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III Encontro Nacional de Estudos da Imagem

03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

EDUCAÇÃO VISUAL: IMAGENS DOS CORPOS OBJETO E HUMANIZAÇÃO DOS

OBJETOS NA OBRA DE RAINER FASSBINDER

Beatriz Sampaio Pinto


FE-UNICAMP – FAPESP
Gustavo Scolfaro Caetano da Silva
FE-UNICAMP
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda

Ao compreender a educação, o conhecimento, a linguagem e a arte como faces


entrelaçadas do campo de pesquisa e estudos de imagens, podemos dizer que as produções
artísticas fazem parte de uma Educação Visual no qual estamos inseridos.

A educação Visual e a educação visual da memória, nos mostra que


vivemos, histórica e socialmente, imersos em um processo de
educação cultural, estética e política e que as produções artísticas
(literatura, cinema, arquitetura, pintura, fotografia...) de nossa época,
ao afetarem nossa inteligibilidade de mundo, evidenciam a existência
de um 'fantástico' programa de educação que, sem ter intencionalidade
objetiva, impressiona e fixa, em nossa memória, não apenas imagens,
mas também as formas como imaginamos o real. (MIRANDA &
SCORSI, 2005, p. 13).

Dizer que algo participa da educação, aponta Miranda (2005), “é mostrar que
determinado entendimento, sentimento ou julgamento não é natural, ou seja, aprendemos a tê-
los. No caso das imagens, é dizer que vemos porque aprendemos a olhar (MIRANDA, 2005,
p.35). Segundo o autor, a “leitura” que fazemos do mundo por meio das imagens põe em
evidência um programa de Educação Visual que está inserido num processo de construção da
memória e do olhar. Seus significados e entendimentos somente são compartilhados e
compreendidos por nós pelo fato de termos aprendido a reconhecê-los.

Almeida (2011) dirá que quando falamos em Educação Visual, nos referimos à idéia
de um olhar que é educável ou suscetível de receber uma educação:

Educável é mais amplo, não escolar, e sim cultural. A cultura, se eu


quiser pensar assim, educa. (...) quando penso em educação visual
penso em algo que faz parte da cultura, como a educação do paladar,
do olfato, da audição, do tato, da inteligência… qualquer uma dessas
educações são partes menores de algo maior e abrangente a que
chamamos cultura (ALMEIDA, 2011).

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No início do capítulo Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas (1990),


Pasolini dirá que “as primeiras lembranças da vida são lembranças visuais”. O autor afirma
que os objetos e os lugares nas suas primeiras imagens condensavam, em torno de si, um
mundo de memórias, evocavam outras lembranças e, especialmente, comunicavam.
Nomeando como “discurso das coisas”, este conteúdo proferido pelas primeiras imagens será,
como aponta Pasolini (1990), “essencialmente pedagógico”, já que ensinarão (num discurso
inarticulado, fixo e incontestável1) sobre o lugar que nascemos, falarão de onde viemos e de
que maneira devemos conceber a vida.

Dessa forma, imersos num mundo de imagens (virtuais ou não), estamos permeados
pelos discursos das coisas, das pessoas, dos espaços. Os gestos, as expressões faciais, a
constituição visual dos corpos e dos espaços urbanos são exemplos que pressupõem relações
da imagem com suas maneiras de compreendê-las, de identificá-las. Além disso, podemos
pensar que as múltiplas formas de utilização, feitura e veiculação das imagens – nos mais
diversos espaços da sociedade e para os mais diferentes fins – têm nos educado e educado o
nosso olhar. Oliveira apontará, nesse sentido, que as imagens “não só nos dizem de nosso
mundo, mas também nos educam a ler este mundo a partir delas” (2009, p. 20).

Almeida (1994) destacará que a nossa inteligibilidade de mundo está sendo formada a
partir destas imagens e, especialmente, pelas imagens e sons das produções do cinema e da
televisão2. As interpretações e as experiências subjetivas diante dessas representações visuais
evidenciam maneiras de ver, compreender, agir e estar no mundo3. Por este motivo, dentre as
formas de expressão cultural que participam de uma Educação Visual, interessa-nos o
audiovisual, em especial, o cinema. Compreendida como invenção moderna e representativa
da produção visual artística, cultural e social de nosso tempo, o cinema será abordado por nós
como fonte de conhecimento, como uma arte da memória contemporânea4.

Miranda (2006) aponta que a especificidade do cinema, em sua relação com o


conhecimento, está na imagem. O autor utiliza a expressão “Educação do Olho”5 para pensar
como a indústria de produção de imagens, caracterizada pelo olhar através de aparelhos
(cinema e fotografia), ao tentar reproduzir o real, cria uma outra maneira de concebê-lo e
transforma nossa percepção. Ao proporcionar outras experiências subjetivas, sob novos
1
 PASOLINI, 1990, p. 126. 
2
 ALMEIDA, 1994, P 8. 
3
 COPPOLA, 2006, p. 23. 
4
 ALMEIDA, 1999. 
5
 MIRANDA, 2001, p. 32. 

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olhares e perspectivas (em diversos temas, ângulos, cores, distâncias, ritmos e tempos), o
cinema e suas imagens em movimento modificaram o homem do século XX e sua maneira de
olhar para a realidade6.

Ao gerar imagens potentes (imagens agentes7) o cinema cria (e recria) realidades


históricas, formas de entendimentos e ficções. A pluralidade de experiências diante do contato
com o mesmo filme8, promovendo entendimentos tão variados, põe a imagem sob tensão e
revela que os significados construídos ao vermos um filme estariam na memória, isto é, neste
intervalo entre aquilo que vemos e aquilo que somos. Segundo Almeida (1999), será no
“intervalo significativo”9, no intervalo das cenas, que os significados surgirão dando sentido
ao que está sendo narrado. O entendimento do filme “acontece neste intervalo entre as cenas e
é histórica, social e individual, particular, ao mesmo tempo” (ALMEIDA, 1999, p.38).

Nesse sentido, tomaremos o filme “As lágrimas amargas de Petra von Kant” (1972),
do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, como objeto de análise para pensarmos a
imagem do corpo no cinema e do corpo como imagem. De que maneira a constituição estética
do corpo no filme de Fassbinder pode nos levar a pensar numa educação visual do corpo fora
da tela cinematográfica? Quais são as provocações presentes na construção da imagem do
corpo no cinema-teatro de Fassbinder e em que sentido tal experiência visual evidencia,
desconstrói ou cria significados sobre seus elementos de expressão corporal?

Imagens de “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” (1972)

Figura 1  Figura 2 

6
 DUARTE, 2002, p. 18. 
7
 ALMEIDA, 1999, p. 55. 
8
 ALMEIDA, 1999, p.38 
9
 ALMEIDA, 1999, p 36. 

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Figura 3 Figura 4 

Figura 5 Figura 6

Figura 7  Figura 8

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Fassbinder e o cinema-teatro

O Cinema Novo Alemão surge na década de 1960 como um movimento estético de


renascimento da indústria cinematográfica alemã. Nasce como o resultado de críticas dirigidas
ao cinema da Alemanha Ocidental e à vulnerabilidade da produção cinematográfica que se
construíra no país durante a década de 1950. Motivado pela criação de um cinema nacional
que fosse cultural e economicamente viável, o Novo Cinema Alemão renovou a sétima arte na
Alemanha pós-guerra e refletiu sobre a complexa situação do país naquele momento10.

Ao lado de Alexander Kluge, Werner Herzog e Wim Wenders, o cineasta alemão


Rainer Werner Fassbinder foi um de seus artistas mais representativos. Dono de uma
expressiva produção não apenas no cinema, mas também no teatro, no rádio e na televisão,
Fassbinder, ao longo de seus 37 anos de vida, dirigiu mais de quarenta longas-metragens,
escreveu aproximadamente dezoito peças, encenou, atuou e produziu cerca de trinta peças
(incluindo as de sua autoria) e ainda participou – como ator, roteirista, montador, etc. – de
dezenas de filmes de outros diretores11.

Além do impressionante ritmo de trabalho, a obra de Fassbinder é marcada por um


estilo próprio. O sentido da “autoria” no cinema passou a ser reconhecida a partir da Nouvelle
Vague e se difundiu nos demais cinemas novos que surgiam na década de 6012. No contexto
do Novo Cinema Alemão13, e especialmente na obra de Fassbinder, este comprometimento
com a ideia de autor não foi diferente. Ao destacar a importância de uma “visão de mundo”, o
cineasta aponta que, assim como aprendeu com Douglas Sirk, é possível aliar o gênero
popular e o cinema crítico14, mantendo uma “assinatura” pessoal na obra independentemente
se as produções estão voltadas para o “grande público”, para a televisão ou para cinema.

10
CÁNEPA, L. 2006, p. 311. 
11
PAIVA, S. 1998, p. 13. 
12
PAIVA, S. 1998, p. 21. 
13
 Segundo Cánepa, o Cinema Novo Alemão despertou a curiosidade internacional por ser, entre os cinemas‐
novos que surgiram, o que mais demorou a dar uma resposta cinematográfica ao momento histórico do pós‐
guerra. No entanto, a resposta tardia levou a um processo duradouro que compôs “uma das cinematografias 
mais impactantes e influentes do cinema moderno” (CÁNEPA, 2006, p. 327).  
14
XAVIER, 2003, p. 87. 

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Para Fassbinder, a “assinatura” tem o propósito de comunicar ao espectador a maneira


pela qual o artista olha para o mundo, oferecendo “uma imagem de sua realidade”15; e
completa: “Para mim, fazer filmes é reagir ao que é vivo, da maneira que sinto”
(FASSBINDER, 1988, p. 135). A arte, dessa forma, será pensada pelo cineasta como uma
concepção de mundo, como um processo de sensibilização a partir de sua experiência e para a
experiência do espectador:

A arte...a gente procura, através do que faz, sensibilizar o público, de


certa maneira, para a vida e o mundo que o cerca. É um processo de
sensibilização ao qual começamos por nos submeter nós mesmos,
e que temos em seguida de transpor para o nosso público
(FASSBINDER, 1988, p. 135).

Concebida como meio de proporcionar ao espectador parte da realidade vista/sentida


pelo artista, a arte levaria o espectador a analisar sua própria realidade. A potencialidade
transformadora da arte, para Fassbinder, estaria na possibilidade dada a quem assiste de
enfrentar emoções disfarçadas pelo cotidiano. Ao defrontar-se com novas experiências através
dos filmes, pode-se olhar para realidades e verdades profundas “cujo conhecimento é tão mais
doloroso quanto mais elas se aproximem da nossa existência” (TÖTEBERG, 1988, p. 10).

Gerador de grande polêmica ao abordar temas que se constituem como tabu ainda nos
dias atuais (relações de poder, opressão feminina, homossexualidade), Fassbinder – como
afirma Michael Töteberg na introdução da coletânea de entrevistas e ensaios do diretor
alemão: A anarquia da fantasia16 – “sabe que o cinema não mudará o mundo, mas pode
mexer com a cabeça das pessoas”17. Numa das entrevistas, ao apontar o que espera provocar
com sua arte, complementa: “podem-se criar armadilhas para o espectador fazendo-se com
que ele, ao sair do cinema, não jogue seus preconceitos fora, mas venha a ter medo dos
próprios preconceitos que tem.” (idem.).

Rainer Werner Fassbinder, num certo período, “dirigia montagens teatrais como se
fosse cinema e em seguida realizava o filme como se fosse teatro”18. A realização de trabalhos
no cinema e no teatro – muitas vezes simultaneamente – é decisiva, segundo Samuel Paiva
(1998) na constituição do estilo de Fassbinder e na sua forma de conceber o espetáculo. O

15
 FASSBINDER. In: Töteberg (org.) 1988, p. 135. 
16
TÖTEBERG (org.) 1988, p. 11. 
17
Idem. 
18
TÖTEBERG (org.) 1988, p. 34. 
 

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autor usará a expressão “cinema-teatro” como uma interface, um lugar poético situado na
intersecção do cinema e do teatro para definir a obra do diretor19. Apontados como as maiores
permanências em sua arte20, o expressionismo, as ideias de Brecht21 e o melodrama
encontram-se especialmente no período de realização do filme As Lágrimas Amargas de
Petra Von Kant (1972), objeto de análise do trabalho a seguir.

As lágrimas amargas de Petra von Kant

Pensada inicialmente para o palco, a obra “As lágrimas amargas de Petra von Kant”
foi escrita em forma de peça em 1971 por Fassbinder que, na ocasião, encontrava-se com 26
anos e cerca de dez filmes concluídos. A adaptação do enredo de “Petra von Kant” para o
cinema finaliza-se em 1972 (doze meses depois), sob sua direção, e é apresentada no Festival
de Berlim do mesmo ano. O filme “As lágrimas amargas de Petra von Kant” representou um
marco na carreira de Fassbinder: além de ser seu primeiro grande sucesso internacional,
inseriu-se de forma importante no panorama do cinema da década de 70 por constituir-se
como um novo gênero influenciado pelo melodrama norte-americano de Douglas Sirk22.

Petra von Kant é uma estilista de moda bem-sucedida que mora numa espécie de
apartamento-ateliê, um espaço quase sem divisórias onde mesclam-se sua vida pessoal, social
e profissional. Divorciada de seu segundo marido e viúva do primeiro, a autoritária Petra tem
como única companhia sua silenciosa e submissa assistente Marlene.Nesse ambiente
claustrofóbico, acompanharemos o desenrolar da história de amor de Petra von Kant pela
jovem Karin, uma aspirante a modelo por quem Petra se apaixonará. Dividida em cinco
momentos (equivalente aos cinco atos da peça), conheceremos os estágios do amor de Petra

19
PAIVA, S. 1998, p. 8.   
20
PAIVA, S. 1998, p. 15. 
21
Brecht  foi  um  dos  pensadores  de  teatro  e  cinema  mais  influentes  nas  pesquisas  cênicas  dos  anos  1960/70, 
assim como nas produções do Novo Cinema Alemão. A ênfase nos efeitos de distanciamento e de identificação 
dão base à intervenção, por via do espetáculo, no processo de transformação social (PAIVA, 1998, p. 16). 
22
Nos  anos  70,  “um  movimento  simultâneo,  não  coordenado,  afastou  muitos  cineastas  e  críticos  de  um 
modernismo mais incisivo no ataque ao cinema narrativo de gênero e revalorizou o diálogo com os produtos da 
indústria  como  estratégia  de  sobrevivência  de  um  novo  cinema  político  que  se  queria  mais  estável  na 
comunicação com o público. Naquela conjuntura, foi de Fassbinder a experiência emblemática, de maior risco e 
de maior interesse. Em 1972 ele encontra Douglas Sirk e escreve o ensaio crítico de elogio à figura símbolo do 
gênero nos anos 50, preparando seu próprio movimento de reapropriação em “Lágrimas amargas de Petra von 
Kant”[1972] e “O medo corrói a alma” [1973]”. (XAVIER, 2003, p. 86 – 87) 
 

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por Karin: o momento antes de conhecê-la, o encontro, a vida juntas, o término/sofrimento


pelo fim do relacionamento e a superação.

Manequins Personagens e Reprodução

Todas as cenas ocorrem somente neste ambiente interno, no apartamento-ateliê de


Petra von Kant. Duas coisas chamam a atenção na composição da mise-en-scène: uma enorme
reprodução da pintura de Poussin, intitulada “Midas e Baco” (Fig. 1, 5, 7 e 8) e a presença de
três manequins no ateliê (Fig. As imagens dos corpos na pintura de Poussin e as imagens dos
corpos dos manequins compõem o enquadramento dos longos e marcados planos de
Fassbinder. Os corpos das personagens por vezes são enquadrados com corpos da pintura e
por vezes com os corpos dos manequins. Contaminação, Imitação, espelhamento:
complementam e antecedem os gestos das personagens no filme.

Há o espelhamento da imagem das posturas de personagens e imagens (corpos de


manequins e corpos da pintura) em diversas passagens do filme que, nesta correlação, ora se
antecipam e outras vezes imitam as posturas corporais das personagens. A câmera fixa de
Fassbinder e os marcados movimentos das atrizes na cena criam composições e sentidos
diferentes, proporcionados por essa construção visual ao longo de um mesmo plano23.
Percebemos que isso ocorre, por exemplo, no momento em que Petra, no jantar com Karin,
deita-se na cama e funde-se na mesma pose da mulher que está deitada na pintura de Poussin
(Fig.1) ou quando se senta ao lado da vitrola e espelha a pose do manequim que está em
segundo plano (Fig. 3 e 4).

Percebemos a mudança do tempo na narrativa pelas diferentes poses e posições


ocupadas pelos manequins a cada novo “ato”: estão sentados e de pé, reunidos ou separados, a
olhar para uma mesma direção ou voltados para lados diferentes (Fig. 3, 6 e 7). A presença
dos manequins nunca é despercebida. Seja aparecendo em primeiro ou segundo plano, o
enquadramento e a composição da imagem mostra-os sob diferentes ângulos, configurações e
olhares, o que nos dá a ilusão de, num mesmo “ato”, mesmo em posições fixas, ocuparem
lugares diferentes. A câmera, por sua multiplicidade de ângulos e composições, sugere a

23
 Plano, em cinema, é um trecho de filme rodado ininterruptamente, ou que parece ter sido rodado sem 
interrupção. É, portanto, um conjunto ordenado de fotogramas ou imagens fixas, limitado espacialmente por 
um enquadramento (que pode ser fixo ou móvel) e temporalmente por uma duração. FONTE: 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Plano_(cinema) 

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movimentação dos manequins. Mas estes não o fazem; são os nossos olhos – os olhos da
câmera – que os “movimentam”.

O manequim é um objeto, uma representação da figura humana. Segundo Ernst


Gombrich (1999) a representação, no sentido de ser um “substituto”, dependerá menos de
semelhanças formais daquilo que é representado e mais das “exigências mínimas da função”
(p. 4). Dessa forma, assim como o cavalinho de pau exemplificado por Gombrich – em que
uma vara torna-se substituto de um cavalo não por parecer-se com um, mas por ser
“cavalgável”24 – podemos pensar o manequim como sendo um objeto “vestível”.

A roupa possibilita encenar/simular o que não se tem. E também mostrar o


que se tem sob a ótica do que se pretende ser. E, às vezes, é. Ela pode ser a
expressão máxima do pensamento que dicotomiza sujeito e objeto. Ela reitera
a relação entre particularidades que foram separadas ao longo do materialismo
industrializado e massificado. Porque a roupa sem pessoa é tecido sem corpo e
o corpo sem a roupa não é mais só corpo. (COPPOLA, 2006, p. 39)

Nesse sentido, pensar em manequins que aparecem nus nos remete a dois aspectos
da imagem. O primeiro é a própria constituição do objeto, o boneco-manequim como
representação de um corpo que serve para ser vestido. O manequim necessita de formas
mínimas para que sirva à função de ser “vestível”; deve ter características de um corpo:
basicamente um tronco e, por vezes, também braços, pernas e cabeça.

O segundo é a utilização da imagem do manequim no ateliê de Petra como uma


imagem no contexto do filme. A presença de manequins no ateliê de Petra chama-nos a
atenção por estarem nus, pela ausência de roupa, pela falta daquilo para qual é feito. O
manequim nu é uma imagem criada pelo artista. Fassbinder cria uma “abstração”25 para uma
idéia de corpo que não é objeto, utilizando-se de um objeto, o manequim.

O corpo no cinema é imagem. Antoine de Baecque (2008) dirá que é próprio do


cinema “registrar corpos e com eles contar histórias, o que resulta em torná-los doentes,
monstruosos e, às vezes simultaneamente, infinitamente amáveis e sedutores” (BAECQUE,

24
O cavalo torna‐se a convergência, nesse contexto (em outro poderia ser outra coisa) de desejos e aspirações. 
“Era necessário, portanto, duas condições para transformar uma vara em nosso cavalinho de pau: a primeira, a 
de que sua forma tornasse possível cavalgá‐lo; a segunda – e talvez decisiva – é que cavalgar fosse importante” 
(GOMBRICH, 1999, p. 7).  
25
“O artista abstrai a “forma” do objeto que ele vê. O escultor, usualmente, abstrai a forma tridimensional, e 
abstrai da cor; o pintor abstrai contornos e cores, e da terceira dimensão. Nesse contexto, ouve‐se dizer que a 
linha do desenhista constitui um “tremendo feito de abstração”, porque “não ocorre na natureza”” 
(GOMBRICH, 1999, p. 1). 

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2008, p. 482). Se o significado do filme, como afirma Almeida (1994) “não está no resumo
que eu faça dele depois, mas no conjunto de sons e imagens que, ao seu término, compôs um
sentimento e uma inteligência sobre ele” (ALMEIDA, 1994, p. 10), tomaremos a composição
das imagens dos corpos no filme de Fassbinder para propor uma reflexão sobre algumas
impressões e compreensões sobre o corpo.

Entre as possibilidades do olhar cinematográfico, Béla Balázs (1983) destaca que


“a câmera cinematográfica revelou novos mundos, até então escondidos de nós: como a alma
dos objetos, o ritmo das multidões, a linguagem secreta das coisas mudas” (BALÁZS, 1983,
p. 84). Dessa maneira, inseridos num programa de educação do olhar, identificamos os gestos,
as expressões faciais e a roupa como elementos de expressão e reconhecimento próprios do
corpo humanizado – dotado de cultura, de memória, de discurso. O estranhamento causado
pelas imagens dos manequins no filme de Fassbinder chama a nossa atenção para os
elementos que podem nos parecer “naturais” nos corpos que estão dentro e fora da tela
cinematográfica. Por vezes os manequins parecem vivos, pelas poses que dialogam com a
cena e, em outros momentos, as personagens humanas parecem objeto, pelos gestos
marcados, pausados e propositalmente medidos.

O gesto configura-se como uma linguagem do corpo vivo, do corpo dinâmico.


Jesus (1996) afirma que “o corpo é sempre atual; está vivo, respira, transpira. Vive a
aniquilação a cada passo que dá. Desvanece, em gesto, para tomar lugar e forma noutro gesto,
noutra tensão.” (JESUS, 1996, p. 29). Fassbinder, ao criar uma imagem de corpo que “abstrai-
se” do dinamismo orgânico do gesto, destacando as pausas entre suas “atualizações”,
“desnaturalizará” o gesto e, a partir das imagens em movimento do cinema, educando-nos
visualmente para a sua percepção.

Sendo representação corporal de uma cultura aprendida por um meticuloso


processo de educação, o gesto é o acréscimo ou a extração de elementos de uma cultura em
relação ao corpo.26 Partindo dessa afirmação, podemos pensar os manequins presentes no
filme como representações de corpo, mas que lhes faltam o gesto. O manequim, como objeto
”real”, tem um uso claro voltado para exibição de vestimentas, porém no filme de Fassbinder,
a representação dos manequins mostra outra importância e passa a dialogar com os corpos dos
atores e seus gestos, assim como a pintura na parede do quarto de Petra von Kant.

26
SOARES, 2001. Pág. 109 

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Estes dois elementos cênicos – manequins e pintura – participam de uma composição


de cena que sugestiona, espelha e ou complementa os gestos dos personagens, acionando a
ideia de educação presente no pensamento de Pasolini.

[...] a educação que um menino recebe dos objetos, das coisas, da realidade
física – em outras palavras, dos fenômenos materiais da sua condição social - ,
torna-o corporalmente aquilo que é e será por toda a vida. O que é educada é
sua carne, como forma do seu espírito.

A condição social se reconhece na carne do indivíduo... porque ele foi


fisicamente plasmado justamente pela educação física da matéria da qual é feito
o mundo. (PASOLINI, 1990, p. 127)

Todo olhar para a cena parte do pressuposto da representação do gesto e não do gesto
real, pois tudo aquilo que está na imagem é objeto cênico27 e é imagem, passível de
interpretações diversas quando olhado por culturas e histórias diferentes.

Encontramo-nos com a representação dos manequins que a primeira vista podem


parecer objetos usados para ambientação, mas Fassbinder dá nova função a eles: o
estranhamento que eles causam transparece uma sugestão de participação no enredo quando se
aproximam das personagens humanas, tornando-se também personagens e humanizando-se
por consequência.

A partir do momento que enxergamos esses bonecos como parte significativa do


enredo imagético do filme, lhes conferimos significados diversos, alterando completamente
nossa percepção das poses dos manequins. Uma interpretação possível seria a de que os
manequins são referências ao extremo do gesto medido e contido, limitado a poses que, em
suas representações, fazem clara alusão às modelos humanas do universo da moda, como a
personagem Karin (Fig. 4). Os manequins nus sugerem, através das poses, gestos que serão
expressados pelas personagens humanas. Essa relação entre pose e gesto se faz através do
enquadramento e da movimentação de câmera, como se o primeiro fosse passagem para o
segundo.

Imagem de Petra

O corpo de Petra é o abrigo transitório para as suas produções de moda, para suas
maquiagens pesadas e para as diferentes perucas que usa ao longo da narrativa. No início e no
fim do enredo, ela aparece com o rosto limpo, de robe rosa claro, sem as perucas

27
PASOLINI, 1990. 

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espalhafatosas. Nas três partes restantes ela parece ser outra pessoa: ora é loira, ora é morena,
ora é ruiva (Fig. 8, 5 e 2) Seus vestidos-fantasia vestem-na para as diferentes ocasiões de seu
relacionamento com Karin. Seu apartamento-ateliê, assim como seu corpo, é espaço da
indefinição dos afetos, dos papéis e das funções.

Petra sempre está travestida: das poses dos manequins, da pintura de Poussin, dos
gestos que finge ter ao falar ao telefone. Petra transforma seus modos, gestos e poses ao
mesmo tempo os influenciam. Podemos olhar para a representação de Petra como uma forte
metáfora da educação do corpo através da imagem do cinema. Antoine Baecque no oferece
uma reflexão sobre a representação do corpo no séc. XX:

Tal representação oferece um novo horizonte imaginário, feito de fantasmas,


de identificações, de pedagogia, de temores, de adesões as representações do
corpo e suas sucessivas mutações. E não é possível compreender as principais
representações do corpo neste século a não ser encontrando em sua fonte ou
seu meio de transmissão, tanto na origem quanto na vulgarização, sobre a tela
do espetáculo de massa. (Baecque, 2008)

A representação de Petra condensa uma série de elementos estéticos que ao longo do


filme surgem e sugerem, desde a aridez das poses dos manequins na gestualidade contida,
marcada e higienizada dos corpos, até o glamour da pintura de Midas e Baco que dialogam
com sua presunção, ao permitir que Karin se torne uma modelo de sucesso. Não seria sem
referência relacionar as posturas corporais, os gestos, as vestimentas e o trato do corpo de
Petra com uma educação corporal com ares de nobreza, assim como bem nos ilustra o texto De
officiis de Cícero:

[...] que a face seja bem reta, que os lábios não se contorçam, que uma abertura
imoderada não distende a boca, que o rosto não se volte para trás, que os olhos
não mergulhem em direção ao sol, que a nuca não se incline, que sobrancelhas
não estejam nem elevadas nem caídas.28

O texto ilustra, sem sofrer de anacronismos, a justa medida da educação corporal –


também espiritual para o tempo do texto – nobre e burguesa associada ao melodrama29, que no
enredo do filme mostra claro uso dos elementos estéticos do corpo para apontar a situação
social, cultural e emocional de Petra e das demais personagens. O corpo, como representação,
é provido de camadas de história e de cultura, com as quais nos identificamos, significamos e
interpretamos a imagem. Petra trás aos olhos imagens do corpo de uma sociedade, da moral

28
CÍCERO Apud SCHMITT, 1995, p. 149. Interessante perceber que Schmitt usa essa citação sobre educação 
moral dos gestos como uma das primeiras referências descritas. 
29
Sobre este assunto ler mais em “Em torno do conceito de melodrama” In: PAIVA, 1998, p. 132. 

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dos gestos de uma cultura, definindo a personagem ao mesmo tempo em que abre espaço para
a imaginação do telespectador, que passa a conferir significados aos gestos e vestimentas dela.

O cinema, a arte do século XX, lançou moda, traçou rumos para o entendimento da
representação do corpo, transformou a realidade, impregnou a cultura corporal urbana de
ideologias. Não obstante, o filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant é um virtuoso
exemplo de como Rainer Fassbinder entendeu esta capacidade do cinema de influenciar e
espelhar sociedades e culturas, oferecendo uma obra digna de olhares minuciosos e curiosos
que possam dali retirar um estrato fértil para a reflexão sobre a representação do corpo, do
gesto, da expressão, das vestimentas e dos recursos alegóricos que, mais do que alegorias,
transformaram-se em processos educativos da materialidade do corpo.

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FILMOGRAFIA

As Lágrimas amargas de Petra von Kant (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant). Direção:
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