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Adelia Miglievich-Ribeiro
2016
Os “Estudos Culturais” como perspectiva teórica segundo Raymond Williams: os
alicerces de um movimento intelectual
Adelia Miglievich-Ribeiro1
Resumo: Raymond Williams nota a expansão da noção de cultura que passa de reino
relativamente autônomo de valores intangíveis à articulação de experiências
significativas no mundo social. Produz uma nova teoria da cultura chamada materialismo
cultural que desafia o estruturalismo marxista e abre novas possibilidades para a
mudança. De acordo com Williams, trata-se de superar a apartação entre cultura e
sociedade e, por conseguinte, o binômio infra e superestrutura, enxergando a cultura
como práticas, sentimentos e pensamentos articulados. Hegemonia é seu conceito mais
importante, tendo Williams absorvido a produção da teoria cultural marxista realizada na
Europa continental, retirando a inteligência britânica de um certo insularismo ao
protagonizar a New Left Review, ao lado de E. Thompson e R. Hoggart, os três
precursores dos “Estudos Culturais”, mais tarde, institucionalizados por Stuart Hall.
Preocupo-me em conhecer o autor como teórico da cultura comprometido com um
conhecimento a intervir no mundo supondo fazer nele alguma diferença.
Palavras-chaves: materialismo cultura; Estudos Culturais; New Left Review; estruturas
de sentimentos; Raymond Williams.
Apresentação
Renato Ortiz (2004) alerta para o fato de que, além de não se constituir como
disciplina, os “Estudos Culturais” no Brasil e fora dele, sobretudo na Inglaterra e nos
Estados Unidos, têm características muito diferentes. Cabe acrescer a isto que os
“Estudos Culturais”, a cada nova geração, tomaram direcionamentos distintos ou mesmo
contrários. Ortiz avalia que na academia brasileira sua penetração ainda hoje “se faz
pelas bordas, ou seja, para utilizar uma expressão de Bourdieu, na periferia do campo
1
Professora do Departamento de Ciências Sociais e dos PPGs em Ciências Sociais e em Letras (PGCS e
PPGL) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Bolsa PQ-Produtividade CNPq – nível 2; Taxa
de Pesquisa Fapes.
2
hierarquizado das ciências sociais, particularmente nas escolas de comunicação”
(ORTIZ, 2004, p. 121), deixando intacto o estatuto das disciplinas consagradas. Ainda
assim, a leitura de seus autores contribui para o alargamento e interseccionalidade das
fronteiras disciplinares, evocando salutares “deslocamentos” que postulo como
imprescindíveis se, mais que a defesa de um campo exclusivista de sistemas, conceitos e
métodos a se chamar “sociologia”, contemporaneamente, importa nutrir as teorias sociais
da capacidade de articular saberes e ampliar - este é o fito da ciência - sua inteligibilidade
acerca do mundo.
Se a análise da cultura somaria ao propósito de alargar nossa capacidade de
cognição, cabe dizer, contudo, que esta não conformou, até hoje, uma perspectiva
epistemológica. Em geral, está presente na literatura, na apreciação de sua dimensão
estética; na antropologia, sobretudo quando voltadas às sociedades indígenas, ao folclore,
à cultura popular; na história, é encontrada nas reflexões acerca das civilizações,
mormente, a partir da globalização. Com exceção da antropologia culturalista norte-
americana, era assim mais recorrente recortar a cultura segundo temas e disciplinas do
que elucidá-la como uma “totalidade”. Nesse sentido, os estudos literários existentes
pouco tinham a ver com as análises sociológicas e a antropologia não dialogava
comumente com os desafios da moderna cultura de massa.
O parecer é lúcido, mas não está concluído. Lidar com os aspectos da vida em
sociedade nomeados “cultura” constitui-se, crescentemente nas últimas décadas, um
desafio às teorias sociais ou sociológicas. Vale lembrar que, em “O novo movimento
teórico”, Jeffrey Alexander (1986) explicita os danos das ortodoxias, quer marxistas quer
estrutural-funcionalistas, e exibe, também, o desgaste do embate ad infinitum entre
coletivismo e individualismo metodológicos, concluindo a favor das chamadas teorias-
síntese. Citando Bourdieu, Habermas e Giddens, destaca que:
Do meu ponto de vista, a chave para seu avanço continuado [da sociologia] é
um reconhecimento mais direto da centralidade do significado coletivamente
estruturado, ou cultura. Há um abismo crescente entre a maioria das novas
tendências sintéticas em teoria geral, de um lado, e a atenção à teoria da
cultura que tem caracterizado a nova teorização macro em suas formas mais
substantivas, de outro. Apenas se os teóricos gerais estiverem preparados para
entrar no campo dos "estudos culturais" - equipados, é claro, com seu
instrumental sociológico - é que a ponte pode ser gradualmente construída
sobre o abismo. Desta vez, porém, a teorização sobre a cultura não pode
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degenerar em camuflagem para o idealismo. Nem deve ser cercada por uma
aura de objetividade que esvazia a criatividade e a rebelião contra as normas.
Se esses erros forem evitados, o novo movimento em sociologia terá uma
chance de desenvolver uma teoria verdadeiramente multidimensional. Essa
será uma contribuição permanente ao pensamento social, mesmo que não
possa impedir a volta do pêndulo [individualismo versus coletivismo].
(ALEXANDER, 1986, p. 17. Os colchetes são meus).
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1. Experiências, consciência coletiva e movimento intelectual
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A história que nós aprendemos na escola elementar foi uma variedade tóxica
de um chauvinismo galês romântico e medieval dado pelo nosso mestre-
escola. As leituras não eram tão terríveis, mas do tipo de como um príncipe
medieval galês derrotara os saxões e pegara deles grandes quantidades de
gado e ouro. Tudo isso me engasgava. Não era somente porque ela não tinha
conexão. Ela era absolutamente contraditória com o que nós éramos agora.
(WILLIAMS, 2003b, p. 92).
Ao seguir para Cambridge, aos 18 anos, com bolsa de estudos, também se filiou
ao Partido Comunista e ao Clube Universitário Socialista. Os limites estreitos que a
consolidação stalinista impunha ao pensamento crítico provocaram nele um rápido
desencanto. Seguindo os passos de seu pai, Williams decidiu alistar-se no Exército
Britânico para lutar na II Guerra, atitude esta que divergia, aliás, das diretrizes do Partido
Comunista e que o levou ao desligamento. Foi quando retornou do front da Normandia
para Cambridge é que constatou que também o mundo acadêmico havia sofrido
mudanças significativas, em relação àquele no qual ele estudava cinco anos antes. Uma
delas – e a que mais lhe chamou a atenção - foi quanto ao entendimento da palavra
“cultura”. Segundo Raymond Williams, a partir daquele momento, nunca se ouviu tanto
o vocábulo, agora, num sentido divergente de outrora.
Dos “salões de chá”, a expressar alguma espécie de superioridade social
alcançada pelo refinamento dos gostos quanto ao conhecimento de poemas, teatro, artes
plásticas e cênicas, numa similaridade à sociedade de corte, a cultura passava a se
confundir com a noção mesma de sociedade em seu modo de vida particular. Tornavam-
se comuns às referências à cultura inglesa ou britanidade, assim como se poderia falar em
cultura chinesa ou outra (TAVARES, 2008).
Antônio Sá (2011), em seu artigo “História e estudos culturais: o materialismo
cultural de Raymond Williams” atenta ao fato de que os estudos culturais britânicos
nascem nos anos 1950 numa conjuntura específica com fortes rebatimentos nas
reelaborações teóricas que se processam. Aponta para o “beco sem saída” do debate
cultural de então, asfixiado, digamos assim, entre um determinismo econômico do
marxismo comunista britânico nada refinado e o endêmico conservadorismo político e
elitismo cultural do movimento liderado por F. R. Leavis (1895-1978), adepto do
persistente pensamento idealista para o qual, segundo Cevasco, a cultura era:
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[ ...] âmbito da doçura e da luz, dos bens espirituais a salvo dos interesses
reais, das relações entre pessoas. Designa, ainda, o espaço de atuação de uma
minoria, capaz de compreender e promulgar os mais altos valores da
humanidade, enfeixados nas obras dos grandes autores (CEVASCO, 2007a, p.
12).
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Williams prenunciava uma época na qual emergiria a história local, construída
por historiadores profissionais, sindicalistas e militantes políticos que se utilizariam da
metodologia da história oral, a se consolidar ao longo dos anos 1970. Enquanto os
representantes do movimento operário inglês lutavam para que a cultura popular
ganhasse visibilidade, alguns historiadores autodidatas, como o comunista inglês Ewan
Macoll, se dedicavam ao inventário etnográfico das canções operárias durante o processo
de industrialização. Assim, os jovens historiadores da década de 1960, inspirados na
História do Trabalho, reviam radicalmente seu ofício intelectual.
Os chamados “Estudos Culturais” articulavam-se à História Social inglesa, o que
se verifica na publicação por Williams do já mencionado Cultura e Sociedade, e um ano
antes do Utilizações da Cultura de Richard Hoggart, em 1957. A tríade ficaria completa
com A formação da classe operária inglesa 1780-1930, de E. P. Thompson, publicada
em 1963. Nesta, Thompson propunha um marxismo que pudesse ser melhor
compreendido como uma “teoria da história” - não como “leis da história”, segundo a
quais as pessoas vivem padrões de desenvolvimento pré-determinados – a fim de renovar
na tradição marxista britânica a abordagem cultural, problematizando o determinismo
econômico e destacando a ação humana. As três obras fundamentaram a reflexão nos
anos 1960/70, segundo Stuart Hall (2009), introduzindo elementos novos para se pensar
as questões da cultura.
Os novos ares eram concomitantes à formação de uma esfera pública britânica
com forte presença de professores universitários na mídia, entre publicações e
associações, alcançando as artes dramáticas e a contracultura metropolitana. Perry
Anderson (2004) definiu o perfil predominante desta intelligentsia que abandonava o
paroquialismo e a passividade pré-II Guerra Mundial, na adesão ao consenso político
estabelecido, e, após a segunda Grande Guerra, dava origem à “Nova Esquerda”
britânica, mudando os termos do debate intelectual na Inglaterra que vencia seu próprio
provincianismo.
Williams junto a Eric Hobsbawm, Perry Anderson, E. P. Thompson, Richard
Hoggart, dentre outros intelectuais independentes, fundam, em 1959, a New Left Review.
Herdeira da tradição marxista inglesa, iniciada em 1910 e reforçada em 1946, com o
Comunist party historians group onde estavam os nomes acima, além de Cristopher Hill
e Rodney Hilton, nascia da junção de duas outras revistas passando a expressar o
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pensamento de uma “nova esquerda” que exibia a ruptura de uma parte da
intelectualidade inglesa com a “ortodoxia” marxista.
Seu primeiro editor foi Stuart Hall, mas Raymond Williams participou como
colaborador desde seu nascimento (HALL, 2009). Bem mais do que uma revista, a New
Left Review expressava a abertura de espaço para o desenvolvimento de debates políticos
e culturais a respeito do futuro do marxismo. Engajados na luta social e cultural da classe
operária, combatendo a educação elitista2, e apostando na democratização da cultura,
Williams, Hoggart e Thompson, cada um a seu modo, traziam também à centralidade do
debate a questão da “hegemonia”, o que inspirava o amplo diálogo entre a “Nova
Esquerda” e o movimento trabalhista na Grã-Bretanha (SÁ, 2011).
Conforme Mussi e Góes (2016), seus participantes tinham a consciência de que a
New Left nascia nos escombros da crise do Partido Comunista da Grã-Bretanha, logo no
período posterior às denúncias dos crimes stalinistas por Nikita Kruchev e em meio aos
conflitos envolvendo a crise militar pelo Canal de Suez e as revoltas antiburocráticas na
Hungria. Sua criação, portanto, coincidia com a necessidade de ex-militantes e
dissidentes dos partidos comunistas em renovar sua referência cultural e política. Sob o
acúmulo de informações sobre tudo que havia falhado na Revolução Russa, buscava-se
mudar o foco para as “mudanças graduais” e observar, no ambiente inglês, novas
experiências político-organizativas, cujos pressupostos e dilemas eram discutidos em
muito na referência às ideias de Gramsci. Alinhado a esta tendência, a ênfase na cultura,
por Williams, implicava seu empenho em reinterpretar o poder da hegemonia capaz de
tudo incorporar de modo a garantir que uma classe predomine sobre as outras na
dimensão da “cultura vivida”.
2
A educação para adultos foi parte importante da atuação institucional da New Left, tendo a participação
ativa de Williams e Thompson na Worker’s Education Association, um projeto de instrução universitária
para adultos.
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2. O materialismo cultural como uma nova teoria da cultura
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podem construir novas possibilidades de vida em sociedade. Como veremos adiante, este
movimento está longe de ser fácil.
[...] suas próprias estruturas internas são muito complexas e devem ser
renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua; pelo mesmo motivo
podem ser constantemente desafiadas e, em certos aspectos, modificadas.
(WILLIAMS, 2011, p. 52).
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[...] o que tenho em mente é o sistema central, efetivo e dominante de
significados e valores que não são meramente abstratos, mas que são
organizados e vividos. É por isso que a hegemonia não pode ser entendida no
plano da mera opinião ou manipulação. Trata-se de todo um conjunto de
práticas e expectativas; o investimento de nossas energias, a nossa
compreensão corriqueira da natureza do homem e do seu mundo. Falo de um
conjunto de significados e valores que, do modo como são experimentados
enquanto práticas, aparecem confirmando-se mutuamente. A hegemonia
constitui, então, um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma
sociedade, um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da
qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade mover-
se, e que abrange muitas áreas de suas vidas (WILLIAMS, 2011, p. 53).
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junto de si tradições julgadas passadistas. Como dizia o frankfurtiano, “nem os mortos
estão a salvo enquanto o inimigo estiver vencendo, e ele não cessa de ser vitorioso”.
Há que se pensar, porém, que, embora seletiva, a tradição não é monolítica, mas
contém várias formas de estruturar a experiência. Williams fala-nos de “consciência
prática” como algo diferente da consciência oficial, momento em que explicita sua opção
teórica pela ênfase nos “sentimentos” espraiados e rearticulados que se confundem com as
experiências mesmas (o que nos permite refutar a acusação de que sua teoria haveria
recaído nalgum idealismo). Aliás, R. Williams reconhece a experiência como “a melhor e
a mais sábia palavra” (WILLIAMS, 1977, p.132), ainda que mantenha sua escolha por
“sentimentos”, que tendem a ajudá-lo a não se perder, de um lado, do sentido processual
da experiência (social), de outro, da consciência da prática em movimento.
Ao contrário das formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, as
“estruturas de sentimento” são, sobretudo, formas emergentes, visíveis talvez como
alterações da ordem ou mesmo “perturbações” (WILLIAMS, 1979). Além disso, como
diz Soares, “a noção de estruturas de sentimento, como elaborada por Raymond
Williams, é uma tentativa de apreender processos de emergência de experiências típicas
que constituem um certo quadro geracional” (SOARES, 2011, p. 97). Assim, segundo
Ridenti, “uma estrutura de sentimentos daria conta de significados e valores tais como
são sentidos e vivido ativamente” (RIDENTI, 2006, p. 230).
As “estruturas de sentimento” não têm que ter uma forma sócio-política explícita
nem estão submetidas às redes burocráticas. São indefinidas e difusas, por isso mesmo,
capazes de “driblar” a hegemonia. Se não suficientemente atentas às “estruturas de
sentimentos”, as ciências sociais dificilmente chegariam a qualquer evidência de que as pessoas
“desconfiam” da organização do mundo em que vivem. Williams está interessado nos tipos de
mudanças incrementais que se reúnem em torno de uma ou mais gerações. Quer saber
como podemos falar de “atmosfera de mudança” (ou de permanência) sem que
pareçamos abdicar do mundo factual. Eis que sentimentos são reais. Talvez, os artistas,
como “antenas” possam expressá-los melhor em suas obras, que não se descolam de suas
trajetórias e das de seus grupos; mas há “artistas” em todos nós, há potência
desestabilizadora e criativa, há capacidade de se impressionar, sentir, perceber, não como
ato individual, mas como convivência. Williams compartilha conosco seus próprios
sentimentos em relação a seu país e a sua cidade:
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The city for Williams is full of ambivalent feelings. On the one hand the city
can be seen as an obstacle to progress: he has, he writes, ‘known this feeling’
when ‘looking up at great buildings that are the centres of power’. On the
other hand his overarching feeling towards the city is a permanent feeling of
possibility, of meeting and of movement. A feeling of possibility strikes me as
a very different kind of feeling from a ‘democratic’ impulse, or a sense of
self-respect. It suggests energy, a sense of a rhythm, an unknown form of
practice that could erupt at any time. It sits on the side of the emergent, or the
pre-emergent, whereas the democratic feeling that his father had sat more
precisely on the side of the residual, a form that was being steamrolled into
oblivion by anonymous bureaucratic forms (HIGHMORE, 2016, p. 154-155).
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Raymond Williams defende a noção de “especificidade empírica histórica”,
sabendo que a estrutura é sempre a do sentimento real ligado à especificidade da
experiência coletiva histórica e de seus efeitos reais nas pessoas e nos grupos. Tal qualidade
empírica relaciona-se à fenomenologia de Schutz (1962), isto é, à consciência
intersubjetiva e aos processos interativos por meio dos quais se formam (e se transformam)
as estruturas sociais e culturais nascentes.
Considerações Finais
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Raymond Williams sabia que olhar para este evento sem ter ferramentas analíticas
apropriadas para tratá-lo poderia significar desperdiçá-lo. “Tudo isso era cultura”, dizia
(WILLIAMS, 2007, p. 7). Não foi, portanto, um mero exercício teórico o que o motivou
a construir seu materialismo cultural. Tinha a certeza da necessidade de se ver a
sociedade como uma totalidade para pensar as transformações sociais. Entendia que o
conceito de hegemonia permitia, mais que o conceito de ideologia, pressupor a existência
de algo verdadeiramente total, não meramente secundário ou superestrutural, vivido em
tal profundidade a ponto de “saturar” a sociedade; o que Gramsci (1982) chamou de
“senso comum”, a concepção da realidade da experiência social pelos sujeitos.
Williams participava da fundação de uma linhagem intelectual que seria mais
tarde conhecida como “Estudos Culturais”, compondo sua primeira geração, nomeada
também de “culturalista”, em distinção às tendências que se seguiram, uma, a
estruturalista, influenciada por matrizes plurais, Althusser, de um lado, Lévi-Strauss, de
outro; mais tarde, a se diferenciar, também, da “onda” pós-estruturalista que se imporia
na ênfase à linguagem e à textualidade.
Os culturalistas haviam definido como coletivas as formas de consciência que são
num só tempo práticas sociais, mas ficaram longe da proposição estruturalista segundo a
qual o sujeito era "falado" pelas categorias da cultura em que pensava, em vez de "falá-
las". Para o estruturalismo, tais categorias não eram, portanto, somente coletivas – em
oposição a individuais – eram estruturas inconscientes (HALL, 2009), com o que
Williams não convergiria em seu acusado, por alguns, “humanismo”.
Hoje, os “Estudos Culturais”, nos mais diversos departamentos das universidades
de todo o mundo, parecem ter se afastado do momento marxiano inicial, degenerando até
numa despolitização do debate, o que vale ser examinado, levando-se em conta seus
atuais defensores, a exemplo de Eagleton (2006) que sugere que a crítica é injusta uma
vez que tais estudos equivalem hoje ao velho conhecido projeto vanguardista de transpor
as barreiras entre arte e sociedade.
Em contexto latino-americano, os “Estudos Culturais” produziram um fértil
campo de investigação que inclui, dentre outros, as contribuições de Stuart Hall, Néstor
Canclini, Silviano Santiago, George Yúdice, Heloísa Buarque de Holanda, Muniz Sodré,
Juan Flores, também, de Ortiz, dentre outros. Assinala-se ainda que uma certa
apropriação da questão cultural se deu na América Latina com marcas autóctones uma
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vez que aqui ganhou especial relevância, a partir dos “Estudos Culturais”, o debate da
cultura nacional, do nacional-popular, do imperialismo e do colonialismo cultural que
garantiu a inflexão política às análises latino-americanas.
Se com a emergência de uma indústria cultural, sobretudo no Brasil, os “Estudos
Culturais” pareciam estar se afastando da discussão da cultura “como um lugar de poder
[o que] significa dizer que a produção e a reprodução da sociedade passam
necessariamente por sua compreensão [da cultura]” (ORTIZ, 2004, p. 126), hoje, não
mais é possível se abandonar a percepção da cultura a fim de se pensar as insurgências e
a ação política. Pode-se dizer que a política se “deslocou”, na América Latina, da
discussão de uma identidade nacional para a de identidades particulares (étnicas, de
gênero, regionais), algo que expressa um movimento global de pessoas, coletividades e
consciências.
É correto dizer, como faz Hall (2009) que os “Estudos Culturais” experimentaram
uma diversidade de trajetórias, produzindo metodologias e posicionamentos teóricos
muitas vezes conflitivos e, apesar de “se caracterizar pela abertura, não se pode reduzi-
los a um pluralismo simplista” (HALL, 2009, p. 189). Os “Estudos Culturais”, em sua
ampla gama de abordagens, carregam consigo uma “mundanidade”, para se usar um
termo de Edward Said (2007). Seus simpatizantes buscavam para si uma prática
institucional capaz de alinhá-los como “intelectuais orgânicos”. Impunham-se assim “a
vanguarda do trabalho teórico intelectual”, “conhecer bem e perfeitamente” (HALL,
2009, p. 194-5), somando a isso, sem desqualificar o primeiro empenho, a
responsabilidade da transmissão de ideias e de conhecimento, logo, a prática política.
As inflexões do tempo nos “Estudos Culturais”: num momento, as questões de
“raça”, noutro, de gênero e sexualidade, a entrada da psicanálise e a “virada linguística”
não impressionaram tanto Williams – aliás, muito antes da revolução semiótica, o
trabalho de Raymond Williams atentava para as questões da linguagem. Talvez seu maior
receio seria a perda da prática intelectual como política, quando os “Estudos Culturais”,
juntamente com outras formas de teoria crítica, deixassem de ser “perigosos”. Não se
trata, como bem diagnostica Stuart Hall, da “teoria como vontade de verdade, mas a
teoria como como um conjunto de conhecimentos contestados, localizados e
conjunturais, que têm de ser debatidos de um modo dialógico” (2009, p. 203). Talvez,
sua preocupação justifique a intervenção abaixo:
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Importa muito saber se os que acreditam na razão e na discussão ilustrada são
capazes, diante do barulho do confronto, prosseguir efetuando as distinções
necessárias. Também importa saber se, sob as tensões inevitáveis de novos
tipos de debates e reivindicação, os defensores da razão e da educação estarão
abertos a relações novas e desconhecidas, ouse recairão nos hábitos e
privilégios existentes e então – como acontece agora [...] farão uso de
manobras e articulações para restringir, purificar e empobrecer a própria
educação. Pois a cultura que estaria então sendo defendida não seria a da
excelência, mas a da familiaridade; não a dos valores cognoscíveis, mas
apenas a dos valores conhecidos. Enquanto pessoas deste tipo estiverem no
controle e se multiplicarem, será sempre necessário ir novamente a Hyde Park
(WILLIAMS, 2007, p. 11).
Referências
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007b.
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CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
GLASER, André. Raymond Williams: Materialismo Cultural. São Paulo: Ed. Unesp,
2011.
MUSSI, Daniela & GOÉS, Camila. Antonio Gramsci no centro e na periferia: notas
sobre hegemonia e subalternidade. International Gramsci Journal, 2(1), 2016, 271-328
(http://ro.uow.edu.au/gramsci/vol2/iss1/15). Acesso em 2 de agosto de 2016.
ORTIZ, Renato. Estudos Culturais. Revista Tempo Social, vol.16, n.1. São Paulo,
junho, 2004.
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RIDENTI, Marcelo. Artistas e política no Brasil pós-1960: itinerários da brasilidade. In:
RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e
Estado. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 229-261.
SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
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