de prestar contas; e ainda que o consentimento do incapaz não seja totalmente livre, por aquele ter
ainda uma grande influência sobre este (daí o prazo de 1 ano). Se não for dispensado, e se realizar na mesma,
temos as mesmas sanções acima previstas, art. 1650.º n.º2.

6) Pronúncia por homicídio: enquanto não houver condenação da pessoa que matou o cônjuge da pessoa que
agora se quer casar com o homicida (impedimento dirimente a este casamento), a lei estabelece um
impedimento impediente.

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D. Requisitos de forma

O casamento é um negócio formalíssimo, uma vez que a lei exige que os nubentes realizem um verdadeiro
ritual de casamento. As razões em geral da forma não explicam a particular natureza que reveste a forma
exigida para o acto matrimonial (cerimónia e não documento escrito), pelo que existem razões específicas
que para tal concorrem:
1. A cerimónia civil terá querido imitar a cerimónia religiosa, até porque o casamento civil é posterior
ao católico;
2. O casamento envolve seriedade dos vínculos que os nubentes estabelecem um com o outro,
querendo a lei vincar no seu ânimo, através da forma, essa seriedade e importância do acto do
casamento.

1. A forma comum

1) Processo preliminar do casamento: antes de o casamento se realizar, há formalidades a observar, que


formam o processo preliminar, para o qual tem competência qualquer conservatória do registo civil (art.
134.º CodRegCiv). Este processo não é tão complexo como já foi: antes era, inclusivamente, denominado
processo preliminar de publicações, na medida em que era uma coisa pública, sendo afixados editais. Esta
preocupação de publicidade extrema já não existe, garantindo-se a publicidade mediante a possibilidade de
qualquer pessoa interessada poder dirigir-se à conservatória e pedir uma cópia da declaração para
casamento.

Tramitação:
1. A primeira peça do processo é a declaração, revista no art. 135.º.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

2. Nos termos do art. 143.º, compete ao conservador verificar a identidade e capacidade patrimonial
dos nubentes.
3. Feitas todas as diligências, deve o conservador, no prazo de um dia a contar da última diligência
efectuada, proferir despacho a autorizar os nubentes a celebrar casamento ou a mandar arquivr o
processo, art. 144.º/1.

Podem verificar-se certos “incidentes” do processo:


1. Se os cônjuges manifestarem a intenção de celebrar casamento católico ou casamento civil sob forma
religiosa, na declaração inicial ou posteriormente, deve o conservador emitir um certificado
autorizando o casamento após o despacho, remetendo-o ao pároco competente (art. 146.º/1 e 2).
2. Pode tornar-se necessário obter dispensa dos impedimentos impedientes, estando o processo de
dispensa regulado nos arts. 252.º a 254.º.
3. O mais importante incidente é, porém, a denúncia de impedimentos: a existência de impedimento
pode ser declarada por qualquer pessoa até ao momento da celebração, sendo esta obrigatória para o
Ministério Público ou para os funcionários do registo civil (este processo foi essencialmente previsto
para as pessoas que já separadas mas, não podendo divorciar-se, continuavam ainda casadas e
queriam casar novamente). Este processo está regulado nos arts. 245.º a 252.º.

2) Celebração do próprio casamento: se o despacho final for favorável, o casamento deverá celebrar-se nos seis
meses seguintes, art. 1614.º CC e 145.º/1 CRCiv. A cerimónia de celebração está regulada no art. 155.º.

3) Formalidades posteriores ao casamento: trata-se de formalidades que se prendem com o registo do


casamento.

Ideias gerais sobre o registo civil:


1. Quando a lei sujeita a registo civil certos factos, a única prova admitida desses factos é a certidão
extraída dos registo (art. 2.º).
2. O registo constitui prova plena dos factos sujeitos a registo (art. 371.º), isto é, uma vez registado um
facto e uma vez plenamente provado através do registo, essa prova só pode ser afastada se se provar o
contrário mediante acção judicial própria. Constitui, portanto, uma prova fortíssima.
3. As modalidades do registo são as mencionadas nos arts. 50.º e 51.º: o registo civil dos factos é lavrado
por meio de assento ou averbamento, podendo os assentos ser lavrados por inscrição ou transcrição.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

4. Depois de lavrados os assentos, nenhuma alteração pode ser introduzida ao texto (art. 61.º/1), o que
não exclui a possibilidade de rectificação (arts. 92.º e segs.).

Estes princípios gerais aplicam-se ao casamento, como facto sujeito a registo – art. 1.º/1/d). Notas quanto ao
registo do casamento:
1. O registo é a única prova legalmente admitida do casamento, o qual, enquanto não for registado, não
pode ser invocado.
2. Há duas formas de registo do casamento:
a. Registo por inscrição: os dados do casamento são inscritos pelo conservador directamente
nos seus livros de registo (é a forma normal).
b. Registo por transcrição: este tem lugar quando já existe um outro registo, que é o que
acontece no casamento católico, em que o padre na sua paróquia faz o registo, e depois envia
uma cópia desse assento paroquial e o conservador transcreve.

3. O assento é lavrado imediatamente a seguir à celebração do casamento (art. 180.º).


4. Quais os efeitos do registo? O registo não é constitutivo, ou seja, não é requisito da validade do
casamento, constituindo antes uma formalidade probatória. Mas o casamento já existia, já era eficaz,
produzia efeitos. O Código Civil regula este aspecto no art. 1670.º.
a. O artigo 1670.º fixa um princípio de retroactividade do registo: efectuado o registo, os efeitos
civis do casamento retroagem à data da celebração de casamento, tudo se passando como se
o registo tivesse sido efectuado logo após o casamento.
b. Todavia, o artigo faz uma ressalva: ficam ressalvados os direitos de terceiro que sejam
compatíveis com os direitos e deveres de natureza pessoal dos cônjuges e dos filhos – ex.: com a
morte no período intermédio de um dos cônjuges, não podendo ser provado o casamento,
os herdeiros seriam não havendo pais, os irmãos do cônjuge falecido. Estão aqui em causa
apenas direitos patrimoniais, visando tutelar as expectativas de terceiros que tivessem
contratado com os cônjuges sobre a base, em que confiaram, de o casamento não existir.
c. Mas mesmo quanto a estes direitos de terceiros a lei diz que, se se tratar do tal registo por
transcrição, há eficácia retroactiva plena, caso a transcrição se faça nos sete dias subsequentes à
data de celebração do casamento.

2. Formas especiais

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1) Casamento urgente: está previsto nos arts. 1622.º, 1623.º e 1624.º CC. Em que condições se pode usar esta
forma?
1. Na iminência de morte de um dos nubentes, em que não há tempo para todas as formalidades acima
mencionadas;
2. Iminência de parto: além de convenções sociais um pouco ultrapassadas, há aqui uma razão jurídica
prática objectiva, relacionada com a presunção de paternidade do marido da mãe.

Como se faz este casamento?


1. As formalidades preliminares reconduzem-se a uma proclamação oral ou escrita, feita à porta de
casa onde se encontram os nubentes, pelo funcionário do registo ou outra pessoa, de que se vai
celebrar o casamento – art. 156.º/a).
2. A alínea b) dispõe sobre a celebração, que exige uma declaração expressa do consentimento dos
nubentes perante quatro testemunhas.
3. Nos termos da alínea c), é redigida uma acta do casamento, assinada por todos os intervenientes.
a. Se tiver havido processo preliminar, o despacho final do conservador é proferido no prazo
de 3 dias (art. 159.º/2).
b. Se não tiver havido processo preliminar, o conservador organiza este processo, arts. 134.º e
segs. Se verificar a existência de impedimentos dirimentes, não deve homologar o casamento
urgente, e o casamento é inexistente; se não verificar a existência de impedimentos homologa
o casamento, e este torna-se um casamento igual aos outros, com a diferença que neste caso a
lei impõe imperativamente que o regime de bens seja de separação de bens (1720.º).
4. O registo aqui é feito por transcrição, na medida em que o conservador se limita a transcrever a
mencionada acta feita no momento do casamento (este é mais um caso de registo por transcrição).

2) Casamento civil celebrado sob forma religiosa: esta forma especial vale para as outras religiões que não a
católica, e que se consideram radicas em Portugal. Notas:
1. Existe à mesma um processo preliminar na qual se averigua a capacidade para casar;
2. As formalidades do casamento serão as religiosas;
3. O registo é feito por transcrição, ou seja, o conservador transcreve o documento proveniente da
religião.

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E. Invalidade do casamento; casamento putativo

1. Generalidades

Em primeiro lugar, já fomos percorrendo os requisitos do casamento. Qual a consequência que a lei
estabelece para a não verificação desses requisitos? É a invalidade, tirando obviamente aqueles requisitos cuja
omissão não leva à invalidade (os impedimentos impedientes).

Há duas grandes diferenças entre o regime geral das invalidades do negócio jurídico e o regime especial do
casamento:
1. Em matéria de negócio jurídico, não está prevista explicitamente uma sanção da inexistência.
Todavia, os autores interpretam certas expressões usadas em certos artigos (ex: declarações não
sérias e falta de vontade de acção e falta de consciência da declaração - "o negócio não produz
qualquer efeito", ou "carece de qualquer efeito"), como não querendo a lei que o negócio produza
qualquer efeito, nem mesmo os poucos previstos para a nulidade. Assim, querendo dar um nome à
não produção de qualquer efeito, os autores arranjaram a categoria da inexistência, que é por isso
uma categoria doutrinal, mais drástica que a própria nulidade. No casamento, está prevista
expressamente a categoria da inexistência para vícios mais graves.
2. No regime geral, as duas sanções previstas (invalidades típicas) são a anulabilidade e a nulidade. No
casamento, apenas estão previstas a anulabilidade e a inexistência. É certo que há artigos no Código
Civil que falam do "casamento nulo", mas isto porque a nulidade é uma sanção do casamento, mas
apenas dos casamentos católicos.

2. Inexistência

Quais as razões que fundamentam a previsão da inexistência?


1. A inexistência está prevista para vícios muito graves, art. 1628.º. Destaca-se a alínea a): casamento
celebrado perante alguém sem competência para o celebrar (fora as situações do casamento
urgente).
2. Enquanto que o casamento anulável pode ainda produzir efeitos (casamento putativo), já o
casamento inexistente carece de qualquer efeito.

A inexistência está prevista para os seguintes casos, art. 1628.º:

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1. Casamentos celebrados por quem não tenha competência funcional para o acto, alíneas a) e b).
2. Casamentos em que falte a declaração de vontade dos nubentes, alínea c) e d).
3. A alínea e), que consagrava a hipótese do casamento entre pessoas do mesmo sexo, foi revogada.

Qual o regime da inexistência?


1. O casamento inexistente não produz efeitos, nem mesmo putativos – art. 1630.º/1.
2. Pode ser invocado a todo o tempo, por qualquer pessoa, e independentemente de declaração judicial
art. 1630.º/2. Assim, ao contrário da anulabilidade (art. 1632.º), a inexistência pode ser reconhecida
por sentença em acção não especificamente intentada para esse fim, pode ser invocada por via de
excepção e declarada oficiosamente pelo tribunal.

3. Anulabilidade

Os casos de anulabilidade correspondem à omissão de todos aqueles requisitos, quer de fundo, quer de
forma (com a excepção dos impedimentos impedientes). As causas de anulabilidade estão previstas no art.
1631.º:
1. Alínea a): existência de impedimento dirimente.
2. Alínea b): casamento celebrado com divergência entre a vontade e a declaração ou vício de vontade
(erro sobre as qualidades essenciais do outro cônjuge).
3. Alínea c): omissão de um requisito de forma, considerado menos grave, que é a celebração sem a
presença de testemunhas quando tal seja exigido por lei.

Em geral, o que podemos dizer do regime da anulabilidade?


1. Não opera ipso iure, não sendo invocável para qualquer efeitos, judicial ou extrajudicial, enquanto
não for reconhecida por sentença em acção especialmente intentada para esse fim (art. 1632.º);
2. Só pode ser proposta por certas pessoas, arts. 1639.º a 1642.º, e dentro de certos prazos, arts. 1643.º a
1646.º.
3. É sanável em certas hipóteses, art. 1633.º.

Acontece que as anulabilidades, ou seja, o regime das anulabilidades consoante as causas, podem ser
completamente diferentes umas das outras. Apesar de ser uma categoria única, há muitas formas de
anulabilidade. As Lições fazem uma tripartição das anulabilidades, consoante os interesses que estiverem em
causa.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

1. Primeiro tipo de anulabilidade: surge quando esta é estabelecida não só no interesse do cônjuge, mas
também no interesse público. É o caso dos impedimentos dirimentes – há um interesse de ordem
pública na proibição de casar uma pessoa já casada. Assim, a lei estabelece um regime muito aberto,
segundo o qual podem invocar a anulabilidade um grupo muito vasto de pessoas, arts. 1639.º e segs.,
tendo legitimidade também o Ministério Público. Há ainda uma distinção a fazer:
a. Casos em que o motivo da anulabilidade é temporário: a lei admite que a anulabilidade seja
sanada e marca um curto prazo para a propositura da acção, ou não permite que a
anulabilidade seja requerida depois de o motivo ter cessado. É o que sucede com a falta de
idade nupcial, demência notória, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica e
casamento anterior não dissolvido.
b. Casos em que o motivo da anulabilidade é permanente: a lei não permite a sanação e pode
ser arguida em prazo muito mais longo. Inserem-se aqui os impedimentos de parentesco e
condenação por homicídio.
2. Segundo tipo da anulabilidade: está em jogo apenas um interesse público. Cabe aqui um único caso, a
celebração do casamento sem a presença das testemunhas. Como só está em causa um interesse do
Estado, de ordem pública, apenas pode invocar a anulabilidade o Ministério Público (1640.º).
3. Terceiro tipo de anulabilidade: estabelece-se no interesse particular de um dos cônjuges. Estão aqui
todos os casos de divergências entre a vontade e a declaração ou de vícios da vontade. Neste sentido,
só o cônjuge protegido pode vir invocar a anulabilidade do casamento, com a excepção da simulação –
quando dois nubentes celebram casamento, visando enganar e prejudicar terceiros, a anulabilidade
pode ser também arguida pelos terceiros que os simuladores visaram enganar.

4. O casamento putativo

Uma das diferenças entre o casamento inexistente e o anulável é precisamente o de este produzir ainda alguns
efeitos. O instituto do casamento putativo refere-se a este aspecto, permitindo a subsistência de certos efeitos
– o casamento anulado ou declarado nulo (no caso do católico) pode produzir efeitos putativos, como se
fosse válido.

No regime geral do negócio jurídico, a declaração de nulidade e a anulação têm eficácia retroactiva – art.
289.º/1. No casamento, vigora a regra inversa, não da eficácia retroactiva, mas da eficácia prospectiva. Quer
isto dizer que todos os efeitos que o casamento enquanto não foi proferida a sentença de anulação se
mantêm. Compreende-se que assim seja, pois caso contrário seriam destruídos efeitos que não faria sentido

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

destruir, chegando-se a resultados irrazoáveis. Assim, a regra geral, quanto aos efeitos do casamento
putativo, é a de que mantêm-se para o futuro, até ao momento da declaração de nulidade ou anulação, os
efeitos do casamento até aí produzidos, mas não se produzem novos efeitos.

No entanto, podemos encontrar limites aos efeitos putativos.

1) Para se verificar a eficácia prospectiva, é necessário que se cumpram certos requisitos:


1. O casamento tem de ser existente, não se produzindo efeitos putativos no casamento inexistente (art.
1630.º/1).
2. Tem de haver uma declaração de nulidade ou uma anulação; isto é, uma sentença (art. 1632.º).
3. A terceira condição, que acrescenta algo de novo, é que a lei só permite que os efeitos produzidos se
mantenham se pelo menos um dos nubentes estiver de boa fé. A boa fé traduz-se no desconhecimento
desculpável do vício que afecta o casamento (sentido subjectivo), pelo que, se ambos os nubentes
estiverem de má fé – como sucede na simulação – não se produzem efeitos putativos. O art. 1648.º dá
uma noção de boa fé: note-se que não basta o desconhecimento, pois em casos como os da coacção,
é óbvio que a vítima conhece o vício. Daí a lei acrescentar que, em alternativa à boa fé subjectiva,
releva o facto de a declaração ter sido extorquida por coacção (boa fé objectiva). A lei presume a boa
fé dos nubentes no n.º 3.

Há mais duas ideias que vêm limitar os efeitos putativos.

2) Quanto aos efeitos em relação aos cônjuges, resulta do art. 1647.º/2 que os únicos efeitos que se mantêm são
os dos efeitos favoráveis ao do cônjuge de boa fé. É preciso distinguir três situações:
1. Se ambos os cônjuges estiverem de boa fé, mantêm-se todos os efeitos;
2. Estando só um de boa fé, são só os efeitos que lhe são favoráveis. Ex : A casa com B, tendo sido B
coagido, e entretanto A morre. Mais tarde, o casamento é anulado. O cônjuge sobrevivo é herdeiro?
Se a anulação tivesse eficácia retroactiva plena, B não poderia ser herdeiro. B está de boa fé, logo o
efeito sucessório do casamento produz-se, por ser um efeito favorável ao cônjuge de boa fé.
3. Se ambos estiverem de má fé, o casamento não tem eficácia putativa em relação a eles.

Note-se que, nos efeitos em relação a filhos, não há que fazer esta distinção; estes produzem-se sempre
independentemente da boa fé.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

3) Efeitos em relação a terceiros: o instituto do casamento putativo também visa proteger terceiros, pelo que a
eficácia putativa se deve estender também em relação a eles. Também aqui devemos distinguir aquelas três
hipóteses:
1. Se ambos os cônjuges estiverem de boa fé, o casamento inválido produz todos os seus efeitos,
também em relação a terceiros.
2. Se só um dos cônjuges estava de boa fé, o cônjuge de boa fé pode opor efeitos favoráveis a terceiros, mas
desde que a relação com o terceiro se trate de "mero reflexo das relações havidas entre os cônjuges" (art.
1647.º/2) – por exemplo, no caso de alienação de imóveis feita por um dos cônjuges sem
consentimento do outro, em que está em causa um problema de relações patrimoniais entre
cônjuges, de administração de bens, logo os terceiros só reflexamente são afectados (não podem vir
invocar a anulabilidade deste negócio). Pelo contrário, se se tratar de relações que se estabeleçam
directamente entre cada um dos cônjuges e terceiros mas que estejam dependentes do estado pessoal de
casado – por exemplo, doação para casamento feita por terceiro –, o casamento não produz
quaisquer efeitos. Aquela doação seria assim nula.
Em síntese: quando os efeitos favoráveis afectam interesses de terceiros...
a. São oponíveis a terceiros se se tratar de um mero reflexo das relações entre cônjuges.
b. Não são oponíveis a terceiros se se tratar de uma relação directa entre um dos cônjuges e
terceiro.
3. Se ambos os cônjuges estavam de má fé, o casamento não produz efeitos em relação a eles e, por
conseguinte, também não os produz em relação a terceiros.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

F. O casamento católico

1. Capacidade e processo preliminar

Para o casamento católico, é exigida capacidade, não só a da lei canónica, mas também a da lei civil – os
impedimentos de direito civil também são impedimento ao casamento católico. Logo, o casamento só pode ser
celebrado se for presente ao pároco um certificado passado pelo conservador e em que este declara que não
há impedimentos civis (art. 1598.º), havendo assim lugar a uma processo preliminar do casamento católico,
que corre na conservatória do registo civil. A lei pune os párocos que ignorem o certificado de incapacidade
do conservador com crime de desobediência qualificada

Mas e se se celebrar casamento católico sem observância deste preceito e houver impedimento de direito
civil, quid juris? O art. 1625.º continua a reservar competência exclusiva aos tribunais eclesiásticos, logo não
podem os tribunais civis vir anular o casamento. E os tribunais eclesiásticos, podem declarar nulo o
casamento por verificação de um impedimento dirimente? Isto não faz sentido, pois estes não conhecem da
lei civil. O problema que se coloca é apenas o de saber se deverá ou não permitir a transcrição do casamento,
existindo aqui dois interesses concorrentes: por um lado, os interesses públicos que visam as normas que
estabelecem os impedimentos matrimoniais e, por outro, o interesse público que ao casamento católico
venha a ser reconhecido efeitos civis, para que não haja uniões legítimas à face da Igreja e ilegítimas à face do
Estado. Isto porque o registo civil no casamento católico é mais do que meio de prova, é condição de eficácia
civil.

Assim, a lei autoriza ou não a transcrição consoante a espécie de impedimento: se for impediente, o interesse
público que está na sua base cede e a tanscrição é autorizada; se for dirimente, estando em causa interesses
públicos fundamentais, não é autorizada. Note-se que, no caso da demência notória, no caso de um dos
nubentes ter estado demente no momento da celebração mas já não o estar no momento em que a
transcrição é pedida, esta mão pode ser recusada, art. 174.º/1/e).

2. Registo: a transcrição e a sua natureza jurídica

Tramitação:
1. Logo após a celebração do casamento católico deve ser lavrado em duplicado o respectivo assento

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paroquial (art. 167.º e 168.º/1 CRegCiv).


2. O pároco deve enviar o duplicado do assento a qualquer conservatória do registo civil nos três dias
subsequentes a fim de ser transcrito (art. 169.º/1). Se não o fizer, incorre no crime de desobediência
qualificada (art. 296.º/1).
3. O conservador deve fazer a transcrição do duplicado ou da certidão do assento paroquial dentro do
prazo de um dia (art. 172.º/2) e comunicá-lo ao pároco. Já vimos que surge aqui um novo interesse
público em que o casamento católico produza efeitos civis, que justifica que a morte de um dos
nubentes não obste à transcrição (art. 174.º/4) e que seja recusada nos casos do n.º 1.

Problema complexo é o de saber qual a natureza jurídica da transcrição. Encontramos duas orientações:
1. Teoria da recepção individual: para que o casamento católico seja válido na ordem civil, é necessário
um acto de transcrição. Antes dela, o vínculo matrimonial não existe para o ordenamento estadual,
logo a transcrição é um requisito de validade.
2. Teoria da recepção normativa ou genérica: o casamento católico adquire validade civil logo após a
cerimónia religiosa, pois o direito matrimonial canónico foi recebido pelo direito português em
bloco, genericamente; logo a transcrição é apenas uma condição legal de eficácia civil. É esta a tese
correcta (ver arts. 174.º/4 e n.º1/d) e e), e art. 1901.º/c) CC). Assim, o casamento existe, mas só pode
ser invocado ou atendido quando for transcrito.

3. Efeitos civis das sentenças proferidas por tribunais eclesiásticos

Sabemos que a Concordata de 2004 já não contém um preceito semelhante ao da Concordata anterior, em
que o Estado estava vinculado a reservar ao s tribunais eclesiásticos a apreciação da validade e nulidade dos
casamentos católicos. O art. 1625.º CC manteve-se, porém, em vigor, pelo que a nulidade dos casamentos
católicos continua a só poder ser declarada pelos tribunais eclesiásticos.

A lei impõe um processo específico de reconhecimento das sentenças proferidas por tribunais eclesiásticos, art.
1626.º. A Concordata de 2004 veio alterar esta matéria face ao regime anterior, em dois aspectos:
1. Os efeitos civis produziam-se automaticamente (a sentença era automaticamente transmitia ao
tribunal da Relação sem que tal fosse requerido, que mandava fazer o averbamento);
2. As sentenças eram reconhecidas independentemente de revisão e confirmação.

Hoje, havendo uma sentença que declare a nulidade do casamento ou o dissolva por dispensa de casamento

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

rato e não consumado, tem de haver um requerimento de reconhecimento, ao qual se segue um processo de
revisão e confirmação. Este é muito semelhante ao processo de reconhecimento de sentença de tribunal
estrangeiro, já que em ambos os casos estão em causa ordens jurídicas diferentes. Este processo corre nos
tribunais da Relação, e o juiz vai apenas confirmar:
1. A autenticidade da sentença;
2. A competência do tribunal,
3. O cumprimento do princípio do contraditório e da igualdade;
4. A não ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado português.

Verificado estes pontos, o tribunal reconhece automaticamente a sentença. A partir daí, o casamento
declarado nulo é considerado nulo também à luz da lei civil.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

G. Efeitos do casamento

Temos de estudar os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento; todavia os efeitos patrimoniais são
abordados numa outra disciplina, Direito Patrimonial da Família e das Sucessões. Assim, iremos apenas
debruçar-nos sobre os efeitos pessoais.

1. Princípios fundamentais, art. 1671.º

1.1 Princípio da igualdade entre os cônjuges (n.º 1): em matéria de direitos e deveres pessoais entre os
cônjuges, vale o princípio da igualdade, que é um dos princípios constitucionais do direito da família (art.
36.º/3) e um reflexo do princípio geral do art. 13.º/2. Sabemos como art. 36.º/3 foi introduzido com a
Reforma de 1977, ferindo de inconstitucionalidade todas as normas do Código que estabeleciam uma
desigualdade entre marido e mulher.

1.2 Princípio da direcção conjunta da família (n.º 2): a direcção da família pertence a ambos os cônjuges, ou
seja, são estes que, de comum acordo, decidem a direcção da família. Este é um corolário do princípio
anterior: se os cônjuges são iguais, a direcção da família deve pertencer aos dois. Notas:
1. Este é um preceito imperativo.
2. Está aqui implícito um dever de colaboração entre eles para chegar a comum acordo nestas matérias,
logo podemos falar num princípio de direcção conjunta da família associado a um dever dos cônjuges
de chegar a comum acordo.
3. Este princípio limita-se aos aspectos da vida em comum e não aos da vida privada de cada um.
a. Uma matéria que pertence à escolha pessoal de cada um é a profissão. O art. 1677.º-D,
acrescentado pela Reforma de 77, afirma precisamente isto. Antes da Constituição de 76, a
mulher só poderia exercer certas profissões com autorização do marido, salvo no exercício
da função pública. Mas aqui há deveres conjugais a respeitar, pois estão sempre presentes os
limites do próprio casamento. Assim, se um dos cônjuges escolher uma profissão
"desonrosa" (ou profissões demasiado arriscadas ou absorventes), tal poderá representar um
não cumprimento dos deveres conjugais.
4. Nas Lições discute-se a natureza jurídica dos acordos que os cônjuges estabelecem no casamento:
serão verdadeiros contratos? Seja qual for a sua natureza (há duas teses principais, negócio jurídico
ou consensus continuado) tem de se ter em conta dois aspectos – em primeiro lugar, que não são
susceptíveis de execução específica; e, em segundo lugar, podem ser denunciados unilateralmente

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

por qualquer das partes.


5. Imaginemos que há uma matéria da vida comum e não se chega a acordo. Quid juris? A lei não parece
permitir ser os tribunal a decidir, pois só refere três casos em que o tribunal é chamado a decidir uma
disputa entre os cônjuges: nome a dar aos filhos (art. 1875.º/2), residência da família (art. 1673.º/3) e
questões de responsabilidades parentais (art. 1901.º/2). Em relação a outras matérias que não estas,
parece que não pode ser o tribunal a decidir: todos os dias há desacordos, seria absurdo permitir aos
cônjuges levá-los aos tribunais para que sejam estes a decidir; e também há uma ideia lógica – se
chegaram a acordo quanto ao casamento, a lei espera que cheguem naturalmente a acordo nestes
aspectos.

2. Deveres pessoais dos cônjuges

A lei prevê cinco deveres (respeito, cooperação, coabitação, assistência e fidelidade), mas antes de os
estudarmos um a um iremos ver algumas ideias gerais.

Ideias gerais

- A enumeração da lei não é taxativa. Em lugar nenhum é dito que só resultam para os cônjuges aqueles cinco
deveres, sendo que a doutrina fala de alguns direitos que não estão expressamente previsto na lei, como o
dever de sinceridade e informação. Isto apesar de, como defende PEREIRA COELHO , estes deveres se poderem
reconduzir ao dever de respeito.

- Estes serão deveres imperativos, que se impõem aos cônjuges, não podendo ser afastados por estipulação em
contrário (por ex., em convenção antenupcial). Mas também é verdade que, dada a sua natureza, estes
podem sempre ser executados de forma flexível, variando com os casamentos e com a capacidade de
exigência e tolerância dos cônjuges em concreto: assim, o conteúdo dos deveres conjugais dependem da
forma como os cônjuges conformarem a sua relação.

- Em termos práticos, qual a importância de a lei civil impor certos deveres? A imposição destes deveres tinha
bastante importância prática antes da reforma do divórcio em 2008, pois um dos fundamentos (senão o
principal) do divórcio litigioso era a violação culposa dos deveres conjugais, quando a sua gravidade pusesse
em causa a subsistência do casamento. Depois de 2008, desapareceu esse fundamento do divórcio, tendo sido
substituído por um diferente: qualquer facto que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostra a

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ruptura definitiva do casamento. Já não se fala em deveres conjugais, nem sequer em culpa, mas em factos
objectivos não culposos, pelo que parece que estes deveres conjugais perderam muito do seu valor como
deveres.

No máximo, podemos dizer que, não sendo cumprido um destes deveres de forma reiterada e grave, haverá
uma ruptura definitiva do casamento, que será fundamento de divórcio. Mas a violação dos deveres não vale
por si mesma como fundamento de divórcio, mas por originar a ruptura do casamento. Daí termos de concluir
que os deveres perderam grande parte da sua importância prática: os deveres traduzem antes a ideia de que a
lei espera que os cônjuges adoptem certos comportamentos, deixando de os adoptar, haverá uma ruptura.

Os deveres estão previstos no art. 1672.º, sendo que alguns são desenvolvidos em artigos subsequentes.

2.1 Dever de respeito

O dever de respeito é um dever tão amplo que podemos considerar que é um dever de natureza residual: só
são violações do dever de respeito actos ou comportamentos que não constituam violações directas de
qualquer dos outros deveres.

Este é um dever ao mesmo tempo positivo e negativo:


1. Conteúdo negativo: o dever de respeito é essencialmente um dever negativo, de não atentar contra os
direitos de personalidade do outro cônjuge, ou seja, contra a sua integridade física e moral. Haverá
uma violação deste dever se houver uma violação dos direitos de personalidade do outro cônjuge. A
doutrina antiga distinguia dois tipos de atentados aos direitos de personalidade:
a. Injúrias directas: traduzem-se numa violação directa do dever de respeito. Ex: a agressão de
um cônjuge.
b. Injúrias indirectas: não deixam de se traduzir na violação de um dever de respeito, pois
apesar de não o violar directamente, põem em causa o casal enquanto unidade moral. Ex: o
cônjuge tem comportamentos desonrosos em público.
2. Conteúdo positivo: o dever de respeito deve ter também uma vertente positiva, que se traduz na
obrigação de um dos cônjuges dar sempre um mínimo de atenção ao outro. Esta ideia existe sobretudo
na jurisprudência em matéria do casamento.

2. Dever de fidelidade

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Este é um puro dever negativo, e significa a imposição a ambos os cônjuges de não ter relações com outra
pessoa. Segundo a jurisprudência entende, para haver uma infidelidade não tem de haver relações sexuais
com outra pessoa, basta que exista uma relação, ainda que não consumada, muito intensa com outra pessoa,
por exemplo, uma longa troca de correspondência, uma relação platónica muito forte, etc. Sobretudo antes
da reforma de 2008, estas eram questões muito discutidas.

3. Dever de coabitação

A coabitação significa a comunhão de leito, mesa e habitação, em que se traduz a comunhão de vida que
caracteriza a relação entre os cônjuges.

Em conexão com este dever de coabitação, o art. 1673.º refere-se à morada de habitação de família, que deve
ser escolhida por comum acordo, e uma vez escolhida, deve ser adoptada por ambos. Notas:
1. É escolhida de comum acordo (n.º 1), ambos os cônjuges têm a obrigação de viver aí (n.º 2); e aquele
acordo não pode ser revogado unilateralmente (n.º 3).
2. Este é um dos poucos casos em que, não havendo acordo, a lei prevê que seja o juiz a decidir.
Sabemos que em regra não é assim – o juiz não pode ser chamado a decidir, espera-se que sejam os
próprios cônjuges a chegar a acordo.
3. Por vezes, podem haver necessidades transitórias (geralmente de trabalho) em que não haja uma
residência da família. Ainda que isto seja possível, as situações em que os cônjuges não cumprem
este dever de coabitação são excepcionais, ou então correspondem a um ilícito conjugal ou ao início
de uma situação de ruptura.
4. Isto significa que no nosso direito não se prevê a possibilidade de os cônjuges viverem em habitações
separadas, o que não sucede noutros ordenamentos, nos quais se começa a questionar se isto não
será possível.

4. Dever de cooperação

Refere-se a este dever especificamente o art. 1674.º, sendo que podemos dizer que integra:
1. Uma obrigação de socorro e auxílio mútuo;
2. Uma obrigação de cumprimento das tarefas familiares a que estão obrigados, ou seja, de assumirem
em conjunto as responsabilidades inerentes à vida familiar que fundaram. Assim, o cônjuge que

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

mostrar absoluto desinteresse pela saúde e educação dos filhos não infringe apenas um dever em
relação a estas, mas também em relação ao outro cônjuge.

5. Dever de assistência

Está previsto nos arts. 1675.º e 1676.º e ompreende dois sub-deveres.

5.1 Dever de alimentos:


1. Este só assume autonomia se os cônjuges estiverem separados de facto. Se viverem juntos, é absorvido
pelo dever geral de contribuir para os encargos normais da família.
2. Porém, número seguinte parece indicar que este dever só existe se a separação não for imputável a
qualquer dos cônjuges, ou ainda se for igualmente imputável a ambos. Se nenhum deles tiver culpa ou
ambos forem culpados, estão os dois obrigados a dar alimentos um ao outro numa situação de
igualdade. Mas se um tiver a culpa exclusiva, ou se um tiver mais culpa, esse cônjuge culpado é que é
obrigado a alimentar o outro. Mesmo nestas hipóteses, o Código admite que excepcionalmente, por
motivos de equidade, pode-se impor dever de alimentos ao outro.

O art. 1675.º/3, que faz referência à culpa dos cônjuges, não foi revogado pela reforma de 2008. Se isto é
verdade, também o é que se colocam dois problemas:
1. Qual o padrão, a medida, do dever de alimentos? Significa manter o padrão de vida ou dar o
estritamente necessário? Entre nós, havia até à reforma de 2008 uma orientação jurisprudencial
estabilizada, segundo a qual deveria corresponder ao padrão de vida que tinham levado até então.
Antes de 2008, esta ideia de que os alimentos prestados deveriam corresponder ao padrão de vida
existia quer na separação de facto, quer após o divórcio. Hoje, a lei determina no art. 2016.º-A, n.º 3,
que o cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida. Isto está aqui para o
divórcio, logo surge esta dúvida: se a lei alterou esta medida para os alimentos pós-divórcio, apenas
faria sentido que também alterasse para a separação de facto, que aliás é uma situação anterior ao
divórcio. Não há motivos para um tratamento diferente. Qual é, então, o padrão? Será um montante
intermédio, entre o padrão de vida e o estritamente necessário.
2. A lei deixou de atribuir relevo à culpa no regime do divórcio, não apenas como fundamento de
divórcio, mas também como factor relevante na determinação das suas consequências, por exemplo,
na aferição do dever de alimentos. Se a lei alterou estes critérios, é estranho que permaneça o relevo
da culpa no quadro da separação de facto. Na verdade, houve um esquecimento por parte do

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

legislador.

5.2 Dever de contribuir para os encargos da vida familiar: está previsto no art. 1676.º, estabelecendo-se no n.º
1 que este se afere na medida das possibilidades de cada um, e que pode ser cumprido de várias formas
possíveis (afectação dos recursos ou trabalho em casa).

O n.º 2 e segs. introduzem aqui uma regra que foi alterada profundamente na reforma do divórcio de 2008,
regra do crédito compensatório. A anterior norma presumia que, se um dos cônjuges assumia maiores
encargos, esse excesso significava uma renúncia à correspondente compensação, ou seja, que havia um
acordo dos cônjuges nesse sentido. Esta presunção podia ser, porém, afastada. Com a reforma de 2008, é
reconhecido um direito a uma compensação, quando a contribuição de um dos cônjuges tenha atingido um
grau consideravelmente superior à que era devida, por ter renunciado de forma excessiva à satisfação dos seus
interesses em favor da vida comum, com prejuízos patrimoniais importantes.
1. O direito à compensação torna-se exigível com o divórcio.
2. Quais os fundamentos da compensação nestas situações?
a. Esta obrigação de compensação foi estabelecida com a intenção de concretizar e reforçar a
valorização do trabalho feminino no contexto da família, com as renúncias a ele inerentes. Este
é assim um mecanismo de correcção do desequilíbrio que se verificará no fim da comunhão
de vida, por causa desta maior dedicação ao trabalho em casa. Durante o casamento, o
trabalho proporcionado à família aproveitava a todos e era contrabalançado pela manutenção
do padrão de vida; após o divórcio, estes benefícios aproveitam apenas a um dos cônjuges. É no
fundo uma forma de partilha, não dos bens materiais, mas do "capital humano".
b. A compensação percebe-se ainda por o casamento ser uma "empresa", para o qual se
trabalha, esperando retorno (na duração do casamento, há um retorno, o próprio
casamento).
3. O art. 1676.º/3 diz que este montante compensatório só pode ser exigido no momento da partilha,
mas esta expressão não é correcta: devemos entender que o crédito compensatório deve ser exigido no
momento do divórcio, uma vez que o nosso sistema de divórcio não abrange a liquidação do regime
de bens e a divisão do património. Assim, há divórcios sem partilhas (ex: casamento sem separação
de bens) e partilhas sem divórcios (ex: situações como a insolvência de um dos cônjuges).
a. A referência à partilha deverá ser entendida como uma indicação do momento
processualmente idóneo para exigir o direito aí consagrado, e tem subjacente o objectivo de
que seja ponderado, de forma global, o equilíbrio entre as contribuições de cada um dos

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

cônjuges, incluindo o resultado da liquidação do regime de bens.


b. A ressalva feita para o caso de o regime de bens ser o da separação compreende-se uma vez
que, não existindo bens comuns, não há lugar a partilha.
c. Porém, no caso de os cônjuges casarem no regime de comunhão, o direito à compensação
deve ser exigido na partilha subsequente ao divórcio, de modo a permitir que a ponderação
das contribuições seja global.
4. Quais os pressupostos? Este direito visa evitar o aproveitamento injustificado dos benefícios
resultantes do trabalho não remunerado de um dos cônjuges e o seu empobrecimento injustificado,
logo o principal elemento de ponderação será a existência de prejuízos patrimoniais importantes,
nomeadamente se existir um grave desequilíbrio económico entre os cônjuges após o divórcio.
5. Esta deverá constituir uma obrigação de prestação única, embora possa prever-se o seu
cumprimento faseado.

O nº 4 prevê a hipótese, algo inversa, de um dos cônjuges não pagar aquilo que deve, na qual o cônjuge pode
pedir ao tribunal que o outro lhe entregue aquilo que devia. Isto parece ser pensado essencialmente para as
situações da separação de facto.

3. Nome

O art. 1677.º prevê a regra geral de que cada um dos cônjuges conserva o seu próprio apelido, podendo qualquer
dos cônjuges adoptar o apelido do outro até ao máximo de dois nomes. Notas:
1. Antes da Reforma de 77, esta faculdade era apenas concedia à mulher, tendo sido estendida ao
homem por força do princípio da igualdade.
2. Pode um acrescentar no fim e outro no meio, formando um nome comum. Esta hipótese de
intercalação foi discutida durante muito tempo pelos conservadores, numa interpretação literal da
fórmula "acrescentar" (que só poderia ser no fim), mas hoje tende a aceitar-se, dado que corresponde
exactamente ao fim da lei, de adopção de um nome comum.
3. Nos termos do n.º 2, não se pode acrescentar apelidos de vários cônjuges, mas apenas de um.

O art. 1677.º-A refere-se à hipótese de viuvez, no qual o cônjuge sobrevivo conserva o apelido do cônjuge
falecido, mesmo casando novamente, se declarar essa intenção.

O art. 1677.º-B prevê as situações de divórcio ou de separação de pessoas e bens.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

1. Quando ao regime de separação judicial de pessoas e bens, cada um dos cônjuges conserva os
apelidos, mas nada os impede de renunciar a eles.
2. Quanto ao divórcio, surgem algumas complicações: em princípio cada um dos cônjuges perde os
apelidos do outro que tenha adoptado cônjuge divorciado; sendo que só se pode manter os apelidos
do ex-cônjuge “se este o permitir ou se o tribunal autorizar”.
a. A lei refere-se ao tribunal, mas já não é bem assim: este processo tendente ao uso do nome
depois do divórcio corre hoje na conservatória do registo civil e recebe o nome de “processo
tendente à formação de acordo das partes”, está previsto no DL 272/2001, de 13 de Outubro.
Este decreto veio transferir a competência dos tribunais para outras entidades,
designadamente o Ministério Público e as conservatórias do registo civil.
b. Este processo começa hoje por correr na conservatória do registo civil: o conservador recebe
o pedido e, numa primeira fase, tentará formar o acordo das partes. No caso de não
conseguir, remete o caso para o tribunal, logo, não havendo acordo, quem decide é sempre
o tribunal.
c. Isto ressalvadas as hipóteses em que o pedido de autorização de utilização dos apelidos for
deduzido no próprio processo do divórcio, e não em processo autónomo.

O art. 1677.º-C prevê que o cônjuge que conserve o apelido do outro pode ser privado do direito de os usar
quando esse uso lese gravemente os interesses morais do outro cônjuge ou da sua família – por exemplo, por
se entregar a uma actividade criminosa. Também aqui funciona o tal procedimento tendente à formação do
acordo das partes, decidindo no caso de não haver acordo o tribunal.

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I. Separação de pessoas e bens

1. Generalidades

Se o casamento se mantém e há uma separação, pode conceber-se uma separação: só de pessoas, só de bens,
e só de pessoas e bens. A primeira não existe entre nós, mas já existe uma separação só de bens, e uma
separação de pessoas e bens, sendo que iremos apenas falar desta última.

Em que consiste a separação de pessoas e bens? Como as próprias palavras o indicam, há uma separação de
pessoas, que deixam de coabitar; e separam-se os bens, ou seja, o património comum. A separação de pessoas e
bens vem regulada nos arts. 1794.º e segs. Esta foi em tempos judicial, mas já não é, logo a epígrafe está
incorrecta.

- Sentido do instituto num sistema que admite o divórcio


1. Este foi um instituto muito importante historicamente, em sistemas em que não era permitido o
divórcio, designadamente no casamento católico. Assim, nos casamentos que não admitiam
divórcio, a separação de pessoas e bens funcionava como um mecanismo permanente, isto é, como
uma espécie de divórcio.
2. Mais tarde, com a introdução da possibilidade de divórcio nos casamentos católicos, a separação de
pessoas e bens passou a ser uma coisa rara, que raramente acontece; e passou a ser um mecanismo
meramente temporário. Com efeito, no direito actual, em que todos os casamentos se podem
dissolver por divórcio, a separação de pessoas e bens apenas pode ter a natureza de antecâmara do
divórcio.

- Liberdade de opção e preferência da lei pelo divórcio


1. A separação de pessoas e bens e o divórcio são dois mecanismos que a nossa lei admite lado a lado,
logo há uma liberdade de opção dos cônjuges.
2. Porém, esta liberdade de opção não significa que a lei se desinteresse pela escolha dos cônjuges, ou
seja, que esta lhe seja indiferente. Com efeito, podemos dizer que a lei mostra uma preferência pelo
divórcio, o que é notório pelo instituto da conversão. Assim, se os cônjuges preferirem a separação, o
interesse público não prevalece contra a vontade dos cônjuges; mas se apenas um deles preferir a
separação e o outro o divórcio, permite-se a qualquer dos cônjuges requerer a conversão.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

3. Formas, causas e processo: remissão

Quanto às modalidades de separação de pessoas e bens no art. 1794.º, a lei faz uma remissão para as regras do
divórcio, pelo que as mesmas modalidades de divórcio (por mútuo consentimento e sem consentimento)
existem para a separação de pessoas e bens. Da mesma forma, as causas com base nas quais pode ser
intentada uma acção de separação são as mesmas que podem fundamentar uma acção de divórcio.

Por outro lado, as formas de processo e regras processuais do divórcio (o divórcio por mútuo consentimento
pode ser feito por via judicial ou administrativa, por exemplo) valem também para a separação de pessoas e
bens.

4. Efeitos

Quanto aos efeitos, estes visam conciliar duas ideias: por um lado, é preciso que o vínculo matrimonial
afrouxe o suficiente para que a crise seja resolvida através da separação; por outro, a separação não é o
divórcio, logo têm de se manter todos os efeitos do casamento que lhes são absolutamente essenciais.
1. No plano dos efeitos pessoais:
a. Extinguem-se os deveres de coabitação, de assistência (na dimensão e contribuir para os
encargos para a vida familiar) e de respeito (na dimensão positiva).
b. Subsistem os outros deveres, nomeadamente o de fidelidade.
c. Cada um dos cônjuges conserva os apelidos do outro.
2. No plano dos efeitos patrimoniais: cessa o regime matrimonial em vigor, qualquer que seja, e
produzem-se todos os efeitos que produziria a dissolução do casamento.

5. Reconciliação e conversão em divórcio

Como termina a separação de pessoas e bens? É uma espécie de prelúdio do divórcio, e como é um instituto
pensado para ser temporário, acaba de duas formas: ou os cônjuges se reconciliam, ou converte-se esta
separação em divórcio (é o mais frequente).

5.1 Reconciliação: está prevista no art. 1795.º-C, que hoje corre, segundo o que resulta do DL 272/2001,
exclusivamente na conservatória do registo civil (as referências às competências do juiz nesta matéria que

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

ainda constam do Código devem considerar-se revogadas por aquele DL). Podem os cônjuges, a todo o
tempo, restabelecer a vida comum e o exercício pleno dos direitos e deveres matrimoniais. Deve entender-se
que a reconciliação dos cônjuges repõe em vigor o mesmo regime de bens que vigorava antes da separação,
podendo porém estes escolher regime diverso.

5.2 Conversão da separação de pessoas e bens em divórcio:


1. A conversão pode ser requerida por ambos os cônjuges ou por apenas um deles.
a. Se for requerida por ambos, o conservador decide de imediato (art. 11.º DL 272/2001).
b. Se for por um deles, e se não existir acordo, o processo é remetido para o tribunal (art. 7.º/3).
2. Foi alterada a redacção do n.º 1, no sentido de que, durante o primeiro ano após ser decretada a
separação, a conversão em divórcio tem de ser acordada entre os dois cônjuges; passando um ano,
como que a lei perde a esperança na reconciliação, facilitando a conversão ao ponto de permitir que
qualquer um dos cônjuges possa pedir unilateralmente e sem fundamento o divórcio.
3. O procedimento que tem lugar é igualmente o procedimento tendente à formação de acordo entre as
partes previsto naquele DL.

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J. Divórcio

1. Generalidades

1.1 A “questão do divórcio”

Antigamente, discutia-se "a questão do divórcio", que era a da própria admissibilidade do divórcio. Esta
questão está hoje ultrapassada – ninguém discute que, seja qual for a modalidade do casamento, os cônjuges
têm a faculdade de se divorciar.

Todavia, há outras questões do divórcio que ainda subsistem, nomeadamente a das questão das causas do
divórcio por pedido unilateral de um dos cônjuges (antigamente litigioso). Em relação a esta segunda
questão, podemos dizer que há uma tendência no sentido de se admitir que basta a invocação da simples
ruptura do casamento.

Mas sobretudo há quem diga que as questões do divórcio que têm mais interesse prático são de outra ordem
– as novas questões do divórcio, muito discutidas pela jurisprudência, são verdadeiramente as das
consequências do divórcio. Algumas consequências são ainda hoje muito debatidas, nomeadamente a do
dever de alimentos e a forma de exercício das responsabilidades parentais se houver filhos menores.

1.2 Evolução legislativa

Momentos principais da evolução legislativa do divórcio, numa fase inicial:


1. O divórcio foi admitido em 1910, com a Nova República, independentemente da modalidade de
casamento. Admitia-se tanto o divórcio por mútuo consentimento como o litigioso, sendo este
admitido em termos muito amplos, com fundamento em causas subjectivas ou objectivas.
2. A Concordata de 1940 veio suprimir a possibilidade do divórcio para o casamento católico.
3. Com o Código Civil de 66, manteve-se a solução da Concordata de apenas permitir a dissolução do
divórcio nos casamentos civis, mas em relação aos casamentos civis veio dificultar o divórcio,
introduzindo certas alterações significativas:
a. Eliminou as causas de divórcio objectivas (separação de facto, ausência, alteração das
faculdades mentais), passando só a ser possível divórcio com base em situações subjectivas,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

isto é, na violação culposa de deveres conjugais.


b. Suprimiu a possibilidade de pedir directamente o divórcio por mútuo consentimento, tendo
de passar pela antecâmara da separação judicial de pessoas e bens, convertível em divórcio
decorridos 3 anos.
c. Uma vez deduzido um pedido de divórcio, o juiz podia, mesmo verificando que havia
fundamento de divórcio, indeferir este pedido e substituir o divórcio por uma separação de
pessoas e bens.

Com a Revolução de 25 de Abril e a Constituição de 76, tudo mudou.


1. A queda da ditadura reforçou a contestação à indissolubilidade por divórcio dos casamentos
católicos, iniciando-se logo após a revolução negociações com a Santa Sé em vista da revisão da
Concordata, concluídas com a celebração do Protocolo Adicional em 1975. Assim, num período
inicial, foi admitido o divórcio no casamento católico; foi eliminada a possibilidade de o juiz recusar
o pedido de divórcio; foram reintroduzidos os velhos fundamentos objectivos e foi eleminado o
prazo de 3 anos para a conversão.
2. A partir de 1995, com alterações ao Código de Registo Civil (permitiu-se que alguns processos
corressem nas conservatórias) começou um novo movimento legislativo, que culminou na Lei
61/2008. Principais traços deste movimento:
a. Progressiva transferência de competências dos tribunais para as conservatórias do registo civil.
Antigamente, o divórcio resultava sempre de uma sentença judicial; hoje, há divórcios,
como o por mútuo consentimento (verificadas certas condições), que podem ser decretados
pelos conservadores.
b. Facilitação progressiva do divórcio por mútuo consentimento: desde logo, (i) em termos de
prazo, deixando de se exigir o prazo mínimo de 3 anos para este divórcio – hoje, admite-se
este divórcio no momento imediato após o casamento, não sendo admissível que o Estado
exija aos cônjuges um período mínimo de casamento. Mas também (ii) em termos
processuais, posto que o procedimento está bastante simplificado, e em princípio corre nas
conservatórias do registo civil.
c. Progressiva redução do tempo de duração das denominadas causas objectivas do divórcio: as
circunstâncias objectivas que podiam fundamentar o divórcio (separação de facto, ausência
e alteração das faculdades mentais do outro cônjuge) tinham de ter uma duração mínima,
que tem vindo progressivamente a diminuir. Por ex., a lei exigia uma separação de facto de
pelo menos 6 anos. Hoje, há um prazo comum aquelas três causas objectivas, que é de 1 ano.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

d. Supressão das causas subjectivas do divórcio: a culpa na violação dos deveres conjugais
deixou de relevar, quer como fundamento do divórcio, quer como critério de definição das
suas consequências (ex: o cônjuge culpado era obrigado a prestar alimentos ao cônjuge
inocente). Era com base na "quantidade" de culpa de cada cônjuge que se aferia os efeitos do
divórcio.

1.3 Modalidades

São duas as modalidades do divórcio:


1. Por mútuo consentimento, que pode ser:
1.1 Administrativo;
1.2 Judicial.
2. Sem consentimento de um dos cônjuges (até 2008, este era o divórcio litigioso, sendo que o Código
continua a usar esta expressão, por esquecimento do legislador). A lei não quer que o divórcio seja
visto como um litígio, há a preocupação que seja "limpo" (as pessoas se comportem de forma civilizada,
etc.) tendo por isso recorrido a uma expressão neutra. É forçosamente judicial.

Note-se que o divórcio por mútuo consentimento procede no Código Civil o divórcio sem consentimento, o
que sugere, de alguma forma, que a lei prefere o divórcio por mútuo consentimento. Isto resulta ainda da
possibilidade de conversão do divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo consentimento, o que
deve ser aliás procurado pelo juiz no caso de a tentativa de reconciliação naquele divórcio falhar.

1.3 Direito ao divórcio

Quais são as características do direito ao divórcio?


1. É um direito potestativo, tendente à produção de puros efeitos jurídicos, que se produzem
inelutavelmente – a extinção do casamento.
a. Apenas pode ser exercido por um acto de autoridade pública, judicial ou administrativa, e
não por um simples acto de vontade.
b. É um direito potestativo extintivo.
2. É um direito pessoal, o que significa que é intransmissível (quer inter vivos, que mortis causa), e que
em princípio só pode ser exercido pessoalmente pelo próprio cônjuge que se quer divorciar.
Ressalvas:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

a. Se a acção do divórcio já estiver a decorrer e um dos cônjuges falecer no decurso da acção, os


herdeiros do cônjuge falecido podem continuar a acção (art. 1785.º/3). Isto porque pode
ainda haver interesses, nomeadamente patrimoniais, em que seja decretado o divórcio em
vez de ser o casamento dissolvido por morte.
b. Em princípio também não se admite a representação, embora a lei permita que em certos
casos especiais de ausência a acção seja intentada por procuração, art. 1407º do Código de
Processo Civil.
3. É um direito irrenunciável, ou seja, é atribuído aos cônjuges de forma imperativa, não podendo os
cônjuges renunciar a ele, seja por renúncia genérica ou renúncia pontual; renúncia antecipada ou
superveniente; e ainda renúncia total ou parcial. Também antes de 2008 se passava assim, apesar de a
lei prever certas ocasiões em que um dos cônjuges não poderia divorciar-se mesmo que em abstracto
o pudesse: havendo violação culposa pela outra parte dos deveres conjugais, se o cônjuge inocente
tivesse, através de actos que exprimissem esse sentido, perdoado ou instigado essa violação, não se
poderia divorciar. Todavia, era discutido se isto consistia ou não uma renúncia, entendendo-se que
não havia exactamente uma renúncia.

2. Divórcio por mútuo consentimento

2.1 Noção e espírito

Como a própria designação o indica, este é um divórcio por acordo mútuo entre os cônjuges. Antes de 2008,
distinguia-se as duas modalidades de divórcio com base na causa: este divórcio era um divórcio com causa
não revelada, enquanto que o divórcio litigioso era um divórcio com causa. Hoje, esta distinção perdeu
interesse, se alguma vez o teve - está de tal forma facilitado este divórcio que podemos dizer que corresponde
a um pedido apresentado por ambos e em que não existe causa.

2.2 Pressupostos

Verificou-se uma evolução legislativa quanto aos pressupostos, tendo desaparecido certas condições:
1. Desapareceu o tempo mínimo de casamento, medida em vigor desde 1998. Antes de 98, a lei impunha
uma duração mínima (três anos) numa ideia de super-protecção, visando evitar que os cônjuges se
precipitassem. Hoje, entende-se que não faz sentido o Estado impor a sua vontade à dos cônjuges.
2. Até 2008, quando dois cônjuges se queriam divorciar, estando de acordo quanto ao próprio

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

divórcio, tinham ainda se de pôr de acordo em relação a três outras matérias – acordos
complementares (art. 1775.º):
a. Eventual prestação de alimentos;
b. Destino da casa de morada de família;
c. Forma de exercício das responsabilidades parentais, existindo filhos menores e quando não
tenha havido previamente regulação judicial.
Estes três acordos deveriam acompanhar o pedido de divórcio, se tal não acontecesse ou se os
acordos não fossem considerados razoáveis, o pedido de divórcio por mútuo consentimento era
simplesmente indeferido e os cônjuges não se podiam divorciar. Hoje, mesmo que os cônjuges não
estejam de acordo sobre nenhum destes pontos, têm uma alternativa, a de apresentar o pedido de
divórcio junto do tribunal, cabendo então ao juiz decidir – art. 1778.º-A. O mesmo acontece se
tiverem apresentado o pedido ao conservador e este ou o Ministério Público entenderem que os
acordos não são razoáveis. Antes de 2008, este juízo de irrazoabilidade era fundamento de
indeferimento; hoje, o processo é remetido para o tribunal, art. 1778.º. Em termos práticos, a existência
de acordo deixou de ser fundamento para o indeferimento, pois basta o simples facto de se quererem
divorciar para a lei garantir que tal aconteça. Continua no entanto a exigir-se a apresentação de uma
relação especificada de bens comuns, podendo os cônjuges juntarem acordo sobre partilha (art. 272.º-
A, n.º 2, CodRegCiv).

2.3 Processo do divórcio

Principais alterações trazidas pela reforma de 2008:


1. Antes de 2008, tinha havido uma tentativa de entregar a competência processual nas matérias de
divórcio por mútuo consentimento às conservatórias. Em 2008, houve um retrocesso, ou seja, um
retorno de competências aos tribunais no divórcio por mútuo consentimento – passou a haver mais
possibilidades de o divórcio por mútuo consentimento correr nos tribunais, uma vez que se permitiu
que os cônjuges que não estejam de acordo sobre os aspectos complementares se possam divorciar,
apresentando directamente um requerimento no tribunal e cabendo-lhe decidir. Percebe-se assim este
retorno, que se deve à conjugação de dois aspectos: a lei quer garantir que os cônjuges se possam
divorciar, mas por outro lado também quer que cheguem a acordo quanto aos aspectos
complementares.
2. Outra alteração, trazida em 2007 e alargada em 2008, tem a ver com as formas de processo do divórcio
por mútuo consentimento: ou os cônjuges chegam a acordo e apresentam o requerimento na

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

conservatória, ou não têm acordo e apresentam-no nos tribunais, logo a forma de processo será,
respectivamente, administrativo e judicial. Acontece que, em 2008, a lei veio facilitar a tarefa dos
cônjuges que se querem divorciar mas têm dificuldade em redigir os acordos: como o processo
administrativo é mais célere, a lei veio permitir que fossem os conservadores ou oficiais de registo que
redijam os acordos – isto resultou das alterações introduzias pelo DL 324/2007 ao art. 272.º do
CRegCiv. Estes dão apenas uma forma técnico-jurídica à vontade manifestada pelos cônjuges.
3. Até 2008, quando dois cônjuges chegavam à conservatória ou tribunal para se divorciar por mútuo
consentimento, havia uma imposição legal de um passo inicial no qual o conservador ou o juiz
teriam de tentar reconciliar as partes. A lei veio proibir as tentativas de conciliação no sentido de
manter o casamento. Houve algo que veio substituir esta tentativa, mas é diferente: o conservador ou
juiz têm de informar os cônjuges da existência e objectivos dos serviços de mediação familiar, que
servem para mediar a conversa entre os cônjuges mas sem nunca procurar induzir soluções. Estes
serviços são recentes, e vêm referidos no art. 1774.º do CC e no DL 272/2001.
4. Deixou de haver a possibilidade de um requerimento de divórcio por mútuo consentimento ser
indeferido por os cônjuges não apresentarem acordos complementares ou estes serem considerados
irrazoáveis. A lei garante sempre que, se se querem divorciar, conseguem fazê-lo.

- Processo administrativo:
1. Inicialmente, há um requerimento apresentado nas conservatórias, juntamente com os acordos
complementares, havendo casa de morada de família, dever de alimentos ou filhos menores – art.
1775.º. Podem requerer ao conservador ou a um oficial de registo que o redijam.
2. Uma vez apresentado o requerimento e os acordos, o conservador informa os cônjuges da existência
e objectivos dos serviços de mediação familiar, art. 1774.º. Se quiserem recorrer a estes serviços, o
processo de divórcio suspende-se, retomando-se se da mediação nada resultar.
3. Há uma convocatória para uma conferência (espécie de audiência que se passa na conservatória),
com o conservador e os cônjuges, na qual o conservador confirma que estão cumpridos os
pressupostos procedimentais a aprecia os tais acordos, art. 1776.º. Na sequência desta apreciação, o
conservador pode chegar a duas conclusões: ou homologa os acordos complementares, ou acha que
estes desprotegem de forma excessiva as pessoas envolvidas (cônjuges ou filhos), não homologando
os acordos e convida os cônjuges a reformular os acordos, ainda no âmbito da primeira conferência.
Se os cônjuges refizerem o acordo e este já for considerado razoável, é homologado; senão, o
conservador não homologa em termos definitivos o acordo.
4. Sendo os acordos homologados, é assinado um despacho que decreta o divórcio por mútuo

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

consentimento; caso contrário, o processo é remetido para o tribunal nos termos do art. 1778.º. O
processo converte-se em judicial.
5. Há um dos acordos cuja apreciação é feita, não pelo conservador, mas pelo Ministério Público:
acordo sobre as responsabilidades parentais, art. 1776.º-A.

- Processo judicial: em que casos é que é possível ?


1. Remessa do processo da conservatória para o tribunal em consequência da não homologação dos
acordos, art. 1778.º: inicialmente, os cônjuges apresentaram requerimento de divórcio nas
conservatórias e estes não foram considerados razoáveis.
2. Apresentação directa do pedido no tribunal quando faltem os acordos complementares, art. 1778.º-
A/1: os cônjuges não estavam de acordo desde o início quanto a matérias dos acordos
complementares.
3. Conversão do processo de divórcio sem consentimento em processo por mútuo consentimento, art.
1779.º/2: os cônjuges chegaram a acordo no sentido de se divorciarem por mútuo consentimento, e
como o processo já estava a correr nos tribunais continua a fazê-lo.

As duas primeiras hipóteses serão as mais relevantes.


1. O juiz deverá apreciar os acordos eventualmente apresentados, convidando os cônjuges a alterá-los
no caso de não acautelarem os interesses dos filhos – art. 1778.º-A/2.
2. O juiz deverá, não apenas promover o acordo entre os cônjuges, mas tê-lo em conta na determinação
das consequências do divórcio, n.º 6.
3. Nos termos do n.º 3, se não for possível obter acordos que acautelem os interesses de algum dos
cônjuges ou do filho (n.º 2), o juiz fixará as consequências do divórcio como se se tratasse de um
divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges.

Tramitação do processo judicial:


1. Apresentação do requerimento;
2. Informação acerca da existência e objectivos dos serviços de mediação familiar;
3. Também aqui há uma conferência, na qual o juiz está perante os cônjuges – antes, havia várias
conferências, que foram objecto de unificação. O juiz irá tentar que os acordos sejam acordados
entre eles, apreciando logo a sua razoabilidade. Se não chegarem a acordo, então quem vai decidir
será o próprio juiz, nos termos do art. 1778-ºA.
4. Finalmente, o juiz decreta o divórcio, fixando simultaneamente as suas consequências.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Em relação ao artigo 1778.º-A, podem suscitar-se algumas questões.


1. A remissão para o art. 1775.º/1 abrange o acordo sobre a partilha dos bens comuns; ora, aqui, nem os
cônjuges estão obrigados a apresentar este acordo, nem o Tribunal deverá ter a iniciativa de proceder
à mesma. No entanto, quanto à mera elaboração da relação de bens comuns, esta será obrigatória.
2. A ordem de tarefas do n.º 2 e 3 pode suscitar alguma perplexidade, sendo que se deve entender que
os acordos apresentados não podem ser apreciados independentemente das outras consequências
do divórcio.
3. O dever colocado no n.º 6, de o juiz promover e considerar o acordo dos cônjuges, deve entender-se
como consagrando uma disposição genérica, uma orientação de carácter geral, mesmo para os casos
de divórcio sem consentimento.
4. No caso de o juiz não conseguir promover o acordo dos cônjuges, haverá alguma incerteza sobre o
processo a seguir. Nos termos do n.º 4, o juiz deve promover as diligências necessárias, sendo que, na
situação em que tem de fixar as consequências do divórcio, será necessário que os cônjuges tragam
ao processo, alegando e provando, os factos que servirão de fundamento à decisão do juiz. Este
deverá por isso marcar uma audiência final para este efeito.

3. Divórcio sem consentimento de um dos cônjuges

3.1 Noção

Esta modalidade foi introduzida com a Lei n.º 61/2008, e corresponde ao anterior divórcio litigioso. A
designação escolhida denota precisamente o propósito da lei, a aspiração de um processo que não agrave os
conflitos e evite a devassa sobre os comportamentos conjugais. Neste contexto, a lei veio eliminar
completamente a relevância da verificação de um ilícito conjugal culposo em contexto de divórcio.

No entanto, este continua a ser um divórcio contencioso, ou seja, requerido por um dos cônjuges contra o
outro, e é sempre judicial. Tem como fundamento qualquer facto que, “independentemente da culpa dos
cônjuges, mostre a ruptura definitiva do casamento” (art. 1781.º/d)), designadamente a separação de facto
(alínea a)), a alteração das faculdades mentais do outro cônjuge (alínea b)) e a ausência (alínea c)) – é assim
que deve ser lido este preceito.

3.2 Concepções históricas

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Ao longo dos tempos, foram-se sucedendo várias concepções históricas do divórcio litigioso:
1. Na vigência do Código anterior, que deliberadamente eliminou as causas objectivas, estava
subjacente uma concepção do (1) divórcio como sanção, aplicada ao cônjuge que violava
culposamente deveres conjugais – este era o único fundamento do divórcio admitido. Em coerência
com este fundamento, o divórcio representava uma infracção. Mas já aqui esta concepção era
discutida:
a. Não se percebia porque é que a lei, se se tratasse só de castigar o culpado, recorria à sanção
do divórcio, pois este é um mal em si mesmo.
b. Por outro lado, o cônjuge culpado podia precisamente (e é, na maior parte das vezes) aquele
a querer o divórcio.
2. Depois começou a surgir uma outra concepção do divórcio, associada a novas causas que foram
surgindo: por exemplo, o divórcio com fundamento na ausência do outro cônjuge (introduzida em
1977), ou por alteração grave das faculdades mentais. Estes são igualmente divórcios litigiosos, mas
não está a ser aplicada nenhuma sanção. Assim, em relação a estes casos, os autores começaram a
falar do (2) divórcio como remédio, protegendo o cônjuge inocente, vítima de uma situação tão
intolerável que não pode ser exigida a manutenção do casamento.
3. Neste percurso histórico, surge uma terceira concepção, que corresponde a algumas situações hoje
previstas, por exemplo, o divórcio com fundamento na separação de facto, no qual qualquer dos
cônjuges pode pedir o divórcio. Fala-se assim do (3) divórcio como constatação da ruptura: ambos os
cônjuges podem pedir o divórcio com fundamento na ruptura do seu casamento, no plano dos
factos. O que importa é a existência de uma situação de ruptura do casamento, e que o divórcio deve
pura e simplesmente constatar.

O nosso sistema actual consagra essencialmente um sistema de divórcio como constatação da ruptura – há
uma causa genérica indeterminada de qualquer facto que constate a ruptura, contribuindo também para esta
a causa da separação de facto. Já a causa de alteração das faculdades mentais e a ausência revelam ainda uma
concepção de divórcio como remédio; não obstante, a tendência principal é a de constatação de ruptura.

3.3 Causas

- Classificações das causas

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

A nossa doutrina dedicou-se, em certo momento histórico, à "teoria das causas", elaborando certas
sistematizações e distinções das causas do divórcio:
1. Causas indeterminadas e determinadas: a causa é determinada se a lei individualiza e especifica com
precisão o facto que pode fundamentar o pedido; e indeterminada se esse facto não está especificado
mas cabe numa cláusula geral. É exemplo da segunda "qualquer facto que mostre a ruptura", e da
primeira a separação de facto. As causas determinadas são muitas vezes taxativas, o que não sucede
entre nós – a separação de facto, as alterações das faculdades mentais e a ausência são causas
determinadas exemplificativas de factos que mostrem a ruptura do casamento.
2. Causas peremptórias ou absolutas e facultativas ou relativas: as primeiras servem de fundamento ao
divórcio sem necessidade de uma averiguação concreta da sua gravidade – a separação de facto é
uma causa absoluta, pois basta a prova da separação para que haja fundamento do divórcio. Quanto
às causas relativas, estas só são causa de divórcio quando, pela sua gravidade, impeçam a subsistência
em comum – por exemplo, a alteração das faculdades mentais. A lei exige assim uma prova
complementar da gravidade da situação e, em consequência dela, a impossibilidade em concreto de
continuação da vida em comum.
3. Causas subjectivas e objectivas: as primeiras, que desapareceram do nosso ordenamento, baseavam-
se na violação culposa dos deveres conjugais por um dos cônjuges. Hoje, só temos causas objectivas,
que não se baseiam na prática de um acto culposo mas em factos objectivos.
4. Causas unilaterais e bilaterais: as primeiras só podem ser invocadas por um dos cônjuges; as
segundas, por ambos. Temos causas bilaterais (qualquer facto que mostre a ruptura e a separação de
facto), e unilaterais (como a alteração das faculdades mentais e ausência, pois só o cônjuge saudável
e o cônjuge não ausente pode intentar o pedido de divórcio).

- O quadro actual das causas de divórcio, após a Lei n.º 61/2008

Em 2008 desapareceu o fundamento subjectivo da violação culposa dos deveres conjugais, logo a culpa dos
cônjuges foi eliminada, quer como causa do divórcio, quer como critério de definição dos efeitos do divórcio
(certos efeitos patrimoniais eram aferidos em função da culpa, só podendo o cônjuge inocente valer-se dos
efeitos favoráveis).

1) Separação de facto: art. 1781.º/a) e art. 1782.º.


1. A separação de facto caracteriza-se por um elemento objectivo e um elemento subjectivo:
a. Elemento objectivo: inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges. No entanto, não

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

basta este elemento, pois o dever de coabitação é revestido de grande plasticidade – pode
suceder que os cônjuges não vivam juntos por motivos de trabalho, mas tenham o propósito
de restabelecer a vida em comum quando as circunstâncias o permitirem.
b. Elemento subjectivo: é, assim, necessário juntar ao corpus da separação de facto o animus,
que se traduz, da parte de ambos ou de um deles, no propósito de não restabelecer a vida em
comum. Não consistirá uma situação de separação de facto, por falta deste elemento, a prisão
de um dos cônjuges, por exemplo.
Há autores que dizem que o elemento subjectivo se manifesta pelo simples facto de um dos
cônjuges estar a propor uma acção de divórcio. É verdade que a propositura de acção mostra
que o cônjuge que intenta a acção não tem intenção de retomar a vida em comum, mas o
facto de intentar a acção de divórcio só mostra essa intenção nesse mesmo momento.
2. Os prazos da duração mínima tem vindo a ser diminuído, sendo actualmente de um ano: em 1910,
quando foi introduzido como fundamento, o prazo era de dez anos; o DL n.º 216/75, que o
reintroduziu, estabeleceu um prazo de cinco anos; em 76, este prazo foi elevado para seis anos; e, em
98, reduzido para três.
a. Há uma dúvida que se coloca: a realidade dos factos mostra que os cônjuges se vão
separando aos poucos, não há uma separação ex abrupto. Entende-se que para estes efeitos
não contam as "meias separações", tem de haver uma separação completa e definitiva.
b. Uma outra dúvida é a de saber o prazo de um ano tem de ser contínuo ou se podem somar as
separações interruptas. Parece evidente, embora haja quem entenda o contrário, que o
tempo de reconciliação inutiliza completamente o período de separação anterior – o que
mostra a ruptura do casamento é o prazo de um ano ininterrupto, consecutivo, ou seja, o
prazo contínuo corresponde ao próprio fundamento da separação de facto.
3. É uma causa bilateral - qualquer dos cônjuges pode intentar uma acção de divórcio com este
fundamento; e não é forçoso que a separação de facto tenha sido acordada. Aliás, o cenário normal é
a de um dos cônjuges decidir sair de casa.

2) Alteração das faculdades mentais: art. 1781.º/b).


1. Esta foi mais uma das causas admitidas em 1910 e retomada pela Reforma de 77.
2. O seu período mínimo de duração foi igualmente sendo reduzindo, sendo que hoje tem de durar um
ano. Para além deste requisito, têm de estar verificados outros dois: a alteração das faculdades
mentais tem de ser grave, e de tal maneira que comprometa a vida em comum, tanto no presente
como no futuro.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

3. Pode-se achar estranho que um dos cônjuges adoeça e o outro possa pedir o divórcio, em vez de lhe
dar assistência. Estas são situações delicadas, sendo que até 1998 o juiz poderia indeferir este pedido
se o divórcio agravasse o estado do outro cônjuge. Estão em causa dois interesses conflituantes, a da
preservação da saúde mental de um dos cônjuges e a de permitir ao outro libertar-se de uma situação
difícil, tendo sido esta a opção da lei. No entanto, a lei tentou equilibrar os interesses em jogo,
impondo ao cônjuge que pediu o divórcio uma obrigação de indemnização por danos não
patrimoniais resultantes do divórcio, art. 1792.º/2 (designadamente, o agravamento do estado de
saúde do outro cônjuge).
4. Não é uma causa peremptória, mas sim facultativa: a lei exige, além de uma prova de alteração das
faculdades mentais, que a alteração seja de tal maneira grave que comprometa a vida em comum.

3) Ausência sem notícias: art. 1781.º/c).


1. Mais uma vez, este foi um fundamento admitido em 1910 e retomado pela Reforma de 1977, cujo
tempo de duração mínima foi sendo progressivamente diminuído.
2. A ausência é a não presença com ausência de notícias; quando dure um ano, constitui fundamento
de divórcio.
3. Pode colocar-se a questão de saber se a situação não cabe na alínea a), que prevê a separação de
facto. Isto tem a ver com o próprio conceito da separação de facto – na ausência, não é forçoso que
exista o elemento subjectivo.

4) Qualquer facto que mostre a ruptura do casamento: art. 1781.º/d).


1. O que é a ruptura do casamento? Esta é uma pergunta difícil, sendo porém assente que o começo de
uma ruptura não é suficiente, mas também não se exige um corte radical de relações. O que tem de
haver é uma ruptura a tal ponto que se mostre que o retorno não é possível e isso torna inexigível a
subsistência do casamento.
2. Um outro ponto que se discute é como se articula esta causa indeterminada com as outras causas
determinadas: as causas determinadas funcionam como um modelo, ou seja, são situações
exemplificativas em que há ruptura. Havendo uma situação de ruptura tal que corresponde mais ou
menos ao modelo que retira das três causas determinadas, ou seja, uma situação grave como elas,
temos um facto que mostra a ruptura do casamento.
3. Há quem entenda que, estando formulada esta causa indeterminada, o próprio facto de se intentar o
pedido de divórcio funciona como um facto que mostra a ruptura do casamento, portanto a nossa lei

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

terá ido longe de mais, consagrando aqui o divórcio por mero pedido. A nossa jurisprudência
entende que não é assim, a nossa lei continua a exigir a verificação e prova de um facto objectivo que
mostre que o casamento acabou. Pode discutir-se se o facto de se pedir o divórcio mostra ou não o
fim do casamento, mas o facto é que a opção da nossa lei é outra, no sentido de dificultar mais o
divórcio. A causa vai ser então apreciada pelo juiz, no sentido de saber se os factos apresentados
mostram ou não uma ruptura do casamento.

3.4 Processo

Consta do art. 1779.º do CC e do art. 931.º e 932.º do CPC. Como corre este processo, em termos simples?
1. É deduzido um pedido de divórcio, sendo que o processo corre nos tribunais de competência
especializada, os tribunais da família e menores (se tiver competência geográfica, senão corre nos
tribunais comuns).
2. O tribunal tem de primeiro informar os cônjuges da existência e objectivos dos serviços de mediação
familiar, o que é um passo comum a todos os divórcios – art. 1774.º. Na hipótese de optarem por
estes serviços, a sua decisão implicará a suspensão da instância; e, no caso de o resultado de a
mediação ter sido a obtenção de acordos, o juiz mantém o seu poder de apreciação e de recusa de
homologação.
3. Contrariamente ao divórcio por mútuo consentimento, não foi eliminada a tentativa de conciliação (no
por mútuo consentimento, já que os cônjuges estão de acordo quanto ao divórcio, não faz sentido
tentar a conciliação). De acordo com o art. 1779.º, haverá sempre esta tentativa, já que o divórcio é
litigioso, que se traduz numa acção que é deduzida por um dos cônjuges contra o outro.
4. Falhada essa tentativa, o juiz deve em segunda via tentar que se divorciem por mútuo consentimento –
n.º 2 (como vimos, uma das hipóteses em que o divórcio por mútuo consentimento corre nos
tribunais é esta). Note-se que em qualquer fase do processo os cônjuges podem decidir divorciar-se
por mútuo consentimento. Falhando as duas tentativas, o processo continua.
5. O juiz deve tentar obter acordo entre os cônjuges nas matérias complementares; se não houver
acordo, o máximo que o juiz pode fazer é o de fixar regimes transitórios que vigoram enquanto que o
processo dura (art. 931.º/7 CPC). No antigo divórcio litigioso, o juiz podia definir estas matérias.
6. Há sempre possibilidade de contestação do divórcio pelo outro cônjuge; não o fazendo, ou se a
petição inicial prevalecer sobre os motivos da contestação, o juiz decreta o divórcio sem ter de definir
o regime daquelas três matérias complementares. Sendo este um divórcio litigioso, não está
condicionado à obtenção de acordo.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

7. Na sentença de divórcio, hoje, contrariamente ao que sucedia antes de 2008, não há qualquer
referência à culpa dos cônjuges. Anteriormente, até no divórcio por causas objectivas (por ex.,
separação de facto) se fazia referência ao grau de culpa de cada um dos cônjuges. Uma referência que
pode continuar a constar da sentença do divórcio é a indicação da data que cessou a coabitação dos
cônjuges, se estes assim o requererem, e se dos elementos trazidos para o processo resultar essa prova
– isto pode ter interesse para vários efeitos, designadamente patrimoniais.

4. Efeitos do divórcio

Generalidades

Quais os efeitos da dissolução do casamento por divórcio? O princípio geral está estabelecido no art. 1788.º: o
divórcio tem os mesmos efeitos que a dissolução por morte, salvo algumas excepções: não há efeitos sucessórios,
o cônjuge só pode manter o nome se o ex-cônjuge permitir ou o tribunal autorizar, etc. Assim, podemos
dizer que o divórcio dissolve o casamento, ou seja, extingue a relação matrimonial e faz cessar, para o futuro,
os efeitos da relação, mantendo porém os efeitos já produzidos.

A partir de que data se produzem os efeitos do divórcio?


1. A regra, ou as regras, quanto ao momento de produção dos efeitos, estão no art. 1789.º: tratando-se
de um divórcio resultante de sentença judicial, produzem-se a partir do trânsito em julgado da
respectiva trânsito em julgado; tratando-se de um divórcio administrativo, a partir do momento em
que é emitido o despacho próprio proferido pelo conservador do registo civil.
2. Isto com duas excepções:
a. A lei permite que certos efeitos do divórcio se retrotraem à data em que é apresentado o
pedido no tribunal ou conservatória, quanto aos efeitos patrimoniais (n.º 1).
b. Mas a lei não fica por aqui: no n.º 2 prevê que se a separação de facto esteja provada, os
cônjuges podem pedir que os efeitos patrimoniais retroajam à data em que cessou a
coabitação (daí o interesse em que a sentença o declare).

1. Termo da comunhão e partilha (art. 1790.º)

Em termos patrimoniais, o que acontece?


1. Com o divórcio, cessam todas as relações patrimoniais e pessoais entre os cônjuges, art. 1688.º. O

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

divórcio implica assim a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, concretamente a
liquidação do regime de bens que, no caso de ter sido um regime de comunhão, dá lugar à partilha dos
bens comuns.
2. A irrelevância do ilícito culposo conjugal no contexto do divórcio foi acompanhada da eliminação
da exigência da declaração do cônjuge culpado ou principal culpado, que influía na determinação
de alguns efeitos patrimoniais – nomeadamente, estabelecia-se que o anterior cônjuge culpado não
podia na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime
de bens adquiridos.
3. Hoje, a lei deu um passo em frente – para qualquer dos cônjuges, vale a regra de que, na partilha,
nenhum dos cônjuges casados com comunhão geral pode ficar com mais do que ficaria se se tivessem
casado com comunhão de bens adquiridos, art. 1790.º. Já que eles se divorciaram, não faz sentido
manter a comunhão geral, que pressupunha a subsistência do casamento, daí esta mutação do
regime de bens; sendo que a lei quer evitar igualmente que o divórcio se torne num negócio, num
meio legítimo de ganho. Esta solução é criticada por RITA LOBO XAVIER . Notas:
a. Só tem aplicação quando o regime de bens for o da comunhão geral, mas não implica a
substituição deste regime pelo da comunhão de adquiridos.
b. Antes, era apenas aplicável ao divórcio litigioso; hoje, parece ser de aplicar também ao
divórcio por mútuo consentimento.
c. RITA LOBO XAVIER entende poderem os ex-cônjuges, ainda assim, partilharem os bens
comuns segundo o regime convencionada por acordo, embora não possam afastar esta
consequência por convenção antenupcial.
4. A partilha não é feita obrigatoriamente, pode haver acordo. Mas pode também acontecer que a
partilha seja feita muito tempo depois do casamento, tendo a comunhão entre os cônjuges mudado
de natureza jurídica – qualquer dos contitulares pode pedir a partilha a qualquer momento, e pode
alienar a sua parte. É diferente da comunhão conjugal, mais semelhante à comunhão dos herdeiros
que ainda não fizeram a partilha (indivisão das comunhões hereditárias).

2. Destino da casa da morada de família:

Em consequência do divórcio, há normas específicas do Código Civil que regulam estes efeitos. Essas normas
são o art. 1393.º e o art. 1105.º: o primeiro refere-se à hipótese de casa própria ou comum a ambos; o segundo
à hipótese de viverem em casa arrendada.
1. Art. 1793.º: destino de casa própria ou comum.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

a. Lembre-se que há sempre a possibilidade de chegarem a acordo sobre o destino (quer no


divórcio por mútuo consentimento, quer no sem consentimento de um dos cônjuges). Não
havendo acordo, pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges a casa, a seu
pedido, tendo em conta as necessidades do cônjuge e dos filhos. Quanto à situação
patrimonial dos cônjuges, trata-se de saber quais são os rendimentos de um e outro, uma vez
decretado o divórcio, assim como os respectivos encargos; e, no que se refere ao interesse do
filho, com qual dos cônjuges este ficou a residir e se é do interesse dele viver na casa do casal.
No entanto, haverá ainda que considerar outros aspectos relevantes, como a idade e o estado
de saúde dos cônjuges, a localização da casa, etc.
b. É o tribunal que constitui este contrato de arrendamento, ou seja, o contrato resulta não de um
acordo entre as partes mas de uma decisão judicial, uma situação anómala. Todas as
condições do contrato são definidas pelo juiz, podendo, por ex., fixar uma renda inferior à
normal tendo em conta as necessidades especiais de um dos cônjuges e seus filhos.
c. Tal como é o juiz que cria a relação de arrendamento, também em princípio pode o contrato
ser "caducado" (n.º 2; o Professor entende ser mais correcto falar em resolução) a
requerimento do senhorio, ou seja, o juiz pode fazer cessar o contrato.
2. Art. 1105.º: destino de casa arrendada.
a. Tal como na outra hipótese, também aqui podem chegar a acordo quanto à transmissão do
direito de arrendamento (se este pertencer a um deles) ou à sua concentração (se o direito de
arrendamento pertencer a ambos).
b. Não chegando a acordo, o cônjuge que tenha mais necessidade da casa pode pedir ao
tribunal que o direito ao arrendamento se transfira ou se concentre nele.
c. Quer a concentração ou transmissão seja decidida por acordo, quer seja imposta por decisão
judicial, esta é imposta ao senhorio, contrariando a regra geral que exige o consentimento do
senhorio. Este é um casos excepcional em que o senhorio não pode opor-se a uma
transmissão ou concentração da posição do arrendatário. Isto já resultaria do espírito geral,
porém o n.º 3 confirma isto, dizendo que basta a simples notificação.

3. Termo das ilegitimidades

Do casamento resultam certas ilegitimidades conjugais, ou seja, limitações à liberdade de alienação e


administração. Estas limitações deixam de existir a partir da dissolução do casamento. Com efeito, com o
trânsito em julgado da sentença, se o regime de bens era o da comunhão, deixa de haver um património

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

comum como património colectivo, ficando a situação idêntica à da herança indivisa – cada um dos
cônjuges pode dispor da meação, bem como pedir a separação das meações.

4. Perda de direitos sucessórios

Quer no âmbito da sucessão legal, que resulta da lei, quer no de sucessão testamentária, que resulta do
testamento, a consequência do divórcio é a perda de direitos sucessórios:
1. Sucessão legal: resulta do art. 2133.º/3.
2. Sucessão testamentária: resulta do art. 2317.º/d).

5. Perda de benefícios feitos pelo outro cônjuge ou terceiro

Se o cônjuge recebeu, do outro cônjuge ou de terceiro, liberalidades ou benefícios em vista do casamento ou


em consideração do estado de casal, essas liberalidades perdem-se – caducam ou, havendo doação, são
revertidas, art. 1791.º.
1. Este preceito abrange as doações entre esposados, entre vivos ou por morte, em vista do futuro
casamento, as doações feitas por terceiro em vista do casamento, as doações entre cônjuges, as
doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do
beneficiário, e as deixas testamentárias com que um cônjuge tenha beneficiado o outro.
2. Também aqui houve uma alteração da redacção pela Reforma de 2008: antes da reforma, apenas o
cônjuge considerado culpado ou mais culpado perdia os benefícios. Tendo a culpa sido eliminada
do regime do divórcio, qualquer dos cônjuges perde estes benefícios.
3. As doações para casamento ou doações entre esposados caducam nos termos da lei – arts. 1760.º e
1766.º. Por lapso, o legislador não eliminou aqui as referências à culpa, pelo que estas devem assim
ser revogadas (interpretação revogatória).

6. Obrigação de alimentos

Este é um problema cada vez mais discutido, dado o crescente número de divórcios e segundos casamentos.
Está previsto nos arts. 2016.º e 2016.º-A. O art. 2016.º/1 consagra o princípio de que cada cônjuge, depois do
divórcio, deve prover à sua subsistência, o que já resultaria do art. 2004.º/2. Esta norma deve ser interpretada
no sentido de que cada um dos cônjuges deve prover à sua subsistência se tiver possibilidades de o fazer –
assim, enquanto não conseguir encontrar fonte de rendimento, poderá ter direito a alimentos do outro, mas

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

esta é em regra uma situação transitória. Esta ideia do carácter temporário do direito a alimentos estava no
projecto inicial da Reforma de 2008, mas não ficou consagrada – talvez por haver situações excepcionais em
que o cônjuge, dada a sua idade avançada, poderá não conseguir arranjar fonte de rendimentos. Resumindo:
enquanto razoavelmente o cônjuge não conseguir obter fonte de rendimento terá direitos a alimentos, mas esta
será uma situação transitória.

Subjacente à Reforma de 2008, está a concepção da obrigação de alimentos, não como um dever de
solidariedade pós-conjugal, mas como uma prestação compensatória – um dos cônjuges, o
patrimonialmente mais forte, pode ser obrigado a realizar uma prestação a favor do outro, para lhe permitir
recomeçar uma nova vida após o fracasso matrimonial anterior. É nesta linha que a lei manda atender, por
exemplo, à duração do casamento na fixação dos alimentos.

- Quem deve prestar alimentos a quem?


1. Sabemos que foi eliminado o critério da culpa – o cônjuge culpado estava obrigado a dar alimentos
ao outro. Assim, o n.º 2 vem dizer que qualquer dos cônjuges tem direito a alimentos.
2. Todavia, pode haver situações em que isto é um pouco chocante, por exemplo, o marido bate
sistematicamente na mulher, divorciam-se, e a mulher fica obrigada a prestar alimentos. Daí o n.º 3,
que diz que, por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser negado.

- Como se estabelecem os alimentos? Os alimentos podem ser definitivos ou provisórios.


1. Tratando-se de alimentos provisórios:
a. No divórcio por mútuo consentimento, terão os cônjuges de acordar sobre eles.
b. No divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, podem ser pedidos na pendência da
acção (art. 384.º Código Processo Civil) ou fixados pelo juiz (art. 931.º/7 CPC).
2. Tratando-se de alimentos definitivos:
a. Pode resultar de um acordo entre os ex-cônjuge, que não é mais do que um negócio jurídico,
sujeito às regras gerais do art. 2014.º.
b. Pode nascer de um acordo entre os ex-cônjuges em vista de um divórcio por mútuo
consentimento.
c. Pode assentar num acordo, estimulado pelo juiz, em processo de divórcio sem
consentimento de um dos cônjuges (art. 931.º/2 CPC).
d. Pode resultar de uma decisão do tribunal sobre um pedido acessório do pedido de divórcio
sem consentimento, ou em processo comum autónomo, quando a obrigação de alimentos

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

surgir posteriormente.

- Qual o montante dos alimentos?


1. Numa orientação restritiva, o montante dos alimentos será os indispensável ao sustento, vestuário e
habitação – é isto que vale para as regras gerais dos alimentos, art. 2003.º. Por outro lado, segundo
outra orientação, o montante de alimentos deve ser o suficiente para procurar manter ao ex-cônjuge
o nível de vida que levava antes do divórcio.
2. O legislador veio rejeitar a segunda orientação em relação aos alimentos do divórcio, art. 2016.º-A,
n.º 3. Assim, deve entender-se que o montante não é tanto que tenha de corresponder ao nível de vida
que ambos levavam, mas também não será apenas o estritamente necessário para garantir a
sobrevivência do credor de alimentos – uma vez que o art. 2016.º-A, n.º 1, manda atender a uma série
de outros factores na fixação do montante. Daqui se pode concluir que o montante estará num
patamar intermédio entre a manutenção do nível de vida e a sobrevivência.
3. Deve conjugar-se o direito a alimentos com outras disposições: por ex., no dever de assistência, o
cônjuge teria direito a um crédito compensatório. Os dois créditos - compensatório e de alimentos -
deve ser articulado de duas formas. Se já recebeu crédito compensatório, terá direito a menos
alimentos. Houve uma mudança do espírito do direito a alimentos: antes, era visto como uma
espécie de "esmola". Hoje, sobretudo em relação aos alimentos na sequência do divórcio, fala-se na
ideia de compensar um dos cônjuges pelo facto de não ter meios de subsistência e essa
independência económica resultar do divórcio. Tende a ser visto mais como uma compensação, e
não como uma pura assistência.

- Como se prestam os alimentos?


1. O regime supletivo constante do art. 2005.º é o de que os alimentos serem prestados mensalmente.
Mas pode não ser assim; podem os cônjuges acordar ou o tribunal decidir por outra forma.
2. Dentro das outras formas possíveis, hoje assiste-se a uma tendência no sentido de substituição dos
alimentos mensais pela entrega de um só montante, o pagamento em capital. Qual o pensamento que
subjaz a esta tendência? A lei quer que o divórcio seja limpo (é a ideia de clean break), evitando
conflitos, logo faz-se um pagamento inicial por forma a procurar cortar de vez as relações
económicas entre os ex-cônjuges. Mas a verdade é que não é bem assim: o regime geral diz-nos que,
havendo alteração das circunstâncias, o direito a alimentos pode ser revisto (art. 2012.º) logo o
pagamento em capital não extingue a obrigação (será uma simples forma de pagamento).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

- Indisponibilidade: o que significa dizer que os direitos a alimentos são indisponíveis?


1. Significa, desde logo, que não podem ser transmitidos (intransmissibilidade); não são renunciáveis
(irrenunciabilidade); e não são susceptível de penhora (impenhorabilidade). Isto é assim para os
elementos em geral, art. 2008.º.
2. Porém, quanto aos alimentos prestados na sequência do divórcio, só são rigorosamente
indisponíveis na parte em que visem garantir a sobrevivência. Tudo o que exceda esse montante, o
que pode suceder, já é susceptível de disposição.

- Qual a garantia do cumprimento da obrigação?


1. O credor de alimentos pode constituir hipoteca legal para garantir o seu crédito, que incidirá sobre
qualquer bem do devedor, art. 755.º/d). Também se admite a hipoteca judicial (art. 710.º). Ainda
segundo as regras gerais, pode o credor requerer arresto dos bens do devedor (art. 619.º), e pode ser
exigida a prestação de caução (art. 624.º).
2. Em caso de incumprimento, o Código de Processo Civil fixa um processo de execução especial por
alimentos, art. 933.º e segs.
3. O Código Penal pune o pagamento pontual das obrigações de alimentos (art. 250.º).

- Como cessa a obrigação de alimentos?


1. Desde logo, aplicam-se razões gerais que justificam a cessação da obrigação de quaisquer alimentos,
previstas no art. 2013.º: morte do credor, morte do devedor; ausência de necessidade do credor ou
façta de possibilidades do devedor (já não se aplicará a terceira causa geral prevista).
2. O art. 2019.º prevê hipóteses suplementares para o caso de os alimentos entre cônjuges ou ex-
cônjuges:
a. Celebração de novo casamento ou constituição de união de facto.
b. Comportamento moral indigno do credor – esta é uma hipótese algo estranha, devendo
entender-se como um critério auxiliar de aplicação.

7. Obrigação de indemnização

O art. 1792.º/2 diz-nos que o cônjuge deve indemnizar o outro pelos danos não patrimoniais resultantes do
divórcio, mas apenas quando este seja intentado com fundamento em alteração das faculdades mentais. Este
pedido deve ser intentado na própria acção de divórcio, ficando assim precludida ao lesado a possibilidade
de pedir a indemnização depois de transitada em julgado a sentença. Antes da Reforma de 2008, também o

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cônjuge declarado único ou principal culpado tinha esta obrigação de indemnizar, para além do cônjuge
que intentou o divórcio com fundamento em alteração das faculdades mentais.

Além disto, o n.º 1 diz-nos que, em geral, o cônjuge lesado tem direito a pedir a reparação dos danos não
patrimoniais causados pelo outro cônjuge. Embora isto seja discutido, deve entender-se que estes danos
indemnizáveis são apenas os danos resultantes da violação de direitos que os cônjuges já tinham
independentemente de serem casados – não está em causa a violação de deveres especificamente conjugais,
como o dever de infidelidade ou coabitação, mesmo que esta traga danos. Há alguns autores que entendem
que também os danos resultantes da violação de deveres conjugais devem ser indemnizáveis, sendo que os
tribunais oscilam num sentido ou no outro. PEREIRA COELHO entende que não faz muito sentido haver uma
dever de indemnização no caso de violação de deveres conjugais.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

DIREITO DA FILIAÇÃO

A. Generalidades

1. Princípios fundamentais

1.1 Princípios constitucionais

O art. 36.º da CRP, que já conhecemos, contém princípios fundamentais do direito da família, sendo os mais
relevantes para o estabelecimento da filiação:
1. Direito de constituir família;
2. Não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento;
3. Protecção da adopção;
4. E ainda a protecção da família, protecção da maternidade e paternidade, e protecção da infância.

Além destes, há outros princípios constitucionais na matéria da filiação:


1. O direito à identidade pessoal: uma das dimensões a deste princípio é o direito à historicidade
pessoal, significando por isso o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores e à
“localização familiar”.
2. Também o direito ao desenvolvimento da personalidade tem alguns reflexos nesta matéria.

1.2 Outros princípios

Fora dos princípios constitucionais, encontramos outros.


1. Princípio da taxatividade dos meios de estabelecimento da filiação: a maternidade e paternidade
apenas se estabelecem pelos meios expressamente previstos na lei, com exclusão de quaisquer
acordos privados através dos quais se pretenda constituir vínculos diferentes ou com fundamentos
diferentes.
2. Princípio da primazia da verdade biológica: tanto quanto possível, no estabelecimento da filiação
deve procurar saber-se quem são os pais biológicos, que devem ser os pais jurídicos. Assim, em
princípio a filiação jurídica deve corresponder à filiação biológica: o sistema de estabelecimento da
filiação pretende que os vínculos biológicos tenham uma tradução jurídica fiel, devendo este

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princípio guiar o intérprete na aplicação das normas e na integração de eventuais lacunas. Isto não é
assim em todos os sistemas: entre nós, não o era antes de 1977; e continua a não ser este o princípio,
por exemplo, do direito italiano e francês, que por vezes fecham os olhos à realidade biológica uma
vez que este não é o único interesse a merecer respeito (por exemplo, pode ceder perante a
estabilidade da família).
3. Princípio do primado do interesse do filho: sobretudo nas questões dos efeitos da filiação (exercício
das responsabilidades parentais), o que interessa é o interesse dos filhos, não os interesses
particulares dos cônjuges.

Estes princípios são princípios que foram consagrados, na nossa lei, sobretudo a partir da Reforma de 77.
Antes da reforma, havia várias situações em que a lei admitia que podia haver um pai jurídico distinto do
biológico. Esta alteração pode ver-se em dois aspectos:
1. Acção de impugnação da paternidade presumida: era muito difícil impugnar-se a paternidade
presumida, pois só poderia fazê-lo o próprio marido enganado. O próprio filho não podia intentar
uma acção de impugnação de paternidade presumida.
2. Acção de investigação da paternidade: também a acção de investigação de paternidade só podia ser
intentada se se verificassem certos pressupostos de admissibilidade; hoje, é muito fácil intentar esta
acção.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

B. O estabelecimento da filiação

1. Noções preliminares

1.1 Período legal de concepção

A determinação do momento da concepção do filho pode ser juridicamente relevante, para vários efeitos. A
contrário do parto, que é um facto ostensivo e testemunhado, a concepção é um facto secreto; assim, os
sistemas jurídicos tiveram de encontrar um instrumento que permitisse resolver os problemas em que o
momento da concepção releva – o período legal da concepção. Como a gestação costuma demorar um tempo
mínimo de 180 dias e um tempo máximo de 300 dias, estabeleceu-se uma presunção de que a gestação ocorre
nos 120 dias dos 300 dias que antecedem ao nascimento. Isto inclui duas presunções:
1. A primeira é a presunção de que a concepção ocorreu nos primeiros 120 dias dos 300 dias. Esta é
apenas uma presunção que pode, mediante acção própria, ser afastada por prova em contrário,
provando uma gestação excepcionalmente longa ou curta. (art. 1800.º).
2. Também se presume que a concepção ocorreu em qualquer dos 120 dias. Mais uma vez, pode-se
provar que a concepção ocorreu num período específico desses 120 dias (por exemplo, por os
cônjuges só terem coabitado num dado período). Esta prova só passou a ser admitida após a Reforma
de 1977: antes, valia a regra da indivisibildiade dos 120 dias, acompanhada de uma presunção de que
o filho tinha nascido no momento que lhe fosse mais favorável (favorecendo a legitimidade). A
alterações desta solução justifica-se por uma tendência para o respeito da verdade biológica, apoiada
no progresso da ciência, ao mesmo tempo que o favorecimento da legitimidade perdeu terreno para
a preocupação de não discriminar os filhos nascidos fora do casamento.

PEREIRA COELHO discute se qual o meio processualmente idóneo para exercitar a fixação do momento
provável da concepção, ou seja, se o art. 1800.º exige ou não uma acção judicial autónoma para o efeito.
Conclui que não é forçoso que haja uma acção judicial autónoma, devendo a forma de processo ser a mais
adequada aos interesses que se querem fazer valer, sendo que se podem identificar três grupos de casos em
que esta prova é relevante:
1. Pode interessar como simples prova numa acção de estado típica (ex: impugnação da paternidade do
marido);
2. Pode constituir causa decisiva de um pedido exclusivamente patrimonial (ex: habilitação de um
nasciturno como sucessor legítimo);

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3. Pode ainda resolver o litígio acerca da verificação de um requisito de que depende a presunção legal
da paternidade do marido (reconduzindo-se a uma rectificação do registo).

1.2 Sistemas de filiação e sistemas de reconhecimento

Em abstracto, há dois sistemas de estabelecimento de filiação:


1. Sistema de filiação: uma vez provada uma relação de filiação biológica, está automaticamente
constituída a relação jurídica de filiação. É mais ou menos este sistema que vale entre nós para a
maternidade.
2. Sistema de reconhecimento: é necessário mais qualquer coisa além da prova da relação biológica – ou
que o próprio progenitor reconheça que é pai, ou que haja uma acção judicial, que é de certa forma
condicionada. Este é o sistema que vigora entre nós para a paternidade.

2. Estabelecimento da maternidade

2.1 Generalidades

Já vimos que o sistema de estabelecimento da maternidade é o sistema de filiação: a maternidade é entendida


como uma simples decorrência do puro facto biológico que é o parto (art. 1796.º/1) – este facto é levado ao
conhecimento do registo civil, que considera a parturiente como a mãe do filho que nasceu, sem que esta
tenha de intervir. As razões que sustentam este regime são:
1. Respeito incondicional pelo direito do filho ao estabelecimento dos vínculos;
2. Um sentimento forte de auto-responsabilização social e familiar;
3. Respeito absoluto pela verdade biológica.

Também seria possível, e é isto que sucede noutros ordenamentos, um sistema de reconhecimento: a mãe só
se torna juridicamente mãe se praticar um acto autónomo de reconhecimento do filho, o que possibilita que
esta rejeite o seu estatuto de mãe. Esta orientação tem o propósito de evitar que as mulheres grávidas
interrompam a sua gravidez sempre que não possam ou não queiram assumir o estatuto da maternidade.

Antes da Reforma de 1977, qual era o sistema adoptado?

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1. Valia o primeiro quanto ao estabelecimento da maternidade das mulheres casadas, uma vez que os
seus filhos tinham de ser considerados filhos legítimos delas e dos seus maridos, sem que se pudesse
fazer qualquer declaração em contrário.
2. Valia o segundo quanto ao estabelecimento da maternidade das mulheres solteiras, que tinham de
praticar um acto juridicamente autónomo de perfilhação.

São três – e apenas três, na linha do princípio da taxatividade – as formas de estabelecimento da


maternidade:
1. Menção ou indicação da identidade da mãe no registo de nascimento;
2. Declaração de maternidade;
3. Reconhecimento judicial da maternidade.

2.2 Menção ou indicação da identidade da mãe no registo de nascimento

Esta forma de estabelecimento está prevista no art. 1803.º e segs. No formulário da conservatória do Registo
Civil da declaração de nascimento, é necessário indicar-se a identidade da mãe, e esta indicação é suficiente
para que o conservador faça menção do nome da mãe no assento de nascimento e para que fique
automaticamente estabelecida a filiação (art. 1803.º). Não é necessário que esta indicação seja feita pelos pais,
pode ser feita por qualquer pessoa.

Nos termos do art. 1804.º, se o nascimento tiver ocorrido há menos de um ano, a maternidade considera-se
estabelecida, restando notificar a mãe deste facto, se não tiver sido ela ou o marido a fazer a declaração.

No entanto, se a declaração ocorrer mais de um ano depois do nascimento, o legislador entende que a
anormalidade da situação impõe certas cautelas, pois a indicação pode não ser certa. Rege aqui o art. 1805.º:
1. Se for a própria mãe a declarante, a lei considera que a maternidade fica estabelecida – apesar de ter
decorrido muito tempo sobre o nascimento, a mãe tem condições para corroborar o vínculo.
2. Mas no caso de a declaração ser apresentada por outras pessoas, é necessário confirmação,
notificando a pessoa que é notificada como mãe para esta ter a possibilidade de se opor; o seu
silêncio valerá, porém, como concordância. Se a mulher indicada como mãe negar a maternidade,
ou se não se conseguir notificar, a menção da maternidade não chega a ser convertida em
estabelecimento da maternidade e fica sem efeito.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

2.2 Declaração

Pode acontecer que no registo de nascimento seja omisso quanto à identidade da mãe: nestes casos, o art.
1806.º diz-nos que o meio para desencadear o estabelecimento da maternidade é a declaração de maternidade
feita pela própria mãe (n.º 1, 1ª parte), ou a indicação ou identificação da mãe, feita por outra pessoa (n.º 2).
Se a declaração for feita por terceiro e de o nascimento tiver ocorrido há mais de um ano aplica-se o regime
do art. 1805.º.

Apesar de o modo normal de declaração ser a declaração feita perante o funcionário do registo civil, a
declaração pode também ser feita por testamento, escritura pública ou termo lavrado em juízo.

Em casos especiais, a lei veda a inscrição tardia do nome da mãe, quer através de declaração, quer através de
indicação por terceiro (n.º 1, 2ª parte): quando o registo é omisso quanto à maternidade e contém uma
perfilhação, e a mãe é casada com um homem diferente do perfilhante. Nestes casos, o estabelecimento da
maternidade tem de ser feito através de uma acção judicial, art. 1824.º. A razão de diferença do regime está no
problema que o estabelecimento da maternidade geraria: ao funcionar a presunção de paternidade do
marido, gerava-se um conflito de paternidades. Já houve tempos em que o funcionamento da paternidade do
marido afastava a do perfilhante; porém, hoje não se aceita esta solução em nome do primado da verdade
biológica, pelo que é necessário uma acção judicial, em que se chame todos os interessados e se apresente as
provas convenientes. Nesta acção, abre-se a possibilidade de se impugnar a paternidade do marido (1824.º/2
e 1823.º), o que, tendo êxito, deixa de pé a perfilhação que já constava do registo.

2.3 Impugnação da maternidade registada

A veracidade do estabelecimento da maternidade está sujeito a um controlo posterior, através da acção de


impugnação da maternidade – art. 1807.º. Trata-se de um meio de ataque da maternidade estabelecida,
independentemente dos vícios que possam ter afectado o meio utilizado para levar a maternidade ao registo e
possam originar uma acção autónoma de invalidação.

Notas:
1. O direito de impugnar a maternidade não caduca, podendo esta acção ser intentada a todo o tempo.
O interesse público da coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica sobrepõe-se às
exigências de segurança e estabilidade das situações familiares adquiridas.

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2. Tem legitimidade activa:


a. O Ministério Público, o que manifesta o interesse do Estado no estabelecimento da filiação
biológica. No entanto, é duvidoso que seja sempre justificado a prevalência deste interesse e
a impugnação oficiosa sem limites.
b. A pessoa declarada como mãe, logo permite-se a impugnação à própria pessoa indicada no
registo.
c. O filho.
d. Qualquer outra pessoa com interesse moral ou patrimonial na procedência da acção:
enquanto que se presume que os outros três sujeitos têm interesse na acção, estes terão de
provar e alegar o seu interesse. Inclui-se aqui, sem dúvida, aquela que se declarar como mãe
do registado.

2.4 Averiguação oficiosa da maternidade

O processo de averiguação oficiosa da maternidade está previsto nos arts. 1808.º e segs: como a expressão o
sugere, há uma averiguação a cargo das autoridades públicas da maternidade, sempre que no registo não se
mencione a identidade da mãe. Na sequência deste processo, pode suceder que:
1. O tribunal não descobre e o processo é arquivado;
2. O tribunal fica com uma suspeita ou uma convicção de que certa pessoa é mãe. Se chegar a esta
suspeita ou convicção, deve ser chamada essa pessoa para confirmar a maternidade.
a. Se confirmar, é lavrado um termo de declaração de maternidade.
b. Se não confirmar e mesmo assim o tribunal continuar convencido, o n.º 4 diz que o processo
é remetido para o Ministério Público, que vai intentar a acção de reconhecimento judicial da
paternidade.

Assim, este processo não é uma forma autónoma de estabelecimento da paternidade – na sua sequência, pode
vir a paternidade a ser estabelecida através da declaração de maternidade ou através do reconhecimento
judicial.

Há dois casos em que não é iniciada esta averiguação oficiosa, art. 1809.º:
1. Hipótese de filhos incestuosos, alínea a). Não se proíbe exactamente a averiguação oficiosa, mas
apenas a acção no fim que é intentada pelo Ministério Público, já que se pressupõe que houve
alguma averiguação para saber quem é a mãe.

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2. Hipótese de ter decorrido dois anos sobre a data do nascimento, alínea b). A lei não ocupa os
recursos do Estado em averiguar a maternidade de filhos nascidos há muito tempo.

2.4 Reconhecimento judicial da maternidade

O reconhecimento judicial da maternidade é o terceiro modo de estabelecimento da maternidade, previsto no


art. 1814.º e segs. Notas:
1. Não pode promover-se o estabelecimento judicial da maternidade contra uma mulher se,
porventura, o registo de nascimento exibir uma outra pessoa como mãe (art. 1815.º): se há uma
maternidade estabelecida, ela é verdadeira até que seja impugnada através da acção de impugnação da
maternidade.
2. Segundo o art. 1814.º, o estabelecimento da maternidade tem de resultar de acção especialmente
intentada para esse efeito, o que significa que não pode haver reconhecimento judicial da maternidade
em incidente de outra acção.

- Quem tem legitimidade activa para esta acção? Tanto a acção de investigação de maternidade, tanto a de
investigação de paternidade, são concebidas pelo legislador como acções propostas pelo (i) filho que,
suspeitando que o seu pai ou mãe é certa pessoa, intentam esta acção. É este o espírito que subjaz estas acções
– art. 1814.º. Se isto é verdade, todavia há situações especiais em que podem outras pessoas intentar estas
acções:
1. Art. 1822.º/2: no caso do filho ser menor e for nascido na constância do casamento da pretensa mãe,
como há uma presunção de paternidade do filho nascido do casamento, pode o (ii) marido da mãe
ter interesse em propor esta acção. O marido da mãe tem interesse em que fique esclarecida a
situação, daí sua a legitimidade activa. A lei manifesta aqui a preocupação de trazer a juízo todos os
interessados no esclarecimento dos vínculos de filiação.
2. Art. 1824.º: prevê uma acção especialíssima, em que a (iii) própria mãe pode intentar uma acção
contra si própria, nos casos do art. 1806.º/1, 2ª parte: na hipótese de mais tarde a mãe querer perfilhar
e existir perfilhação por pessoa diferente do marido, a lei impede a mãe de fazer uma declaração de
maternidade, já que isto iria desencadear o tal conflito.
3. Havendo processo para averiguação oficiosa, se o tribunal chegar a um suspeita séria e a mãe não
quiser fazer uma declaração e maternidade, em último termo o tribunal deverá remeter o processo
para o (iv) Ministério Público, que deverá intentar esta acção – art. 1810.º.

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- Qual o objecto da prova? Vai-se provar que o filho nasceu da pretensa mãe (art. 1816.º/1). A doutrina
aponta que a maternidade, como é um facto exterior, se prova por dois factos: prova do parto e prova da
identidade da parturiente. Quando seja possível a prova directa por meios científicos, dispensa-se a prova
destes dois factos. Em casos em que haja dificuldade em provar a identidade da parturiente (a prova do
nascimento é, em regra, fácil), a lei prevê no art. 1816.º/2 certos factos que funcionam como presunções de
maternidade no âmbito da acção judicial, que podem ser ilididas quando existam dúvidas sérias sobre a
maternidade (n.º 3).
1. "Posse do estado de filho": apesar de não ser filho juridicamente, já tem a posse de estado de filho.
Esta posse de estado é densificada pelos autores, estabelecendo-se três critérios cumulativos:
a. A mãe reputa-o como filho – nomen;
b. A mãe trata-o como filho – tractatus;
c. O público considera-o como filho daquela mãe – fama.
2. Existir uma carta ou outro escrito em que a pretensa mãe declara inequivocamente a maternidade.

- Qual o prazo para a propositura desta acção? Os prazos constam do art. 1817.º:
1. O prazo regra consta do n.º 1: enquanto o investigante for menor, ou nos 10 anos posteriores à
maioridade (até aos 28 anos).
2. Mas pode suceder que só mais tarde o investigante venha a obter elementos que levantem suspeitas
sobre a identidade da mãe. Assim, o n.º 3, alínea c), diz que a acção pode ainda ser proposta nos 3
anos seguintes ao conhecimento destes factos.
3. Outros prazos ainda:
a. N.º 2: quando constar do registo de nascimento uma maternidade diferente daquela que se
pretende estabelecer, a acção só será permitida depois de se ter afastado esse “registo
inibitório” – art. 1815.º. O prazo é de 3 anos contados a partir da rectificação do registo.
b. N.º 3, al. a): quando tiver sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do
investigante, a acção pode ser intentada nos 3 anos posteriores a esse facto.
c. N.º 3, al. b): o investigante pode intentar a acção nos 3 anos posteriores à cessação do
tratamento pela pretensa mãe. Refere-se aos casos em que um filho, beneficiando de actos de
tratamento do pretenso progenitor, não tem condições para intentar uma acção contra ele,
ou seja, encontrava-se num estado de impossibilidade moral de agir. Esta inibição
desaparece quando a suposta mãe termina os actos de tratamento.

- A questão da constitucionalidade dos prazos: o art. 1817.º é uma norma é comum à acção de investigação

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

de paternidade – como esta acção é muito mais frequente, a questão dos prazos foi bastante discutida. A
partir de 1988, a fixação pela lei de prazos curtos começou a levantar dúvidas quanto à sua
inconstitucionalidade, tendo no entanto o Tribunal Constitucional deliberado sempre no sentido da
compatibilidade das normas com os princípios constitucionais. Tradicionalmente, apontavam-se três ordens
de razões que justificavam a imposição de prazos para estas acções:
1. Se o filho pudesse sempre intentar uma acção, o pretenso pai ou mãe estariam sempre numa situação de
insegurança, sob a ameaça de ver a paternidade reconhecida.
2. Se fosse possível intentar estas acções muito depois do nascimento, seria muito difícil fazer a prova,
pois há o risco de perda ou envelhecimento de provas.
3. Imaginemos que há um filho que sempre soube que dada pessoa é o seu pai ou mãe, mas nunca
intentou uma acção. Quando o pai ou mãe estão prestes a morrer, o filho vai intentar uma acção para
ver se consegue receber a herança. A lei, através dos prazos, pretende evitar estas situações de
utilização de acções como "caça de fortunas".

Todavia, com o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, e com a
introdução, pela Revisão de 1997, do direito fundamental à identidade pessoal, o quadro começou a mudar
de figura. Os interesses tradicionais que sustentaram as restrições ao direito fundamental de investigar a
maternidade e, sobretudo, a paternidade, começaram a perder força:
1. O argumento da insegurança perdeu sentido: em primeiro lugar, estão aqui em causa interesses
pessoais; mas, sobretudo, se o pai ou mãe sentem insegurança, é porque porventura são mesmo mãe
ou pai, e aí têm o dever de declarar a maternidade ou perfilhar. Se não têm a consciência de poderem
ser declarados progenitores, não se sentem inseguros.
2. O argumento do risco do envelhecimento das provas perdeu também a sua pertinência: este é um
risco do próprio investigante; e, hoje em dia, há uma generalização das provas científicas.
3. O argumento da caça às heranças continua a ser o mais pertinente, mas também pode ser afastado:
verifica-se que na maior parte dos casos a motivação do filho é, efectivamente, a de esclarecer a
existência do vínculo familiar, e não pretensões familiares. Porém, mesmo que haja este risco de o
estabelecimento tardio ser uma forma de caçar fortunas, pode ser afastado de outra forma – o filho
poderia intentar a acção a todo o tempo, mas o estabelecimento da filiação não teria efeitos
sucessórios. Em casos-limite, poderia afastar-se a eficácia patrimonial do estabelecimento do vínculo

Assim, na sequência de vários acórdãos do TC, este acabou por, num acórdão de 2005, declarar o prazo de 2
anos inconstitucional por violação do princípio à identidade pessoal (onde se inclui o direito a saber de quem

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

se é filho). Este acórdão declarou inconstitucional o prazo de 2 anos, mas não fixou qualquer prazo, pelo que
houve um período, entre 2006 e 2009, no qual o prazo de 2 anos tinha sido declarado inconstitucional mas
não se sabia qual o prazo que deveria valer. Só mais tarde, em 2009, através da Lei 14/2009, é que se veio fixar
o novo prazo de 10 anos.

Apesar de este prazo ser muito maior, continua a discutir-se, quer nos tribunais civis quer no Constitucional,
a constitucionalidade da simples imposição de um prazo destas acções: porque é que a lei tem de fixar um
prazo para as pessoas descobrirem de quem são filhas? O TC já se pronunciou em sede de fiscalização
concreta no sentido da constitucionalidade do prazo de 10 anos. No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça
não está a aplicar estes prazos, admitindo as acções de investigação da maternidade e da paternidade a todo
o tempo.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

3. Estabelecimento da paternidade

Também aqui há 3 formas de estabelecimento:


1. Presunção de paternidade do marido da mãe – presunção pater is est, art. 1826.º;
2. Acto unilateral e voluntário mediante o qual o pai reconhece a paternidade – perfilhação;
3. Acção judicial intentada em princípio apenas pelo filho – acção de investigação da paternidade.

3.1 Presunção pater is est

- Noção, fundamento e âmbito

Segundo o art. 1826.º, presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe
tem como pai o marido. Esta norma foi introduzida pela Reforma de 1977, assentando a presunção numa
forte probabilidade do que geralmente acontece; mas não era esta a regra do legislado de 1966. A presunção
que valia era uma presunção de legitimidade: a presunção de paternidade era um efeito do casamento e não
um facto, com vista à generalização do estatuto de filho legítimo.

Qual o âmbito de aplicação desta presunção? Esta aplica-se aos seguintes casos (art. 1826.º):
1. Filho concebido e nascido durante o matrimónio;
2. Filho nascido durante o matrimónio, mas concebido antes;
3. Filho concebido durante o matrimónio, mas nascido depois (o casamento dissolveu-se);

No entanto, parece ser de aplicam também à hipótese especial de o filho ser concebido antes do casamento da
mãe, a mãe ter casado e pouco tempo depois o casamento se ter dissolvido, tendo o filho nascido depois do
casamento. Embora a concepção e o nascimento não tenham ocorrido durante o casamento, dado a sua curta
duração, parece que a presunção também se aplica a estes casos, por analogia.

Esta disposição tem de ser vista em articulação com o art. 1798.º, que fixa o período legal de concepção, para
sabermos se o filho foi concebido ou não durante o casamento.

Qual o fundamento da presunção da paternidade?


1. Em primeiro lugar, seria inviável e inconveniente – pela multiplicação de processos e mobilização

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excessiva de recursos de biologia forense, bom como pelo escrutínio sistemático da fidelidade das
mulheres – pretender a aquisição generalizada da certeza biológica nos tribunais.
2. Por outro lado, é normal que os filhos nascidos do casamento da mãe sejam filhos do seu marido,
não só por haver um dever de coabitação e fidelidade, mas sobretudo porque a realidade mostra que
existe uma relação de coabitação e fidelidade. As estatísticas mostram ainda que os filhos nascidos no
casamento da mãe são filhos do marido. Assim, esta presunção funda-se num juízo de normalidade,
das experiências comuns, que por sua vez implica um juízo de probabilidade.

A propósito deste fundamento, pode perguntar-se porque é que a lei não estendeu esta presunção à união de
facto: tal como estabeleceu uma presunção para o marido da mãe, poderia tê-lo feito para a união de facto,
uma vez que também aqui existe uma relação de coabitação e fidelidade sendo conforme aos juízos de
experiência comum que os filhos nascidos de uma mulher em união de facto são também do seu
companheiro. PEREIRA COELHO defende assim que, no plano do direito constituído, se justificaria o
alargamento da presunção à união de facto, rejeitando os seguintes argumentos:
1. O facto de haver um dever no de coabitação e fidelidade no casamento mas já não na união de facto é
irrelevante, uma vez que a realidade mostra que há esta relação na união de facto.
2. A falta de rigor dos limites da união de facto também não é um argumento decisivo, uma vez que
também podem haver dúvidas quando ao funcionamento da presunção dentro do casamento (por
exemplo, quando cessou a coabitação conjugal).

Esta é apenas uma presunção, pelo que pode ser afastada por prova em contrário (não é bem uma prova em
contrário neste caso, como iremos ver), através de um meio próprio que é a acção de impugnação da
paternidade presumida. A profunda exigência de verdade e a circunstância de os juízos de probabilidade que
fundam a presunção admitirem, por sua própria natureza, um risco, levam a que consideremos esta
presunção como iuris tantum.

- Casos de cessação da presunção

Logo a seguir a prever esta presunção, a lei estabelece casos de cessação de presunção da paternidade. Esta
não é exactamente uma hipótese em que a presunção cessa, mas em que a presunção excepcionalmente não
funciona, ou seja, não surge sequer, uma vez que a lei entende que a probabilidade do marido da mãe ser o
pai é remota. A lei prefere assim excluir desde logo a presunção, admitindo o seu restabelecimento, a cargo
dos interessados, quando se provem circunstâncias excepcionais (art. 1831.º). Estas hipóteses estão previstas

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nos arts. 1828.º, 1829.º e 1832.º. Os dois primeiros são anteriores a 1977, enquanto que o segundo, e a
disciplina do art. 1831.º, são posteriores.

Art. 1828.º: relativamente ao filho que nasceu pouco tempo depois de celebrado o casamento (nos 180
dias subsequentes), isto é, relativamente aos filhos concebidos antes do casamento (art. 1798.º), temos uma
presunção mais fraca. Tanto é que a lei diz que esta pode cessar se a mãe ou o marido declararem no registo
que o marido da mãe não é o pai. Apesar de este ser um meio susceptível de uso indevido, é e supor que a
mulher ou o seu marido só farão a declaração contrária à maternidade de estiverem fortemente convencidos
de que o marido não é o pai; de qualquer forma, sempre restarão os meios gerais de repor a verdade. Não
sendo a paternidade estabelecida por esta via, fica aberto o caminho ao reconhecimento voluntário ou
judicial da paternidade de um terceiro ou, eventualmente, do marido.

 Art. 1829.º: prevê as hipóteses em que o nascimento do filho ocorreu passados pelo menos 300 dias depois
de finda a coabitação dos cônjuges – apesar de o filho ser concebido no casamento da mãe, nasceu pelo
menos 300 dias depois de ter cessado a coabitação, logo, considerando que o prazo máximo de gestação é de
300 dias, é razoável supor-se que resultou da coabitação com outrem que não o marido. Isto só pode resultar
dos factos previstos no n.º 2, ou seja, só existe cessação da relação de coabitação para este efeito nas hipóteses
previstas:
1. Alínea a): tratando-se de um processo de divórcio por mútuo consentimento ou separação de bens,
considera-se que cessa a coabitação na data da primeira conferência. A lei presume que, pelo menos,
na altura da primeira conferência já foram tomadas disposições sérias acerca da subsistência do
vínculo, e estará provavelmente acabada a comunhão conjugal.
2. Alínea b): tratando-se de um divórcio sem consentimento, considera-se que a coabitação cessou na
data da citação do réu, e o nascimento se tiver dado 300 dias depois desta data. Isto mantém-se
mesmo havendo alterações à acção (conversão em separação de bens) ou esta não proceda.
a. A data do termo da coabitação pode ser fixada pelo juiz (na sentença do divórcio ou em sede
de outro processo).
b. Pode suceder que a presunção já esteja estabelecida, e a sentença do divórcio venha a
estabelecer a data do termo da coabitação em momento anterior à concepção, caso em que a
menção da paternidade deve ser rectificada.
3. Alínea c): na data em que deixou de haver notícias do marido – estamos a pensar nas hipóteses de
ausência. Os três processos previstos têm de fixar a data em que deixou de haver notícias do ausente.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Nos casos em que a presunção não funciona, a paternidade fica omissa e estabelece-se nos termos gerais, a
não ser que a presunção de paternidade do marido seja restabelecida nos termos do art. 1831.º. Assim, o art.
1831.º estabelece situações de renascimento da presunção, que é algo diferente do reinício (art. 1830.º): aqui,
a presunção funciona, excepcionalmente, apesar de o nascimento se ter dado mais de 300 dias depois da
cessação da coabitação - são excepções às excepções.

Assim, apesar de já se ter dado a tal conferência no processo de divórcio por mútuo consentimento ou se ter
dado a citação no processo de divórcio sem consentimento (art. 1829.º(a) e b)), funciona a presunção se se
provar:
1. A existência de relações sexuais entre os cônjuges.
2. A verosimilhança da paternidade – exige-se ao juiz apenas uma convicção acerca da probabilidade
razoável do nexo causal entre as relações sexuais demonstradas e a paternidade do marido.
3. A coabitação ter ocorrido durante o período legal de concepção do filho (o que está incluído na
verosimilhança).
4. Independentemente desta prova, também funciona o renascimento quando, na altura do
nascimento (e não na altura da acção, uma vez que esta condição não protegeria da mesma forma a
verdade biológica), o filho beneficiou da posse de estado em relação a ambos os cônjuges, mesmo ao
pai que se estava a divorciar.

Notas:
1. Tem legitimidade activa qualquer dos cônjuges ou o filho.
2. Tem legitimidade passiva, por força da aplicação analógica do art. 1846.º, a mãe, o filho e o marido
da mãe, quando não figurem como autores (se forem os três, terá o Ministério Público).

Ainda em relação a esta hipótese, o art. 1830.º prevê situações de reinício da presunção de paternidade – o
fim da coabitação dos cônjuges, para este efeito de cessação de paternidade, funciona como uma espécie de
dissolução de casamento. Mas apesar de ter cessado a presunção com fundamento na cessação da
coabitação, pode mais tarde suceder que a coabitação regresse, pelo que a lei estabelece situações de reinício
da presunção de paternidade:
1. Alínea a): reconciliação dos cônjuges (atenção: está incorrecta a expressão "separação judicial de
pessoas e bens", pois hoje a separação pode ser judicial ou administrativa).
2. Alínea b): regresso do ausente.
3. Alínea c): no caso do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, pode suceder que a parte que

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

tenha intentado a acção não se consiga divorciar, nomeadamente por não ter conseguido provar a
causa alegada. Aí, a lei diz que a presunção se reinicia na data de trânsito em julgado da sentença que
não decretou o divórcio, embora a coabitação tenha cessado na data de citação do réu.

 Art. 1832.º: a mulher casada pode fazer uma declaração, aquando do acto do registo do nascimento, no
sentido de que o seu marido não é o pai do filho, ou seja, basta isto para fazer cessar a presunção. Se a mulher
casada pode fazer cessar sempre a presunção mediante uma simples declaração, então qual a utilidade do art.
1828.º? Afinal, não é só quanto aos filhos nascidos nos 180 dias subsequentes que se pode fazer cessar a
presunção, pelo que temos aqui algumas dificuldades em descobrir a utilidade do art. 1828.º:
1. Na hipóteses específica do filho nascido nos 180 dias subsequentes, não é só a mãe que pode fazer a
declaração, logo temos aqui alguma utilidade do art. 1828.º;
2. Mas também, enquanto que no art. 1828.º, uma vez feita a declaração a presunção não funciona, no
art. 1832.º pode haver a possibilidade de renascimento da presunção quando se prove que no
período legal de concepção houve relações entre os cônjuges que tornem verosímil a paternidade do
marido da mãe – também funciona o art. 1831.º.

Este artigo 1832.º foi inserido posteriormente, pelo Reforma de 1977, e parece não fazer muito sentido. Foi
sobretudo pensada para os casos em que a mulher casada teve um filho, mas já estava separada de facto há
muitos anos, tendo outro companheiro: para tornar possível que nem sequer funcionasse a presunção, a lei
introduziu este preceito, dado que antes o processo de divórcio era mais complicado.

- Acção de impugnação da paternidade presumida

A acção de impugnação da paternidade está prevista nos arts. 1838.º e segs. Esta matéria foi profundamente
alterada na Reforma de 1977: antes, a legitimidade activa era restrita ao marido, e os fundamentos que
podiam ser apresentados estavam tipificados e eram muito limitados. A Reforma veio facilitar esta acção, na
linha da tendência geral de tornar os mecanismos de estabelecimento da paternidade mais flexíveis: por um
lado, ampliou-se o número de pessoas com legitimidade activa para propor estas acções; e, por outro,
alargou-se os fundamentos e facilitou-se a prova.

Quem tem legitimidade para propor esta acção? Nos termos do art. 1839.º/1, são as pessoas envolvidas,
implicadas, na relação de paternidade:
1. O marido da mãe – antes de 1977, era o único com legitimidade;

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

2. O filho – antes de 1977, argumentava-se contra a legitimidade activa deste que o seu interesse seria
sempre o de permanecer legítimo, e nunca o de rejeitar esse estado. Com o princípio da equiparação
de filhos legítimos e ilegítimos, e com o reconhecimento do direito fundamental à integridade
pessoal, veio reconhecer-se a legitimidade ao filho;
3. A própria mãe – esta tem um interesse pessoal e autónomo, que não se confunde com o do marido,
do filho, ou do pai natural, em ver corrigida uma atribuição de paternidade falsa. Ao exercer o
direito de impugnar, pode criar as condições para um futura perfilhação pelo pai biológico, e pode
ainda querer excluir o marido do poder paternal sobre um filho que não é dele. A legitimidade foi
alargada à mãe também por força do princípio da igualdade entre os cônjuges, pois esta é uma
questão familiar e conjugal;
4. E ainda o Ministério Público, nos termos do art. 1841.º, a requerimento do terceiro que se declara como
pai do filho. Na sequência deste requerimento, o Ministério Público pode intentar esta acção, mas só
o faz depois de uma investigação mínima, que indique a viabilidade da acção. Este regime parece ser
aceitável pois abre uma via de verdade no estabelecimento da filiação, ao mesmo tempo que rodeia a
intervenção do terceiro de cautelas tendentes a evitar prejuízos à família conjugal, cautelas estas que
não vão ao ponto de obstar uma impugnação que seja justificada; e é ainda aceitável por reconhece
ao pai natural o interesse e o direito de ver reconhecida a sua paternidade verdadeira. Porém,
PEREIRA COELHO não vê motivos para que, uma vez reconhecida a viabilidade da acção pelo
tribunal, não pudesse ser o próprio pai natural a intentar e conduzir a acção, tendo o Ministério
Público uma legitimidade supletiva apenas nos casos em que a impugnação não viesse a ser intentada
por desinteresse do pai natural.

O legislador define a legitimidade passiva no art. 1846.º, com o intuito de fazer participar no processo todos
os principais interessados:
1. A acção deve dirigir-se contra o presumido pai, a mãe e o filho, em litisconsórcio. Sendo o pedido
formulado por um deles, deverá obviamente ser dirigido contra os outros. Na hipótese de a acção ser
intentada pelo Ministério Público, devem estar em juízo aqueles três sujeitos.
2. No caso de morte de algum dos legitimados passivos, aplica-se a regra do art. 1844.º.

O que é que se prova, ou seja, qual o objecto do processo? O regime tradicional era o das causas determinadas
de impugnação, ou seja, a lei tipificava as situações em que o autor podia obter uma sentença de impugnação.
Este sistema tornou-se alvo de muitas críticas, pois não permitia o livre apuramento da verdade biológica, e o
princípio da igualdade jurídica dos filhos deixou de justificar que se procurasse manter a presunção de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

paternidade legítima.

Contrariamente à regra geral das presunções legais, que diz que as presunções legais podem ser ilididas
mediante prova em contrário (art. 350.º/2), não se vai provar a impossibilidade de o marido da mãe ser o pai
(que seria o que decorreria da regra geral); de acordo com o art. 1838.º/2, o autor deve provar que é
manifestamente improvável a paternidade do marido da mãe. Com isto, o legislador furtou-se ao risco de uma
eventual tendência demasiado rigorosa da jurisprudência (antes da Reforma de 1977, exigia-se a prova da
impossibilidade); e quis que o tribunal exigisse a demonstração de uma improbabilidade manifesta, que
valesse como certeza para qualquer juiz razoável.

Há uma situação em que, curiosamente, a lei nem sequer exige prova: art. 1840.º/1. Independentemente da
prova da manifesta improbabilidade que o marido da mãe seja o pai, ou seja, sem prova nenhuma, podem
ainda a mãe ou o marido impugnar a paternidade do marido do filho que nasceu nos 180 dias subsequentes
ao casamento. Em relação a filhos concebidos antes do casamento, quer a mãe, quer o marido, podem
intentar uma acção de paternidade sem ter de fazer prova, pois a improbabilidade como que já resulta do
próprio facto de o filho ter sido concebido antes do casamento. Isto relaciona-se com o art. 1828.º: a mãe ou
o marido podem afastar a presunção através de simples declaração; porém, uma vez inserida a paternidade
no registo, é necessária uma acção judicial para a destruir (art. 3.º Código Registo Civil).

Quanto aos prazos, estes estão previstos no art. 1842.º. Já falámos destes prazos a propósito da acção de
investigação da maternidade (a norma é a mesma): porque a lei quer que se saiba quem é o pai, que se apure
a verdade biológica na linha do princípio do primado da verdade biológica; e em função do direito à
identidade pessoal, alargou-se muito estes prazos.
1. Para o filho, de 10 anos após ter atingido a maioridade (antes, o prazo era de 1 ano).
2. Para o marido e a mãe, de 3 anos contados, respectivamente, de que teve conhecimento de
circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade e do nascimento (antes, o prazo era de
2 anos)
3. Note-se que este artigo não se refere ao Ministério Público – porém, a caducidade opera através do
art. 1841.º/2, que determina que a impugnação depende do requerimento, que tem de ser
apresentado no prazo de sessenta dias a contar da data em que a paternidade do marido da mãe
conste do registo.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

3.2 Perfilhação

A perfilhação é o acto mediante o qual o pai (assume-se o biológico) declara ou assume a sua paternidade
em relação a um filho que não tem ainda a paternidade estabelecida. Esta manifestação passa a constar do
registo civil, e a paternidade considera-se estabelecida, com efeito retroactivo até à data do nascimento do
filho.
1. Discute-se se este acto é um acto ou negócio jurídico – a perfilhação é um acto jurídico, através do
qual o declarante não causa mas desencadeia os efeitos jurídicos que se produzem por força da lei.
2. Também se discute se este acto consiste numa declaração de vontade, em que o perfilhante diz que
quer assumir o estatuto jurídico de pai, ou numa declaração de ciência, através da qual o pai assume-
se como pai biológico. É mais correcta a tese da declaração de ciência: esta não é uma declaração da
vontade de produção de efeitos, mas antes uma declaração de um facto, ao qual depois a lei mandará
aplicar as consequências jurídicas, que se produzem não ex vontade mas sim ex lege.

Quais as características deste acto?


1. É um acto unilateral, no sentido de que a mera actividade do perfilhante é suficiente para a perfeição
e a validade do acto. A isto não obsta o art. 1857.º: quando o filho for maior, é necessário o seu
consentimento para a eficácia da perfilhação, mas esta é sempre válida; nem o regime do art. 1833.º.
2. É um acto pessoal, art. 1849.º:
a. Em primeiro lugar, no sentido de que não se destina a constituir, modificar ou extinguir
relações patrimoniais.
b. Em segundo lugar, no sentido de que deve ser feito pelo próprio perfilhante, não se
admitindo em princípio a procuração. Isto embora a lei admita a procuração com poderes
especiais - art. 1849.º, in fine.
c. Pode perguntar-se por que razão o acto de perfilhação é pessoal, enquanto que o
estabelecimento da maternidade, nas suas formas extra-judiciais, não tem esta característica:
são admitidas muitas pessoas a indicar a maternidade. Os fundamentos tradicionalmente
apontados – carácter puramente facultativo da perfilhação e natureza secreta da
responsabilidade do homem na gravidez – perderam hoje força, pelo que apenas se pode
dizer que assentará no receio de que a mãe e o filho fossem tentados a fazer “declarações de
paternidade” levianas ou intencionalmente falsas.
3. É um acto livre (art. 1849.º):
a. Significa, em primeiro lugar, que a perfilhação deve resultar de uma vontade esclarecida,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

formada com exacto conhecimento das coisas; e com liberdade exterior, sem a pressão de
violências ou ameaças( se a vontade tiver sido extorquida por coacção ou esteja viciada por
erro, pode ser anulada).
b. Num segundo sentido, parece que a lei quer dizer com "livre" que o perfilhante só perfilha se
quiser, ou seja, não existe um dever jurídico de perfilhar – de facto, foi sempre assim que se
entendeu. Mas PEREIRA COELHO adopta um entendimento contrário, de que existirá um
verdadeiro dever jurídico de perfilhar: isto resulta, desde logo, do direito à identidade
pessoal, mas também de o interesse de saber quem é o pai ser um interesse público (de tal
modo que existe um processo de averiguação oficiosa da paternidade). Assim, deveriam ser
eliminadas todas as diferenças entre o regime de estabelecimento da maternidade e o da
paternidade que não se fundem em dificuldades de provas; e a omissão culposa da
perfilhação geraria um dever de indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil. O
Professor entende que há um dever jurídico de perfilhar nas hipóteses em que é possível
intentar uma acção de investigação, pois se pode ser condenado judicialmente a ser pai, tem
alguma lógica que este tenha esse dever. Já nas situações em que não é possível intentar uma
acção, quer por ter passado o prazo, quer por não ser possível fazer a prova, parece que não
há um dever jurídico. Isto são matérias muito discutidas e sujeitas a evolução.
4. É um acto puro e simples: não pode comportar cláusulas que limitem ou modifiquem os direitos que
a lei lhe atribui, sejam cláusulas típicas como a condição e termo, sejam cláusulas atípicas (art.
1852.º). A sanção para a aposição de uma destas cláusulas é a de as considerar não escritas.
5. É um acto irrevogável: se posteriormente vir a descobrir que não é pai, terá de impugnar a sua própria
perfilhação, mas não revogá-la através de simples declaração em contrário que cesse os seus efeitos,
art. 1858.º. Se houver uma perfilhação através de testamento, a perfilhação não é prejudicada pela sua
revogação (o testamento é livremente revogável mas se se revogar o testamento esta não abrange a
eventual filiação).

Como é feita a perfilhação? As formas possíveis estão previstas no art. 1853.º (se a perfilhação não constar de
uma destas formas, será nula por força do art. 220.º):
1. Declaração prestada no registo civil – é a forma mais comum (ou a declaração é registada no assento
de nascimento, ou, se for feita em momento posterior, á averbada);
2. Testamento – se este for nulo por vício de forma (mas já não por vício material), também será nula a
perfilhação;
3. Escritura pública;

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

4. Termo lavrado em juízo – o caso típico é aquele em que o pretenso progenitor confirma a
paternidade no curso de uma averiguação oficiosa (art. 1865.º/2 e 3), apesar de poder ocorrer no
curso de qualquer acção judicial.

A perfilhação pode ser estabelecida a todo o tempo, art. 1854.º. Isto com algumas ressalvas:
1. Tratando-se da perfilhação de filho maior, o art. 1857.º prevê que este tenha de dar o seu
consentimento, que é condição de eficácia (mas não de validade) da perfilhação. PEREIRA COELHO
levanta algumas dúvidas acerca deste regime:
a. A preservação do bom nome ou da esfera de relações do filho maior contra a investia tardia
de um progenitor indecoroso (fundamentos tradicionais deste regime) debatem-se hoje
com a recente hiperbolização da verdade biológica.
b. Não está previsto um controlo equivalente que aproveite ao filho menor; nem quanto ao
estabelecimento da maternidade. Assim, este regime só pode ser encarado como uma
excepção insólita, que ou não deveria existir num sistema puramente biologista, ou devia
estar acompanhado de outras excepções em casos paralelos.
2. A perfilhação é admitida mesmo depois da morte do filho, art. 1856.º. No entanto, para impedir que
o perfilhante pudesse retirar daqui vantagens, a eficácia da perfilhação só se verifica em relação aos
descendentes do perfilhado.

A perfilhação pode ser anulada com fundamento em erro ou coação, ou em incapacidade, com os regimes
constantes doas arts. 1860.º, 1861.º e 1862.º. A capacidade para perfilhar consta do art. 1850.º.

- Impugnação da perfilhação

E se a perfilhação não corresponder à verdade – ou inicialmente falsa, ou por o indivíduo ter descoberto mais
tarde que não era o pai? A lei prevê uma acção de impugnação de perfilhação, art. 1859.º, que constitui o modo
de controlar a verdade do reconhecimento (um controlo prévio teria vários inconvenientes). Apesar de se
chamar “impugnação da perfilhação”, o que na verdade se está a fazer é impugnar a paternidade estabelecida
por perfilhação.

Quanto à legitimidade activa, esta é conferida:


1. Ao perfilhante – quer no caso em que se enganou, quer no caso daquele que perfilhou ainda que
soubesse que não era o progenitor. Esta última possibilidade justifica-se pelo facto de a lei não querer

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

a permanência de um vínculo que poderá trazer prejuízos ao próprio filho, e pela prevalência do
interesse público da verdade biológica. No entanto. PEREIRA COELHO defende que o perfilhante
faltoso poderá ter de indemnizar o perfilhado pelos danos causados (obrigação que se pode fundar
na obrigação de alimentos, no abuso de direito ou na perfilhação ilícita).
2. Ao perfilhado.
3. A quem tiver interesse, moral ou patrimonial, para impugnar – no primeiro caso caberá a mãe e no
segundo os herdeiros, por exemplo.
4. O Ministério Público – PEREIRA COELHO critica, mais uma vez, esta legitimidade, defendendo que o
interesse público da verdade biológica não pode prevalecer em absoluto, devendo admitir-se a
ponderação, por exemplo, do interesse da estabilidade das relações familiares.

Qual o objecto do processo?


1. Deve provar-se que o perfilhante não é o progenitor do indivíduo perfilhado, ou seja, o fundamento
do pedido é a desconformidade entre a verdade biológica e a verdade jurídica. O autor pode usar
qualquer meio de prova, sendo hoje as provas científicas as indicadas. Vale aqui o sentido do art.
1839.º/2.
2. O art. 1839.º/3 estabelece uma inversão do ónus da prova: quando seja a mãe ou o filho a impugnar,
permite-se que estes impugnem a relação estabelecida sem prova da não-paternidade – a
impugnação “por mera negação”. Assim, só terão de provar que o perfilhante não é pai se este
demonstrar que é verosímil a sua paternidade, ou seja, o ónus da prova cabe assim ao perfilhante
num primeiro momento. Pretende-se assim facilitar a eliminação das paternidades falsas.

Esta acção pode ser intentada a todo o tempo, o que demonstra o interesse público da procura da verdade
biológica (n.º 2, 1ª parte).

3.3 Processo de averiguação oficiosa da paternidade

Também no estabelecimento da paternidade há um processo de averiguação oficiosa da paternidade, no caso


de haver um registo omisso quanto à identidade do pai. O processo de averiguação segue as mesmas regras e
tem o mesmo espírito do da maternidade, previsto nos arts. 1864.º e segs.:
1. Se a conservatória do registo civil nota a falta do estabelecimento da filiação, deve abrir um processo
com os elementos que permitam averiguar a identidade e mandá-lo para o tribunal.
2. O tribunal competente inicia as averiguações, através do curador.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

3. Se este não conseguir obter qualquer indicação útil da parte da mãe ou da pessoa que declarou o
nascimento, ou seja, se não obtiver o nome de um pai possível, o curador arquivará o processo.
4. Se conseguir obter o nome de um eventual pai (é o mais frequente), este será convocado e
confrontado com a possibilidade de ser o progenitor verdadeiro. Se se convencer de que é pai e se
proponha a assumir o estado correspondente, será feita uma perfilhação, na forma de termo lavrado
em juízo.
5. Se o progenitor possível não se convencer ou, mesmo após a produção de provas científicas, persistir
em não assumir o estado correspondente, o curador promoverá uma acção de investigação da
paternidade.

Tal como acontecia no da maternidade, também aqui acontece que este processo não constitui um modo
autónomo de estabelecimento de paternidade, mas sim um procedimento instrumental que pode acabar
numa perfilhação ou numa acção de investigação, esses sim, meios autónomos.

Também aqui a averiguação é proibida nos mesmos dois casos - art. 1866.º:
1. Alínea a): a mãe e o pai são parentes próximos. A averiguação oficiosa já se fez, só assim se chegou a
esta suspeita; o que não pode ter lugar é a acção intentada pelo Ministério Público. Admite-se a
averiguação, mas não a acção.
2. Alínea b): a data de nascimento tiver ocorrido há mais de dois anos, não há interesse em ocupar os
recursos do Estado.
3. O art. 1867.º prevê um caso em que excepcionalmente, ainda que o nascimento tenha ocorrido há
mais de 2 anos, pode haver averiguação oficiosa e acção de investigação: se tiver havido cópula
comprovada em processo crime.

3.4 Reconhecimento judicial da paternidade

Este meio de estabelecimento da paternidade, previsto nos arts. 1869.º e segs., sofreu uma grande revolução
com a Reforma de 1977: antes, a própria propositura da acção de investigação era muito limitada, pois para
ser possível um filho intentar uma acção, a lei fixava certos pressupostos taxativos de admissibilidade. Hoje,
reconhecendo-se o direito à identidade pessoal, e por força do princípio da não discriminação entre filhos
nascidos fora e dentro do casamento, a lei deixou de pôr este tipo de entraves à investigação da maternidade,
pelo que desapareceram os pressupostos de admissibilidade.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Quem tem legitimidade activa para intentar a acção? Esta cabe a duas entidades, filho e Ministério Público.
1. Também aqui (à semelhança da de maternidade) estas acções de investigação são acções pensadas
para serem propostas pelo filho. Todavia, acontece que aqui é só praticamente este que pode intentar a
acção, ao contrário do que sucede na maternidade. Só tem legitimidade o filho capaz; no caso de ser
incapaz, a representação caberá à mãe (1869.º, se a maternidade ainda não estiver estabelecida, será
representado pelo Ministério Público).
2. O único caso em que outra pessoa, que não o filho, pode intentar a acção é o caso do processo de
averiguação oficiosa, quando o suspeito pai não quer perfilhar e o tribunal continua convencido que
é ele o pai. Aí, o Ministério Público pode, no termo do processo de averiguação, intentar esta acção.

Agindo o filho em nome próprio ou fazendo-se representar, o que é que terá de provar? O ónus da prova
cabe ao filho, de acordo com as regras gerais. A prova da maternidade é mais fácil, uma vez que é um facto
exterior – parto e identidade da parturiente. Como se faz a prova da paternidade? Existem três meios de
prova.

1) As questões da prova da paternidade têm sofrido uma certa revolução, pelo aparecimento e divulgação
dos métodos científico-laboratoriais, nomeadamente o confronto de ADN. Dá-se a esta prova o nome de
prova directa da paternidade, através de métodos científico-laborais.
1. Havia tempos em que os tribunais recusavam estas provas, pois nunca havia 100% de certeza (o
resultado dos testes é 99,999...%). Assim, além do resultado do teste, exigia-se a prova da coabitação
durante o período de concepção. Esta tendência foi aos poucos sendo abandonada.
2. Há uma questão que se discute muito, que é a de saber que, se o filho intentar uma acção contra o
suposto pai mas este não quiser dar os elementos necessários para a prova do ADN, pode o tribunal
forçar o pai a dar elementos orgânicos. Não pode haver provas extorquidas fisicamente (antigo art.
519.º do Código do Processo Civil), logo o pai não pode ser coagido fisicamente a fornecer elementos
orgânicos. Se o pai se recusar a colaborar na descoberta da vontade, incorre em consequências,
designadamente terá de pagar um multa.
3. Há autores que defendem que, como neste caso a prova da paternidade só não se fez porque o pai se
recusou, funciona a norma no CPC sobre a repartição do ónus da prova que diz que, quando a parte
contrária tiver culposamente impossibilitado a prova pelo onerado, o ónus da prova inverte-se,
como que se presumindo o facto que se queria provar e não se conseguiu. Isto é discutido; PEREIRA
COELHO (pai) defende esta visão, mas PEREIRA COELHO (filho) tem dúvidas – quando o pai se recusa
a dar o seu ADN, impossibilitou a prova por aquele meio directo, mas subsistem (pelo menos em

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

abstracto) outros meios de prova.

2) Há casos em que não é possível obter a prova directa, recorrendo-se assim à prova indirecta, a única prova
tradicionalmente admissível antes da divulgação dos métodos científicos. É constituída por dois elementos:
1. Coabitação: tem de se provar que, durante o período legal de concepção, houve relações entre a mãe
e o pretenso pai.
2. Coabitação em exclusividade: é ainda necessário fazer-se prova de que a mãe só teve relações com o
pai.

Uma vez provado este duplo facto, está provada indirectamente a paternidade. Houve um período em que os
tribunais decidiram que bastaria a prova da coabitação, e não a coabitação em exclusividade, uma vez que se
presumiria judicialmente a fidelidade da mulher. O ónus de provar o facto positivo de uma coabitação
concorrente caberia ao réu. Esta divergência originou a produção de um Assento do Supremo Tribunal de
Justiça, em 1983, que veio confirmar a necessidade de se fazer a prova da coabitação em exclusividade. Com
o desenvolvimento dos métodos científicos, os autores vieram assim fazer uma interpretação restritiva deste
Assento, no sentido de que, quando a filiação pudesse ser demonstrada por meios científicos, se prescindia
da prova da exclusividade, bastando a prova da coabitação conjugada com a prova laboratorial (“coabitação
causal”). Hoje, admite-se apenas a prova da paternidade apenas com fundamento nos métodos científicos, a
prova directa.

Há autores que rejeitam a pertinência da prova indirecta, defendendo que o Assento de 1983 foi revogado
pela Lei n.º 21, de 1998: esta veio acrescentar à lista de factos que desencadeiam a presunção de paternidade a
prova das relações entre o réu e a mãe do filho.

3) Mas mesmo esta prova, da existência de relações entre a mãe e o pretenso pai no período da coabitação, e
sobretudo a prova da fidelidade, pode ser difícil. Assim, a Reforma de 1977 veio prever certas situações de
facto que desencadeiam presunções de paternidade – art. 1871.º. Note-se que estas presunções só funcionam
dentro da acção de investigação da paternidade, e correspondem às anteriores condições de admissibilidade
desta acção, tendo hoje um significado diferente – assumem o valor de índices de verdade biológica, factos
expressivos de uma probabilidade forte, que beneficiam o investigante. Quais os factos constitutivos da
presunção de paternidade (art. 1871.º/1)?
1. Alínea a): refere-se à hipótese de posse do estado de filho. Sabemos que a posse de estado é composta
por três elementos constitutivos:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

a. O pai reputa-o como filho – nomen. Reputar como filho significa estar convencido da
paternidade, considerar ou pensar que outrem é seu filho.
b. O pai trata-o como filho – tractatus. Notas:
i. Tratar como filho é proceder para com uma pessoa como os pais procedem com os
filhos. Distinguir entre os requisitos da reputação e o tratamento pode não ser fácil:
chamar o investigante por “filho”, e deixar que este o trate por “pai”, traduz a
convicção da relação biológica, logo é um acto que exprime a reputação. Apesar de
este ser também um acto de tratamento, para que haja tratamento é necessário algo
mais – é preciso que o réu tenha dispensado ao investigante actos de assistência
afectiva e material, como é próprio das relações entre pais e filhos. Isto é: apesar de
alguns actos de reputação serem também actos de tratamento, a reputação e o
tratamento são dois requisitos diferentes.
ii. Não se pode exigir que o autor alegue e prove um conjunto extenso de actos como se
o autor e o réu vivessem juntos, no quadro de uma família constituída. Na maior
parte dos casos, os pretensos pai e filho viveram separados, mantiveram contactos
discretos, logo são suficientes alguns gestos expressivos, praticados ao longo de vários
anos.
c. O filho é reputado como tal pelo público – fama. As pessoas
2. Alínea b): existência de escrito no qual o pai declare inequivocamente a sua paternidade, que
interessa pelo valor de probabilidade do vínculo biológico que se possa atribuir à declaração, e não
pelo seu valor formal. Estas duas primeiras alíneas traduzem uma hipótese de confissão, de
declaração voluntária.
3. Alínea c): quanto tenha existido uma relação de união de facto ou uma relação de concubinato
duradoura no período legal de concepção. A lei presume a exclusividade, uma vez que se trata de uma
relação de união de facto e de uma relação de concubinato, mas duradoura. Ainda que a presunção
não seja tão intensa na relação de concubinato, da sua longa duração pode-se presumir a fidelidade.
Não é exigível que a relação dure por todo o período legal de concepção (art. 1800.º, que admite a
divisibilidade deste período).
4. Alínea d): quando o pai tenha seduzido a mãe no período legal da concepção, num quadro em que
terá abusado da sua inexperiência ou com promessas de casamento, a lei presume que, como a
sedução se deu num quadro de abuso, a jovem só terá tido relações sexuais com aquele homem.
5. Alínea e): a Lei 21/98 veio acrescentar um novo facto-base da presunção, segundo o qual a
paternidade se presume quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o

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período legal de concepção. Assim, basta a prova de um acto sexual isolado. Notas:
a. Esta será uma presunção com um carácter diferente das outras, pois só mostra a
possibilidade de o réu ser o pai.
b. Isto parece algo contraditório, pondo em causa as outras presunções. Como interpretar? Esta
alínea foi acrescentada posteriormente, sob pressão de certos grupos, alegando que é cada
vez mais fácil os pais investigados provarem a sua não paternidade através das provas
científicas. Assim, a lei decidiu facilitar também a vida ao investigante, já que o investigado
pode facilmente provar o contrário. Por outro lado, também se quis contrariar as faltas aos
exames científicos que se vinham a tornar frequentes – ao presumir-se a paternidade,
inverte-se o ónus da prova e o réu passa a ter interesse em colaborar.
c. Quais as consequências para o nosso ordenamento? As alíneas c) e d) ficam desprovidas de
utilidade, pois basta a prova das relações sexuais. pode-se dizer que as presunções destas
alíneas são mais fortes, todavia esta "intensidade" das presunções não está na lei.

Verificado estes factos previstos nas cinco alíneas, presume-se a paternidade, pelo que o ónus da prova
passaria a cair sobre o pai investigado. Se, nos termos gerais do direito civil, as presunções são ilididas
mediante prova em contrário (art. 350.º/2), não é isto que sucede na investigação da paternidade. O
legislador estabeleceu que o réu pode ilidir a presunção legal de paternidade com alegações de que resultem
dúvidas sérias; não se exige a prova de que não é o pai – art. 1871.º/2. Esta norma foi acrescentada com a
Reforma de 1977, pretendendo criar um regime suave para o réu uma vez que não estavam generalizadas
como hoje as provas científicas e poderia ser difícil provar o contrário. Claro que, se o réu recorrer a uma
prova negativa de paternidade, este preceito não terá utilidade; podendo no entanto servir para aqueles casos
em que ele pretende recorrer a esse meio mas não obtém a colaboração da mãe e do filho.

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C. Efeitos da filiação

1. Princípios gerais

O desenho legal da relação entre pais e filhos é, a partir da Constituição de 1976 e da Reforma de 1977,
orientada pelo modelo da pequena família, de feição igualitária e democrática, assente na afectividade,
solidariedade, respeito e auxílio mútuos. Nos termos do art. 1874.º, existe um dever recíproco de respeito,
auxílio e assistência entre os pais e filhos. O n.º 2 densifica o dever de assistência, que compreende a
obrigação de prestar alimentos; e, se viverem juntos, existe uma obrigação genérica de pais e filhos
contribuírem para os encargos da vida em comum.

Se isto é verdade, se estes deveres são recíprocos, também é verdade que:


1. Assumem uma configuração específica em relação aos pais.
2. Assumem um conteúdo específico, o das responsabilidades parentais. As responsabilidades parentais
consistem no complexo de direitos e deveres que a ordem jurídica concede ou impõe a ambos os
pais para que estes, no seu exercício, cuidem de todos os aspectos relacionados com a pessoa e os
bens dos filhos menores de idade no interesse destes últimos (art. 1878.º/1). A estes direitos e deveres
corresponde o dever de obediência dos filhos menores de idade (n.º 2), que todavia não se traduz
numa anulação da personalidade do filho.
3. São mais intensos na menoridade.

Ainda dentro das normas gerais, o art. 1875.º regula as questões atinentes ao nome do filho: se não houver
acordo entre os pais, o n.º 2 estabelece uma daquelas excepções em que o juiz pode intervir. O art. 1876.º
prevê um caso específico, em que a paternidade do filho não está estabelecida: se isto acontecer e a mãe
estiver casada, pode-se atribuir ao filho apelidos do marido da mãe, se esta o declarar no registo civil. No
entanto, nos 2 anos seguintes à sua maioridade, o filho pode pedir que estes sejam eliminados.

2. As responsabilidades parentais

2.1 Noções fundamentais

Evolução terminológica

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A expressão "responsabilidades parentais" é uma expressão recente, tendo sido introduzida com a Reforma
de 2008. Antes da reforma, este complexo de poderes a que se a doutrina classifica como "poderes-deveres"
(os pais têm certos poderes sobre os filhos, mas esses poderes têm de ser exercidos no interesse do filho)
recebia o nome de poder paternal. A que se deve esta evolução terminológica? A expressão poder paternal
tem duas palavras “perigosas”:
1. A expressão poder traz consigo a carga ideológica do poder de domínio ilimitado e arbitrário do pai
traduzido na completa sujeição do filho aos seus desígnios. Ora, as responsabilidades parentais não
se traduzem num poder, mas sim num conjunto de poderes funcionais, atribuído pela ordem jurídica
aos pais para que eles possam desempenhar a sua função de cuidar dos filhos. Como poderes
funcionais, não podem ser exercidos livremente, mas sim do modo e na medida em que o interesse
do filho o exigir. Já se entendia assim antes da reforma, pelo que a lei quis apenas clarificar esta
situação.
2. Também a palavra paternal é perigosa, por poder sugerir que é apenas do pai. Mais uma vez,
também se sabia que este pertencia a ambos os progenitores, mas a lei quis evitar esta ambiguidade.

Princípio da irrenunciabilidade

Estas responsabilidades parentais, tratando-se de uma responsabilidade e não de um direito subjectivo, são
irrenunciáveis e intransmissíveis. É o princípio da irrenunciabilidade das responsabilidades parentais, art.
1882.º.

Duração

Quanto tempo é que dura as responsabilidades parentais? A regra geral é a de que as responsabilidades
parentais devem ser exercidas até à maioridade do filho ou até à sua emancipação, art. 1877.º. Todavia, pode
haver situações em que as responsabilidades parentais, ou pelo menos certos aspectos delas, cessem mais
cedo ou mais tarde:
1. Casos em que cessam mais cedo, art. 1879.º: os pais deixam de custear as despesas dos filhos menores
na medida em que estes estejam em condições de se sustentar, nomeadamente se já trabalharem. Tal
como pode acontecer que, mesmo que não trabalhe, o menor tenha bens (esta hipótese é algo
improvável: por exemplo, se o filho receber uma grande herança). Assim, nas situações em que o
filho esteja em condições de suportar, por produto do seu trabalho ou outros bens, os seus encargos, as
responsabilidades parentais cessam mais cedo, na medida em que os pais deixam de ter a obrigação

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

de custear as suas despesas.


2. Casos em que cessam mais tarde, art. 1880.º.: pode acontecer que esta responsabilidade de pagar as
despesas do filho se prolongue para além dos 18 anos, se no momento em que atingir a maioridade
este não tenha completado a sua formação profissional. Isto só sucede na medida em que estejam
verificadas duas condições:
a. Seja razoável exigir aos pais o pagamento dessas despesas;
b. Sobretudo, apenas pelo período que seja normalmente necessário para completar a
formação.

Modo de exercício

Como é que se exercem as responsabilidades parentais? Tratando-se de poderes-deveres ou poderes


funcionais, não podem ser exercidos livremente, mas sim do modo e na medida em que o interesse do filho o
exigir. Numa palavra, os pais devem exercer as responsabilidades no interesse do filho. Esta ideia do primado
do interesse do filho informa todo este regime das responsabilidades parentais, nomeadamente o art.
1878.º/1.

Obviamente que existe, de certa forma, um poder dos pais sobre os filhos – tanto é assim que a lei estabelece,
no art. 1878.º/2, que os filhos devem obediência aos pais (sem que isto implique, como vimos, uma
submissão total). Aliás, durante algum tempo, o Código Civil tinha uma disposição que admitia a “correcção
física”, que foi obviamente eliminada. Hoje, o Código Penal criminaliza os maus-tratos a filhos.

Finalidades

Quais as finalidades subjacentes às responsabilidades parentais? Podemos dizer que há fundamentalmente


duas finalidades, de sinal contrário:
1. Finalidade protectiva: os pais devem cuidar do filho, protegendo a sua integridade física, a sua
integridade moral e o seu equilíbrio emocional (art. 1878.º/1, 1ª parte). No entanto, a finalidade da
protecção visa também a protecção do património do filho (2ª parte) – simplesmente, este finalidade
de protecção não tem hoje o relevo que teve no passado.
2. Finalidade de promoção da independência: os pais devem ainda habilitar os filhos para a sua
autonomia pessoal e independência económica, favorecendo o pleno desenvolvimento das suas
competências (art. 1885.º/1).

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Como se relacionam estas duas finalidades?


1. Esta equação vai-se invertendo ao longo da vida do filho: inicialmente, os pais cuidam
essencialmente dos filhos; à medida que este cresce, a finalidade protectiva vai desaparecendo,
dando lugar à outra. Existe aqui uma relação de tensão, de proporcionalidade inversa: quanto mais
protegem, menos promovem a independência; e vice-versa.
2. Estas duas finalidades não se apresentam, porém, com o mesmo peso quanto ao modo de exercício
das responsabilidades parentais – este é um instituto principalmente orientado para a protecção do
filho.

2.2 Conteúdo

Quais os poderes-deveres que integram o conteúdo das responsabilidades parentais? Estes não são
exaustivamente enumeráveis, variando, naturalmente, com as particulares necessidades dos filhos, as
circunstâncias reais em que se encontra, etc. No entanto, podemos identificar algumas “linhas de força”,
susceptíveis de serem concretizadas, que são as que se encontram no art. 1878.º. Aqui estão vertidos os
principais aspectos em que se manifesta o conteúdo das responsabilidades, dividindo-se em aspectos de
natureza pessoal e de natureza patrimonial.

2.2.1 Responsabilidades parentais de natureza pessoal

1) Poder-dever de guarda: o poder-dever de guarda, entendido num sentido restrito traduz-se no direito de
ter o filho em sua companhia, de fixar a residência do filho e de exigir que ele aí permaneça. O art. 1887.º
afirma o princípio segundo o qual os menores não podem abandonar a casa:
1. Esta obrigação é imposta ao filho, que não deve abandonar a casa; e também aos terceiros e ao
Estado, como dever de o não retirar daquela (n.º 1).
2. Os pais, no sentido de fazer cumprir tais deveres, podem recorrer ao tribunal ou à autoridade
competente (n.º 2).
3. A este direito dos pais corresponde necessariamente um dever, o de ter o filho em sua companhia,
criando as condições materiais e morais para terem o filho em casa.

2) Poder-dever de vigilância: apresenta-se intimamente ligado ao poder-dever de guarda. Traduzindo-se este


último no dever de ter o filho em sua companhia, este assegura a possibilidade de vigiar e controlar o filho,

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afastando-o de situações de perigo.

3) Poder-dever de manutenção: este reconduz-se à obrigação de alimentos dos pais para com o filho menor,
que não se confunde com a obrigação geral de alimentos entre parentes (art. 2003.º e segs.). Esta é uma
obrigação muito mais densa, que se traduz na assunção pelos pais de prover às necessidades relacionadas
com a alimentação, saúde, segurança e educação do filho – art. 1879.º. Notas:
1. Já vimos que esta obrigação pode cessar mais cedo, se o filho conseguir suportar as suas despesas
com o produto do seu trabalho ou outros rendimentos (art. 1879.º, in fine) – esta é um resquício do
carácter institucional da família, desactualizado em relação à realidade sociológica da pequena
família.
2. O art. 1896.º consagra a possibilidade dos pais, no exercício de tal poder-dever, utilizarem os
rendimentos dos bens do filho menor. Esta norma pretende ser a tradução e uma nova ideia de
família, cujos membros se encontram vinculados por laços afectivos e por direitos e deveres
recíprocos, nomeadamente o de assistência (art. 1874.º/2).

4) Poder-dever de velar pela saúde: este poder-dever reconduz-se a duas dimensões.


1. A primeira relaciona-se com o dever de fornecer uma alimentação saudável, observar as regra de
higiene, assegurarem cuidados médicos essenciais, etc.
2. A segunda traduz-se no direito e no dever de decidir pelo filho no que respeita a intervenção
cirúrgica ou tratamento médico, ou seja, de dar a autorização para a prática destes actos médicos.

5) Poder-dever de educação: este é o poder-dever principal, sendo todos os outros instrumentais em relação a
estes, ou seja, aparecem como manifestações da realização e desenvolvimento da função educativa.
1. Há uma norma específica, o art. 1885.º, que enuncia mais algumas ideias sobre a responsabilidade
educativa dos pais: educar é promover o desenvolvimento físico, emocional e intelectual dos filhos.
Traduz-se não só na promoção do desenvolvimento das faculdades físicas e intelectuais, mas
também na promoção da aquisição de competências técnicas e profissionais, bem como na sua
formação moral, religiosa, cívica e política – ou seja, a educação é a actividade dirigida à fomação da
personalidade do filho. Esta promoção é feita atendendo às aptidões e inclinações dos filhos.
2. O art. 1886.º diz respeito à opção religiosa do filho: tendo em conta que esta é uma opção pessoal, há
quem defenda que os pais não devem impor uma religião ao filho. Por outro lado, há autores que
defendem que os pais podem impor uma religião, pois a religião é aquilo que se acredita ser verdade.
Tendo em conta a ponderação de valores em causa, a lei dispõe no art. 1886.º que os pais podem

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impor uma religião aos filhos, no entanto apenas até aos 16 anos.

2.2.2 Responsabilidades parentais de natureza patrimonial

As responsabilidades parentais são de natureza pessoal (gestão da pessoa), mas também de natureza
patrimonial (gestão dos bens) – porém, concebendo-se as responsabilidades parentais como tradução
jurídica da relação de proximidade existencial entre pais e filhos, a primazia tem de ser dada ao plano
pessoal. Nas responsabilidades parentais de natureza patrimonial, temos dois aspectos – o poder de
representação e o poder de administração.

1) Poder de representação: os pais representam os filhos nos actos jurídicos que estes tenham de praticar. O
art. 1881.º diz-nos em que consiste este poder de representação, sendo que este não se verifica em relação aos
seguintes actos:
1. Actos puramente pessoais:
a. A partir dos 16 anos, os menores adquirem capacidade para casar e perfilhar.
b. Em relação a outros actos de natureza especificamente pessoal, como uma intervenção
jurídica, a doutrina defende que nestas matérias o menor adquire capacidade mais cedo. Há
uma norma do CP que diz que o consentimento é válido como causa de exclusão de ilicitude
se o menos tiver mais de 16 anos e tiver capacidade para compreender o alcance das coisas -
podemos aproveitar para aqui esta ideia.
2. Actos que o menor pode praticar livremente: são aqueles que estão previstos no art. 127.º.
3. Actos respeitantes a bens cuja administração não pertença aos pais: pode haver bens do filho que não
estejam entregues à administração dos pais, art. 1888.ºs (exemplo: bens deixados em testamento em
que se diga que estes serão administrados pelo menor e não pais; e bens adquiridos pelo trabalho).

Mas há limites ao próprio exercício do poder de representação:


1. Se as responsabilidades parentais têm de ser exercidas no interesse do filho, este funciona como um
limite ao seu exercício. Esta é uma limitação genérica.
2. Para além desta limitação, é enunciada uma série de actos que os pais, como representantes, apenas
podem praticar com autorização do tribunal – art. 1889.º. Tem de haver um certo controlo do poder
representativo dos pais, em relação aos actos mais graves que estão enunciados. Atenção que uma
das competências que o DL 272/2001 transferiu dos tribunais para, neste caso, o Ministério Público
foi precisamente esta: assim, já não compete ao tribunal autorizar estes actos, mas sim ao Ministério

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Público.
3. Note-se o n.º 2 deste artigo: os pais podem aplicar o capital do menor na aquisição de bens.

2) Poder de administração dos bens dos filhos: se os filhos tiverem bens, quem os administra são os pais, com
excepção dos bens excluídos da administração, previstos no art. 1888.º. Notas essenciais:
1. O art. 1895.º/1 diz que há certos bens que, embora sejam produzidos pelo filho, pertencem aos pais:
são os bens produzidos pelo trabalho prestado aos pais e com capitais pertencentes a estes. Já o n.º 2
estabelece que, se o filho trabalhar para os pais, estes não têm de pagar um salário, mas têm a
obrigação de compensar o filho pelo trabalho, que é uma obrigação natural.
2. Art. 1896.º: normalmente, os rendimentos dos bens do administrado revertem para o património do
administrado e não para o administrador. Também deveria ser assim em relação à administração dos
bens dos filhos pelos pais; simplesmente sempre houve, na nossa lei, regras especiais para os
rendimentos dos bens dos filhos. Antes de 1977, os pais tinham o usufruto legal dos rendimentos dos
bens dos filhos, ou seja, os rendimentos passavam a pertencer aos pais. Este usufruto legal
desapareceu, porém os pais podem utilizar os rendimentos dos bens dos filhos para o seu sustento,
mas ainda para satisfazer necessidades da vida familiar (onde se incluem os pais). Os bens não
revertem só no interesse do filho, mas no interesse da vida familiar. Não temos aqui um comum
administrados de bens alheios, pois aqui os rendimentos podem reverter de alguma forma para ele.
3. Outra situação em que o critério estabelecido é o inverso ao geral é a do art. 1897.º. O padrão de
diligência que a lei costuma adoptar na administração é a do homem médio; logo seria de pensar que
na administração dos bens dos filhos a lei exigisse um maior cuidado. Mas não: a diligência que os
pais são obrigados a utilizar é apenas a diligência que usariam na administração dos seus próprios
bens. Isto porque a lei confia mais nos pais, logo não lhe exige muito, contentando-se com isto.
4. Art. 1898.º e 1899.º: a lei dispensa os pais de prestar caução. Normalmente, o administrador privado
tem de prestar uma caução quando inicia a administração, como uma garantia de que irá fazer uma
boa administração; e tem de prestar contas finais. Aqui, a lei dispensa quer a caução inicial, quer a
prestação de contas final.

2.3 Modo de exercício

Havendo dois co-responsáveis, como se articula as responsabilidades entre eles?

1) Regime das responsabilidades parentais durante o matrimónio: se os pais são casados, e enquanto o são,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

regem os arts. 1901.º e 1902.º. O art. 1901.º fixa o princípio segundo o qual as responsabilidades pertencem a
ambos os pais. E como as exercem?
1. O n.º 2 diz-nos que os pais exercem as responsabilidades parentais de comum acordo: à partida,
todos os actos que integram as responsabilidades exigem comum acordo - princípio da exigência de
acordo. Nos casos de desacordo entre os progenitores casados em relação à forma de exercício das
responsabilidades, a lei prevê a possibilidade de recorrer ao tribunal (uma das situações
excepcionais em que a lei o permite). Se o juiz não conseguir que cheguem a acordo, ouve o filho
antes de decidir (n.º 3), salvo quando circunstâncias ponderosas o desaconselhem. Antes de 2008, o
Tribunal apenas ouviria o filho maior de 14 anos.
2. Mas não se pode exigir o acordo dos pais em relação a tudo: assim, a lei fixa no art. 1902.º uma
presunção de acordo quando o progenitor age sozinho, a não ser que a lei exija expressamente o
acordo ou se trate de um acto de particular importância.

Os arts. 1903.º e 1904.º prevêem as hipóteses de impedimento de um dos pais ou morte de um deles, nas quais
será ao cônjuge não impedido ou sobrevivo que caberá o exercício exclusivo das responsabilidades.

2) Regime das responsabilidades parentais numa situação de divórcio (ou em situações análogas): aplicam-
se aqui os arts. 1905.º e 1906.º, que sofreram profundas alterações com a Lei 61/2008. Temos três questões
fundamentais a responder.

 Quem paga as despesas do filho? Em princípio, ambos terão a obrigação de custear as despesas com a
educação, saúde, etc. do filho, dentro das possibilidades de cada um – art. 1905.º. Esta questão deverá ser
regulada por acordo, sujeito a homologação, que será recusado se não corresponder ao interesse do filho (a
lei esqueceu-se de mencionar o caso em que é regulado pelo tribunal e não por acordo). Poderá aqui haver
obrigação de prestar alimentos, que normalmente caberá ao progenitor com direito de visita.

 Com quem é que o filho ficará a viver? Com a Lei 61/2008, já não se fala de "guarda". O Código Civil
praticamente não regula este aspecto, mas apenas pressupõe que o filho, após o divórcio, será entregue a um
dos progenitores, ficando o outro com direito de visita - art. 1906.º/5. Isto é o que normalmente acontece após
o divórcio, sendo o progenitor residente a mãe. Há um outro diploma que prevê estes aspectos em maior
pormenor ("Organização Tutelar dos Menores"). Com a Reforma de 2008, acentuou-se aqui a
responsabilidade decisória do Tribunal, sendo o acordo entre os pais quanto a este aspecto remetido para
segundo plano.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Note-se que, noutros sistemas, se permite a "guarda alternada": em vez de o filho ficar a residir com apenas
um dos cônjuges, admite-se que o filho fique por períodos iguais a residir alternadamente com os
progenitores, por forma a pô-lo em contacto com os dois progenitores de igual modo. Não sendo este o
sistema geral, nem o sistema pressuposto na nossa lei, é possível. A lei não proíbe a isto, aliás, está no próprio
espírito do nosso sistema (art. 1906.º/7) que o tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do filho,
preocupando-se que este mantenha uma relação de proximidade com ambos os cônjuges. O regime da
residência alternada cabe assim no espírito do nosso sistema: se os progenitores optarem pelo regime de
guarda alternada em condições de igualdade, e o tribunal entender que este serve o interesse do filho, deve
ser homologado pelo tribunal.

 Mas a questão que mais problemas levanta, e que está regulada em pormenor no nosso Código, é a
seguinte: quem toma as decisões quanto à vida do filho? Podemos destacar dois passos na evolução inicial
desta matéria:
1. Reforma de 1977: introduziu o sistema de que o progenitor ao cuidado de quem o filho fosse
entregue é que decidia as questões relativas à vida do filho. Na prática, sendo os filhos entregues à
mãe, era esta que decidia as questões. Ao outro progenitor cabia, nos termos da lei, o direito de
"vigiar" a forma como o progenitor residente exercia as suas responsabilidades.
2. Ao pouco, este sistema começou a ser contestado – o pai deveria ter o poder de decidir. Assim,
através da Lei 84/95 (posteriormente alterada pelo DL 59/99), introduziu-se uma primeira alteração
no sistema: o progenitor não residente poderia ser chamado a decidir em certas questões, se os
cônjuges o tivessem fixado no acordo das responsabilidades parentais. O regime do exercício
unilateral das responsabilidades deixou de ser imperativo e passou a ser supletivo, podendo ser
afastado pelo acordo dos progenitores.

A reforma de 2008 trouxe grandes alterações nesta matéria:


1. A regra passou a ser a de que, em relação às questões de particular importância, as responsabilidades
parentais são exercidas em comum por ambos os progenitores - art. 1906.º/1. Esta é a regra, em
princípio com carácter imperativo, embora possa ser afastada em certas situações excepcionais:
situações de urgência, ou situações em que o exercício em comum das responsabilidades possa
afectar o interesse do filho (por exemplo, situações em que os pais não se falem). Aqui, o tribunal
pode, através de decisão fundamentada, determinar que as responsabilidades serão exercidas por um
dos progenitores, mesmo em relação às questões de particular importância – art. 1906.º/2.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

2. Além destas questões de particular importância, há outras – o Código diz, no n.º 3, que o exercício
das responsabilidades parentais em relação às questões de vida corrente são decididos pelo progenitor
com quem o filho está naquele momento. Estes conceitos de "questões de vida corrente" e "questões de
particular importância" são altamente discutidos.
3. Simplesmente, a lei diz ainda no n.º 3 que o progenitor com direito de visita tem de respeitar as
orientações educativas decididas pelo progenitor. Assim, a lei atribui a competência unilateralmente
ao progenitor residente de definir as orientação educativas fundamentais do filho, devendo entender-
se aqui a "educação" em sentido amplo (actividades extra-curriculares, horários do estudo, horas de
ir para a cama, etc.).

Outras notas acerca da Reforma de 2008:


1. Destaca-se ainda o n.º 6 do art. 1906.º, que impõe ao progenitor que exerce as responsabilidades
parentais, ou que actue sozinho, um dever de prestar informações ao outro (também n.º 1, in fine); e
o n.º 7, que explicita o critério de decisão do tribunal, no sentido do interesse do filho, incluindo o de
manter uma relação de grande proximidade com ambos os progenitores e o de que as
responsabilidades parentais sejam partilhadas.
2. A Reforma procurou concretizar o objectivo de evitar que o divórcio ou a separação dos pais
provoque o afastamento de um dos progenitores em relação ao filho: a ideia subjacente é a de que,
no interesse do filho, ambos os progenitores se devem manter comprometidos com o seu
desenvolvimento. Esta imposição do exercício conjunto das responsabilidades parentais é
contrabalançada pelo esclarecimento de que a actuação conjunta diz respeito apenas às questões de
particular importância. Quando o filho estiver temporariamente a residir com o progenitor com
direito de visita, este tomará decisões relativas aos actos da vida corrente do filho, mas sem contrarias
as orientações educativas definidas pelo outro.

Há uma corrente de "mulheres familiaristas" que criticam o regime da Reforma de 2008:


1. Em primeiro lugar, este sistema é criticado por exigir o comum acordo dos cônjuges, quando os
divórcios originam um clima de mau relacionamento entre eles, e exigir que cheguem sempre a
acordo pode "abrir as feridas". Mas a lei quer precisamente que estes tenham um bom
relacionamento
2. Outra crítica tem a ver com o facto de este regime atender aos interesses particulares dos
progenitores, ao exigir a sua igualdade. Mas se a lei exige o acordo dos progenitores, é precisamente
no interessa da própria criança que o fez.

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3. Também se argumenta que a reforma de 77 feriu os pais na sua auto-estima e orgulho, logo este
regime que devolveu competência aos pais foi para lhes devolver o seu orgulho. Este argumento é
algo ridículo.
4. Exigindo sempre acordo de ambos os progenitores, os pais podem boicotar o exercício normal das
responsabilidades parentais. Mas mesmo que isto ocorresse, a própria mãe p - as questões de
particular importância são resolvidas de comum acordo e nos termos em que o seriam . Mas não se
pode estar sempre a ir a tribunal, logo esta é uma das situações em que o juiz pode julgar contrário
aos interesses do menor o exercício em conjunto das responsabilidades parentais, entregando o
exercício exclusivamente a um deles.

Tendo afastado estas críticas, subjazem algumas dúvidas pertinentes:


1. Se os pais podem estabelecer um acordo acerca das responsabilidades parentais, se estes por acordo
decidissem atribuir as responsabilidades apenas a um, esse acordo deveria ser homologado pelo
Ministério Público ou pelo juiz? Esta foi uma orientação que surgiu nos nossos tribunais, mas não
teve êxito: a norma do art. 1906.º/1 é uma norma imperativa, que não pode ser afastada pelo acordo
dos progenitores. O que pode acontecer é que haja esse acordo, e simultaneamente com outros
factores o tribunal chegue à conclusão de que, no interesse da criança, as responsabilidades devem
ser entregues exclusivamente a um dos progenitores. O acordo pode ser homologado (não deve), e
só se simultaneamente houver outros factores que para tal concorram.
2. Quando se fala em questões de particular importância, esta "importância" é a importância para o filho
(por exemplo, quando se discute colocar ou não o filho numa escola privada muito cara, esta decisão
é importante para os pais em termos financeiros, mas não é esta importância que conta).
3. Nas decisões do juiz nesta matéria, interessa ouvir a opinião do próprio filho, quer em relação ao
problema de com quem irá residir, quer ao de saber quem tomará as decisões. Discute-se hoje muito
se a opinião do filho deve ser considerada mesmo quando um dos progenitores fez uma espécie de
"lavagem cerebral do filho" - "síndrome da alienação parental", em que um dos progenitores ensina
ao filho a não gostar do outro.

3) Regime das responsabilidades parentais relativamente a filhos nascidos fora do casamento e efeitos da
dissolução da união de facto.

 Havendo separação de facto, o art. 1909.º manda aplicar as disposições que regem as responsabilidades em
caso de divórcio.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

 O art. 1910.º diz que, se a filiação se encontrar estabelecida em relação a um dos progenitores, só esse é que
exerce as responsabilidades.

 Se os progenitores viverem em união de facto, o art. 1911.º/1 manda aplicar as normas aplicáveis às
responsabilidades parentais na vigência do casamento (art. 1901.º a 1904.º). Se houver ruptura da união de
facto, o n.º 2 manda aplicar as normas aplicáveis à ruptura do casamento (art. 1905.º a 1908.º). A solução do
n.º 1 pode suscitar algumas dúvidas, uma vez que não existe qualquer registo para as uniões de facto,
enquanto que a regulação das responsabilidades parentais é um facto obrigatoriamente sujeito a Registo Civil
(art. 1.º/1/f) CRegCiv).

 Finalmente, o art. 1912.º prevê uma situação em que a filiação está juridicamente estabelecida, mas os pais
nunca tiveram qualquer relação. Neste caso, a lei manda aplicar ao exercício das responsabilidades parentais
o regime do divórcio. Esta é uma solução não muito ideal, uma vez que os progenitores nunca tiveram
qualquer tipo de relação mas têm de se pôr agora de acordo nas questões de particular importância. No
divórcio, há um base mínima que permite pensar que se podem pôr de acordo; neste caso, os progenitores
mal se conhecem, logo a exigência de acordo pela lei é criticável. Claro que o próprio regime do divórcio
permita que o tribunal atribua em exclusivo o exercício das responsabilidades a uma pessoa, pelo que há
sempre esta escapatória.

2.4 Inibição das responsabilidades parentais

Os pais podem deixar de exercer as responsabilidades parentais, ou seja, podem ser inibidos de tomar
decisões. A lei vai arranjar assim outras formas de tomar decisões. A lei prevê inibições e limitações.

1) Nas inibições, os progenitores são afastados totalmente da faculdade de tomar decisões em relação ao filho:
1. Art. 1913.º: inibição automática ou de pleno direito. São casos em que, em consequência da
verificação de certos factos, um dos progenitores ou ambos são afastados automaticamente.
Exemplo: o progenitor ser inabilitado ou interdito; a ausência do progenitor; etc.
2. Art. 1915.º: inibição judicial. O tribunal pode decretar a inibição quando há um incumprimento
culposo dos deveres dos pais para com os filhos ou, ainda que não haja infracção culposa, quando
por inexperiência ou outras razões os progenitores não se mostrem objectivamente em condições de
cumprir os deveres. Nestes casos, e sempre em consequência de uma sentença judicial, o progenitor

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

pode ser inibido das responsabilidades.

Uma vez inibidos os progenitores, pode suceder que mais tarde retomem as responsabilidades, se as razões
que levaram à inibição cessarem - ex: a interdição é levantada.

2) Nas limitações, não há uma privação total – o progenitor conserva, em relação a tudo que não colida com o
âmbito da limitação, o exercício das responsabilidades.
1. Limitações de natureza pessoal: art. 1918.º. Ocorre quando a saúde, educação, etc. do filho está em
perigo, mas não há razões para a inibição. Os pais conservam as responsabilidades quanto ao resto -
art. 1919.º.
2. Limitações de natureza patrimonial: art. 1920.º. Aqui, o que está em causa é a má administração dos
bens dos filhos, e não seja caso de inibição.

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A ADOPÇÃO

A. Generalidades

1. Noção e espírito do instituto

A adopção está definida no art. 1586.º: é um vínculo que, à semelhança da filiação natural mas
independentemente dos laços de sangue, se estabelece entre duas pessoas. Por oposição ao parentesco natural, é
assim um parentesco legal, criado à semelhança daquele – o que não quer dizer que se trate de uma ficção da
lei, apenas assenta numa realidade diferente.

A adopção como fonte de relações jurídicas familiares foi introduzida no Código de 1966 – apesar se ser um
instituto antigo, caiu em desuso desde o século XVI, não estando previsto no Código de Seabra. O espírito
que hoje tem a adopção é completamente distinto do seu espírito inicial: antes, tinha fundamentalmente o
propósito de servir o interesse do adoptante, que assegurava a perpetuação da família e a transmissão do
nome e do património. Hoje, a adopção visa servir o interesse do menor adoptado, que se encontra desprovido
de um ambiente familiar normal capaz de prover ao seu cuidado – esta ideia está expressa no art. 1974.º/1. É
claro que podemos encontrar outros interesses, como o dos pais que não conseguem ter filhos, mas não é
este o interesse que domina – aliás, a adopção só pode existir quando servir o interesse da criança. Mas o este
interesse da criança é visto à luz do interesse geral, daí não se permitir, em regra, a adopção e crianças com
idade superior a 15 anos (este interesse público está expresso, por exemplo, na irrevogabilidade da adopção
plena).

De 1966 até hoje, têm havido algumas alterações, que demarcam uma evolução no sentido da facilitação
progressiva da adopção – designadamente, na idade mínima para a adopção, assim como no tempo mínimo
de casamento. Porém, a lei passou, por outro lado, a ser mais exigente no que toca ao interesse do filho: por
exemplo, os pais têm de estar, antes de ser decretada a adopção, durante um certo período com o filho
adoptivo a seu cargo. Há muita legislação avulsa que tem vindo a alterar pequenos aspectos da adopção, mas
podemos identificar duas grandes tendências: a facilitação da adopção, por um lado, e a maior exigência no
que toca ao interesse do filho, por outro.

2. Modalidades

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A adopção pode ser:


1. Conjunta: é feita por duas pessoas, casadas ou em união de facto.
2. Singular: é feita por uma só pessoa.

E pode ser, quanto aos efeitos:


1. Plena: o filho adoptado integra-se plenamente na família do adoptante, quebrando-se todos os laços
do filho adoptivo com a família biológica. O menor passa a ser, para todos os efeitos, filho
plenamente dos pais adoptivos
2. Restrita: os pais adoptivos não passam a ser pais para todos efeitos, pois não há uma integração plena.
Simultaneamente, mantém-se um relacionamento, com consequência jurídicas, com os pais
biológicos.

Adopção por pessoas do mesmo sexo

Em relação à adopção conjunta, sabemos que ainda não se permite que esta seja feita por um casal ou por
unidos de facto do mesmo sexo. Porque é que a lei mantém esta regra? Uma pessoa que viva com uma pessoa
do mesmo sexo pode adoptar, mas tem de ser uma adopção singular – não se pode impedir um dos cônjuges
ou um dos unidos de facto a adoptar. Parece haver aqui um obstáculo lógico, que tem a ver com a noção de
adopção: este é um vínculo que se estabelece exactamente à semelhança do vínculo natural, logo, quer-se dar
um pai e uma mãe. Isto é criticável, mas é o que parece estar por trás da opção legislativa.

O projecto da co-adopção viria permitir que, quando um dos membros do casal homossexual já tivesse um
filho, o outro membro do casal poderia adoptar esse filho. Este projecto foi aprovado na Assembleia da
República na generalidade, mas na especialidade foi travado.

De onde resulta a proibição de adopção conjunta por pessoas do mesmo sexo? A lei não o afirma
expressamente: a Lei 9/2010 (que aprovou o casamento homossexual), no seu art. 3.º, afirma que a
admissibilidade do casamento por pessoas do mesmo sexo não implica a admissibilidade legal de adopção. No
n.º 2, diz que nenhuma disposição legal relativa à adopção pode ser interpretada em sentido contrário (esta é
uma norma interpretativa), sendo que a expressão "em relação a qualquer das suas modalidades" refere-se
apenas à alternativa adopção plena/restrita, pois a adopção singular é obviamente admissível.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

B. Regras comuns à adopção plena e à adopção restrita

1. Requisitos gerais

O Código começa por estabelecer regras gerais que se aplicam quer à adopção plena, quer à adopção restrita.
Quais são os requisitos gerais fixados nos arts. 1973.º e segs.? Desde logo, a adopção, como consta do art.
1974.º/1, visa o interesse superior da criança.

Quais os requisitos gerais para que possa ser decretada uma adopção, para que haja uma sentença judicial que
o faça? O art. 1974.º/1 diz que a adopção só pode ser decretada quando:
1. Apresente vantagens reais para o adoptante: é essa a intenção da adopção, de dar ao adoptante um
ambiente familiar que não teria.
2. Se funde em motivos legítimos: historicamente, têm aparecido adopções para motivos não legítimos
(ex: contornar normas fiscais).
3. Não envolva sacrifícios injustos para os outros filhos do adoptante: se o adoptante já tiver filhos
(naturais), a adopção não pode acarretar para estes prejuízos injustos.
4. Entre o adoptante e o adoptado se estabeleça um vínculo semelhante à filiação: não se deve admitir a
adopção quando seja previsível que não se venha a estabelecer entre as pessoas um vínculo
semelhante ao da filiação. Pode haver situações em que, por mais vantagens que a adopção
representasse para o adoptado, não é de supor que se estabeleça este vínculo. Ex: os amigos não
podem adoptar os amigos, os irmãos não podem adoptar os irmãos, etc.
5. O adoptado tenha estado ao cuidado do adoptante: antes de se constituir definitivamente a adopção,
tem de haver um período inicial suficiente no qual se possa avaliar se entre eles se irá estabelecer uma
relação normal de filiação. Estas são as chamadas "medidas de confiança", que podem ser de dois
tipos: se a entrega da criança for autorizada por uma entidade da Segurança Social, é uma medida
administrativa; se for por uma entidade judicial, é uma medida judicial.
6. Se a criança já foi adoptada, não se pode constituir uma outra adopção – princípio da exclusão, art.
1975.º. Isto com uma única excepção: os casos em que os adoptantes são casados ou viverem em
união de facto.

2. Processo

Qual é o processo normal da constituição da adopção? Isto está pouco regulado no Código Civil, pois há outros

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

diplomas que o fazem.

1) Normalmente, é apresentada uma candidatura por parte dos pais, do pai ou da mãe, no organismo da
Segurança Social – art. 5.º/1 DL 185/93 Este organismo estuda a pretensão e, sendo caso disso, aprova a
pretensão.

2) Uma vez aprovada a candidatura da pessoa ou pessoas que manifestaram o seu interesse, haverá
eventualmente lugar às medidas de confiança: a criança será confiada à guarda dos adoptantes. A confiança
pode ser de dois tipos.

 Confiança administrativa: não está regulada sistematicamente no Código Civil, estando apenas referida no
art. 1980.º/1. O que é a confiança administrativa?
1. É decretada por um organismo da Segurança Social, só sendo possível em relação a menores com
mais de 6 semanas de idade.
2. Só pode ser atribuída se for autorizada pelos representantes do menor, em regra os pais biológicos (a
Segurança Social não pode impor esta medida contra a vontade dos representantes).
3. Esta medida de confiança está prevista sobretudo no art. 8.º do DL 185/93.

 Confiança judicial: pode ser de dois tipos:


1. Confiança judicial comum: está prevista no art. 1968.º do Código Civil, consistindo na medida de
confiança decidida pelo tribunal quando não existam ou se achem seriamente comprometidos os
vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de alguma das situações previstas
no n.º 1. Está desenvolvida no diploma da Organização Tutelar de Menores (OTM).
2. Há uma outra forma de medida judicial de confiança, referida de passagem no art. 1978.º - "medida
de promoção (de direitos) e protecção das crianças e jovens (em perigo)", a fórmula está incompleta.
Traduz-se igualmente numa medida judicial de confiança, tendo um enquadramento jurídico
diferente – está prevista na Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo (Lei 147/99, art. 35.º). A
maior parte das medidas aqui previstas não são judiciais, mas neste caso esta é uma medida judicial: a
criança é confiada às pessoas designadas para a adopção ou a uma instituição com vista a uma futura
adopção. Sendo duas medidas diferentes, previstas em lugares diferentes, a verdade é que têm os
mesmos efeitos, também só podendo esta medida ser aplicada nos casos do art. 1978.º.

Vimos que a confiança administrativa tinha de ser autorizada pelos pais biológicos; no entanto, o juiz já pode

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

impor a medida de confiança judicial, mesmo contra a vontade dos pais. O art. 1978.º diz precisamente que
estas medidas se aplicam a casos em que os pais existem mas tiverem abandonado o menor, etc.

3) Uma vez decretada a medida de confiança, inicia-se a fase da confiança ou pré-adopção, não superior a 6
meses, em que o organismo de segurança social ocupa a situação do menor e realiza o inquérito previsto no
art. 1973.º/2. O resultado do inquérito é notificado ao candidato a adoptante, a quem é fornecida a cópia do
relatório; após a notificação ou decorrido o prazo de elaboração do relatório, a adopção pode ser requerida.

Vimos que as medidas de confiança podem ser a pessoas designadas para futura adopção ou a instituições
com vista a uma futura adopção, logo, em relação a esta última, não se inicia esta fase prévia de pré-adopção.

4) Passado um prazo razoável deste tempo de pré-adopção, o processo entra numa fase judicial obrigatória
(obrigatória pois até aqui pode não ter havido intervenção judicial, se a medida de confiança for
administrativa) – art. 150.º e seguintes OTM.
1. Este é um processo de jurisdição voluntária, pois há apenas uma parte interessada – os pais que
querem adoptar. Não existe aqui uma estrutura contenciosa.
2. Este processo inicia-se assim não com uma petição inicial, mas sim com um requerimento. Os
tribunais competentes são os tribunais da família e dos menores (não havendo, é o tribunal de
comarca).
3. O requerimento que o candidato apresenta deve ser acompanhado do relatório do art. 1973.º/2.
4. Uma vez apresentado o requerimento, o juiz ouve as pessoas que tem de ouvir; nomeadamente, a lei
exige em casos que terceiros tenham de consentir na adopção, art 1981.º (pode ser dispensado nos
casos do n.º 3).

5) Finalmente, o juiz decreta a adopção por sentença judicial, que tem por isso carácter constitutivo – é da
sentença, e no momento em que é decretado a sentença, que se constitui o vínculo adoptivo.

6) A constituição do vínculo tem de ser registado, como todos os factos que dizem respeito ao estado da
pessoa. A adopção é registada por averbamento ao assento de nascimento do adoptado (art. 1.º/1/c) e
69.º/1/f) CRegCiv). Na adopção plena, como a filiação adoptiva se substitui por completo à filiação
biológica, a lei permite que mediante requerimento dos pais seja lavrado um novo assento de nascimento (art.
123.º/1), protegendo assim os interesses dos pais adoptivos de apagar do registo a história passada da criança.
Apenas se podem tirar certidões de nascimento do segundo assento, salvo ceras excepções, o que significa

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que o primeiro assento não é cancelado (art. 123.º/3). Porque permanece o anterior assento?
1. Nas relações entre o adoptado e a sua família natural mantêm-se o impedimentos matrimoniais
referidos nos arts. 1602.º a 1604.º (art. 1986.º, in fine) – art. 213.º/3 CRegCiv.
2. A lei admite que a filiação natural do adoptado seja mencionada nas certidões extraídas do assento
de nascimento, mas sem prejuízo do art. 1985.º/2, relativo ao segredo da identidade dos pais (art.
213.º/3).
3. O art. 214.º/2 CRegCiv permite ainda que sejam passadas certidões do assento de nascimento do
adoptado, onde consta a sua filiação natural, a requerimento das pessoas aí referidas, sem prejuízo
do art. 1985.º/2.

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C. Adopção plena

1. Consentimento

Quem tem de consentir na adopção – art. 1991.º/1?


1. O próprio adoptante: isto é tão óbvio que está pressuposto pela lei, não sendo referido expressamente
no art. 1981.º.
2. Além deste consentimento pressuposto, é ainda necessário o consentimento das pessoas enumeradas
no art. 1981.º: o adoptando quando tiver mais de 12 anos; o cônjuge do adoptante quando for uma
adopção singular; e os pais do adoptando, a não ser naqueles casos de abandono, etc. A adopção é
uma medida dirigida nestes casos contra a sua vontade.

Apesar de a lei pôr estes consentimentos todos no mesmo plano, a verdade é que o consentimento do
adoptante é mais importante, o que se manifesta em dois aspectos:
1. Se não tiver havido consentimento do próprio adoptante, ou este tenha sido viciado por erro ou
coacção moral, a sentença poderá ser revista (art. 1990.º); esta possibilidade não existe para os outros
consentimentos.
2. Por outro lado, há a possibilidade de dispensa do consentimento das outras pessoas (art. 1981.º/3),
pelo que estes consentimentos são meras condições extrínsecas de perfeição da adopção. O
consentimento do adoptante não pode ser dispensado.

2. Requisitos de capacidade

 Quanto à capacidade do adoptante, rege o art. 1979.º:


1. A idade máxima para adoptar é de 60 anos, à data em que o menor lhe tenha sido confiado mediante
medida de confiança (n.º 3, 1ª parte).
2. Porém, a diferença de idades entre o adoptante e o adoptado não pode ser superior a 50 anos (n.º 3, 2ª
parte). A lei presume que nestes casos não se estabelece um vínculo semelhante à relação que existe
entre pai e filho, para além de outras razões que possam aqui concorrer. Isto a não ser que,
excepcionalmente, motivos ponderosos o justifiquem, nomeadamente o facto de se tratar de uma
fratria: o adoptante quer adoptar duas crianças que sejam irmãs, e o requisito da diferenças de idades
só se verifica em relação a uma delas (n.º 4).
3. Estes requisitos não se aplicam se o adoptado for filho do cônjuge do adoptante (ou da pessoa com

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quem viva em união de facto, como se deve entender em face do art. 7.º da Lei 7/2001) – a adopção de
filho de cônjuge beneficia assim de regime mais favorável, sobretudo por favorecer a integração do
menor na família.
4. Há também uma idade mínima, estabelecida no n.º 1 e 2 respectivamente: a idade mínima é de 25
anos, se se tratar de uma adopção conjunta; e de 30, se for uma adopção singular. Na adopção
conjunta, a lei exige ainda que o casamento ou união de facto já tenham durado 4 anos.

No quadro daquele inquérito, outras incapacidades poderão ser averiguadas pelo juiz, sejam incapacidades de
direito, sejam incapacidades de facto: todas estas circunstâncias que a lei não menciona expressamente terão
de ser averiguadas à luz do inquérito: condições económicas, psíquicas, etc. O juiz não decretará a adopção
se os adoptantes não tiverem capacidade de facto ou de direito para adoptar.

 Quanto à capacidade do adoptando, dispõe o art. 1980.º:


1. N.º 1: podem ser adoptados plenamente os menores filhos do cônjuge do adoptante (co-adopção),
bem como aqueles que tenham sido confiados (medida de confiança prévia). Mesmo não tendo
havido o período de pré-adopção, a lei dispensa a medida de confiança se se tratar de filho do
cônjuge do adoptante.
2. N.º 2: a lei apenas permite a adopção de crianças com uma idade inferior a 15 anos. No entanto.
Podem ser adoptadas crianças com idade superior a 15 mas inferior a 18 quando:
a. O período de confiança se iniciou com idade inferior a 15 anos.
b. O adoptando for filho do cônjuge do adoptado.

3. Efeitos

 O princípio geral consta do art. 1986.º/1: pela adopção plena, o adoptado adquire a situação de filho do
adoptante (desde a data do trânsito em julgado da sentença, leia-se: a adopção é constitutiva), integrando-se
com todos os seus descendentes que vier a ter na família do adoptante. No fundo, passa a ser mais um filho,
para todos os efeitos.

Por outro lado, se ele se integra plenamente na família do adoptante, isto significa que cessam todas os
vínculos do adoptado com a sua família biológica. Ressalvas:
1. Todos os vínculos jurídicos que o ligavam à família biológica se extinguem, sem prejuízo do disposto
quanto aos impedimentos matrimoniais.

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2. A ideia da extinção não se aplica no caso da adopção do filho do cônjuge: mantêm-se naturalmente
as relações entre o adoptado e o progenitor biológico, não colide com adopção.

 Sendo a adopção plena, as consequências que a lei determina quanto ao nome estão em consonância com o
princípio geral, art. 1988.º:
1. N.º 1: o adoptado perde os apelidos de origem e toma novo nome, constituído nos termos gerais do
art. 1875.º.
2. N.º 2: quanto ao seu nome próprio, o DL 185/93 veio introduzir a possibilidade de, a pedido do
adoptante, o tribunal poder excepcionalmente modificar o nome próprio do menor, sobretudo se
isso favorecer a sua integração na família (ex: a criança tem um nome estrangeiro). A isto pode opor-
se o direito do menor à sua identidade pessoal, o que poderá assumir relevo se o adoptando já tiver
uma certa idade.

4. Irrevogabilidade da adopção

A adopção plena é irrevogável, art. 1989.º, à semelhança da relação de maternidade ou paternidade. Assim,
não pode o adoptante, cuja vontade foi determinante, vir mais tarde a arrepender-se, não se admitindo nem a
revogação unilateral, nem a contratual. Passando a ser filho plenamente, não pode esta relação cessar por
simples vontade dos sujeitos (adoptante ou adoptante e adoptado).

5. Possibilidade de filiação biológica

Depois de estabelecida a adopção plena, a protecção da estabilidade do vínculo vai ao ponto de a lei não
permitir que se estabeleça a filiação biológica ou se faça prova dessa filiação – art. 1987.º. A lei quer que a
adopção valha, no fundo, publicamente como uma filiação biológica. Podem-se aqui suscitar dúvidas
quanto à conformidade ao direito à identidade pessoal do menor – esta questão deve ser apreciada em face
do art. 18.º/2 da Constituição, que admite restrições aos direitos, liberdades e garantias expressamente
previstos, em nome de outros. Este é precisamente um caso de restrição constitucionalmente prevista (a
adopção é um instituto garantido pelo art. 36.º/7), devendo porém valer aqui o critério da
proporcionalidade.

Isto a não ser para efeitos de impedimentos patrimoniais: se o adoptado quiser casar e se supõe que a pessoa
com quem quer casar é o seu pai biológico, a lei admite que se faça prova da filiação biológica no processo de

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casamento.

6. Possibilidade de revisão da sentença

A sentença que decreta a adopção pode ser revista, art. 1990.º e 1991.º (regime da acção da revisão da
sentença). Os processos de revisão estão determinados no Código de Processo Civil: excepcionalmente, em
casos gravíssimos, a lei permite que a sentença, apesar de já ter transitado em julgado, possa ser revista. Este
processo de revisão também pode ser revista, com fundamento na falta ou viciação do consentimento do
adoptante, dos pais do adoptado, ou do adoptado, nas condições previstas (art. 1990.º/1).

Outras notas sobre a revisão:


1. A lei prevê que, ainda que tenha havido falta ou viciação do consentimento, o juiz se recuse a
extinguir a adopção, quando os interesses do adoptado possam ser consideravelmente afectados.
2. Como se funda em vícios originários, a revisão da sentença tem efeitos retroactivos.
3. Uma questão que se discute nas Lições é a de saber se, para além dos fundamentos previstos, podem
servir aqui os fundamentos gerais previstos no Código de Processo Civil: parece que sim, até porque
os fundamentos aí previstos são mais graves (ex: corrupção do juiz).

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D. Adopção restrita

1. Requisitos

A adopção restrita está prevista nos arts. 1992.º e segs. O art. 1993.º/1 remete-nos para o disposto quanto à
adopção plena, aplicando-se aqui o seu regime, com as devidas excepções.

Porém, existem três diferenças em termos de requisitos, art. 1992.º:


1. Se a lei exigia uma idade mínima de 30 anos para a adopção plena singular, aqui a lei basta-se com a
idade de 25.
2. Enquanto que a lei exige um período mínimo de casamento ou união de facto para a adopção plena
(4 anos), não há qualquer exigência deste género na adopção restrita.
3. Enquanto que para a adopção plena a lei exige uma diferença máxima de idades (art. 1969.º, para o
qual o regime da adopção restrita não remete), para a adopção restrita a lei não estabelece este
requisito.

Em tudo o mais, valem os mesmos requisitos consagrados para a adopção plena.

2. Efeitos

Vimos que, enquanto que na adopção plena há uma integração plena do adoptado na família do adoptante,
na restrita isto não acontece: o filho não passa a ser filho para todos os efeitos. Por outro lado, em
conformidade com esta ideia, não cessam os vínculos jurídico-familiares em relação à sua família biológica.
Assim, coexiste a filiação natural com a filiação adoptiva. Isto resulta do grande princípio do art. 1994.º, do
qual podemos concluir que o espírito que subjaz a estes dois institutos é distinto.

 Quanto aos efeitos sucessórios:


1. Na adopção plena, o adoptado passa a ser filho para todos os efeitos, logo também para os efeitos
sucessórios. Na restrita, como não há esta filiação por inteiro, o art. 1996.º diz que o adoptado (ou os
seus descendentes) e os parentes do adoptante não são herdeiros legítimos e legitimários. Não resultam
relações sucessórias entre o adoptado e os parentes do adoptante - os irmãos do adoptante, por ex., e
o adoptado não são sucessores um dos outros.
2. Ao dizer isto, a lei subentende que existem relações sucessórias entre o adoptado e os adoptantes: isto

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consta do art. 1999.º (numa inversão de ordem estranha).


a. N.º 1: o adoptado não é herdeiro legitimário do adoptante (os herdeiros legitimários são
herdeiros que sucedem forçosamente numa quota da herança).
b. Além desta sucessão imperativa, há uma outra sucessão: na ausência da declaração de
vontade do de cujus através de testamento, seguem-se as regras da sucessão legítima, que é
uma sucessão supletiva na falta de testamento. Assim, os filhos adoptivos restritos já são
herdeiros legítimos (n.º 2), mas só sucedem na herança dos pais adoptivos na ausência de
cônjuge, ascendente ou descendente (2133.º, ocupando a 3ª classe sucessória).
c. N.º 3: e no caso de o filho adoptivo falecer antes do pai adoptivo? Este é também herdeiro
legítimo e não herdeiro legitimário, mas ocupa a 4ª classe sucessória.

Em suma: produzem-se efeitos sucessórios, ainda que não sejam os mesmos que os da adopção plena.

 Quanto ao nome:
1. A regra é a de que se mantém o nome.
2. No entanto, o art. 1995.º diz que o juiz poderá atribuir ao adoptado, a requerimento do adoptante,
apelidos deste. Têm de continuar presentes apelidos da sua família natural ou biológica, só que a
esses apelidos serão acrescentados outros.

 Quanto à filiação:
1. Na adopção plena, uma vez constituído este vínculo, não podia ser estabelecido um novo vínculo de
filiação.
2. Não há razões para ser assim na restrita: a lei permite isto implicitamente no art. 2001.º. Mesmo que
seja estabelecida uma nova filiação, isto não prejudica em nada a adopção restrita.

 Quanto ao exercício das responsabilidades parentais:


1. O art. 1997.º estabelece o princípio segundo o qual é aos pais adoptivos restritos que cabe exercer as
responsabilidades parentais.
2. No art. 1998.º, todavia, diz-se que o adoptante só pode utilizar os rendimentos dos bens dos filhos
(ao contrário do que resulta do art. 1897.º) na quantia que o tribunal estabelecer e apenas para pagar
os alimentos devidos ao filho.

3. Possibilidade de revisão da sentença

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Na adopção plena, pode haver lugar a um processo especial de revisão da sentença. Aplica-se aqui o mesmo
regime que para a adopção plena: isto resulta da remissão do art. 1993.º para 1990.º e 1991.º.

4. Revogação da adopção

Embora a adopção restrita também seja, em princípio, irrevogável, a lei permite que o vínculo da adopção
restrita seja excepcionalmente revogado: art. 2002.º-B, 2002.º-C e 2002.º-D. Esta revogação pode ser feita a
requerimento de duas ordens de pessoas:
1. Art. 2002.º-B: a requerimento do adoptante ou do adoptado, quando se verifique alguma das
situações que possibilite a deserdação (art. 2166.º: vale um princípio da taxatividade). Verificada
uma destas situações taxativas, o adoptante ou o adoptado podem revogar a adopção.
2. Art. 2002.º-C: está previsto para o caso de o adoptado ser menor e os pais adoptantes não exercerem
devidamente as responsabilidades parentais. Aqui, há uma segunda causa de revogação da adopção,
a requerimento de outras entidades previstas no artigo: pais adoptivos, Ministério Público, ou
pessoas a cujo cuidado estava o adoptado antes da adopção.

A revogação resulta sempre de sentença, nunca é um contrato puro e simples. Tal como houve uma sentença
a decretar a adopção, tem de haver uma sentença a revogar a adopção, o que resulta do art. 2002.º-D. A
revogação, ao contrário da revisão, tem efeitos prospectivos e não retroactivos – os efeitos já produzidos
mantêm-se, pelo que o adoptado conserva todos os benefícios que tenha recebido nessa qualidade.

5. Possibilidade de conversão da adopção restrita em adopção plena

Esta possibilidade está prevista nas disposições gerais da adopção, no art. 1977.º/2: a adopção restrita pode, a
todo o tempo e a pedido dos adoptantes, ser convertida em adopção plena. Esta conversão apenas é possível se
estiverem preenchidos os requisitos de capacidade para a adopção plena; e deve ser averbada ao assento de
nascimento do adoptado (art. 69.º/1/f) do CRegCiv).

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