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Dizer que algo participa da educação, aponta Miranda (2005), “é mostrar que
determinado entendimento, sentimento ou julgamento não é natural, ou seja, aprendemos a tê-
los. No caso das imagens, é dizer que vemos porque aprendemos a olhar (MIRANDA, 2005,
p.35). Segundo o autor, a “leitura” que fazemos do mundo por meio das imagens põe em
evidência um programa de Educação Visual que está inserido num processo de construção da
memória e do olhar. Seus significados e entendimentos somente são compartilhados e
compreendidos por nós pelo fato de termos aprendido a reconhecê-los.
Almeida (2011) dirá que quando falamos em Educação Visual, nos referimos à idéia
de um olhar que é educável ou suscetível de receber uma educação:
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Dessa forma, imersos num mundo de imagens (virtuais ou não), estamos permeados
pelos discursos das coisas, das pessoas, dos espaços. Os gestos, as expressões faciais, a
constituição visual dos corpos e dos espaços urbanos são exemplos que pressupõem relações
da imagem com suas maneiras de compreendê-las, de identificá-las. Além disso, podemos
pensar que as múltiplas formas de utilização, feitura e veiculação das imagens – nos mais
diversos espaços da sociedade e para os mais diferentes fins – têm nos educado e educado o
nosso olhar. Oliveira apontará, nesse sentido, que as imagens “não só nos dizem de nosso
mundo, mas também nos educam a ler este mundo a partir delas” (2009, p. 20).
Almeida (1994) destacará que a nossa inteligibilidade de mundo está sendo formada a
partir destas imagens e, especialmente, pelas imagens e sons das produções do cinema e da
televisão2. As interpretações e as experiências subjetivas diante dessas representações visuais
evidenciam maneiras de ver, compreender, agir e estar no mundo3. Por este motivo, dentre as
formas de expressão cultural que participam de uma Educação Visual, interessa-nos o
audiovisual, em especial, o cinema. Compreendida como invenção moderna e representativa
da produção visual artística, cultural e social de nosso tempo, o cinema será abordado por nós
como fonte de conhecimento, como uma arte da memória contemporânea4.
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olhares e perspectivas (em diversos temas, ângulos, cores, distâncias, ritmos e tempos), o
cinema e suas imagens em movimento modificaram o homem do século XX e sua maneira de
olhar para a realidade6.
Nesse sentido, tomaremos o filme “As lágrimas amargas de Petra von Kant” (1972),
do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, como objeto de análise para pensarmos a
imagem do corpo no cinema e do corpo como imagem. De que maneira a constituição estética
do corpo no filme de Fassbinder pode nos levar a pensar numa educação visual do corpo fora
da tela cinematográfica? Quais são as provocações presentes na construção da imagem do
corpo no cinema-teatro de Fassbinder e em que sentido tal experiência visual evidencia,
desconstrói ou cria significados sobre seus elementos de expressão corporal?
Figura 1 Figura 2
6
DUARTE, 2002, p. 18.
7
ALMEIDA, 1999, p. 55.
8
ALMEIDA, 1999, p.38
9
ALMEIDA, 1999, p 36.
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Figura 3 Figura 4
Figura 5 Figura 6
Figura 7 Figura 8
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Fassbinder e o cinema-teatro
10
CÁNEPA, L. 2006, p. 311.
11
PAIVA, S. 1998, p. 13.
12
PAIVA, S. 1998, p. 21.
13
Segundo Cánepa, o Cinema Novo Alemão despertou a curiosidade internacional por ser, entre os cinemas‐
novos que surgiram, o que mais demorou a dar uma resposta cinematográfica ao momento histórico do pós‐
guerra. No entanto, a resposta tardia levou a um processo duradouro que compôs “uma das cinematografias
mais impactantes e influentes do cinema moderno” (CÁNEPA, 2006, p. 327).
14
XAVIER, 2003, p. 87.
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Gerador de grande polêmica ao abordar temas que se constituem como tabu ainda nos
dias atuais (relações de poder, opressão feminina, homossexualidade), Fassbinder – como
afirma Michael Töteberg na introdução da coletânea de entrevistas e ensaios do diretor
alemão: A anarquia da fantasia16 – “sabe que o cinema não mudará o mundo, mas pode
mexer com a cabeça das pessoas”17. Numa das entrevistas, ao apontar o que espera provocar
com sua arte, complementa: “podem-se criar armadilhas para o espectador fazendo-se com
que ele, ao sair do cinema, não jogue seus preconceitos fora, mas venha a ter medo dos
próprios preconceitos que tem.” (idem.).
Rainer Werner Fassbinder, num certo período, “dirigia montagens teatrais como se
fosse cinema e em seguida realizava o filme como se fosse teatro”18. A realização de trabalhos
no cinema e no teatro – muitas vezes simultaneamente – é decisiva, segundo Samuel Paiva
(1998) na constituição do estilo de Fassbinder e na sua forma de conceber o espetáculo. O
15
FASSBINDER. In: Töteberg (org.) 1988, p. 135.
16
TÖTEBERG (org.) 1988, p. 11.
17
Idem.
18
TÖTEBERG (org.) 1988, p. 34.
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autor usará a expressão “cinema-teatro” como uma interface, um lugar poético situado na
intersecção do cinema e do teatro para definir a obra do diretor19. Apontados como as maiores
permanências em sua arte20, o expressionismo, as ideias de Brecht21 e o melodrama
encontram-se especialmente no período de realização do filme As Lágrimas Amargas de
Petra Von Kant (1972), objeto de análise do trabalho a seguir.
Pensada inicialmente para o palco, a obra “As lágrimas amargas de Petra von Kant”
foi escrita em forma de peça em 1971 por Fassbinder que, na ocasião, encontrava-se com 26
anos e cerca de dez filmes concluídos. A adaptação do enredo de “Petra von Kant” para o
cinema finaliza-se em 1972 (doze meses depois), sob sua direção, e é apresentada no Festival
de Berlim do mesmo ano. O filme “As lágrimas amargas de Petra von Kant” representou um
marco na carreira de Fassbinder: além de ser seu primeiro grande sucesso internacional,
inseriu-se de forma importante no panorama do cinema da década de 70 por constituir-se
como um novo gênero influenciado pelo melodrama norte-americano de Douglas Sirk22.
Petra von Kant é uma estilista de moda bem-sucedida que mora numa espécie de
apartamento-ateliê, um espaço quase sem divisórias onde mesclam-se sua vida pessoal, social
e profissional. Divorciada de seu segundo marido e viúva do primeiro, a autoritária Petra tem
como única companhia sua silenciosa e submissa assistente Marlene.Nesse ambiente
claustrofóbico, acompanharemos o desenrolar da história de amor de Petra von Kant pela
jovem Karin, uma aspirante a modelo por quem Petra se apaixonará. Dividida em cinco
momentos (equivalente aos cinco atos da peça), conheceremos os estágios do amor de Petra
19
PAIVA, S. 1998, p. 8.
20
PAIVA, S. 1998, p. 15.
21
Brecht foi um dos pensadores de teatro e cinema mais influentes nas pesquisas cênicas dos anos 1960/70,
assim como nas produções do Novo Cinema Alemão. A ênfase nos efeitos de distanciamento e de identificação
dão base à intervenção, por via do espetáculo, no processo de transformação social (PAIVA, 1998, p. 16).
22
Nos anos 70, “um movimento simultâneo, não coordenado, afastou muitos cineastas e críticos de um
modernismo mais incisivo no ataque ao cinema narrativo de gênero e revalorizou o diálogo com os produtos da
indústria como estratégia de sobrevivência de um novo cinema político que se queria mais estável na
comunicação com o público. Naquela conjuntura, foi de Fassbinder a experiência emblemática, de maior risco e
de maior interesse. Em 1972 ele encontra Douglas Sirk e escreve o ensaio crítico de elogio à figura símbolo do
gênero nos anos 50, preparando seu próprio movimento de reapropriação em “Lágrimas amargas de Petra von
Kant”[1972] e “O medo corrói a alma” [1973]”. (XAVIER, 2003, p. 86 – 87)
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Plano, em cinema, é um trecho de filme rodado ininterruptamente, ou que parece ter sido rodado sem
interrupção. É, portanto, um conjunto ordenado de fotogramas ou imagens fixas, limitado espacialmente por
um enquadramento (que pode ser fixo ou móvel) e temporalmente por uma duração. FONTE:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Plano_(cinema)
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movimentação dos manequins. Mas estes não o fazem; são os nossos olhos – os olhos da
câmera – que os “movimentam”.
Nesse sentido, pensar em manequins que aparecem nus nos remete a dois aspectos
da imagem. O primeiro é a própria constituição do objeto, o boneco-manequim como
representação de um corpo que serve para ser vestido. O manequim necessita de formas
mínimas para que sirva à função de ser “vestível”; deve ter características de um corpo:
basicamente um tronco e, por vezes, também braços, pernas e cabeça.
24
O cavalo torna‐se a convergência, nesse contexto (em outro poderia ser outra coisa) de desejos e aspirações.
“Era necessário, portanto, duas condições para transformar uma vara em nosso cavalinho de pau: a primeira, a
de que sua forma tornasse possível cavalgá‐lo; a segunda – e talvez decisiva – é que cavalgar fosse importante”
(GOMBRICH, 1999, p. 7).
25
“O artista abstrai a “forma” do objeto que ele vê. O escultor, usualmente, abstrai a forma tridimensional, e
abstrai da cor; o pintor abstrai contornos e cores, e da terceira dimensão. Nesse contexto, ouve‐se dizer que a
linha do desenhista constitui um “tremendo feito de abstração”, porque “não ocorre na natureza””
(GOMBRICH, 1999, p. 1).
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2008, p. 482). Se o significado do filme, como afirma Almeida (1994) “não está no resumo
que eu faça dele depois, mas no conjunto de sons e imagens que, ao seu término, compôs um
sentimento e uma inteligência sobre ele” (ALMEIDA, 1994, p. 10), tomaremos a composição
das imagens dos corpos no filme de Fassbinder para propor uma reflexão sobre algumas
impressões e compreensões sobre o corpo.
26
SOARES, 2001. Pág. 109
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[...] a educação que um menino recebe dos objetos, das coisas, da realidade
física – em outras palavras, dos fenômenos materiais da sua condição social - ,
torna-o corporalmente aquilo que é e será por toda a vida. O que é educada é
sua carne, como forma do seu espírito.
Todo olhar para a cena parte do pressuposto da representação do gesto e não do gesto
real, pois tudo aquilo que está na imagem é objeto cênico27 e é imagem, passível de
interpretações diversas quando olhado por culturas e histórias diferentes.
Imagem de Petra
O corpo de Petra é o abrigo transitório para as suas produções de moda, para suas
maquiagens pesadas e para as diferentes perucas que usa ao longo da narrativa. No início e no
fim do enredo, ela aparece com o rosto limpo, de robe rosa claro, sem as perucas
27
PASOLINI, 1990.
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espalhafatosas. Nas três partes restantes ela parece ser outra pessoa: ora é loira, ora é morena,
ora é ruiva (Fig. 8, 5 e 2) Seus vestidos-fantasia vestem-na para as diferentes ocasiões de seu
relacionamento com Karin. Seu apartamento-ateliê, assim como seu corpo, é espaço da
indefinição dos afetos, dos papéis e das funções.
Petra sempre está travestida: das poses dos manequins, da pintura de Poussin, dos
gestos que finge ter ao falar ao telefone. Petra transforma seus modos, gestos e poses ao
mesmo tempo os influenciam. Podemos olhar para a representação de Petra como uma forte
metáfora da educação do corpo através da imagem do cinema. Antoine Baecque no oferece
uma reflexão sobre a representação do corpo no séc. XX:
[...] que a face seja bem reta, que os lábios não se contorçam, que uma abertura
imoderada não distende a boca, que o rosto não se volte para trás, que os olhos
não mergulhem em direção ao sol, que a nuca não se incline, que sobrancelhas
não estejam nem elevadas nem caídas.28
28
CÍCERO Apud SCHMITT, 1995, p. 149. Interessante perceber que Schmitt usa essa citação sobre educação
moral dos gestos como uma das primeiras referências descritas.
29
Sobre este assunto ler mais em “Em torno do conceito de melodrama” In: PAIVA, 1998, p. 132.
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dos gestos de uma cultura, definindo a personagem ao mesmo tempo em que abre espaço para
a imaginação do telespectador, que passa a conferir significados aos gestos e vestimentas dela.
O cinema, a arte do século XX, lançou moda, traçou rumos para o entendimento da
representação do corpo, transformou a realidade, impregnou a cultura corporal urbana de
ideologias. Não obstante, o filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant é um virtuoso
exemplo de como Rainer Fassbinder entendeu esta capacidade do cinema de influenciar e
espelhar sociedades e culturas, oferecendo uma obra digna de olhares minuciosos e curiosos
que possam dali retirar um estrato fértil para a reflexão sobre a representação do corpo, do
gesto, da expressão, das vestimentas e dos recursos alegóricos que, mais do que alegorias,
transformaram-se em processos educativos da materialidade do corpo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
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FILMOGRAFIA
As Lágrimas amargas de Petra von Kant (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant). Direção:
Rainer Werner Fassbinder. Alemanha, 1972.
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