Você está na página 1de 7

2017­5­15 Entrevista: 

A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha

BRASIL Acesso à informação Participe Serviços Legislação Canais

Fale conosco Ouvidoria English Español Intranet Mapa do site Visite a Fiocruz Acessibilidade

Do que
você precisa?
Buscar na Fiocruz ► Buscar
Selecione uma tarefa

PESQUISA E PRODUÇÃO E SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E ACESSO À


A FUNDAÇÃO ENSINO INOVAÇÃO SAÚDE INFORMAÇÃO INFORMAÇÃO

Você está aqui » Início » Comunicação e informação » Notícias » Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha

15/12/2016

Entrevista: A história da saúde mental no Brasil


e na Alemanha

Haendel Gomes (COC)

No dia 14 de dezembro, em Brasília, o jovem historiador Pedro Felipe


Neves de Muñoz recebeu  menção honrosa no Prêmio Capes pela tese  À luz
do biológico: psiquiatria, neurologia e eugenia nas relações Brasil‐Alemanha
(1900‐1942), defendida em 2015 no Programa de Pós‐Graduação em História
das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). O autor
teve como orientadora a professora e pesquisadora Cristiana Facchinetti,
com coorientação de Stefan Rinke.

Nesta entrevista, Pedro Felipe Neves de Muñoz discorre sobre o que o


levou ao tema da história da medicina mental, os autores estudados e a
trajetória dos principais nomes da psiquiatria no início do século 20 no
Brasil e na Alemanha. No percurso em busca de respostas, pesquisou os
itinerários políticos e as agendas intelectuais dos médicos brasileiros e
alemães.

Inspirado no historiador francês Jacques Revel (“a história é um jogo de


escalas”), o pesquisador pretendia, ao desenvolver sua tese, preencher
algumas lacunas da historiografia da medicina mental no Brasil. Para isso,
debruçou‐se sobre personagens como o baiano Juliano Moreira. “Não
tínhamos maiores informações sobre como Juliano Moreira era visto e
tratado por seus colegas estrangeiros. Tampouco tínhamos a real dimensão
de sua rede internacional, como ela foi montada, em parceria com que
médicos brasileiros, em contato com que médicos alemães e estrangeiros,
com que recursos, que contingências históricas”, disse.

Pedro Felipe de Muñoz estudou nomes importantes da psiquiatria alemã,


entre os quais Emil Kraepelin, bem como sua influência em seu campo de

https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 1/7
2017­5­15 Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha
atuação, abordando as críticas que recebeu em seu país e também no
Brasil. Ao falar sobre as pesquisas em torno da eugenia e a medicina
mental internacional, relata que há um esforço relativamente recente de
trabalho com a história transnacional ou global no Brasil. O historiador
disse acreditar que nos próximos anos novos trabalhos contribuirão com o
tema.

Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro (PUC‐Rio), Pedro Felipe leciona a disciplina História das
Cidades. Dedica‐se a pesquisas em história das ciências e história
contemporânea sob a perspectiva transnacional, em especial, às relações
científicas entre Brasil e Alemanha na primeira metade do século 20. Em
sua tese de doutorado, o historiador mergulhou em temas de seu
interesse: a história dos "saberes psi" (psicologia, psiquiatria e psicanálise)
e da eugenia, sobretudo a história da higiene racial alemã durante a
República de Weimar e o Terceiro Reich.

Graduado em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(Uerj), Pedro, que também fez mestrado na COC, realizou entre 2013 e
2015 doutorado sanduíche na Freie Universität Berlin. Confira a seguir a
entrevista completa concedida por Pedro Felipe Neves de Muñoz ao portal
da Casa de Oswaldo Cruz.

A sua tese buscou respostas para


algumas questões ainda não
respondidas pela historiografia da
psiquiatria brasileira na primeira
metade do século 20. Para isso,
recorreu a um sem número de
documentos na Alemanha,
principalmente. Diria que conseguiu
aprofundar mais o entendimento em
torno da circulação do conhecimento
nessa área, especialmente na relação
Brasil‐Alemanha?

As viagens internacionais de
psiquiatras e neurologistas são
citadas em diversos trabalhos da
historiografia brasileira, mas não
como parte de uma profunda
Pedro Muñoz. Foto: Arquivo Pessoal.
investigação sobre as redes
científicas transnacionais da medicina mental. Embora sejam trabalhos de
grande qualidade, existem lacunas, sejam de ordem analítica, sejam datas
e dados gerais. Isso ocorreu pela própria abordagem da historiografia, ou
mesmo, pela grande perda e dispersão de fontes de época e, ainda, pela
pouca existência de acervos pessoais. Nesse sentido, a documentação alemã
contribuiu para o trabalho de análise dessas lacunas. Talvez, o caso do
psiquiatra baiano Juliano Moreia seja o mais exemplar. Por ter sido um dos
principais nomes da psiquiatria brasileira, na primeira metade do século 20,
Moreia foi muito estudado pela historiografia. Porém, os estudos se
restringiam a perspectiva da história nacional, fazendo com que suas
viagens e seus contatos internacionais fossem apenas acionados para
explicar as reformas empreendidas por ele, ao longo de sua direção no
Hospício Nacional de Alienados, entre 1903 e 1930. Nesses trabalhos, foi
muito analisada a reapropriação da psiquiatria kraepeliana, seja em uma
perspectiva difusionista ou não. Sabia‐se da fama internacional de Juliano
Moreira. Porém, não tínhamos maiores informações sobre como Juliano
Moreira era visto e tratado por seus colegas estrangeiros. Tampouco,
tínhamos a real dimensão de sua rede internacional, isto é, como ela foi
montada, em parceria com que médicos brasileiros, em contato com que
médicos alemães e estrangeiros, com que recursos, que contingências
históricas favoreceram a sua organização etc. Embora a tese aprofunde
algumas questões do contexto nacional, o foco maior da tese foi estudar o
intercâmbio e as relações científicas bilaterais entre Brasil e Alemanha. Era
nesse ponto que eu e meus orientadores, Cristiana Facchinetti e Stefan
Rinke, pretendíamos dar uma maior contribuição para a historiografia. O
objetivo da tese foi mostrar como as ideias, saberes e modelos

https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 2/7
2017­5­15 Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha
institucionais circulavam. No caso de Juliano Moreira, mostrei quando
exatamente ocorreu sua primeira viagem; como e em que circunstâncias
ocorreram as demais; o que elas representaram; discuti como sua primeira
viagem a Europa modificou sua agenda de trabalho; comparei a agenda de
pesquisa de Moreira com a de Kraepelin, bem com os modelos
institucionais criados ou acionados pelos dois; acompanhei a formação de
sua equipe de colaboradores ao longo de sua trajetória; mostrei que
Afrânio Peixoto, Ulysses Vianna, Antonio Austregésilo e, por fim, Cunha
Lopes atuaram em diferentes momentos e em distintas circunstâncias na
parceria com Juliano Moreira durante o processo de aproximação da
psiquiatria brasileira com a alemã, já que cada um desses personagens
tinha seu próprio itinerário político e sua própria agenda intelectual de
trabalho.

Por que cientistas da medicina mental desses dois países se aproximaram


naquele período?

Em primeiro lugar, há uma motivação pessoal. Simultaneamente, observei


as resistências de outros grupos, que tinham suas próprias agendas e
itinerários políticos. Faço direta referência aos médicos Teixeira Brandão e
Henrique Roxo, que estavam mais afinados com a rede científica franco‐
brasileira. Mas, para que os objetivos pessoais se traduzissem na formação,
aproximação e dinamização de redes científicas, outros fatores tinham que
ser investigados, conforme indicou Peter Haas em seu texto sobre as
comunidades epistemológicas: fontes de financiamento governamentais e
privadas; relações com o Estado; questões linguísticas; estabelecimento de
contatos e trocas com outras comunidades epistemológicas etc. Para citar
alguns exemplos, destaquei que Juliano Moreira fez parte da Sociedade
Brasileira de Amigos da Cultura Alemã (1922) e que, através dela, ele
conseguiu arrecadar 100.000 marcos para socorrer o Instituto Alemão de
Pesquisas Psiquiátricas de Munique, fundado por Kraepelin, em 1917. Após a
Primeira Guerra Mundial, a instituição de Kraepelin [Emil] passava por
dificuldades financeiras, em meio à crise inflacionária de 1922 e 1923 da
República de Weimar. Por essa razão, Kraepelin viajou aos Estados Unidos e
conseguiu uma nova fonte de financiamento para o seu instituto, através
da Fundação Rockefeller. A vinda de médicos alemães para o Brasil era
custeada por sociedades médicas responsáveis por arrecadar os recursos
necessários para pagar as viagens e estadias. Dessa forma, ao longo da
narrativa, alguns acontecimentos e conjunturas históricas também foram
relacionadas com as redes de Juliano Moreira e dos médicos alemães: os
resultados da Primeira Guerra Mundial; as dificuldades econômicas dos
médicos e das instituições alemães na República de Weimar; a formação da
política cultural exterior alemã (Auswärtige Kulturpolitik); a chegada de
Vargas e Hitler ao poder etc.

Em que medida o discurso biológico foi preponderante para o avanço da


medicina mental como ciência e como o Brasil contribuiu para isso?

Michel Foucault, em  O Nascimento da Clínica, mostra que a medicina do


século 17 e 18 operava segundo um modelo classificatório, a partir do qual
as doenças eram elencadas como espécies, tal como na história natural. As
autópsias eram proibidas e não havia uma correlação entre a doença e o
corpo doente, isto é, não se identificava a parte do corpo onde se
localizava a doença. Foi Bichat [Marie François Xavier] que realizou essa
correspondência para constituir uma anatomoclínica. O nascimento da
clínica ocorreu, então, com o desenvolvimento da anatomopatologia, da
medicina das epidemias e do uso do microscópio (bacteriologia),
modificando os mecanismos de produção da “verdade” sobre a vida e a
morte humana. A ciência passou, assim, a ocupar o lugar que outrora era
exercido pela religião. Em “Microfísica do Poder”, Foucault defendeu que a
medicina e a sociedade capitalista teriam investido no corpo, como parte
de um dispositivo biopolítico. Ele argumentou que a medicina do século 18
realizou um movimento do coletivo para o individual: medicina de estado
(Prússia), medicina urbana (França) e medicina da força de trabalho
(Inglaterra). Mais tarde, com Louis Pasteur e Robert Koch houve uma
mudança epistemológica na produção do saber médico: a revolução
bacteriológica. Segundo Cunningham, ela deu uma contribuição decisiva
para etiologia médica ao identificar agentes microscópios como patógenos e

https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 3/7
2017­5­15 Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha
transmissores de doenças. Apontou também a existência de vetores e
contribuiu para a produção de vacinas. Com isso, a medicina realizou um
novo investimento no corpo e no biológico, utilizando‐se de novas
ferramentas (microscópio e laboratórios) e novas formas de olhar
(Foucault). Embora isso não tenha sido um processo linear, muito menos
marcado pela ausência de debates, polêmicas e resistências, pode‐se dizer
que a revolução bacteriológica representou um importante capítulo da
história da medicina como ciência. No caso da medicina mental, observei
que os médicos alemães, desde o século 19, estavam centrados nos
mesmos objetivos: uso do microscópio, criação de laboratórios,
desenvolvimento de estudos clínicos e anatomofisiológicos, muita
especialização e experimentação etc. Atento a tudo isso, Kraepelin montou
uma equipe de colaboradores e uma nova agenda de pesquisa para a
medicina mental em Dorpat, em Heidelberg e, finalmente, em Munique. No
entanto, o próprio Kraepelin anotou em sua “Autobiografia” que existiam
muitas dificuldades para a psiquiatria alcançar êxitos similares aos da
bacteriologia. Diferentemente dos neurologistas do século 19, que colocaram
a clínica em segundo lugar, por entenderem a doença mental como
incurável, Kraepelin fez uma defesa feroz da importância da clínica e da
psicologia, isto é, do contato com os pacientes. Ao tentar solucionar as
dificuldades para a produção do conhecimento científico na medicina
mental, Kraepelin em colaboração com Franz Nissl e Alois Alzheimer,
montou uma agenda de trabalho inovadora que circulou internacionalmente.
No Brasil, coube a Juliano Moreira realizar a reapropriação das diretrizes
de pesquisa lançadas por Kraepelin. Em uma conferência, no Rio de
Janeiro, em 1931, o médico alemão Walter Spielmeyer destacou os avanços
da medicina mental desde o desenvolvimento das técnicas de microscopia
de Nissl, ainda no século 19. Porém, destacou também a existência de
lacunas e persistentes dificuldades. Em 1933, Ernst Rüdin, ex‐aluno e
colaborador de Kraepelin em Munique, assumiu a direção do Instituto
Alemão de Pesquisas Psiquiátricas e implementou uma agenda de trabalho
radicalmente diferente da perspectiva lançada por Kraepelin e retomada
por Walter Spielmeyer – que havia se tornado diretor do instituto quando
Kraepelin faleceu, em 1926. Rüdin centralizou os esforços na psiquiatria
genética e na higiene racial (eugenia alemão). O médico brasileiro Ignácio
da Cunha Lopes, que acompanhou o trabalho de Rüdin, em 1930, destacou
que a fase curativa da medicina havia declinado, sendo substituída pela
fase profilática. Isto quer dizer que a clínica, a psicologia e mesmo a
anatomopatologia de Nissl e Spielmeyer cediam lugar à psiquiatria genética
e à eugenia, que representavam outro tipo de discurso biológico da
medicina mental, bem como uma distinta agenda biopolítica. A diferença
entre o Brasil e a Alemanha é que os colegas brasileiros, embora afinados
no discurso biológico da higiene racional alemã (Cunha Lopes foi um deles),
não conseguiram colocar em prática no país essa outra agenda biopolítica
mais radical, que renegou a clínica em prol da esterilização ou mesmo da
eutanásia. Além disso, mostrei que essa agenda biopolítica mais radical não
era um consenso, nem na República de Weimar, nem no Brasil dos anos
1920 e 1930. Para entender como ela se tornou prioritária na Alemanha,
tive que seguir a história das universidades e dos cientistas alemães no
Terceiro Reich.

Em sua tese, você lança mão do conceito de biopolítica numa ciência


organizada em redes. Além disso, discute como a questão política
influenciou decisões de governo, envolvendoinclusive  aspectos econômicos.
Até que ponto a pesquisa em torno da medicina mental teve influência
dessa disputa?

No campo da diplomacia, observei como as questões estatais se


relacionavam como o contexto médico e científico da época. A Primeira
Guerra Mundial foi sem dúvidas em divisor de águas. Por essa razão, dividi
a tese em duas partes. A primeira parte versa sobre o período anterior a
essa guerra, já a segunda parte fala sobre o intercâmbio médico teuto‐
brasileiro após a guerra. Os anos 1920 são bastante interessantes, pois
nesse período se coloca fortemente o tema do internacionalismo na agenda
política, cultural e científica da modernidade ocidental (para nos
restringirmos ao contexto geográfico da tese). Na medicina mental não foi
diferente. Houve uma grande circulação internacional de médicos e uma
forte cooperação intelectual. O que eu pude observar, através dos

https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 4/7
2017­5­15 Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha
trabalhos de André Felipe Silva, Magali Sá [Romero], Stefan Wulf e Stefan
Rinke (só para citar alguns exemplos) é que a Alemanha saiu bastante
debilitada da guerra, seja do ponto de vista político e econômico, seja na
seara científica internacional. Ao final da Primeira Guerra Mundial, os
cientistas franceses e belgas organizaram um boicote à ciência alemã. Os
cientistas alemães foram proibidos de participar dos congressos e eventos
internacionais. A língua alemã, até então forte na ciência internacional,
também foi excluída. Nesse contexto, como disse, organizou‐se uma política
cultural exterior (Kulturpolitik) e uma política latino‐americana
(Lateinamerikapolitik) que contribuíram para o aumento da presença alemã
na América Latina, bem como para o acirramento da disputa por influência
entre França e Alemanha na América do Sul. Embora os cientistas tivessem
suas próprias iniciativas, eles se associaram a essas políticas para
barganhar apoio econômico junto ao Estado (brasileiro e também o
alemão). Isso facilitou, por exemplo, a circulação de médicos brasileiros na
Europa e de médicos alemães na América do Sul. Entre os médicos
alemães, vieram basicamente neurologistas, cujo esforço de atração por
parte dos brasileiros pode ser encontrado nas fontes antes mesmo da
Primeira Guerra Mundial.

Franceses e alemães protagonizaram um embate em torno do tema saúde


mental. Porém, os alemães acabaram tendo prevalência nos estudos de
pesquisadores brasileiros. Por que isso aconteceu?

Não creio que podemos falar em prevalência. Ao longo da tese, destaquei


que essa prevalência pode, no máximo, ser encontrada em alguns médicos.
Ou seja, uma preferência de um determinado médico, seja por razões
teóricas, seja por paixões políticas. Alguns médicos brasileiros eram sem
dúvidas francófilos e outros germanófilos. Embora Juliano Moreira estivesse
afinado como o grupo dos germanófilos, pareceu‐me que seu espírito
internacionalista (tão defendido por Albert Einstein) o levou a exaltar os
avanços científicos e culturais dos povos estrangeiros, independente da
nacionalidade. Moreira circulou por toda a Europa, pelo norte da África e,
na Ásia, esteve no Japão. Via muita qualidade na medicina nipônica, bem
como foi defensor da importância da imigração japonesa no Brasil. Ele
argumentava que os estrangeiros deveriam ser selecionados, através de
critérios médicos e científicos, porém, jamais por critérios raciais. Ele,
como médico negro, não tolerava o racismo biológico que muitas vezes
embasava algumas teorias médicas de sua época.

Emil Kraepelin é o principal nome da psiquiatria organicista. Qual foi a sua


influência na psiquiatria brasileira no século 20?

Kraepelin foi uma personagem de grande importância internacional para a


psiquiatria. Na tese, sigo o rastro da trajetória de Kraepelin para entender
como ele se tornou tão importante dentro e fora da Alemanha. Porém,
uma fala do professor Flávio Edler, em uma disciplina sobre a história da
psiquiatria, acabou me marcando profundamente. A história tradicional da
psiquiatria costuma destacar cânones, sem problematizar quem eram de
fato esses personagens. Na verdade, não se trata de negar que alguns
nomes tenham se destacado historicamente. Contudo, Edler chama a
atenção de que a história da medicina e das ciências é mais um terreno
de disputas na arena intelectual do que essa narrativa pacificada dos
cânones, que exalta as qualidades e omite as dificuldades e deficiências de
um dado personagem. Parece‐me que é justamente aí que reside a crítica
de Nietzsche e Walter Benjamin à história dos grandes nomes e dos
vencedores. É por essa razão que a nova história política passou a investir
nas trajetórias. E foi o que eu fiz. Embora Kraepelin tenha se tornado um
dos psiquiatras de maior fama internacional, na Alemanha seu trabalho não
era consensual. Havia o grupo dos antikraepelianos, do qual o psiquiatra
Karl Bonhöffer, catedrático da Universidade de Berlim, fazia parte. Eles não
concordavam com as conclusões do diagnóstico diferencial de Kraepelin e,
portanto, com sua classificação psiquiátrica. E os médicos brasileiros
tinham grande estima por Bonhöffer, cuja clínica psiquiátrica era muito
frequentada por colegas do mundo todo. No Brasil, colocamos essa questão
de modo similar. Juliano Moreira não era uma unanimidade. Ao retomar as
ideias de Kraepelin, Juliano Moreira se deparou com as discordâncias de
Teixeira Brandão, catedrático de psiquiatria e neurologia da Faculdade de

https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 5/7
2017­5­15 Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha
Medicina do Rio de Janeiro. Moreira teve que brigar na arena intelectual
(defender suas ideias e pontos de vista), mas teve também que negociar
no plano político. O resultado dessas negociações foi a publicação da
classificação nacional de doenças mentais de 1910. Embora, Kraepelin tenha
sido uma grande referência, ele foi também um dos principais pontos de
discordância. É dessa forma que propus entender Kraepelin e sua
importância para a psiquiatria brasileira do século passado.

Poderia falar um pouco sobre as duas principais correntes desse período: a


reducionista (francesa) e a organicista (alemã)?

Em primeiro lugar, deixei de lado esse guarda‐chuva tão usado para falar
da psiquiatria alemã. Refiro‐me ao organicismo. Embora os estudos
anatomopatológicos produzidos nos laboratórios alemães tivessem marcado
uma época, penso não ser correto dizer que apenas os alemães eram
organicistas. Antonio Austregésilo, após visitar os Estados Unidos em 1927,
defendeu que os estudos semiológicos e anatomopatológicos estavam
bastante avançados na América do Norte. Na França, perseguia‐se, desde
Pinel, o extrato orgânico e biológico da doença mental. Na tese, mostro,
por exemplo, que Kahlbaum [Karl Ludwig] ‐ importante referência para
Kraepelin ‐ dialogava com seus colegas franceses Falret [Jean‐Pierre] e
Bayle [Antoine‐Laurent]. Estes dois acreditavam que a patologia mental
poderia ser isolada, tal como ocorreria na anatomoclínica da medicina
geral. Quando Henrique Roxo visitou Paris, ele destacou a importância dos
laboratórios franceses e dos estudos anatomopatológicos. Por essa razão,
decidi abrir mão desse guarda‐chuva do organicismo e decidi analisar os
diferentes discursos biológicos produzidos pela medicina mental, no período
estudado. Isso se mostrou bastante importante para compreender também
as relações entre os saberes investigados: psiquiatria, neurologia e eugenia.

Por que havia tanta rivalidade no meio científico, especialmente na


medicina mental, quando o debate envolvia questões vinculadas a ciência,
raça e eugenia?

As rivalidades são inerentes da arena intelectual e científica. Não há como


ser diferente, principalmente, nos contextos ditos democráticos. Nos
regimes autoritários/totalitários, essas rivalidades também existem, porém,
os posicionamentos precisam ser bem calculados em relação à ideologia
oficial. Na tese, cito o caso de um colaborador de Ernst Rüdin, chamado
Hans Luxenburger. Como católico, ele publicou suas discordâncias com a
política científica nazista, em pontos que ofendiam os preceitos da Igreja.
Não tardou muito tempo e a SS [Schutzstaffel – a tropa de elite criada
por Adolf Hitler] conseguiu afastá‐lo de seu posto em Munique. Ele, porém,
recebeu uma pena suave. Foi transferido para trabalhar como médico da
Luftwaffe (Força Aérea). Foi uma pena suave se compararmos com outros
casos fatais. O caso de Luxenburger ilustra bem o debate envolvendo a
relação entre ciência e eugenia. Falamos anteriormente que Rüdin, ao
combinar ciência, raça e eugenia, afastou‐se das diretrizes propostas por
Kraepelin para a pesquisa psiquiátrica. No Brasil, essa combinação entre
ciência, raça e eugenia dividiu os médicos do grupo de Juliano Moreira e
os médicos do grupo de Henrique Roxo e Renato Kehl ‐ só para dar um
exemplo, ainda que esquemático.

Como a  Era dos Extremos  acabou contribuindo para o desenvolvimento da


medicina mental no século passado?

Acho curiosa a sua pergunta, embora ela seja muito pertinente. Digo isso,
porque na tese eu procurei entender o inverso, isto é, como e por que a
medicina mental contribuiu para a  Era dos Extremos. Porém, existem
muitos trabalhos que responderão a sua pergunta. Todos eles foram
produzidos ao longo do movimento da Reforma Psiquiátrica. Não há dúvidas
que as grandes guerras, os genocídios, o holocausto e os autoritarismos
contribuíram, e muito, para que a psiquiatria tenha sido amplamente
contestada e modificada, na segunda metade do século 20. Os trabalhos de
Franco Basaglia, Benedetto Saraceno, Paulo Amarante, Joel Birman e
Jurandir Freire Costa discorrem bem sobre as mudanças pelas quais a
psiquiatria passou no mundo e no Brasil. A reforma foi realizada e, aqui,
foi organizada uma rede de atenção psicossocial, com ambulatórios e CAPs
[Centros de Atenção Psicossocial]. Parece‐me que, no entanto, vivemos
https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 6/7
2017­5­15 Entrevista: A história da saúde mental no Brasil e na Alemanha
novos desafios no século 21. Temos uma sociedade altamente medicalizada,
baseada no espetáculo, no consumo e no imperativo da felicidade. O
resultado disso é um alto consumo de remédios psiquiátricos como Rivotril
e Ritalina, muitas vezes sem o devido acompanhamento médico. Os
elevados índices de depressão, pânico, alcoolismo e drogadição chamam
bastante a atenção dos especialistas. Aos historiadores, cabe investigar a
relação entre o DSM IV e V [Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders, no original em inglês (4ª e 5ª edições)] e os chamados médicos
neokraepelianos. E, talvez, assim, apresentar as continuidades e
descontinuidades entre a psiquiatria biológica do século 21 e a psiquiatria
alemã da primeira metade do século 20. Talvez, neste ponto a minha tese
de doutorado traga contribuições importantes, embora não seja esse o seu
tema, inclusive, porque foge bastante do recorte temporal da pesquisa.

Sua tese constatou que há poucos estudos sobre eugenia e medicina


mental internacional, inclusive no Brasil. Por que existem poucos trabalhos
nessa área?

Primeiramente, porque há um esforço relativamente recente de trabalho


com a história transnacional ou global, no Brasil. Creio que nos próximos
anos teremos novos trabalhos que contribuirão bastante com a temática.
Fora do país, já há um campo consolidado de estudos transnacionais que
pouco explora, porém, as relações da Europa com a América Latina. Há
uma dificuldade linguística aí. Além disso, embora haja muitos estudos de
qualidade publicados em inglês, entendo que a produção [nesse idioma] não
dá conta do universo de referências importantes disponíveis, sejam elas
fontes ou bibliografias acadêmicas produzidas em espanhol, francês, alemão
etc. Há que se investir no estudo de idiomas.

Recomendar Compartilhar
Imprimir no Facebook no Twitter

Voltar Voltar ao topo

Acesso aberto Carta de Serviços Fiocruz Educação a Distância (EAD) Laboratórios de referência PenseSUS
Acesso ao patrimônio genético Coleções biológicas Escola Politécnica Licitações Portfólio de inovação
e ao conhecimento tradicional Congresso Interno Escolas de Governo Medicamentos Programas sociais
associado
Conselho Superior Fiocruz Vídeo Memórias do IOC Relações internacionais
Atendimento à população
Controle de qualidade Fiojovem Monitores e observatórios Repositório institucional‐Arca
Banco de imagens
Cursos Gestão do trabalho Museu da Vida Vacinas
Banco de Leite Humano
Dengue História, Ciências, Saúde Organograma VideoSaúde Distribuidora
Bibliotecas
Editora Fiocruz IdeiaSUS Oswaldo Cruz Visite a Fiocruz
Biossegurança
Cadernos de Saúde Pública
Canal Saúde

Campus Sede:
Av. Brasil, 4365 ‐ Manguinhos, Rio de Janeiro ‐ CEP: 21040‐900 ‐ Tel: (0xx21) 2598‐4242 Índice alfabético Expediente

Este portal é regido pela Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, que busca garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto ao conteúdo
integral de toda obra intelectual produzida pela Fiocruz.

O conteúdo deste portal pode ser utilizado para todos os fins não comerciais, respeitados e reservados os direitos morais dos autores.

https://portal.fiocruz.br/pt­br/content/tese­sobre­relacoes­cientificas­entre­brasil­e­alemanha­recebe­mencao­honrosa­no­premio 7/7

Você também pode gostar