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Tradições Não Europeias e a Atualidade da

Psicanálise Brasileira

Conteudista: Prof. Dr. Sérgio Czajkowski Junior


Revisão Textual: Prof.ª Dra. Selma Aparecida Cesarin

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Introdução

Seja muito bem-vindo(a) à quinta aula da nossa Disciplina de Escolas Psicanalíticas e Conceitos
denominada Tradições não europeias e a atualidade da Psicanálise brasileira, na qual teremos a
oportunidade de nos aprofundarmos um pouco mais nas principais contribuições derivadas das
obras e demais escritos dos autores, pensadores e outros membros que passaram a ser
agrupados, segundo a classificação proposta por David Zimermann (2007), na chamada
tradição americana (constituída pelas Escolas não Europeias).

Importante!
A exemplo do que foi apresentado na Unidade anterior e mantendo um
viés de cunho mais didático-pedagógico, podemos perceber que as
Escolas da Psicanálise contrariam-se com duas grandes tradições: a
europeia, que se encontra subdividida em três principais vertentes: a
inglesa, a húngara e a francesa (que teria como grande expoente
Jacques Lacan), e a americana (também conhecida como Psicanálise
não europeia), que frutificou em países como os Estados Unidos e os
demais membros da América Latina, a exemplo do Brasil (e que teve

papel muito relevante, em especial no contexto do regime militar).

Para que possamos construir uma leitura cronologicamente mais assertiva, balizada e coerente
com os principais fatos históricos, é importante destacarmos que a Psicanálise, desde sua
introdução no Brasil, no início do século XX, teve impacto muito significativo em nosso país,
que não se limitou ao campo médico/psiquiátrico e ou psicológico, ramificando-se para as
Ciências Sociais (Aplicadas) e para outros campos ligados às Artes e à Cultura em geral.

Após seu desembarque no Brasil, a Psicanálise, com o passar dos anos, passou por um processo
de desenvolvimento e de diversificação, ou seja, de maturação/ tropicalização, pois a sua

recepção, pelo menos no seu início, foi um tanto quanto tumultuada em Setores mais
conservadores e tradicionalistas da nossa Sociedade, que não compactuavam com uma boa
parte das descobertas oriundas dos estudos originalmente promovidos por Freud e seus
diferentes discípulos.

Importante!
Em termos históricos, é importante lembrar de que a passagem do
século XIX para o século XX, no Brasil, foi marcada por profundas

rupturas nas estruturas mais tradicionais de nossa Sociedade por


conta da libertação dos escravos, em sintonia com a Proclamação da
República. Além do mais, setores mais tradicionais, oriundos das
oligarquias, não viam com bons olhos muitas das contribuições
freudianas, notadamente aquelas que perpassavam questões
vinculadas, por exemplo, à sexualidade infantil e aos traumas
familiares.

Nas palavras de Torquato e Rocha (2016, p. 431):

“A virada do século XIX para o século XX marcou as duas grandes transformações

da sociedade brasileira. A abolição da escravidão e a implantação da República

introduziram o país e sua inteligência num movimento de reformulação das ideias


e concepções a respeito do Brasil e de seu povo.”

A Psicanálise, como saber conectado ao legado freudiano, foi introduzida, no Brasil,


principalmente por meio de Médicos, Profissionais de Saúde, artistas e demais intelectuais que
tiveram contato com as ideias de Sigmund Freud e de outros psicanalistas europeus,
notadamente aqueles que desenvolveram seus estudos nos principais centros urbanos da época,
como Londres, Paris e Viena. Foi nesse mesmo período, mais precisamente em 1919, que
ocorreu a primeira tradução de uma obra de Freud para o Português. Tal tradução, mesmo diante
das suas imperfeições, limitações e algumas inconsistências em relação aos textos originais, foi
de importância ímpar para a popularização da Psicanálise em nosso país (FUKS, 2011, p. 565).
Reflita

“O caso da tradução das obras de Freud no Brasil é bastante particular: a primeira

versão que dispomos foi feita pela editora Delta diretamente do francês e do

espanhol. Já a editora Imago, nos anos 1960, usou a tradução inglesa feita
enquanto Freud vivia e por ele acompanhada. Ou seja, às dificuldades descritas

acima somaram-se os problemas da tradução indireta.”

- FUKS, 2011, p. 566

Nesse momento histórico (passagem do século XIX para o XX), é igualmente pertinente
lembrarmo-nos de que havia apenas uma única Escola de pensamento, como doutrina, a
freudiana (clássica).

Saiba Mais
Em termos formais, a maior parte dos autores considera o ano de 1900
o marco inicial da Psicanálise, que se deu por meio da publicação da
obra A interpretação dos sonhos. Renato Mezan (2019), contudo,

também faz questão de mencionar que nos deparamos com autores que
consideram que a Psicanálise, como campo autônomo, surge em 1897,
quando Breuer rompe definitivamente com Freud.

A relação entre Breuer e Freud já estava bastante desgastada desde


1895, devido à primeira desavença, surgida a partir de uma
discordância “relativa ao mecanismo mais apurado da histeria”

(FREUD, 1997, p. 13), pois, enquanto Breuer tinha uma afinidade muito
maior com uma linha de pensamento mais fisiológica, Freud, por sua
vez, desenvolveu a Teoria dos Estados Hipnoides, que procurava
encontrar respostas menos científicas.

Tal antagonismo fez com que, em pouco tempo, a Teoria freudiana da


defesa e a Teoria hipnoide de Breuer passassem a disputar a
hegemonia, vez que uma procurava suplantar a outra. Entretanto, a

subsequente ruptura entre Breuer e Freud, na opinião deste, não teria


sido desencadeada por essa mera desavença científica, mas sim por
razões muito mais complexas, incluindo-se nesse rol diferentes visões
relativas aos tratamentos a serem aplicados às pacientes.

Além da abordagem tradicional freudiana, outras correntes psicanalíticas, como a Psicanálise


junguiana, lacaniana e kleiniana, também encontraram, a partir dos anos 1940-1950,
seguidores e praticantes no país, bem como importantes centros, núcleos e grupos de estudos.

Por meio dessas constatações e seguindo a linha de pensamento defendida por autores como os
professores Norberto Bleichmar e Célia Bleichmar (1992), é importante frisarmos que a chegada

da Psicanálise ao Brasil não aconteceu de forma tardia, a exemplo do que poder-se-ia intuir,
visto que os primeiros estudos contendo conceitos do grande mestre vienense, no Brasil,
acontecem, mesmo que de forma ainda embrionária, muito antes da criação formal da Sociedade
Brasileira de Psicanálise (SBP), no ano de 1927.

Saiba Mais
Torquato e Rocha (2016) destacam que a SBP, devido à sua fundação,
em 1927, tornou-se a primeira Instituição dedicada à Psicanálise no

Brasil. Posteriormente, outras Sociedades Psicanalíticas foram


estabelecidas, em diferentes regiões do país, cada qual seguindo uma
das Escolas de pensamento apresentadas em nossas aulas pregressas.

Dessa forma, ao nos debruçarmos sobre a história da Psicanálise em terras pátrias (situação não
muito diferente da encontrada em outros países latino-americanos), seus primeiros esboços
acontecem de forma concomitante àquilo que estava acontecendo na Europa, muito embora a
sua real força apenas tenha se mostrado a partir do Terceiro Período da História da Psicanálise,

que se inicia em 1940 (com a morte de Sigmund Freud, em Londres) e que perdura até a
transição entre as décadas de 1970 e 1980. Portanto, é importante termos consciência de que o
Brasil saiu na vanguarda dos estudos psicanalíticos.

O Desembarque da Psicanálise na América


A história da Psicanálise, nos Estados Unidos da América, e seus desdobramentos nos demais
países latino-americanos é uma jornada fascinante, que se estende por mais de um século,
moldando profundamente a compreensão tanto da mente humana quanto da prática clínica. Tal

capítulo da história da Psicanálise foi essencial para uma compreensão mais apurada da mente
humana, bem como para o próprio desenvolvimento de outros campos médicos voltados à
diminuição do sofrimento humano, no início do século XX (processo que, posteriormente,
ganhou força até mesmo nas Ciências Sociais e nas Artes).

Em relação a seu início, propriamente dito, frisamos que ele se deu na transição entre os séculos
XIX e XX. Esse período marcou a introdução das Teorias revolucionárias de Sigmund Freud em
solo americano, desencadeando uma jornada de desenvolvimento, desafios, tensões e
influência significativa na Psicologia, na Psiquiatria e na cultura dos Estados Unidos.

Importante!
Ao adotarmos a expressão revolucionária, o emprego dela se deve ao
fato de que Freud, já no final do século XIX, creditar maior importância

à ideia da sexualidade como elemento desencadeador das neuroses.


Esse posicionamento freudiano, tal como a história da Psicanálise nos
ensina, redundou numa reação de repulsa e desagrado por parte de

Breuer e de vários amigos íntimos de Freud (principalmente, aqueles


que também eram Médicos).
Para Freud (1997, p. 150), não obstante

“o surgimento da transferência sob forma francamente sexual – seja de afeição,

seja de hostilidade – no tratamento das neuroses, apesar de não ser desejado ou

induzido pelo médico, nem pelo paciente, sempre me pareceu a prova mais
irrefutável de que a origem das forças impulsionadoras da neurose está na vida

sexual.”

Além do mais, o próprio Freud, em sua obra A História do Movimento Psicanalítico, foi enfático

ao afirmar que a Psicanálise diferia “de outras formas de investigação da vida mental” (FREUD,
1997, p. 9), devendo, por isso mesmo, ser infundida na maior quantidade possível de regiões,
como forma de desmistificar muitos dos seus princípios e práticas, bem como introduzir um
setting psicanalítico que potencializasse um atendimento mais humano, de fato, e reparador,
pois, a exemplo do que é destacado pelo próprio Freud (1996, p. 19): “a ciência moderna ainda

não produziu um medicamento tranquilizador tão eficaz como o que são umas poucas palavras
boas”.

Torquato e Rocha (2016, p. 426), ao descreverem o desembarque da Psicanálise da América,


destacam que: “Em 1909, Sigmund Freud desembarca na América do Norte na companhia de

seus colegas médicos Ferenczi, Jung, Yung, Brill e Ernest Jones”, com o objetivo de levar suas
ideias além-mar. Tal viagem, que aconteceu em um ano extremamente importante para a
história do movimento psicanalítico, concretizou-se por meio de um convite feito por Stuart
Hall, que desejava que Freud proferisse, nos Estados Unidos, um conjunto de palestras
introdutórias sobre as suas principais descobertas em torno da Psicanálise.

Importante!
O ano de 1909 para a Psicanálise – Em 1909, Freud teve a primeira
oportunidade de falar em público sobre a Psicanálise. Tal evento teve

importância ímpar, pois, nessa ocasião, Freud (1997, p. 9) mencionou


que os méritos de tal Área do saber não deveriam ser creditados
exclusivamente à sua pessoa, posto que o marco inicial havia sido dado

com Joseph Breuer (seu grande mentor intelectual). Assim sendo, foi
justamente nesse ano que Freud “faz as pazes com seu passado” no que
tange ao seu relacionamento com Breuer.

Após essa conferência, Freud foi advertido por alguns amigos em


relação à sua exagerada gratidão frente às contribuições de Breuer,
pois, segundo eles, o método catártico de Breuer deveria ser visto como
um estágio precursor daquilo que viria a se constituir posteriormente

na Psicanálise, pois a Psicanálise teria realmente sido cunhada a partir


da adoção do método da livre associação, não sendo computado, por
conseguinte, todo o período no qual Freud ainda era adepto do método

da hipnose.
Até esse momento, a primeira década do século passado, havia uma percepção um tanto quanto
equivocada de que a Psicanálise nada mais era do que uma derivação dos métodos de hipnose
desenvolvidos por Charcot na França. Assim sendo, tal intercâmbio se mostrou bastante
profícuo para a disseminação e a expansão da Teoria freudiana no novo mundo, visto que, até
então, boa parte do seu legado ainda estava fortemente conectado ao continente europeu, em
especial, aos domínios do Império austro-húngaro.

Em termos estratégicos:

“Tratava-se de um deslocamento traçado com o intuito de atender à aspiração

freudiana de garantir a ampliação de sua disciplina, fugindo da censura, das

críticas e, por vezes, da indiferença, antissemitismo e germanofobia presentes em


alguns dos países daquele continente [Europa].”

- TORQUATO e ROCHA, 2016, p. 426

Como o próprio Freud (1997, p. 11) ressalta: já estava mais do que na hora de o continente
americano ter consciência de que “Os sintomas dos pacientes histéricos baseiam-se em cenas

do seu passado que lhes causaram grande impressão, mas foram esquecidas (traumas)” – de tal
sorte que haveria outras formas de determinadas disfunções sociais serem “tratadas” e que
extrapolavam os tratamentos vigentes na época.
Saiba Mais
Na época em que Freud começou a construir as suas primeiras
teorizações, que culminaram com o advento da Psicanálise (final do
século XIX e início do século XX), era muito comum o emprego de
métodos bastante agressivos e violentos como choques elétricos e

hidroimersões. Só para que tenhamos ideia do uso disseminado de tais


práticas, basta lembrarmo-nos de que o próprio Freud, a exemplo do
que ele mesmo relata em sua obra A História do Movimento

Psicanalítico, fez uso (sem o êxito esperado) de tais procedimentos


(FREUD, 1997, p. 12).

Em sintonia com o exposto, igualmente destacamos que, desde o início da constituição da

Psicanálise como doutrina, Freud já estava ciente de que seria possível explicar os
acontecimentos presentes (manifestos) pelos pacientes partir de pistas (vestígios) deixadas no
passado – diante da constatação que “Toda experiência patogênica implicava uma experiência
prévia que, embora não patogênica em si, não obstante, dotava esta última de sua qualidade
patogênica” (FREUD, 1997, p. 12), ou seja, muitos dos sintomas que afloravam, num dado

momento, eram decorrentes, mesmo que indiretamente, de situações vividas no passado e que
redundaram em traumas, comportamentos atípicos ou demais sequelas psicológicas
subsequentes.
Saiba Mais
Freud, desde o momento em que pisou na América, estava ciente de que
as suas teorizações promoveriam sensíveis alterações na forma, por
meio da qual diferentes pensadores estadunidenses concebiam a
psique humana.

Nesse sentido e segundo o relato de Elisabeth Roudinesco, em 1955,

“numa conferência proferida em Viena, o psicanalista francês Jacques Lacan

confessou ter ouvido de Carl Gustav Jung o relato de que na ocasião da viagem do

grupo de psicanalistas à América do Norte, Freud teria dito em segredo, no ouvido

de seu discípulo, ao olhar a Estátua da Liberdade no porto nova-iorquino, seguindo

a sentença: “Eles não sabem que estamos trazendo a peste.”

- ROUDINESCO; PLON, 1997, p. 587

Apesar do rápido crescimento da Psicanálise nos EUA, ela também trouxe desafios importantes.
Muitos profissionais tradicionais, incluindo Psiquiatras e Psicólogos, expressaram ceticismo
em relação às ideias psicanalíticas. Argumentavam que as Terapias psicanalíticas eram longas,
caras e carentes de evidências científicas sólidas. Mesmo diante dessa recepção pouco calorosa
por parte de certos setores da comunidade médica estadunidense, ao longo do desenvolvimento
da Psicanálise, Freud (1997, p. 18) também desenvolveu a “Teoria da repressão e da resistência,
o reconhecimento da sexualidade infantil e a interpretação e exploração de sonhos como fonte
de conhecimento do inconsciente”, que encantaram inúmeros pensadores e pesquisadores
norte-americanos.

A Psicanálise na América e o Papel de Abraham Brill


O surgimento da Psicanálise, nos Estados Unidos, deu-se na transição entre os séculos XIX e

XX, mas se consolidou por meio da tradução das obras de Sigmund Freud para o Inglês, no início
do século XX. Essas traduções permitiram que psicólogos, Médicos (não só Psiquiatras) e
intelectuais norte-americanos tivessem acesso às ideias inovadoras do Médico austríaco. A
tradução pioneira das obras de Freud – do Alemão para o Inglês – foi realizada originalmente
por Abraham Brill, um Médico e Psicanalista que desempenhou papel fundamental na difusão
das ideias psicanalíticas nos Estados Unidos, no início do século XX.

Torquato e Rocha (2016) asseveram que Abraham Brill não apenas traduziu as obras de Freud,
tornando-o acessível a um público mais amplo, mas também fundou a Sociedade Psicanalítica

de Nova Iorque, em 1911, fazendo com que Brill seja concebido como uma figura proeminente na
introdução das ideias revolucionárias de Sigmund Freud na América. Tais contribuições abriram
as portas para que os Psicólogos e os Médicos norte-americanos tivessem acesso direto às
ideias de Freud, que estavam revolucionando a compreensão da mente humana há mais de 15
anos em solo europeu.

A Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque marcou o início oficial da Psicanálise nos Estados
Unidos, servindo de exemplo para outros espaços que posteriormente seriam construídos, além
de ter sido uma das primeiras organizações psicanalíticas fora da Europa. Torquato e Rocha
(2016) destacam que a Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque funcionou como um centro de
estudo e prática, tornando-se em pouco tempo o epicentro da disseminação das ideias
psicanalíticas no país.

A partir da Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque, a Psicanálise começou a se espalhar por todo
o país. Dado ao sucesso do capítulo nova-iorquino, outras Sociedades Psicanalíticas foram

fundadas em cidades como Boston, Chicago e São Francisco. Essas Organizações não apenas
promoveram o estudo e a prática da Psicanálise, mas também estabeleceram padrões rigorosos
de formação para os futuros Psicanalistas, garantindo maior unidade em termos de pensamento
(ao contrário do que, posteriormente, observaríamos em solo europeu).

A Escola Brasileira e a História da Psicanálise no Brasil


Torquato e Rocha (2016, p. 427-8) são partícipes da tese de que, originalmente, a introdução dos
primeiros estudos e práticas em torno da Psicanálise, em nosso país, deram-se por meio da
contribuição de Médicos e Psiquiatras – principalmente residentes nas cidades de São Paulo e
Rio de Janeiro. Tais profissionais, posteriormente, foram irradiando as teorizações freudianas
em outras regiões do Brasil.

Registros mais antigos indicam que Juliano Moreira, Médico que fundou a Psiquiatria Moderna
no Brasil, teria aplicado as ideias freudianas durante suas palestras na Faculdade de Medicina da

Bahia, em 1899. O Dr. Julio Pires Porto-Carrero, Psiquiatra, Psicanalista e primeiro Historiador
da Teoria Freudiana no Brasil, também se dedicou intensamente ao estudo do legado de Freud e
fundou a Clínica de Psicanálise da Liga Brasileira de Higiene Mental, no Rio de Janeiro, no ano de
1926.

Documentos históricos demonstram que o debate sobre as ideias freudianas teve seu início na
cidade de São Paulo, mais precisamente na década de 1920, com a publicação do livro A Doutrina
Pansexualista de Freud, do Médico Franco da Rocha, principal representante da Psiquiatria
local, idealizador e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Também em São Paulo, Durval
Marcondes e Franco da Rocha fundaram a primeira Sociedade Psicanalítica da América Latina, a

Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), em 1927.

Mesmo sendo inegável que as teorizações de Freud encantaram muitos Médicos e demais
Profissionais da Área da Saúde, a primazia na difusão da Psicanálise na cidade de São Paulo não
residiu na trajetória psiquiátrica: foi também graças à grande difusão no meio intelectual e,
sobretudo, no meio literário, que as ideias freudianas tomaram corpo no país. Ao revisarmos as
produções literárias do período em questão, constatamos que as ideias psicanalíticas já
circulavam nos salões intelectuais do Brasil desde a década de 1910 (TORQUATO; ROCHA, 2016,
p. 429).
Além de Psiquiatras que conheceram as Teorias freudianas por meio de Artigos em diários
profissionais, alguns viajantes e intelectuais – como o próprio Oswald de Andrade – visitaram a
Paris moderna e trouxeram sugestões freudianas, ainda que a partir de uma leitura
“contaminada” pelos vanguardistas europeus [pois, tal como frisamos na Unidade anterior, a
Psicanálise teve uma recepção muito calorosa em SETORES artísticos de Paris.

Portanto, a parte final do século XIX representou um período privilegiado de recepção das ideias
freudianas no país, principalmente, por meio de dois canais: psiquiátrico-higiênico da

Medicina, com sua leitura reformista e universalizante da Psicanálise, e a Arte modernista, cujo
cerne se antepunha aos códigos sociais e morais dominantes até então.

A Psicanálise e Suas Conexões com a Sociedade Brasileira


A exemplo do que foi destacado em nossa Introdução, a virada dos séculos XIX e XX foi
testemunha ocular de duas grandes convulsões sociais que estavam se desdobrando na
Sociedade brasileira: a abolição da escravatura e a implantação da República. Tais movimentos
levaram o país e sua intelectualidade (intelligentsia) a um movimento de reformulação de ideias e

concepções sobre o Brasil e seu povo. Segundo Torquato e Rocha (2016, p. 427-8), a abolição da
escravatura, dadas as características da Sociedade brasileira, representava questão mais aguda e
preocupante, pois abriu a dificuldade de integração no país de uma população até então invisível
aos olhos de boa parte dos governantes. A possibilidade de uma melhoria racial surge, assim,
para abordar um diagnóstico que atribui à raça a presença de elementos limitadores que
afligiriam essa população empobrecida e de origem negra.

Muito embora existisse um projeto para um “Novo Brasil”, a inteligência nacional não estava
unida no tratamento da questão racial, assumindo, em muitos casos, posições bastante
autoritárias ao apontar, por exemplo, para a necessidade de se formar uma nova raça brasileira

– predominantemente constituída por fileiras brancas. Tal projeto eugênico seria determinante
para que o Brasil pudesse se fortalecer no cenário internacional, bem como se destacar
economicamente. Apenas uma parcela muito limitada de membros da elite econômica local
tinha o sonho de proporcionar aos ex-escravos condições mais satisfatórias de Saúde e
Educação.
Para tornar tal momento histórico ainda mais complexo, o Brasil da época (início do século XX)
ainda enfrentava uma série de obstáculos decorrentes do processo incompleto de
modernização: caracterizado pelo desenvolvimento desordenado das cidades, pelo crescimento

populacional desprovido de um planejamento prévio e pela ausência crônica de infraestrutura


primária.

O corpo médico residente no Brasil tenta regulamentar e (re)organizar o funcionamento social


do ponto de vista da Saúde. Tais profissionais passam a tratar não só o corpo doente do sujeito,
mas o corpo social, monitorando de forma bastante intensa a saúde da população, com o
objetivo principal de garantir a segurança e a prosperidade da nação. Nesse sentido, a
comunidade médica e científica da Primeira República engajou-se num projeto educativo-
civilizador. O objetivo dessa empreitada seria educar a população por meio de uma compreensão
mais ampla da pedagogia moral e cívica: educar as pessoas indisciplinadas (incivilizadas), sem
instrução e com maus hábitos. Para a Ciência Médica da época, fortemente influenciada pela
Teoria da Degeneração, a mistura racial (miscigenação) dos povos era vista como um obstáculo
crucial à concretização do projeto civilizatório da nação brasileira (TORQUATO; ROCHA, 2016).

As teorizações freudianas, nesse período, que contavam com o respaldo de nomes de peso como
o Psiquiatra Julio Pires Porto-Carrero e o doutor Juliano Moreira, diretor do Hospital Nacional
dos Alienados, no Rio de Janeiro, acabaram sendo apropriadas, com a finalidade última de
justificar o discurso higienista e eugenista.

Porto-Carrero defendia vigorosamente a eugenia e a higiene mental como bandeiras a serem


travadas em prol de uma regeneração da raça e do povo brasileiro, de tal forma que o Psiquiatra
empenha um movimento para conferir à Psicanálise valor como método de investigação,
instrumento nosográfico que poderia auxiliar na restauração, no estabelecimento e na
manutenção da ordem moral e social (TORQUATO; ROCHA, 2016, p. 429).

A Psicanálise e as Suas Conexões com a Vanguarda Artística da


Sociedade Brasileira
O cerne do pensamento freudiano e a sua proposta eminentemente libertária em relação aos
rigorosos padrões existentes na época suscitaram um rompimento com uma série de amarras
no campo artístico, por conta das suas diferentes inovações em campos como as Artes e a
Linguagem. Ao considerar o inconsciente prioritário, algo até então não valorizado, Freud
mudou radicalmente a compreensão da criação artística, bem como da relação estabelecida
entre a obra e o seu criador

Os movimentos de vanguarda artística, situados em solo nacional, almejavam encontrar, cada


um à sua maneira, uma forma de expressar a sua respectiva criatividade, bem como uma forma
de valorizar atributos concebidos como “não-racionais”. A Psicanálise, devido ao seu caráter
contra-hegemônico, seria a ferramenta perfeita para expressar a espontaneidade, em sintonia

com uma expressão mais livre para a composição. Esse processo é concomitante ao advento do
conceito de inconsciente freudiano, que estimulou diferentes artistas a construírem as suas
obras.

No Brasil, a intelectualidade artística, nascida em pleno Modernismo, reconheceu, ainda muito


cedo, na obra de Freud, uma frente de atualização de seus ideais estéticos,

“fonte de renovação estilística que ia desde a inusitada possibilidade de construção

de um vocabulário ampliado – o uso de conceitos como pulsão, libido,

inconsciente, subconsciente nessas obras – à possibilidade de oferecer à


intelectualidade modernista uma outra forma de construção de seus personagens,

dos conflitos psicológicos e do processo de criação literária. ”

- TORQUATO; ROCHA, 2016, p. 431

Dessa forma, enquanto a ala médica adotou a Psicanálise como instrumento legitimador de
práticas eugenistas, os artistas a viam como uma ferramenta capaz de libertá-los das correntes

mais conservadoras do meio artístico, em prol da construção, inclusive, de uma Escola artística
que representasse, de fato, os elementos práticos e a cultura local.
Psicanálise Durante a Ditadura Militar no Brasil
A Psicanálise, assim como muitos outros campos acadêmicos e intelectuais, durante a ditadura
militar que ocorreu, no Brasil, de 1964 a 1985, enfrentou desafios significativos e teve papel
complexo na Sociedade da época, dada à repressão imposta por diferentes Órgãos de censura.

Durante a ditadura militar, o regime adotou uma postura autoritária e repressiva em relação à
liberdade de expressão e à disseminação de ideias. O controle rigoroso em torno da possibilidade
de as pessoas exprimirem, de forma livre, os seus pontos de vista teve várias implicações no
campo intelectual brasileiro. Não raro, diferentes Instituições acadêmicas, bem como
Universidades e Centros de Pesquisa sofreram por conta do domínio ininterrupto exercido por
diferentes Setores do regime militar (cujos membros também se infiltraram nos Núcleos de

Pesquisa e Estudos).

Isso afetou também o campo da Psicanálise, com obras e discursos que eram considerados
subversivos ou contrários ao regime sendo censurados, proibidos ou desencorajados. Dessa
maneira, durante esse período autoritário, observamos um recuo em torno das produções
acadêmicas e demais estudos clínicos. A linha dura adotada pelos aparelhos repressores
redundou em severas restrições na pesquisa, no ensino e nas publicações acadêmicas, o que
afetou a disseminação e o desenvolvimento da Psicanálise no Brasil.

Vários Psicanalistas brasileiros que se opuseram ao regime militar foram sumariamente


perseguidos, presos ou forçados ao exílio. Alguns deles tiveram de deixar o país para continuar
seu trabalho e ativismo em um ambiente mais seguro. Isso teve impacto na comunidade
psicanalítica brasileira, com a perda de talentos ainda em fase de formação e de figuras
importantes, cujas contribuições acabaram sendo interrompidas e ou prejudicadas.

O período da ditadura militar gerou divisões na comunidade psicanalítica brasileira. Alguns


psicanalistas mantiveram uma posição mais crítica em relação ao regime, enquanto outros
adotaram uma postura mais conformista para evitar problemas com as autoridades. Esses
conflitos internos influenciaram a dinâmica das Sociedades psicanalíticas e a disseminação das
ideias psicanalíticas. Nesse mesmo período, devido à atmosfera de medo e repressão, muitos
profissionais e acadêmicos brasileiros podem ter praticado a autocensura, evitando tópicos
sensíveis ou críticos ao regime militar em suas atividades profissionais, incluindo a Psicanálise.
Durante a ditadura, a Psicanálise também foi usada como ferramenta de análise política e social
por alguns Psicanalistas críticos ao regime. Eles exploraram conceitos psicanalíticos para
entender o autoritarismo, a repressão e os efeitos psicológicos da repressão política sobre a

população brasileira.

Após o fim da ditadura militar, em 1985, a Psicanálise, no Brasil, experimentou um período de


renovação e expansão, o que permitiu o renascimento das atividades acadêmicas e intelectuais
em nosso país. Psicanalistas que haviam sido perseguidos ou exilados, aos poucos, retornaram
ao país, e houve ressurgimento das discussões sobre Psicanálise e Política. Além do mais, a
Psicanálise, junto com outras Disciplinas, pôde retomar um espaço mais livre para a pesquisa, o
ensino e a prática clínica.

Em resumo, no Brasil, durante a ditadura militar, a Psicanálise enfrentou desafios significativos,


incluindo a repressão, o exílio de Psicanalistas críticos ao regime e divisões internas na
comunidade psicanalítica.

Mesmo diante das diferentes dificuldades, a Psicanálise também foi usada como ferramenta de
análise crítica da Política e da Sociedade durante esse período. Após o fim da ditadura, houve

uma retomada e uma revitalização da Psicanálise no país, com a reintegração de Psicanalistas


exilados e um renascimento dos debates envolvendo a Psicanálise e o campo político. Hoje, a
Psicanálise, no Brasil, é uma Área de estudo e prática estabelecida e influente na Psicologia, na
Psiquiatria e na cultura do nosso país.

Em Síntese

A partir do exposto em nossa quinta Unidade, é pertinente destacarmos que:

A história da Psicanálise nos Estados Unidos da América e seus desdobramentos


nos demais países latino-americanos, é uma jornada fascinante, que se estende por
mais de um século, moldando profundamente a compreensão tanto da mente
humana quanto da prática clínica;

O surgimento da Psicanálise, nos Estados Unidos, deu-se na transição entre os


séculos XIX e XX, mas se consolidou por meio da tradução das obras de Sigmund
Freud para o Inglês no início do século XX, processo conduzido por Abraham Brill;

Após o seu desembarque no Brasil, a Psicanálise, com o correr dos anos, passou por
um processo de desenvolvimento e diversificação, ou seja, de
maturação/tropicalização, pois sua recepção, pelo menos no seu início, foi um tanto
quanto tumultuada em setores mais conservadores e tradicionalistas da nossa
Sociedade, que não compactuavam com uma boa parte das descobertas oriundas
dos estudos originalmente promovidos por Freud e seus diferentes discípulos;

A Psicanálise, como saber conectada ao legado freudiano, foi introduzida, no Brasil,


principalmente por meio de Médicos, Profissionais de Saúde, Artistas e demais
intelectuais que tiveram contato com as ideias de Sigmund Freud e de outros
Psicanalistas europeus;

Durante a ditadura militar, a Psicanálise perdeu parte do seu viço, que foi recuperado
após o período de redemocratização.
📄 Material Complementar
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Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros

O que é Psicanálise
HERRMANN, F. O que é Psicanálise. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984. Coleção
Primeiros Passos.

Freud e o Inconsciente
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. 24. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

Vídeo

1ª e 2ª Tópica do Aparelho Psíquico – Universo da Psicologia


1ª e 2ª Tópica do Aparelho Psíquico | Freud, Psicanálise

Filme

Bicho de Sete Cabeças


Bicho de Sete Cabeças | Trailer Oficial
📄 Referências
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BLEICHMAR, N. M; BLEICHMAR, C. L. A psicanálise depois de Freud: teoria e clínica. Porto


Alegre: Artes Médicas, 1993.

CELES, L. A. M. Clínica psicanalítica: aproximações histórico-conceituais e contemporâneas e


perspectivas futuras. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 26, n. esp., p. 65-80, 2010.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, [1900] 2019. (Obras completas, v. 4) (e-book).

FREUD, S.; BREUER, J. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Tradução de Laura Barreto. São
Paulo: Companhia das Letras, [1895] 2016. (Obras completas, v. 2).

FUKS, B. B. Comentário sobre a tradução de Paulo César Souza das Obras completas de Sigmund
Freud. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 3, p. 565-570, set. 2011.

GABBARD, G. O. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.

MEZAN, R. O tronco e os ramos: estudos da História da Psicanálise. 2. ed. São Paulo: Blücher,
2019.

ROUDINESCO, É.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro e de Lucy


Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
RYCROFT, C. Dicionário crítico de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Coleção Psicologia
Psicanalítica).

TORQUATO, L.; ROCHA, G. M. A peste no Brasil: a introdução das ideias freudianas no Brasil a

partir da medicina e do modernismo. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, [S.l.], v. 19, n. 3, p.


425-440, set. 2016.

ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – Uma abordagem


didática. Porto Alegre: Artmed, 2007.

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