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[RE]CONSTRUIR IMAGENS NA/DA INFÂNCIA: O FAZER LÚDICO COM

CINEMA E CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Bruno Teixeira Paes – PPGE/UFRJ – bruno.paes@gmail.com

Daniele Grazinoli – PPGE/UFRJ – grazinoli21@gmail.com

Apresentação

O educador espanhol Jorge Larrosa, na abertura de sua obra Pedagogia Profana, alerta
que o maior perigo para a Pedagogia de hoje encontra-se na arrogância dos que sabem,
na soberba presente dos proprietários de certezas, na boa consciência dos moralistas de
toda espécie, na tranquilidade dos que já sabem o que dizer ou os que se deixam fazer e
na segurança dos especialistas em respostas e soluções.

Partindo desta provocação, nos deixamos impregnar pelas experiências e


construções representativas que os bebês e as crianças na educação infantil nos trazem
quando vivemos os encontros com o cinema e com a produção visuale audiovisual no
espaço escolar.Se a escola é um espaço de relação, de encontros e desencontros
geracionais, torna-se um desafioforjar oethos de professor/anas relações alteritárias com
os outros, com as diferenças na diversidade, para podermos aprender com outras formas
de pensamento,pelos olhares, risos e descobertas quando são oportunizados encontros
com o cinema e o alargamento do mundo pelo olhar inaugural/poético e direto das
crianças. Ou seja, entender a criança e a infância como o outro que é desconhecido
como nos diz Larrosa, um indivíduo que nosso entender adulto não consegue dar conta
de submeter a análises concretas, a categorias, a métodos.

São muitas as imagens das coisas que existem e que acontecem nas escolas, e
todas, sem exceção, compõem os movimentos de ensinar e aprender que acontecem
dentro dessas instituições, de maneira planejada ou não, com a intencionalidade que
antecede a atividade ou que se desenvolve no encontro entre sujeitos e deles com as
coisas, vivendo os imprevistos felizes e infelizes e também os momentos de correria e
da pausa para respirar. Os encontros com o cinema na Escola de Educação Infantil da
UFRJ estão intimamente ligados ao desejo de viver e criar condições para as
experimentações sensíveis que promovam a descoberta e a redescoberta da
peculiaridade da condição de ser humano para a produção da vida. Produzir a vida é

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realizar investimentos afetivos e cognitivos nas relações sociais. É estar atento/o para a
justa necessidade de acolhimento e compartilhamento das culturas dos sujeitos para
fomentar o diálogo. É também a instauração de movimentos de ensinar e aprender que
contribuem com os processos de construção da consciência e da autonomia pelos
sujeitos, entre outras coisas. O encontro com o cinema na EEI-UFRJ vem contribuindo
na construção e orientação de práticas com o audiovisual em suas dimensões éticas,
estética e políticas, e de mudança de paradigmas sobre as concepções do que venha a se
um projeto de educação.

A proposta desta apresentação visa ampliar a experiência de construção de


relações entre o cinema, os bebês e as crianças na educação infantil, buscando luz nas
concepções teórico-metodológicas que articulam campos como o da criatividade, do
conhecimento e das sensibilidades estéticas. Tal desafio perpassa pela vivência
construída na Escola de Educação Infantil da UFRJ e a experimentação audiovisual.

Interessa-nos repensar o gesto criativo sobre o aprender e o educar, o sensibilizar


(-se) e as potencialidades criativas oportunizadas pelo desejo, pelo encontro de afetos
com o mundo lúdico-exploratório dos bebês e das crianças junto ao cinema. Assim, para
buscar uma teoria que não asfixie os encontros com o cinema nas sessões e realizações
junto aos bebês e às crianças pequenas, utilizaremos de alguns exemplos vivenciados na
escola citada – da organização de cineclubes à produção de “Minutos Lumière” – que
contribuíram no deslocamento desse olhar do/a educador/a, como aquele/a que possui
um saber canônico, mas que é deslocado/a pela criança em sua proposta de atividade.
Algo que provoca uma reflexão na direção de uma des-invenção dos movimentos de
ensinar e aprender na escola. Foram as vivências construídas, em grande parte de
maneira intuitiva no que tange às possibilidades dos encontros com o cinema, que
despertaram o interesse em buscar suporte teórico que possibilitasse novos olhares sobre
a criatividade e a arte na construção das subjetividades em suas dimensões estéticas,
éticas, políticas (mesmo que em pequenos fragmentos) junto aos bebês e às crianças.

Assim retomamos Vigotski (2001) quando este nos aponta que o cinema talvez
seja a arte que melhor socializa o que somos ou pensamos ser em contextos histórico-
culturais diversos; Bergala (2008) e as maneiras de des-inventar os tradicionais modos
de ensinar e aprender (dentro e fora da escola); Chklovski (1978) com a ideia de
estranhamento na arte, como fuga do comum e Fresquet (2013) com o cinema para
aprender e desaprender.
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Neste sentido, buscamos compreender como o cinema promove o
reconhecimento sobre/com o outro, com o qualse constrói experiências de encontros
geracionais. Interessa-nos conhecer os processos de construção do conhecimento mais
conexos à realidade dos fenômenos complexos que envolvem a criatividade infantil,
reconhecendo a infância como condição humana,que implica no olhar inaugural sobre o
que se apresenta, e vivenciada diferentemente por crianças e adultos, enquanto
fenômeno humano plural, multidimensional, transdisciplinar, aberto.

Os corpos inquietos: uma experiência de exibição e interação com as imagens

Os encontros com cinema aconteceram de forma minimamente planejada, garantindo


espaço para a adesão por desejo e para a criativa dos bebês, das crianças e dos adultos
(servidores/as e famílias) da Escola de Educação Infantil da UFRJ. O primeiro
movimento parte do interesse em oferecer um diálogo com as imagens no cinema, sem a
pretensão de prever seus eventuais resultados.

Como fazer para que a atividade de produção do filme esteja menos a serviço do
produto e mais dedicada à vivência do processo enquanto exercício de criação de modos
de ver, sentir e fazer? Um encontro onde se valorize o que Fresquet (2013) aponta como
a potência das capacidades sensíveis e intelectuais de todos, respeitando seus tempos,
engajamentos e subjetividades de apropriação.

Em alguma medida, trata-se de dar à luz ou deixar vir o futuro que


carregamos dentro de nós. Esse movimento nunca se revela por
completo: há algo de devir que fica oculto enquanto vai se
atualizando. Isso é quase impossível de nomear, mas acho que é quase
“filmável”, se são crianças que estão por detrás das câmeras.
(FRESQUET, 2013, p.20)

Em uma entrevista1 concedida em 2008, o teórico do cinema Ismail Xavier


reflete sobre as potencialidades da aproximação entre o cinema e o campo educacional.
Xavier parte da defesa de uma abordagem interdisciplinar, para além de conteúdos
educativos e formativos (principalmente alicerçado somente em seus códigos
específicos e análise de gêneros) vistos como “cinema educativo”, com um cinema que
educa fazendo pensar. O interesse deixa o campo de transmissão de conteúdo –
confrontando a dimensão do clichê, dos agenciamentos de imagens e sons que induzem

1
Um cinema que “educa” é um cinema que (nos) faz pensar. In: revista Educação e Realidade. (Fonte:
http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6683). Acessado em 22-02-2017.

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à leitura pragmática alicerçada em reconhecimentos e verdades sobre um dado
estabelecido, que não constrói uma informação nova – e nos guia nas descobertas sobre
aspossibilidades de experiências de criação e reconhecimento de conhecimentos
outros.Compreender o cinema não apenas como linguagem, mas como arte que nos
mobiliza, desequilibra e transborda os nossos sentidos e as nossas certezas.

Em uma das atividades desenvolvidas com os bebês e as crianças, foi projetado


um espetáculo de sombras criadas com os corpos de bailarinos/as. No espaço destinado
à projeção - uma sala com dois ambientes: uma parte ocupada com três mesas e algumas
cadeiras; outra parte ocupada com colchões espalhados pelo chão fofo – as crianças se
acomodavam livremente pelo espaço. Após alguns minutos de projeção, alguns bebês
começam a interagir com o filme, o que acaba encorajando as crianças maiores a
fazerem o mesmo. Elas andam, dançam, batem palmas, ficam na frente da luz do
projetor, observam, exploram suas formas e sombras dentro da projeção... se divertem.
Algumas crianças experimentam construir outras sombras, inserindo objetos, bolas, asas
feitas de cartolina. Junto da projeção, elas constroem narrativas particulares, interagem e
dialogam com as imagens.

A “ruptura” da posição de espectador posta pelas crianças é estimulada pelas


professorasao longo das atividades. O interesse é que elas construam seus
estranhamentos e descobertas, criem laços afetivos e experimentem diferentes formas de
contato com o mundo visual.

O estímulo à experiência de criação dos bebês e das crianças, seja pelo


posicionamento de seus corpos durante as exibições, seja pelas experimentações com o
contato com o projetor dos filmes, mobilizam construções criativas e ampliações de
suas explorações de mundo. Para Vigotski (2014), explorar a criatividade por meio de
atividades lúdicas contribui no desenvolvimento do pensamento analítico e este
permanece ao longo da vida. Os processos de construção das interações, seja por meio
dos jogos, das brincadeiras, dos brinquedos e, no caso da prática citada, pelo encontro
com o cinema, estimulam os encontros, que fomentam os traços da imaginação, que são
alicerçados na realidade e nas primeiras experiências dos indivíduos. Neste sentido,
Vigotski atenta para a importância das experiências construídas com o outro pois, é
nesse espaço entre as realidades internas e externas, no espaço potencial de
desenvolvimento, que a imaginação tem o seu lugar.

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Ao pensar essa dimensão da educação que experimenta o mundo, Jan
Masschelein (2008) defende uma mudança de perspectiva, que ele chama depedagogia
pobre. Uma pedagogia que acolhe educar o olhar, estimulando a abertura da percepção
crítica que realmente leve em conta a perspectiva dos outros. Conscientizar-se, tornar-se
desperto. Assim, Masscheleindestaca o termo e-ducere(levar para fora), ou seja, liberar
a visão. O autor faz uma ressalva frente a particularidade desta dimensão, pontuando
que há uma diferença entre se tornar conscientes ou despertos e prestar atenção, ser
atento. A pedagogia pobre que nos leve às incertezas “da rua”, que nos desloque pelos
diversos caminhos oferecidos no processo de formação do indivíduo.

Para Masschelein (2008), uma pedagogia pobre, de certa forma,é cega, pois não
tem destino, não tem um fim, não vai a lugar nenhum, ela não está preocupada com o
além, não tem o olhar numa terra prometida. Ela é surda, porque não escuta qualquer
interpelação e não obedece “leis”.Também é muda, pois não tem ensinamentos a
oferecer. Ela nos convida a sair para o mundo, nos expormos. A pedagogia pobre não
promete lucros ou vantagens. Ela é generosa, pois o que oferece é tempo e o lugar da
experiência.

Construir imagens, experimentar o mundo: descobrir os espaços e transbordar as


imagens

Uma das propostas mais interessantes desenvolvidas dentro da EEI-UFRJ foi deixar as
câmeras nas mãos dos bebês e das crianças. Incentivamos queredescobrissem os espaços
do pátio da escola e se surpreendessem com os pequenos detalhes ao experimentarem o
“olhar pelo buraquinho” da câmera, como uma das crianças comentou em um dos filmes
cujos planos foram feitos por elas enquanto filmavame fotografavamumas às outras.

De certa maneira, viveram a dimensão do tempo quando foram desafiadas a


realizar um filme Minuto Lumière, a experimentação do movimentoda câmera para
observar que imagens e sons são criadas/os e/ou captadas/os quando correm, giram,
falam, gritam, cantam, batucam, tocam as lentes, perfuram a imagem, dialogando com a
câmera/brinquedo e as criações que realizaram com ela.Para cada ação surgiu uma
indagação: “Se a máquina [lente da câmera] é redonda, por que a imagem é quadrada?
Por que às vezes essa luz pisca [flash]?Quanto tempo tem um minuto? A minha voz é
assim? Cadê o passarinho que está cantando aí?”

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Em seu texto seminal sobre o conceito de estranhamento na literatura e nas
artes, intitulado “A arte como procedimento”Viktor Chklovski (1976) inicia
problematizando o conceito do teórico russo Potebnia, que afirmava que “a arte é pensar
por imagens”. Porém, para Chklovskiinteressa pensar uma arte sem imagens,
direcionadas para emoções, ou seja, uma forma de compreensão que torna a relação de
emoção automaticamente vinculada a uma imagem. Uma forma de comunicação e
reconhecimento daquilo que já é conhecido.Para Chklovski, o objetivo da imagem não é
facilitar a compreensão, mas algo longe disso. Ele entende que a imagem cria
possibilidades de percepções particulares, fortemente ancoradas em aspectos subjetivos
do receptor. Diz o autor:

[...] para eles, as imagens têm apenas a função de agrupar os objetos e


as funções heterogêneas e explicar o desconhecido pelo conhecido. Ou
melhor, seguindo as palavras de Potebnia:” a relação da imagem com
aquilo que ela explica pode ser definida como se segue: a)a imagem é
um predicado constante para sujeitos variáveis, um meio constante de
atração para percepções mutáveis; b) a imagem é muito mais simples
e muito mais clara do que aquilo que ela explica”(p.314), isto é, “visto
que a imagem tem por objetivo ajudar-nos a compreender sua
significação e visto que sem esta qualidade a imagem priva-se de
sentido, ela então deve ser para nós mais familiar do que aquilo que
ela explica”(p.291) (CHKLOVSKI, 1976, p.40).

Condicionar uma representação da imagem reafirma uma imobilidade dos


significados destas mesmas imagens. Um risco para o alargamento do educador que
reproduz uma prática alicerçada na explicação e na redução a um termo compreensível
(didático-explicativo) as experimentações visuais de seus alunos.

Ao experimentar com a câmera, as crianças criam suas imagens partindo do


próprio mundo. Uma das estratégias utilizadas para esse contato é o dispositivo Minuto
Lumiére.Elaborado pelo teórico Alain Bergala, inspirado nos primeiros filmes dos
irmãos Lumiére. Por meio desse exercício simples, que tem a intenção de remeter às
condições de criação dos filmes na “infância” do cinema, é possível provocar o olhar
das crianças para pensar o enquadramento do que as interessa filmar. Como destaca
Bergala, através desse simples exercício podemos iniciar um processo de
“alfabetização” audiovisual. Por meio de vários “minutos”, é possível trabalhar os
diferentes focos de interesse, decisão sobre “o que filmar”, como posicionar a câmera,
que tipo de “janela2” interessa destacar e inúmeros outros fatores.
2
Utilizamos o termo “janela” para destacar o tipo de recorte que a lente da câmera propõe àquele que
filma.Interessa ressaltar o termo pois, por ser um recorte da realidade, as crianças utilizavam deste recurso
como forma de descoberta à medida em que criavam mais intimidade com a imagem reproduzida pelo

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O resultado dessas vivências foi a criação da Escola de Cinema CINEMENTO
na EEI-UFRJ.

Escola de Cinema CINEMENTO

Ver um filme é como ser sacudido por uma cadeia contínua de
choques   vindos   de   cada   um   dos   elementos   do   espetáculo
cinematográfico, não apenas do enredo.
Sergei Eisenstein (ANDREW, 1989 apud TOMAIM, 2004)

As realizações da Escola de Cinema CINEMENTO têm como horizonte a experiência


do cinema como parte das vivências na e da escola, através dos encontros com os filmes
e das ações de criação audiovisual das quais participam bebês, crianças e adultos da
comunidade escolar (famílias, responsáveis – parentais ou não - e servidoras/es da EEI-
UFRJ), conforme seus desejos e tempos, já que não se trata de uma atividade cuja
participação é obrigatória.

Nossas maneiras de aprender e desaprender foram revistas por diversas vezes


desde que iniciamos nossas atividades em 2014, porque é fundamental para a nossa ação
a relação com as rotinas da EEI e a atenção aos fundamentos da CINEMENTO: cinema
como experiência do encontro com a arte materializada em filmes; participação das
pessoas por desejo e não por obrigação; ver filmes para experimentar criar nossos
filmes.

Os encontros com o cinema na Escola de Educação Infantil da UFRJ estão


intimamente ligados ao desejo de viver e criar condições para as experimentações
sensíveis que promovam a descoberta e a redescoberta da peculiaridade da condição de
ser humano para a produção da vida.
A Escola de Cinema caracteriza-se por ser um movimento que existe para
promover os encontros entre adultos e crianças e destas/es com a sétima arte, seja vendo
filmes, seja fazendo filmes, e tem como princípio fundamental o desejo de viver essas
experiências de fruição da arte.

visor da câmera. Em um dos exemplos de dispositivo podemos ouvir uma das crianças perguntando se é
para olhar “por esse buraquinho?” O fato de selecionar aquilo que será filmado provoca na criança (e nas
demais pessoas que utilizam deste dispositivo) uma decisão, uma escolha. Ao focar durante 60 segundos
um plano fixo, exercitamos, além da dimensão de resistência/persistência do tempo (pois, apesar de ser
apenas um minuto, para algumas das crianças, aquele tempo do plano fixo parecia uma eternidade), o
surgimento dos detalhes dentro das “janelas”, o que vai despertando maior interesse e um cuidado do
olhar das crianças a respeito do que elas pretendem registrar.

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Na pedagogia das artes, existem os grandes princípios gerais e
generosos: reduzir as desigualdades, revelar nas crianças
outrasqualidades de intuição e de sensibilidade, desenvolver o espírito
crítico, etc. [...] É preciso questionar todos os pragmatismos que
acabam em receitas nas quais ninguém mais é capaz de avaliar muito
bem o que está fazendo e por que o faz, sobretudo se a coisa parece
“funcionar” (BERGALA, 2008, p.26)

Esperamos, sempre, que as pessoas se apropriem desse movimento, fazendo-


oacontecer de maneira democrática, o que requer muitas negociações dos sentidos, mas
sem perder de vista o lugar de onde falamos: a universidade.
Para compartilhar o que tem acontecido no CINEMENTO, optamos por narrar
duas experiências vividas com os bebês, as crianças e os adultos.

“Gabo, o que você está fazendo?”

Depois de diversos encontros com obras cinematográficas, como Vida de


cachorro (Charles Chaplin, 1918, Estados Unidos da América) e os Minutos Lumière,
experimentamos, crianças e adultos, exercícios de olhar o mundo mediado pelas as
câmeras, inclusive com a proposta de realização de filmes que durassem um minuto. A
câmera presa ao tripé e colocada na altura dos bebês foi um convite à novidade: poder
mexer naquela coisa diferente e/ou talvez proibida.

Imaginem mais ou menos quarenta crianças, com idades entre dois e cinco anos,
correndo e brincando no pátio e ao mesmo tempo experimentando olhar para o que
estava acontecendo, tanto dentro quanto fora da escola, através de uma câmera presa ao
tripé. Era a vida acontecendo e sendo registrada pelas perspectivas das crianças em
interação com os adultos.

O tripé e a câmera foram coisas estrategicamente posicionadas na altura dos


bebês, convidando-os, intencionalmente, a mexer e experimentaraqueles objetos e a
criar os sentidos e os significados que aquelas coisas podiam produzir neles e,
consequentemente, nos adultos.

Eis que alguns bebês se aproximaram para ver o que era aquilo que estava
facilmente acessível, inclusive através de convites para que mexessem. Quando
tomaram coragem, se fartaram de manobrar o tripé, de olhar pelo visor o que estava
acontecendo nas brincadeiras das outras crianças, de lamber, beijar e cutucar a câmera

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para, só depois de criado esse laço com a coisa, entendida talvez como um brinquedo
por eles, parar a câmera e gravar.

Não há a intenção de determinar o que os bebês estavam pensando quando


faziam um vídeo sob a orientação dos adultos e dos colegas. Não existe, inclusive, a
ciência do que eles estavam entendendo ou mesmo o motivo de estarem filmando.
Porém, há a certeza que os encontros com os filmes produziram marcas, tanto nos bebês
quanto nos adultos.

Depois de muitas lambidas, de beijos e de caretas para a câmera, o Gabriel, ou


Gabo para os íntimos, foi desafiado a fazer um filme de um minuto. A orientação básica
foi dada até aonde não interferisse muito na liberdade de criar dele, na medida do
possível para conseguir criar um vídeo com tempo determinado, o que para os bebês,
assim como para as crianças maiores, é uma incógnita. A diferença entre uns e outros é
que os bebês não estão nada preocupados com o sistema de medida cronológica do
tempo, enquanto as crianças já trouxeram essa percepção do tempo como curiosidade.

Quando o Gabriel já havia diminuído a intensidade de exploração da câmera e


do tripé, ele foi incentivado a pensar a imagem que apareceu no visor: O que você está
vendo? Quem são essas pessoas? Em seguida foi preciso saber se ele não mexeria mais
na posição da câmera, se sabia onde apertar para começar a gravar e por último, ajuda-
lo a perceber o tempo/espaço da produção do um minuto.

Como o Gabriel tem dois anos de idade, as respostas foram sendo pescadas e
acolhidas de diversas formas. Mas o marcante foi quando ele chamou as outras crianças
da turma dele e as professoras para prestigiar o que ele estava fazendo: “Aquí, quí!”. Ele
chamou e mostrou o visor, dando a impressão de que estava enunciando a construção
das próprias percepções sobre o encontro com os filmes que assistiu e sobre a produção
daquela imagem que tinha os amigos dele.

Essa experiência deu origem ao filme “Aqui, quí!” que, junto com mais quatro
filmes realizados em um minuto, foi apresentado em 2015 no festival de cinema de
Ouro Preto, o CINEOP. Também foi tema de um trabalho apresentado no III Colóquio
de Cinema e Arte da América Latina – COCAAL, que aconteceu no Instituto de Arte e
Comunicação Social (IACS) da UFF.

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Cineclube da EEI-UFRJ

O Cineclube acontece uma vez por mês com o intuito de promover o encontro do
cinema com toda a comunidade escolar. Entende-se como comunidade escolar o
conjunto de pessoas envolvidas no processo educativo da escola, tais como crianças,
famílias, funcionários e professores. Decidimos realizar a proposta do cineclube como
mais uma “possibilidade de fazer e de refletir sobre exercícios de emancipação
intelectual, afetiva e estética enquanto ampliamos o repertório e alargamos as
possibilidades de escolha do que o acervo cultural de cada um oferece”. (FRESQUET,
2013, p. 69).

O Cineclube da Escola de Cinema CINEMENTO proporciona também um


momento de aprendizagem de como viver a experiência de estar em um cinema, já que
se trata de crianças muito pequenas (a partir de 1 ano) e que, muitas vezes, estão
vivenciando aquele momento pela primeira vez. As sessões são realizadas em um
espaço que parece um cinema de verdade (sala escura, com uma tela relativamente
grande e com poltronas acolchoadas). É um momento importante de troca e de
ressignificação entre adultos/crianças, adultos/adultos e crianças/crianças. Proporciona o
acolhimento e a participação das famílias no cotidiano escolar, já que escolhemos por
realiza-las durante a entrada das crianças na escola.

O dia de cineclube na Escola de Educação Infantil da UFRJ é um evento


aguardado com muita ansiedade pelas crianças, pois é um momento que elas sabem que
sairão da escola 3e que irão com suas famílias4, professores e demais funcionários da
escola assistir a algum filme.

A seleção dos filmes exibidos é feita pela equipe da Escola de Cinema


Cinemento, que através de uma escuta e um olhar atento ao cotidiano das crianças traz
como proposta longas-metragens que desafiam e ampliam o repertório cultural dos
pequenos e também de suas famílias. A forma de escolha desses filmes a serem exibidos
tem como pressuposto as bases teórico-metodológicas do programa de extensão
CINEAD: “Defendo a conveniência de oferecer desde a escola um leque mais amplo de
opções, a fim de diversificar o gosto e as possibilidades de criação que geram o
3
As crianças atravessam o estacionamento da escola para se dirigir ao Salão Nobre do IPPMG (hospital
pediátrico da UFRJ)
4
As famílias acompanham ou não, pois o horário não permite que todos possam participar devido a seus
empregos.

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encontro de culturas, tempos e gostos pessoais”. (FRESQUET, 2013, p.69)

As experiências narradas surgiram de encontros das crianças e adultos com a


sétima arte. Entendemos o cinema como uma arte e não como um recurso didático, ou
seja, os encontros com o cinema acontecem pelo desejo do encontro com a arte e, por
consequência, de maneira não compulsória, porque aprendemos e desaprendemos com o
cinema, mas não o utilizamos com a intenção de ensinar.

Fundamentos da CINEMENTO EEI-UFRJ

Quando falamos dos fundamentos da Escola de Cinema CINEMENTO, com frequência

percebemos uma necessidade de explicação de como eles influenciam as práticas de construção

das   experiências   com   o   cinema   no   cotidiano   escolar   e   ficamos   felizes   quando   temos   a

oportunidade de mostrar com as vivências das crianças o que aprendemos e desaprendemos.

A limitação para o texto nos fez decidir por dar a ver alguns casos que chamaram a

nossa   atenção  e  nos   fizeram   refletir   sobre   o  que   ensinamos   e   aprendemos   nos   encontros   e

desencontros entre bebês, crianças, adultos e o cinema. 

Caso 1:

Encontros com a arte, com os filmes...

Exibimos  o  filme  “A menina  espantalho”,  que  conta  a  história  de  uma  menina  que

queria ir à escola para aprender a ler, enquanto o pai manda apenas o filho para a estudar,

mantendo a menina ajudando na lavoura e nos afazeres da casa. Em uma das cenas, a menina

diz que quer ir à escola, mas o pai responde com agressividade, enfatizando que ela tem mais o

que fazer em casa e que a escola não é lugar para ela. 

Uma menina do grupo Divertidamente mostra um bloco onde escreveu o nome da mãe e

do irmão da maneira que ela imaginou que se escrevia. Depois deu início ao seguinte diálogo: 

Menina – O pai dela é mal?

Adulta – Não sei, precisamos ver o filme até o final, não acha?

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Voltamos a nossa atenção para o filme, que continuou contando a história de como a

menina consegue aprender a ler com a ajuda do irmão e como isso faz o pai se emocionar e se

convencer de que a menina deve ir à escola.

Quando o filme acabou, a menina que havia feito a pergunta não falou nada. Então,

seguimos a rotina escolar, mas quando o dia acabou, ela veio ao nosso encontro e pediu: “Você

pode passar o filme novamente, porque ainda não sei se o pai é mal ou bom.”

O  filme foi  exibido  mais   um  monte   de   vezes,  a  pedido das  crianças,   que  a  todo  o

momento descobriam outros afetos e faziam novos questionamentos.

A arte tem esse poder de mobilizar nossos sentidos e sentimentos, e entrar em contato

com esses afetos estéticos das crianças e dos bebês faz com que tenhamos o cuidado ético de

deixá­los, com o mínimo de interferência possível e/ou necessária.

 Caso 2:

A difícil tarefa de escolher e se responsabilizar pela escolha.

As atividades da CINEMENTO não são compulsórias, ou seja, crianças e adultos não

são   obrigados   a   participar   delas.   Como   assim?   Como   os   bebês   decidirão   se   vão   ou   não

participar   das   atividades?   Qual   o   problema   de   ser   uma   atividade   obrigatória?   As   crianças

precisam saber que não fazemos só o que queremos na vida...

Esses são alguns dos questionamentos que já ouvimos e que gostamos que tenham sido

feitos, porque nos ajudaram a reafirmar a nossa decisão política de fazer dos encontros com o

cinema uma oportunidade de demarcar um lugar diferenciado para a arte no contexto escolar e

de criar a cultura da responsabilização pelas decisões que tomamos desde criança: ninguém é

obrigada/o a participar da CINEMENTO, mas se vai participar, entregue­se e fique conosco.

Pensando no caso dos bebês, por exemplo, conseguimos perceber o desafio que é para

as   pessoas   envolvidas,   bebês,   crianças   e   adultos,   ter   que   pensar   as   relações,   sejam   as

interpessoais,   seja com  o  tempo,   com   o espaço,   com  o  corpo,  etc.   São muitas  as  variantes

envolvidas nas questões das escolhas e das consequências.

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Durante a conversa com uma professora do grupo dos bebês, chegamos à conclusão da

importância   de   assumirmos   que   a   ida   dos   bebês   às   sessões   dos   filmes   é   determinada

exclusivamente   pelos   adultos,   reconhecendo   que   a   relação   com   as   experiências   que   são

possíveis   de  serem  vivenciadas   na escola  para  eles   não tem   o mesmo significado  para   nós

adultos. 

Os bebês estão conhecendo o mundo por meio dos sentidos e fazendo suas relações para

a construção de conceitos. Uma imagem projetada na parede, na altura deles, parece ser algo

mais do que uma reprodução virtual de uma situação concreta, parece ser a própria situação e

eles parecem entrar no filme.

Então   os   bebês   são   obrigados   a   verem   o   filme?   Não!   Isso   é   mais   uma   coisa   que

aprendemos com os bebês: compreender o outro que age de maneira diferente, principalmente

pela memória afetiva dos detalhes nas relações. Ou seja, durante a exibição de um filme, os

bebês demonstram se estão se sentindo bem ou não de estarem ali, seja pelo choro, seja pela não

atenção ao que está proposto e tantos outros detalhes que os adultos que convivem com eles

sabem avaliar se é chegado o momento de descansar do cinema. Mas precisamos contar que

nossos bebês têm se revelado cinéfilos, com gosto bem refinado.

E no caso das crianças? Ah, com elas podemos dizer que “o papo é reto”, porque podem

decidir ver o filme ou não, assim como os adultos. Então, se durante a sessão fazem algo que

demonstre   que   estão   desinteressadas   e/ou   atrapalhando   que   está   vendo   o   filme,   escutam   a

seguinte pergunta: Ainda querem ver o filme ou podemos parar a exibição? 

Geralmente a pergunta traz a lembrança de que se trata de uma escolha e que podem ir

embora da sessão quando bem entenderem, assim como podem voltar. Quando alguma criança

insiste em ficar, mas testa o combinado, ouve outros questionamentos: Por que você está na

sessão do filme? Se você escolheu, qual é a condição para ficar? Você acha que está sendo

respeitosa com as outras pessoas que querem ver o filme? As perguntas são certeiras, podem

testar em casa.

Caso 3:

Fazer cinema....

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Sobre  esse  caso,  deixamos  aqui  os  links   dos   filmes  experimentais  já  realizados  nas

atividades da Escola de Cinema CINEMENTO e se tiverem alguma dúvida ou questionamento,

sintam­se convidadas/os a participar dos nossos movimentos de ensinar e (des)aprender nos

encontros com o cinema.

Olhando no buraquinho – https://vimeo.com/162867594senha: olhando


59 é muito, né? - https://vimeo.com/162868475senha: 59
Sabe de nada, inocente! - https://vimeo.com/163554502– senha: sabedenada
Cabeça, ombro, joelho e pé – https://vimeo.com/163555337- senha: cabeçaombro
Pombo – https://vimeo.com/163915719 - senha: pombo
Um minuto? UAU! - https://vimeo.com/163915871– senha: umminutouau
Mas que soninho! - https://vimeo.com/163915365 – senha: masquesoninho
O que vocês estão filmando? - https://vimeo.com/163915509– senha : oquevoces
Valentina – https://vimeo.com/163916654– senha: valentina
CINEMENTO: Cinema e Movimento - https://youtu.be/Mb3DgFkzEGY
A Dani Aranha - https://vimeo.com/126993499
E o passarinho? - https://vimeo.com/126558237
Desce aí... - https://vimeo.com/126556138
Listras - https://vimeo.com/126556133
Porque elas são legais - https://vimeo.com/126556132
Aquí, quí!! - https://vimeo.com/126556131
Alunos da EEI - https://youtu.be/3caG4ke_mvA

Esperamos que estes relatos contribuam para a compreensão desse movimento


de fruição da arte cinematográfica em uma escola de educação infantil e que despertem
o desejo de inventarmos outros movimentos para a promoção de encontros com o
cinema. Aproveitamos, também, para agradecer a parceria com as pessoas da escola,
tanto as crianças quanto os adultos, pois, do contrário, seria só um sonho que se sonha
só.

Referências Bibliográficas

BERGALA, Alain. A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema


dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008.

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CHKILOVSKI, Viktor. Arte como procedimento. In: SCHAIDERMAN, Boris (Org.).
Teoria da Literatura: Formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 39-56.
FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação: Reflexões e práticas com professores e
estudantes de Educação Básica. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre.
Educação & Realidade: Dossiê Cinema e Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p.35-
48, 2008. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/6685>. Acesso em: 20
fev. 2017.
VIGOTSKI, L. S.. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Martins Fontes,
2014.
_______________. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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