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Apresentação
O educador espanhol Jorge Larrosa, na abertura de sua obra Pedagogia Profana, alerta
que o maior perigo para a Pedagogia de hoje encontra-se na arrogância dos que sabem,
na soberba presente dos proprietários de certezas, na boa consciência dos moralistas de
toda espécie, na tranquilidade dos que já sabem o que dizer ou os que se deixam fazer e
na segurança dos especialistas em respostas e soluções.
São muitas as imagens das coisas que existem e que acontecem nas escolas, e
todas, sem exceção, compõem os movimentos de ensinar e aprender que acontecem
dentro dessas instituições, de maneira planejada ou não, com a intencionalidade que
antecede a atividade ou que se desenvolve no encontro entre sujeitos e deles com as
coisas, vivendo os imprevistos felizes e infelizes e também os momentos de correria e
da pausa para respirar. Os encontros com o cinema na Escola de Educação Infantil da
UFRJ estão intimamente ligados ao desejo de viver e criar condições para as
experimentações sensíveis que promovam a descoberta e a redescoberta da
peculiaridade da condição de ser humano para a produção da vida. Produzir a vida é
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realizar investimentos afetivos e cognitivos nas relações sociais. É estar atento/o para a
justa necessidade de acolhimento e compartilhamento das culturas dos sujeitos para
fomentar o diálogo. É também a instauração de movimentos de ensinar e aprender que
contribuem com os processos de construção da consciência e da autonomia pelos
sujeitos, entre outras coisas. O encontro com o cinema na EEI-UFRJ vem contribuindo
na construção e orientação de práticas com o audiovisual em suas dimensões éticas,
estética e políticas, e de mudança de paradigmas sobre as concepções do que venha a se
um projeto de educação.
Assim retomamos Vigotski (2001) quando este nos aponta que o cinema talvez
seja a arte que melhor socializa o que somos ou pensamos ser em contextos histórico-
culturais diversos; Bergala (2008) e as maneiras de des-inventar os tradicionais modos
de ensinar e aprender (dentro e fora da escola); Chklovski (1978) com a ideia de
estranhamento na arte, como fuga do comum e Fresquet (2013) com o cinema para
aprender e desaprender.
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Neste sentido, buscamos compreender como o cinema promove o
reconhecimento sobre/com o outro, com o qualse constrói experiências de encontros
geracionais. Interessa-nos conhecer os processos de construção do conhecimento mais
conexos à realidade dos fenômenos complexos que envolvem a criatividade infantil,
reconhecendo a infância como condição humana,que implica no olhar inaugural sobre o
que se apresenta, e vivenciada diferentemente por crianças e adultos, enquanto
fenômeno humano plural, multidimensional, transdisciplinar, aberto.
Como fazer para que a atividade de produção do filme esteja menos a serviço do
produto e mais dedicada à vivência do processo enquanto exercício de criação de modos
de ver, sentir e fazer? Um encontro onde se valorize o que Fresquet (2013) aponta como
a potência das capacidades sensíveis e intelectuais de todos, respeitando seus tempos,
engajamentos e subjetividades de apropriação.
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Um cinema que “educa” é um cinema que (nos) faz pensar. In: revista Educação e Realidade. (Fonte:
http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6683). Acessado em 22-02-2017.
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à leitura pragmática alicerçada em reconhecimentos e verdades sobre um dado
estabelecido, que não constrói uma informação nova – e nos guia nas descobertas sobre
aspossibilidades de experiências de criação e reconhecimento de conhecimentos
outros.Compreender o cinema não apenas como linguagem, mas como arte que nos
mobiliza, desequilibra e transborda os nossos sentidos e as nossas certezas.
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Ao pensar essa dimensão da educação que experimenta o mundo, Jan
Masschelein (2008) defende uma mudança de perspectiva, que ele chama depedagogia
pobre. Uma pedagogia que acolhe educar o olhar, estimulando a abertura da percepção
crítica que realmente leve em conta a perspectiva dos outros. Conscientizar-se, tornar-se
desperto. Assim, Masscheleindestaca o termo e-ducere(levar para fora), ou seja, liberar
a visão. O autor faz uma ressalva frente a particularidade desta dimensão, pontuando
que há uma diferença entre se tornar conscientes ou despertos e prestar atenção, ser
atento. A pedagogia pobre que nos leve às incertezas “da rua”, que nos desloque pelos
diversos caminhos oferecidos no processo de formação do indivíduo.
Para Masschelein (2008), uma pedagogia pobre, de certa forma,é cega, pois não
tem destino, não tem um fim, não vai a lugar nenhum, ela não está preocupada com o
além, não tem o olhar numa terra prometida. Ela é surda, porque não escuta qualquer
interpelação e não obedece “leis”.Também é muda, pois não tem ensinamentos a
oferecer. Ela nos convida a sair para o mundo, nos expormos. A pedagogia pobre não
promete lucros ou vantagens. Ela é generosa, pois o que oferece é tempo e o lugar da
experiência.
Uma das propostas mais interessantes desenvolvidas dentro da EEI-UFRJ foi deixar as
câmeras nas mãos dos bebês e das crianças. Incentivamos queredescobrissem os espaços
do pátio da escola e se surpreendessem com os pequenos detalhes ao experimentarem o
“olhar pelo buraquinho” da câmera, como uma das crianças comentou em um dos filmes
cujos planos foram feitos por elas enquanto filmavame fotografavamumas às outras.
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Em seu texto seminal sobre o conceito de estranhamento na literatura e nas
artes, intitulado “A arte como procedimento”Viktor Chklovski (1976) inicia
problematizando o conceito do teórico russo Potebnia, que afirmava que “a arte é pensar
por imagens”. Porém, para Chklovskiinteressa pensar uma arte sem imagens,
direcionadas para emoções, ou seja, uma forma de compreensão que torna a relação de
emoção automaticamente vinculada a uma imagem. Uma forma de comunicação e
reconhecimento daquilo que já é conhecido.Para Chklovski, o objetivo da imagem não é
facilitar a compreensão, mas algo longe disso. Ele entende que a imagem cria
possibilidades de percepções particulares, fortemente ancoradas em aspectos subjetivos
do receptor. Diz o autor:
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O resultado dessas vivências foi a criação da Escola de Cinema CINEMENTO
na EEI-UFRJ.
Escola de Cinema CINEMENTO
Ver um filme é como ser sacudido por uma cadeia contínua de
choques vindos de cada um dos elementos do espetáculo
cinematográfico, não apenas do enredo.
Sergei Eisenstein (ANDREW, 1989 apud TOMAIM, 2004)
visor da câmera. Em um dos exemplos de dispositivo podemos ouvir uma das crianças perguntando se é
para olhar “por esse buraquinho?” O fato de selecionar aquilo que será filmado provoca na criança (e nas
demais pessoas que utilizam deste dispositivo) uma decisão, uma escolha. Ao focar durante 60 segundos
um plano fixo, exercitamos, além da dimensão de resistência/persistência do tempo (pois, apesar de ser
apenas um minuto, para algumas das crianças, aquele tempo do plano fixo parecia uma eternidade), o
surgimento dos detalhes dentro das “janelas”, o que vai despertando maior interesse e um cuidado do
olhar das crianças a respeito do que elas pretendem registrar.
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Na pedagogia das artes, existem os grandes princípios gerais e
generosos: reduzir as desigualdades, revelar nas crianças
outrasqualidades de intuição e de sensibilidade, desenvolver o espírito
crítico, etc. [...] É preciso questionar todos os pragmatismos que
acabam em receitas nas quais ninguém mais é capaz de avaliar muito
bem o que está fazendo e por que o faz, sobretudo se a coisa parece
“funcionar” (BERGALA, 2008, p.26)
Imaginem mais ou menos quarenta crianças, com idades entre dois e cinco anos,
correndo e brincando no pátio e ao mesmo tempo experimentando olhar para o que
estava acontecendo, tanto dentro quanto fora da escola, através de uma câmera presa ao
tripé. Era a vida acontecendo e sendo registrada pelas perspectivas das crianças em
interação com os adultos.
Eis que alguns bebês se aproximaram para ver o que era aquilo que estava
facilmente acessível, inclusive através de convites para que mexessem. Quando
tomaram coragem, se fartaram de manobrar o tripé, de olhar pelo visor o que estava
acontecendo nas brincadeiras das outras crianças, de lamber, beijar e cutucar a câmera
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para, só depois de criado esse laço com a coisa, entendida talvez como um brinquedo
por eles, parar a câmera e gravar.
Como o Gabriel tem dois anos de idade, as respostas foram sendo pescadas e
acolhidas de diversas formas. Mas o marcante foi quando ele chamou as outras crianças
da turma dele e as professoras para prestigiar o que ele estava fazendo: “Aquí, quí!”. Ele
chamou e mostrou o visor, dando a impressão de que estava enunciando a construção
das próprias percepções sobre o encontro com os filmes que assistiu e sobre a produção
daquela imagem que tinha os amigos dele.
Essa experiência deu origem ao filme “Aqui, quí!” que, junto com mais quatro
filmes realizados em um minuto, foi apresentado em 2015 no festival de cinema de
Ouro Preto, o CINEOP. Também foi tema de um trabalho apresentado no III Colóquio
de Cinema e Arte da América Latina – COCAAL, que aconteceu no Instituto de Arte e
Comunicação Social (IACS) da UFF.
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Cineclube da EEI-UFRJ
O Cineclube acontece uma vez por mês com o intuito de promover o encontro do
cinema com toda a comunidade escolar. Entende-se como comunidade escolar o
conjunto de pessoas envolvidas no processo educativo da escola, tais como crianças,
famílias, funcionários e professores. Decidimos realizar a proposta do cineclube como
mais uma “possibilidade de fazer e de refletir sobre exercícios de emancipação
intelectual, afetiva e estética enquanto ampliamos o repertório e alargamos as
possibilidades de escolha do que o acervo cultural de cada um oferece”. (FRESQUET,
2013, p. 69).
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encontro de culturas, tempos e gostos pessoais”. (FRESQUET, 2013, p.69)
Quando falamos dos fundamentos da Escola de Cinema CINEMENTO, com frequência
percebemos uma necessidade de explicação de como eles influenciam as práticas de construção
das experiências com o cinema no cotidiano escolar e ficamos felizes quando temos a
oportunidade de mostrar com as vivências das crianças o que aprendemos e desaprendemos.
A limitação para o texto nos fez decidir por dar a ver alguns casos que chamaram a
nossa atenção e nos fizeram refletir sobre o que ensinamos e aprendemos nos encontros e
desencontros entre bebês, crianças, adultos e o cinema.
Caso 1:
Encontros com a arte, com os filmes...
Exibimos o filme “A menina espantalho”, que conta a história de uma menina que
queria ir à escola para aprender a ler, enquanto o pai manda apenas o filho para a estudar,
mantendo a menina ajudando na lavoura e nos afazeres da casa. Em uma das cenas, a menina
diz que quer ir à escola, mas o pai responde com agressividade, enfatizando que ela tem mais o
que fazer em casa e que a escola não é lugar para ela.
Uma menina do grupo Divertidamente mostra um bloco onde escreveu o nome da mãe e
do irmão da maneira que ela imaginou que se escrevia. Depois deu início ao seguinte diálogo:
Menina – O pai dela é mal?
Adulta – Não sei, precisamos ver o filme até o final, não acha?
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Voltamos a nossa atenção para o filme, que continuou contando a história de como a
menina consegue aprender a ler com a ajuda do irmão e como isso faz o pai se emocionar e se
convencer de que a menina deve ir à escola.
Quando o filme acabou, a menina que havia feito a pergunta não falou nada. Então,
seguimos a rotina escolar, mas quando o dia acabou, ela veio ao nosso encontro e pediu: “Você
pode passar o filme novamente, porque ainda não sei se o pai é mal ou bom.”
momento descobriam outros afetos e faziam novos questionamentos.
A arte tem esse poder de mobilizar nossos sentidos e sentimentos, e entrar em contato
com esses afetos estéticos das crianças e dos bebês faz com que tenhamos o cuidado ético de
deixálos, com o mínimo de interferência possível e/ou necessária.
Caso 2:
A difícil tarefa de escolher e se responsabilizar pela escolha.
As atividades da CINEMENTO não são compulsórias, ou seja, crianças e adultos não
são obrigados a participar delas. Como assim? Como os bebês decidirão se vão ou não
participar das atividades? Qual o problema de ser uma atividade obrigatória? As crianças
precisam saber que não fazemos só o que queremos na vida...
Esses são alguns dos questionamentos que já ouvimos e que gostamos que tenham sido
feitos, porque nos ajudaram a reafirmar a nossa decisão política de fazer dos encontros com o
cinema uma oportunidade de demarcar um lugar diferenciado para a arte no contexto escolar e
de criar a cultura da responsabilização pelas decisões que tomamos desde criança: ninguém é
obrigada/o a participar da CINEMENTO, mas se vai participar, entreguese e fique conosco.
Pensando no caso dos bebês, por exemplo, conseguimos perceber o desafio que é para
as pessoas envolvidas, bebês, crianças e adultos, ter que pensar as relações, sejam as
interpessoais, seja com o tempo, com o espaço, com o corpo, etc. São muitas as variantes
envolvidas nas questões das escolhas e das consequências.
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Durante a conversa com uma professora do grupo dos bebês, chegamos à conclusão da
importância de assumirmos que a ida dos bebês às sessões dos filmes é determinada
exclusivamente pelos adultos, reconhecendo que a relação com as experiências que são
possíveis de serem vivenciadas na escola para eles não tem o mesmo significado para nós
adultos.
Os bebês estão conhecendo o mundo por meio dos sentidos e fazendo suas relações para
a construção de conceitos. Uma imagem projetada na parede, na altura deles, parece ser algo
mais do que uma reprodução virtual de uma situação concreta, parece ser a própria situação e
eles parecem entrar no filme.
Então os bebês são obrigados a verem o filme? Não! Isso é mais uma coisa que
aprendemos com os bebês: compreender o outro que age de maneira diferente, principalmente
pela memória afetiva dos detalhes nas relações. Ou seja, durante a exibição de um filme, os
bebês demonstram se estão se sentindo bem ou não de estarem ali, seja pelo choro, seja pela não
atenção ao que está proposto e tantos outros detalhes que os adultos que convivem com eles
sabem avaliar se é chegado o momento de descansar do cinema. Mas precisamos contar que
nossos bebês têm se revelado cinéfilos, com gosto bem refinado.
E no caso das crianças? Ah, com elas podemos dizer que “o papo é reto”, porque podem
decidir ver o filme ou não, assim como os adultos. Então, se durante a sessão fazem algo que
demonstre que estão desinteressadas e/ou atrapalhando que está vendo o filme, escutam a
seguinte pergunta: Ainda querem ver o filme ou podemos parar a exibição?
Geralmente a pergunta traz a lembrança de que se trata de uma escolha e que podem ir
embora da sessão quando bem entenderem, assim como podem voltar. Quando alguma criança
insiste em ficar, mas testa o combinado, ouve outros questionamentos: Por que você está na
sessão do filme? Se você escolheu, qual é a condição para ficar? Você acha que está sendo
respeitosa com as outras pessoas que querem ver o filme? As perguntas são certeiras, podem
testar em casa.
Caso 3:
Fazer cinema....
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Sobre esse caso, deixamos aqui os links dos filmes experimentais já realizados nas
atividades da Escola de Cinema CINEMENTO e se tiverem alguma dúvida ou questionamento,
sintamse convidadas/os a participar dos nossos movimentos de ensinar e (des)aprender nos
encontros com o cinema.
Referências Bibliográficas
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CHKILOVSKI, Viktor. Arte como procedimento. In: SCHAIDERMAN, Boris (Org.).
Teoria da Literatura: Formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 39-56.
FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação: Reflexões e práticas com professores e
estudantes de Educação Básica. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre.
Educação & Realidade: Dossiê Cinema e Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p.35-
48, 2008. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/6685>. Acesso em: 20
fev. 2017.
VIGOTSKI, L. S.. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Martins Fontes,
2014.
_______________. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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