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40º Encontro Anual da Anpocs

ST 33 – Teoria Social hoje: quais agendas?

Os “Estudos Culturais” como perspectiva teórica segundo Raymond


Williams: os alicerces de um movimento intelectual

Adelia Miglievich-Ribeiro

2016
Os “Estudos Culturais” como perspectiva teórica segundo Raymond Williams: os
alicerces de um movimento intelectual

Adelia Miglievich-Ribeiro1

Resumo: Raymond Williams nota a expansão da noção de cultura que passa de reino
relativamente autônomo de valores intangíveis à articulação de experiências
significativas no mundo social. Produz uma nova teoria da cultura chamada materialismo
cultural que desafia o estruturalismo marxista e abre novas possibilidades para a
mudança. De acordo com Williams, trata-se de superar a apartação entre cultura e
sociedade e, por conseguinte, o binômio infra e superestrutura, enxergando a cultura
como práticas, sentimentos e pensamentos articulados. Hegemonia é seu conceito mais
importante, tendo Williams absorvido a produção da teoria cultural marxista realizada na
Europa continental, retirando a inteligência britânica de um certo insularismo ao
protagonizar a New Left Review, ao lado de E. Thompson e R. Hoggart, os três
precursores dos “Estudos Culturais”, mais tarde, institucionalizados por Stuart Hall.
Preocupo-me em conhecer o autor como teórico da cultura comprometido com um
conhecimento a intervir no mundo supondo fazer nele alguma diferença.
Palavras-chaves: materialismo cultura; Estudos Culturais; New Left Review; estruturas
de sentimentos; Raymond Williams.

Apresentação

Renato Ortiz (2004) alerta para o fato de que, além de não se constituir como
disciplina, os “Estudos Culturais” no Brasil e fora dele, sobretudo na Inglaterra e nos
Estados Unidos, têm características muito diferentes. Cabe acrescer a isto que os
“Estudos Culturais”, a cada nova geração, tomaram direcionamentos distintos ou mesmo
contrários. Ortiz avalia que na academia brasileira sua penetração ainda hoje “se faz
pelas bordas, ou seja, para utilizar uma expressão de Bourdieu, na periferia do campo

1
Professora do Departamento de Ciências Sociais e dos PPGs em Ciências Sociais e em Letras (PGCS e
PPGL) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Bolsa PQ-Produtividade CNPq – nível 2; Taxa
de Pesquisa Fapes.

2
hierarquizado das ciências sociais, particularmente nas escolas de comunicação”
(ORTIZ, 2004, p. 121), deixando intacto o estatuto das disciplinas consagradas. Ainda
assim, a leitura de seus autores contribui para o alargamento e interseccionalidade das
fronteiras disciplinares, evocando salutares “deslocamentos” que postulo como
imprescindíveis se, mais que a defesa de um campo exclusivista de sistemas, conceitos e
métodos a se chamar “sociologia”, contemporaneamente, importa nutrir as teorias sociais
da capacidade de articular saberes e ampliar - este é o fito da ciência - sua inteligibilidade
acerca do mundo.
Se a análise da cultura somaria ao propósito de alargar nossa capacidade de
cognição, cabe dizer, contudo, que esta não conformou, até hoje, uma perspectiva
epistemológica. Em geral, está presente na literatura, na apreciação de sua dimensão
estética; na antropologia, sobretudo quando voltadas às sociedades indígenas, ao folclore,
à cultura popular; na história, é encontrada nas reflexões acerca das civilizações,
mormente, a partir da globalização. Com exceção da antropologia culturalista norte-
americana, era assim mais recorrente recortar a cultura segundo temas e disciplinas do
que elucidá-la como uma “totalidade”. Nesse sentido, os estudos literários existentes
pouco tinham a ver com as análises sociológicas e a antropologia não dialogava
comumente com os desafios da moderna cultura de massa.
O parecer é lúcido, mas não está concluído. Lidar com os aspectos da vida em
sociedade nomeados “cultura” constitui-se, crescentemente nas últimas décadas, um
desafio às teorias sociais ou sociológicas. Vale lembrar que, em “O novo movimento
teórico”, Jeffrey Alexander (1986) explicita os danos das ortodoxias, quer marxistas quer
estrutural-funcionalistas, e exibe, também, o desgaste do embate ad infinitum entre
coletivismo e individualismo metodológicos, concluindo a favor das chamadas teorias-
síntese. Citando Bourdieu, Habermas e Giddens, destaca que:

Do meu ponto de vista, a chave para seu avanço continuado [da sociologia] é
um reconhecimento mais direto da centralidade do significado coletivamente
estruturado, ou cultura. Há um abismo crescente entre a maioria das novas
tendências sintéticas em teoria geral, de um lado, e a atenção à teoria da
cultura que tem caracterizado a nova teorização macro em suas formas mais
substantivas, de outro. Apenas se os teóricos gerais estiverem preparados para
entrar no campo dos "estudos culturais" - equipados, é claro, com seu
instrumental sociológico - é que a ponte pode ser gradualmente construída
sobre o abismo. Desta vez, porém, a teorização sobre a cultura não pode
3
degenerar em camuflagem para o idealismo. Nem deve ser cercada por uma
aura de objetividade que esvazia a criatividade e a rebelião contra as normas.
Se esses erros forem evitados, o novo movimento em sociologia terá uma
chance de desenvolver uma teoria verdadeiramente multidimensional. Essa
será uma contribuição permanente ao pensamento social, mesmo que não
possa impedir a volta do pêndulo [individualismo versus coletivismo].
(ALEXANDER, 1986, p. 17. Os colchetes são meus).

A solução proposta por Alexander à questão e sua defesa de uma teoria


“verdadeiramente multidimensional” faz-me chamar ao debate o crítico galês, Raymond
Williams, precursor dos “Estudos Culturais”, embora não haja sequer sombra de
referência ao marxista heterodoxo por Alexander.
Raymond Williams (1921-1988) destaca-se por ser o principal expoente dos
estudos que envolvem a questão da cultura na teoria marxista, com várias publicações
sobre o tema. A cultura, para Raymond Williams, é constitutiva das relações sociais de
forma que as mudanças nos modos de produção material e na cultura dão-se numa trama
na qual a crítica cultural emerge e se torna um potente recurso para a transformação
social. É nas relações sociais que se dá a formação de significados, justificativas,
aspirações. Práticas, pensamentos e sentimentos articulam-se para garantir a vitalidade de
uma certa ordem social. Há interpretações de acontecimentos que se tornam hegemônicas
num complexo processo que não pode ser enfrentado se não se tem em vista a
possibilidade de lutar para alterar os sentidos na direção da sociedade. Não é casual que
“hegemonia” e o legado gramsciano sejam cruciais para seu materialismo cultural.
Os “Estudos Culturais” de Williams nascem como profundo ato de engajamento
intelectual no combate às várias formas de injustiça e desigualdades sociais. Sua análise
da cultura é a busca das inter-relações entre as práticas sociais, suas repetições, padrões e
alterações na história, isto é, a tentativa de inteligibilidade da complexa organização das
experiências humanas, suas estruturas de pensamento e de sentimentos em variados
contextos. Sobre sua tese conversaremos, para retomar os fundamentos dos “Estudos
Culturais” como perspectiva epistemológica, também política, uma vez que tal
adjetivação não desmerece, ao contrário, seu empenho teórico.

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1. Experiências, consciência coletiva e movimento intelectual

Nascido no País de Gales, Raymond Williams foi socialista, pensador da cultura,


crítico literário e romancista. Sua biografia expressa o processo de ascensão social vivido
que é devedor de um incipiente programa de bem-estar social que o levou ao ingresso no
curso de Literatura em Inglês numa das universidades conhecidas como a formar a elite
britânica. Pode-se dizer que Williams estava no lugar e no momento certo quando, após
as duas grandes guerras, a Inglaterra experimentava uma mudança qualitativa em sua
vida social.
Cevasco (2007a; 2007b) narra que a família de Williams teve papel decisivo na
sua formação política. Seu pai era sinaleiro de estradas de ferro. Ser ferroviário, naquelas
décadas de crise e de desemprego, era algo extremamente valoroso, sobretudo, pela
estabilidade usufruída. Além disso, ser ferroviário na vila de Pandy, onde morava, era
atuar como um elemento da modernização. Os ferroviários liam bastante e conversavam
por horas sobre os acontecimentos políticos para além da pequena vila. Os longos
períodos de inatividade que o ofício de sinaleiro proporcionava esta chance que aqueles
homens sabiam aproveitar. Os sinaleiros falavam uns com os outros pelo telefone das
cabines e obtinham notícias da região industrial de Gales. Com essa rede social, eles
traziam as novas ideias políticas para dentro de suas respectivas vilas. O pai de Raymond
Williams havia crescido como trabalhista mas retornara da I Guerra Mundial fortemente
balançado pelas ideias socialistas. Posteriormente fixou, definitivamente, uma posição
política à esquerda.
O garoto Williams, no período escolar, leu pouco, porém logo conseguiu uma
bolsa de estudos no condado de Abergavenny, para estudar na escola King Henry VIII,
onde passou a frequentar o New Left Club, ligado ao Partido Trabalhista, que teve grande
importância nem sua formação política. No constante contato com as palestras,
discussões e livros, a maioria voltada a assuntos de âmbito internacional, como, por
exemplo, a Revolução Chinesa e a Guerra Civil Espanhola, nosso autor leu e aprendeu
sobre o colonialismo e o imperialismo, termos que o impressionaram. Curiosamente,
Williams voltou-se, na escola, para a linguística e a literatura como um recurso de
escapar a um ensino de história que muito pouco tinha a ver com o mundo real, tal como
este começava a ser por ele percebido:

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A história que nós aprendemos na escola elementar foi uma variedade tóxica
de um chauvinismo galês romântico e medieval dado pelo nosso mestre-
escola. As leituras não eram tão terríveis, mas do tipo de como um príncipe
medieval galês derrotara os saxões e pegara deles grandes quantidades de
gado e ouro. Tudo isso me engasgava. Não era somente porque ela não tinha
conexão. Ela era absolutamente contraditória com o que nós éramos agora.
(WILLIAMS, 2003b, p. 92).

Ao seguir para Cambridge, aos 18 anos, com bolsa de estudos, também se filiou
ao Partido Comunista e ao Clube Universitário Socialista. Os limites estreitos que a
consolidação stalinista impunha ao pensamento crítico provocaram nele um rápido
desencanto. Seguindo os passos de seu pai, Williams decidiu alistar-se no Exército
Britânico para lutar na II Guerra, atitude esta que divergia, aliás, das diretrizes do Partido
Comunista e que o levou ao desligamento. Foi quando retornou do front da Normandia
para Cambridge é que constatou que também o mundo acadêmico havia sofrido
mudanças significativas, em relação àquele no qual ele estudava cinco anos antes. Uma
delas – e a que mais lhe chamou a atenção - foi quanto ao entendimento da palavra
“cultura”. Segundo Raymond Williams, a partir daquele momento, nunca se ouviu tanto
o vocábulo, agora, num sentido divergente de outrora.
Dos “salões de chá”, a expressar alguma espécie de superioridade social
alcançada pelo refinamento dos gostos quanto ao conhecimento de poemas, teatro, artes
plásticas e cênicas, numa similaridade à sociedade de corte, a cultura passava a se
confundir com a noção mesma de sociedade em seu modo de vida particular. Tornavam-
se comuns às referências à cultura inglesa ou britanidade, assim como se poderia falar em
cultura chinesa ou outra (TAVARES, 2008).
Antônio Sá (2011), em seu artigo “História e estudos culturais: o materialismo
cultural de Raymond Williams” atenta ao fato de que os estudos culturais britânicos
nascem nos anos 1950 numa conjuntura específica com fortes rebatimentos nas
reelaborações teóricas que se processam. Aponta para o “beco sem saída” do debate
cultural de então, asfixiado, digamos assim, entre um determinismo econômico do
marxismo comunista britânico nada refinado e o endêmico conservadorismo político e
elitismo cultural do movimento liderado por F. R. Leavis (1895-1978), adepto do
persistente pensamento idealista para o qual, segundo Cevasco, a cultura era:

6
[ ...] âmbito da doçura e da luz, dos bens espirituais a salvo dos interesses
reais, das relações entre pessoas. Designa, ainda, o espaço de atuação de uma
minoria, capaz de compreender e promulgar os mais altos valores da
humanidade, enfeixados nas obras dos grandes autores (CEVASCO, 2007a, p.
12).

Leavis atribuía em seu elitismo a tal minoria “desinteressada” o poder


extraordinário de julgar quais obras efetivamente encerravam os valores humanos mais
elevados, a serem perpetuados pelo cultivo e aprimoramento, num movimento de
resistência à sociedade dos espetáculos de massa.
Raymond Williams observou o medo da democratização da cultura contido na
crença de que os cânones da alta cultura britânica existiriam em plena dissociação da
prática real no mundo. Medo este que se alardeava na medida em que efetivamente a
sociedade mudava, a partir da revolução industrial e em meio aos desdobramentos do
pós-guerra. Leavis tentava ignorar as profundas modificações na vida social e se
mantinha defensor do “esclarecimento” de muito poucos. Supostamente neutra, sua
concepção de cultura alheia aos interesses mundanos, também, afastava a compreensão
das desigualdades e da dominação em prol de um “valor humano” ilusoriamente comum,
que negava a luta de classes.
Contrariamente, Williams sabia, na nova era da comunicação, da relevância
fundamental da cultura para o funcionamento e a manutenção do sistema, precisamente
este de caráter elitista. Ao escrever Cultura e Sociedade 1780-1950, bem como Palavras-
Chave, pensado inicialmente como apêndice ao livro de 1958, o estudioso destrinchou a
tradição idealista da cultura na academia britânica, ao mesmo tempo em que se dedicou a
expor as metamorfoses de cinco palavras que levavam à mudança de sentido de todo um
vocabulário que passaria a explicar as novas configurações sociais. Tomando como ponto
de partida a mutação de sentidos de “indústria”, “democracia”, “classe”, “arte” e
“cultura”, Raymond Williams fez notar como se processava a conservação das estruturas
da sociedade capitalista que envolvia, em sua análise, imaginação e sentimentos, logo,
cultura. Estavam lançados os pressupostos de seu “materialismo cultural”, em oposição a
um tipo de marxismo que negligenciava o potencial da crítica cultural como um dos
aspectos centrais na luta de classes.

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Williams prenunciava uma época na qual emergiria a história local, construída
por historiadores profissionais, sindicalistas e militantes políticos que se utilizariam da
metodologia da história oral, a se consolidar ao longo dos anos 1970. Enquanto os
representantes do movimento operário inglês lutavam para que a cultura popular
ganhasse visibilidade, alguns historiadores autodidatas, como o comunista inglês Ewan
Macoll, se dedicavam ao inventário etnográfico das canções operárias durante o processo
de industrialização. Assim, os jovens historiadores da década de 1960, inspirados na
História do Trabalho, reviam radicalmente seu ofício intelectual.
Os chamados “Estudos Culturais” articulavam-se à História Social inglesa, o que
se verifica na publicação por Williams do já mencionado Cultura e Sociedade, e um ano
antes do Utilizações da Cultura de Richard Hoggart, em 1957. A tríade ficaria completa
com A formação da classe operária inglesa 1780-1930, de E. P. Thompson, publicada
em 1963. Nesta, Thompson propunha um marxismo que pudesse ser melhor
compreendido como uma “teoria da história” - não como “leis da história”, segundo a
quais as pessoas vivem padrões de desenvolvimento pré-determinados – a fim de renovar
na tradição marxista britânica a abordagem cultural, problematizando o determinismo
econômico e destacando a ação humana. As três obras fundamentaram a reflexão nos
anos 1960/70, segundo Stuart Hall (2009), introduzindo elementos novos para se pensar
as questões da cultura.
Os novos ares eram concomitantes à formação de uma esfera pública britânica
com forte presença de professores universitários na mídia, entre publicações e
associações, alcançando as artes dramáticas e a contracultura metropolitana. Perry
Anderson (2004) definiu o perfil predominante desta intelligentsia que abandonava o
paroquialismo e a passividade pré-II Guerra Mundial, na adesão ao consenso político
estabelecido, e, após a segunda Grande Guerra, dava origem à “Nova Esquerda”
britânica, mudando os termos do debate intelectual na Inglaterra que vencia seu próprio
provincianismo.
Williams junto a Eric Hobsbawm, Perry Anderson, E. P. Thompson, Richard
Hoggart, dentre outros intelectuais independentes, fundam, em 1959, a New Left Review.
Herdeira da tradição marxista inglesa, iniciada em 1910 e reforçada em 1946, com o
Comunist party historians group onde estavam os nomes acima, além de Cristopher Hill
e Rodney Hilton, nascia da junção de duas outras revistas passando a expressar o

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pensamento de uma “nova esquerda” que exibia a ruptura de uma parte da
intelectualidade inglesa com a “ortodoxia” marxista.

[...] reformular o conceito de cultura sem, no entanto, abandonar os princípios


de Marx que as orientavam, as publicações da New Left passaram a traduzir
vários pensadores marxistas europeus como, por exemplo, Gramsci, Lukács,
Brecht, Benjamin, Adorno, Marcuse, Althusser etc. O objetivo central era
analisar o pensamento teórico marxista, tentando rever a questão do
reducionismo econômico, de forma a incluir neste pensamento a preocupação
com a questão da cultura. (TAVARES, 2008, p. 10)

Seu primeiro editor foi Stuart Hall, mas Raymond Williams participou como
colaborador desde seu nascimento (HALL, 2009). Bem mais do que uma revista, a New
Left Review expressava a abertura de espaço para o desenvolvimento de debates políticos
e culturais a respeito do futuro do marxismo. Engajados na luta social e cultural da classe
operária, combatendo a educação elitista2, e apostando na democratização da cultura,
Williams, Hoggart e Thompson, cada um a seu modo, traziam também à centralidade do
debate a questão da “hegemonia”, o que inspirava o amplo diálogo entre a “Nova
Esquerda” e o movimento trabalhista na Grã-Bretanha (SÁ, 2011).
Conforme Mussi e Góes (2016), seus participantes tinham a consciência de que a
New Left nascia nos escombros da crise do Partido Comunista da Grã-Bretanha, logo no
período posterior às denúncias dos crimes stalinistas por Nikita Kruchev e em meio aos
conflitos envolvendo a crise militar pelo Canal de Suez e as revoltas antiburocráticas na
Hungria. Sua criação, portanto, coincidia com a necessidade de ex-militantes e
dissidentes dos partidos comunistas em renovar sua referência cultural e política. Sob o
acúmulo de informações sobre tudo que havia falhado na Revolução Russa, buscava-se
mudar o foco para as “mudanças graduais” e observar, no ambiente inglês, novas
experiências político-organizativas, cujos pressupostos e dilemas eram discutidos em
muito na referência às ideias de Gramsci. Alinhado a esta tendência, a ênfase na cultura,
por Williams, implicava seu empenho em reinterpretar o poder da hegemonia capaz de
tudo incorporar de modo a garantir que uma classe predomine sobre as outras na
dimensão da “cultura vivida”.

2
A educação para adultos foi parte importante da atuação institucional da New Left, tendo a participação
ativa de Williams e Thompson na Worker’s Education Association, um projeto de instrução universitária
para adultos.

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2. O materialismo cultural como uma nova teoria da cultura

Marx havia rompido com o materialismo mecânico e propugnado seu


materialismo histórico que passou a incluir a atividade humana como uma força
primordial, porém, neste ainda era enfatizada a relação com a natureza e entre os homens
(e mulheres) na esfera do trabalho. Por isso, o marxismo clássico, fazendo uso de seu
conceito de “determinação” (mesmo que “em última instância”), permitiu a interpretação
de que todas as demais atividades sociais, culturais e morais eram derivadas da produção
material que conformava a infraestrutura econômica da sociedade. Ao inserir a dialética
no materialismo histórico, Marx e Engels aderem, também, a um sentido de leis do
desenvolvimento histórico que os faz se preocuparem com as contradições e a superação
delas numa síntese superior até o estabelecimento entre os humanos, com o fim da
propriedade privada, da cooperação e da reciprocidade. É conhecida a tese da “ditadura
do proletariado” ou socialismo implementados no processo revolucionário a ser,
gradualmente, substituídos pelo comunismo, com o definhamento do Estado ou “coletivo
ilusório” na medida da constituição de um coletivo real a expressar a emancipação
humana. Marx e Engels não testemunharam a complexificação da vida social ao ponto de
verificarem a diversificação das atividades humanas e o nascimento de uma sociedade
civil não necessariamente vinculada à esfera da produção material.
Sem abdicar da percepção da totalidade social, ao contrário, Williams distancia-se
da tradição marxista ao substituir a fórmula clássica de base econômica e superestrutura
por uma ideia de forças determinantes mútuas e desiguais e de formas e relações de vida
social mais abrangentes, o que o impele a desenvolver os conceitos de cultura, ideologia,
linguagem e simbólico subestimados por conta do reducionismo econômico vigente
dentro do marxismo (HALL, 2009). Assim, para R. Williams, a cultura é produtora e
produzida de/por um modo de vida, jamais mero reflexo de uma base socioeconômica.

De minha parte, sempre me opus à fórmula da base e superestrutura – não


devido às suas deficiências metodológicas, mas por conta de seu caráter
rígido, abstrato e estático. Além disso, após a minha pesquisa sobre o século
XIX, passei a vê-la como algo essencialmente burguês; uma posição central
do pensamento utilitarista. [...] tanto na teoria quanto na prática, cheguei à
conclusão que eu teria de desistir, ou pelo menos deixar de lado, o que eu
conhecia como tradição marxista para tentar desenvolver um tipo diferente de
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teoria da totalidade social; para visualizar o estudo cultura como o estudo das
relações entre elementos em todo um modo de vida, para encontrar formas de
estudar a estrutura em obras e períodos particulares que poderiam manter-se
em contato e clarificar obras de arte e formas específicas, mas também as
formas e relações de uma vida social mais geral; e para substituir a fórmula da
base e da superestrutura com a ideia mais ativa de um campo de forças
mutuamente determinante (WILLIAMS, 2011, p. 28)

Não há incompatibilidade entre vida material e vida cultural, ambas constituídas


mutuamente. A arte é material e é simbólica uma vez que se desenvolve sobre algo que é
concreto e tangível, seguindo formas e convenções que são históricas e sociais. A
sociedade é constituída e constituinte da cultura. Em The Long Revolution, publicado
pela primeira vez em 1961, Raymond Williams remetia-se à ideia de uma “longa
revolução” experimentada nas instituições e nos indivíduos na complexa teia que
embaralhava três processos “desiguais”, porém conectados: a revolução democrática, a
revolução industrial e a revolução cultural (WILLIAMS, 2003b). Em sua visão, seria
impossível diferenciar substantivamente as revoluções econômica e política das
mudanças do conjunto da vida social.
O crítico marxista diz que, olhando para trás, parecia-lhe surpreendente que, até
aquele momento, desconhecesse Lukács ou Goldmann. A descoberta da afinidade com
ambos encorajou-o na constatação de que a determinação pelo econômico de todas as
demais formas da atividade humana expressava um processo de reificação da vida típica
da sociedade capitalista. Por sua vez, defendia, em sua teoria, uma visão de cultura que
enfatizasse tanto seu aspecto criativo como reprodutivo, atentando para o fato de que os
meios de comunicação são meios de produção.
Em conexão com Lucien Goldmann, pensador treinado na tradição continental,
nascido em Bucareste, tendo vivido em Viena, Genebra, Bruxelas e Paris, Raymond
Williams adotava um conceito de estrutura que pudesse conter uma relação entre os fatos
sociais e os fatos literários, não do ponto de vista dos conteúdos, mas das estruturas
mentais que são criadas coletivamente nas relações sociais. As ditas categorias mentais
organizavam e se realizavam nas atividades humanas buscando responder a situações
objetivas e particulares ao longo do processo histórico, dando ao grupo coerência uma
vez que atuando em sua consciência.
Williams aproxima-se, assim, da aposta na possibilidade de uma experiência
social reflexiva. Noutros termos, os processos que produziram as estruturas distorcidas e
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coercitivas no presente são resultados de atos humanos vividos que poderão ser
repensados conscientemente para produzir transformações sociais. Neste momento, é
extremamente oportuno seu recurso ao conceito de “estruturas de sentimentos” que será
posteriormente aprofundado. Por ora, cabe reconhecer a adesão de Williams a um certo
“paradigma experencial” que não se trata da negação das estruturas, mas na chance de
percebê-las em in status nascens.

O que me parece especialmente importante nessas estruturas de sentimentos


em transformação é que elas costumam preceder as transformações mais
reconhecíveis do pensamento e da crença formais que compõem a história
habitual de consciência e que, embora correspondam muito de perto a uma
verdadeira história social de homens vivendo em relações sociais reais e em
transformação, precedem, mais uma vez, as alterações mais reconhecíveis nas
instituições formais e nas relações sociais que constituem a história mais
acessível e, de fato, mais habitual (WILLIAMS, 2011, p. 35).

A cultura é um processo social total, lócus da luta, espaço da hegemonia e da


contra hegemonia, na incessante produção de práticas e significados que (re)organizam a
sociedade. Nesse aspecto, o conceito de experiência de Williams, forjado para que
pudesse se opor à pura abstração, aproxima-se daquele de práxis da vida cotidiana, de
Lukács. A cultura é ordinária, para Williams, e as transformações sociais também são
cotidianas, geradas a partir das “estruturas de sentimentos”, um sentido peculiar de vida,
uma comunhão de experiências, firme como uma estrutura, mas que se realiza nos mais
sutis momentos de nossa atividade cotidiana.
A noção de “totalidade da consciência” autorizava o crítico literário a pensar
articuladas a literatura e a sociologia, as obras artísticas e os fatos empíricos
(WlLLIAMS, 2011, p. 29). A importância da arte, aliás, estava em seu poder de
comunicação e articulação de experiências que não aconteceria de outro modo.
Sua concepção de cultura é ativa. Não se trata de reflexo, cabe reiterar, mas de
resposta coletiva e criativa a um novo momento histórico. Sua aposta é na agência
humana, algo que somente a percepção da hegemonia como processo possibilita. Se há a
necessidade contínua das forças hegemônicas serem renovadas, legitimadas, defendidas e
transformadas para vigorar, abrem-se, então, brechas para que sejam também criticadas,
alvos de resistências e mudanças por novas formas de consciência que, mediante a
experiência, se veem insatisfeitas com as pressões e limites exercidos pela hegemonia e

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podem construir novas possibilidades de vida em sociedade. Como veremos adiante, este
movimento está longe de ser fácil.

3. Hegemonia e “estruturas de sentimentos” em Raymond Williams

Williams, “o melhor entre nós”, nas palavras de E. Thompson (CEVASCO,


2007), elaborou, conforme pudemos narrar, uma nova teoria da cultura a levar em conta a
teoria da história de Marx, alterando, porém, o modelo de base e superestrutura que dava
uma ilusão de autonomia aos campos da economia e da cultura tomados isoladamente, e
que, a seu ver, minava a percepção da complexa totalidade social experimentada
concretamente pelos sujeitos em articulação.
Absorvendo a produção da teoria cultural marxista, realizada na Europa
continental sob a chancela de Lukács, Brecht, dos primeiros frankfurtianos, Sartre,
Goldmann e Gramsci, o crítico galês fazia sua opção pelo conceito de hegemonia como
processo e confrontava a noção de ideologia a vigorar no debate marxista, de cunho
althusseriano. Reabilita, sem menosprezar a complexidade que isto envolve, a crítica
cultural como recurso potente para a mudança: “intervenção produtiva” e “movimento de
resistência”, uma vez que embora extensiva, a hegemonia não é jamais absoluta.

[...] suas próprias estruturas internas são muito complexas e devem ser
renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua; pelo mesmo motivo
podem ser constantemente desafiadas e, em certos aspectos, modificadas.
(WILLIAMS, 2011, p. 52).

A hegemonia traduz um propósito político que, permeando instituições, relações e


consciência, é menos, portanto, uma ação unilateral do dominador e mais a produção do
senso comum, algo bastante geral, e a naturalização de práticas que parecem
efetivamente tomar a totalidade do espaço existente. Aliás, a ideia de hegemonia como o
resultado do processo de “saturação” da consciência subordinada em determinado
momento (WILLIAMS, 1973) é, para Raymond Williams, a melhor aplicação da noção
de totalidade tão proclamada pelo marxismo, que abandonaria, desse modo, o reino da
abstração e se tornaria materializável:

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[...] o que tenho em mente é o sistema central, efetivo e dominante de
significados e valores que não são meramente abstratos, mas que são
organizados e vividos. É por isso que a hegemonia não pode ser entendida no
plano da mera opinião ou manipulação. Trata-se de todo um conjunto de
práticas e expectativas; o investimento de nossas energias, a nossa
compreensão corriqueira da natureza do homem e do seu mundo. Falo de um
conjunto de significados e valores que, do modo como são experimentados
enquanto práticas, aparecem confirmando-se mutuamente. A hegemonia
constitui, então, um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma
sociedade, um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da
qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade mover-
se, e que abrange muitas áreas de suas vidas (WILLIAMS, 2011, p. 53).

Nota a astúcia na maneira como a hegemonia “incorpora” os valores culturais,


significados e experiências que não fazem parte da cultura dominante, praticados e
vividos como “cultura residual” de formações sociais antigas, passíveis de sobrevivência
na cultura dominante se não a contradizem. Observa como, também, alerta às novidades,
o processo de hegemonia realiza cooptações sutis à cultura dominante de culturas
alternativas, tentando assimilar o mais rápido possível o que pode ser visto como
emergente. É a hegemonia o “processo de seleção” mesmo pelo qual significados são
incorporados e outros negligenciados e excluídos, dando vez a rearranjos e novas formas
de dominação mais eficazes. Nesse sentido, as alternativas à cultura dominante podem
ser toleradas e acomodadas desde que não ultrapassem a linha tênue entre o alternativo e
o opositor:

Há uma distinção teórica simples entre o alternativo e o opositor, isto é, entre


alguém que meramente encontra um jeito diferente de viver e quer ser deixado
só e alguém que encontra uma maneira de viver e quer mudar a sociedade.
Mas à medida que a área necessária de dominação efetiva se estende esse
mesmo significado ou prática pode ser visto pela cultura dominante não
apenas como desprezando-a ou desrespeitando-a, mas como um modo de
contestá-la (WILLIAMS, 2011, p. 58).

De modo similar, as heranças do passado são trazidas para o interior da cultura


dominante através do que Raymond Williams chama de “tradição seletiva” ou “passado
significativo”, que se estendem até o presente já tendo sido “relidas” e modificadas com
o fito de dar suporte ou, no mínimo, não contradizer o status quo. Converge assim com
Benjamin, em sua atenção à extrema capacidade do pensamento hegemônico atrair para

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junto de si tradições julgadas passadistas. Como dizia o frankfurtiano, “nem os mortos
estão a salvo enquanto o inimigo estiver vencendo, e ele não cessa de ser vitorioso”.
Há que se pensar, porém, que, embora seletiva, a tradição não é monolítica, mas
contém várias formas de estruturar a experiência. Williams fala-nos de “consciência
prática” como algo diferente da consciência oficial, momento em que explicita sua opção
teórica pela ênfase nos “sentimentos” espraiados e rearticulados que se confundem com as
experiências mesmas (o que nos permite refutar a acusação de que sua teoria haveria
recaído nalgum idealismo). Aliás, R. Williams reconhece a experiência como “a melhor e
a mais sábia palavra” (WILLIAMS, 1977, p.132), ainda que mantenha sua escolha por
“sentimentos”, que tendem a ajudá-lo a não se perder, de um lado, do sentido processual
da experiência (social), de outro, da consciência da prática em movimento.
Ao contrário das formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, as
“estruturas de sentimento” são, sobretudo, formas emergentes, visíveis talvez como
alterações da ordem ou mesmo “perturbações” (WILLIAMS, 1979). Além disso, como
diz Soares, “a noção de estruturas de sentimento, como elaborada por Raymond
Williams, é uma tentativa de apreender processos de emergência de experiências típicas
que constituem um certo quadro geracional” (SOARES, 2011, p. 97). Assim, segundo
Ridenti, “uma estrutura de sentimentos daria conta de significados e valores tais como
são sentidos e vivido ativamente” (RIDENTI, 2006, p. 230).
As “estruturas de sentimento” não têm que ter uma forma sócio-política explícita
nem estão submetidas às redes burocráticas. São indefinidas e difusas, por isso mesmo,
capazes de “driblar” a hegemonia. Se não suficientemente atentas às “estruturas de
sentimentos”, as ciências sociais dificilmente chegariam a qualquer evidência de que as pessoas
“desconfiam” da organização do mundo em que vivem. Williams está interessado nos tipos de
mudanças incrementais que se reúnem em torno de uma ou mais gerações. Quer saber
como podemos falar de “atmosfera de mudança” (ou de permanência) sem que
pareçamos abdicar do mundo factual. Eis que sentimentos são reais. Talvez, os artistas,
como “antenas” possam expressá-los melhor em suas obras, que não se descolam de suas
trajetórias e das de seus grupos; mas há “artistas” em todos nós, há potência
desestabilizadora e criativa, há capacidade de se impressionar, sentir, perceber, não como
ato individual, mas como convivência. Williams compartilha conosco seus próprios
sentimentos em relação a seu país e a sua cidade:

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The city for Williams is full of ambivalent feelings. On the one hand the city
can be seen as an obstacle to progress: he has, he writes, ‘known this feeling’
when ‘looking up at great buildings that are the centres of power’. On the
other hand his overarching feeling towards the city is a permanent feeling of
possibility, of meeting and of movement. A feeling of possibility strikes me as
a very different kind of feeling from a ‘democratic’ impulse, or a sense of
self-respect. It suggests energy, a sense of a rhythm, an unknown form of
practice that could erupt at any time. It sits on the side of the emergent, or the
pre-emergent, whereas the democratic feeling that his father had sat more
precisely on the side of the residual, a form that was being steamrolled into
oblivion by anonymous bureaucratic forms (HIGHMORE, 2016, p. 154-155).

Nosso autor estudou desde diários ao vestuário, os edifícios, como acima, e


mesmo a religião. Sua atenção, porém, está nos detalhes das obras de arte – arte que é
sentimento - e as relações reflexivas destas com os contextos socioculturais em que são
produzidas. Tal como Highmore (2016, p. 145) sugere, as “estruturas de sentimentos” de
Williams têm cores e cheiros, sabores particulares, podem ser tocadas, feitas de madeira
ou de aço, de veludo, de parafina, querosene ou algodão. Exalam otimismo, melancolia,
esperança, ansiedade, exuberância. Seu olhar especial para a arte, em que pese esta, em
muito, responder a fim de legitimar as práticas hegemônicas, é sua percepção de que a
mesma pode funcionar também como “perturbação”, anunciando algo como uma
“consciência coletiva emergente” - termo tomado de empréstimo de Lucien Goldmann -
isto é, a consciência empírica de um grupo social em uma situação histórica particular.
A cara noção de “estruturas de sentimentos” possibilita ao teórico alcançar, como
insisto em dizer, as manifestações emergentes, até mesmo pré-emergentes, de resistência
e oposição às práticas e às ideologias hegemônicas na ordem social existente, que não
existem somente como fluxos, ainda que germinais. Williams define-as como uma
“formação estruturada” que, mais tarde, tenderá a ser identificada, por exemplo, com
uma certa geração e se poderá buscar até seus antecedentes. A “estrutura de sentimentos”
é um tipo de articulação que expressa uma fase incipiente de mudanças na organização
social. Sua existência é social, material e histórica.

[a estrutura de sentimento] é a articulação do emergente, do que se escapa à


força acachapante da hegemonia que certamente trabalha sobre o emergente
nos processos de incorporação, através dos quais transforma muitas de suas
articulações para manter a centralidade de sua dominação (CEVASCO, 2001,
p. 158. Os colchetes são meus).

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Raymond Williams defende a noção de “especificidade empírica histórica”,
sabendo que a estrutura é sempre a do sentimento real ligado à especificidade da
experiência coletiva histórica e de seus efeitos reais nas pessoas e nos grupos. Tal qualidade
empírica relaciona-se à fenomenologia de Schutz (1962), isto é, à consciência
intersubjetiva e aos processos interativos por meio dos quais se formam (e se transformam)
as estruturas sociais e culturais nascentes.

[...] analisar a homologia estrutural entre expressões diferentes de uma


consciência coletiva emergente. Como consciência empírica em potencial,
estas expressões eram ideologias nascentes; e como o mundo imaginativo dos
escritores e pensadores, elas eram visões de mundo. Esta homologia estrutural
entre a contínua experiência reflexiva da vida social e suas formulações
literárias reflexivas era, para Williams [...] o fato social significante (FILMER,
2009, p. 376. Os colchetes são meus).

A relação de conteúdo pode ser meramente reflexiva, mas a relação de estrutura,


muitas vezes ocorrendo onde não há uma aparente relação de conteúdo, mostra, para
Williams, o principio organizador pelo qual uma visão particular de mundo dá coerência
ao grupo social e o mantém, operando realmente na consciência. Os processos da
experiência coletiva nascente e suas estruturas ordenadoras emergentes são ordens bem
diferentes de fenômenos, de modo que o que serão, mais tarde, compreendidos como a
sequência causal e a prioridade dos elementos constitutivos na sua eventual
transformação histórica como totalidades dependerão do processo de atuação humana.
No caso específico das totalidades nascentes, este processo sequer tinha começado
conscientemente como prática e ainda se articulava através do simbolismo, evasivo ao
senso comum e ao discurso normativo (FILMER, 2009, p.373).
Para Williams, o sentimento democrático é um aspecto crucial de uma cultura
política progressista. Por sinal, o impulso democrático é mais eficaz como sentimento do
que como pensamento, isto é, precisa ser vivido, experimentado, produzir gestos e atos.
Não que Raymond Williams pretendesse antagonizar, desde sempre, pensamento e
sentimento, mas, para ele, o pensamento há de ser também sensação e sensibilidade,
consciência prática, relacionamento vivo e contínuo.
Williams obteve por meio de sua nova teoria da cultura – o materialismo cultural
– a chance de evidenciar em sua época um sentimento permanente de “possibilidade”, de
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congraçamento e de movimento, o tal “impulso democrático" a envolver um senso de
auto-respeito. O estudioso vislumbra, assim, uma energia, uma sensação de um ritmo,
uma forma desconhecida de prática que irromperia a qualquer momento, cmo
efetivamente aconteceu. O sentimento democrático que seu país expermentava, embora
obscurecido por forças burocráticas anônima não era um idílio, mas uma densa rede de
gatilhos de sensações e sentimentos conflitantes e poderosos.
Tal é o lugar de sua tese no cômputo das teorias contemporâneas, talvez, a
merecer ser revisitada posto que, como disse Highmore (2016), o trabalho em torno do
conceito de "estruturas de sentimentos” nunca foi simplesmente o de aprimorar a história
cultural (ou a teoria social). Tratava-se de “[…] understanding how change occurs, how
social and cultural forms are maintained, and, perhaps most importantly of all, of locating
what Williams referred to as ‘resources of hope’” (HIGHMORE, 2016, p.160). Algo que
se parece com a perseguição dos “nichos de oxigenação” e do lócus da crítica imanente
em nosso mundo. Um projeto que, talvez, os desapontamentos no tempo levaram a
sociologia a abandonar, o que não significa que todos os sociólogos o fizeram.

Considerações Finais

Na segunda metade do século 19, na Inglaterra, a classe trabalhadora urbana


lutava por seu direito ao voto. Narra Raymond Williams:

Em 23 de julho [de 1866], cerca de 60 mil trabalhadores, vindos de diversas


partes do país, marcharam por Oxford Street e Edgware Road, em direção a
Marble Arch. A polícia foi reunida em frente aos portões fechados. Os líderes
da marcha exigiram a entrada, mas o acesso lhes foi recusado. A maior parte
dos manifestantes dirigiu-se, então, a Trafalgar Square. Mas um grupo
manteve-se em Hyde Park e começou a derrubar as grades. Muitos que os
observavam juntaram-se a eles. Eles derrubaram em torno de 1,5 quilômetro
de cerca e entraram no parque. Conta-se que os canteiros foram pisoteados,
que as pessoas “correram sobre o gramado proibido”, e que pedras foram
atiradas contra algumas mansões em Belgravia. Parece não haver razão para
se duvidar disso. Tal como com a proposta de montar em burros em Rotten
Row, estava-se testando “se esta ou qualquer outra parte do Hyde Park
pertence a uma classe ou a todo o povo”. Tropas foram chamadas, mas antes
de chegarem todos já haviam retornado para suas casas (WILLIAMS, 2007, p.
5. Os colchetes são meus).

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Raymond Williams sabia que olhar para este evento sem ter ferramentas analíticas
apropriadas para tratá-lo poderia significar desperdiçá-lo. “Tudo isso era cultura”, dizia
(WILLIAMS, 2007, p. 7). Não foi, portanto, um mero exercício teórico o que o motivou
a construir seu materialismo cultural. Tinha a certeza da necessidade de se ver a
sociedade como uma totalidade para pensar as transformações sociais. Entendia que o
conceito de hegemonia permitia, mais que o conceito de ideologia, pressupor a existência
de algo verdadeiramente total, não meramente secundário ou superestrutural, vivido em
tal profundidade a ponto de “saturar” a sociedade; o que Gramsci (1982) chamou de
“senso comum”, a concepção da realidade da experiência social pelos sujeitos.
Williams participava da fundação de uma linhagem intelectual que seria mais
tarde conhecida como “Estudos Culturais”, compondo sua primeira geração, nomeada
também de “culturalista”, em distinção às tendências que se seguiram, uma, a
estruturalista, influenciada por matrizes plurais, Althusser, de um lado, Lévi-Strauss, de
outro; mais tarde, a se diferenciar, também, da “onda” pós-estruturalista que se imporia
na ênfase à linguagem e à textualidade.
Os culturalistas haviam definido como coletivas as formas de consciência que são
num só tempo práticas sociais, mas ficaram longe da proposição estruturalista segundo a
qual o sujeito era "falado" pelas categorias da cultura em que pensava, em vez de "falá-
las". Para o estruturalismo, tais categorias não eram, portanto, somente coletivas – em
oposição a individuais – eram estruturas inconscientes (HALL, 2009), com o que
Williams não convergiria em seu acusado, por alguns, “humanismo”.
Hoje, os “Estudos Culturais”, nos mais diversos departamentos das universidades
de todo o mundo, parecem ter se afastado do momento marxiano inicial, degenerando até
numa despolitização do debate, o que vale ser examinado, levando-se em conta seus
atuais defensores, a exemplo de Eagleton (2006) que sugere que a crítica é injusta uma
vez que tais estudos equivalem hoje ao velho conhecido projeto vanguardista de transpor
as barreiras entre arte e sociedade.
Em contexto latino-americano, os “Estudos Culturais” produziram um fértil
campo de investigação que inclui, dentre outros, as contribuições de Stuart Hall, Néstor
Canclini, Silviano Santiago, George Yúdice, Heloísa Buarque de Holanda, Muniz Sodré,
Juan Flores, também, de Ortiz, dentre outros. Assinala-se ainda que uma certa
apropriação da questão cultural se deu na América Latina com marcas autóctones uma

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vez que aqui ganhou especial relevância, a partir dos “Estudos Culturais”, o debate da
cultura nacional, do nacional-popular, do imperialismo e do colonialismo cultural que
garantiu a inflexão política às análises latino-americanas.
Se com a emergência de uma indústria cultural, sobretudo no Brasil, os “Estudos
Culturais” pareciam estar se afastando da discussão da cultura “como um lugar de poder
[o que] significa dizer que a produção e a reprodução da sociedade passam
necessariamente por sua compreensão [da cultura]” (ORTIZ, 2004, p. 126), hoje, não
mais é possível se abandonar a percepção da cultura a fim de se pensar as insurgências e
a ação política. Pode-se dizer que a política se “deslocou”, na América Latina, da
discussão de uma identidade nacional para a de identidades particulares (étnicas, de
gênero, regionais), algo que expressa um movimento global de pessoas, coletividades e
consciências.
É correto dizer, como faz Hall (2009) que os “Estudos Culturais” experimentaram
uma diversidade de trajetórias, produzindo metodologias e posicionamentos teóricos
muitas vezes conflitivos e, apesar de “se caracterizar pela abertura, não se pode reduzi-
los a um pluralismo simplista” (HALL, 2009, p. 189). Os “Estudos Culturais”, em sua
ampla gama de abordagens, carregam consigo uma “mundanidade”, para se usar um
termo de Edward Said (2007). Seus simpatizantes buscavam para si uma prática
institucional capaz de alinhá-los como “intelectuais orgânicos”. Impunham-se assim “a
vanguarda do trabalho teórico intelectual”, “conhecer bem e perfeitamente” (HALL,
2009, p. 194-5), somando a isso, sem desqualificar o primeiro empenho, a
responsabilidade da transmissão de ideias e de conhecimento, logo, a prática política.
As inflexões do tempo nos “Estudos Culturais”: num momento, as questões de
“raça”, noutro, de gênero e sexualidade, a entrada da psicanálise e a “virada linguística”
não impressionaram tanto Williams – aliás, muito antes da revolução semiótica, o
trabalho de Raymond Williams atentava para as questões da linguagem. Talvez seu maior
receio seria a perda da prática intelectual como política, quando os “Estudos Culturais”,
juntamente com outras formas de teoria crítica, deixassem de ser “perigosos”. Não se
trata, como bem diagnostica Stuart Hall, da “teoria como vontade de verdade, mas a
teoria como como um conjunto de conhecimentos contestados, localizados e
conjunturais, que têm de ser debatidos de um modo dialógico” (2009, p. 203). Talvez,
sua preocupação justifique a intervenção abaixo:

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Importa muito saber se os que acreditam na razão e na discussão ilustrada são
capazes, diante do barulho do confronto, prosseguir efetuando as distinções
necessárias. Também importa saber se, sob as tensões inevitáveis de novos
tipos de debates e reivindicação, os defensores da razão e da educação estarão
abertos a relações novas e desconhecidas, ouse recairão nos hábitos e
privilégios existentes e então – como acontece agora [...] farão uso de
manobras e articulações para restringir, purificar e empobrecer a própria
educação. Pois a cultura que estaria então sendo defendida não seria a da
excelência, mas a da familiaridade; não a dos valores cognoscíveis, mas
apenas a dos valores conhecidos. Enquanto pessoas deste tipo estiverem no
controle e se multiplicarem, será sempre necessário ir novamente a Hyde Park
(WILLIAMS, 2007, p. 11).

Atrevo-me a perguntar, assim, a partir do tema “Teoria Social hoje: quais


agendas?”, se o lugar da crítica nas ciências sociais mantém-se hoje no panorama das
expectativas dos estudiosos que a estas se dedicam, jamais como antiteoria – algo que foi
“moda”, entretanto, não define o campo de conhecimento inaugurado no Centre for
Contemporary Cultural Studies -, talvez, como uma séria reflexão acerca da “política da
teoria”. A conversa aqui tão somente se inicia.

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