Você está na página 1de 257

1

Ensaios no real

Apresentação
Cezar Migliorin
2
3

Cezar Migliorin
(org.)

Ensaios no real

azougue editorial
2010
4

Coordenação editorial
Amélia Cohn e Sergio Cohn

Capa
Carolina Noury

Foto
Pablo Lobato e Cao Guimarães

Equipe Azougue
Carolina Noury, Eduardo Coelho, Elisa Ramone, Evelyn Rocha, Filipe Gonçalves, Giselle
Andrade, Ingrid Vieira, Karina Lopes, Luana Maria e Marta Lozano

Revisão
Gabriel Cohn

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

E52

Ensaios no real / Cezar Migliorin (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7920-040-3

1. Documentário (Cinema) - Brasil. I. Migliorin, Cezar.

10-3967. CDD: 791.430981


CDU: 791.222.2(81)

12.08.10 23.08.10 020953

[ 2010 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674 sala 605
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/fax 55_21_2259-7712

www.azougue.com.br
azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
5

Documentário recente brasileiro e a política das imagens


Cezar Migliorin
9

A representação da política no documentário brasileiro


Miguel Pereira
27

Deslocamentos subjetivos e reservas de mundo


Ivana Bentes
45

Indagações em torno de Eduardo Coutinho


e seu diálogo com a tradição moderna
Ismail Xavier
65

Cinema documentário e efeitos de real na arte


Andréa França
81

Perguntar (não) ofende


Anotações sobre a entrevista:
de Glauber Rocha ao documentário brasileiro recente
Stella Senra
97
6

A câmera lúcida
José Carlos Avellar
123

Na contramão do confessional:
O ensaísmo em Santiago, Jogo de cena e Pan-Cinema Permanente
Ilana Feldman
149

Ensaios de uma imagem só


André Brasil
169

Comum, ordinário, popular:


figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo
César Guimarães
181

A superfície do cotidiano
Uma aproximação a Acidente e Uma encruzilhada aprazível
Cláudia Mesquita
199
7

Cotidianos em performance:
Estamira encontra as mulheres de Jogo de Cena
Mariana Baltar
217

Bibliografia
235

Sobre os autores
247

Agradecimentos
253
8
9

Documentário recente brasileiro


e a política das imagens
Cezar Migliorin

O documentário contemporâneo é o nome de uma multiplicidade,


de algo indefinível, de uma imagem que é arte e que não é, que é afetada
e transforma o real, que é fundamentalmente aquela imagem que no
cinema se liberou de uma identidade. Se digo documentário não sei do
que falo, pelo menos não exatamente, mas ao mesmo tempo ele existe
e insiste, se transformando a cada filme. O que a princípio pode ser um
problema é, na verdade, o grande trunfo do documentário. Lembremos
de Agamben quando diz que o Estado – e eu pensaria nos poderes – não
sabe agir quando as reivindicações vêm de um lugar sem identidade, ou
melhor, os poderes sabem lidar com as reivindicações que partem de
um lugar definido. O lugar do documentário é esse lugar de indefinição,
inapreensível. Dito de outra maneira: todo poder sabe lidar com o que
ele sabe nomear. Todo poder sabe administrar as reivindicações daqueles
que ele pode reconhecer como sujeitos de direito, mesmo que seja para
dizer que eles não têm direito – ainda, agora, aqui. O documentário hoje
é o nome de uma liberdade no cinema. Seria tentador inventar outro
nome para essa entrada definitiva na indiscernibilidade desse cinema,
porque, convenhamos, o nome documentário não é lá grande coisa, tão
impregnado ele está de um regime de imagens em que a representação
era o único problema a ser considerado, o que certamente não é o caso
da produção contemporânea. O que não significa que o desafio de apre-
sentar o outro, de forjar encontros e pensamentos com o desconhecido
das vidas e das imagens não seja o que move o melhor desse cinema.

*
10

O documentário, urgentemente; esse poderia ser outro título para este


livro. Não é pouca coisa o que acontece no país quando identificamos
um grande interesse pelo documentário presente nas políticas públicas,
nas publicações, nos festivais, entre os jovens e nas múltiplas estéticas
que essa produção apresenta. Não é pouca coisa. Mais do que falar
sobre o documentário, esse interesse parece se pautar por uma atenção
a esses modos de estar no mundo e de inventar mundos e, ao mesmo
tempo, compartilhar essas invenções. O documentário não é o que diz
ou mostra o que existe, mas o que inventa a existência com o que existe.
“Retocar o real com o real”, como dizia Bresson.
Atravessa o documentário um interesse pelo humano. O que esse
homem comum faz, como aquela mulher ganha a vida, como conta seu
passado, como mobiliza a palavra e enfrenta os poderes, como exerce
o poder, como afirma sua inteligência, como ocupa os espaços, como
formula o futuro ou se livra do presente. O documentário que nos inte-
ressa é essa arte no humano. Mas, como arte, não lhe interessam apenas
suas possibilidades de apresentar ou escrever os sujeitos, mas também
suas capacidades produtivas.
A busca de uma maneira de abordar o mundo, de estar em contato
com outras vidas e outros espaços nunca esteve tão próxima de um proble-
ma estético, de uma reflexão sobre os modos de operar essa aproximação,
esses encontros entre cenas. Cena do realizador, cena do filmado, cena do
espectador, cada cena dialogando com múltiplas e heterogêneas forças.
Os artigos presentes neste livro são ações que enfatizam determinadas
vibrações ou apenas as mantêm em movimento. Na escrita e nas escolhas
dos filmes, na atenção que dedicam a este ou àquele gesto, a este ou àquele
filmado, vão delineando um universo de crenças no documentário e no
real, forjando, com os filmes, o mundo em que vivemos.
Ao reunirmos artigos com múltiplas abordagens do documentário
temos consciência da heterogeneidade deste livro; entretanto, essa aparente
fragmentação é fruto, acredito, do momento que vive o documentário
11

brasileiro. Filmes complexos que ensejam abordagens teóricas diver-


sas, todas atentas às suas condições de possibilidade e às escrituras ali
forjadas. Pensar é também operar por montagem, aproximar eventos,
fatos, fragmentos, imagens e sons, possibilidade de uma memória se
tornar um acontecimento. Assim, é o pensamento que se esboça em
um livro que reúne estudos apoiados em bases teóricas e abordagens
distintas. Entretanto, há um norte em todo o livro: trabalhamos com
filmes brasileiros recentes. Os textos, evidentemente, são autônomos,
escritos por ensaístas e pesquisadores diferentes, mas o contato entre
eles não é nada desprezível.
Nas próximas páginas o leitor poderá percorrer alguns dos mais
importantes conceitos inventados para se trabalhar com o documen-
tário contemporâneo; porque assim ele demanda, poderá acompanhar
algumas análises minuciosas e artigos mais amplos, imbuídos de um
esforço de síntese. Muitos dos mais importantes documentários brasi-
leiros aparecem neste livro: Jogo de cena (2008), de Eduardo Coutinho;
Estamira (2004), de Marcos Prado; Juízo (2008), de Maria Augusta
Ramos; Santiago (2006) e Entreatos (2004), de João Salles; Pancinema
permanente (2008) e Preto e branco (2004), de Carlos Nader; Man. Road.
River. (2004), de Marcelvs L.; Landscape theory (2003), de Roberto Bellini;
Do outro lado do rio (2004), de Lucas Bambozzi, Rua de mão dupla (2003),
de Cao Guimarães; A pessoa é para o que nasce (2003), de Roberto Berli-
ner; Vocação do poder (2005), de Eduardo Escorel e José Joffily; Utopia
e barbárie (2005), de Silvio Tendler; Acidente (2006), de Pablo Lobato
e Cao Guimarães; Encruzilhada aprazível (2007), de Ruy Vasconcelos,
entre outros.
Da mesma forma, esta introdução também opera por montagem.
Se aqui dedicarei algumas páginas para falar de capitalismo, modos de
subjetivação contemporâneos, formas de poder ou espetacularização
do eu, não é para chegar a conclusões fechadas sobre a atual fase do
documentário, mas por necessidade e intuição; é preciso aproximar
12

eventos que dizem sobre o real, os sujeitos em que o documentário está


interessado e os múltiplos modos de constituição de si no mundo con-
temporâneo. Sujeitos comuns, banais, eventualmente espetacularizados
em relação com os mais diversos poderes.
Arriscaria ainda: uma leitura atenta dos artigos que aqui coloca-
mos em contato torna possível um diagnóstico do mundo atual. Sem
esse contexto é impossível pensar o documentário contemporâneo,
parecem nos dizer, com frequência, estes pensadores. Esse contex-
to que fala de poder, mídia, Brasil, subjetividade e capitalismo está
constantemente atravessando os filmes. O documentário está colado
à política e, por isso, é aqui frequentemente pensado como operador
no real. Às vezes é preciso um olhar atento, delicado, para o cotidia-
no, pois ali se insinuam as diferenças, uma outra prática de consumo,
de relação com as imagens. Dizer, por exemplo, que o capitalismo é
essencialmente homogeneizador do desejo é ignorar a micropolítica
em que estão engajados os sujeitos nas suas relações cotidianas com
as imagens ou com o consumo. No cotidiano se esboça a imaginação
sobre si e sobre o outro.
Estar com o outro, tornar visível um modo de vida sem fazer
com que essa aproximação se confunda com um modo de gestão da
vida do outro, um modo de inventariar mais uma excentricidade, eis o
desafio do documentário. Como estar com esses outros sem que eles
sejam parte de uma unidade que religa suas singularidades de maneira
homogeneizante, em torno de linhas consensuais: o louco, o sábio, o
pobre talentoso etc. Nesse sentido, veremos como diversos filmes estão
atentos às vidas que escaparam à funcionalização. Não se trata apenas
da escolha dos personagens, mas de uma abordagem que se distancia
do idealismo ou do discurso acabado para estar com os corpos, com os
gestos, com as falas, em frequente deriva.
Jogo de cena é, provavelmente, o filme mais presente nestas páginas. O
filme de Eduardo Coutinho coloca ênfase na dimensão coletiva das falas,
13

algo que já vinha acontecendo em Edifício Master (2002), Santo forte (1999) ou
Babilônia 2000 (2000), mas que nesse filme ganha contornos comoventes.
O texto é dito por alguém, mas ao mesmo tempo que é dito faz a pessoa
desaparecer como indivíduo para ser uma ponte para a própria linguagem.
Uma enunciação sem propriedade. Eis a dimensão coletiva da linguagem,
uma luz que Coutinho lança sobre seus outros filmes recentes. A fala sai de
“um” e se torna “infinita”; do “um” ao “múltiplo” com um corte. Nesse
gesto, a fala não pertence a mais ninguém e, ao mesmo tempo, pertence
a todo mundo. É o que acontece quando percebemos que duas mulheres
contam a mesma história como o mesmo grau de envolvimento. Maneira
explícita de destruir as fronteiras entre o individual e o coletivo. E não sei
mais quem é Fernanda ou Andréa, Marília ou… A “prisão” de Coutinho
aqui ganhou asas e se liberou, nem por isso deixou de ser um dispositivo.
Eis uma das mais fortes dimensões políticas dessas imagens. Momento
em que o filme nos apresenta o que há de mais singular circulando de
maneira desregrada pela comunidade.
Mas não são apenas as falas e entrevistas que circulam. Depois de
abrir o século com a entrevista pautando o documentário brasileiro, o
silêncio é uma reação, como Cláudia Mesquita nos lembra em seu artigo.
Ao mesmo tempo, ao incorporar o encontro, operação fundamental
no cinema de Jean Rouch nos 1950, o documentário contemporâneo
com frequência duvidou dele também. Até que ponto o encontro não
é apenas um jogo, um conexionismo desprovido das tensões lentas e a
longo prazo? Quanto de desafio pessoal é o que move o encontro? No
lugar da presença do outro, da relação e da imaginação, inseparável do
estar junto, o encontro não pode se tornar apenas um desafio de perfor-
mance? Uma ansiedade em instaurar a transformação já com o filme. Eis
o risco, e mais uma tensão: que o documentário não se confunda com
o audiovisual que coloca o espectador no lugar daquele que julga se o
realizador e os filmados estão se saindo bem diante do risco do encontro,
mobilização fundamental dos reality shows.
14

Muitos dos mais relevantes filmes recentes, como sabemos,


foram fundados nessa disposição para o encontro. Acompanhamos
nos últimos anos uma série de dispositivos, entrevistas e invenções de
situações em que não havia uma roteirização possível, em que o docu-
mentário se colocava sob o “risco do real”, como escreveu Comolli.
Esse risco permitia marcar a diferença e a contraposição entre cena e
roteiro. Oposição construída por Comolli para que possamos pensar a
partir da presença ou não de um operador externo. Ou seja, a cena é
o lugar da negociação das representações em que os sujeitos operam,
enquanto o roteiro aparece como uma operação exterior às tensões
da cena, colocando o espectador não como um eventual personagem
ativo da cena, mas como um consumidor do quadro acabado. No ro-
teiro, o sujeito encontra seu papel já desenhado, sabe como deve atuar
para que a ordem narrativa funcione, enquanto a cena é política. O
sujeito na cena tem o seu papel a definir, ou seja, ele tem a definir sua
função na polis, a forma como sua palavra vai operar e transformar.
Ora, Comolli escreve, então, em Ver e poder: “O imperativo do ‘como
filmar’ (...) coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como
fazer o filme, mas como fazer para que haja filme.” O filme aqui não é
apenas uma sequência de imagens que tem uma determinada duração,
isso aparece quando se faz um filme, mas para que haja filme é preciso
que a cena se reconstitua, que o espectador seja transportado para a
instabilidade do encontro entre sujeitos políticos, operando na polis e
não apenas executando um roteiro que servirá para o consumo. Se a
copresença dos elementos que compõem uma cena não é necessária
e, pelo contrário, deve ser domada, é a cena que se torna inútil. Se a
imagem que me chega perdeu toda potência de contágio de outras
imagens e outros sujeitos, é a própria cena que tende ao desapareci-
mento. A retirada, neste caso, é da política mesmo.
O risco do real, trabalhado por Comolli para caracterizar o encon-
tro e largamente utilizado por nós, críticos e pesquisadores, não pode,
15

entretanto, se reduzir a um elogio ao conexionismo, como se qualquer


corpo a corpo com o real regido pelo acaso trouxesse a dimensão
desse risco do real. Da mesma maneira, antes do corpo a corpo, há
o risco das imagens. Também aí estão em jogo as indeterminações e
descontroles, o imprevisto e o improvável, ou seja, a potência aconte-
cimental. O documentário se faz sob o risco das imagens, com ou sem
roteiro ou dispositivos, sozinho ou com outros corpos; as imagens têm
a potência de se desdobrarem em mundos desconhecidos, irredutíveis
à programação.
Para o documentarista, um dos riscos dessa política dos encon-
tros reside no papel preponderante que o acaso assume na seleção dos
encontros no momento em que o realizador está de saída. A saída do
realizador, sua impossibilidade de enunciar de fora pode se configurar
como uma nova transcendência, a do acaso. No lugar da Voz de Deus, a
Voz do Acaso. A saída do realizador do filme se faz com tal intensidade
que o filme é tomado não mais por uma individuação coletiva, ou seja,
pela copresença criativa de vários sujeitos, mas pelo esvaziamento da
cena e das tensões a ela inerentes. Sem o filme, sobram o jogo e as
regras. Eis outro risco com que se depara um cinema político baseado
no encontro; conexionista. Ou seja, nem a entrevista/conversa, nem
o dispositivo, nem o filme de busca traziam em si qualquer garantia e,
além disso, serão vistos com desconfiança por aqueles que começam
a duvidar do próprio conexionismo como possibilidade política para
o documentário.
Coloca-se no problema do encontro a questão de até aonde ir, que
distância manter em relação ao outro, que garantias prever no dispositi-
vo. Volto a Coutinho e seu mais recente filme, Moscou (2009). Uma das
mais importantes formas de o documentário mobilizar o espectador é o
modo como ele compartilha a possibilidade de ele não se fazer, não se
realizar, de o encontro não se efetivar, de o dispositivo não funcionar, de
o personagem não “render” – triste expressão. Depois de vários filmes
16

em que o risco da própria existência do filme mobilizava o espectador,


mas em que algo se atualizava, a noção mesma de fabulação – tão uti-
lizada para pensarmos a obra de Coutinho – implica uma atualização;
uma organização da memória e dos eventos que inventam um mundo,
uma pessoa, inexistente até então. Em Moscou, a concentração parece
se deslocar de maneira incisiva para a individuação, para o coletivo,
para o que faz passagem entre as atualizações. A diferença é, antes de
tudo, uma vibração que ainda não tomou corpo. O que nos mobiliza
nos documentários fundados na fabulação, no desejo de fabulação, nos
acontecimentos de linguagem é a passagem entre atualidades que fazem
sentir a multiplicidade, ou seja, entre indivíduos que dão a ver as possibi-
lidades de criação que os ultrapassa. O outro se propagando no filme, o
outro se inventando com o filme e com a memória. Se na fabulação há a
passagem entre singularidades que se fazem coletivas na medida em que
se transformam como parte de um devir coletivo, entendo que em Moscou
há uma concentração no que ainda não achou a singularidade onde se
desdobrar. Pois Moscou, e não apenas, parece já ser um desdobramento
contemporâneo de uma prática que não para de se colocar à prova. Notas
Flanantes (2008), de Clarissa Campolina, Sábado à Noite (2007), de Ivo
Lopes, ou Encruzilhada aprazível (2007) de Ruy Vasconcelos, se juntam a
Moscou ao forçarem o limite, desconfiarem do dispositivo e mesmo do
encontro e praticamente evitarem que algo realmente se atualize. São
filmes que se colocam sob o risco da não-atualização, seja dos perso-
nagens, dos discursos ou de um espaço. O interesse do documentário
está em sustentar o “entre atualizações”, a individuação, a virtualidade,
aquilo que ainda não pertence a x ou a y, mas que vibra e está a ponto de
se atualizar. Nesses casos, filmes muito estranhos e curiosos, é como se
essa vibração fosse o filme todo, na carência de algo que se solidifique,
para o qual possamos tranquilamente apontar. São filmes que parecem
estar ainda na vibração, sem o encontro (ainda), como se tivéssemos
chegado cedo demais. Desde Rouch nos interessamos pelo documentário
17

fundado nessa atualização do ser. O sujeito, no filme, produz uma fala


até então desconhecida, constrói uma ideia, transforma sua memória,
inventa um corpo. Vemos e nos encantamos com filmados em vias de
desaparecimento, não como sujeitos, mas como identidades. Como se
a imagem fosse apenas um clarão fugidio de um ser que aparece e de-
saparece para que continuemos com tudo que está para além e aquém
dele. Eis o lugar em que o espectador se insere. No desequilíbrio e no
risco de nada se atualizar. Coutinho e Comolli se aproximam, Coutinho
na angústia de não saber se há filme enquanto filma – às vezes nem
enquanto monta. Comolli ao dizer que o problema é como fazer para
que haja filme. Ora, e se nada se atualizar, e se o real não deixar a sua
vibração e potência, e se não vier à superfície aquilo que se atualiza em
direção a mil mundos possíveis?
Seria essa suspensão radical, esses filmes silenciosos e dispersos,
uma reação à inflacionada presença do homem ordinário na imagem, na
televisão e no documentário? Homem ordinário esse que tão raramente
aparece fora dos polos que o colocam entre exemplo – Estamira (2004), de
Marcos Prado – ou puro grito, tão frequente no jornalismo. Ser exemplo
ou um grito é sempre uma construção exterior, uma fabricação discursiva
e estética; o papel do documentário é recolocar esses sujeitos na política,
o que não se faz sem escritura, sem tensão e dissenso – entre as próprias
imagens –, sem paciência de todas as partes. O exemplo e o grito (Rancière,
1995) são velhos conhecidos, a política é a diferença; o um qualquer que
pode aparecer de qualquer lugar e fazer diferença na polis. O personagem
exemplar deve atender às necessidades que não lhe pertencem, o persona-
gem que grita, que reclama, pode ter sua demanda aceita, como discurso,
mas se enquadra no próprio discurso que avisa que sua demanda não pode
ainda ser atendida. Nos dois casos, na excentricidade ou na nulidade, não
há comunidade possível, não há conexão, tensão. Pensar o outro como
singular é colocá-lo como presente na polis, alguém que não é exemplar,
mas faz diferença na comunidade, por vezes simplesmente porque nele
18

passa um mundo que não é igual sem ele – microesteticamente falando.


O singular não é o exemplar, nem o que sente diferente do outro ele é;
justamente o que faz vibrar – sem isolamento – um mundo na sua dife-
rença, eis o interesse da singularidade no cinema documentário.
Mas, como vimos, não podemos nos fiar em um elogio incondi-
cional do encontro e da conexão entre os múltiplos atores que fazem a
cena documental. Conectar, se colocar em relação com o outro, procurar
coimplicações, confrontações com o espaço coletivo; ação no lugar da
contemplação, a experiência para alargar o saber, os gestos, as atitudes,
os conhecimentos, dinamizar as criações e as conexões, possibilitando
a vivência de fenômenos inéditos, “o cineasta como conector”. Enfim,
são exemplos em que a crítica ao isolamento do artista, que enseja uma
territorialização do ser e do mundo, encontra, no elogio à proposição
contrária – conexão, “estar junto”, improviso, escuta e experiência
com a diferença –, os caminhos para um processo de individuação do
espectador e do documentarista que forjam um outro mundo sem isola-
mento. Entretanto, com sabemos, é o próprio lugar do capitalismo e de
diversos poderes contemporâneos que, ao estabelecer um lugar crítico
em relação à disciplina, passa a operar buscando a experiência e a co-
nexão. A experiência, a produção subjetiva, o elogio ao conexionismo
não estão separados de um paradoxo próprio às formas como a vida
e suas potências estéticas, conexionistas e afetivas interessam os mais
diversos poderes. Foi a própria expansão do capitalismo que demandou
uma ruptura com padrões de conduta normatizados. Como escreveu
Vladimir Safatle, com base em uma leitura de O anti-Édipo, de Deleuze e
Guattari, “o capitalismo não procura mais impor conteúdos normativos
privilegiados, mas socializar o desejo por meio de sua desterritorialização
violenta, da fragilização de seus próprios códigos, da flexibilização das
identidades que ele mesmo produz”.
Se efetivamente estamos em uma sociedade de controle que en-
seja transformações radicais na forma como a vida é demandada pelo
19

poderes, não apenas o corpo da disciplina ou a gestão da população


na biopolítica, mas uma liberação de potencialidades de invenção sub-
jetivas que gerará novos produtos e consumidores capazes de fazer,
inventar e reinventar o – e no – capitalismo hedonista, pós-disciplinar,
não-normatizador, decodificador dos fluxos sociais e subjetivos, seria
o próprio roteiro – essa mão invisível fora das tensões cotidianas e
subjetivas, como colocado por Comolli – que não operaria mais nos
destinos do capitalismo. Nossas vidas são demandas fora do roteiro, e
talvez não exista maior motivo de angústia do que a exigência de sair
do roteiro. Se há uma dicotomia entre a cena como o espaço do acon-
tecimento – esse encontro entre vários em que algo se produz – e o
roteiro como a ordem que carece de acontecimento, despotencializada,
não podemos simplesmente aderir a uma tomada de posição sem levar
em consideração que é próprio ao capitalismo contemporâneo uma
apropriação da invenção subjetiva individual e coletiva; aliás, mais do que
uma apropriação: o capitalismo contemporâneo é a atualização de uma
potência dos sujeitos e do capital. Potência de invenção (e captura) de
mundo sensível. “Uma produção que não se faz sem uma produção de
mundo que é o próprio acontecimento entre os sujeitos e seus processos
subjetivos e as forças do capitalismo. Uma empresa não cria um objeto
(mercadoria), mas o mundo onde o objeto existe”, escreve Lazzarato
ao discutir as “revoluções do capitalismo”. E nós completaríamos: esse
mundo é feito com a participação e o engajamento dos sujeitos, não
necessariamente privilegiados, pelo funcionamento do capitalismo. Eis
seu efeito simbólico. Lazzarato completa afirmando que na sociedade
de controle a questão é efetuar os mundos. Podemos dizer, assim, que
a guerra econômica do capitalismo é uma guerra sensível, uma disputa
que se dá na virtualidade, no acontecimento. É nessa disputa sem fora
que o documentário encontra e tensiona o capitalismo.
A luta é paradoxal e sem inimigos localizáveis. Toda percepção
foucaultiana de poder – em sua dimensão produtiva e micropolítica –
20

parece mais atual do que nunca. No momento em que as disputas se


dão no nível das produções subjetivadas, não mais por molde – “seja
isso ou aquilo” –, mas por modulação – “seja isso, mas invente algo”
–, o documentário é um projeto político e estético inserido no interior
desse paradoxo, já que interessado no outro, nas trocas, nas diferenças
e no desconhecido.
Em algum momento esse fluxo de produção subjetiva, de formas
de ser e habitar o mundo, deve ser interrompido pelo capital para que
ele possa ser funcionalizado. Fluxo e corte, velocidade e estagnação –
essas duplas andam juntas no capitalismo. Mas imaginar e inventar o
real é um meio sem fim, definição mesma da política (Agamben, 2002).
O documentário não opera interrompendo o fluxo, sua velocidade é
infinita e anacrônica. Em seu artigo, André França recoloca a sempre
necessária pergunta: por que fazer documentário? Certamente não há
uma resposta única, mas se o documentário insiste, urgentemente, é
porque o real está sendo inventado, com imaginação e ficção, porque
podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam
sem fazer diferença no mundo, porque os recortes do que é visível e do
que é dizível dependem da nossa força de imaginação e de invenção do
real. Porque diante da dor do outro não há retake.

Rouch – sempre ele – percebera pela antropologia algo de que o


cinema iria se apropriar de maneira indelével: a realidade é inseparável
da imaginação. Ficcionalizar e viver a realidade, sonhar e carregar sacos
no porto de Abidjan (Eu, um negro, 1958) são partes de uma mesma vida
que o documentário não pode negligenciar. “Fazendo de conta, ficamos
mais perto da realidade”, diz Rouch. Fazer de conta nos filmes de Rouch
não era apenas um agenciamento para fazer parecer verdadeiro o que era
falso, não se trata de encenar para o filme o que na vida acontece coti-
21

dianamente, mas de fazer da cena a possibilidade de um acontecimento,


fazer da encenação uma diferença com o já conhecido. Ficcionalizar já
é em si mudança, e não mimese realista, o que vemos com toda clareza
na mimese irônica do mundo inglês feita pelos Houka, em Gana, no
filme Os mestres loucos (1955). Uma prática renovada em documentários
recentes como o próprio Jogo de cena, mas também em Avenida Brasília
formosa (2009), de Gabriel Mascaro, no brilhante Aquele meu querido mês
de agosto (2008), do português Miguel Gomes, e na trilogia do também
português Pedro Costa, O quarto de Vanda (2000), Ossos (1997) e Juventude
em marcha (2006).
Uma das noções que permitem abordar essa relação reflexiva e
inventiva com o real no documentário contemporâneo é a de ensaio.
Estava claro que o documentário se distanciava de uma cientificidade e
de uma possibilidade de pura objetividade em relação ao seus objetos.
Estava claro que os realizadores se faziam presentes ao falarem na pri-
meira pessoa, ao forjarem montagens de imagens com encadeamentos
que passavam pelos desejos, histórias e contextos do filme e do reali-
zador. Entretanto, estava claro também que havia nesse lugar reflexivo
dos filmes um desejo de outro: outras instituições, outras vidas, outros
ritmos, sons e histórias – o teatro, o índio, o cotidiano de uma pequena
cidade . O ensaísta estranha e conecta, estranha e observa, estranha e
se interroga, sempre no limite do fracasso. André Brasil reflete sobre
essa forma ensaio com base em quatro vídeos que transitam entre o
documentário e o universo das artes. Em seu artigo, mais do que uma
análise das obras ou uma reflexão sobre a forma ensaio, o autor mimetiza
a característica que mais lhe interessa nas obras, um certo movimento do
pensamento que não cessa de se diferenciar de si mesmo. Utopia política
na imanência, como escreveram Deleuze e Guattari: “O pensamento
reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito.”
Nesse sentido, interessam-nos os filmes que não renunciam
a um desvendar da história e do outro, mas se propõem a fazê-lo de
22

maneira fluida, incerta, ficcional, esburacada. Seres sem limites claros,


sem palavras precisas, mas que precisam de palavras; sem imagens ou
espaços precisos, mas que se ensaiam com as imagens. Por vezes é com
atores que se chega nas invenções com o real, outras vezes na recepção
do acaso ou na insistência dos tempos. No artigo “A câmera lúcida”,
José Carlos Avellar escolhe dois filmes paradigmáticos dessa relação
entre fabulação das pessoas que viveram a história e atuação de atores
que, de maneiras distintas, nos dão a ver ainda outras formas de estar
no mundo, além daquela que interpretam, para depois fazê-los dialogar
com um filme de ficção, Mutum, de Sandra Kogut. O texto entra, assim,
no próprio processo dos filmes.
Adorno nos diz que “o ensaio não quer procurar o eterno no
transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório”.
E Comolli lembra que “o movimento do mundo não se interrompe para
que o documentarista possa lapidar seu sistema de escrita”. O homem
ordinário do documentário, por mais banal que seja, não está na rua, à
disposição de uma narrativa fechada e bem-acabada. O documentário
ensaístico se dispõe ao risco dos movimentos que são próprios às vidas.
Movimentos por vezes minimamente perceptíveis, fagulhas de desejo e
de tesão, vontades de vida presentes em um gesto, em uma fala confusa
– Andarilho (2006), Acidente (2006), As vilas volantes, O verbo contra o vento
(2005) Jogo de cena (2008), Do outro lado do rio (2004), Man. Road. River.
(2004). Eis a complexidade com a qual o ensaio se permite um contato.
Complexidade do pensamento que se aventura no sem-limite das
vidas. O complexo não demanda a profundidade, confusão que a busca
da objetividade e do pensamento dedutivo arraigou no pensamento com-
plexo. A profundidade frequentemente traz a limpeza que subtrai o ser.
A complexidade do ensaio é frequentemente de superfície, operando em
extensão, por montagem. A montagem: possibilidade de multiplicar e fazer
coexistirem velocidades e vetores antagônicos, a velocidade da queda livre
que leva Carapiru – Serras da Desordem (2006), de Andréa Tonacci, ao centro
23

do capitalismo que continua a demandar energias arcaicas, à velocidade


da flutuação de Carapiru entre línguas que ele desconhece e deriva no
consenso do “é bom”. Acordo e desacordo em uma mesma frase/gesto.
Disparidade de vetores: do indivíduo e suas profundezas, do índio para o
mundo e suas superfícies. A instabilidade dos enunciados do ensaio não se
faz em detrimento nem da profundidade, nem da extensão em superfície.
Nesses filmes e ensaios que aqui nos interessam, junto às vidas há
o próprio trabalho das imagens. São essas também que os documentários
põem a trabalho. Mas, quando é que as imagens param de trabalhar?
Primeiramente quando ela é tudo o que se pode ver ou dizer sobre um
evento, quando ela dá conta de todo dizível, quando ela não tem mais
nada a esconder e passa a operar em um tal nível de transparência que
nada resta – uma hipertransparência. Essa falta de trabalho aparece de
maneira premente nas imagens mais ligadas a um certo cinismo do capita-
lismo, aquele que não esconde mais seus objetivos outrora inconfessáveis.
Cinismo que aparece no cerne da democracia liberal contemporânea, em
que não há mais nada a ser desmascarado, mais nada a ser denunciado,
apenas um acordo consensual entre a lógica capitalista e o poder político.
As denúncias de corrupção e manipulação servem antes como forma
de exercer a falsa consciência esclarecida (Sloterdijk) da mídia. Como nos
lembram Deleuze e Guattari, “no capitalismo, tudo é racional, menos o
capital”. Racionalizar o capital é parte da operação mais cínica que envolve
as imagens. A publicidade incorporou sua crítica ou o voyeurismo das
emissões televisivas que visam a moldar os participantes, como o quadro
“Mudança geral”, apresentado no programa Fantástico, da Rede Globo,
em 2009. Nestes casos, a adequação absoluta entre o fim e os meios
elimina a imagem como trabalho que demanda o espectador, uma vez
que tudo o que há a sentir e dizer já está dito na imagem e na sua perfeita
adequação; mesmo que o fim seja perverso, nada precisa ser escondido.
A imagem para de trabalhar quando, por outro lado, não há
mais nada para ver. Quando ela não se liga mais com nada. Quando ela
24

é apenas uma aparição que perdeu o evento. Uma publicidade de um


carro que anda a 200 km por hora e que perdeu a poluição e o engarra-
famento da Linha Amarela. Uma mãe que perdeu o filho com a queda
de um barraco. Seu choro para as câmeras do jornalismo não apresenta
qualquer distância em relação ao clichê do que é o barraco cair com a
chuva, no Rio de Janeiro ou em Bangladesh. A imagem para de trabalhar
quando o grito não se liga com o contexto, só nessa abertura é possível
fazer diferença na polis. É só na possibilidade de o grito se conectar a
outras imagens e outros eventos que a imagem passa a existir.
A democracia liberal, a face administrativa do capitalismo con-
temporâneo, nos acostumou à universalidade dos direitos; entretanto,
dentro de seus princípios, a presença da voz e das reivindicações dos
excluídos e explorados aparece no momento em que estão organizados
e como minoria – numericamente falando –, uma minoria que deve
ter a paciência e a continuidade das lutas ininterruptas e lentas. Como
representações efetivas, são irrelevantes na polis. Pois no documentário
que nos interessa, quando se aproxima daquele que não tem uma parte
que faça diferença na polis, é de outra democracia que se trata: urgente
e estética, opõe resistência nas formas como ocupa e inventa o tempo
e o espaço. Imagens e sons operando resistências no nível mesmo da
linguagem, resistência às máquinas de apaziguamento político dos con-
flitos estéticos operadas, principalmente, pela grande mídia.
Compartilhar, urgentemente, um lugar para uma presença estética
de outra ordem, que arromba o dizível, que inventa sensíveis e faz o
pensamento não caber nele mesmo, eis o que nos parecem fazer as do-
bras das imagens – Juízo, Jogo de cena, a reencenação Serras da Desordem, e
circulação não individual do texto e da estética – Acidente, Jogo de cena –,
a atenção ao tempo e aos pequenos gestos do cotidiano – Encruzilhada
aprazível, Man. Road. River. –, as reflexões sobre o poder – Santiago. Nes-
sas invenções estéticas reside o documentário como força política que
não reivindica nem a indignação do espectador, nem a culpa, mas uma
25

participação com um trabalho que não se faz sem a inadequação entre


o narrado e a narração. Fazer as imagens trabalharem, ver duas vezes,
dobrar a imagem para que o texto, o evento não sejam mais a história
de um indivíduo, mas para que ela passe a ser compartilhada e engaje
múltiplas subjetividades em suas diferenças.
26
27

A representação da política
no documentário brasileiro
Miguel Pereira

Política é um termo de definição complexa. Cobre múltiplos


significados, dependendo do contexto em que é aplicado. No presente
texto, pretende dar conta do que podemos chamar de campo insti-
tucional da política. Não se trata do conceito de biopolítica utilizado
por Michel Foucault para se referir aos procedimentos do poder en-
quanto forma de sujeição dos indivíduos ou sujeitos, utilizados como
“máquina de produzir”. Partimos do pressuposto de que a política é
a arte e a técnica de um discurso sobre a organização da sociedade.
Estamos assim mais próximos do sentido original criado pelos gregos
relacionado à polis, isto é, ao espaço da convivência e da troca das
experiências humanas. Ao mesmo tempo, o lugar da organização dos
espaços públicos como ambientes comuns diretos ou indiretos, por
meio de representatividade ou outras formas de legitimação, onde se
movem todos os atores de uma sociedade. Também faz parte da política
o processo ritualístico e consensuado desses movimentos que podem
tomar feições múltiplas e diferenciadas de cultura para cultura. É neste
sentido provisório que vamos analisar três documentários brasileiros
recentes que tratam exatamente do movimento que constrói a ação
política e seu discurso sobre ela.
Entreatos, de João Moreira Salles, é um documentário lançado
em 2004 nos cinemas brasileiros, que narra os últimos 30 dias da
campanha política do então candidato à presidência Luiz Inácio Lula
da Silva. Vocação do poder, de Eduardo Escorel e José Joffily, é também
um documentário que acompanha seis candidatos a vereador, durante
o processo eleitoral, no município do Rio de Janeiro, em 2004. Utopia
28

e barbárie, de Silvio Tendler, recém-terminado, é um longa-metragem


com lançamento previsto para 2009. Seu tema é uma viagem à segunda
metade do século XX, focando episódios em que as utopias dos anos
1960 convivem com as barbáries das sociedades do período. Esses três
documentários têm em comum a política na sua conceituação mais
estrita, isto é, a conquista do poder.

Poder e representação fílmica


Michel Foucault fala do poder como algo que perpassa todos os
meandros da vida humana. Significa dizer, pelo menos para Foucault,
que a política faz parte do jogo da vida. Por outro lado, o discurso, aqui
entendido em sua acepção ao mesmo tempo ampla e difusa, é a moeda
central da dinâmica que sustenta o espaço onde se dão as negociações
políticas. Portanto, quer falemos de política no seu sentido estrito como
no amplo, uma gama enorme de possibilidades de abordagem desse tema
se apresenta para quem se propõe refletir, de um modo minimamente
sistemático, sobre esse campo da atividade humana. No caso presente,
interessa apenas a representação da política mediada pelo cinema, e, em
especial, pelo cinema documentário brasileiro recente.
No entanto, antes de chegarmos aos documentários, merece
um pequeno exame o conceito-chave de representação que aqui está
referido. Como o de política, também a questão da representação se
abre a inúmeras significações, a tal ponto que hoje já se fala da crise da
representação. Na tradição do termo, representação significa imagem
ou ideia. Portanto, intimamente ligada ao conhecimento, entendido com
“semelhança do objeto”. Esta tradição vem da filosofia tomista, para
a qual a representação deve “conter a semelhança da coisa”. Citando
Guilherme de Ockham, Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de filosofia,
faz uma espécie de minipercurso do conceito:
29

Guilherme de Ockham distinguia três significações fun-


damentais: Representar – dizia – tem vários sentidos. Em
primeiro lugar, entende-se por este termo aquilo por meio
de que se conhece algo e nesse sentido o conhecimento
é representativo, e representar significa ser aquilo por
meio de que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar,
entende-se por representar o fato de se conhecer alguma
coisa, conhecida a qual conhece-se outra coisa; e neste
sentido a imagem representa aquilo de que é imagem,
no ato da lembrança. Em terceiro lugar, entende-se por
representar causar o conhecimento, da maneira como
o objeto causa o conhecimento. No primeiro sentido, a
representação é a ideia no sentido mais geral; no segundo
sentido, é a imagem; no terceiro, é o próprio objeto. Estas
são, na realidade, todas as significações possíveis do termo:
o qual foi tornado novamente significativo pela noção car-
tesiana da ideia como “quadro” ou “imagem” da coisa; e
foi difundido sobretudo por Leibniz, que considerava toda
mônada como uma representação do universo.

Representar, portanto, não significa substituir ou igualar, mas de


algum modo fazer inteligível o objeto cuja realidade precede a repre-
sentação. Para Fernando Gil, “a representação testemunha uma eficácia
daquilo que é representado sobre o representante. Mas ela é igualmente
o produto da atividade construtiva do sujeito: mesmo a receptividade
da sensibilidade se acha submetida a regras”. Isto nos leva à questão da
objetividade do conhecimento, levantada por Kant, entre outros pen-
sadores. Diz Fernando Gil:
30

Para haver objetividade requer-se uma homogeneidade


entre o sujeito e o objeto, que apenas pode assentar sobre a
organização da representação pelo sujeito. Mas essa mesma
atividade construtiva ameaçará, por outra via, a objetivida-
de e a verdade da representação: como pretender, então,
que esta se refere ao objeto que supostamente descreve?

Essa pergunta nos conduz a inúmeros impasses a respeito da


representação. Portanto, não podemos pensar a imagem como um duplo
igual do mundo. Assemelha-se a ele, mas não é ele. A representação tem
assim um dado fundamental em sua natureza própria. Ela é do âmbito
do sujeito e ao mesmo tempo guarda semelhança com o objeto. Se o
que vemos na tela é uma representação, é óbvio que a sua construção é
o lugar de um sujeito, aquele que se coloca como observador e criador
dessas imagens. Temos assim uma operação complexa que começa com o
sujeito-realizador, a mediação de uma técnica e de uma equipe, composta
de outros sujeitos, em diferentes fases de elaboração, um objeto cons-
truído ou não para a câmera, e um outro sujeito, este o espectador, que
reconstrói todo o processo complexo com a sua capacidade intelectual
e emotiva. Significa dizer que o documentário como representação só
se realiza inteiramente ao nos colocarmos no ambiente de um processo
que só acontece com a projeção ou exibição da obra. Portanto, dentro
de uma fenomenologia ampla, complexa e sempre circunstanciada em
relação às diferentes experiências envolvidas nesse processo construtivo.
Bill Nichols caracteriza esses passos do mesmo fenômeno com
algumas modalidades de representação que ele classifica em expositiva, de
observação, interativa e reflexiva. Completa seu quadro estabelecendo o
lugar de cada ator envolvido nesse processo do realizador ou espectador,
passando pelos diversos sujeitos da representação. Assim, questões como
a ética, a política e a ideologia são campos necessariamente presentes
em qualquer forma de cinema documentário.
31

No caso específico dos filmes que vamos analisar, a esses dife-


rentes filtros acresce ainda o dos sujeitos-objetos dos filmes. São falas e
expressões únicas, individuais, dramatizadas ou espontâneas, que também
são construídas pelo poder das ideologias, tanto próprias de cada sujeito,
quanto expressas por algum tipo de consenso. Não são, porém, coletivas.
Este foi certamente um erro histórico de formas políticas que preten-
deram ser totalizantes. Não se trata de projetos. Política aqui entendida
é mesmo o poder. O que fazer com ele é exatamente o sentido dado ao
espaço ocupado pela política, onde o conceito de representação não se
reduz à imagem, mas assume a ideia da proporcionalidade, e, portanto,
a forma institucional de se realizar o processo democrático da cidadania.
Estamos assim diante de um emaranhado desafiador e de extrema
complexidade e inteligibilidade. É, portanto, um desafio buscar nos do-
cumentários o sentido da representação social que eles captam e jogar
sobre ele outras leituras também condicionadas por sujeitos distantes
do processo, isto é, aqueles, como eu, que se apropriam dessas repre-
sentações e a elas dão um sentido particular.

Vocação
Quando Eduardo Escorel e José Joffily decidiram investigar o que
motiva uma pessoa a optar pela carreira política, tinham saído de uma
outra experiência em que a pergunta era mais ou menos a mesma. O
chamado de Deus, filme anterior de ambos, focava jovens que decidiram
ser padres. Investigavam, portanto, a formação dos futuros sacerdotes
católicos, os chamados seminaristas. De certo modo, Vocação do poder
também focaliza a formação do político, embora não do ponto de vista
intelectual ou doutrinário. O que está em jogo neste filme é o processo
eleitoral e, em especial, a campanha eleitoral. O mesmo acontece com
Entreatos, filme de João Moreira Salles, que registra a fase final da cam-
panha de Lula à presidência da República, onde a construção do político
se expressa em sua maturidade e domínio da cena. Em pouquíssimos
32

momentos do filme a atitude do candidato é insegura ou titubeante. A


sua imagem é a de um sujeito que domina o espaço de sua ação com
extrema familiariedade, talvez por já ter vivido, como derrotado, outras
jornadas. A parte relativa à formação política de Lula está em outro
filme, Peões, de Eduardo Coutinho, onde as inseguranças pessoais são
evidenciadas em certas imagens repetidas na montagem realizada pelo
cineasta. Também Utopia e barbárie, de Silvio Tendler, fala da vocação
política, neste caso, uma vocação estendida a uma geopolítica mundial.
Assim, os três documentários têm a mesma questão como ponto de
partida: a política como vocação.
O filme de Eduardo Escorel e José Joffily selecionou seis candi-
datos a vereador do município do Rio de Janeiro a partir de critérios
que procuravam contemplar diversidade de representações partidárias,
diferentes áreas geográficas e sociais da cidade e que fossem estreantes
em eleições. A escolha recaiu sobre três na faixa etária dos 20 anos, dois
na de 30 e uma na de 40, uma mulher e cinco homens.
Segundo informações contidas no press release do filme, Antonio
Pedro Figueira de Mello era um empresário de 30 anos. Foi coordenador
de eventos da subprefeitura da Barra da Tijuca e diretor do Parque Na-
cional da Tijuca. Suas propostas para a Câmara de Vereadores incluíam
ações voltadas para a melhoria do turismo e da qualidade de vida dos
cariocas. Já Carlo Caiado, de 24 anos, começou a atuar na política como
assessor do deputado estadual Elder Dantas. De 2001 a 2004, atuou na
Subprefeitura da Barra da Tijuca, foi administrador regional do Recreio dos
Bandeirantes. Quando era candidato, Caiado estava concluindo o curso de
Administração de Empresas na PUC-Rio. André Luiz Filho, de 21 anos,
concorreu ao cargo de vereador pelo PMDB. Era o herdeiro político dos
pais, a deputada estadual Eliana Ribeiro e o deputado federal André Luiz,
que teve o seu mandato cassado depois de encerrada a edição final do
filme. André Luiz Filho estudava Direito na PUC-Rio. Márcia Teixeira, de
45 anos, era pastora do projeto Nova Vida, fundado junto com o marido,
33

Ezequiel Teixeira. Realizava trabalhos em várias comunidades do Rio de


Janeiro, especialmente, em Irajá. Na época da produção do filme, o projeto
tinha mais de 50 igrejas no Brasil, Portugal, Argentina e Estados Unidos.
MC Geléia, de 27 anos, compositor de rap e produtor musical. Fundou
o Instituto Cidadão Funkeiro, que objetiva a integração social através da
música. Morava em Anchieta e concorreu à vereança pelo Partido Verde.
Por fim, Felipe Santa Cruz, advogado e mestre em direito pela UFF, era
professor universitário. Na faculdade, foi presidente do Centro Acadêmico
de Direito e do Diretório Central dos Estudantes.
A descrição do material de imprensa traça um perfil sintético dos
candidatos à maneira como se apresentam nos programas eleitorais gra-
tuitos. à exceção da pastora Márcia, que já passava dos 40, todos eram
ainda muito jovens, mas tinham algum tipo de experiência com o espaço
público. Mesmo o mais novo, André Luiz Filho, tinha uma atuação política
compartilhada com os pais, profissionais da política, estando, portanto,
habituado com os rituais desse tipo de processo. O filme, no entanto, foi
construído a partir de um questionário online onde os candidatos interes-
sados em dele participar poderiam responder a 16 perguntas referentes
à sua orientação política, partidária e às condições da campanha. Este
primeiro questionário, que obteve cerca de 70 respostas, permitiu a iden-
tificação de possíveis personagens. Na etapa seguinte foram realizadas 30
entrevistas com câmera digital que, depois de analisadas, resultaram no
acompanhamento de 12 candidatos no início da campanha, durante os
meses de junho e julho de 2004. Desses 12, dois não quiseram continuar
no filme e outros quatro foram eliminados antes da gravação final. As
filmagens foram feitas durante 42 dias descontínuos. Como resultado,
foram gravadas mais de 89 horas, das quais restaram 110 minutos. É óbvio
que muitos filmes diferentes poderiam ser feitos.
Proporção bem maior foi o material gravado por João Moreira Sal-
les para Entreatos, mais de 240 horas. Diante desse monumental registro,
João se interessou apenas pelo que ele chamou de “cenas não públicas
34

de Lula. Lula nos carros, nos hotéis, nos aviões, nos camarins”, isto é,
“cenas mais reservadas”. João diz isso em off, logo no início do filme,
mas não explica com mais detalhes o porquê da escolha. Simplesmente
realiza o filme com este critério básico. Dos poucos discursos regis-
trados na versão final do filme está o que poderíamos chamar de a sua
“vocação da política”, logo no início do filme. É quando Lula fala para
representantes de mais de 25 sindicatos de Osasco e diz:

(...) tudo que eu sou não é fruto da minha inteligência, não.


É fruto da consciência política da classe trabalhadora bra-
sileira. Na medida em que vocês evoluíram politicamente,
na medida em que ficaram mais exigentes, tive o privilégio,
quem sabe a graça de Deus, de ter aparecido no sindicato
e virei o porta-voz de uma ansiedade que existia na classe
trabalhadora (Falas tiradas da banda de diálogos do filme).

Essa, sem dúvida, foi a formação política de Lula. Suas palavras,


no entanto, parecem revelar certa predestinação, certo messianismo. Uma
consciência de si como uma pessoa imbuída de uma missão. Não falo
da real intenção de Lula, pois só ele pode revelar esse desejo de forma
mais explícita. Mas não parece restar dúvida que esse é o pensamento
de João Moreira Salles quando seleciona esta fala de Lula logo no início
do seu filme. Isto é, Lula fala em nome de... Tem, portanto, um projeto
político que envolve o grupo que o fez, ou, em outras palavras, revela a
intenção de satisfazer a ansiedade de sua classe. Certamente essa possi-
bilidade passa pela chegada ao poder.
Vocação política é indiscutivelmente a de Silvio Tendler. Utopia
e barbárie é uma espécie de autobiografia espiritual do cineasta. Fala de
suas crenças, de sua trajetória, como uma espécie de viagem às ilusões
e desilusões experimentadas no decorrer do seu tempo existencial. Seu
ponto de vista parte do fora de si, isto é, dos acontecimentos históricos
35

que o marcaram, para se indagar enquanto um ser político que atua no


mundo para mudá-lo, ajudar a corrigir seus erros, para buscar soluções,
para educar e se educar. Esta dimensão pedagógica é absolutamente
intrínseca ao cinema de Silvio Tendler. Ele acredita no poder da política.
Explicita em cada detalhe de seu trabalho essa ansiedade de que fala Lula
em seu discurso para os sindicalistas de Osasco. Silvio atravessa as fron-
teiras geográficas e se liga num mundo em que ainda existem ideias a ser
elaboradas e processadas. Se o Vietnã de hoje está globalizado nas marcas
de produtos ocidentais, como mostra o filme, não significa que existe
uma capitulação ao sentido apenas hedonista da vida. As palavras finais
de Apolônio de Carvalho conduzem a um pensamento mais generoso
de um futuro que suplante a barbárie. Silvio Tendler é hoje o que sempre
foi: um crente na política como modo de transformação do hoje pelo
amanhã melhor, republicano. E nisso é didático em sua cinematografia
poderosa. Mas é um didático que elabora o conhecimento, que constrói
o saber, que articula os discursos dos outros para construir o seu, sempre
fundado na esperança de um mundo em mudança para melhor.

Espaço e tempo
Construções diferenciadas que privilegiam espaços e tempos
diversos. Se Entreatos focaliza um personagem que se desloca por inú-
meros espaços na dimensão do nacional, Vocação do poder se concentra
no município do Rio de Janeiro e registra a trajetória de seis persona-
gens, enquanto Utopia e barbárie tem como palco o mundo e grandes
personagens da história do século XX. Mas, os três filmes nos propõem
aquilo que Tomás Gutiérrez Alea define como “o outro em nós”. Na
verdade, os três buscam fora de si o sentido para o “acontecimento” ou
os “acontecimentos” que também estão em nós, ou, melhor dizendo,
que nos dizem respeito. Assim, da épica ao drama, a construção passa
pela emoção e pela razão. Citando Gutiérrez Alea na comparação que
faz entre Eisenstein e Brecht:
36

Se de um lado Eisenstein vai “da imagem ao sentimento


e do sentimento à ideia”, Brecht dá um passo a mais e
adverte-nos que embora o sentimento possa estimular a
razão, esta, por outro lado, purifica nossos sentimentos. Pa-
radoxalmente, Eisenstein, o mais apaixonado, conduz seu
trabalho investigativo para a lógica das emoções, ao passo
que Brecht, o mais frio aparentemente e em todo caso o
mais rigoroso, deixa-se vencer pela emoção da lógica.

Do mesmo modo que se pode dizer, ainda com Gutiérrez Alea,


que os dois momentos da relação espetáculo-espectador são de um lado
“o pathos, o êxtase, a alienação; e de outro lado o distanciamento, o reco-
nhecimento da realidade, a desalienação”, a relação do sujeito-realizador
com o seu objeto também passa por este mesmo processo. Isto é, espaço
e tempo do pensar e do viver perpassam a experiência que se traduz
na realização de um filme, em especial de um documentário em que as
negociações são, frequentemente, atravessadas por acasos, imprevistos,
descontroles, emoções, enfim, toda uma gama de experiências que hoje já
se tornaram, em muitos casos, matéria das narrativas. Quando as imagens
não conseguem explicar tudo, a voz em off entra para dar ao espectador
um recado organizador. Isso acontece com João Moreira Salles e Silvio
Tendler. Mas também os textos ajudam nessa forma de narrar, pois dão
ordem, estabelecem conexões, ajudam no raciocínio do espectador.
A lógica desse processo passa primeiro pelos realizadores. São de-
cisões muitas vezes consensuais, outras casuais, outras ainda ditadas pela
necessidade de um certo didatismo. Assim, os três filmes, de um modo
ou de outro, se utilizam de estratégias semelhantes, embora busquem
estilos próprios ao narrar e deixar-se narrar por seus personagens. O
espaço fica diluído entre o lugar do narrador-primeiro que se utiliza dos
procedimentos e estratégias inerentes ao aparato e o lugar do aprisionado
pela representação de si que nada pode fazer, a não ser ver o resultado
37

final. É curiosa, por exemplo, a fala de João Moreira Salles quando afirma,
em off, que Lula em nenhum momento pediu para exercer algum controle
sobre o filme. A observação faz sentido, pois talvez não existisse filme
caso o candidato fizesse essa exigência. Afinal, não se tratava de um filme
publicitário. Lula não era o cliente de João Moreira Salles.
Assim, os atores dessas representações estão em posições espa-
ciais diferentes e se encontram ou desencontram em tempos iguais. A
variável tempo não muda. Foi o que foi no primeiro tempo e é o que
é nos tempos seguintes. Encurta apenas em função da narração. Mas é
sempre presente, toda vez que a obra é exposta. Atravessa todos os es-
paços mapeados pelas imagens dos fatos ou dos objetos e a imaginação,
sentimento e razão dos sujeitos últimos, ou seja, dos espectadores. O
documentário exerce um poder de ambiguidade talvez maior que a ficção,
pois sua construção é reconstruída infinitas vezes. É quase sempre uma
obra em aberto, mesmo que conduzida pela mão firme de seu autor.
Entreatos, visto hoje, depois da crise vivida pelo governo Lula,
da sua aparente superação e da sua significativa popularidade, adquire
o sentido de uma história de fadas. Nem parece um filme político. É a
história de uma vitória que impactou o país e o mundo, pois Lula teve
uma estrondosa votação e vem construindo a figura de um lider mun-
dial reconhecido. Um capital de grande poder simbólico que resiste a
muitos estragos que ainda poderão aparecer. A opção de João Moreira
Salles por se fixar nas cenas menos públicas do candidato revelou-se
um instrumento eficaz de observação da atitude humana, dando ao
documentário um sentido em que o político não se separa do pessoal,
comprovando, portanto, o que Foucault chama de biopolítica. Além
disso, seu filme atravessa as conjunturas e revela um personagem vi-
torioso, determinado, condutor de sua cena, autônomo. Mesmo em
conversas ao pé do ouvido, a imagem que o filme constrói de Lula é de
uma pessoa que escolhe da gravata ao tipo de vida que deseja. Trata-se
de um personagem que parece realizado. Concretizou o sonho. Fez
38

da política a sua realização pessoal legítima. Mas, diferentemente dos


personagens do filme Vocação do poder, Lula ainda está embalado por
um sonho utópico. Essa parece ser a crença do filme de João Moreira
Salles. Lula torna-se o símbolo de uma nação “imaginada”, para usar a
feliz expressão de Benedict Anderson. Neste particular, Entreatos tem
mais pontos de contato com Utopia e barbárie do que com Vocação do
poder. O que os aproxima é essa visão da possibilidade, ou da utopia,
para usar o sentido que lhe dá Apolônio de Carvalho numa das suas
eloquentes falas no filme de Silvio Tendler. Aliás, a expressão de feli-
cidade estampada no rosto de Lula é muito assemelhada à do veterano
militante que não perdeu o encanto pela vida, que já está bem perto
do seu fim. Apolônio morreria pouco depois da entrevista que deu a
Silvio Tendler.
Já os personagens de Vocação do poder repetem uma tradição que
teima em persistir na vida social brasileira. Do assistencialismo à imagem
pública projetada pela mídia, a política é feita com os mais elementares
princípios de um país ainda atado pelo obscurantismo de suas elites.
Acrescenta-se a isso o pragmatismo de uma ação voltada para essa ima-
gem construída pela expressão de um processo de esquecimento histó-
rico. Não existem propostas além da carreira de cada um. Há uma certa
dose de aventura inconsistente. Os dois vitoriosos estão articulados com
máquinas muito expressivas. Uma religiosa e outra assistencialista. Um
terceiro cuja votação foi bem superior à candidata da facção religiosa era
também assistencialista. A pastora Márcia ganhou a eleição pela legenda.
Mas, de qualquer modo, surge aí um novo fenômeno na política brasileira.
O fundamentalismo religioso assumindo uma proposta de poder que
não tem limites. A própria candidata fala da presidência da República
como uma aspiração, segundo a vontade de Deus. Ora, esse novo político
nada tem de novo. Apenas a idade, pois repete as mesmas práticas que
há séculos são de uso corrente na política brasileira. Do clientelismo ao
patrimonialismo, passando pelo populismo e o assistencialismo, agora
39

associados ao fundamentalismo religioso, Vocação do poder nos dá certo


desalento em relação ao que se espera da política em nosso país. Ao
mesmo tempo, as expectativas de mudança real parecem desencantar
a muitos com os problemas que surgiram a partir de sucessivas crises
do governo.
Por outro lado, a barbárie está em todos os cantos do mundo. Do
Iraque ao Rio de Janeiro, passando por Paris, Londres, Moscou e Nova
York, o mundo “civilizado” está longe da civilização. Será que valeria
a pena um retorno ao tempo dos projetos e dos sonhos coletivos? Há
ainda alguma esperança na vida política do planeta?
Esse parece ser o mote do filme de Silvio Tendler. Se de um lado
mostra as frustrações dos sonhos acalentados por gerações formadas
pelo desastre da Segunda Guerra Mundial e pela Revolução Russa de
1917, por outro se abre para a busca de alternativas que suplantem
os conflitos mais próximos de cada sujeito e ator da vida social. Um
exemplo de possíveis alternativas está no teatro de integração racial e
religiosa testemunhado em Israel e Palestina por personagens do filme
de Silvio Tendler. Tempos e espaços vividos por jovens que buscam
saídas para a convivência entre os diferentes. Ao contrário do início
do filme, que mostra o cinismo com que o presidente Truman anuncia
a vitória americana depois de lançar a bomba atômica sobre Hiroshi-
ma e Nagasaki, o seu final nos dá um certo alento por registrar ações
concretas de solidariedade e sociabilidade positiva entre israelenses e
palestinos. Não estamos mais diante das dualidades simplistas e re-
dutoras de um mundo polarizado, mas em complexos emaranhados
de redes que subsistem aos controles finos ou agressivos do selvagem
mundo capitalista. Ao argumento de Truman, que diz que “usamos a
bomba para aliviar a agonia da guerra. Para salvar milhares de jovens
americanos. Gastamos mais de dois bilhões de dólares na maior aposta
científica da história. E vencemos!”, Silvio contrapõe a fala de Eduardo
Galeano, que diz:
40

Por mais feitos que estejamos, não estamos terminados.


E se não estamos terminados, podemos nos refazer,
fazer-nos de novo, nos fazermos de outra maneira para
que o mundo seja uma casa de todos, e não um campo de
concentração para a maioria de seus habitantes. E para que
sejamos capazes de recuperar a visão do outro, do próximo,
deste que passa pela rua. Deste homem ou mulher que
não conhecemos e que anda por aí. E deixarmos de vê-lo
como ameaça e passarmos a vê-lo como uma promessa.

A distância entre as duas falas, uma no início e outra no final


do filme, abrem e fecham um ciclo da nossa história que Edgar Morin
sintetiza com precisão: “Vivemos a incerteza do futuro”, depois de
passarmos pelas crises da modernidade com suas crenças na ciência,
no progresso, na razão, na democracia. De certo modo, vivemos um
tempo caracterizado pelo provisório, pela contínua mutação da ciência,
da técnica, dos vírus, dos afetos e dos próprios seres humanos que se
imaginam num espaço de fantasia ilimitada e potente. Estaria, então, o
poder na natureza de cada um de nós e nos caberia, pois, civilizarmo-
nos? Tendo ou não essa crença, como tantas outras que existem por aí, o
filme de Silvio Tendler afirma o poder como algo que saiu do âmbito dos
poderosos que faliram em suas ambições para o espaço dos indivíduos
e suas capacidades de sobrevivência. Voltando ao início do filme, esse
lugar é ocupado pela descrição da senhora Matsugawa, uma japonesa
sobrevivente de Hiroshima que presenciou a cena de uma jovem mãe
carregando o bebê nos braços e pedindo água para ele sem perceber que
tinha no colo apenas o seu corpo sem a cabeça. Esse desespero cego é
o outro lado da mesma moeda. Sabemos que a barbárie está também
em nós. Silvio nos convida a nos percebermos como humanos e não
como os seres descartáveis que a violência é capaz de produzir em nós.
Os horrores continuam em múltiplas instâncias do cotidiano de todos
41

os lugares. Assim, o discurso de Silvio Tendler, proferido em seu nome


próprio, mesmo que apropriando-se do dos outros, assume o espaço
intervalar que Dziga Vertov teorizou em seus escritos sobre o cinema mi-
litante da Revolução Russa. É uma visão do global e não apenas do local.
Essa intuição que percebe o pequeno no grande e o grande no pequeno
nos joga nas fendas da vida e nos aproxima com uma nova potência do
poder, aquele que se expressa pelo organismo vivo que todos somos.

Intervalo
Como dizia Dziga Vertov, o intervalo não é apenas um espaço entre
uma coisa e outra. Na imagem do cineasta russo, é uma casa de doze
paredes, tomadas em diferentes partes do mundo, formando uma “sala
de intervalos” que não tem existência real, senão através do filme e de
sua montagem. Isto é, tudo se toca, num movimento contínuo. Dizia ele:

A matéria prima da arte do movimento não é de maneira


alguma o movimento em si mesmo, mas os intervalos,
a passagem de um movimento para outro. São eles (os
intervalos) que levam a ação até a solução cinética. A orga-
nização do movimento é a organização desses elementos,
quer dizer, dos intervalos em frases. Em cada frase há
um ponto de partida, um apogeu e uma queda (que se
manifestam em um grau mais ou menos elevado). A obra
se constrói com frases da mesma maneira que cada frase
se constrói com intervalos de movimento. Ao conhecer
com precisão o cine-poema ou o fragmento, o kinok deve
saber inscrevê-lo de maneira exata para poder dar-lhe vida
na tela, em condições técnicas favoráveis.

Não importa se estes três filmes fazem parte de um só movimen-


to ou não. Certamente, são poemas diferentes que têm em comum o
42

desejo da política ou, melhor dizendo, o desejo do poder. Mas, acima


de tudo, esses três filmes são construídos também por seus intervalos.
Não se trata simplesmente de uma interrupção do movimento, mas, de
fato, de sua continuidade. Um discurso entra no outro como se fizessem
parte de um único filme. Embora os estilos e formas cinematográficas
sejam diversos, o ritmo sociopolítico aparece nesses pontos de ligação
ocupados pelas montagens que tematizam as diferenças. Assim, do
pragmatismo contemporâneo às relações com um mundo ainda sonhado
do abrandamento das diferenças sociais, os três filmes encontram esse
lugar construído pelos intervalos da reflexão sobre a política como vo-
cação e como ação da mudança possível. De qualquer modo, cabe-nos
perguntar se o movimento é uma dessas paredes, para usar a imagem
de Vertov, que são construídas nos intervalos da globalização, fazendo-
nos crer que o mundo ainda pode ser reconstruído de um modo mais
humano e fraterno.
43
44
45

Deslocamentos subjetivos
e reservas de mundo
Ivana Bentes

Morrinho. Uma maquete de 300m2 na favela do Pereirão, no Rio


de Janeiro, reproduz, a céu aberto, numa construção impressionante feita
de barro, tijolos pintados, material reciclado, fiação, um duplo miniatu-
rizado da própria favela. Caos-construção de casas, ruas, miniaturas de
carros, postes, objetos, num conjunto impressionante. Uma maquete-
miniatura-gigante, e mais: “vivendo” nela, uma população de moradores
e visitantes, bonecos feitos de blocos de Lego que se movimentam pela
mão de seus criadores.
Além da arquitetura impressionante, a vida da favela é recriada,
resignificada pelos brinquedos em miniatura, carrinhos, caveirão-Lego,
moto-táxi-Lego, contador-de-história Lego (mestre Renato), moleque-
Lego, dona-de-casa-Lego, uma escola de samba inteira em Lego,
traficante-Lego, policial-Lego, e ainda Lego-artista, Lego-Saci-Pererê,
miniaturas de dinossauros de banca de jornal, enfim: um mundo-am-
biente que não reproduz simplesmente o estado das coisas, mas é pleno
de virtualidades, saído da mais pura e primeira brincadeira de crianças,
brincada por Nelcirlan Souza de Oliveira desde 1998, quando tinha 14
anos, no quintal de casa.
A brincadeira juntou mais sete garotos que passaram a dar vida
à micro-comunidade que nascia no quintal da casa de Nelcirlan, uma
brincadeira tão intensa que se tornou a vida mesmo dos meninos, cada
um assumindo diferentes personagens/bonecos Legos, com vozes,
estilos, atitudes singulares, numa deriva sem fim.
A maquete do Morrinho virou atração turística no Pereirão
(apareceu no Faustão, viajou para Alemanha, Áustria etc.), e talvez se
46

tornasse só mais uma curiosidade turística (ao lado das esculturas de


areia na praia, ou turismo de “experiência” na Rocinha) se o projeto
não tivesse evoluído para a TV Morrinho, produção de micro-filmes
em que os próprios garotos passaram a documentar as histórias, brin-
cadeiras e dramas dos seus bonecos Lego na comunidade.1 Depois da
TV Morrinho, veio a Ong Morrinho e dentro dela o projeto Morrinho
Exposição, Morrinho Social etc.
O fascínio pela maquete/cenário, brincadeira-arte, documentário
das vidas/ficções dos bonecos Lego e seus criadores levaram o projeto,
em 2006, a participar da 52a. Bienal de Veneza. A favela-maquete trans-
plantada e remontada nos jardins da Bienal, na Itália.
Tudo isso impressiona quem conhece o projeto, mas a questão
que interessa aqui e que queremos pontuar passa pela transmutação
ou fusão da vida em linguagem. Como a brincadeira dos meninos da
favela, aquilo que era o não-valor, o tempo ocioso, o entre-escola, o
intervalo entre os pequenos trabalhos e ocupações, se tornou valor,
estética, trabalho-vivo, mobilizando a vida de cada um como um todo.
Essa transmutação da vida em linguagem, um ponto de reviravolta
nas suas trajetórias, se dá a partir do momento em que as fabulações
experimentadas no quintal de casa, em que cada um assume um per-
sonagem Lego e lhe injeta tempo, subjetividade, vozes, gestos, passam
a ser registradas/ficcionadas pelos próprios meninos, resultando em
micro-filmes surpreendentes,2 ficções-documentais ou documentários
das fabulações.

1 “No ano de 2001, em uma visita à comunidade para a realização de um documentário sobre a
maquete, os diretores Fábio Gavião, Marco Oliveira e Francisco Franca convidaram os garotos
para participar do trabalho de captação de imagens.” Fonte: www.tvmorrinho.com
2 A Piscina do Peri. O que acontece quando Peri constrói uma piscina e tem Dicró como vizinho?;
Fico assim sem você. Videoclipe da versão remix da música “Fico assim sem você”, com interpretação
de Adriana Calcanhotto, inspirado em Romeu e Julieta, de Shakespeare. Baile Funk. Baile funk na
maquete do morrinho e na vida área. Acadêmicos do Morrinho parte 1 e 2 MC. Maiquinho, convicto
cantor de funk, tem um grande desafio: cantar na escola de samba Acadêmicos do Morrinho; “A
Revolta dos Bonecos”. Bonecos-Lego iniciam uma revolta no Morrinho, na tentativa de viajar
para a Bienal de Veneza acompanhados de seus autores. Fonte: www.morrinho.com
47

Os vídeos de poucos minutos da TV Morrinho, todos realizados


dentro da favela-maquete (Saci no Morrinho, A piscina do Perri, Acadêmicos
do Morrinho I e II; A revolta dos bonecos) dissolvem a fronteira entre do-
cumentário/ficção, funcionando como autoetnografia, fabulação do
cotidiano, ficcionalização do real, jogo/existência.
A estética desses microfilmes nos interessa como ponto de partida
de um mapeamento e análise, apenas esboçado e inicial, dos documen-
tários produzidos fora do ambiente corporativo (dos “profissionais”)
vindos das periferias, produzidos por amadores, por não-profissionais,
por jovens das escolas livres de cinema e audiovisual, por todo um pre-
cariado urbano, em oficinas que se multiplicam em todo o país.
Questões que não são exatamente novas, basta olhar para a história
do cinema, o fascínio diante da banalidade/singularidade cotidiana no
chamado cinema das origens: a vida nas ruas, os transeuntes e curiosos
e suas reações diante da câmera, multidões entretidas pelas vitrines,
flanando, ou absortas pelo trabalho como nas descrições de Benjamin
e Baudelaire. Ou ainda a cidade “fábrica de fatos” de Vertov, e a massa/
sujeito da história de Eisenstein, o cinema verdade e cinema direto, as
inquietações de Jean Rouch diante do outro, os personagens sem qua-
lidades de Godard, até chegar a algumas questões do moderno cinema
brasileiro e ao contexto contemporâneo.
Momentos e problemas distintos nos quais não iremos nos deter
aqui invocando apenas algumas inquietações recorrentes: a fragilidade
conceitual da busca e afirmação das “identidades sociais” e a insuficiência
das teorias das representações sociais para dar conta das singularidades
das vidas-linguagens.
Não se trata aqui, pois, de fetichizar a produção desses outros
sujeitos do discurso, relacionados aos territórios da pobreza, nichos e
guetos (e que muitas vezes reproduzem os mesmos clichês e estéticas
dominantes). Não se trata também de carimbar essas produções com
qualquer tipo de selo de “autenticidade” ou de autoridade, discurso
48

de afirmação de identidades e legitimação de grupos que incorrem no


mesmo erro “essencialista” da busca de identidades prontas, mais ou
menos valorizadas nas bolsas da cultura e que podem simplesmente
produzir novos “clichês” e discursos de verdade.
O que surpreende nesses microfilmes da TV Morrinho é uma
restituição e transfiguração do “comum”, não simplesmente o “estado
das coisas” e a banalidade cotidiana, no seu lirismo e/ou brutalidade,
ou a encenação dos discursos midiáticos que contaminam o cinema
brasileiro contemporâneo com filmes que muitas vezes são réplicas-
maquetes do “senso comum”, duplicações de matrizes sociais gastas e
despotencializadas.
Se os filmes da TV Morrinho também trazem alguns discursos
prontos (e certa infantilidade desconcertante), são de tal forma atraves-
sados pelas vidas-linguagens que se expressam ali que vemos emergir
qualidades novas, singularidades capazes de potencializar a pobreza dos
discursos, a pobreza dos cenários e da realidade, tornados exuberantes
na sua fantástica miniaturização, capazes de fazer aparecer a riqueza da
pobreza, uma bios tornada estética e linguagem, que transborda e fere
de morte os próprios clichês que porventura se instalem ali.
A questão interessa para tentarmos abordar e pensar essa produ-
ção audiovisual “fora do lugar”, vinda de outros territórios e sujeitos
que traz consigo um potencial político-estético ou, poderíamos arriscar,
capazes de constituir uma bioestética, que poderíamos tentar definir por
uma pergunta: Quais as possibilidades estéticas que essas vidas encerram? Ou,
simplesmente, quais as potências e devires dessas existências?
Pois o que surpreende nesses vídeos e filmes vindos de um “fora”,
não simplesmente das favelas e de seus personagens, mas da favela-
maquete que documenta e ficciona a vida, é a capacidade de produção
de valores estéticos, estilos, modulações subjetivas, produção do sensível,
de espaços nos quais se desenvolvem relações, lutas e produções de
poder (biopolíticas).
49

A força desses microfilmes está na tensão que instituem entre esse


cenário/maquete, colorido, vital, brutal e as vidas-Lego (bonecos que
se movimentam pelas mãos dos meninos, com as suas mãos visíveis e
vozes que vem do extracampo. O que surpreende é essa vida-estética,
essa bios-linguagem que nasce daí, no confronto entre diferentes dispo-
sitivos: a favela-maquete, os personagens-Lego e as vozes, mãos, gestos
dos meninos que fabulam a própria vida.
A primeira vez que vi esses doc.fábulas, sua singularidade e ambi-
guidade me mobilizaram. Por encontrar uma certa falta de medidas, um
incomensurável dessa vida-linguagem expressa pelos micro-documen-
tários fabulados. Em Saci no Morrinho, de 2007 (realizado para o canal
Nickelodeon)3, o Lego de Mestre Renato conta a história de um descon-
certante Saci Pererê, deslocado para a favela do Morrinho. Um saci sinistro,
com voz cavernosa e cheio de gírias e malandragens, capaz de assustar e
dar uma surra completa em um morador do Morrinho que rouba doce
de crianças. A infância e a infantilidade dos contos e histórias vão sendo
coladas, fundidas com os personagens cotidianos do morro/morrinho.
O vídeo começa com uma criança cantarolando pela favela quan-
do é abordada por um garoto mais velho (“Aí menor, me dá teu doce,
perdeu! Me dá teu doce se não vai levar uns cascudos”) e acaba com
uma surra do saci-justiceiro, que ajusta condutas. Folclore brasileiro e
folclore urbano se contaminam, fundem, em fábulas amorais e histórias
atravessadas pelas imagens do mundo, do cinema e da mídia, como
a história da invasão do Morrinho por dinossauros, ao som de vozes
estridentes, urros, gritos e confusão.
Esse misto de jogos infantis e brincadeiras naïfs atravessadas de
crueldade e violência nos gestos, vozes que animam os cenários, objetos,
personagens, faz surgir nesses vídeos uma vida que transborda o “estado
das coisas”, os clichês sobre a favela, a violência, o tráfico.

3 Saci no Morrinho, de Nelcirlan Souza, José Carlos (Junior), Rodrigo de Maceda.


Animação. Livre. Rio de Janeiro/RJ, 2006. 4m.
50

Não se informa nada ali. O registro da fabulação dos narradores


(os donos das vozes dos bonecos), em filmagens feitas pelos próprios
garotos da TV Morrinho incorporadas na brincadeira (a câmera faz parte
do jogo), colocam uma série de tensões em cena.
Em A revolta dos bonecos, de 2008, da TV Morrinho e Ong Morri-
nho, essas tensões entre real e ficção chegam a um nível sofisticado de
metalinguagem, quando os bonecos-Lego descobrem que os meninos
que lhe dão voz vão viajar para a Bienal de Veneza sem levá-los. Iniciam
uma revolta no Morrinho/maquete, na tentativa de viajar para a Itália
acompanhando seus criadores.
No meio da encenação de um tiroteio na maquete, com caveirão,
BOPE, tiroteios, confusão, ameaças, os bonecos se revoltam e param a
cena ao saber que os meninos vão viajar para o exterior sem eles. Param a
cena para questionar os estatuto deles de “bonecos/trabalhadores” versus
o mundo dos artistas/criadores, o trabalho vivo dos autores das histórias
e o trabalho morto dos bonecos que “ficam aqui comendo farinha” en-
quanto os meninos viajam. Os bonecos ameaçam com protesto e greve,
esvaziam o cenário, criando uma vazio de vida, êxodo e deserção (evadir-
se, estratégia biopolítica, esvaziar os lugares de poder): “Se eu não for
pra Veneza nós vamos parar, o morrinho vai falir, vai dar caô, colocar na
internet e no You Tube, a porrada vai comer adoidada se a gente não for”.
Os meninos aparecem inteiros na imagem, entram na história
dos Legos e resolvem reconsiderar. Os bonecos Lego “originais” vão
para Veneza, e não apenas as suas réplicas novinhas e sem “história”.
A cena final: a alegria dos bonecos com malas nas mãos e nas costas,
atravessando uma ruela de maquete. No meio de todo os artifícios e
brincadeiras cruzam um caminho de formigas reais, saúvas e Legos se
cruzam, signos dessas vidas alheias/alheadas, a vida dos objetos, a vida
das imagens, que se tornam pulsativas e pulsantes, se tornam verdadei-
ramente documentários de uma outra categoria, justamente quando
atravessadas pela ficção.
51

A produção da TV Morrinho (bruta, direta) coloca em cena as


questões que vamos encontrar em muitos documentários e produções
realizadas fora dos ambientes profissionais. São os jogos de linguagem,
paixões, afetos, formas de conceber e experimentar fabulações coletivas,
outras organizações do sensível e do espaço-tempo. Muitos dessas pro-
duções trazem uma ausência de explicações, ausência de referências que
nos coloca diante de uma outra forma de pensar o político. Mais do que
conhecer as razões que produzem tal ou tal vida, “o confronto direto entre
uma vida e o que ela pode” (como coloca Jacques Rancière a propósito dos
filmes de Pedro Costa e em especial na sua análise de O quarto de Vanda).
Nesses filmes de “quintal”, realizados no território real (o quintal
de casa, literalmente), ou nessas “reservas de mundo”, que se tornaram os
territórios da pobreza, nichos e guetos, esses lugares, pelas mais diversas
razões, não podem ser pensados apenas como o signo mais visível do
colapso social, da crise do Estado e da crise da própria racionalidade e
planejamento urbanos.
Muito menos podem ser reduzidos à doxa dos “espaços partidos”,
com “ilhas” de riqueza e funcionalidade de um lado e territórios “apar-
tados”, como se fosse possível isolar partes do tecido urbano em guetos
incomunicáveis. Essas reservas de mundo, esses territórios heterogêneos,
são lugares de produção do sensível, de espaços e tempos, de formas
que ultrapassam em muito o debate sobre os “temas”, informações e
personagens dos documentários.
Em meio a crises diversas, esses territórios são percebidos como
laboratórios de subjetivação, laboratórios de uma outra experiência de
cidade que funciona paralelamente, em parceria ou mesmo contra o
Estado, funcionando na tensão entre uma nova produção cultural, entre
“economias substitutas” auto-organizadas e o estado de exceção a que
são submetidos (como as favelas e guetos globais).
O “quintal” de casa pode ser literal, mas também os computadores
pessoais, as lan houses, o quarto de dormir ou as nuvens de dados na internet,
52

tornados laboratórios, salas de “estar” e ateliê. Pois é preciso criar/contar


com essas reservas de mundo, mais talvez que uma Second Life.
Insisto nas questões de lugar, habitação, estar, porque muitos do-
cumentários feitos nesses regimes não-profissionais extraem sua estética
dessas relações entre arte, trabalho e os arranjos/disposição do espaço
social. Citando longamente Rancière, quando, ao discutir a “partilha do
sensível”, escreve sobre essa configuração do sensível:

(…) a arte não é política pelas mensagens que ela transmite


nem pela maneira como representa as estruturas sociais,
os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou
sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira
como configura um sensorium espaço-temporal que deter-
mina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro,
face a ou no meio de. Ela é política enquanto recorta um
determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto
os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo
que ela confere a esse tempo determinam uma forma de
experiência específica, em conformidade ou em ruptura
com outras: uma forma específica de visibilidade, uma
modificação das relações entre formas sensíveis e regimes
de significação, velocidades específicas, mas também e an-
tes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque
a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou
uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico
de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os
objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os su-
jeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política,
ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta
e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela
53

determina interferem com o recorte dos espaços e dos


tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público,
das competências e das incompetências que definem uma
comunidade política.

A inclusão subjetiva
A questão trazida por Rancière se aplica aos documentários e
ficções realizados pelos novos sujeitos do discurso, quando ele insiste
que “o que falta aos proletários não é a consciência da condição de-
les, mas a possibilidade de mudar o ser sensível que está ligado a essa
condição”.4 No momento em que a cidade é pensada como a “nova
fábrica”, como propõe Antonio Negri, ou ainda como laboratório
experimental do capitalismo cognitivo, podemos dizer que a cultura
urbana está na gênese da própria ideia dessa “multidão” produtiva,
formada por singularidades que não podem mais ser representadas
de forma tradicional e que começam a atuar de forma comum ou em
projetos e ações partilhadas.
A cultura urbana hoje passa a ser entendida como produção de
riqueza e a cidade; as metrópoles estariam para a multidão como a fábrica
estava para os operários, o laboratório a céu aberto dessas bioestéticas. A
difusão da produtividade e da criação de valor se desloca para o campo
das relações sociais, dos fluxos e trocas. A cidade se informatiza, assim
como a produção e o trabalho. A cultura urbana torna-se uma das bases
do capital que busca extrair valor das redes espalhadas pela cidade: redes
de cultura, redes de saber, redes de afetividade e sociabilidade.
Mais quais as condições de possibilidade para que as redes de cul-
tura urbana se apropriem e dinamizem o território urbano? “Não existe
inclusão sem inclusão subjetiva”. Essa proposição do projeto Reperiferia

4 RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Tradução: Mônica Costa Netto.Transcrição da apresen-


tação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em
debate (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005).
54

de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro,5 pode se articular com a questão que


estávamos enunciando até aqui: a transformação do sensível, as reservas
de mundo carregadas de estéticas potenciais, vidas-linguagens.
É que não existe “inclusão” ou partilha sem a posse das linguagens,
o último muro ou barreira para uma partilha do sensível. Tão importante
quanto o acesso à infraestrutura tecnológica, o acesso às redes: sistemas
de informação e comunicação que permitam a comunicação barata,
autônoma e colaborativa, gerando um aumento da produtividade social
por computadores, softwares, câmeras digitais, internet livre, ambientes
coletivos para se “estar junto”.
Mais que tecnologias de comunicação, estas são as condições de
funcionamento de novos processos sociais e criação de capital social,
aumentando a “intelectualidade de massa” e a produtividade social em
todos os níveis. Mas o que seria essa sustentabilidade e inclusão subjetiva,
que é tão importante quanto a existência de infraestrutura tecnológica
instalada, seja low tech, seja high tech? Muitos aspectos dessa sustentabilidade
“imaterial”, simbólica, são tão ou mais importantes que as questões bem
materiais e concretas da necessidade de tecnologias instaladas no corpo
da cidade, de forma pública e gratuita.

A posse da linguagem
Nesse contexto das redes e cultura urbanas, podemos destacar a
diversidade das linguagens e sua incorporação como elemento determi-
nante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens
urbanas a produção audiovisual e a música estão presentes na produção
cultural, educacional, estética, contemporânea, de forma ampla.
A maioria dos grupos culturais urbanos no Brasil não trabalha
com uma linguagem exclusiva. Diferentes linguagens são mobilizadas
na sua produção, mas todos reconhecem uma dimensão decisiva hoje
5 Citado por Marcus Faustini, coordenador do projeto Reperiferia no evento Onda Cidadã,
promovido pelo Itaú Cultural no Circo Voador, Rio de Janeiro, novembro de 2007, onde par-
ticipamos coordenando o grupo de audiovisual.
55

na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual, e a


necessidade de “posse” dessas linguagens e de sua potência, assim como
a posse e a desconstrução das linguagens do poder.
De fato, o desejo difuso é experimentar todas as linguagens,
compartilhar a emoção, a inteligência, disputar com a cultura de massa,
potencializar e empoderar os discursos, tomar posse dos processos, criar
linguagens, estilo, valor.
Também é interessante pensar as culturas urbanas como experiên-
cias radicais de educação não-formal, em que a experiência audiovisual
(entre outras) aparece como conhecimento lúdico, posse da linguagem
como porta de entrada privilegiada para essa inclusão subjetiva e para
o trabalho vivo.
Destituindo a oposição entre letrado/oral, popular/erudito, tec-
nológico/artesanal, a cultura urbana vai incorporando as mais distintas
estéticas, utilizando desde o mais experimental até as linguagens que já
circulam na cultura de massas. As estratégias são múltiplas para essa
apropriação das linguagens.
Uma dinâmica recorrente na constituição de grupos, coletivos,
projetos de cultura urbana é começar com as referências existentes
dos jovens, sejam quais forem. Um posição bem distinta da formação
clássica, que trabalha com um repertório de referência pré-constituido.
Uma jovem da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, por
exemplo, quer produzir clipes para as músicas evangélicas e religiosas da
sua igreja; um menino quer aprender a fazer filmes de ação tipo James
Bond, o professor não vai dissuadi-los dos seus projetos e motivações,
mas vai lhes apresentar novas referências. Já no projeto “coletores
de imagens”6 são os registros do cotidiano, da vida, de cada um que
serão analisados nas aulas. Parte-se do cotidiano, da vida, para pensar
uma estética ou linguagem expandida para outros campos, repertórios
e referências.

6 Experiências relatadas por Marcos Faustini, criador da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu.
56

Um garoto traz as imagens em vídeo das irmãzinhas tomando


banho em nudez inocente, no projeto TV Lata, da Bahia, o mediador/
professor, Joselito Crispim, tem que perguntar se o garoto acha mesmo
que pode mostrar as irmãs para qualquer um ver. O garoto recua, melhor
não expor as irmãs à curiosidade de desconhecidos. Ética das imagens
que nasce do fazer, sentir, perceber. Imagens que vamos reencontrar
muitas vezes à deriva, fragmentadas, desconectadas, jogadas ao acaso
das apropriações no esgoto público das imagens. Found footage e remix
que são a base de uma cultura do excedente, das sobras, do excesso de
referências e suas potências.
A questão, em muitas dessas propostas, é a partir do concreto se
chegar ao conceito, à ética (nunca pensados como abstração, norma,
transcendência), chegar à própria história do cinema e da videoarte. Partir
dos códigos do melodrama ou da novela para reconfigurar o sensível.
Partir do sabido, do consumo, para trazer outras referências. Como na
história, roteirizada, de um garoto que quer incorporar o nome, a marca
Nike, no seu sobrenome, e tatuá-lo na pele, relata Luciana Bezerra do
núcleo de cinema Nós do Morro.
A proposta do grupo de audiovisual do Nós do Morro é justa-
mente partir do estado das coisas, mas sair do gueto subjetivo, sair da
exigência e do discurso que cria um “nicho” de consumo para os filmes/
vídeos produzidos ou vindos dessa produção periférica. Nem sempre
conseguem, mas sair do gueto tem esse outro sentido, abandonar o
lugar que lhes deram, sair desse lugar inclusive conceitual que responde
a conceitos problemáticos (subalternidade, marginalidade, excluídos,
periferia, que vão se constituindo, inclusive, como novos clichês teóricos).
Conhecido inicialmente pelo trabalho no teatro, o Grupo Nós
do Morro (Rio de Janeiro) vem realizando experiências no audiovisual
desde 1996, com alguns resultados expressivos, como Picolé, Pintinho e
Pipa, de Gustavo Melo e roteiro de André Santinho (2006). São ficções
atravessadas por uma experiência documental, de um frescor que vem
57

dos corpos, gestos, falas, locais de filmagem. A favela, aqui o morro do


Vidigal, com suas ladeiras e esquinas de frente para o mar, surge nas sua
espacialidade-temporalidade outra, o tempo de uma kombi de troca-troca
anunciar pelas ruelas que troca sucata, garrafa vazia, bacia e panela velha,
garrafão de vinho, etc. por picolé, pintinhos vivos e pipa. O anúncio pelo
alto-falante provoca uma agitação, aceleração, precipitação das crianças
pelas ruas, lixeiras, estoques familiares de bugigangas.
O tempo se acelera e precipita os pequenos dramas e impasses,
diante da promessa de trocar lixo/sucata por objetos do desejo. A re-
invenção da infância e da criança, a reinvenção da ideia de juventude, em
muitos desses curtas, desenha essa outra sociabilidade, outras temporali-
dades: aquele tempo que escorre de horas jogado num sofá diante da TV,
comendo “besteiras” ou dormindo, mas também um tempo distendido
de brincadeiras fabuladas e inventadas pelas ruas, o tempo “ocioso” das
crianças que ainda não estão submetidas a uma produtividade standard.
O “tempo” – não seria esse hoje o maior luxo dos pobres ou de
quem ainda não entrou de vez na disciplina da produção? Essa experiên-
cia do sensível será mais ou menos explorada nesses curtas cujos atores,
em sua grande maioria, são integrantes do Nós do Morro. O roteiro, de
autoria de Gustavo Melo e André Santinho, foi premiado num concurso
do ministério da Cultura, que financiou a sua produção, no ano de 2006.
O que mostra a entrada e disputa desses grupos no mercado cultural.
Em outros curtas do Nós do Morro, Mina de Fé (2004), de Luciana
Bezerra, ou Neguinho e Kika, de Luciano Vidigal, também encontramos
uma ficção atravessada pela deriva documental. Pode-se perceber uma
tentativa de escavar o real, passando dos estereótipos e objetividade, a
“mulher de bandido” em Mina de Fé ou “o garoto que quer sair do tráfi-
co”, em Neguinho e Kika, para as questões subjetivas, a dobra afetiva que
cria outra relação com o que vemos e ouvimos: são questões prosaicas
que emergem do olhar de uma menina/adolescente, namorada do chefe
do tráfico local que engravida dele. O que já seria problemático (gravidez
58

precoce, a instabilidade do namoro entre adolescentes, a disputa entre


mulheres pelo homem de poder do pedaço) se intensifica pela experiência
que se tem que viver tudo isso num tempo hiperacelerado, em alguns
poucos meses ou anos. Antes do próximo tiroteio, antes da próxima
morte, antes da viuvez, fuga, abandono.
Mais uma questão de temporalidade, não mais distendida, mais
acelerada e precipitada. Aceleração do tempo, a vida curta, as decisões
precoces também são questões no curta Neguinho e Kika, de Luciano
Vidigal, também circunscrito nesse mundo de crianças/adolescentes
crescidos, deslocados em decisões e dramas que se precipitam sobre
sua adolescência.
O que surge como novidade nesses filmes é a emergência de um
espaço-tempo outro, relações de vizinhança, afetividade, alianças pro-
visórias, comunidades improvisadas, em que a violência e o afeto são
experimentadas de formas muito diversas.
Em O campim (2006), documentário da ClanDestino Filmes com
apoio do Nós do Morro, filmado por dois moradores do Morro da Grotta
– Jéferson de Oliveira (Don) e Eduardo Dornelles, no complexo das favelas
do Alemão, no Rio – a experiência de um sensorium espaço-temporal que,
nos termos de Rancière, “determina maneiras do estar junto ou separado,
fora ou dentro, face a ou no meio de” ganha uma expressão singular. Algo
muito prosaico, criar um campinho de futebol na vizinhança, a partir de
um terreno usado como depósito de lixo, cemitério de gatos e cachorros,
faz emergir um “comum”, uma experiência poderosa de organização do
tempo de “lazer”, das relações sociais e da vida.
A comunidade em torno do campinho de terra vai emergindo,
com questões difíceis da autogestão, as dificuldades e conflitos com
os vizinhos, lideranças, em torno de um espaço de 28 metros por 9
metros que reconfigura parte da vida social dos moradores em seu
entorno. A afetividade em torno de um projeto comum que deriva
em organização e partilha, criação de um mundo de colaboração, mas
59

também pequenas rivalidades e ressentimentos. A bola que quebra


uma torneira da vizinha, a dificuldade de manter o campo cercado, a
emergência de liderança e reinvindicações em torno de um território
mágico, o “campim” da favela que surge como mundo cheio de virtu-
alidades, riqueza da pobreza.
O documentário acompanha, durante um ano e meio, o cotidiano
de moradores que utilizam o “campim” ou são afetados por ele. O dire-
tor se apropria da linguagem dos DJs e VJs, editando e manipulando as
imagens para apresentar os seus personagens, mas também adentrado
a favela em planos-sequência em que o tempo escorre, continuo.
O uso do plano-sequência como forma recorrente de filmagem
pelos becos e ruas das favelas é uma constante em muitos desses filmes
(Picolé, Pintinho e Pipa, Neguinho e Kika, Mina de Fé, 7 minutos, de Cavi
Borges, e muitos outros).
Penetrar o “real”, rasgar o sensorium espaço-temporal, descrever,
monitorar, varrer os dados, são muitas e diferentes funções dessa câmera
que entra pelas favelas nos trazendo a sensação de um acontecimento
que se desdobra ao vivo diante de nós, diante da câmera, numa perfor-
mance irrepetível em que o território percorrido é “visado”, monitorado,
perscrutado de forma violenta, nesses planos-sequência que nada têm
de contemplativos, e em que a câmera se comporta como mira-olho,
varrendo o território.
A ambiguidade de algumas proposições, oficinas e experiências em
audiovisual na escolas livres, oficinas, curso de cinema, com a inclusão da
formação audiovisual no currículo das escolas de ensino básico, sempre
foi, ao meu ver, se configurar uma “educação para pobres”, em que se
restringem as linguagens e experiências a certos repertórios.
Algumas propostas começam a questionar essa educação para
pobres e incorporam linguagens e estéticas outras: vindas de jogos
eletrônicos, moda, publicidade, cinema experimental, videoarte, não se
restringindo a uma produção “documental”, no sentido mais clássico.
60

Pois é a posse (mesmo que para a deserção e abandono) dessas linguagens


que qualificam os grupos a disputarem os discursos contemporâneos.
Para muitos grupos (que trabalham com jovens das periferias) o
ponto de partida nesse trabalho de educação/ocupação/formação de
jovens é um certo confinamento nas políticas de identidades fixas, guetos
subjetivos que afirmam uma nova “essencialidade” ou excepcionalidade
desses grupos. Apesar de serem propostas legítimas politicamente, é
preciso perguntar como criar um “pertencimento” social (uma reserva
de mundo ou de “reconhecimento”), criar uma “comunidade” subje-
tiva, um comum, uma inserção pelo compartilhamento de linguagens,
estéticas, modos de ser/estar no mundo, sem anular as singularidades.
Essas estratégicas são ainda ambíguas, mas apontam para essa
passagem de objetos a sujeitos do discurso, uma mobilidade social que
significa não apenas se movimentar pelos códigos, linguagens, estéticas
do poder, mas produzir linguagens, estéticas, valores outros e afirmá-
los na cultura urbana contemporânea. Essa é a radical mudança nas
produções vindas das periferias ou das escolas livres de audiovisual, a
disputa pelo sensível, junto com a sua “partilha” que pode produzir
tanto acontecimentos quanto clichês.
Nesse sentido apontamos a insuficiência do discurso teórico que
analisa essa produção e a legitima simplesmente enquanto fato socioló-
gico, representação social, “aumento de autoestima”, “pertencimento”,
tomada do discurso, etc. Uma celebração do pobrestar/popstar, uma
nova figura de centralidade que pode operar criando um novo “gênero”
ou nicho cinematográfico.
Hoje esse tipo de proposição explodiu no Brasil, educação não-
formal audiovisual, com metodologias, tempo de duração e objetivos
os mais distintos. Além dos grupos já citados, inúmeros festivais de
cinema aderiram a essas propostas. Uma referência são as Oficinas da
Kinoforum, realizadas desde 2001 dentro do Festival Internacional de
Curtas-Metragens de São Paulo, com seu acervo e resultados publicados
61

na web.7 Desde 2001, 751 alunos produziram, dirigiram e fotografaram,


sempre a partir de seus próprios argumentos, 174 curtas digitais. Outros
festivais, especificamente voltados para essa produção, surgiram, como
o Visões Periféricas e o Festival de Cinema da CUFA, no Rio, o Fórum
de Experiências Populares em Audiovisual (FEPA), reunindo diferentes
iniciativas em nível nacional, cineclubes nas favelas, como o Cineclube
da Maré etc., parcerias entre esses grupos e as universidades (parceria
do Curso de Comunicação da CUFA com a Escola de Comunicação da
UFRJ), parcerias com empresas privadas, com o Estado, etc. Um mapa
a ser desenhado e uma produção que ainda não está “legitimada” como
parte de um corpus a ser analisado esteticamente.
Ao mesmo tempo, com a proliferação da cultura urbana vinda das
periferias é preciso problematizar o discurso assistencialista e paternalista
que se apresenta como “salvador” ou “messiânico” ou de “tutela” desses
movimentos, que surgem rompendo com velhos discursos sobre a pobreza.
É a preocupação do grupo Nós do Morro de sair do discurso paternalista
dos projetos que têm como missão ou objetivo “tirar jovens do tráfico”,
“tirar jovens da rua”. O discurso é outro, para empoderar esses jovens,
lhes restituir autonomia, criar novas condições de uma inclusão subjetiva
ou uma “intrusão social”, a aposta é a apropriação tecnológica e simbólica,
tudo o que produza um aumento de potência/autonomia/autogestão.
“Não nos coloque no gueto”, “não nos reduza a produzir uma ‘estética
da periferia’”. Ou, ainda, “não nos reduza a uma pobreza folclórica”, é
uma das questões recorrentes da cultura urbana periférica, um segundo
momento, de saída do discurso da “identidade” e do “gueto”.

Outros Circuitos
Na TV Ovo, do Rio Grande do Sul, a formação de jovens através
do audiovisual tem como objetivo formar e multiplicar formadores,
passar da formação para a produção e exibição e criar um circuito novo.

7 http://www.kinooikos.com
62

Por exemplo, a TV Ovo no Ônibus, que produz curtas para serem


vistos dentro de ônibus comuns que recebem um aparelho de televisão.
O ônibus vira um espaço de exibição. Passageiros passam da sua parada
original para acabar de ver o vídeo no Bus TV. Ainda na criação de cir-
cuitos, temos a TV Minuto. Debates relâmpagos no trânsito são feitos
enquanto o sinal fecha, com um banquinho de plástico e uma pauta.
Paródia dos debates de TV em que não se discute nada. A correria e a
preocupação com o sinal que vai abrir ou fechar já bastam para “entreter”.
Em relação a novos circuitos, o Filmagens Periféricas tem como
um dos projetos do grupo, depois das oficinas de vídeo na cidade de
Tiradentes-SP, a exibição do material produzido no MIS, no CCBB, locais
que muitos moradores de Tiradentes, periferia paulista, não tem acesso,
não sabem o que é. Surge então o “Cinema de Periferia” com a ideia de
colocar todos os vídeos realizados pelo Filmagem Periférica em uma
fita ou DVD e distribuir nas locadoras de Tiradentes.
Com o apoio do Programa de Valorização das Iniciativas Culturais
do Município de São Paulo, o Filmagem Periférica conseguiu produzir,
em 2003, 120 cópias com 13 curtas-metragens, que foram distribuídas
nas sete locadoras do bairro e podem ser retiradas gratuitamente quando
o cliente aluga algum filme comum.
O que essas propostas têm em comum? A horizontalidade das
redes, a tendência a abolir a rigidez de hierarquias e burocracias. Essa
cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, mídia, vídeo, moeda,
educação) surge como um discurso político “fora de lugar” (não vem da
universidade, não vem do Estado, não vem da mídia, não vem de partido
político) e coloca em cena esses outros mediadores e produtores de cul-
tura, todo um precariado emergente de rappers, funkeiros, b-boys, jovens
atores, performers, favelados, desempregados, subempregados, produtores
da chamada economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos
que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena
cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma
63

muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso po-


lítico urgente e de renovação num capitalismo da informação.
Essas redes culturais locais se constituem em contrastes com
as políticas públicas organizadas do centro, super hierarquizadas, cen-
tralizadas e que não resolveram ou reduziram a um nível desejável as
desigualdades sociais. Hoje nós temos uma oportunidade histórica de
experimentar outros modelos de políticas publicas, ainda embrionários,
redes socioculturais que funcionam justamente de forma horizontal,
acentrada, rizomática, organizando a própria produção.
64
65

Indagações em torno de Eduardo Coutinho


e seu diálogo com a tradição moderna1
Ismail Xavier

No documentário contemporâneo, temos visto uma variedade de


caminhos na construção da “personagem”. Esta é entendida dentro de
um largo espectro, pois pode ser um sujeito presente ao longo de um
filme que nele se concentra – como é o caso de Sandro em Ônibus 174
(2002), de José Padilha e Felipe Lacerda, ou de Nelson Freire no filme
Nelson Freire (2003), de João Moreira Salles, ou de Paulinho da Viola em
Paulinho da Viola – meu tempo é hoje (2003), de Izabel Jaguaribe; ou pode
ser uma pessoa entrevistada (ou que conversa com o cineasta), antes
desconhecida, cuja presença na tela é mais efêmera, às vezes reduzida
a uma única cena. Dependendo do método e dos materiais mobiliza-
dos pelo cineasta, nem tudo o que se mostra de uma personagem se
reduz a entrevistas. Estas são formas particulares do sujeito entrar em
cena, compor a sua imagem, atuar; mas ele pode também ser filmado
“em ação”, em pleno exercício de uma atividade que o caracteriza na
sociedade ou fazendo outra coisa qualquer. Pode também ser objeto de

1 Nota do Autor: Este texto foi publicado no Catálogo da Mostra “Eduardo Coutinho: cinema do
encontro”, organizada por Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva no CCBB, São Paulo, em outubro
de 2003. Naquele momento, eu estava lançando o livro O olhar e a cena: Hollywood, melodrama,
Cinema Novo, Nelson Rodrigues, pela CosacNaify, que focaliza as relações entre cinema e teatro,
e encontrei no cinema de Coutinho um notável experimento para a reflexão pelo que já se via até
Edifício Máster. Sua forma de compor o ritual da entrevista ensejou esta análise do seu depurado
jogo de cena. Mais tarde, ele decidiu desdobrar este jogo, fazê-lo exibir a sua própria lógica no
espaço de um teatro, com a arquitetura típica, o que foi feito em Jogo de cena (2007). Se antes o
espaço da conversa era a casa do(a) entrevistado(a), agora um grupo de mulheres subia efetiva-
mente a um palco para encontrar o cineasta e o olhar da câmera, sentadas e dando as costas para
uma platéia vazia, pois os espectadores éramos nós do lado de cá da tela. No espaço do teatro,
houve a mistura feita de entrevistas com pessoas que seguiam a regra usual, ou seja, o falar de si,
e entrevistas envolvendo atrizes (super conhecidas ou desconhecidas) cuja regra era seguir, em
primeira instância, um script, transcrição de depoimento de uma outra pessoa que, por sua vez,
66

outros relatos, quando nos é dada uma imagem indireta, mediada por
outros discursos. É o que acontece com Paulinho da Viola, mas não
propriamente no filme Nelson Freire, onde se evita o discurso crítico,
o depoimento de fãs, tudo o que redundaria em comentário explícito
sobre a personalidade do músico. Por sua vez, Sandro é construído
como uma personagem clássica no relato de Ônibus 174, numa mon-
tagem paralela que alterna a cena decisiva, definidora de um destino,
com o retrospecto construído pelo “mosaico de depoimentos”. Não
temos, porém, a sua entrevista, a menos que se tome o que ele diz
quando se assoma para fora da janela do ônibus como uma espécie
de coletiva de imprensa, no calor da hora e segundo a sua estratégia.
De qualquer modo, nestes três casos há um contexto para as situações
de entrevista; e esta tem função variável, notadamente em Ônibus 174,
pois nem todos os entrevistados são personagens no mesmo sentido.
Tudo muda conforme a posição de cada um no jogo e conforme sua
relação com o “assunto” (protagonista, observador teórico, porta-voz
da “opinião pública”, testemunha-fonte de dados) – há uma hierarquia,
como nos filmes de ficção que, por sua vez, não excluem entrevistas,
depoimentos, desde Cidadão Kane.
O que me interessa aqui é o caso extremo em que a entrevista
(ou a conversa, como prefere Coutinho) é a forma dramática exclusiva,
e a presença das personagens não está acoplada a um antes e depois,
nem a uma interação continuada com outras figuras de seu entorno.

teria ou não entrado em cena ao longo do filme, incluindo-se as situações de acoplagem direta
entre seu depoimento e o das atrizes. Montou-se um jogo de espelhos que convidou à decifração
de suas regras e do estatuto de suas falas. No caminho, o filme nos fez testemunhar a atitude
das atrizes e sua eventual passagem ao confessional pelo abandono do script e pela conversa em
que tomaram a palavra, assumindo a enunciação, o dizer “eu”, em outra chave. A partir desse
jogo de espelhos e de identidades trocadas, Coutinho criou o laboratório em que o efeito-câmera
torna mais radical sua sempre ambígua teatralização de gestos e falas, de modo a tornar tudo
mais instável quando se pensa a relação entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado,
para usar um jargão talvez fora de moda, mas que configura bem o problema. Em entrevista a
Felipe Bragança, que organizou o livro Encontros/Eduardo Coutinho (Azougue, 2008), Coutinho
comenta o seu diálogo com este meu artigo na gestação de Jogo de cena.
67

Aí se define uma identidade radical entre construção de personagem


e conversa, outros recursos sendo descartados, como é o caso do pró-
prio Coutinho. No centro do seu método está a fala de alguém sobre
sua própria experiência, alguém escolhido porque se espera que não se
prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social. O que se
quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, nar-
rar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa.
Tudo o que da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera,
da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do
aparato cinematográfico.
O documentário de Coutinho, como forma dramática, se faz
desse enfrentamento entre sujeito e cineasta observados pelo apara-
to, situação em que se espera que a postura afirmativa, a empatia e o
engajamento na situação superem as forças reativas, travos de várias
ordens. Dentro de diferentes tons e estilos, cada conversa se dá dentro
daquela moldura que produz a mistura de espontaneidade e de teatro,
de autenticidade e de exibicionismo, de um fazer-se imagem e ser
verdadeiro, dualidade que está bem resumida na fala de Alessandra,
a garota de programa de Edifício Master (2002), exemplo notável de
intuição do que está implicado no efeito-câmera. Ela diz “eu sou a
mentirosa verdadeira”, depois de uma sedutora performance em que
explicou como se pode mentir quando se fala a verdade ou ser verda-
deiro quando se mente.
Forma atual de inversão do paradoxo do comediante (Diderot)
intuída por uma jovem inteligente? Reconhecimento definitivo do do-
cumentário como um jogo de cena?
As perguntas procedem, mas há algo mais aí, sem dúvida. Esta du-
alidade presente na situação não é desconhecida dos cineastas. Coutinho,
em particular, sabe como poucos trabalhar dentro desta premissa para
compor um cenário de empatia e inclusão que se apoia numa filosofia do
encontro que não é difícil formular em teoria, mas cuja realização é rara.
68

Ela exige a abertura efetiva para o diálogo (que não basta programar),
o talento e a experiência que permitam compor a cena apta a fazer
com que aconteça o que não seria possível sem a presença da câmera.
O conhecido efeito catalisador do olhar do cinema na gestação da fala
inesperada deve chegar à sua potência máxima, de modo a compensar
a assimetria dos poderes. Assimetria que o cineasta deve trabalhar sem
a ilusão de subtraí-la, pois ela está lá mesmo que seu objetivo não seja
extrair do entrevistado o que julga útil para uma causa. De um modo ou
de outro, as tensões permanecem, por maior que seja a disposição para
a escuta – porque, afinal, há a montagem, o agenciamento, o contexto;
e há a mise en scène (um espaço, uma cenografia, um enquadramento, um
“clima”, uma disposição dos corpos que condiciona o registro da fala).
Tomemos dois exemplos. No caso de Alessandra o plano é mais fecha-
do, sem nada de muito “marcado” à sua volta, enquanto que o senhor
Henrique, também de Edifício Master, cuja entrevista é mais demorada,
pode se mover e nos mostrar mais do seu espaço: uma imagem de Cristo
na parede, a modéstia do mobiliário escasso, o aparelho de som de onde
vai sair a voz redentora de Frank Sinatra. Ou seja, cada qual recebe o que
o cineasta julga melhor como efeito de produção de sentido na imagem
que dá conotação às falas; ora é a força do rosto, ora do gesto, ora do
ambiente, tudo dependendo da duração dos planos. Em Coutinho, esta
é generosa, pois ele busca atenuar o efeito dos fatores que condicionam
a atuação da “personagem”. Todas precisam de tempo para se por em
cena, conseguir criar as condições para que o momento se adense e
seja expressivo, com surpresas e acasos, revelações nos pormenores,
seja a felicidade de uma palavra, o drama de uma hesitação ou o um
gesto extraordinário feito por mãos seguras, como o de Dona Teresa,
em Santo forte (1999). A duração é a condição para que se possa compor
um olhar e uma escuta capazes de satisfazer às demandas de uma des-
crição fenomenológica, com uma abertura para o acontecimento e uma
compreensão não escorada em categorias pré-definidas, atenta ao que
69

permite ao entrevistado pontuar o processo, o ritmo da cena (de novo,


como Dona Teresa).
Não usei por acaso esse vocabulário de feição existencial-huma-
nista bem típico aos anos 1960. Acredito que vale aqui uma indagação
(que apenas esboço) sobre as afinidades entre esta observação da fala e
do gesto do entrevistado e algo que nos faz lembrar a concepção que se
tinha da personagem no cinema moderno de ficção, a par do que já se
observou sobre a sua relação com a tradição do documentário. O cinema
recente de Eduardo Coutinho pode ser visto como um modo de enfrentar
questões trazidas por aquela experiência da ficção, agora radicalizada em
outra forma. Há em comum com ela esse movimento de ruptura com a
linearidade da experiência (ou do argumento) enquanto suposta base de
qualquer produção de sentido, linearidade que inscreveria cada momento
vivido numa lógica determinada, de modo a fazer com que a manifes-
tação e o conhecimento de uma personalidade (digamos, a verdade de
um sujeito) fizesse necessária uma concatenação, um engajamento em
momentos sucessivos de ação aptos a compor uma história de vida a que
teríamos acesso por meio, por exemplo, de narrativas clássicas. O cinema
moderno liberou a personagem dessa grade de ações e motivos, dessa
lógica natural, psicológica e social. Recusou uma forma de representação
que, pela sua natureza, criava a expectativa de que tanto a estória (ação,
espaço, tempo) quanto seus agentes em conflito (as personagens) seriam
organicamente compostos, coerentes e mais próximos de um tipo ideal
do que indivíduos, sendo tratados dentro de certa economia, regras de
coerência interna e verossimilhança.
Na ficção clássica, o importante é aparentar verdade, pela coerên-
cia interna das relações, e não buscar o “verdadeiro” no sentido do fato
realmente acontecido. A representação da lógica do mundo envolve a
focalização do que pode acontecer e que seria mais típico a uma certa
ordem de coisas; não a exposição do que empiricamente acontece em
certo local e hora, fato que pode ser improvável, extraordinário, e que,
70

embora ocorrido, não representaria a ordem do mundo porque não seria


característico. Em suma, a ficção clássica abre um campo do possível
onde estão articulados os traços pertinentes essenciais à descrição de
um mundo, campo em que o dado-chave na definição de uma persona-
gem é sua ação. Embora ela possa ser motivo de um retrato falado, de
uma descrição externa minuciosa do seu perfil psicológico, ela só existe
para valer no drama clássico a partir da decisão que toma, da sua ação
progressiva até o desenlace que sela o seu destino (os manuais dizem: o
final é a moral da estória ). Para o cinema moderno isto não é verdade, é
uma convenção a recusar. Tanto os filmes quanto a crítica a eles afinada
ressaltaram que o ponto decisivo é a “poeira” que se levantava no cami-
nho, a força de cada episódio, o que há de revelador em cada instante
de vida (onde podem emergir os dados que escapam à racionalidade
da concatenação), dentro do que pode ser uma série descontínua, até
arbitrária, de experiências. Em consonância, o que se fez foi explorar o
esgarçamento da narrativa, a perambulação, os impasses, a impotência
da ação, ativando uma sensibilidade ao fragmento, ao que se esboça mas
não termina. Consagrando o instante, como diria o poeta a respeito de
seu ofício.
A personagem clássica de ficção, porque um ser lapidado segun-
do princípios de coerência, modelos de ação e um certo senso comum
psicológico, tem o seu teste (competição e risco, vitória ou derrota)
no terreno da relação com os outros, enquanto age e volta a agir, não
havendo participação de agentes externos à diegese. A personagem mo-
derna pode ser mais errática, não se define inteira no seu destino, pois
o desenlace nem sempre é consequência lógica de premissas contidas
nas ações já vividas; há lugar para a incoerência, opacidade de motivos,
sucessão mais aberta em que há a brecha para que algo inusitado ocorra.
É um campo de descontinuidades, do mesmo tipo do que ocorre, por
exemplo, na sucessão desses momentos em que se dá a conversa entre
sujeito e cineasta no documentário, desde que este se atenha à entrevista
71

como forma. Neste caso, a composição da cena e sua duração buscam


potencializar a força do instante; produzir no encontro a irrupção de
uma experiência não domesticada pelo discurso, algo que, apesar da
montagem e seus fluxos de sentido, retém um quê de irredutível na
atuação do sujeito, mais ou menos revelador, sempre conforme o que
uma combinação peculiar de método e de acidente permita. Assim, o
drama aí se decide em outro eixo: o da exclusiva interação do sujeito
com cineasta e aparato - única ação pela qual os entrevistados podem ser
compreendidos, julgados. Tudo se concentra nessa performance, nesse
aqui-agora, pois não há pares com quem interagir (sim, há a variante da
entrevista com casais, ou grupos, onde se dá esta interação intra-social
diante da câmera, o que sem dúvida muda as regras do jogo). E esta
atuação, embora balizada pela situação criada pelo cineasta, não segue
um script fechado, o que, embora relevante, está longe de indicar uma
liberdade absoluta, pois continuam aí presentes as pressões do veros-
símil, a questão da aparência de verdade. A tendência é o entrevistado
compor a sua fala segundo o que julga ser a opinião do interlocutor (o
cineasta e a “opinião pública” que a câmera representa). Esta ação é às
vezes um mero automatismo, que Coutinho combate com vigor, às
vezes um dado significativo da postura do sujeito que sabe ser necessário
não confirmar o esperado, mas ironizá-lo, manifestando sem demora
o desejo de combater estereótipos, denunciar o preconceito do mundo
sobre certa comunidade – lembremos o filme Babilônia 2000 (2001), em
várias passagens marcado por esta atitude dos entrevistados, cientes de
que há uma imagem a combater.
De qualquer modo, já ficou evidente no cinema de Coutinho um
conjunto de vitórias sobre essa pressão do verossímil e da opinião pú-
blica, em ocorrências que podem ser erráticas, em lances que podem ser
improváveis, os mais incaracterísticos e inusitados. Lances que ganham
seu efeito pela relação entre o inesperado e a sanção do real (do aqui-
agora em que câmera, cineasta e sujeito em foco estão implicados). Do
72

ponto de vista da verdade de cada um, seja o que for que se diga, seja o
que for que resulte como imagem, ninguém precisará confirmar expec-
tativas ou desmentir-se em outra cena, em outra ação. Como observei,
o sentido da ação da personagem, neste tipo de documentário, não está
na relação com os seus pares numa trama, mas na exclusiva força de
sua oralidade quando em interação com o cineasta e o aparato técnico.
Ao minimizar o contexto e os recursos narrativos, o documen-
tário procura se otimizar como forma dramática feita deste embate de-
cisivo que traz ao centro a fala, ressalvada a dimensão de relato tácito
(caminho de investigação) que se insinua na descontinuidade que
separa as entrevistas. Muito de nosso interesse se apoia neste drama,
na “agonia” do entrevistado, não aqui no sentido de sofrimento, mas
de competição, desafio ao encarar o efeito-câmera. Se o que se quer
ressaltar é a força do instante, a espessura própria de um momento
de vida, melhor que se faça a câmera participar desta situação (não
por mera ideia de autenticidade, honestidade para com o espectador,
mas para não se perder o que a câmera pode abrir à percepção, o que
pode se produzir de acontecimento nesta situação). Este é um proce-
dimento que a “ficção moderna” incorporou na relação entre o ator e
a câmera, favorecendo o que, no clássico, seria da ordem do “aciden-
te”, do “irracional”, buscando a irrupção de “algo” (inconsciente?)
que trairia a verdade do sujeito, para além de sua representação pelo
discurso. Enfim, algo que, a seu modo, o documentário tem estado a
buscar apoiado na performance diante da câmera assumida como ação
na esfera do contingente, do que ocorre e pode desafiar uma rede de
noções e saberes.
No entanto, trata-se de um “contingente” que não se pode tomar
como lugar do espontâneo, da ação autônoma, absorvida em si mesma,
mas como atuação para um interlocutor e dois olhares (o do cineasta e
aquele ao qual me refiro como efeito-câmera, gerador de performances).
Arma-se a cena como momento de vida, passagem efêmera, pela sua
73

duração e abertura, mas o olhar do aparato e a moldura do processo


marcam uma dualidade clara: trata-se de um encontro que num extremo
chegaria à ontologia de Bazin, caminharia na direção da revelação do
mundo (o “ser em situação” se revela em sua autenticidade); em outro,
seria puro teatro. Na prática, há sempre essa dualidade constitutiva, e a
questão, para Coutinho, é saber trabalhar com ela, apostando na espessura
da relação intersubjetiva (entre ele e o escolhido) sem esquecer esta marca
de ambiguidade, pois tudo se dá no seio da operação do dispositivo (aí,
ninguém é inocente, embora a assimetria da situação confira ao cineasta
maior autoridade e “culpa”).
Da parte do entrevistado, há um desejo de apropriação da cena,
tomar o momento da filmagem como afirmação de si em consonância
com a situação dialógica aí procurada. Compor um estilo, um modo de
estar e de se comunicar. O espaço é demarcado, mas se abre para um
campo de falas possíveis muito peculiar, pois a entrevista é fala pública
(para o olhar da câmera). Como tal, sua esfera não é a do depoimento
em tribunal nem a do interrogatório da polícia; há um quê de confessio-
nal, mas que nada tem a ver com a cobrança de instituições de controle
do Estado. É um falar de si, da intimidade, que torna quem fala uma
“personagem” no sentido etimológico do termo (ou seja, uma figura
pública). O cineasta não é o pai, nem o patrão, como bem lembra, em
Edifício Master, a moça tímida que tem dificultar em encarar o cineasta.
Embora um estranho, ele é uma visita esperada – elegeu o sujeito e porta
uma indagação. Visita que traz consigo a premissa da confiança, o senso
partilhado de um “nós” que dê lastro ao movimento da troca. Há neste
caráter público, para além do que é vetor intersubjetivo que só envolve
os sujeitos em presença, a observância de um decoro, de parte a parte,
numa tonalidade que afasta a escuta do cineasta da escuta psicanalítica,
embora muitos de nós tenham reiterado essa metáfora referida ao poder
(psico) analítico da câmera de cinema desde o início do século XX. Tal
poder catalisador da confidência é um pilar do documentário – sinal de
74

sua força, mas não de sua “objetividade” ou neutralidade, nem tampouco


da ideia de que tudo aí é terapia.
O sujeito fala para dois interlocutores: olha e reconhece o diretor
(figura que sanciona um sentido de confidência possível), mas sabe da
câmera e se exibe, queira ou não. Face à câmera, se vê ator em cena,
cumprindo a regra clássica da auto-absorção dos que atuam e não devem
reconhecer outro olhar que não o de quem está literalmente presente
no seu espaço (e também atua no jogo). Monta-se aí um dispositivo
curioso pelo qual a conversa (a troca entre o sujeito e o cineasta) se
confessa enquanto filmagem (mostra a câmera e outras coisas mais),
mas a atitude do entrevistado tende a obedecer à regra teatral clássica
da quarta parede. Quase sempre, as câmeras estão lá e registram tudo
em nome da captação do real; mas os sujeitos em foco atuam como
se ela não existisse, de olho no cineasta e equipe, nos que estão de
corpo presente.
Um bom exemplo disso é o da cena com o senhor Henrique, de
Edifício Master, personagem que o cineasta encontra no terreno mesmo
da auto-exclusão, onde a solidão já se fez sistema e montou seu ritual na
identificação com um célebre hino dos ressentidos – “I did it my way”. O
senhor Henrique coroa sua presença no filme com uma performance em
que vale o dueto com Frank Sinatra; lá está a câmera a pôr em foco uma
“segunda unidade” que se faz mais invasiva diante da catarse lacrimosa,
compondo bem de perto uma imagem que não veremos exatamente
daquele ponto de vista, pois a cena de Edifício Master requer esta com-
binação de insistência (na duração) e recuo (na modulação do que há de
invasivo no olhar). E requer que o senhor Henrique viva a sua catarse
como um ator que ignora a câmera, elegendo o cineasta como media-
dor (é para ele que olha e é com ele que conversa). Restaria perguntar
o que está implicado nesta postura dos sujeitos ao respeitar a “quarta
parede” embora, em princípio, não estejam no teatro. Eles podem ser
instruídos nesta direção ou agir assim de forma espontânea, talvez por
75

uma dificuldade de olhar o aparelho de frente, ou seja, o “público”, o


interlocutor virtual, não visível.2
Mostrar o senhor Henrique e, ao mesmo tempo, a segunda câ-
mera que o focaliza mais de perto é uma forma de explicitar a regra do
jogo, colocar os dados da representação ao alcance do olhar; advertir
que a empatia tem seus limites e coordenadas. É afirmar as premissas
de uma ética que está na contramão daquilo que nos cerca de manipu-
lação na esfera das imagens dentro da rotina da mídia. O cineasta evita
a interpelação que constrange, se faz presente na forma do recuo, da
expectativa, deixa espaço e tempo, certa liberdade para o sujeito. Em
suma, sua virtude é saber criar um vazio, digamos, de tipo socrático, para
fazer emergir a auto-exposição e, na melhor das hipóteses, um conhe-
cimento de si produzido pela troca em que, mesmo efêmero, se define
esse “nós”, uma partilha de experiência projetada no plano desejado
em que o envolvimento deve ir fundo sem nunca chegar a ser obsceno,
pois que é público.
Aqui, há uma nova inflexão face ao que seria uma herança do ci-
nema moderno em sua relação com a experiência fragmentária, singular.
A ficção dos anos 1960 e 1970 trabalhou as experiências de crise do
sujeito conferindo mais espaço para personagens admitidos como mais
complexos, porque mais sensíveis a perda de valores e às desumanizações
implicadas em certo tipo de desenvolvimento técnico-industrial-urbano.
Enfim, deu atenção aos dotados de marcas singulares de percepção e, es-
pecialmente, dos inclinados à reflexão, contrapostos a uma suposta massa
de sujeitos comuns que estariam condenados à pobreza de experiência,
já que enredados nas malhas do universo convencional, dos clichês da
mídia, das formas de raciocinar que têm afinidade com o preconceito,
com a ideologia não refletida. O “comum” interessava? Sim, pelo que

2 O exemplo de outra forma de se comportar vem de O prisioneiro da grade de ferro, de Paulo Sacra-
mento, onde os presos olham e falam para a câmera, além de manuseá-la, definindo o seu olhar,
apropriando-se, enfim, do aparato – ainda com molduras de controle, pois não chegam à montagem.
76

nele se manifestava o que havia de geral. Sabemos que o movimento de


Coutinho é na direção contrária da massificação, uma forma de huma-
nismo que se quer em estado prático no contato com quem é, em geral,
visto como convencional, desinteressante, enquadrado em fórmulas
(religiosas, ideológicas, consumistas, paroquiais); figuras que ele põe
em situação para surpreender, quebrar tais pressupostos. Ou seja, seu
cinema recente – notadamente Edifício Master – se faz para evidenciar
que as pessoas são mais do que aparentam e não menos, e podem atrair
um interesse insuspeitado pelo que dizem e fazem, e não apenas pelo
que representam ou ilustram na escala social e no contexto da cultura.3
Claro que há indagações a fazer nesta direção, pois o conjunto esco-
lhido tem certo efeito porque ajustado a tal objetivo. Seria ingênuo imaginar
que a amostra poderia ser qualquer, devendo o espectador ser prudente
em seu afã de tornar o que vê “representativo”. Não é este o objetivo,
visto que há uma insistência de Coutinho na questão da singularidade.
Neste sentido, Edifício Master inaugura um movimento de consulta que se
afasta daquele usual contato que elege as classes populares, comunidades
marcadas por uma forte personalidade enquanto grupo (ligado pela re-
ligião, o espaço de moradia, a classe social). Trata-se agora do mergulho
no que lá atrás se definia em Arnaldo Jabor como o terreno da “opinião
pública”, observada a partir de uma ótica específica, com ênfase para a
uniformidade, a partilha do medo e do conservadorismo. Aqui, se há em
Coutinho uma recusa das posturas apriorísticas que lembra aquela tônica
do “dar voz” ao outro, típica dos anos 1960 e 1970, a sua investigação
empírica tem outros pressupostos, pois não se atém a perguntar o que
pensa o sujeito a respeito de certo tema de relevância para a discussão
política. Ao não se conformar com os clichês da fragmentação, da crise
do sujeito e da massificação consentida, seu horizonte é um movimento
contrário de afirmação, de encontro com narradores, figuras capazes de

3 Nesta direção, ver Consuelo Lins, “Coutinho encontra as fissuras do Edifício Master”. Sinopse,
São Paulo, nº 9, ano IV, 2002.
77

falar sobre a experiência, expor um imaginário, figuras que, curiosamente,


buscam ser personagens no sentido clássico, não propriamente figuras da
alienação e da fragmentação, não-sujeitos. O que resulta desta tensão entre
convite à abertura e um possível abrigar-se na convenção é muito variável,
e a leitura de cada cena é sujeita à controvérsia.4 De qualquer modo, o
diálogo capaz de ensejar a reposição do sujeito deve começar pelo convite
à fala, por mais que aí se reitere o impulso das pessoas a se projetar no
que julgam ser as expectativas do olhar público a elas dirigido. O anseio
delas é montar uma biografia que faça sentido, alinhavando um passado
(resumido), explicando-se de forma a despertar interesse, expondo-se de
forma sedutora (mesmo que timidamente), buscando aproveitar a chance
para mostrar desenvoltura ou sinceramente confessar desorientação (“eu
não sei”), como o faz a última entrevistada de Edifício Master.
O movimento do documentário atual se liga à tradição do moder-
no, mas muitas de suas personagens querem ser “clássicas”, compostas
– eis um ponto notável de tensão. Ponto a que Coutinho responde com
o gesto contra-corrente de radicalizar o estatuto da palavra no cinema,
numa inversão de tudo o que foi valor estético nas teorias defensoras de
sua especificidade. A valorização da oralidade é o modo de combater os
próprios limites desta nas situações usuais do cinema e da TV; é o modo
de combater a situação de assimetria na divisão dos poderes. Mobiliza
com paciência o que é prerrogativa de todos – não tem pressa, não tem
ansiedade de concatenação. Uma vez tomadas as providências, não se
faz depositário da ilusão de falas plenas a todo instante, pois muito
nos filmes se faz como exposição do que há de inacabado nesta auto-

4 Embora haja quase um consenso quanto ao que de bem sucedido há no cinema de Coutinho
nesse fazer emergir o singular (o campo de um imaginário pessoal na instância da conversa com
o cineasta), um exemplo de debate é o artigo de Francisco Elinaldo Teixeira, “Enunciação do
documentário: o problema de ‘dar a voz ao outro’”, in Estudos Socine de Cinema – Ano III, org.
por Mariarosaria Fabris e João Guilherme Barone Reis e Silva (Porto Alegre, ed. Sulina, 2003),
que traz uma crítica incisiva aos pressupostos da leitura mais corrente do cineasta, não sem
ressalvar que o cinema de Coutinho apresenta instâncias em que realiza uma operação dialógica
mais consistente, tal como o autor a concebe em seu texto, recuperando as formulações de
Pasolini e Deleuze.
78

construção da personagem esboçada na entrevista, com sua fala dividida


entre o espontâneo, o deslize e o esforço consciente de coerência, de
moldagem de um estilo. Os filmes de Coutinho não são uma pletora
de falas expressivas, um mundo de comunicação plena; são a exposição
de um movimento nesta direção que depende do que, como afirmei, a
combinação de método e de acaso permitam.
Vale aí o princípio de que as pessoas são interessantes quando se
libertam do estereótipo, recuperam na conversa um sentido de auto-
construção que tem sua dimensão estética. No limite, o cinema de
Coutinho tem como horizonte um apresentar-se do sujeito como foco
de um estilo (no sentido shakespeariano da auto-conformação, não no
sentido de adoção de fetiches da moda). Não se trata mais da fé no
natural, no absolutamente espontâneo, na verdade já dada sobre quem
quer que seja. Trata-se de evidenciar as práticas da oralidade e dos gestos
pelas quais um sujeito se apropria de sua condição, é criativo.5 Dentro
dessa mescla de teatro e de autenticidade catalisados pelo efeito-câmera,
cada um é cheio de dobras e se faz sujeito na prática, no embate com a
situação ou na invenção de um modo de viver certa condição, incluída
a breve experiência diante desta visita do cineasta a seu mundo.
Neste sentido, o interesse do cineasta não se atém à visada exclu-
siva do sujeito como vetor de transformação, ator político cujo drama
se definiria no desdobramento de sua ação no mundo (e não na hora da
entrevista), palco de um destino de vitória ou derrota. A política aqui
está concentrada num modo de filmar a conversa com qualquer pessoa,
não importando seus vetores. O ponto decisivo está na qualidade do
aqui-agora da filmagem, na atenção a esse fazer-se sujeito (ou imagem)
diante da câmera, ponto de afirmação de um diálogo que se põe na
contra-corrente da mídia, pois o cineasta busca em todos o que o tempo

5 Para um exame do espírito lúdico e da incidência do humor na adversidade, ver Consuelo


Lins, “Rindo de quê? O humor no documentário de Eduardo Coutinho”, in Estudos Socine de
Cinema – Ano III.
79

está a lhes sabotar: a condição de sujeito, mesmo que se saiba ser talvez
impossível que esta se exerça plenamente nos termos da auto-formação
e do auto-cultivo tal como postos pela tradição humanista.
80
81

Cinema documentário
e efeitos de real na arte
Andréa França

E se nada se encaixa no entendimento imediato, tanto


melhor. O impasse do espectador é um avanço rumo a
regiões obscuras do cérebro humano.
Luiz Rosemberg Filho

O território só vale pelo que sai dele; não há território sem


um vetor de saída.
Gilles Deleuze e Félix Guattari

Introdução
As raízes das artes – a pintura, a poesia, o futurismo, o surrealismo,
o construtivismo – no campo do cinema documentário não são novas.
A história do cinema mostra que realizadores como Jean Vigo, Dziga
Vertov, Joris Ivens, Alberto Cavalcanti, Luis Buñuel, para citar alguns,
viram no procedimento da montagem, na fotogenia e no ritmo da
imagem cinematográfica um modo de retirar os objetos e as coisas das
sombras da indiferença, tornando-os revestidos de propriedades poéticas
e expressivas jamais imaginadas. Se, de um lado, o cinema documentá-
rio se consolida como um campo em diálogo com a cultura científica
moderna que valorizaria os fatos e os documentos na sua relação com
o conhecimento e o saber positivistas, por outro, esse mesmo cinema
manteria, em vários momentos de sua história, um diálogo profícuo com
os movimentos de vanguarda dos anos 1920, dando espaço para outras
formas de experiência, onde o conhecimento do outro e do mundo im-
plicaria em aproximações mais associativas, intuitivas, reflexivas, poéticas.
82

Luis Buñuel dizia que o cinema deveria ser um instrumento de


poesia “no sentido libertador, de subversão da realidade, de inconformis-
mo...”. Para além das fronteiras, sempre tênues, entre o documentário e a
ficção, o cineasta espanhol iria defender, dando continuidade ao projeto
surrealista no campo do cinema, o gosto pelo insólito e uma metodologia
de montagem capaz de juntar planos contraditórios e realidades díspares,
de modo a produzir uma outra agenda para o olhar moderno. Claro que,
para cada um desses cineastas citados, a noção de intervenção poética não
designa exatamente a mesma coisa. Mas, no âmbito deste artigo, interessa
que Buñuel, ao realizar o documentário Terra sem pão (Las Hurdes, 1932)
deseje mostrar a vida dos habitantes da Serra de Las Hurdes, uma região
miserável e inóspita da Espanha e, ao mesmo tempo, queira revelar, pela
montagem, pelo ritmo veloz e pela disparidade entre imagem e som (a
narração que insiste quase sádica sobre as imagens tristes do povoado),
os estereótipos que cercam o registro de povos pobres e excluídos, a
dimensão humanista que adocica de forma recorrente os espetáculos
da miséria. O campo do documentário, nos anos 1930 do século passa-
do, é tensionado pela intervenção desconcertante e incisiva do artista,
pelo tom falsamente objetivo e sarcástico da voz over, pelo modo duro
e “anormal” de se colocar diante de uma realidade tão desprovida de
tudo, de saúde, alimentação, água, higiene, alegria, moradia, juventude...
Como arrancar essas imagens, desprovidas de tudo, do lugar emo-
tivo que costumam ocupar? Como mantê-las do lado do inimaginável?
O projeto cinematográfico rigoroso do cineasta não permite que, face
às imagens de miséria, se instaure no espectador um coração choroso,
piedoso, lastimoso; ao contrário, trata-se de um projeto que, em meio
ao cinema hollywoodiano nascente, deseja instilar, diante de realidades pre-
cárias, revolta e perturbação. Sem dúvida, Buñuel, Vertov, Ivens, Vigo,
Paul Strand dão mostras de que, quando o cinema documentário se
mesclou à arte da vanguarda, pode dar suas próprias respostas estéticas
ao projeto moderno de desvelamento das zonas sombrias do mundo,
83

muitas vezes redimensionando sensorial e plasticamente os objetivos


racionalistas e a curiosidade científica, presentes na origem da câmera
cinematográfica, do “cine-olho”.
Dentro desse horizonte de questões, o que o documentário pode
oferecer hoje ao mundo da arte, da videoarte, e o que esse mundo das
artes pode oferecer hoje ao campo do documentário? A proposta do
artigo é discutir os pontos de convergência e as passagens entre o docu-
mentário de cunho social e as experimentações de linguagem, gêneros e
meios, tendo como referência maior os documentários Do outro lado do
rio, de Lucas Bambozzi (2004) e Preto e branco, de Carlos Nader (2004).
Filmes que destacam o papel ativo e assertivo da câmera na situação de
filmagem e que extraem desta consciência uma dimensão poética traba-
lhada sobretudo na edição, momento de reconhecimento da intervenção
do filme, assim como de sua parcialidade.

As mil faces do documentário


Preto e branco (Carlos Nader, 2004), Do outro lado do rio (Lucas Bam-
bozzi, 2004), Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2003), A pessoa é para o que
nasce (Roberto Berliner, 2004), Passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2001),
33 (Kiko Goifman, 2003), para citar alguns, são filmes brasileiros que
ajudam a pensar o método documental de maneira ampla. Experiên-
cias que se apropriam de métodos e formatos de outras artes – o vídeo
experimental, a video-instalação, a performance, as artes plásticas – e
propõem uma reflexão sobre a maneira segundo a qual a abordagem
documental é intercambiável com outras formas poéticas de pensar o
real. Realizadas inteira ou parcialmente em vídeo, essas imagens não
são usadas como mero registro de situações preexistentes, mas como
processo que impulsiona e estimula diferentes formas de representação
das imagens que compõem e dão sentido ao mundo.
O cinema documentário se vê aqui expandido pelo vídeo ex-
perimental, pela videoarte, pelo cinema de gênero, confrontado com
84

seus limites. As pesquisas audiovisuais realizadas por Bambozzi, Na-


der, Berliner, Goifman, Guimarães, fazem ressoar experiências mais
antigas, de artistas brasileiros como Marcelo Tas, Arthur Omar, Éder
Santos, Walter Silveira, e mesmo Sandra Kogut, que vão usar o vídeo,
nos anos 1980, como domínio estético autônomo, “impuro”, em que
circulam imagens gráficas, sons, ruídos, narrativas, de modo a promover
um descondicionamento do olhar através da descontextualização das
imagens e de sua reinserção em outros campos cognitivos, perceptivos,
sensoriais, afetivos.
Se, para Arlindo Machado, a experiência brasileira do vídeo nos
anos 80 cria “uma outra antropologia”, distante da proposta cinemato-
gráfica do período que pretendia fazer uma apropriação ingênua e sem
questionamentos da imagem do outro, é importante fazer um recuo no
tempo para marcar que esses videoautores buscavam também inspiração
e diálogo no cinema dos anos 1960, em filmes que, tanto no campo do
documentário como no da ficção, inaugurariam toda uma problema-
tização a respeito das imagens do mundo, dos recursos de montagem
disponíveis, da possibilidade de falar do outro, da dinâmica das subjeti-
vidades em jogo no momento da filmagem. É, sem dúvida, o cinema de
Jean Rouch que explicita e interroga, pela primeira vez, esse encontro
que ocorre, desde as origens do cinema documentário, entre diretor e
personagem no momento da filmagem. Encontro até então ocultado,
deixado de lado, removido para o extracampo ou esquecido nas sobras
do material bruto, este encontro passa a ser o cerne do próprio filme,
sua razão de ser, à medida que torna visível uma certa metodologia, um
método que exibe e interroga as condições de produção, as formas e o
que está em jogo com suas imagens.
Tais tradições, tanto no campo do cinema como no campo do
vídeo, não só enfatizam a fragilidade dessa ponte com o mundo do outro,
como mostram também a multiplicidade de procedimentos estéticos e
recursos técnicos que podem ser empregados, experimentados e inven-
85

tados na relação entre imagem e mundo e entre as próprias imagens. As


experiências de entregar a câmera para o personagem (Aluysio Raulino),
de realizar (anti) documentários sobre a ilusão de conhecimento que uma
certa tradição do documentário está sempre a prometer (Arthur Omar),
de reduzir a expressão do cineasta ao mínimo para que a voz do outro
se apodere do filme (Eduardo Coutinho), de utilizar o recurso da pós-
sincronização como um método para que o personagem invente uma
história e se invente diante de suas próprias imagens projetadas (Jean
Rouch), são tentativas de partilhar esse poder/saber do documentaris-
ta, de insuflar espaços de liberdade e negociação, de liberar o filme de
situações narrativas pré-determinadas e enrijecidas.1
Arthur Omar, nesta perspectiva, é o artista brasileiro que inaugura
um percurso que vai do cinema às artes plásticas, deslizando pelo vídeo,
pela fotografia, pelas videoinstalações e instaurando com sua obra um
ponto de encontro e ao mesmo tempo de trânsito entre meios, gêneros e
gerações. Sua obra dialoga com questões históricas que marcam o cinema
da vanguarda europeia dos anos 1920 (as artes plásticas, a repetição, a
fragmentação, a descontinuidade, a “montagem disruptiva-associativa”,
tal como cunhada por Vlada Petric no seu estudo da obra de Dziga Ver-
tov), o cinema moderno dos anos 1960 (o registro do imaginário como
questão, assim como a reflexão do que está em jogo com as imagens
do cinema) e, ainda, o cinema marginal brasileiro (a atenção às atitudes
e posturas do corpo, o corpo como “matéria” e paisagem da obra, os
filmes de Andrea Tonacci e Rogério Sganzerla).
O documentário O inspetor, de 1988, é um curta instigante de 11
minutos que conta a trajetória do inspetor de polícia Jamil Warwar, po-
licial que fica famoso nos anos 1970 por ter solucionado o assassinato
da jovem Cláudia Lessin Rodrigues. O inspetor Warwar teatraliza, diante

1 A metodologia de entregar a câmera para o personagem, recurso utilizado por Aluysio Raulino
no documentário Jardim Nova Bahia, de 1971, será retomada por Paulo Sacramento em O prisio-
neiro da grade de ferro (2004), filme em que é Aluysio Raulino quem assina a direção de fotografia.
86

de uma câmera completamente arrebatada pela metamorfose pela qual


passa o seu corpo, seus inúmeros disfarces cotidianos para desvendar
“casos difíceis” – um dia é padre, outro é travesti, ou ainda empresário
da noite... Todo um devir artista que convoca o policial a interpretar,
durante o seu ofício de detetive e de personagem do filme de Omar,
múltiplos papéis, convidando a câmera não só a uma imersão extasiada
no imaginário daquele que está diante dela, mas também a uma espécie
de “documentação” de elementos caros à imagética do cinema marginal,
como a pop art, o tropicalismo, a contracultura, a presença de O bandido
da luz vermelha (Sganzerla, 1968) na composição formal, no tema, no
ritmo da montagem.
É essa imersão extasiada nas fantasias/fantasmagorias do outro,
esse mergulho na materialidade da própria imagem – seja do cinema, do
vídeo ou da fotografia – enquanto textura, fluxo torrencial, intensidade
rítmica e pulsação, que filmes como o curta A coroação de uma rainha
(1993) e o longa Sonhos e histórias de fantasmas (1996) também investigam;
enlaçam-se, ambos, aos espíritos, rostos e espectros encarnados nas co-
munidades negras e sofridas do interior de Minas Gerais, de modo que
Omar se vê na obrigação de inventar toda uma iconografia que possa
sustentar essa “antropologia da face gloriosa” que desconstrói a presença
do outro na sua dimensão humana e, no mesmo gesto, o captura sob
uma outra dimensão, inumana e transcendente. Em Sonhos e histórias de
fantasmas, o mundo dos espectros de outrora, encarnado numa comu-
nidade quilombola, irrompe abruptamente em um hino cantado pelos
MC’s cariocas aos mortos do tráfico.
É claro que o documentário hoje se confronta com inúmeras
questões. Jean-Louis Comolli diz, em Voir et pouvoir, que os documen-
taristas atuais se deparam com problemas ligados a um mundo que já
se dá como imagem, um mundo onde “ser filmado” e “tornar-se perso-
nagem” é um dado concreto. Sem dúvida, a fotografia, a televisão, o
cinema, a internet, a disseminação de câmeras de vigilância, dotaram
87

cada um (substituir um por indivíduo) desta consciência a respeito da


imagem de si a mostrar, a exibir, a colocar em cena. Dessa consciên-
cia, por parte do personagem de um documentário, vem a armadilha
para o documentarista: faz-se o papel que se imagina que a câmera/
diretor deseja e espera, isto é, exagerar na história, dar um ritmo ade-
quado à fala para ganhar visibilidade e não ser cortado na edição, etc.
É um campo de cinema que tem um trabalho difícil, pois precisa lidar
diariamente com o mundo dos clichês veiculados e disseminados pela
cultura do espetáculo e incorporados, conscientemente ou não, às re-
lações sociais cotidianas. Por outro lado, dessa consciência por parte
do documentarista vem o reconhecimento de sua responsabilidade na
construção da realidade que se fabrica ali, no momento da filmagem,
sem existência antes ou depois do filme, e que por isso mesmo pode
ensejar novos modos de compreensão do devir do mundo (espetacu-
larizante, exibicionista, transformado frequentemente em um grande
confessionário a céu aberto).

Uma imagética para a palavra do outro


Preto e branco e Do outro lado do rio são filmes que querem fazer a
ponte entre o documentário social e o vídeo mais experimental. Tanto
um como outro discutem os constrangimentos e os interditos derivados
da condição socioeconômica no Brasil, partindo de um contexto de
fraturas sociais, de segregações resultantes de diferenças econômicas,
raciais, culturais. Do outro lado do rio explora o imaginário da diferença
(territorial, linguística, cultural) como expectativa de melhores condi-
ções de vida – são personagens que querem atravessar a fronteira do
rio Oiapoque a qualquer custo porque acreditam que, do outro lado, na
Guiana Francesa, a vida poderá ser melhor. Preto e Branco explora o ima-
ginário da diferença (da cor de pele no Brasil) com uma trama complexa
e discordante de discursos, pois aqui é a cor da pele que está em foco,
sustentada pela colonização histórica do país.
88

Estes filmes, de realizadores provenientes do campo das artes


plásticas e da videoarte,2 creditam um papel essencial à palavra do outro.
Há uma escuta que se traduz de forma poética e marcadamente subjetiva,
distanciando-se muito da mudez da videoarte que, como sabemos, tantas
vezes produziu e produz indiferença e tédio no público que pretende
mobilizar. A palavra do outro importa aqui. Mas não é a palavra captada
rapidamente, como nas reportagens televisivas, interessadas em editá-las
de acordo com certos pressupostos e ideias já construídas de antemão,
nem tampouco a palavra que se inventa ali, diante da câmera, cabendo
ao cineasta praticar uma operação de subtração visual de tudo que ele
não considera essencial, como nos filmes de Eduardo Coutinho. A pa-
lavra, em Do outro lado do rio e em Preto e branco, existe para ser acolhida,
debatida e demonstrada visualmente, de modo que sua escuta se mostra
em função de escolhas e procedimentos expressivos, tais como enqua-
dramentos, sobreposições, texturas da imagem, slow motion, grafismos,
paisagens compostas de desfigurações progressivas. Trata-se de uma
escuta que ganha demonstrações visuais e que explora os dispositivos
tecno-estéticos da imagem.
Em Preto e branco a trama de discursos divergentes sobre a questão
da raça e do preconceito no Brasil mobiliza a imagem como suporte
informe, fluido, progressivamente desconfigurado e colorido. O filme
do paulista Carlos Nader imprime visualidade à palavra discordante através
da interação sempre tensionada entre personagens/diretor, personagens
entre si, o próprio corpo consigo mesmo. Em Do outro lado do rio é a
palavra da expectativa que imprime à imagem os recursos do ralenti e/
ou da aceleração, construindo variações rítmicas diversas. O realizador
mineiro, Lucas Bambozzi, se deixa levar pela aventura instável de seus

2 Carlos Nader é documentarista e videomaker. Realizou, entre outros, O beijoqueiro (1992, com
muitos prêmios internacionais), Trovoada (vídeo experimental, 1995), Território do invisível (1994,
com Marcello Dantas), Concepção (2001), Carlos Nader (1998). Lucas Bambozzi é documentarista
e videomaker. Realizou, entre outros, O fim do sem fim (2001, documentário em longa metragem),
Aqui de novo (2002, vídeo experimental de 6’), Eu não posso imaginar (1999, vídeo experimental,
22’), Ali é um lugar que não conheço (1997, vídeo experimental, 7’).
89

personagens, todos desejosos de atravessar ilegalmente a fronteira do


Brasil com a Guiana, corpos errantes e seduzidos pela transgressão – o
corpo refugiado, clandestino, prostituído – cujas palavras convocam
do filme procedimentos de “descorreções de luz”, de sobreposição,
de zapping, amalgamados com referentes indiferenciados, tais como o
rio por onde transitam barcos, crianças que mergulham das pedras que
margeiam o rio, rostos tristes à espera de alguma coisa incerta.
Bambozzi participou em 2004 da programação da série “Noitadas” no
Museu da Imagem e do Som (São Paulo), apresentando a performance “A parte
precária: vídeos em processo, ruídos e improvisos visuais”. Tratava-se de uma proje-
ção de ruídos e improvisos a partir de imagens que retratariam a ideia de
precariedade. O que interessa, neste evento, é como o artista vai trabalhar
conceitualmente a noção de fragilidade da imagem, reconhecendo sua
natureza “falha” e explorando, a partir disso, o silêncio, o intervalo, o
ruído, a violência dos fluxos. Do outro lado do rio é um desdobramento da
série Viagens na fronteira, um conjunto de cinco vídeos de curta duração
dirigidos por diferentes artistas, realizado pelo Itaú Cultural (1998) e que
teve como título Fronteiras.3 O curta Oiapoque-L‘Oiapoque (11 minutos),
de Bambozzi, um dos vídeos desta série, funciona como campo de
pesquisa – de personagens, lugares, situações, imagens e sons – para o
longa que faria alguns anos depois.
Do outro lado do rio se detém em quatro personagens (um garim-
peiro, uma prostituta, uma secretária, um refugiado) que estão vivendo
há algum tempo na fronteira do Amapá. As expectativas e os desejos
são muitos – “ganhar dinheiro”, “viver aventuras”, “casar com um
francês e ter um filho de olhos azuis”, “ir pra Paris porque aqui é o
início da França” – e o filme dialoga com esse imaginário de desejos
incertos ao produzir dissoluções rápidas do figurativo e ao combinar

3 Para uma discussão mais ampliada e analítica desta série realizada pelo Itaú Cultural, em 1998,
ver artigo de minha autoria, “Viagens na fronteira do Brasil e do cinema”, na revista Devires:
Cinema e Humanidades v. 4.
90

grafismos com flashes de rostos desamparados, pássaros voando, um


cachorro correndo atrás de um laser, bocas com dentes de ouro re-
luzentes, uma bandeira do Brasil flanando sem as palavras “ordem e
progresso”. Trata-se de uma gama de efeitos plásticos e sensoriais que
aceleram o ritmo da edição, como se Lucas Bambozzi buscasse uma
sintonia visual para a dinâmica que envolve seus personagens, movi-
dos pela excitação do desconhecido e por um desejo de infração, de
transgressão dos limites, de ultrapassagem, de fuga incontrolável para
um ponto sem luz, obscuro, indefinido.
Em Preto e branco a cor da pele funciona como fronteira, como
diferença que precisa ser confrontada, debatida, teatralizada no âmbito
do privado. O foco do filme é a divergência e o conflito radical dos
depoimentos de “especialistas” (antropólogos, escritores, músicos,
filósofos) sobre a questão étnica. Não há concordância e os pontos de
convergência são mínimos. Embora o filme procure harmonizar essa
dissonância no final, com as imagens coloridas do carnaval, a festa e o
êxtase para além das diferenças, o que interessa são as situações em que
os quatro personagens – o cego, o advogado, o antropólogo, a modelo
– são convocados a encenar situações domésticas: seja da chegada do
resultado de um exame genético, seja de um almoço em família, seja
de um reencontro entre antigos amigos. Há uma tensão que passa pela
dificuldade de acolher a diferença, mesmo na intimidade, no âmbito
do privado. Daí a importância do primeiro personagem, o cego de
nascença Eduardo, cheio de preconceitos com relação aos orientais,
que “mentem muito”.
Depois de ir a uma clínica para fazer um exame de genes, acom-
panhamos a chegada do resultado do teste na casa de Eduardo e de seus
pais. Há toda uma situação criada para o filme e pelo filme. O resultado
da leitura do exame gera surpresa, pois ter ancestrais ameríndios signi-
fica aceitar que a diferença existe não apenas socialmente, mas que ela
habita o próprio corpo. Filme e biotecnologia produzem uma proble-
91

matização do sujeito, o corpo humano tornado estranho, opaco, uma


paisagem ao mesmo tempo íntima e desconhecida. A leitura do exame
põe a nu um tema recorrente na obra de Carlos Nader, que passa pela
própria definição do que é humano, do que é sujeito, questão já sugerida
em um outro trabalho do artista, Concepção (2001), onde o corpo serve
como “matéria” (estética, médica, biotecnológica) para um exame de
endoscopia: pressão arterial, pulsão dos órgãos, batimentos cardíacos
tornam-se absolutamente estranhos, justamente quando exibidos em
uma radical proximidade/intimidade, ou seja, através das entranhas.
Também em Carlos Nader (1998), o próprio artista joga ironicamente
com essa dimensão da intimidade tornada estranha, difusa, ao declarar,
diante da câmera, que contará um segredo que nunca tinha revelado a
ninguém. Sua voz torna-se então gradativamente inaudível e o que se vê
é um fluxo de imagens justapostas, fragmentadas, desconexas.
Em Preto e branco, a edição de Nader e José Tenório explora as
imbricações de imagens umas nas outras (carnaval, candomblé, samba,
multidão de pessoas numa rua paulista), slowmotion, distensão de sons,
ruídos, palavras, criando uma espécie de sopa primordial de diferentes
padrões de formas e cores e colocando em questão a própria definição
do que é a cor de pele no Brasil ou em qualquer outro lugar. A escuta
desses descompassos se traduz nas imagens em metamorfose, em uma
morfogênese que encena o que poderíamos chamar de “teatro íntimo
da diferença”, seja no corpo biológico, seja no corpo social/individual.
Esses filmes têm uma dimensão documentária indiscutível. Ao
trabalhar com situações em que os personagens vivem e reagem ao
momento da filmagem, Bambozzi e Nader produzem acontecimentos
especificamente fílmicos, acontecimentos que não estavam previstos
antes da filmagem e que o ato de ligar a câmera provoca, intensifica,
captura. É claro que tais imagens correm o risco constante de se desfazer
diante das contingências do real, como acontece em Do outro lado do rio,
quando João Gomes diz que o documentário que estão fazendo com
92

ele é dos “gendarmes”, que ele foi enganado pela produção, ameaçando
equipe e diretor. Em Preto e branco, após a leitura do resultado do exame,
Eduardo se cansa das perguntas de Nader e questiona, mal-humorado, a
relevância e os objetivos do filme que estão fazendo, deixando sua mãe
constrangida.
Essas imagens criam momentos de suspensão do tempo, de fratura,
de “documento”, mostrando que o importante para o resultado do filme
é que as personagens possam se constituir gesto por gesto, palavra por
palavra, fabricando a si próprias à medida que o documentário avança,
gradualmente, de modo que o momento da filmagem possa agir sobre
elas como um revelador. Para cada pequeno avanço do filme, a possibi-
lidade de desenvolver ou inventar um novo comportamento, a duração
do documentário e da personagem convergindo e coincidindo, como
assinala Comolli.
Em função destes momentos, e a partir deles, podemos retomar
a frase de Godard – “o cinema é a verdade 24 vezes por segundo” –,
pois eles revelam histórias onde o filme também é o documentário de
sua própria filmagem. São nestes momentos de suspensão que as per-
sonagens ganham em complexidade e densidade, liberando o filme que
fazem para uma espécie de falha, de ranhura, de inconsistência. Não resta
dúvida que essas imbricações entre o documentário de cunho social e as
experimentações de linguagem, de meios, de métodos, não qualificam
nem desqualificam, a priori, filmes, obras ou projetos. Há que se estudar
caso a caso, claro, e o que interessa, nos limites deste artigo, é que existem
consequências estéticas e políticas nessa hibridação.

Brasis imaginados
Há nos documentários de Bambozzi e Nader uma pesquisa sen-
sorial e plástica que busca enlaçar os múltiplos imaginários do Brasil,
longe de estabelecer uma falsa totalidade ou de querer retratar o país
com o mote “o Brasil que o Brasil não conhece”. Destacaria o modo
93

como estes filmes lidam com a fronteira (simultaneamente limite e


passagem, sempre), sejam elas de cor, de língua ou de territorialidade.
Em Preto e branco tais fronteiras são vividas e teatralizadas tanto social
como biologicamente, já que no interior do próprio corpo habita o
“estrangeiro”. Em Do outro lado do rio a fronteira é não só a passagem
para um desconhecido desejado e idealizado, como implica também a
criação de vizinhanças e laços precários. O rio Oiapoque materializa essa
operação de passagem e, por isso mesmo, a prostituta Telma é o centro
de gravidade do filme, personagem que conduz e estrutura a narrativa,
centro móvel e deslizante que leva consigo a promessa imaginária do
encontro derradeiro.
Não se trata, portanto, de partir de ideias (boas ou ruins) já co-
nhecidas de antemão a respeito do Brasil, mas de acontecimentos não-
previsíveis que a própria metodologia do filme propicia, acontecimentos
que escapam à lógica na qual tudo já é sabido a priori. Em Do outro lado
do rio, a conversa gaguejante entre Elaine, que deseja um novo visto, e o
chefe da aduana é exemplar: a língua falada entre os dois (francesa, portu-
guesa?) é pátria e exílio, sentimento de pertencimento e despertencimento,
pois o desejo de diálogo sugere uma língua outra, desconhecida, que
funda suas próprias coordenadas e afetos, arrastando a língua identitária
para uma outra, virtual e alternativa (Deleuze e Guattari). Este estranho
diálogo é fundamental naquilo que revela ser o “gesto” do próprio filme,
isto é, o movimento de desnaturalizar língua, território e terra natais.
Em Preto e branco, diferentemente, a trama rica de discursos sobre
o problema da cor de pele no Brasil se encaminha para um movimento
de harmonia que as imagens do carnaval propiciam, imagens da festa
popular reconhecida por aproximar, reunir, amalgamar sagrado e profano,
sublime e insignificante, misturar o que é da ordem dos contrários. A so-
lução talvez seja frágil para um diagnóstico que, desde o início, se mostra
de forma tão discordante, potente e complexa. Por isso mesmo, são os
momentos de teatralização da intimidade, do corpo social ou biológico,
94

que não só encenam uma realidade multifacetada como fornecem senti-


dos, imaginários e sensações que resistem bravamente ao agenciamento
totalizante com o qual o filme pretende finalizar. Ao redimensionar o
sentido do próximo e do distante, estes documentários inventam proce-
dimentos técnicos e estéticos para dar conta de limites que não passam
pelas especificidades nacionais, étnicas ou biológicas, e se afastam de
qualquer discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza.
Os cineastas analisados aqui fazem um trabalho de investigação a
respeito de formatos e métodos, vindos tanto do documentário como
do campo da arte, que possam se enlaçar aos acontecimentos do mundo
e, mais do que isso, promover uma espécie de contra-discurso em meio
à avalanche de imagens simultâneas e coextensivas aos acontecimentos.
Longe de uma articulação com os discursos da reportagem, do melo-
drama ou das pregações moralizantes, que se empenham em fornecer
uma leitura social acabada e teleológica do país, esses filmes buscam
romper, tanto na forma como no conteúdo, com as imagens-clichês do
que seja o cinema documentário, o vídeo experimental, os estereótipos
comportamentais do que seja um delegado da polícia carioca, uma co-
munidade quilombola do interior de Minas Gerais, um cego de nascença,
a língua e a terra natais.
Trata-se de toda uma pedagogia audiovisual que ensina ao olhar
“formas de ver”, como a comunidade quilombola que vive num cená-
rio depauperado e a comunidade funk, de jovens da periferia carioca,
tornadas ambas, pela máscara/câmera de Arthur Omar, não um objeto
de saber antropológico ou sociológico, mas uma paisagem de rostos
desconcertantes e intensos, rostos abstraídos de seu entorno imediato
e que inventam, nas palavras de Ivana Bentes, “tribos estranhas, nações
africanas desconhecidas, periferias obscuras de alguma cidade sem
nome; ao contrário de reiterar formas cúmplices de ver, presentes nas
imagens humanistas, edificantes e/ou traumáticas, essas experiências
audiovisuais prolongam e fazem ressoar uma pedagogia que, nos anos
95

1930 do século passado, Luis Buñuel já anteciparia, a partir de toda


uma metodologia surrealista, com seu documentário sobre o povoado
miserável de Las Hurdes.
Promovem tais filmes uma pedagogia audiovisual que implica
interrogar diariamente: como e por que fazer cinema documentário no
Brasil? Tal pergunta precisa ser constantemente renovada, pois ela traz
não só a cultura e o pensamento audiovisual para o centro das questões
contemporâneas (lembremos que, no Brasil, a televisão ou expõe sujei-
tos quaisquer a uma visibilidade excessiva, espetacular, ou faz deslizar
suas singularidades para o domínio da invisibilidade), como pressupõe
também a necessidade de ampliar e experimentar os limites, tênues e
frouxos, do campo deste cinema que, nos seus melhores momentos,
cria realidades da ordem do impensado e mostra sua distância do modo
cotidiano de circulação de palavras, sons, imagens, gestos e afetos, ao
refletir sobre o efeito de suas formas. A disputa de sentidos com a agenda
da mídia também se faz aqui.
96
97

Perguntar (não) ofende


Anotações sobre a entrevista: de Glauber
Rocha ao documentário brasileiro recente
Stella Senra

Lá pelo final dos anos 1980, o colunista José Simão, da Folha de


S. Paulo, cunhou a expressão “perguntar não ofende”, reiterada quando
trazia à baila algum acontecimento da atualidade – em geral de cunho
político – para introduzir uma pergunta pretensamente inocente, com
a função de expor a má fé de sua versão “oficial”. Com a malícia que
costuma ser dom dos humoristas ele percebeu que essa capacidade de
dar a entender, sem afirmar, fazia da pergunta o instrumento ideal para
pôr em evidência o que não podia ou não estava sendo dito com todas
as letras. Além dessa falsa candura, que acabava revelando a desfaçatez
com que se pode mentir, a pergunta do crítico ainda tornava patente
um fenômeno na época pouco discernido, mas que não parou, desde
então, de se acentuar: o “entorpecimento” da linguagem, uma espécie
de “indiferença” muito característica do nosso tempo, que permite a
circulação, sem entraves, pelo discurso, das mais descaradas mentiras
– como se elas estivessem praticamente “fadadas” à aceitação pública.
Com certeza esse caráter corrosivo da pergunta, sua capacidade
de “deixar no ar” o que de outro modo não pode ser afirmado, fazem
dela um instrumento extremamente atraente para o exercício do humor;
instrumento cujo poder de fogo torna-se, de resto, ainda maior quando
o campo visado é a arena política, território por excelência da palavra,
do discurso, do jogo com o dito e o não dito.
98

É justamente o poder implícito no ato de perguntar que o escritor


Elias Canetti evocará em seu Massa e poder, livro que focalizou o desen-
cadear das massas do século XX, atravessadas pela dialética da ordem e
do comando. Ao tratar com agudeza a questão da ordem e da obediência
à ordem, Canetti destaca a força da pergunta usada como exercício de
poder, e recorre à metáfora da lâmina e do corte para reconhecer, no ato
de perguntar, a mesma capacidade de penetrar “na carne do questionado,
cortando fundo”. Canetti considera a pergunta como uma intromissão,
um modo de “entrar pela força” e analisa de um ponto de vista político a
dupla pergunta-resposta como situação de confronto, de tensão, como um
embate de forças – em vez de tomá-lo, como se tende a fazer, como uma
relação da ordem do diálogo, que propicia o entendimento, o encontro.
As perguntas são concebidas com vistas a obter respostas, diz Ca-
netti, para obter algo que se está buscando. “Sabe-se de antemão o que
se pode encontrar, mas quer-se descobri-lo e tocá-lo de fato”. Evocando
a figura do cirurgião, Canetti diz que o inquiridor se precipita sobre os
órgãos do interrogado, mas que seu interesse é manter “viva sua vítima
[ênfase minha] para saber mais sobre ela”. Ao emprestar desse profissional
que interfere no corpo do outro o caráter invasivo de seus gestos, Canetti
ressalta, entretanto, que a situação da pergunta põe em cena uma “espécie
particular de cirurgião”, cujo procedimento implica numa insidiosa estra-
tégia: “provocar deliberadamente a dor em certos pontos” (...) e estimular
“certas porções da vítima para saber de outras com maior segurança”.
Dotada dessa capacidade de dissimular seu objetivo, a pretensão
da pergunta é dissecar, observa o escritor, dando prosseguimento a sua
metáfora médica. Tal operação é iniciada pelo contato, que visa diferentes
pontos; ao não encontrar resistência, ela avança, mas nem sempre vai
diretamente ao ponto almejado: sorrateira, a pergunta pode reservar o
resultado de sua colheita para utilização posterior.
Há algo na pergunta que é da ordem da cisão, diz Canetti, como
uma faca que separa duas partes: antes dela não se sabe ainda o que se
99

pensa. É ela que obriga a refletir, a separar prós e contras. Mesmo uma
pergunta inocente, como a direção de uma rua, faz o inquirido parar,
interromper o fluxo de seus pensamentos e, ao aceitar respondê-la, o
obriga a desenhar um “mapa mental” onde passará a buscar o local
procurado. É por causa de seu decisivo poder de corte, de sua “afiação”,
que a pergunta é tão mais poderosa quando, certeira, pede apenas duas
respostas, o sim e o não – a aquiescência à resposta implicando, por sua
vez, um grau de comprometimento sem volta possível.
Sem dúvida certas situações podem restringir a ação – e, portanto,
a força – do inquiridor. Assim, diz Canetti, as formas da civilidade impe-
dem que se façam certas perguntas a um estranho; enquanto manter-se
nessa reserva dá a este a sensação de ser respeitado – e, portanto, de ser
mais forte. É o suposto equilíbrio de forças propiciado por tal distância
que permite a convivência entre os homens.
Canetti opõe dois tipos de pergunta, segundo a distribuição de
poder na qual operam: a pergunta dirigida aos mais fortes, pergunta
“suprema”, “colossal”, que diz respeito ao futuro e é endereçada aos
deuses; desobrigados de responder, eles podem também dar respostas
ambíguas, difíceis de decifrar. No polo oposto, a pergunta endereçada
ao mais fraco, cuja situação extrema é o interrogatório que obriga à
resposta sob pena de tortura e morte.
De acordo com esse ponto de vista, o ato de perguntar implica,
como todo exercício de força, a constituição de uma estratégia; e esta
desencadeará, por sua vez, no campo do inquirido, o uso de procedi-
mentos ou de “métodos” de defesa: responder com outra pergunta,
usar da astúcia para desencorajar o inquiridor, recorrer ao silêncio são
alguns dos mecanismos que o inquirido pode acionar para se opor à
intromissão da pergunta.
Além de obter a satisfação de seu desejo, o efeito das pergun-
tas sobre o inquiridor é, naturalmente, o aumento de sua sensação de
poder, observa Canetti. O que provoca nele a vontade de fazer mais e
100

mais perguntas; enquanto isso, o inquirido submete-se tanto mais ao


seu poder quanto mais consente em responder – tornando-se, por sua
vez, mais fraco.

O lugar do político
É essa dinâmica instituída pela pergunta – o exercício do poder, por
um lado, e o acionamento de mecanismos de defesa, por outro – que o
cineasta Glauber Rocha explora na série de “entrevistas” postas em cena
nos anos 1979-1980, ao longo de sua intervenção no programa Abertura
da TV Tupi.1 Ao participar desse programa que tirava proveito do pro-
cesso de abertura política para incrementar o debate democrático no país,
o diretor de cinema, que sempre acreditara na importância da televisão,
aproveitava-se de seu tempo de antena para uma intervenção política ra-
dical, tanto na forma quanto no conteúdo. Intervenção na qual o uso da
forma-entrevista – ou melhor, a “política” da pergunta –, ao encenar as am-
bíguas relações de poder da sociedade brasileira, não se limitava a deslocar
o eixo do debate que então se travava, buscando ainda pôr em discussão
uma série de temas (o cinema, a literatura, a psicanálise...) que visavam
destacar o papel decisivo da dinâmica cultural naquele momento político.
Como Rosselini tinha apostado, em seu tempo, no uso pedagó-
gico da televisão, Glauber estava apostando no seu uso político ao pôr
o poder de comunicação desse veículo a serviço da incipiente abertura
democrática – tema que já vinha evocando com insistência em suas
intervenções públicas desde o final dos anos 1970. Mas para o autor de
Estética da fome, que nunca separou estética e política, pôr a proveito a

1 Abertura foi ao ar de fevereiro de 1979 a julho de 1980 na rede Tupi de Televisão, dos Diários
Associados, com direção geral de Fernando Barbosa Lima e direção de imagem de Alberto Loffler.
Regina Mota relata que ele reuniu um dos melhores times de intelectuais, artistas e jornalistas jamais
mostrados pela TV brasileira e foi o primeiro, depois do período da censura, a abordar aspectos
políticos da realidade brasileira. O programa era composto por vários quadros, cada um apresentado
por uma pessoa. Ele fornecia o equipamento e liberdade para a concepção de cada um. Barbosa
Lima editava, a partir do material que recebia. À precariedade da produção modesta correspondia
a liberdade de expressão de ideias e do tratamento televisual. Ver Regina Mota, A épica eletrônica de
Glauber Rocha - Um estudo sobre cinema e TV. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
101

função política da televisão não se resumia à mera substituição de con-


teúdos, ou, como se diz, de “mensagem”; implicava, igualmente, numa
crítica da linguagem da televisão. O que ele empreenderá com grande
entusiasmo e senso de humor, dando origem a uma série de programas
até hoje de grande frescor.
A linguagem da televisão brasileira se cristalizara segundo os
parâmetros estabelecidos ao longo dos anos 1960-1970 pela recém-
criada TV Globo. Sob o lema bastante repisado da “qualidade técnica”
(o chamado “padrão Globo de qualidade”), abrigavam-se objetivos
políticos que, embora não reconhecidos, visavam atender às demandas
do regime militar. Ao tornar de certo modo “homogêneo” um meio de
grande diversidade social e cultural como o brasileiro, a TV Globo atuou
no sentido de “integrar”, por meio da imagem, o território nacional no
momento em que a ditadura, implantada em 1964, precisava de “unidade
ideológica” para desenvolver o seu projeto político.
O tão prestigiado apuro técnico deu lugar, como se sabe, a uma
estética comprometida com tal objetivo político. No que diz respeito
à informação, privilegiou-se o seu bom acabamento: imagens bem
feitas, edição precisa, ritmo dinâmico – assimilando qualidade técnica
à objetividade. Também a figura impecável do jornalista, a solenidade
da sua voz reforçavam a ideia de uma informação isenta, destituída de
paixão. Tudo isso fez com que a qualidade técnica se tornasse um signo
de “transparência”, uma “garantia” de objetividade – empreendimento
bem-vindo após anos de censura, que tinham comprometido a reputação
da informação e de seus veículos.
Foi assim que se definiu uma “estética da limpeza”, com imagens
impecáveis e a atualização constante do aparato tecnológico. O tão
louvado “padrão Globo de qualidade” parecia constituir, no final das
contas, o álibi perfeito para um “saneamento” da informação que não
se limitava às suas “impurezas” técnicas, mas contemplava também a
sua dimensão ideológica.
102

Enquanto no plano da informação se promovia a “depuração” da


imagem, esta, por sua vez, era preparada para a “entrada do povo”. O
avanço técnico que criou o “padrão de jornalismo” Globo não só per-
mitira a captação da imagem de gente comum, trazendo para o vídeo a
cara da população: ele deu lugar também ao desenvolvimento de novas
iniciativas que visavam tornar “visível” o país para si mesmo, trazendo
“democraticamente” para a tela aqueles que, antes, se contentavam em
ficar à sua frente. Foi nesse mesmo empuxo que se cunhou, ou melhor,
“patenteou” uma “imagem” do povo brasileiro e até uma ideia do que
seria a “cultura brasileira”.
A maneira pela qual os pobres, em particular, adentraram a tela da
televisão se fez sob o império de uma das características mais marcantes
da cultura brasileira: a combinação, de dosagem variada, entre autoritaris-
mo e paternalismo. Desenvolveu-se um “modo” muito próprio de falar
com eles, de “mostrá-los”. Na “melhor” das hipóteses, como “vítimas”
da situação social do país – o que funda um discurso benevolente, cheio
de “boas” intenções, que confere ao mesmo tempo à câmera o direito de
vasculhar suas vidas, suas dores e alegrias, sua intimidade, enfim, a título
de uma vaga “denúncia social”. Na pior das hipóteses, como “bandidos”,
objetivados por um discurso moralizante e que, por já terem “escolhido”
a exposição pública, também podiam, do mesmo modo, ter sua imagem
devassada e descaradamente explorada, sempre em nome do “bem públi-
co”. Foi assim que os pobres foram como que “desapropriados” de fala
e de sua face, rentabilizadas no mercado de imagens.
Glauber chega à televisão quando o País atravessava uma situação
política de transição, com promessas de fim da censura, redemocratização
do regime e convocação de eleições diretas. Seu intuito é interferir nesse
processo, fazendo valer o poder de comunicação que creditava à televisão
o espírito inovador do Abertura. Além disso, a linguagem cristalizada da TV,
o comprometimento das emissões ao vivo pela censura seriam decisivos
para que o diretor definisse a modalidade de sua intervenção do diretor.
103

Ao final dos anos 1970, a televisão já incorporara, como seu “trun-


fo” maior, a “imagem” do povo brasileiro; e conseguira integrar, por
meio do assistencialismo e da mais crua manipulação, a “participação” dos
pobres: eles não estavam apenas nos programas de auditório, mas também
as reportagens tinham nessa população um objeto privilegiado de atenção.
Situação que não podia ser ignorada por um projeto de intervenção política
via TV, sobretudo em se tratando de Glauber, diretor cuja obra primou
pelo seu empenho no conhecimento do povo brasileiro.
A participação de Glauber contemplaria, desse modo, duas di-
mensões políticas inseparáveis: a intervenção direta por meio do trato
de temas políticos, que podia passar tanto pelas desabridas entrevistas
com personalidades do meio político e cultural quanto pelo seu próprio
discurso sem papas na língua; e uma crítica da estética da televisão, que
tinha em mira a sua linguagem cristalizada. Não se tratava de uma crítica
metódica da linguagem – como no Godard dos anos 1970 –, mas de uma
ruptura de limites que resultava tanto da exploração de um novo veículo
pelo diretor quanto do caráter radical da sua intervenção, que atropelava
a divisão de gêneros televisivos e propunha outra abordagem do público.
Glauber tinha autonomia para conceber seu quadro, de menos de
dez minutos. Mas em vez de permanecer por detrás da câmera, ele se põe
diante dela e assume o papel de entrevistador, de animador que se dirige
diretamente ao público, de agitador político que o interpela e até mesmo
de provocador, fazendo-se, para tanto, também “personagem”. Recebia
muitos convidados: políticos (a maioria da oposição), figuras públicas, que
entrevistava em torno de seus temas preferidos: a política “das aberturas”,
como ele a denominava, o processo de redemocratização, as reformas
sociais, o resgate da memória e da história política, a cultura, a literatura,
o teatro e o cinema brasileiros. Também podia ocupar o tempo com uma
fala sobre esses assuntos, dirigindo-se diretamente à câmera. O tom direto,
como se estivesse ao vivo, rompia com os padrões impostos pela censura
em busca de interlocução com o público, os políticos, os responsáveis
104

pela produção cultural e artística, a imprensa: Glauber sempre encontrava


lugar para uma cerrada e impiedosa crítica da mídia, brandindo no ar o
jornal ou revista visados, enfiando–os na frente da câmera ou interpelando
nominalmente jornalistas, jornais e revistas.2
Ao lado dessas modalidades de intervenção, que nas mãos de
Glauber tornavam-se um verdadeiro desafio à televisão e ao modo como
esta se dirigia ao público, o diretor “criou” também dois personagens
emblemáticos do povo brasileiro: um negro e um nordestino, com os
quais interagia em nome de uma crítica das relações e representações
que a própria televisão, as elites, as instâncias de poder faziam dessa
população, sem se esquecer do que também fora elaborado sobre o tema
nas imediações da esquerda e no cinema.

“O povo no poder”
Em seu livro A épica eletrônica de Glauber Rocha, Regina Mota enume-
ra algumas das rupturas das normas televisivas que o diretor promoveu,
relacionando-as de preferência com o cinema e com a linguagem cinema-
tográfica que ele tanto inovou. Aqui se trata de considerar o programa
de Glauber do ponto de vista de seu embate direto com a televisão e,
particularmente, com a linguagem da informação.
A postura de Glauber se contrapunha à clássica oposição entre
redação e rua, que fixara dois regimes de linguagem para a informação.
Na redação, a estabilidade do quadro, a pequena variação dos ângulos de
tomada, a “boa” distância da câmera (nem muito perto nem muito longe),
a disposição equilibrada dos jornalistas no centro do quadro e sempre atrás
da mesa “de trabalho”; as vozes pausadas e o olhar para a câmera (em
geral duas e não mais), a redação (ou o logo da emissora) como fundo, o
corte harmônico e em sintonia com o olhar/câmera – tudo concebido para

2 Glauber se valia da imprensa para abordar temas da atualidade. Além de servirem como “fon-
te” – em geral criticada –, jornais e revistas e também livros se prestavam a experimentos com o
uso da palavra impressa na tela; ademais, ao movimentá-los criava uma nova dinâmica no quadro,
usando-os, como notou Regina Mota, como elementos internos da edição para “cortar” e “montar”.
105

assegurar uma ideia de “equilíbrio”, de comedimento e seriedade diante


dos fatos reportados. Na rua, “liberdade” da câmera para acompanhar os
movimentos do repórter, o quadro mais instável, sublinhando a urgência
da ação – enfim, a mobilização de uma série de recursos de linguagem de
forma a “conotar” o calor, a emoção do acontecimento “vivido”.
A intervenção de Glauber punha abaixo essa clássica separação
redação/rua e eliminava a distinção entre os dois regimes de imagem:
não apenas ao levar a emoção, o calor e o movimento para o espaço
fechado, atuando ainda como se estivesse sempre “ao vivo”, mas também
ao colocar na rua cenas que, de hábito, seriam abrigadas na redação. Sem
diferenciar um do outro, o diretor fazia ainda um uso perturbador do
espaço fechado, ignorando as suas coordenadas de modo a torná-lo às
vezes até irreconhecível – muitas vezes não sabemos se estamos no lugar
“público” da redação, ou no espaço “privado” de ( sua?) casa. Quando
leva em conta as referências espaciais, é para mostrar um lugar inusitado
para um programa de televisão: a sala de uma casa (a do entrevistado?),
por exemplo, ainda por cima com personagens que não costumam apa-
recer em tais circunstâncias: a babá com seu filho, a esposa...
O diretor usou a entrevista como um artefato político que põe em
cena o embate, o enfrentamento de forças, o que lhe permitiu exercitar,
de forma impiedosa, uma crítica da dinâmica do poder na sociedade,
no jornalismo e na televisão. Não se tratava apenas de se contrapor à
“isenção” que o jornalismo reivindica, em razão da qual foi concebido o
“ritual” de apresentação da notícia. Tratava-se também de propor outro
tipo de jornalismo, tanto na concepção da imagem quando no registro da
fala. Glauber punha alegremente em xeque a “neutralidade” e a solenidade
da fala ao assumir um tom apaixonado, ao tomar sempre partido, ao se
dirigir diretamente ao espectador de modo coloquial, atropelando-o com
o ritmo acelerado de sua fala e interpelando-o e interpelando-o com ardor.
Também ao exibir aparência mal cuidada, destoava do jornalis-
mo empostado “de terno e gravata” e, ao agitar-se continuamente em
106

cena, criava a instabilidade do quadro, a perda do foco, gerando grande


movimentação da câmera e cortes bruscos – “dirigindo” praticamente a
cena em total oposição à estabilidade e harmonia habituais do quadro, à
fixidez da câmera, à limpidez da imagem buscada pela informação. Tais
elementos de linguagem, nunca vistos no telejornalismo, recriavam a
mesma dinâmica das emissões ao vivo, chamando o envolvimento do
espectador e reforçando o tom de urgência do diretor.
Muito antes que tais práticas se generalizassem, Glauber fez na rua
entrevistas ainda hoje de raro frescor, em meio aos carros, aos passantes, ao
ruído do trânsito, incorporando à cena tudo o que se passava no entorno.
Além de agir na contracorrente do modelo dominante e de propor um jor-
nalismo cheio de verve e humor, a intervenção do diretor se contrapunha
à imagem “limpa” a que o público se acostumara, pondo em xeque esse
signo de transparência que escondia compromissos – estes sim, políticos
– com o regime militar. Sua imagem era propositalmente “suja”, mas os
elementos de linguagem: o plano-sequência insistente, o tremor, a perda
de foco, o corte brusco não constituíam propriamente efeitos “buscados”;
eles eram fruto de sua decisão política que não separa o que está sendo
feito do modo de fazer. Também sua atuação, como se estivesse “ao vivo”,
interpelando diretamente o público, que inovou a linguagem visual e o
registro da fala na televisão, reflete e ao mesmo tempo revela o caráter de
“urgência” de sua intervenção, como uma “necessidade” inadiável.
Vamos nos deter na mais polêmica das entrevistas, justamente aquela
com um dos emblemas do “povo brasileiro”: o negro chamado Brizola. Já
nos referimos ao modo paternalista por meio do qual a televisão brasileira
exercitou o mais cru autoritarismo ao lidar com os pobres, “apagando”, por
meio de fingida intimidade, uma distância social evidente (postura que, de
resto, ela não inventou, mas que reproduzia modos de ser e procedimentos
da própria sociedade). Também mencionamos o papel que a TV Globo
se arrogou na construção de uma “imagem” do povo brasileiro, da qual
praticamente assumira os direitos de propriedade.
107

O povo brasileiro é uma entidade que esteve desde sempre na mira


dos políticos; mas foi também objeto de profundas indagações por parte
dos antropólogos, dos sociólogos, dos cientistas políticos, além de desa-
fiar o entendimento da esquerda em todos os seus matizes e, também,
o do Cinema Novo – particularmente o de Glauber. Quando o diretor
chama o negro Brizola de “representante do povo brasileiro”, ele tem
em mente essas várias facetas que a questão assume no cenário cultural
e político do país; mas por se tratar de uma intervenção na televisão, é
nesta que o diretor se inspirará para encontrar o tom de crítica política
de sua fala, sua impostação adequada.
A impostação de Glauber vem da TV. Como notaram os críticos,
ela é inspirada no animador Chacrinha, criador de um personagem que
os tropicalistas adotaram como uma espécie de “antecessor”: originário
do rádio, ele somava às técnicas populares de animação de auditório, nas
quais era um mestre, uma construção visual, reunindo traços arcaicos
da cultura brasileira que viraram clichês (como a melancia pendurada
no pescoço) a signos “modernos”, como os da era da comunicação (o
telefone gigantesco sobre a grande barriga), combinados com a mesma
liberdade com que as escolas de samba carioca “construíam” seus per-
sonagens; tudo isto compondo, ao final, a figura do palhaço que podia
rir-se e desafiar a todos, por ser o primeiro a não se levar a sério.
Ao usar a figura de Chacrinha, Glauber não “se inspira” na televi-
são, mas retoma a leitura que dele fizeram os tropicalistas nos anos 1960,
ao tomarem-no como um de seus emblemas. Do animador ele assume a
liberdade de acionar e jogar com signos contraditórios, o tom farsesco,
desaforado: era inspirada no seu gesto de jogar comida para o público
e num de seus motes –“Vocês querem bacalhau?” – a frase com que
o diretor abria seu programa: “Alô, alô, povo do sertão, carne, arroz e
feijão”. Ao adotar a mesma postura debochada e galhofeira nas suas
entrevistas, Glauber explicita a distância social entre entrevistador e
entrevistado – uma distância que a prática jornalística procura disfarçar
108

com diferentes técnicas e que o diretor, ao contrário, não quer ocultar.


É justamente o modo de jogar com essa distância que constitui o eixo
da entrevista com Brizola.

As vozes
Glauber foi sempre uma figura forte, de opinião, que fez valer
sua persona em inúmeras circunstâncias. Também evocamos o termo
“personagem” a propósito de sua atuação. Mas algo a mais se passa
nessa entrevista, algo que se repete também nas várias intervenções
do nordestino Severino – na verdade o responsável pelos cabos no
programa, que aparece muitas vezes em vez de ficar detrás da câmera,
é entrevistado e assume diferentes papéis. Agora é hora de precisar que
não se tratava propriamente de “persona”, nem de “se fazer personagem”
– como é hoje tão corriqueiro – mas de uma operação de outra ordem.
Para tanto, há ainda um longo caminho a percorrer.
Como Glauber tem uma concepção política da entrevista, ele a utiliza
para explicitar uma relação desigual de forças, utilizando criticamente a
distância que o separa do entrevistado para expor as relações de poder na
sociedade brasileira. Atuando na contracorrente dos jornalistas sempre
“amáveis” com o entrevistado, que agem como detentores de um man-
dato do leitor e como se fossem, eles próprios, isentos de opiniões e de
compromissos, Glauber sempre manifestava sua opinião; além de assumir
a distância que o separa de seu entrevistado, ele tomava a pergunta “como
a faca que corta na carne do outro” para pôr em evidência as formas que
assume a dinâmica do poder na sociedade brasileira. Em vez de entrevista,
propriamente, trata-se do recurso à forma-entrevista para uma mise-en-scène
do exercício do poder e dos seus diferentes discursos, por um lado; por
outro, das modalidades de fuga ou das formas de resistência a ele.
A entrevista anunciada fazia esperar o líder Leonel Brizola, então
no exílio. Mas esse é o apelido de um negro favelado, apostador de cavalos
e torcedor do Flamengo. No lugar do branquíssimo caudilho populista,
109

cuja volta assinalaria a abertura política, um homem do povo, negro. Mas


que povo, exatamente? Por certo não se tratava da visão das elites, nem
da representação consagrada pela TV; nem tampouco daquela constru-
ída nas imediações da esquerda e até no cinema. O Brizola de Glauber
está em sintonia com a abordagem “do povo” na cena do comício do
líder populista em Terra em transe; mas já não se trata de ficção e sim de
alguém capaz de reações próprias, que não revelará nem a fraqueza de
Jerônimo nem a rústica revolta do homem do povo do filme.
A cena se passa na rua, lugar onde ainda não se faziam entrevistas
e onde líderes políticos habitualmente não são vistos. Glauber faz desabar
sobre Brizola, como um opressivo muro de linguagem, uma saraivada de
perguntas; não inquire propriamente, mas parece “esgrimir” suas pergun-
tas. Não espera pelas respostas, acumulando novas perguntas. Se o diretor
usa a faca de que fala Canetti, não é propriamente para “separar” as partes,
mas para expor a prepotência do entrevistador que “corta” a palavra, pon-
do em cena a relação de poder estabelecida pela entrevista como estratégia
crítica de outras formas de poder em exercício na sociedade.
E que perguntas! Uma saraivada de temas políticos (reforma
agrária, Diretas, Figueiredo, o próprio xará Brizola...), que o entrevistado
evidentemente não sabe responder. São variadas as nuances das pergun-
tas e muitas as mudanças de estratégia da entrevista: Glauber passa do
autoritarismo mais cru ao paternalismo mais benevolente, “temperando”
com futebol e samba o tom de sua fala. Por meio dessa caricatura da
TV, são expostos os vários discursos do poder que baixam seu muro de
linguagem sobre os desapropriados de fala e, ao mesmo tempo, a sua
outra face: a benevolência do paternalismo. Glauber assume a voz de
comando não apenas ao impor suas perguntas e cortar as respostas; ele
puxa o entrevistado pelo braço, muda-o de lugar, reclama da sua falta de
empenho, se faz brincalhão, fala com os passantes – tudo entra no qua-
dro, obrigando a câmera a movimentos inusitados, a desenquadramentos
que tornam a cena de uma vivacidade então desconhecida na televisão.
110

Por que a expressão “personagem” não parece adequada a tal


atuação? Glauber não está propriamente “preenchendo” um papel
quando adota a voz de comando; ao contrário, ele parece ter se “esva-
ziado” de seu papel (se é que há um), de qualquer papel ao assumi-la,
para se deixar atravessar pelas muitas vozes de mando que expressam, de
diferentes maneiras, as forças dominantes na nossa sociedade. Em sua
análise dos programas, na qual dá ênfase à persona de Glauber, Regina
Mota menciona uma pluralidade de vozes na voz de Glauber: do pre-
gador e do missionário, do coronel, figura arcaica (mas nem tanto!) de
um modo de exercer o poder, do Chacrinha. Estas e muitas outras vozes
fluem, com efeito, por meio da fala de Glauber: a do latifundiário, a do
senhor, a do político, a do intelectual de esquerda (que Glauber sempre
criticou), a dos próprios jornalistas, a dos apresentadores de televisão,
último e menos perceptível elo dessa longa cadeia de mando – todas
embaladas na voz do Chacrinha, por meio da qual o diretor, na forma
do deboche, atualizará o mando. Trata-se de uma “sinfonia do mando”
sempre temperada, como convém numa sociedade paternalista, pelo
tom “simpático”, pela “intimidade” que transpõe distâncias quando se
exerce em terrenos “comuns”. Mas o diretor nem as incorpora, como
um personagem, nem se soma a elas, como persona; ele as vocaliza.
Em seu Mil platôs Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem o con-
ceito de agenciamento coletivo de enunciação, que lança luz sobre a fala
de Glauber. Não há enunciação individual, dizem os autores, nem sujeito
da enunciação. Sabemos que não somos proprietários do que dizemos;
muitas vozes falam pela nossa voz sem que possamos discerni-las. Toda
enunciação é coletiva, dizem os autores, mas o caráter social da enunciação
só é intrinsecamente fundado (na linguagem) se pudermos mostrar como
ela remete por si mesma a agenciamentos coletivos. “Só há individuação do
enunciado e subjetivação da enunciação na medida em que o agenciamento
coletivo impessoal o exija e o determine”, escrevem eles. “Este é o valor
exemplar do discurso indireto e do discurso indireto livre: não há contornos
111

distintivos nítidos, nem encaixamento de sujeitos de enunciação diversos,


mas um agenciamento coletivo que determina como consequência os
processos relativos de subjetivação, as designações de individualidades e
sua distribuição movente no discurso. Não é a distinção de sujeitos que
explica o discurso indireto, é o agenciamento tal como aparece livremente
no discurso que explica todas as vozes presentes numa voz coletiva”.
Ao “vocalizar” as vozes de comando, Glauber se faz veículo
dessa enunciação coletiva, conferindo-lhe o valor imediato de um agen-
ciamento político: elas fluem na sua fala e são desnudadas pelo uso da
forma-entrevista (lugar de confronto pela palavra) como instrumento
de crítica – uma crítica que terá lugar justamente na televisão, veículo
por excelência do comando e da manipulação em massa.
Mas lembremos que Canetti evoca também modos de “escapar”
ao poder da pergunta. Não responder, responder outra coisa, se esquivar.
O negro favelado também conhece, a seu modo, as vozes de comando
atuantes na sociedade. Aprendeu, não se sabe a que custo, a lidar com
elas. Sem se deixar “apertar” pelo muro de linguagem erguido pelo
interlocutor, ele faz exatamente como sugere Canetti: esquiva-se das
perguntas difíceis. De política diz, sem se rebaixar, que “não entende
patavina”. Dos políticos, do presidente, diz que são “boas pessoas”,
arranjando-se para não ficar mal com ninguém. Assumindo um nacio-
nalismo corriqueiro, aceita criticar Pelé por ter ficado nos EUA – mas
gostaria de ser como ele. Como o mais acabado clichê do “povo”, gosta
de futebol e de samba, torce pelo Flamengo. Como se costuma dizer,
Brizola “se vira bem” na situação, encontrando um jeito de escapar à
voz de comando pelo “jogo de cintura”, pela fala esquiva.3

3 Glauber pode inverter a situação, quando é ele o entrevistado. Na entrevista que concedeu a
Célia Portela, sua crítica à figura do jornalista é arrasadora. O espaço fechado não se identifica
– talvez seja uma sala de montagem. A jornalista, toda maquiada, está sentada num banquinho
giratório – o que já rompe com qualquer “estabilidade” da parte de quem pergunta. Glauber
vai, de fato, fazê-la “balançar”: não apenas “literalmente”, mas no seu papel de entrevistadora.
Não responde sua única pergunta e fala do que bem quer, brandindo a revista Veja no ar. De
pé, não para de se movimentar, obrigando a câmera a persegui-lo e impedindo que se constitua
“a cena” da entrevista: é praticamente impossível captar os dois interlocutores juntos; muito
112

Glauber encerra o programa dizendo que “está passando o poder


ao povo”, numa última provocação ao projeto voluntarista de parte da
esquerda brasileira e do próprio cinema. Projeto que, longe de estar
morto, ressuscitaria anos mais tarde, sob novas modalidades: afinal, a
conquista da palavra, o direito à palavra, dar a palavra ao povo são temas
que ressurgem com força no cinema brasileiro a partir dos anos 80 e são
retomados após a chamada “retomada” dos anos 90 não apenas como
objeto de várias obras, mas de acalorado debate.

O predomínio crescente da entrevista no documentário brasileiro


mais recente sugere que o tema seja retomado. Com efeito, os especialistas
apontam os anos 1990 como a década de florescimento do documentário e,
ao mesmo tempo, da presença impositiva da entrevista, que não apenas se
presta a coletar informações, mas chega até mesmo a constituir o “corpo”
da obra: cunhou-se até uma espécie de “fórmula” para o documentário,
por meio da qual se enfileiram imagens, entremeando-as com entrevistas.
À luz do uso que Glauber Rocha fez da entrevista, talvez valha
a pena deslocar um pouco a questão da entrevista propriamente, para
focalizar o modo segundo o qual tem sido acionada a dupla pergunta-
resposta. Como se pergunta? Por que se pergunta? Por que se aceita
responder? Por que se entra nesse “jogo” desigual, em que uns acabam
podendo mais que os outros? Existe um novo contexto por trás da per-
gunta? Ou, melhor ainda, que situações estão sendo criadas no documentário para
propiciar o ato de perguntar? Estas questões sugerem que seja incorporado
à discussão um novo dado, próprio do documentário contemporâneo:
o recurso crescente ao “dispositivo”.

menos a jornalista, patética no seu silêncio constrangedor. Quando Glauber finalmente “pede” a
pergunta, a jornalista já perdeu o pé. Sem ação, ela conclui que “está respondida a sua pergunta”
e ele ordena, como diretor: então corta, porque já acabou....
113

A “virada subjetiva”
São grandes as transformações que o Brasil conheceu a partir dos
anos 1980, quando Glauber encerrou sua participação no Abertura. Elas
não se limitam ao fim da ditadura, com todos os seus desdobramentos,
mas derivam também da conjuntura mundial: com a globalização, a queda
do muro, o mundo se redimensionou do ponto de vista econômico e
político, transformando-se profundamente o vínculo entre representação
cultural e imaginário político. Os novos temas e as novas problemáticas
que emergiram no campo cultural pediram novas posições dos criado-
res, dos intelectuais. No cinema, essas transformações vêm mostrando
a necessidade de se pensar, do ponto de vista crítico, uma redefinição
do estatuto do político nos filmes.
O que caracteriza a produção cultural das últimas duas décadas
e meia é sua filiação ao que a crítica Beatriz Sarlo chamou de “virada
subjetiva”, que se manifesta tanto como tendência acadêmica quanto no
mercado de bens simbólicos e se propõe a reconstituir “a textura da vida”,
a verdade contida na rememoração da experiência, a promover tanto a
valorização da primeira pessoa como ponto de vista, quanto a reivindi-
cação de uma dimensão subjetiva. “A atualidade é otimista” – escreve a
crítica – “e aceitou a construção da experiência como relato na primeira
pessoa, até mesmo quando não acredita que todos os demais relatos
possam remeter de modo mais ou menos pleno ao seu referente”. Por
isso, nota ela, “se multiplicam em diferentes formas as narrações chama-
das de não-ficcionais nos jornais, na etnografia social e na literatura: são
testemunhos, histórias de vida, entrevistas, autobiografias, recordações
e memórias, relatos identitários”.
Sarlo observa que a dimensão intensamente subjetiva, “um verda-
deiro renascimento do sujeito que se acreditava morto nos anos 1960 e
1970”, é uma das características do presente, o que acontece igualmente nos
discursos cinematográfico, plástico, literário e midiático. “Um movimento
de devolução da palavra, de conquista da palavra e de direito à palavra se
114

expande, reduplicado por uma ideologia da ‘cura’ identitária por meio da


memória social ou pessoal”. Esse “reordenamento ideológico e conceitual”
da sociedade e do passado, concentrado sobre os direitos da subjetividade,
coincide, de acordo com Sarlo, com uma renovação análoga da cultura e
dos estudos culturais, onde a identidade dos sujeitos voltou a ter o lugar
que, nos anos 1970, foi ocupado pelas estruturas. “Foi restaurada a razão do
sujeito que, há décadas atrás, foi mera ‘ideologia’ ou ‘falsa consciência’ (...)”.
Sarlo sugere que se examinem os privilégios desse “eu” que há
três ou quatro décadas despertava suspeitas. A abordagem crítica das
novas modalidades da entrevista deve seguir essa direção. Com efeito,
num contexto em que a subjetividade toma a dianteira e a entrevista se
torna um recurso freqüente no cinema, tal exame deve ser feito de um
ponto de vista político.

O dispositivo como “prisão”


A entrevista pode preencher várias funções no documentário, mas,
sem dúvida, é aquela que se refere à experiência e aciona a subjetividade
que tem despertado o maior interesse: basta atentar para o sucesso de
uma obra como a de Eduardo Coutinho, baseada, como a definiu Con-
suelo Lins, “no encontro e na interação com os personagens”, da qual a
entrevista é constituinte. Como se sabe, Coutinho teve grande influência
sobre o documentário brasileiro dos últimos anos; e é em virtude desse seu
papel que deve ser examinado seu modo de conceber e usar a entrevista.
Segundo o crítico Ismail Xavier, a entrevista (ou a conversa, como
prefere o diretor) constitui a forma dramática exclusiva nos filmes de
Coutinho, a presença dos personagens não estando acoplada a um antes
e depois. “No centro do seu método está a fala de alguém sobre sua pró-
pria experiência”, explica o crítico, “alguém escolhido porque se espera
que não se prenda aos clichês da sua condição social. O que se quer é a
expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando
é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa. Tudo o que
115

da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera”, prossegue


ele, “da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta
do aparato cinematográfico”.
Presença “crucial” na obra do diretor segundo Consuelo Lins, o
exame do dispositivo se torna importante porque parece lhe caber, jus-
tamente, o papel de criar condições para uma situação na qual a entrevista
pode acontecer. Vejamos.
No cinema de Coutinho, o termo dispositivo tem uso muito amplo
e designa diferentes procedimentos envolvidos no ato de filmar.4 Também
denominado por ele como “prisão”, o dispositivo se refere, na verdade,
a um conjunto de elementos díspares que condicionam a realização do
filme: dentre outros, a locação única, o uso do vídeo, a equipe mostrada
na imagem, a pesquisa prévia na locação; alguns podem variar de filme
a filme, outros podem ser mantidos com constância.
Como os filmes de Coutinho são compostos por entrevistas,
o dispositivo pode ser considerado como o aparato mobilizado para
que elas possam se efetivar; ou seja, para que ele possa fazer perguntas.
Assim a pesquisa prévia, por exemplo, por meio da qual o diretor toma
conhecimento da população visada pelo filme através de relatos e ima-
gens produzidas por pesquisadores, lhe permite conhecer, de antemão,
a história do entrevistado, seu modo de falar, sua “dicção” e até seus
limites, facilitando o contato.
Com efeito, o conhecimento antecipado favorece a elaboração das
perguntas e o desenvolvimento da “conversa”, que flui mais “natural-
mente”, como uma troca entre “iguais”. Ele permite ir direto ao assunto,
contribuindo para “concentrar” a espessura do momento e acentuar a
impressão de autenticidade. A familiaridade que o entrevistador pode

4 Contemplado pela reflexão teórica nos campos do documentário e do vídeo, o dispositivo se


refere, segundo Cezar Migliorin, à disposição de elementos que constituem uma obra. No campo
do documentário, ele implicaria em linhas ativadoras de um universo que predeterminam um es-
paço e um tempo, um tipo ou quantidade de atores, acrescentando-se a tal universo outra camada,
que forçará movimentos conexos entre atores (pessoas, técnicos, clima, aparato técnico, etc). “O
dispositivo como estratégia narrativa”. Digitagrama – Revista Acadêmica de Cinema. Número 3, 2005.
116

mostrar com o entrevistado sem nunca tê-lo encontrado é, também, um


fator que estimula ambas as falas e contribui para a maior aproximação.
Além disso, ao permitir a redução do número de perguntas, torná-las
mais precisas e curtas, mais “afinadas”, a familiaridade leva o diretor a
uma intervenção menos invasiva, mais “discreta”.
Também a opção pelo encontro único (Coutinho só vê seu en-
trevistado uma única vez, na hora da filmagem) é considerada como
um dispositivo e tem o intuito de valorizar o instante da entrevista, de
preservar seu frescor, de conferir espontaneidade ao ritual “duro” da
pergunta e resposta; ainda mais, lembra Consuelo Lins, quando “o en-
trevistado deve partir do princípio de que é a primeira vez que Coutinho
está escutando o que ele diz”.
Nesse contexto, fica claro que as perguntas não são mais o lugar do
confronto, da diferença – como definiu Canetti –, mas do entendimento,
de uma aproximação como que natural “entre iguais”. Familiarizado de
antemão com a sua história o diretor não precisa “cortar na carne”, nem
recorrer à estratégia insidiosa do cirurgião, que provoca dor em certas
partes da vítima para saber de outras: ele já sabe, por antecipação, o
que pretende querer saber. E se a insídia existe, ela pode ser relacionada
justamente com esse conhecimento prévio, que faz da pergunta quase
um fingimento.
Ora, se a pergunta não visa “descobrir” algo desconhecido, que
função teria ela no filme de Coutinho? Ou melhor: se na entrevista do
diretor o político não se manifesta por meio da diferença, do confronto,
do enfrentamento, onde e como se manifestaria ele?
Coutinho sabe que não há “igualdade” na situação da entrevista,
ele que define seu “ato de filmar” como “uma experiência de igualdade
utópica e provisória”.5 A propósito de seu cinema, é o termo “encontro”

5 Citado por Consuelo Lins. O próprio diretor evoca a metafísica ao descrever a filmagem como
“momento único, não houve antes, não há depois”; o que pode ser relacionado, numa outra
chave, com outra de suas afirmações: “O que o outro diz é sagrado.”
117

que costuma ser evocado. O que leva de imediato à pergunta: seria o en-
contro propiciado pela entrevista, aquela “experiência única” (expressão
também do diretor) vivida no ato de filmar, o responsável pela anulação
da diferença? Com certeza a “igualdade” alcançada por Coutinho não
se mede pelos mesmos parâmetros que aferem a “diferença” fundadora
do político. Mas se ela se realiza em outro plano, numa dimensão que
não é aquela em que a diferença se manifesta, é porque o político, no
cinema de Coutinho, passa para o terreno da utopia.

A mão dupla do dispositivo.


Filiados à “virada subjetiva” apontada por Sarlo, quando o eu, o
sujeito e a identidade ganham evidência, a maioria dos documentários
recorreu, dos anos 1990 em diante, a diferentes dispositivos com a fun-
ção de mediar a abordagem de entrevistados. Em tempos de correção
política, era preciso achar novos modos de lidar com a distância que
separa quem pergunta de quem responde – mais ainda quando se trata
de população pobre, preferida pelo documentário. Ao mesmo tempo,
novas estratégias e novas poéticas foram concebidas que, escapando do
ranço da subjetividade e fugindo da entrevista, ou dela fazendo outro
tipo de uso, também fizeram outros usos do dispositivo.
Um dos exemplos mais sugestivos é o do documentário Rua de mão
dupla (2003), de Cao Guimarães, no qual o dispositivo desempenha um
papel em sintonia com seu uso nas artes do vídeo: ele se transforma numa
estratégia narrativa “que produz um acontecimento tanto na imagem
quanto no mundo”.6 Vejamos como isso se dá. Três pares de indivíduos
que não se conhecem são escolhidos para passar 24 horas na casa um do
outro. Os critérios de escolha não são explicitados e deles só saberemos
o nome e a profissão. Todos têm uma câmera, com a qual devem filmar
a casa que os recebe, com o intuito de “descobrir” como é o seu dono

6 É nesses termos que Cezar Migliorin define o dispositivo em sua análise dessa mesma obra:
http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp
118

(idade, sexo, atividades, gostos, etc). O documentário é composto pelas


imagens produzidas pelos seis e mostradas, por par e simultaneamente,
na tela do vídeo dividida ao meio. Depois, sempre com a tela dividida,
cada um faz uma espécie de “retrato imaginado” de seu anfitrião diante
da câmera enquanto, na outra imagem, este assiste à cena sem comentar.
Em Rua de mão dupla o diretor não produz nenhuma imagem e
só interfere por meio da organização dos depoimentos, sempre com a
câmera fixa e na distância tradicional. Além do dispositivo criado por
Cao não passar pela entrevista, quem fala não está falando de si, mas
de outro, um desconhecido. Ademais, Cao incorpora mais um dado à
fala – a imagem que cada um faz da casa do outro.
O maior interesse dessas imagens é a sua dupla carga de significa-
ção: elas significam “por si mesmas” (no sentido de que um vaso, uma
torneira são reconhecidos por nós) e carregam, ainda, uma significação
“indireta”, ou melhor, “em suspenso” – aquela que o visitante procura
nos objetos ou lugares e que lhe parece apropriada para definir uma
pessoa. Por virem de amadores, essas imagens praticamente explicitam
muito bem, como cada um vai, de modo hesitante, procurando e achan-
do os objetos que lhe parecem mais “significativos”; e como, ao fazê-
lo, projeta no outro a sua sombra. Ao mesmo tempo, numa operação
duplicada, nós, seus espectadores, vamos “processando” esse processo,
nos confrontando tanto com o autor das imagens e com suas projeções
quanto com o seu objeto oculto – o dono da casa – e, enfim, com nós
mesmos, que processamos o processo. Esse tráfego intenso de signifi-
cações nos obriga a um trabalho constante de leitura, de decifração, de
remissões cruzadas que revolve ainda as camadas estabelecidas da nossa
percepção e desafia a confiança “cega” que depositamos no nosso olhar.
Examinemos um traço desse conjunto de imagens: o que parece
praticamente comum a todas elas é a insistência no zoom. Todos se apro-
ximam canhestramente, por meio dele, das coisas, dos lugares, como
se quisessem deles “extrair” toda significação. Esses closes lembram a
119

descrição que Canetti faz da situação arcaica, que corresponde à “pri-


meira pergunta” (nome?) e à “segunda pergunta” ( endereço?). “Nela,
identidade e lugar ainda coincidiriam (...)”, escreve o autor. “Essa situa-
ção arcaica se verifica no contato hesitante com a presa. Quem é você?
Você é comestível? O animal em sua busca incessante por alimento toca
e cheira tudo quanto encontra. Mete seu focinho em toda parte: você
é comestível? Que gosto você tem? A resposta é um odor, uma reação,
uma rigidez inanimada. O corpo estranho é também seu próprio lugar:
cheirando-o, tocando-o é que é conhecido ou – traduzindo para nossos
costumes – é nomeado.”
Essa “pergunta muda” feita pela câmera não constitui, evidente-
mente, uma experiência primitiva; é um gesto que se define no campo
da cultura. Mas por não passar pela palavra, que dominamos, e sim
pela imagem, com a produção da qual não estamos familiarizados, o
estranhamento provoca movimentos que têm muito do gesto de tocar
e de cheirar do animal. Cada objeto “tocado” pelo “nariz” da câmera
deve ser, supostamente, “revelador” de gostos, de escolhas, de padrões,
permitindo descobrir quem é o anfitrião; ao mesmo tempo, para o
espectador, a escolha feita por cada hóspede parece reveladora do que
seria ele. E ele fica passando de uma a outra figura, sem que seja possível
se deter numa delas, já que o que o dispositivo busca é justamente essa
impossibilidade de decidir, essas idas e vindas, essa constante indagação
sobre a identidade: do dono da casa, do hóspede, a nossa própria.
A fala de cada um é também reveladora dessa mesma indetermi-
nação. Às vezes o visitante tem dificuldade em extrair do amontoado de
coisas uma abstração, “um personagem” – isto é, um significado que as
ultrapasse. Quando o “retrato” do anfitrião vem à tona, ele parece mais
revelador de quem o faz do que de quem estaria representado.
De todos esses discursos, o que emerge é essa “construção”:
do olhar, do outro, de nós próprios. Em vez de nos contemplar com
a solidez de sujeitos definidos, donos de sua escolha, o dispositivo de
120

Cao revela as linhas grosseiras por meio das quais fomos “esboçados”
(pela história? pela sociedade? pela cultura?), nossa baixa “definição”,
os conteúdos “comuns” partilhados por tantos, nossa unidade impos-
sível. Somos ao mesmo tempo “muito pouco” e “muitos” – ou seja,
não sabemos quem somos; e o que o dispositivo faz é a mise en abîme da
identidade, revelando-a como construção (histórica, cultural, ideológica).
Um dos participantes parece levar o dispositivo até as suas últimas
consequências. O poeta negro, para quem ser recebido na casa de um
desconhecido, que generosamente lhe abre as portas e deixa à vista sua
intimidade, é um gesto comovente. Ele não chega a elaborar um retrato
de seu personagem; acumula perguntas, aponta sinais, se angustia com a
força do mistério desse outro ausente. “Quem será ele?” “Quem somos
nós?” São as únicas perguntas enunciadas no vídeo – a primeira reatando
com aquela que pôs o dispositivo em ação e a última “encerrando” o
experimento do poeta, e dando por encerrada a função do dispositivo.
Em Rua de mão dupla não há pergunta formulada ao outro, no
sentido da entrevista. ”Chega-se” a uma pergunta, se levarmos em con-
ta esta que o personagem endereça a si mesmo. Ora, esta não é mais
uma pergunta que se faz no registro do poder, mas justamente porque
foi perdido o poder que estávamos certos de deter, no mais fundo de
nós – o de sabermos quem somos. Uma pergunta que só pode ser feita
quando já se sabe que ela não tem resposta.
Onde estaria, agora, o político? Ao que parece, ele é acionado pelo
próprio dispositivo, que põe em dúvida a suposta unidade, a identidade; e
pela própria estratégia narrativa do documentário, por sua vez constituída
pelo dispositivo. Dispositivo de mão dupla, portanto, capaz de operar,
ao mesmo tempo, como experimento e narrativa, para quem participa,
e como narrativa e experimento para o espectador.

*
121

Glauber com o povo brasileiro, Coutinho com o encontro e Cao


Guimarães com a desconstrução estão trabalhando, cada um a seu modo,
com o mesmo tema: a identidade. Se o trabalho de Glauber evoca o
povo brasileiro, não se trata, no entanto, de uma indagação sobre a sua
identidade. O que lhe importa não é saber quem ele é – o que todos os
poderes vocalizados pela sua fala não param de fazer – mas convocá-lo
enquanto força, cuja vitalidade e plasticidade lhe conferem o dom da
resistência ao poder, ao poder do discurso.
Coutinho também trabalhou e trabalha com gente do povo, mas
sua produção ganha fôlego na era da “virada subjetiva”. Voltada de
início para a experiência e a fala dos sujeitos, sua obra caminhou para
uma crítica do documentário, pondo em questão as dualidades que o
fundam, como os pares verdadeiro/falso, realidade/ficção. Tal ponto
de vista repousa, entretanto, sobre o jogo com outra dualidade, sujeito/
personagem, jogo que só funciona ao sustentar tal oposição, fechando o
círculo vicioso da identidade.7 O trabalho de Cao Guimarães também
opera, embora de modo enviesado, no universo da identidade. Mais
precisamente, no seu limite – quando ela se perde nos meandros da sua
própria construção, tornando-se impossível.

7 Sujeito ou personagem, esta aparente ambiguidade se desdobraria em Jogo de cena, onde o


relato da história das entrevistadas é repetido pelas atrizes, a ponto de se diluir a autoria da fala.
Colocar em questão a “verdade” do relato por meio de sua “distribuição” entre diferentes vozes
não vira o jogo no que ele tem de fundamental – a cena continua sendo a mesma, a do sujeito.
Ismail Xavier notou que os entrevistados de Coutinho se constroem como personagens clássicos
– isto é, ainda dentro dos limites dessa mesma cena; um lugar de onde a “representação” das
atrizes não pode subtraí-los, mas só “encarná-los”. O personagem moderno não se sente bem
nesta cena, da qual, sabemos, é difícil escapar. Jean Jourdheuil propõe um caminho, por meio da
noção de ”papel”, designação que conferiu ao Hamlet de Heiner Müller: em Hamlet-Machine este
deixa de ser o sujeito de uma história para se tornar uma figura atravessada por forças históricas,
afetivas, conscientes, inconscientes, físicas e metafísicas, que o acionam dentro de contextos
complexos. Nesse sentido, o ator não “encarna” mais uma dada subjetividade, real ou fictícia,
mas se constitui ele próprio como vetor de um campo de forças em movimento. In Muller,H.
Manuscrit de Hamlet-Machine. Les Editions de Minuit, Paris, 2003.
122
123

A câmera lúcida
José Carlos Avellar

Mãe severa (“Chamam para roubar e você vai?”), ela repreende


o filho que se portou mal (“Podia estar lavando um carro, podia estar
vendendo uma bala. Mas, não. Está roubando os outros”).
Madrasta, ela briga com as filhas (“Vocês não têm idade para ser
mãe. Agora, arrumaram? Segurem o pepino!”) porque roubaram, dizem,
para alimentar os filhos (“Não tem justificativa. Está sem serviço? Vai
procurar”).
Mãe feita em pedaços (“Teu pai te educou com muita dificuldade
e não foi para ser ladrão”), ela teme perder o filho (“Quer morrer? Na
hora do pipoco quem vai levar tiro da polícia é você”) que perdeu o
juízo (“Um cara que você nem conhece manda você segurar uma arma
e você segura”).
O filho baixa a cabeça (“Sim, senhora”) e baixa a voz (“Nós só
puxamos e corremos”). A filha engole o que diz (“Foi na hora do nervo-
so”). Os filhos falam mais com reticências e silêncios que com palavras
(“Aí... eu encontrei ele nesse lugar.... aí, ele me chamou para fazer isso...
aí, eu fiquei até meio assim... mas aí, ele falou: ‘vambora, embora logo’...
aí, eu fui”).
A imagem ensina a ouvir o que se fala e também o que se cala na
sala de audiências da Segunda Vara da Justiça do Rio de Janeiro.
O som ensina a ver a sociedade como uma fusão de partes que
não se falam. A juíza e o menor dentro do mesmo quadro são figuras de
espaços diferentes. A sala de audiências produz uma fusão momentânea.
Uma imagem aparece dentro da outra. Uma presa na outra. As duas
124

como se fossem uma só. Mas pertencem de fato a universos distintos e


distantes um do outro, assim como a favela distinta da cidade: em fusão,
dentro dela e simultaneamente fora dela.
O que se vê e o que se ouve em Juízo (2008), de Maria Augusta
Ramos, é que a favela da cidade fala uma língua e a cidade da favela
uma outra.
A juíza pergunta ao menor se valeu a pena abandonar a família
e a escola. “Valeu a pena ser preso?” Ele não entende a pergunta, quer
dizer que não mas diz que sim, que valeu a pena.
Um beneficiado com uma “L.A.” não entende que o sistema
judicial lhe concedeu uma Liberdade Assistida e por isso foge do Ins-
tituto antes de ser libertado. Volta a ser preso como fugitivo da lei que
o libertou.
O promotor quer saber a idade do infrator (“Nasceu quando?”)
e a resposta absurda vem num tom banal (“Não sei”). O promotor não
entende que alguém não saiba o dia de próprio aniversário e repete a
pergunta (“Não sabe sua idade? Não sabe o dia de seu aniversário?”).
O menor não sabe e, parece, não está interessado em saber (“Não sei
não. 14? 15 anos?”).
O que foi preso por tentativa de roubo diz que que não queria
roubar nada, pulou o muro da casa para ser preso. A juíza não entende
a explicação que parece absurda (Ela está certa de que existe aí uma
boa dose de esperteza): ele queria ser preso para, na prisão, ir à escola.
Num canto da cela, fora de quadro, conversa a meia voz, dois
internos do Instituto Padre Severino se entendem: “Aí, Filipinho:
como é que eu faço? Vou sair daqui. Quero comprar um tênis, 450
reais. Eu trabalhando, ganho 350. Vou comprar como? Vou voltar a
vender droga.”
Com as imagens das celas do Instituto Padre Severino, das ruas
e casas da favela e especialmente com as imagens da sala de audiências
da Vara da Infância e da Juventude, o filme compõe um quadro-síntese
125

do mecanismo social que produz o menor infrator. Nas audiências, Juízo


torna visível não apenas as audiências. No ritual da justiça ele revela
também (no modo de ver o que vê) a desigualdade social que conduz à
vontade de roubar ou de vender drogas para comprar o tênis mais caro
que o salário mínimo. Silenciosa e atenta por trás do menor acusado,
de frente para a juíza e para o promotor, ao lado do defensor público,
a câmera não perde de vista o que de fato se expõe na audiência: a im-
possibilidade de diálogo. A língua parece a mesma, mas as palavras se
referem a realidades e experiências diferentes.
Promotor, réu, defensor, juiz, inspetor, parentes dos acusados,
ninguém tem certeza de entender o que acabou de entender. Que fazer?
Como segurar o pepino? Que fazer com o infrator que fugiu do instituto
depois de ser declarado em liberdade? Que fazer com a menina-mãe que
roubou uma câmera fotográfica do turista no Leblon para sustentar a
filha? Que fazer com o menino-pai que trabalha como engraxate para
sustentar o filho? Que fazer com o filho que matou o pai que batia nele?
Que fazer com o menino sem pai nem mãe que roubou uma bicicleta na
Lagoa? Que fazer com o menor que em liberdade voltará a se envolver
com o tráfico? Que fazer com a menina que prefere permanecer presa
a voltar para casa? Que fazer ? Olhar de frente, sugere o filme. Para
começar, olhar de frente, encarar a questão.
Na sala de audiências – cena teatral, espelho da sociedade – a juíza
aparece como uma imagem-síntese das diversas mães sem condições
para impedir que os filhos se tornem infratores. Está na outra ponta
do problema, instada a fazer justiça num contexto que não deu às mães
as condições mínimas para que as elas pudessem dar aos filhos uma
educação justa.
Existe na juíza um pedaço da mãe que chora porque a filha
não quer voltar para casa (“é muita função em cima de mim sozinha,
eu tenho que fazer o papel de mãe e de pai, dar carinho, dar amor e
corrigir”).
126

Um pedaço da mãe que explica com um leve aceno de cabeça


que não tem como sair da favela em que mora para afastar o filho das
más companhias.
Um pedaço da mãe que defende o gesto extremo do filho que ma-
tou o pai a facadas (“Ele batia de cinto nele todo dia. Chegou a quebrar
a fivela. Ele até desmaiou. Por duas vezes ele desmaiou”).
Um pedaço das mães abraçadas aos filhos no silêncio arranhado
no dia de visitas no Instituto Padre Severino, breve instante em que as
famílias desagregadas se reúnem de novo.
A juíza é um pouco de tudo isso e mais do que tudo isto: é
uma tentativa desesperada de manter um mínimo de lucidez. Além
da imagem não muito distante das mães dos menores em julgamento,
a juíza (bem entendido: a juíza enquanto imagem do filme) tem um
quê de câmera de cinema. Ela é a autoridade que fala firme ao repre-
ender a menina que se tornou mãe antes de deixar de ser menina. É
a autoridade que quase se cala diante do menor que matou o pai a
facadas. Procura não perder o foco, não errar na luz, não descuidar
da composição do quadro.
O cinema na sala de audiências ensina a ouvir as entrelinhas e a
ver o fragmento de realidade documentado como cena real e ao mesmo
tempo como cena de cinema. Como cena que no que está ali se refere
também ao que não está ali. Como cena consciente de que no cinema
todo campo revela o contracampo, todo quadro fala também do fora de
quadro. Na sala de audiências, o cinema, como de hábito, ou um pouco
mais do que de hábito, diz que é preciso ver em movimento,
De repente, a câmera toma o ponto de vista da juíza e o espectador
se confronta diretamente com o menor interrogado  – o que roubou a
bicicleta, a que puxou a máquina do turista, o que participou do assalto
a mão armada, a que não quer voltar para casa, o que pulou o muro para
ir à escola, o que matou o pai porque ele batia nele e batia na mãe, falam
de frente para o espectador.
127

O rosto do jovem infrator que responde à juíza é, digamos assim,


metade da figura que o espectador recebe. Ver o rosto do menor que
responde é, ao mesmo tempo, ver o rosto da juíza, naquele instante
fora de quadro. Na imagem, nesta aqui como em qualquer outra de
cinema, o espectador se dá conta do que está na imagem e igualmente
do ponto de vista de onde a imagem foi filmada. É como se a pessoa-
metade que o espectador é durante a projeção de um filme saltasse
para fora de si para ver de outro ponto de vista. No cinema, enquanto
passa o filme, tal como quando sonhamos, somos uma fusão: metade
de nós vê a cena a meia distância, metade vê do ponto de vista do
personagem em cena.
Como a identificação de menores infratores é vedada por lei, Juízo
propõe uma imagem que resulta de um procedimento aparentemente
simples: eles são substituídos por jovens não-infratores que repetem de
frente para a câmera o que os réus disseram na audiência em resposta
às pergunta dos juízes. O que parece simples na verdade não é nada
simples, pois não se trata de mostrar a audiência, assim como uma
ação é narrada nos filmes (pelo menos em grande parte dos filmes de
ficção) com um olhar que se move do campo para o contracampo e
logo retorna ao campo. De frente para a câmera, intérpretes – mas
não exatamente atores. Os que interpretam os menores infratores são
jovens que vivem em condições semelhantes às dos reais infratores
que vemos de costas no tribunal. Eles recitam os textos, reconstituem o
instante de interrogatório a partir de suas diretas experiências de vida.
A não-interpretação não é resultado de um método, de um efetivo
trabalho de ator. Para se preparar eles viram as imagens das audiências.
Decoraram as falas e no banco dos réus repetem as respostas para a
câmera na cadeira da juíza – uma câmera que, então, talvez mais in-
tensamente que em outro qualquer momento, documenta. Documenta
não a interpretação, mas a pessoa que interpreta. Documenta o intér-
prete. Juízo não vê propriamente o personagem que o jovem não-ator
128

interpreta, mas sim o jovem que interpreta. Este quase-ator não faz
parte da cena, mas está numa outra cena que se superpõe àquela que
interpreta, está em cena como a pessoa que realmente é. Está presente,
visível, mas como se fosse o fora de quadro da cena, como se fosse
apenas uma sombra do que realmente se encontra na luz do ponto
de vista dramático. Sem perder de vista a luz, vemos a sombra. Isto
que, numa ficção, desmontaria a encenação – o ator, por uma razão
qualquer, mais aparente que o personagem que interpreta –, aqui, ao
contrário, torna a cena mais expressiva.
O espectador é solicitado a estabelecer uma outra relação com a
imagem: juízes, procuradores, defensores, inspetores, familiares, as pes-
soas reais na Vara de Justiça e no Padre Severino, são percebidas como
fragmentos de realidade usados, digamos assim, para montar uma quase
ficção. Como é normal no cinema, o sentido da imagem ultrapassa o
simples reconhecimento da forma. O registro, o pedaço de cena real
registrado é a matéria bruta para a construção de uma representação,
uma composição cinematográfica. A realidade, uma vez transposta para
a imagem do filme, passa a existir como ficção.
Ao contrário, os intérpretes que repetem as respostas dos me-
nores infratores no julgamento real são fragmentos de ficção usados,
digamos assim, para ultrapassar a carga de encenação que possuem e
retornar à realidade que originou a cena. A ficção, ao mesmo tempo
em que não deixa de ser o que efetivamente é, uma encenação, deixa
de ser o que é para se transformar num registro vivo: documenta a
realidade do quase-ator, capaz de reconstituir uma experiência real-
mente ocorrida porque direta ou indiretamente ela também foi vivida
por ele. O infrator, o que esteve de verdade no banco dos réus, é seu
outro eu. Ao interpretar o outro, cada um dos jovens não-atores inter-
preta a si mesmo. A grande semelhança entre os meninos e meninas
vistos de costas na sala de audiências e os meninos e meninas que se
voltam para a câmera cara a cara não se deve a nenhum especial efeito
129

cinematográfico. Eles têm o mesmo gesto reprimido, a mesma voz


encolhida, são, a rigor, a mesma persona.
A presença simultânea de dois eus talvez possa ser melhor com-
preendida se estabelecemos um paralelo entre Juízo e Jogo de cena. Os dois
filmes foram realizados quase ao mesmo tempo, em 2008, e se servem
de um mesmo procedimento cinematográfico, a montagem de cenas
de ficção ao lado de cenas reais. Digamos assim, cenas reais e cenas de
ficção, mas não é certo que se possa falar de ficção nas cenas de ficção
que vemos em Maria Augusta Ramos e em Eduardo Coutinho. Nem é
certo que se possa falar de realidade nas cenas reais que vemos nestes
filmes. Neles, a ficção não se contenta em ser a cena livremente inventada
que pelo menos em grande parte é. Nem a cena real se contenta em ser o
direto reflexo de um fragmento da realidade que pelo menos em grande
parte é. O que temos nos dois filmes é um mecanismo de reconstituição
e de reflexão que insere no quadro um fragmento da realidade e de seu
outro eu. O que temos é a radicalização de um comportamento essen-
cialmente cinematográfico.

Imaginemos a reconstituição não como um modo de compor um


reflexo de um fato realmente acontecido, mas como um modo de figurar
uma reflexão – a palavra aqui tomada como peça de um jogo de cena:
reflexão como um aumentativo de reflexo.
A presença simultânea na imagem de um personagem real e de seu
outro eu resulta do desejo de não simplesmente reapresentar o mundo
visível por meio de um mecanismo cinematográfico – não re/apresentar:
representar. Tornar visível o que não se vê. Colocar na tela uma imagem
de cinema e seu outro eu, a realidade.
130

[Realidade: a palavra aqui deve ser tomada como imagem,


expressão aberta e naturalmente ambígua, como são as
imagens. Portanto, realidade como a imagem formulada
por Pier Paolo Pasolini pouco depois de filmar Teorema
(1968): “De fato, meu único ídolo é a realidade. Escolhi
ser cineasta ao mesmo tempo em que um escritor, porque
em lugar de exprimir esta realidade por meio de símbolos,
que são as palavras, preferi neste outro meio de expressão,
o cinema, exprimir a realidade por meio da realidade.”]

Tornar visível um pedaço da realidade até então encoberto talvez


seja a vontade maior que alimenta Que bom te ver viva (1989), de Lúcia
Murat, a montagem alternada de cenas reais – depoimentos de ex-presas
políticas torturadas durante a ditadura militar – e cenas de ficção em
que uma personagem interpretada por Irene Ravache comenta o que se
conta nas entrevistas. Diferentes texturas fotográficas são usadas para
marcar as cenas reais (filmadas em luz ambiente com câmera fechada
no rosto das entrevistadas) e as cenas de ficção (feitas com luz artificial
e com a câmera aberta ao cenário em que se encontra a personagem).
Mas, ainda assim, também aqui não é certo que se possa falar de cenas
de ficção na ficção que vemos no filme nem de cenas reais nos registros
documentários.
O estilo de composição do filme de Lúcia Murat de certo modo
antecipa os procedimentos que Juízo e Jogo de cena retomam e ampliam.
A cena de cinema, diz o filme de Lúcia Murat, reafirma os filmes de
Maria Augusta Ramos e Eduardo Coutinho sem estabelecer diferenças
de textura entre as imagens; toda e qualquer cena de cinema traz dentro
de si ficção e documentário. O hábito de se referir a uma destas forças
da invenção cinematográfica como oposta à outra se deve à sensação
imprecisa – mas comum – de que o cinema foi inventado para repro-
131

duzir a realidade em movimento tal como ela é. E, em consequência, à


preocupação de definir se e quanto o realizador interferiu na cena que
filma para pensar os limites, a natureza e intenção desta interferência.
Que bom te ver viva, por exemplo: a intervenção da realizadora nas cenas
reais em que as mulheres contam como se reinventaram depois da
brutalidade da prisão prepara o espectador para as cenas de ficção. É
uma intervenção que deixa a câmera quase tão solta para enquadrar,
cortar e montar quanto a de um filme de ficção. A aparência externa do
quadro nas cenas reais prepara os olhos para o que se encontra dentro
do quadro de ficção, quando a câmera, então, age com uma discrição
semelhante à que costuma adotar num filme documentário. Esta apa-
rente subversão da ordem, o documentário filmado como uma ficção e
a ficção como um documentário, permite a compreensão simultânea de
diferentes dimensões da experiência vivida pelas personagens – as que
elas conseguem traduzir para a câmera nos depoimentos e as que talvez
só possam ser contadas numa ficção.
Num depoimento, uma entrevistada pergunta quem estaria inte-
ressado em ir ao cinema ver um filme sobre a tortura. Pergunta como
quem já sabe de antemão que o interesse será pequeno. “Toda a gente
acha melhor esquecer, talvez para não entrar em contato com uma
coisa tão dolorosa.” Adiante, outra entrevistada diz que cinema é bom
porque, a partir da realidade pintada na tela, “a gente pode fantasiar,
temos inspiração para sonhar, para deixar a cabeça livre”. A conversa
(cinema e realidade, cinema e sonho) continua na cena de ficção (no
que se diz e no modo de dizer). Esta personagem é, talvez, um outro eu
da realizadora, que também foi presa no período da ditadura. É talvez
uma imagem-resumo das entrevistadas. Com toda a certeza é uma per-
sonagem solidária com as outras, capaz de sentir o que elas sentem e ao
mesmo tempo capaz de distanciar-se o mínimo necessário para pensar
o sofrimento comum em voz alta: “Quem vai ver o filme além de nós?
Nossas guerras são menores ou apenas nosso medo é maior?”
132

Na cena de ficção, um discurso inconsciente. Não menos ver-


dadeiro e documental, mas diferente daquele em que as ex-presas
políticas contam um pedaço de suas vidas diretamente para a câmera.
Na cena real, personagens que falam como quem está bem consciente
do que fala. Na ficção, uma personagem que fala para si mesma, e não
tão segura de si, um discurso interior. A personagem de ficção não
reconstitui um determinado instante ou acontecimento. Prossegue,
responde, analisa, imagina. Vive num outro espaço e tempo o que as
mulheres entrevistadas viveram entre a prisão e a retomada de suas
vidas. Revela um outro aspecto deste processo. Fala como se fosse a
realizadora na sala de montagem (ou como se fosse uma espectadora
na sala de projeção), e talvez por isso se possa dizer que o filme (não
apenas nestas imagens em que mostra a personagem de ficção, mas o
filme como um todo, os depoimentos das personagens identificadas
mais o monólogo interior da personagem que não tem nome) se com-
põe como um autorretrato da diretora: todas as mulheres que vemos
ali são seus outros eus.

Talvez seja possível dizer assim: consciente ou inconscientemente,


o realizador de um filme documentário discute parte de si mesmo na
imagem do outro. Compõe uma espécie de autorretrato na questão que
filma (como observa Eduardo Coutinho: “Eu só filmo o outro para
resolver um mal-estar comigo mesmo”).
Em maior ou menor escala, enquanto filma, o documentarista
deixa de ser ele mesmo: filma como se fosse outra pessoa (como observa
Cao Guimarães: “Enquanto filmo eu sou outro, sou um cavalo-de santo,
como se diz no candomblé sobre aqueles que recebem: dou forma a algo
que está além do que sou capaz de entender”); se esvazia de si mesmo
para filmar melhor (como diz Geraldo Sarno: “Alguma coisa se ilumina
133

na relação com o outro e, em alguma medida, o outro me invade”);


talvez seja possível dizer que o documentário é a possibilidade de uma
absoluta fusão entre o eu da pessoa que filma e o eu da pessoa filmada
(como diz João Moreira Salles, num documentário “o autor entrega parte
da autoria à realidade, entrega a possibilidade do filme ter alguma força
a pessoas que ele não controla”); ou que o documentário é o instante
em que o gesto da pessoa que filma se alinha com o da pessoa filmada
e com o da pessoa que vê o filme.
Talvez seja possível dizer que num documentário o realizador
se encontra ora em seu lugar, ora no lugar do entrevistado, ora no do
espectador e que o caminho que se percorre então é todo o tempo de
mão dupla – o espectador ora assume o lugar do entrevistado, ora o lugar
de realizador; todos trocam de posição a todo instante. Este é um dos
temas de Jogo de cena, documentário que se realiza por inteiro no espaço
inventado para dar vida à ficção: um palco de teatro.
A câmera olha para a plateia vazia. Os espectadores estão num
palco de teatro. Os espectadores, isto é: o que na projeção vê o filme
com a sensação de se encontrar no palco de um teatro; o que vê o filme
no exato instante em que ele se faz por trás do visor da câmera (neste
documentário, mais do que em qualquer outro, o diretor se reduz a um
quase espectador da cena real que filma); e também as mulheres entre-
vistadas, que se sentam no palco de costas para a plateia, de frente para a
câmera e para a equipe. Não só o que é essencialmente um espectador, o
que vê a projeção do filme, pode ser tratado como tal: também o diretor
e as pessoas que falam para a câmera de Jogo de cena se comportam, numa
certa medida, como espectadores.
A câmera, no palco do teatro, de frente para a plateia vazia, está
à espera das pessoas que serão entrevistadas. Na cadeira dos entre-
vistados, somente mulheres. Quase todas se apresentam em resposta
ao convite publicado num jornal e reproduzido na primeira imagem
do filme:
134

“Convite. Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do


Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste
para um filme documentário, procure-nos.”
Além das mulheres que se apresentam em resposta ao anúncio,
atrizes convidadas pelo diretor para ocupar a mesma cadeira e repetir
as histórias contadas nas entrevistas. Convidadas para transformar em
ficção as histórias contadas pelas personagens reais, algumas atrizes
também são entrevistadas. Ora comentam a experiência de criar uma
cena inspirada numa pessoa real que esteve pouco antes naquele mesmo
espaço, ora contam uma história pessoal para a câmera.
Em jogo, portanto, personagens reais e personagens de ficção. Às
vezes uma personagem real sai de si mesma e (consciente ou inconscien-
temente) inventa uma ficção para se explicar – para si e para os outros.
Às vezes uma personagem de ficção sai de si mesma (poderíamos dizer
assim?) para melhor representar a personagem real que a corporifica: a
atriz fala de seu processo de trabalho ou conta uma história pessoal, sem
relação direta com a personagem que interpreta ou reconstitui.
Reconstituição: esta talvez seja a palavra que mais se aproxima
do que as atrizes fazem ao repetir o texto das entrevistas. E também
a que mais se aproxima do que as entrevistadas fazem ao contar suas
histórias para a câmera. Sem dúvida, diferentes níveis de reconstituição,
diferentes processos, entre o intuitivo de uma e o metódico de outra. Mas
atrizes e não-atrizes se encontram aqui neste ponto do palco em que a
representação consiste em reconstituir uma pessoa ou acontecimento.
Como atrizes e não-atrizes reconstituem uma história real, é difícil, quase
impossível, identificar quem é quem.
O que vemos enquanto vemos? Uma atriz que representa uma
mulher entrevistada para um documentário? A real entrevistada? Uma
atriz que fala de si na personagem que interpreta?
A única certeza, talvez: num caso e noutro e noutro vemos perso-
nagens – criadas pelas mulheres entrevistadas ou pelas atrizes convidadas
135

para repetir o texto das entrevistas. Na imagem, todo o tempo, persona-


gens. A regra do jogo exige não revelar se o espectador vê uma cena de
verdade ou de ficção, mas exige também deixar claro que o jogo existe.
Ele se anuncia no título, na imagem que abre a narrativa e na presença
de atrizes conhecidas por seu trabalho em cinema, teatro ou televisão,
como Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra.
Atrizes e personagens reais se alternam de modo aleatório. Uma
história começa a ser contada por uma mulher e subitamente outra
mulher recomeça a contar a mesma história. Uma história começa a ser
contada por uma mulher, passa a ser contada por uma outra, retorna à
primeira narradora: cada uma delas conta um pedaço do que aconteceu.
Ou ainda: uma história contada por inteiro algum tempo antes reaparece
mais tarde interpretada por outra pessoa. E como também o diretor
interpreta – isto é, repete para as atrizes as perguntas que fez para as
mulheres que entrevistou –, a sensação é de que todos representam, mes-
mo quem conta algo que de fato viveu. O cinema no palco de teatro nos
diz que não importa identificar onde estamos, na ficção ou na realidade,
mas reconhecer uma coisa na outra, como duas dimensões superpostas.
A atriz, enquanto interpreta, não deixa de ser ela mesma. Vive na própria
pele o processo de composição de um filme documentário: ela se esvazia
de si mesma para incorporar seu outro eu, a personagem que interpreta.
E a real entrevistada, enquanto narra a história que viveu de verdade,
interpreta. Conta o que viveu numa figura de ficção que inventa para se
fazer compreender por seu interlocutor. Conta como de fato é para a
câmera por meio de um seu outro eu.
A verdade da ficção, deste modo, não pode ser dissociada da
ficção da verdade.
O filme se realiza num espaço em que tanto pode ser discutido
como uma ficção com trechos de documentário quanto como um docu-
mentário com trechos de ficção. Melhor: se realiza num espaço em que
a câmera revela o tanto de construção formal que faz parte de todo o
136

documentário e o tanto de documentário que faz parte da ficção. Mostra


o que o documentário essencialmente é: cinema. Não uma tentativa de
compor um registro objetivo da realidade – antes, o objetivo do registro
é subjetivo. Assim, ao levar uma atriz a interpretar uma personagem real,
Jogo de cena mostra numa imagem como o cinema documentário registra
e interpreta um acontecimento real.

Convém trazer à memória a imagem verbal inventada para se


referir ao mecanismo criado para registrar, através de uma objetiva, a
aparência de pessoas e coisas: falamos de câmara obscura; falamos de
câmara lúcida. Costumamos dizer que nos apagamos para receber a luz
ou que nos projetamos na razão desperta para definir a experiência de
ver o mundo pela fotografia. Fotografamos não para imitar, mas para
pensar a natureza, para criar uma realidade outra. Convém trazer à me-
mória a contradição que faz parte da essência mesma do cinema desde
a primeira sessão do cinematógrafo, a contradição entre Lumière, La
sortie des ouvrières, e seu outro eu, L’arroseur arrosé.
Um certo quê de ficção orienta a câmera quando ela fotografa uma
cena real, a saída dos operários da fábrica. Um certo quê de documentário
orienta a cena de ficção quando ela posa para a fotografia num cenário
real, a história do jardineiro que recebe um jato de água na cara. Com
os operários e o jardineiro de Lumière na memória, talvez seja possível
imaginar que, numa certa medida, nos movemos todos dentro de um
processo fotográfico de compreensão da realidade: o realizador, na fil-
magem, se converte numa câmera lúcida diante da cena; o ator, na cena,
se transforma numa fotografia do gesto que uma pessoa inventou para
fotografar o que pensava e sentia; o espectador, na projeção, se reduz a
uma câmara obscura dentro de outra câmara obscura, expressão radical
deste processo de fotografar fotografias.
137

“A empreitada se revelou dificílima”, lembra Fernanda Torres na


revista Piauí de dezembro de 2006. Ela fora chamada “para repetir, como
atriz, o depoimento que uma mulher havia dado dias antes ao diretor. Não
uma personagem de ficção, mas uma mulher de verdade, que contou sua
história. Me mandaram a fita com o depoimento dela. Eu deveria assistir
e encontrar uma maneira de interpretá-la, repetindo o que ela havia dito”.
O que Coutinho de fato propõe é um jogo de mão dupla que
começa numa entrevista em que uma mulher conta um pedaço de sua
vida, passa pela cena em que a atriz interpreta o texto da entrevista e
termina numa outra entrevista, então com a atriz, depois da cena, sobre
a experiência de interpretar uma personagem real.
Assim, terminada a cena, a conversa entre Marília e Coutinho
continua. Eles concordam: foi uma interpretação contida, mas num
dado momento ela quase chorou (“Quando falei da filha dela, veio na
minha memória afetiva a imagem da minha filha”). Quase chorou, mas
conseguiu conter as lágrimas (“Quando o choro é verdadeiro a pessoa
sempre tenta esconder”), porque as pessoas não são como os atores
(“O ator, principalmente o ator hoje, o ator da tela, o da televisão tenta
mostrar a lágrima”). Marília não chorou, mas veio preparada para chorar
(“Pensei assim: se o Coutinho quiser muito, muito, muito, muito que eu
chore...”), existe o cristal japonês (“é só você passar um pouquinho e
chora-se muito”).
Depois de interpretar seu personagem, Andrea diz que não queria
chorar (“Eu não preparei choro nenhum, não queria”), mas não con-
seguiu recitar o texto sem chorar (“Não sei o que senti; se tivesse me
preparado como atriz para chorar eu não teria ficado tão incomodada”).
Fernanda, no meio da cena, engasga. Começa a recitar o texto
(“Acho que sou uma pessoa não-assertiva, uma pessoa que não sabe
colocar suas opiniões quando encontra alguém que sustenta bem as dela,
138

entendeu?”), mas para no meio. É como se a câmera estimulasse na atriz


um comportamento – não-assertivo? – idêntico à da personagem. Para.
Comenta o impasse a meia voz (”Que doido, cara!”). Tenta prosseguir,
não consegue (“Que doido isso! tão engraçado, gente; vamos ver isso
de novo?”). Preparou tudo, sabe o texto de cor, (”Mas, conforme fui
falando, você me olhando, parecia que estava mentindo para você; não
sei, é delicado”), mas não consegue recitá-lo (“Que loucura, gente! que
loucura! que dificuldade que estou passando”). Desvia os olhos para o
chão, estica o silêncio até um riso sem jeito (“Que loucura, Coutinho”),
um riso quase igual ao que descobriu na personagem real. Comenta que
para representar uma personagem de ficção “basta atingir um certo grau
de realidade, aquela pessoa passa a existir. Mas uma personagem real
esfrega na sua cara onde você poderia chegar e não chegou”.
No citado texto da revista Piauí, Fernanda lembra uma expressão
em inglês – suspension of disbelief, a suspensão da descrença – que “define
o estado do espectador que aceita a ilusão criada em seu benefício. Um
ator precisa que a plateia embarque na mentira, assim como uma criança
precisa da outra criança para brincar de polícia e ladrão. É um fingimento
mútuo: eu vou fingir que não sou eu e você vai fingir que acredita”. Talvez
o olhar do diretor de algum modo não lhe tenha passado a cumplicidade
que estimula o fingimento (quem faz documentário olha como quem
procura a realidade em estado bruto e não uma representação dela?). O
certo é que no dia da filmagem Fernanda foi para lá nervosa, “com a tal
mulher no corpo, doida para me livrar dela. Na hora combinada, diante
da câmera, o personagem em mim, a equipe continuou a se relacionar
comigo, a Nanda Torres, e aí me deu um curto, a boca secou, a mulher
se escafedeu, sumiu”. E conclui com uma frase de Amir Haddad: “A
pior coisa que existe é você estar com a entidade no corpo e os outros
insistirem em falar com o cavalo”.
Com um certo exagero talvez seja possível dizer que o filme de
Eduardo Coutinho trata principalmente desta questão que Andrea,
139

Marília e Fernanda – esta última, de modo mais intenso – vivem diante


da câmera. Talvez seja possível dizer que em Jogo de cena as pessoas reais
entrevistadas são a matéria bruta para a elaboração do que de fato inte-
ressa, a cena com as atrizes. As entrevistas são a cena antes da cena existir
de fato, antes de ser posta em jogo pelas atrizes. O filme, na realidade,
é sobre as atrizes. O que o documentário verdadeiramente documenta
aqui é o processo de criação de uma personagem – em particular o pro-
cesso de criação de uma personagem pelo ator, o tanto deste processo
que se inspira diretamente na realidade. Por isso mesmo a conversa tem
início com uma mulher que nos conta que se descobriu como pessoa de
verdade ao se transformar numa atriz.
Com um certo exagero, também, talvez seja possível dizer que o
filme de Maria Augusta Ramos se volta principalmente para os intérpre-
tes, se não esquecemos que em Juízo os intérpretes não são intérpretes
– são jovens que saíram dos mesmos bairros à margem da cidade em que
viviam os verdadeiros infratores. Em parte, porque são deles os rostos
que vemos. Eles emprestam seus rostos aos menores infratores que
vemos de costas na sala de audiências, no refeitório e na sala de visitas
do Instituto Padre Severino. Em parte, também, porque os menores
infratores na sala de audiências existem quase exclusivamente enquanto
voz: a imagem é a da juíza. A atenção do espectador está no menor de
costas para a câmera, na imagem, mas fora de quadro, porque o que se
vê, de fato, é a juíza. Ela é o que o espectador vê. O olhar se desloca
da quase silenciosa silhueta do menor em julgamento para a figura bem
iluminada e falante da juíza. Mas o olhar não tem para onde se desviar
quando diante do não-ator que encena as respostas para a câmera – e sua
presença, o que ele nos diz com sua presença, é (talvez porque estamos
no cinema) mais forte que as histórias contadas nos trechos em que
aparecem os reais infratores. O que o documentário verdadeiramente
documenta aqui é a presença destes não-atores, é o que eles mostram de
si mesmos ao mesmo tempo em que reconstituem o que seus outros eus
140

viveram na sala de audiência ou nas celas da prisão. Eles reconstituem


um pouco de si mesmos para uma câmera discreta e firme, toda ouvidos,
olhos nos olhos deles, contam que vivem uma condição como a de um
acusado diante do juiz. Reconstituem como meninos e meninas iguais a
eles sentem quando o juiz repete o que a cidade diz para eles com outras
palavras todo o tempo: tenha juízo, “Está sem serviço? Vai procurar”.
Ou, como ordena o guarda do presídio na hora da comida:“Baixa a
cabeça! Todo mundo! Em linha!”.
 
6

A pergunta surge de modo inesperado no meio da entrevista.


Surge como se a regra do jogo não estivesse claramente estabelecida.
Num instante de Edifício Master (2002) Coutinho se volta para Daniela
e pergunta o que em princípio não caberia perguntar porque perguntar
é a essência mesma de uma entrevista: “Posso perguntar uma coisa?”
A pergunta nos conduz a outra: o quê um documentário pergunta
ao fragmento de realidade que documenta?
Um documentário não necessariamente se realiza com entrevistas,
nem necessariamente numa entrevista propõe perguntas objetivas à es-
pera de uma resposta objetiva. Basta lembrar o que Eduardo Coutinho
pergunta a certa altura de Boca de lixo (1992) a uma mulher que trabalha
do vazadouro de Itaoca: “É bom trabalhar aqui no lixo?”
A pergunta, então, não está à procura de uma resposta. O que a
imagem mostrou até então é mais do que suficiente para revelar o ab-
surdo da pergunta. A imagem apresentou a resposta antes mesmo que a
pergunta se formulasse. A questão se propõe para provocar a conversa,
para estimular a fala. Um documentário, portanto, não necessariamente
busca respostas. Não necessariamente propõe perguntas ao fragmento
da realidade diante dele. Ou, se pergunta, não o faz para obter um escla-
recimento, uma explicação, uma resposta clara. Formula uma questão,
141

uma hipótese, uma dúvida, para deflagrar (e flagrar) a cena real que se
produz a partir da pergunta. Cena real que se produz porque o cinema
se insere na realidade, provoca a cena. Que se produz essencialmente
como cena de cinema, embora o cinema, depois de provocar a cena,
não tenha mais controle sobre ela.
A pergunta pode provocar uma cena, um instante, um encontro,
como os filmados por Coutinho em Edifício Master. Instante em que
uma pessoa resume sua experiência num depoimento: Henrique conta
como foi importante subir no palco e cantar um verso de My way ao lado
de Frank Sinatra – os versos da canção contam a história dele. Esther
conta como se desesperou ao ser assaltada e como ainda hoje sofre com
a lembrança do roubo. Antônio Carlos fala da timidez, da gagueira, da
infância pobre e explica como foi importante receber o reconhecimento
de seus méritos pelo chefe de seu departamento.
A pergunta ou hipótese formulada por um documentário pode
flagrar um instante em que se define a experiência que as personagens
vão viver a partir daí, como as audiências na Segunda Vara de Justiça do
Rio de Janeiro, filmadas por Maria Augusta em Juízo.
A pergunta pode ainda gerar um instante qualquer, um instante
que não condensa uma experiência vivida nem antecipa uma experiência
por viver. A pergunta pode não querer como resposta nada além do que
se produz, ou não, por acidente naquele exato momento, como occorre
na conversa de beira de estrada surpreendida por Cao Guimarães em
Andarilho (2006) – o estrondo que vem do céu bate na imagem como
uma resposta zangada às ofensas de um dos andarilhos contra Deus.
A pergunta que Coutinho propõe a Daniela talvez possa ser retirada
do preciso contexto em que se faz (ele queria saber porque ela conversava
com ele mas não olhava para ele) para representar algo que se encontra
na raiz do gesto documentário, empenhado em construir uma realidade
outra para representar a realidade diante da câmera: “Posso perguntar uma
coisa? Por que a gente conversa e você não olha para mim?”
142

Dois planos aparecem um depois do outro, no trecho final do


filme:
O rosto de um menino de óculos.
Uma paisagem dominada por uma árvore.
Parte da cena é o que nela se vê. Parte, o que nela se representa. E
mais: tão importante quanto perceber os dois planos pelo que significam
na narrativa em que estão inseridos é percebê-los como uma imagem da
estrutura que organiza a narração.
Na cena, o menino e a árvore que o espectador vê como se fil-
mada por trás dos olhos de Tiago, que graças às lentes dos óculos vê
pela primeira vez a árvore que via todos os dias. Na memória afetiva do
espectador o pequeno míope vive experiência idêntica à que cada um de
nós viveu quando viu o mundo pela primeira vez através das lentes do
cinema. E, assim, a alegria do menino com os óculos emprestados pelos
dois visitantes que passam ao acaso é o que o espectador vê nos olhos
do personagem (bem abertos para o brilho das cores e a definição das
formas descobertas através das lentes) e o que ele vê através dos olhos
do menino: uma representação da descoberta do cinema.
A cena pode ainda ser compreendida como uma imagem-síntese
da estrutura de composição do filme, como uma figura equivalente aos
óculos que abrem a visão de Tiago. Quase ao final da narrativa, estes
dois planos ajustam o foco: as imagens vistas na projeção, ainda que
bem definidas na tela, compreendemos então, foram feitas por um
narrador míope.
Mutum (2007), de Sandra Kogut, é uma soma de detalhes obser-
vados bem de perto e colados um depois do outro como anotações
soltas: o vento forte que derruba tudo no quintal; a brincadeira com a
lama depois da chuva; a roça; o trabalho de capinar com o pai; a garga-
lhada aberta na porta da cozinha; a nuvem branca perdida no céu azul;
143

o banho de chuveiro nos passarinhos; a boca cheia de água para cuspir


suave na gaiola; a tristeza pela doença do irmão. Tais imagens não se
articulam por uma qualquer relação de causa e efeito. O que dá unidade
e continuidade a estas notas é a comum preocupação de ver do ponto
de vista de uma criança duas vezes míope: porque seus olhos não veem
em foco o que se passa distante, porque os adultos não deixam que ela
veja em foco o que se passa ali perto: o pai briga com a mãe por uma
razão não conhecida e por trás da porta fechada; o tio lhe dá uma carta
que ele deve entregar em segredo, sem ler.
Na imagem em que Tiago descobre a árvore, graças aos óculos,
nenhum efeito especial – apenas uma paisagem fotografada com boa luz
e definição; apenas um instante em que um plano está ligado em direta
continuidade com o anterior. O foco que se estende do primeiro plano
até o fundo do quadro é o suficiente para o espectador sentir (muito
provavelmente sem ter consciência disso) que até aquele momento fora
convidado a ver como um míope para jamais perder Tiago de vista; para
não tirar os olhos do menino míope; para continuar a vê-lo mesmo
quando ele não se encontra em cena.
Mais do que não tirar os olhos de Tiago, o espectador vê pelos
olhos de Tiago – a miopia aqui é a ficção; a história parece feita de peda-
ços de uma história de verdade. E ver a realidade de modo fragmentado,
limitado por uma espécie de miopia, contribui para a compreensão de que
a realidade se apresentava deste mesmo modo para Tiago: fragmentada.
Em Juízo e em Jogo de cena, podemos dizer, o documentário incor-
pora procedimentos de ficção.
Em Mutum, o caminho inverso: a ficção incorpora procedimentos
do documentário.
Na origem, um texto de Guimarães Rosa. Para transformar o
texto em filme, muitas viagens pelo sertão e quatro ou cinco versões
de roteiro (que foi escrito com a colaboração de Ana Luiza Martins
Costa). Mas, a rigor, o filme filmado não é o filme escrito. Com algum
144

exagero é possível dizer que Sandra escreveu um filme não para filmá-lo
assim como anotado, mas para estimular na filmagem a invenção de um
processo cinematográfico semelhante ao processo de criação literária de
Guimarães Rosa. Uma adaptação mais fiel ao escritor, a seu modo de
se relacionar com o sertão e as pessoas, do que ao texto propriamente
dito (“Não é exatamente uma adaptação, acho que é mais uma conversa
com o livro”). Mais conversa do que texto – por isso a decisão de não
mostrar o roteiro a ninguém, nem aos intérpretes, nem à equipe técnica
(“Tudo foi transmitido oralmente”).
Na filmagem, um certo quê de cinema documentário. Intérpre-
tes não-profissionais escolhidos entre gente da região (“As crianças e
os vaqueiros nunca haviam ido a um cinema”). Reunidos na fazenda
onde a história acontece, foram convidados a viver a história com seus
nomes verdadeiros, e não com os dos personagens de Guimarães Rosa
(“O trabalho dos intérpretes se construiu a partir da proximidade entre
a vida deles e a de seus personagens”). Em improvisações estimuladas
pela diretora, deixaram-se filmar (quase exatamente) assim como são.
A ficção, aqui, para se realizar como ficção e não para fingir que é outra
coisa, estimulou a mais ou menos livre invenção de situações não-con-
troladas pela câmera. De certo modo, a ficção de Mutum documenta a
rotina de uma fazenda que continuou funcionando durante as filmagens
(“Cuidavam dos bichos, capinavam, trabalhavam juntos com as roupas
deles, brincavam os brinquedos também”).
O Tiago do filme, por exemplo, é em parte o protagonista da história
de Guimarães Rosa e em parte ele mesmo, Tiago da Silva Mariz, menino
de dez anos que não sabia o que era cinema e que não ouvira falar de
Guimarães Rosa, e em parte o Tiago que interpreta no filme. Todo esse
cuidado (chamemos assim) documental não resulta de uma preocupação
etnográfica, mas de um processo de conhecimento dos personagens ins-
pirado no texto do escritor, esclarece a diretora. Nos livros, Guimarães
Rosa “documenta” (“Muitos detalhes da natureza, da vida no sertão”) em
145

forma de ficção (“O texto não é descritivo, tudo ali fala do mundo interno
dos personagens, as paisagens do livro são para mim paisagens internas”).

[Convém lembrar o que disse certa vez Walter Salles: “Se


existe um mestre que me inspira no documentário, ele não
está no cinema e sim na literatura: Guimarães Rosa. Rosa
cristalizou uma escuta, incorporou um não-dito à realidade
brasileira. Sua obra não era norteada por um desejo cate-
quizante. Ouvia e dividia aquilo que ouvia com os outros.”]

Um quadro de Mutum visto isoladamente parece documentário,


cena que incorpora o gesto espontâneo das pessoas, mas esta “imagem
mais crua e simples” está de fato a serviço da ficção, trata-se de espon-
taneidade cuidadosamente construída fora de quadro – para “manter as
relações entre os personagens sempre em primeiro plano: a mãe consola-
va Tiago quando ele levava uma bronca, mesmo que eu não a filmasse”.
Espontaneidade trabalhada fora de quadro para que os intérpretes “não
se sentissem dominados pelo dispositivo do cinema”.
Imaginemos que Mutum procure o documentário assim como
Juízo e Jogo de cena procuraram a ficção. Imaginemos que a ficção procure
seu outro eu, o documentário, para esquecer o dispositivo do cinema
(“sem, no entanto, jamais esquecer que estávamos fazendo um filme”)
e, deste modo, reinventar o dispositivo, reinventar a cena, que é o que
de fato importa. Cinema, diz Sandra, documentário ou ficção, “é sempre
uma questão de mise-en-scène. A única realidade que existe num filme é a
realidade interna de um filme”.

Talvez para atender à pressão do modelo dominante de produ-


ção e de circulação dos filmes, o cinema tenha reduzido num certo
146

momento de sua trajetória a importância do conflito criativo que se


dá no instante da filmagem entre a câmera e a cena diante dela – ou,
mais exatamente: o conflito com o material bruto que ela transforma
em cena de cinema.
Este conflito fundamental no processo cinematográfico no perí-
odo que vai da invenção de Lumière aos primeiros filmes com longos
letreiros explicativos entre as imagens reduziu-se gradativamente a um
procedimento mecânico para ilustrar o filme tal como pensado e imagi-
nado antes da filmagem. O confronto com o fragmento vivo diante da
câmera passou a segundo plano desde que o roteiro passou a ser pensado
não como um estímulo para a filmagem e montagem, mas como um
completo plano de trabalho, como se neste primeiro instante do processo
o filme já existisse praticamente acabado e restasse às etapas seguintes
somente cumprir à risca o que foi previamente planejado.
Talvez para continuar a se expressar como forma original, o cine-
ma retoma e radicaliza agora o conflito entre a câmera e a cena diante
dela. Passa do instante em que se pensava o filme por inteiro antes de
começar a filmá-lo a este outro em que se pensa um filme em detalhes,
em que se anota um filme no papel como se ele já existisse, mas não
para reproduzi-lo depois tal e qual em imagens cinematográficas. O filme
antes do filme propriamente dito estimula a realização de um outro, ou
pelo menos a realização de um filme não necessariamente igual ao que
foi pensado e realizado em palavras.
O que parece mais um delírio do que possibilidade real, escrever
um filme para realizar outro, é um processo real e concreto. Está presente
em filmes que a rigor não partem de um roteiro, pelo menos não de um
roteiro formalmente organizado (Juízo, por exemplo, Jogo de cena, qualquer
documentário, por exemplo: uma filmagem sem um filme previamente
escrito?). Está presente também em filmes que, para a invenção de uma
forma cinematográfica, partem não de um texto escrito para que dele
se faça um filme, mas sim de um texto por excelência, da expressão
147

literária (Mutum, por exemplo: uma filmagem não-conforme do filme


escrito por Guimarães Rosa?).
No processo criativo do cinema, tal como a imagem na tela, tem
um certo quê de palavra; a palavra no roteiro tem um certo quê de ima-
gem para que o filme na projeção não apenas descreva, mas escreva (o
teorema de Pasolini: ser cineasta é ao mesmo tempo ser um escritor?),
para que o cinema não se reduza a uma simples máquina de registrar o
que se encontra diante da câmera, mas, ao contrário, que o cinema diante
da realidade atue como uma câmera lúcida.
148
149

Na contramão do confessional:
O ensaísmo em Santiago, de João Moreira
Salles, Jogo de cena, de Eduardo Coutinho,
e Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader
Ilana Feldman

Metodicamente sem método: ensaísmo e mediação


Ensaísmo, práticas confessionais e “autoficção” são escolhas e
procedimentos estéticos empregados em um número crescente de filmes
brasileiros, sobretudo aqueles tomados por documentais. Tais escolhas
dialogam, criticamente ou não, com uma cultura audiovisual colonizada
por estratégias que visam a intensificação dos efeitos de verdade, seja por
meio da apropriação e captura das velhas marcas da reflexividade (tomada
agora como indicialidade testemunhal), seja por meio do investimento
na exposição de uma suposta intimidade como lócus privilegiado (ou
mesmo garantia) da verdade do sujeito. No bojo dessa cultura audiovi-
sual sintomática, alguns filmes brasileiros contemporâneos, sobretudo
aqueles de caráter ensaístico, escovam a contrapelo a busca pelo efeito
de verdade pautado tanto por estratégias outrora reflexivas quanto por
práticas confessionais. Para tanto, investem na opacidade, na explicita-
ção das mediações, na tensão entre as subjetividades e seus horizontes
ficcionais e na problematização das próprias prerrogativas, destilando
dúvidas a respeito da imagem documental, colocando sob suspeita seus
procedimentos ou produzindo suas próprias falsificações e esquivas.
Filiando-se a uma espécie de ensaísmo documental, os filmes San-
tiago (João Moreira Salles, 2007) e Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007), a
despeito de suas evidentes diferenças, fazem da explicitação e problemati-
zação do próprio método, não sem a sedução emocional do espectador, o
tema e a estrutura desse reflexivo e, simultaneamente, afetivo jogo-cinema.
Longe então da imediatez de certo regime de visibilidade pautado por um
150

ideal de “transparência”, que pleitearia o apagamento da distância entre


a experiência dita direta e sua mediação1, o ensaio audiovisual atuaria na
ativação da experiência sensível, estética e, evidentemente, mediada, mobi-
lizando as passagens e as indiscernibilidades entre o singular e o coletivo,
o privado e o político, a subjetividade e a não-pessoalidade, a pessoa e o
personagem, a verdade e a fabulação, a memória e a presentificação.
Como veremos, o ensaísmo presente em Santiago e aquele presente
em Jogo de cena são de ordens distintas, ainda que ambos sejam caracterizados
pela mobilidade e pela explicitação da mediação, pelo rigor da composição
e pelo olhar reflexivo, parcial e subjetivo do cineasta – mesmo quando este
não se exprime em primeira pessoa. Tal qual um gênero híbrido e moder-
no, entre a arte e a filosofia, entre a precisão conceitual e a busca por um
estilo livre e pessoal, o ensaio se volta contra o imediato para estabelecer
mediações, preferindo sempre o parcial, o inconcluso e o fragmentário.
Isto é, preferindo aquilo que escapa ao pensamento sistemático, totalizante
e dogmático – aquilo que escapa, portanto, às definições conceituais e às
deduções definitivas. Arte do transitório, do contingente e do “despro-
pósito” (Adorno), o ensaio nos coloca a impossibilidade de exaurirmos
uma relação com o objeto, não admitindo conciliação ou consenso. Nesse
embate marcado pela fratura, o gesto ensaístico parte da admissão de que
o sujeito moderno é, desde a origem, atravessado, trabalhado e fraciona-
do pela ficção: sua auto-elaboração é uma autoficção, a qual, no caso do
cinema, será mobilizada pela função produtiva e mediadora da câmera.
Se o método de abordagem do ensaio é a negação sistemática de
todo método, isso não exclui, porém, a possibilidade de um discurso
sobre o método, considerando se tratar de uma metodologia lacunar,
hesitante, não-sistemática e não-disciplinar. No caso dos dois filmes em
questão, o método é tomado como um experimento, a partir do prin-
cípio de incerteza que organiza a narrativa, da suspeita que recai sobre

1 A esse respeito, ver FELDMAN, Ilana. “O apelo realista”, in: Revista FAMECOS, Dossiê
“Menções de Destaque” - Compós 2008”, Porto Alegre, n.36, 2008.
151

a imagem documental e da oscilação entre a crença e a descrença que


é tornada condição espectatorial2. Só há método, portanto, a partir da
dúvida fundadora e “hiperbólica”, assim como postulava, ao menos em
sua gênese, o método cartesiano, a despeito de todas as incompreensões
retroativas que o reduziram a um cartesianismo científico mais banal.
“Metodicamente sem método”, como diria Adorno, o ensaio, o mais
inadequado dos gêneros, apenas coordena seus objetos, sem querer
subordiná-los a uma lógica prévia e prescrita.
Se o discurso sobre o método só é então possível pela explicitação da
mediação – seja uma mediação enunciada por uma voz em off, no caso de
Santiago, ou estruturada pela montagem, no caso de Jogo de cena –, o caráter
mediador e perspectivo do ensaio fílmico se evidencia por meio de sua
forma. A um só tempo aberta ao mundo, à subjetividade e à heterogenei-
dade, a forma ensaística também se apresenta fechada, preocupada que é
com seu criterioso modo de composição, que, tal como em um mosaico
ou em um jogo, coloca suas peças em movimento e em relação. É por este
motivo que o ensaio pressupõe uma instabilidade e uma indeterminação nar-
rativas em que não há unidade nem controle possível, pois a relação entre
a palavra, a imagem e o referente deixa de ser imediata, havendo sempre
uma hesitação entre a busca de certezas e a impossibilidade de fixá-las,
entre a vontade de verdade e todas as impossibilidades da linguagem. Entre
os ditos e os não-ditos, o ensaio parece valorizar o que sempre escapa e o
que está calado, aquilo que não se é sendo e não se diz dizendo. Tal como
está em nossa moderna tradição literária: o narrador de Dom Casmurro, ao
estabelecer seu projeto memorialístico, nos diz: “Se só me faltassem os
outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde;
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”
O ensaísmo documental, atravessado então por uma perspectiva,
cética ou trágica, de que seria impossível alcançar o referente, a verdade

2 “Para ser espectador é preciso aceitar crer no que vemos; e para sê-lo ainda mais seria preciso
começar a duvidar – sem deixar de crer”, escreve Jean-Louis Comolli em Ver e poder.
152

“por trás do pano”, pois tudo o que há, no âmbito do filme, é a verdade
do cinema, a realidade do pôr-em-cena e a autenticidade-em-encenação,
vem dialogar com uma tradição em cujo centro se encontrava o problema
da verdade e da palavra. Tal como a máscara da tragédia grega, que oculta
ao mesmo tempo em que revela, ou revela justamente porque oculta, as
renovadas práticas interativas, reflexivas e ensaísticas, filiadas à tradição
do cinéma verité francês, têm semeado a ultrapassagem – não desprovida de
tensão e de problematização – das dicotomias tão caras à nossa tradição
de pensamento socrático-platônica, como os pares essência-aparência,
profundidade-superfície, autenticidade-encenação e realidade-ficção.
Antes de prosseguirmos, cabe salientar que, ao afirmar tal ultrapas-
sagem, não se trata de dizer que a verdade e a autenticidade não existam,
ou que elas sejam uma farsa, uma dissimulação. Esta perspectiva seria um
tanto ingênua, se não fosse também cínica, pois parte do pressuposto –
novamente remetido a nossa herança metafísica – de que toda encenação é
negativamente falsificante. Ao contrário dessa visada, ainda hoje hegemoni-
camente compartilhada, deve-se compreender a verdade e a autenticidade,
no âmbito da linguagem audiovisual, como um efeito de uma construção
que se dá em relação e em reação à câmera. Desse modo, a câmera deixa
de ser somente um instrumento de captação ou registro para tornar-se,
simultaneamente, um instrumento de catalisação e de produção das verda-
des dos personagens. Como já dissera o “mestre dos mestres” Jean Rouch,
para quem a ficção era o único caminho para se penetrar a realidade, “a
câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas
uma testemunha indispensável que motivará sua expressão”3.
Aí está, portanto, a função produtiva da interação reflexiva pro-
posta por João Salles e Eduardo Coutinho, intervenção como condição

3 Citado por Felipe em “Mestres dos mestres”, Contracampo, 2004. Disponível em: http://www.
contracampo.com.br/58/jeanrouch.htm. Decerto, trata-se aqui, diferentemente do ideal de
“testemunha ocular” do cinema-direto norte-americano, movimento aliás bem mais complexo
do que as leituras posteriores nos fazem acreditar, de um outro tipo de testemunha, espécie de
“estimulante psicanalítico”, segundo Rouch, com o qual é possível interagir.
153

de possibilidade do pôr em cena, pelo gesto e pela palavra, aquilo que


estaria latente, oculto, esquecido ou a ser ainda inventado. Por caminhos
ensaísticos distintos – o “teatro da entrevista” em Jogo de cena, ou o “dis-
curso autobiográfico mediado pela entrevista” em Santiago –, Coutinho e
Salles não só criam o filme e seus personagens como criam uma dimen-
são de “si mesmos” (e “deles mesmos”) que não poderia existir sem o
filme, dimensão a um só tempo real e imaginária, autêntica e encenada,
presente e passada. Dimensão que, para além do “despropósito” e das
“inutilezas” do gesto ensaístico, torna cada um dos filmes necessário e
intransferível, na medida em que as próprias obras operam como um
singular modo de subjetivação. Como veremos, os recursos à “expres-
são de si” por meio de práticas e gestos confessionais, tradicionalmente
empregados para a inscrição dos sujeitos em um discurso verídico, serão
torcidos e revirados em Santiago e Jogo de cena.
Entre a vontade de saber e a recusa aos sentidos estabilizados, en-
tre a vontade de controle e as contingências do acaso – figura, aliás, cada
vez mais desejada, investida e capitalizada pelo documentário brasileiro
contemporâneo –, Santiago e Jogo de cena demonstram a excessiva autocons-
ciência de que “a posição de controle é insustentável, tanto no cinema
quanto na vida”, como enfatiza o crítico Jean-Louis Comolli. Nesse sentido,
enquanto a experiência de Jogo de cena busca a irrupção ou a encenação
daquilo que chamamos de acaso, em Santiago acompanhamos a tentativa,
por vezes desesperada, de sufocá-lo, tentativa que constituirá o cerne da
reflexão do filme sobre si próprio. O “acaso”, no entanto, na qualidade
de efeito construído pelas experimentações modernas e convertido em
arena de disputa contemporânea (pois implica, como moeda de troca, certo
coeficiente de “autenticidade” das obras), estando presente ou ausente,
seria inacessível, inominável, irrupção do impensado: aquilo que tornaria
as imagens sempre instáveis, fugidias e insuficientes para nomear o real.
No entanto, se as imagens, assim como as palavras, são sempre
precárias, “é justamente por todas as precariedades, a partir de todas as
154

lacunas, apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas” (para
emprestar a expressão de Consuelo Lins e Cláudia Mesquita). Ao privilegiar,
portanto, determinadas aproximações e recortes em detrimento de tantos
outros, que, por força do caráter sintético de um texto e da complexidade
dos objetos, ficam obscurecidos, opta-se por uma entrada também parcial,
contingente e lacunar nos universos fílmicos. Após a negatividade fun-
damental de que parte Dom Casmurro, em que o fundamento do sujeito
não se encontra no cogito, mas justamente naquilo que lhe escapa ou que
lhe falta (tal como o “sou onde não penso” lacaniano), há que se crer que,
assim como acontece com as imagens, aquilo que se oculta de um texto –
seu contracampo, seu negativo – é tão revelador quanto aquilo que se diz.

Por dentro dos filmes e de suas metodologias:


profundamente as superfícies
Em Santiago, trata-se do filme dentro do filme, de uma reflexão
sobre o material bruto, isto é, de um procedimento explicitamente au-
torreflexivo. O método, ou as opções estéticas e estilísticas do cineasta,
com seus recortes e perspectivas, torna-se assim o próprio tema: tanto
na camada sonora, por meio da narração em off em uma primeira pessoa
“terceirizada”, a qual suspeita dos procedimentos empregados no filme
fracassado (o filme que fora feito pelo mesmo João Salles 13 anos antes),
como pelo manejo e incorporação das imagens desse antigo filme que
agora dá forma a um outro. Em Jogo de cena, a explicitação não passa uni-
camente pela tematização, mas, sobretudo, pela estrutura narrativa que,
no caso, prescinde de um discurso explicativo, transcendente em relação
à estrutura. O método ou o dispositivo, isto é, as linhas de força que, a
partir de parâmetros formais, organizam e controlam a cena, abrindo-a
para situações e conexões imprevistas, está lá na primeira sequência: o
anúncio de jornal convocando mulheres a narrarem suas histórias pes-
soais. A partir daí, o pensamento “do” filme “sobre” si próprio estará
em relação de imanência com a estrutura e a montagem.
155

Santiago é narrativamente mais organizado e os sentidos por ele


produzidos são precisos, enquanto Jogo de cena é estruturalmente mais
esquivo e os sentidos por ele produzidos são erráticos. No caso de San-
tiago, o ensaísmo desenvolve-se no sentido do debruçar sobre si, sobre
suas escolhas, mas essa construção metalinguística é articulada por uma
narração em off organizadora, serena e carregada de certezas sobre aquilo
que narra. Em Santiago não há propriamente o jogo de revelação e ocul-
tamento com o espectador, mas há a problematização, por meio de um
monólogo interior do narrador, das regras que compõem e constroem
a cena, sejam elas regras estéticas (assentadas na seletividade do olhar e
na influência dos códigos recatados e decorosos do cinema de um Ozu),
sejam elas regras sociais (como a distância que se instala entre documen-
tarista e personagem na reprodução da assumida relação empregatícia).
Contudo, nessa reflexão sobre o material bruto, Santiago, o filme, não chega
a interrogar, de fato, o mundo de que trata, ele apenas lamenta o seu desa-
parecimento, como se o trabalho sobre si, fundamentalmente um trabalho
de luto, fosse também ele interrompido pelos comandos de “corta!” e
de “não!”. Tanto o narrador de Santiago quanto Santiago, o personagem,
atormentados pela implacabilidade do tempo, nos lembram, parafraseando
Shakespeare em Macbeth, do drama daqueles homens que, enquanto atores,
gaguejam em suas únicas falas, desaparecem e nunca mais são ouvidos.
Já em Jogo de cena, filme que, ao depurar seus procedimentos, leva
ao limite4 o método de Eduardo Coutinho – marcado pela valorização da
capacidade expressiva de seus personagens-narradores, em uma espécie de
auto-mise-en-scène, como diria Jean-Louis Comolli, ou “autoficção”, como
prefere Jean-Claude Bernardet –, o ensaísmo se faz presente, sobretudo,

4 Em seu mais recente filme, Moscou (2009), sobre o acompanhamento dos ensaios da peça “As
três irmãs”, de Tchekov, pelo grupo teatral Galpão, Eduardo Coutinho aprofunda a investigação
da linguagem. Subvertendo seus métodos e procedimentos usuais (o emprego da entrevista e a
presença de homens e mulheres “comuns”) e debruçando-se radicalmente sobre si, Coutinho
rompe qualquer ligação com o referente, a ponto de a “documentação” do processo de ensaio
“real” ser completamente enredada pelo texto ficcional. Ver Ilana Feldman, “Moscou: do ina-
cabamento ao filme que não acabou”. Revista Cinética, abril de 2009. Disponível em: http://
www.revistacinetica.com.br/moscouilana
156

na forma como a estrutura se organiza. Uma estrutura lacunar, errante,


que, ao desdobrar e duplicar as falas femininas, não aponta para nenhum
sentido fora do filme, para nenhuma verdade que lhe seja exterior, mas para
a verdade do cinema e da cena, ultrapassando as dicotomias entre pessoa
e personagem, singular e coletivo, verdade e fabulação, memória e presen-
tificação. Em Jogo de cena, a interrogação do filme sobre si (sobre a cena e
em cena) é radicalizada, gesto que remete ao “Paradoxo do comediante”
de Diderot, como já havia deixado claro a fala da personagem Alessandra,
de Edifício Master (Coutinho, 2003): “Sou uma mentirosa verdadeira.”
A Coutinho, portanto, interessa não a simples evocação de expe-
riências pessoais, mas o modo como essas experiências são evocadas;
interessa a expressividade, não o conteúdo da expressão. “Eu não separo
ela do que ela diz”, nos fala a atriz e personagem Fernanda Torres, co-
mentando sua tentativa de interpretar a personagem, e aparentemente
não-atriz, Aletha, cujo próprio nome remete à aletheia5 grega, “a verdade
no sentido da revelação” – como explica a personagem sobre o signi-
ficado de seu nome. Nessa espécie particular de estética performativa
da existência o cinema de Coutinho, como escreve Ismail Xavier, “tem
como horizonte a apresentação de um sujeito como foco de um estilo”,
valendo aí o princípio de que as pessoas são “interessantes”, “carismá-
ticas” ou “extraordinárias” (termos, embora muito rentabilizados pelos
espetáculos televisivos e pelo mundo corporativo, bastante empregados
pelo próprio Coutinho) quando “recuperam na conversa um sentido de
autoconstrução que tem sua dimensão estética”.
Se a metodologia é, portanto, parte dos processos de ambos os
filmes, em Santiago assistimos ao resultado de um processo, enquanto
em Jogo de cena acompanhamos o processo de um resultado. De fato,
do mesmo modo que em ambos os filmes suas construções formais se

5 Etimologicamente, a aletheia grega é formada por a+lethé, isto é, a negação (o prefixo “a”)
daquilo que estaria oculto, obscurecido ou esquecido (“lethé”). A verdade, portanto, em grego,
está etimologicamente relacionada à memória.
157

dão em uma relação de tensão entre o ilusionismo e a reflexividade, o


controle e o acaso, e o rigor do dispositivo e a liberdade do ensaísmo, no
que diz respeito às suas temáticas, ambas giram em torno do eixo perda
e superação da perda. Seja mais explicitamente a perda de um tempo, de
pessoas e de uma promessa modernista de país que já se foram, como
em Santiago, seja a perda ou o abandono de filhos, pais e maridos, como
em Jogo de cena. Mas, neste caso, por que mesmo um filme apenas com
mulheres? Modernamente e psicanaliticamente vinculadas ao signo da
falta, as mulheres, segundo a psicanálise e de acordo com a admissão de
que nada existiria por trás do muro da linguagem, seriam impelidas (para
não sucumbirem) a inventar novas perspectivas narrativas,6 a criar uma
estilística ou uma escritura no âmago do próprio presente, abandonando
uma vida organizada pela promessa e pela esperança.7
Talvez seja desse abandono e dessa necessidade de atualidade de
que falam as personagens de Coutinho. Em Jogo de cena, assim como em
Santiago, a atualidade advém de uma radical impossibilidade: impossibi-
lidade de dizer, de nomear, de se adequar. Sejam as proliferações discur-
sivas em Jogo de cena (por meio da escuta de Coutinho e das duplicações
de alguns depoimentos), sejam as repetições repressivas em Santiago
(em função do autoritarismo de seu realizador), essas diversas formas
de fazer falar e fazer calar não estão a serviço de nenhuma capacidade
revelatória da linguagem. Capacidade esta comumente atribuída ao cine-
ma de Eduardo Coutinho, ao menos até Jogo de cena, como se linguagem
pudesse repor a singularidade dos sujeitos da enunciação.8 Distantes de

6 Ver Maria Rita Kehl, Deslocamentos de feminino (Imago, 2008). Segundo Kehl, a personagem Mada-
me Bovary, centro de seu estudo, teria posto fim à sua vida porque não conseguira escrever, não
conseguira tornar-se autora – de textos, cartas, poemas – e, afinal, da própria vida. No entanto,
se Emma Bovary sucumbiu, algumas personagens de nossa moderna literatura conseguiram criar
outras perspectivas narrativas, tal como a pintora do romance Água viva, de Clarice Lispector, para
quem, aliás, ao fundo de cada cor nada haveria por trás: “Não quero ter a terrível limitação de
quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.”
7 A temática da promessa e da esperança é também colocada pela personagem GH, de Clarice
Lispector: “Prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me
prometer a vida (...) [Mas] eu preferia continuar pedindo, sem a coragem de já ter.”
8 Temos a impressão de que a não-adesão, por parte de alguns críticos, a Moscou (2009), de
158

qualquer relação de transparência entre sujeito e linguagem, tanto as


mulheres de Jogo de cena quanto Santiago, o personagem, estariam mais
próximos da opacidade postulada pela personagem “filósofa” GH, de
Clarice Lispector, quando ela belamente formula: “Eu tenho à medida
que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas tenho
muito mais à medida que não consigo designar.”
Tratando da própria narrativa e da narração fabuladora, da lin-
guagem como meio de criação e simultânea cicatrização, do processo
de construção de uma verdade a partir da rememoração, as temáticas de
Santiago e Jogo de cena nos remetem àquilo que um dia dissera Benjamin a
respeito de Proust: “Um acontecimento vivido é finito (...) ao passo que
o acontecimento lembrado é sem limites.” Seja por meio do bovarismo
e do apreço ritualístico de Santiago, o personagem (uma dança com
as mãos, uma reza em latim, a contrição diante do passado), seja por
meio das performances da memória das personagens de Jogo de cena (em
que atrizes profissionais vivem o que interpretam enquanto não-atrizes
interpretam o que vivem), em ambos os filmes trata-se de narra-dores,
cujas imaginações, por vezes melodramáticas,9 carregam consigo um
potencial de auto-construção estética, de libertação, mas também de
paradoxal prisão. Afinal, como bem sabem o ex-mordomo Santiago e
as mulheres de Coutinho – esses habitantes do mundo da linguagem
nunca perfeitamente contidos nele –, a imaginação é o que nos salva,
mas também o que nos condena.
Cabe lembrar que, tensionando a atualidade da vida às suas pos-
sibilidades imaginativas e narrativas, a reflexividade presente em Santiago

Eduardo Coutinho, advém desse impasse da linguagem que o filme coloca. Para além de sua
estrutura dispersiva (e não mais concentrada, como em seu cinema pautado pela entrevista), em
Moscou a linguagem deixa de ser revelatória, deixa de repor a singularidade dos sujeitos falantes
(nos termos em que a crítica valorizava até aqui o trabalho de Coutinho) para alcançar, por
meio da ficção, sua autonomia – que, no limite, dissolveria a ideia de sujeito singular, já que as
biografias dos personagens (ficcionais ou não) são partilhadas e os enunciados coletivizados.
9 Ver Mariana Baltar, “Pacto de intimidade – ou possibilidades de diálogo entre o documentário
de Eduardo Coutinho e a imaginação melodramática”. (Compós, 2005).
159

e Jogo cena, isto é, o pensamento em ato do filme sobre si próprio, não se


vincularia ao “distanciamento crítico” que marcara as modernas estratégias
anti-ilusionistas, mas, diferentemente, a uma espécie de “engajamento
crítico”. É a partir desse engajamento que a dimensão afetiva da reflexão
sobre o método soma-se à sedução emocional do espectador, o qual se
engaja na situação implicada tanto pelo efeito-câmera quanto pelas perfor-
mances – da retórica, dos gestos e da memória – diante da câmera. Sendo
assim, no lugar de nossos velhos conhecidos efeitos de verdade, talvez
esteja em jogo aqui a produção de “afetos de verdade”, pois não se trata
de julgar os personagens em nome de uma instância superior (que seria o
bem, a verdade), mas de avaliá-los em relação à vida e à intensidade que
suas presenças e suas performances implicam. O afeto como avaliação
imanente, em vez do julgamento como valor transcendente.
Sendo, portanto, as distintas metodologias dimensões integrantes
dos processos de ambos os filmes, e não somente suas instâncias a priorís-
ticas, como em um documentário mais tradicional, devemos compreender
aquilo que chamamos de método como um conjunto de regras diegéticas
e procedimentos estéticos sobre o qual trabalhará, afetiva, reflexiva e ex-
perimentalmente, o documentarista. Espécie de método que contempla
um tipo de busca que sempre encontra algo distinto do que procura, na
medida em que encontrar não significa chegar a um ponto estável e estático,
cujos sentidos estariam estabilizados, mas voltear, rodeando um centro
móvel e apenas intuído, o ensaio, como queria Blanchot, é, de fato, um
dis-cursus, curso interrompido ou aberto à mudança. “Mais do que uma
certeza acerca do mundo, o pensamento ensaístico nos levaria a errar sobre
o mundo e, sobretudo, a suspeitar do mundo”, escreve André Brasil em
“Ensaio de uma imagem só”. Assim, verbalizando sua suspeita, nos diz
o narrador de Santiago: “Hoje, treze anos depois, é difícil saber até onde
íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita. O que fica claro é
que tudo deve ser visto com uma certa desconfiança”.10

10 Ver Ilana Feldman, “Santiago sob suspeita” (Trópico, 2007).


160

Nesse sentido, ainda que em Santiago a “errância” e o caráter


“inacabado” próprios ao gesto ensaístico sejam, diferentemente de Jogo
de cena, bastante controlados e autoconscientes, tanto uma obra quanto
outra, cada qual a seu modo e na sua intensidade, cultivam incertezas e
desconfianças por todo o filme: destilam dúvidas a respeito da imagem
documental, perturbam a crença do espectador naquilo a que se está
assistindo e estilhaçam as noções de autêntico, verdadeiro e espontâ-
neo, tão comumente remetidas ao campo do documentário – como
nos lembra Consuelo Lins e Claudia Mesquita, ao analisarem, além de
Santiago e Jogo de cena, outros dois filmes brasileiros contemporâneos
que lidam com a questão da suspeita, tais como Juízo (Maria Augusta
Ramos, 2007) e Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006). Longe, por-
tanto, da ilusão do lugar do controle, tão cara à posição do espectador
de televisão – que acredita poder sempre saber, julgar e decidir –, o
ensaio se moveria, como já o “definiu” a ensaísta portuguesa Silvina
Rodrigues Lopes, “segundo um impulso de aventura”: aquele impulso
que, contaminado pelo mundo e aberto à instabilidade do devir, tornaria
o verdadeiro indecidível.
Ancorados na experiência subjetiva e sensível, seja a de seu
autor-narrador, caso explícito de Santiago, seja a de seus outramentos,
caso implícito de Jogo de cena, o qual não se utiliza de uma escritura em
primeira pessoa, tanto o pensamento que se ensaia quanto o cinema-
ensaio seriam então marcados pela aventura da transitividade e por uma
“erótica das imagens”, em que os sentidos se dão mais por contami-
nação epitelial do que por relação causal. É a contagiosa instabilidade
inerente ao ensaio o que proporcionará, portanto, os trânsitos e as
passagens entre o singular e o coletivo, a pessoa e o personagem, a
memória e a atualidade, a verdade e a fabulação, o documentário e a
ficção, a vida privada e sua historicidade – que não se desvincula do
lugar e da função do cinema.
161

Na contramão do confessional:
a impossibilidade de acesso à “verdade” e ao “real”
Em um momento histórico marcado por uma “indústria da pri-
meira pessoa”, quando a exposição da intimidade e a declaração de uma
unívoca “verdade sobre si” são tiranicamente requeridas e demandadas,
Santiago e Jogo de cena, por meio da opção pelo ensaísmo documental, em
que, como vimos, está em jogo o privilégio da opacidade e a tensão entre
as subjetividades e seus horizontes ficcionais, livram-se da estabilidade
e da unidade de “eus já acabados”, escovando a contrapelo “a eloquên-
cia do confessional midiático”.11 Essa forma de astúcia parece dialogar
criticamente, conscientemente ou não, com a histórica concepção do
interior do sujeito como lugar privilegiado da autenticidade e da verda-
de, uma perspectiva que se tornaria fundamental na cultura moderna
e que hoje estaria em mutação, em função de tendências confessionais
exibicionistas e performáticas, em um mundo saturado de estímulos
visuais, de acordo com o argumento do livro O show do eu – a intimidade
como espetáculo, de Paula Sibilia.
Das confissões nos séculos IV e V de Agostinho, o inventor das
primeiras metáforas cristãs da introspecção e da autoexploração, pas-
sando pela secularização da ideia de interioridade por meio das virtudes
autorreflexivas da escrita ensaística de Michel de Montaigne no século
XVI, ao regime da autenticidade na criação de si e na interação com os
outros, pleiteado pelas confissões de Jean-Jacques Rousseau em meados
do século XVIII, poderíamos afirmar que aquilo que modernamente
foi se consolidando como a intimidade burguesa, espaço privado onde
residiria a verdade mais recôndita de cada um de nós, é colocado em
xeque, e no centro da cena, por Santiago e Jogo de cena. Assim, enquanto
Eduardo Coutinho coloca, em Jogo de cena, a cena na sede por excelência
do espetáculo, o teatro – pela primeira vez, aliás, em sua obra, descon-
textualizando os espaços sociais e geográficos em que habitam seus per-

11 Ver Fernanda Bruno, “Jogo de cena” ( 2007).


162

sonagens –, em Santiago, João Salles se recusa a ouvir a mais importante


e íntima “confissão” de seu ex-criado Santiago – “E no fim, quando
Santiago tentou falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmara”,
nos diz o narrador –, esquivando-se estrategicamente, ainda que tam-
bém autoritariamente, da revelação de um segredo que, possivelmente,
conferiria ao ex-mordomo uma verdade e uma identidade inescapáveis.
Como tão bem diagnosticara Michel Foucault, em fins dos anos
70, no primeiro volume de A história da sexualidade – a vontade de saber,
nascida no âmbito medieval e eclesiástico e, posteriormente, apropriada
pelos saberes e poderes jurídicos e médicos, a confissão foi tornada no
século XIX e XX a prática nuclear em torno da qual gravitavam as ci-
ências humanas, especialmente a psicanálise. Dessa forma, “a confissão
da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização
pelo poder”; poder que, ao incitar a proliferação discursa sobre o desejo,
alçou a verdade e o sexo, ou a verdade do sexo, à expressão obrigatória
de um segredo individual. No entanto, é sempre saudável relativizar
os poderes totalitários e tirânicos da confissão. Ainda que a leitura tão
audaz e cirúrgica de Foucault seja ainda hoje extremamente pertinente,
justamente em um momento histórico em que, segundo Paula Sibilia, a
confissão teria se tornado midiática,12 seria bom suspeitar das capacidades
revelatórias da confissão para produzir e extrair verdades inquestionáveis.
O próprio Foucault, aliás, admite discretamente: “(...) o essencial sempre
nos escapa e ainda é preciso, mais uma vez, partir à sua procura”.
Escapando às “tiranias da intimidade” tão caras a nossa época de
que fala Sennett, enquanto Santiago, o filme, recusa a intimidade de San-
tiago, o personagem, Jogo de cena ultrapassa o próprio sentido do que seria
a esfera do íntimo, do singular e do intransferível. Pois, duplicando-se,
desdobrando-se e transferindo-se de um corpo para o outro, como se

12 “Hoje essa técnica [a confissão] tão eficaz brilha com novas roupagens nas telas eletrônicas
da internet e da televisão, bem como nas páginas coloridas das revistas e dos jornais. Assim, no
século XXI, a confissão se torna midiática.”
163

os corpos fossem veículos de uma comunicação contagiosa, as múlti-


plas vozes femininas de Jogo de cena passam a habitar singularmente cada
gesto, cada entonação, cada rosto, tal como espécies da grega Helena,
“uma e toda mulher”, para Barbara Cassin. Dessa forma, as memórias
das personagens de Coutinho, assim como as memórias de Santiago, o
personagem-outramento de Salles, através do qual o cineasta traça uma
espécie particular de “alterbiografia”, aparecem como aquilo que acessa,
por meio de depoimentos confessionais, potências não-individuais, não-
psicológicas. Na esteira do que tanto pleiteava Gilles Deleuze, Jogo de cena
levaria a vida “a uma potência não pessoal”, como quem se lança à aven-
tura de perder seu rosto (o rosto do filme, os rostos das personagens).
Longe de estarem comprometidas com os regimes de verdade
estabelecidos pelas modernas e disciplinares técnicas hermenêuticas de
produção subjetiva, as práticas confessionais presentes em Santiago e
Jogo de cena estariam, sobretudo, vinculadas à invenção e atualização de
memórias, em uma espécie de resgate do sentido etimológico e inaugural
da aletheia grega: verdade como desocultamento, verdade como negação
do esquecimento. A memória, em Santiago e em Jogo de cena, é desmesu-
rada, aquém e além do indivíduo: em Santiago é a potência que se abre
para o mundo; em Jogo de cena é maneira de multiplicar, e contaminar
pela indiscernibilidade, os sujeitos da enunciação.
Contudo, se a recusa é o modo pelo qual a “confissão” de Santiago,
o personagem, é inviabilizada por Santiago, o filme (por meio não apenas
do “não!” proferido por João Salles, mas também do preto que encobre
sua imagem, já que o diretor não ligou a câmera), cabe salientar que não se
trata de, simplesmente, valorizar a interdição da confissão, como se dá no
caso de Santiago. A recusa à confissão, compreendendo a confissão como
prática de inscrição dos sujeitos em um dispositivo de poder comprometido
com a produção de discursos verídicos, pode se dar, justamente, a partir
da estratégia oposta àquela da interdição. Em Jogo de cena, como vimos, tal
recusa é um efeito da proliferação discursiva e do compartilhar biográfico
164

entre as personagens de Coutinho, em uma explicitação do caráter coletivo


e social de toda enunciação proclamado por Deleuze. Nesse caminho, não
seria um despropósito estabelecermos um breve diálogo como a obra de
Carlos Nader, especialmente o filme Pan-cinema permanente (2008), sobre e
com o exuberante personagem e poeta Waly Salomão.
Investindo nas performances mediadas e nas “autoficções” de
Waly Salomão, Pan-cinema permanente explora a radical opacidade que se
instala entre o poeta, a câmera e o mundo, ao mesmo tempo em que parte
de uma busca, quase romântica, pela verdade da imagem, uma imagem
que teria de ser não-performática – busca que, desde o início, se revelará
fracassada. Nessa “exitosa busca sem sucesso” (na expressão de leber
Eduardo), reflexiva e afetiva, todo o filme é estruturado por uma
espécie de fagocitação libinal entre as imagens: telas dentro de telas,
campainhas de teatro, telas pretas, inscrições de palavras nas imagens,
performances para a câmera. Assim, a partir de um “antidiscurso da
transparência”, como proclama o próprio Waly Salomão, tanto o filme
quanto seu personagem retomam o regime do artifício, caro ao paradig-
ma do homem como ator do século XVII, e, por meio da teatralização
barroca, dão início à desnaturalização – e ao estranhamento – do mundo.
Se Pan-cinema permanente dá conta de Waly Salomão na medida em que
não o alcança, é porque, segundo um poema declamado pelo próprio
Waly, “entre o meu ser e o ser alheio / a linha de fronteira se rompeu”.
Nesse processo abissal de simultânea indeterminação e ruptura, não há
confissão possível, pois os olhos de Waly, ao contrário da crença cristã
que os remeteriam à “janela da alma”, são, como diria João Guimarães
Rosa, “a porta do abismo”.
Na contramão, portanto, da secularização e, mais recentemente,
da midiatização das práticas confessionais, é notável como em Santiago,
em Jogo de cena e em Pan-cinema permanente as dimensões confessionais e
biográficas escapam, com intensidade, dos limites privados, pessoais e
individuais da existência humana para ganharem o mundo, para se torna-
165

rem, por meio da linguagem e de sua potência fabuladora, “enunciações


sem propriedade”, como escrevera Cezar Migliorin em seu blog, à época
do lançamento do filme de Eduardo Coutinho, em 2007. Nos três filmes
em questão, a linguagem verbal performativa e fabular é justamente aqui-
lo que singulariza o sujeito ao mesmo tempo em que, paradoxalmente,
ultrapassa a dimensão pessoal e privada de sua singularidade.
Se, como dizia Foucault, “confessa-se em público e em particular;
emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; fazem-
se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de se confiar
a outrem, com o que se produzem livros” (e tantos filmes, poderíamos
acrescentar), essa dimensão confessional presente em Santiago, em Jogo de
cena e, em alguma medida, em Pan-cinema permanente é, portanto, de outra
ordem. No entanto, cabe esclarecer que o personagem Waly Salomão em
Pan-cinema permanente, ao adotar o regime das máscaras e do artifício, caro
ao barroco, se esquiva, desde o princípio, desse lugar de uma intimidade
burguesa a ser revelada. Ou seja, Pan-cinema permanente nem chegaria a
ser propriamente confessional, pois nem mesmo se inscreveria nessa
cultura modernamente confessanda. A recusa de Pan-cinema permanente
não passa, portanto, por uma contraposição no seio das usuais práticas
confessionais – como se dá no vídeo Carlos Nader (1998), em que o
próprio Nader promete confessar para a câmera um segredo cujo som
será abafado no momento mesmo da confissão –, mas pela tomada de
um caminho adjacente e, por isso mesmo, não menos interessante.
Fazendo assim essa passagem do singular ao coletivo, do privado
ao político, da realidade à fabulação e da memória à atualização, por
meio de gestos e métodos reflexivos, Santiago, Jogo de cena e Pan-cinema
permanente estão a serviço do colocar em cena corpos que não se reduzem
a invólucros de identidades, mas à intensidade de conexões, diferenças
e relações. Se, como diria Comolli ao tratar da “ficção documentária”,
“filmar é filmar relações, inclusive as que faltam”, é porque a diferença,
a separação e o corte no cinema são a condição mesma de todo enlace.
166

Nessa experiência fílmica partilhada, os gestos de Santiago, o solitário e


povoado personagem de Salles, os rostos das narradoras de Coutinho,
essas “hospedeiras da fala” na análise de Jean-Claude Bernardet, e a
eloquência mascarada de Waly Salomão parecem não suportar mais a
desmesura de um mundo que os atravessam pelo excesso e os destituem
pela ausência. Daí a necessidade do cinema; daí a condição excessiva,
mas simultaneamente incompleta e esquiva, do documentário.
Na busca pelas imagens, pelas palavras e pela composição pre-
cisa, que não deixa, porém, de dar atenção aos resíduos, aos restos, às
hesitações e aos gestos abandonados, aqueles que normalmente são
relegados ao esquecimento de um copião ou de um rascunho rasurado,
o ensaio fílmico, bem como o texto ensaístico, “termina onde sente ter
chegado ao fim, não onde nada mais resta dizer” (Adorno). Incompleto,
inadequado e, no limite, impossível, o ensaio não pode acessar “a ver-
dade” e o “real” das coisas, das gentes e do mundo. Ao ensaio, sempre
errático e errante, entre a melancolia e a ironia, só é dada a possibilida-
de de começar pelo “erro”,13 pois sempre parte e sempre chega a uma
negatividade fundadora.
Em Santiago, a primeira palavra que ouvimos do documentarista
João Salles, e não do narrador do filme, é um inequívoco “não!”: uma
recusa a um primeiro pedido do ex-mordomo Santiago. Em Jogo de cena,
a última imagem a que assistimos é a de uma cadeira vazia, sobre um
palco igualmente vazio: lá onde somos apenas bons ou maus narradores.
Já em Pan-cinema permanente, entre uma camada e outra, acompanhamos
uma profusão de telas pretas, como espasmos de uma vida na iminência
de abandonar o espetáculo. Tanto a recusa de Salles quanto a cadeira
vazia de Coutinho e as telas pretas de Pan-cinema permanente sintetizam a
negatividade inaugural de que parte o sujeito e a linguagem. Como está

13 Tal como ensina a “ensaísta” GH, de Clarice Lispector, para quem o erro é um de seus fatais
modos de trabalho: “E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar (...),
pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo.”
167

lá em Barthes, em seu belo ensaio sobre a fotografia de sua adorada mãe:


morte, ausência ou não-ser como ser da imagem.

Seria confortável encerrar este texto de forma bonita. Aliás, a


própria Clarice Lispector, tantas vezes citada e cuja obra contempla uma
envergadura a um só tempo literária e filosófica, costumava dizer que
achar bonito é um indireto modo de compreensão. No entanto, há que
se desconfiar quando o conforto e o pensamento crítico se dão as mãos.
Por isso, cabe uma suspeita final: talvez as pessoas que mais franqueiam
e exponham publicamente suas intimidades, a verdade de seus corpos e
de seus sexos (seja em reality shows, sites de relacionamento na internet,
vídeos caseiros no Youtube ou outras “plataformas de sociabilidade”),
talvez as pessoas que, portanto, mais se confessam, sejam as mais cien-
tes – conscientes ou não – de que suas intimidades residem em outro
lugar. Lá onde somos ainda irredutíveis, irredutivelmente opacos. Lá
onde somos mais aquilo que em nós não-é.
168
169

Ensaios de uma imagem só1


André Brasil2

“Conhecimento, seja.
Mas sempre tão recente
que apenas se desprende
do não-conhecimento.”
(Duda Machado)

“Um barco é a bifurcação que o mar inventa.”3 Nascido do encontro


entre o mar e a embarcação, o ensaio é um texto que desliza. Os vários
movimentos que o atravessam não nos permitem defini-lo enquanto gê-
nero, sequer intergênero. Como nos sugere Adorno, o ensaio “não admite
que seu âmbito de competência lhe seja prescrito” e, por isso, ocupa um
lugar entre os despropósitos. Mas podemos, sim, nos arriscar em uma
cartografia precária, menos acerca de um gênero literário-filosófico e mais
em torno de um modo ou uma modulação do pensamento.
Em primeiro lugar, a deriva, movimento próprio de um pensa-
mento que nos arremessa para longe de toda certeza: “Cuidávamos
estar perto do porto e encontramo-nos lançados em pleno mar alto”,
escreve Deleuze. A deriva – ou a errância, como diria Blanchot – implica
uma procura de espécie particular, paradoxal, na medida em que sem-
pre se encontrará algo distinto daquilo que se busca. O encontro, nesse
sentido, não se esgota no objetivo que se cumpre, na meta que se atinge
1 Esta é uma versão atualizada de um artigo de mesmo título publicado na revista Devires, Belo
Horizonte, v.3, nº 1, jan-dez., 2006.
2 Doutor pela UFRJ, André Brasil é professor da Graduação e Pós-Graduação em Comunicação
na PUC-Minas. Coordena, nesta instituição, o Centro de Experimentação em Imagem e Som
(Ceis). Colabora na Revista Cinética – Cinema e Crítica.
3 A frase de Luiza Neto Jorge abre, como epígrafe, o texto Do ensaio como pensamento experimental,
de Silvina Rodrigues Lopes (2003).
170

ou no objeto que se esclarece. Encontrar significa, antes, voltear, circun-


dar, rodear um centro móvel e apenas intuído. “Encontrar um canto é
tornear o movimento melódico, fazê-lo girar” (Blanchot). Mais do que
uma certeza acerca do mundo, o pensamento ensaístico nos leva a errar
sobre o mundo. O ensaio se move “segundo um impulso de aventura,
não sistemático: não apenas o conceito mas também a imagem, não
apenas as diferenças mas as diferenciações, não o fixo, mas o que está
em devir”, escreve Silvina Rodrigues Lopes.
Da deriva e da errância é preciso extrair um segundo movimento:
aquele que, no encontro entre o mar alto e a embarcação, produz aber-
turas, bifurcações e desvios, por onde se move o pensamento. Este não
existe antes e só pode nascer do encontro entre o sujeito e o mundo,
encontro imprevisível em suas derivações no texto. Se o barco é uma
invenção do mar, o mar é uma reinvenção do barco e as bifurcações – o
pensamento – são resultado dessa mútua determinação. Não há, assim,
um pensamento que possa, de fora, em sua transcendência, explicar o
mundo. Isso porque se, por um lado, não há um mundo que, em sua po-
sitividade, permita ser explicado, por outro lado, não há pensamento que,
exterior ao mundo, possa vir explicá-lo, antes de ser por ele provocado.
Esses movimentos de derivação e errância fazem do pensamento
ensaístico algo arriscado: “pensamento que se ensaia” (Silvana Rodri-
gues), que se pensa no momento mesmo em que o discurso vai-se crian-
do. Imerso na desmesura e na desproporção da experiência, “ele precisa
se estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido”.
Como discurso, o ensaio só pode ser dis-cursus, curso interrompido, su-
gerindo a ideia de “fragmento como coerência” (Blanchot).
Se concordamos que o ensaio é uma escritura, uma tessitura de con-
ceitos, reafirmamos também que, entre os textos conceituais, ele é o que
com maior intensidade abriga, em seu interior, a experiência mundana.
Ao carregar as palavras com o que para Silvana Rodrigues é “o peso do
aqui-agora das sensações”, o ensaio é um daqueles discursos “através do
171

qual se abre a possibilidade de reconciliação do mundo consigo mesmo,


com o seu infinito, com a natureza, que não é o outro da aparência, mas
a força da aparição”. Trata-se, assim, de uma escritura heterogênea, que
se compõe de conceitos, mas também de imagens, metáforas, vozes,
sensações, impressões. Isso nos permite situar o ensaio entre o conceito
e a experiência sensível e defini-lo então como um discurso intensamente
estético. Em seu texto célebre, Adorno já notara como se insinua ali uma
lógica musical, que devolve à linguagem falada algo que ela perdera sob
o predomínio da lógica discursiva (Adorno).

Pensamento que ainda não pensa4


Estes são ensaios de uma imagem só. E toda a dificuldade reside
aí. Como perceber, nessa única imagem que dura na tela, o esboço de
um pensamento? Que conceito pode uma só imagem engendrar? Se
não é nosso intuito enquadrar as obras em uma pretensa categoria – o
ensaio –, resta-nos apenas apreender, através delas, aqueles movimentos
incertos que compõem este modo do pensamento: derivar, girar, ensaiar,
errar, encontrar (o que já não se esperava).
Filme de horror (2003), de Wagner Morales; Man.Road.River (2004),
de Marcellvs L.; Herança (2007), de Tiago Rocha Pitta, e Flatland (2003),
de Rafael Lain e Ângela Detanico, estas são experiências audiovisuais
que não participam, imediata e confortavelmente, do domínio que cos-
tumamos chamar de ensaio fílmico. Cada qual à sua maneira, elas se situ-
am em uma zona de indiscernibilidade entre o documentário e o vídeo
experimental, entre o cinema, as artes plásticas e a produção midiática,
entre a matéria sensível e o gesto conceitual. E, ao se abrigarem neste
intervalo, trata-se de ensaiar um espaço discursivo próprio, problemático.
Vejamos, inicialmente, Filme de horror, de Wagner Morales: a câmera
fixa nos oferece uma imagem banal, de aspecto caseiro: ao fundo, um
lago. Em primeiro plano, uma mangueira sobre o chão de folhas secas.

4 A expressão é de Blanchot em O livro por vir.


172

No canto superior, a ponta de um galho de árvore que, vez ou outra,


é movimentada pelo vento. Uma música, típica dos filmes de horror,
pontua os movimentos mínimos, quase imperceptíveis, que raramente
abalam a estabilidade da cena: o tremular da água, uma folha que cai, o
ramo, entre se mover e permanecer.
O vídeo faz parte de uma série inspirada em gêneros tradicionais
do cinema. Participam também desta série Ficção científica (2003), Cassino,
filme de estrada (2003), Filme de guerra (2005) e Filme de foda (2007). Pequenos
ensaios videográficos que, como sugere Phillippe Dubois, se propõem
a pensar o que o cinema criou, em uma pesquisa sistemática em torno
das relações entre som e imagem (com especial atenção ao primeiro
elemento), que resulta em diferentes formas narrativas. “Cada vídeo”,
escreve Carla Zaccagnini em seu estudo sobre o autor, “se encarrega de
pôr à prova uma possibilidade, uma de cada vez, de testar uma combi-
nação de poucos elementos, enfocando um ou outro modo de fazer um
filme, sempre usando o mínimo necessário para que esteja completo.”
Em Filme de horror, o mesmo gesto minimalista: por meio da
música, típica dos filmes desse gênero, Morales nos permite identificar
ali, em uma imagem quase displicente, a configuração de um gênero.
Ao citar, sob uma imagem qualquer, a trilha característica desse gênero,
esta se torna, rapidamente, uma imagem em suspense. Mas se a estratégia
da paráfrase – a tradução pela via do reconhecimento parcial – logo
salta aos olhos, um outro tipo de pensamento, menos explícito e mais
oblíquo, se esboça. Ele deriva da duração do plano (5’30”). Nesse tempo
distendido, nada, ou quase nada, acontece. E se quase nada acontece à
imagem, é no pensamento que tudo se passa.
Antes, porém, nos atentemos para este quase, que já se tornou mui-
to. Quando estamos na duração do plano, o mínimo acontecimento, que
pontua a serenidade da cena, ganha a dimensão de um evento, ao mesmo
tempo sutil e intenso. Verdadeiro acidente que, em sua imprevisibilidade,
atravessa a paisagem. Pontuada de pequenos estremecimentos, desloca-
173

mentos mínimos mas intensos, a imagem se abre a um pensamento leve,


que se deixa apenas entrever: pensamento prestes a se formar e logo já
desfeito. Aqui, repetimos, a duração é fundamental, na medida em que
é ela que nos permite uma experiência não apenas visual, mas mental:
derivado desta experiência, um conceito se descola, sem, no entanto, dela
se desprender totalmente; uma abstração leve, mescla entre o visível, o
sonoro, o sensível e o conceitual.
Se, por meio da trilha sonora característica, o vídeo nos leva ao
suspense, à expectativa de que algo está por acontecer, o que acon-
tece – como no encontro próprio do texto ensaístico – não é o que
se espera. Ou melhor, o que se espera não vem. Para além destes
acidentes mínimos – uma folha que cai, um galho que é movido pelo
vento, uma mangueira que estoura, nada acontece. E se este quase
nada já nos parece muito é porque o que os eventos revelam é aquilo
que há de inesperado em toda esperança (Blanchot). O pensamento
se confunde com essa paisagem aparentemente calma e, vez ou outra,
estremece, despenca, estoura, vaza.
Em Man.Road.River, de Marcellvs L., um homem caminha. Passo
firme, ao longe. Aproxima-se, enquanto a câmera, fixa, o acompanha.
Um alagamento forma uma espécie de rio, que cruza a rua por onde
ele anda. O zoom digital da câmera torna a cena rarefeita, dissolvendo
a profundidade de campo. Naturalmente, sem qualquer hesitação, o
homem começa a atravessar o rio, afundando devagar, até cobrir quase
todo o corpo. Ele sai da água, continua a caminhar pela rua e passa pela
câmera, sem tomar conhecimento dela. O vídeo termina quando ele sai
de cena. Sem trilha sonora, sem créditos, a não ser o título.
Entre uma e outra tela preta, algo atravessa o quadro, passa e conti-
nua para além dele. Esse “algo” – a vida (alheia, ordinária, indeterminada)
– escapa por todos os lados da imagem. Assim são os videorizomas, como
Marcellvs chama sua série de obras em vídeo: segmentos de imagem,
mundos interrompidos, dis-cursos.
174

Nenhuma imagem nos parece, agora, tão exemplar deste movi-


mento de que nos fala Blanchot em A conversa infinita:

- Ver também é um movimento.


- Ver supõe apenas uma separação compassada e mensurável; ver
é sempre ver à distância, mas deixando a distância devolver-nos aquilo
que ela nos tira. (...)
- Ver é perceber imediatamente longe.

O jogo entre imediaticidade e distância impõe ao espectador um


lugar difícil: se ver é perceber imediatamente longe, a imagem nos se-
para daquilo que vemos, para, em um mesmo movimento, nos devolver
o que havia nos tirado. Por meio de um zoom lento, a duração vai-nos
trazendo a figura esboçada de um homem. Eis que, logo depois, ela nos
rouba novamente sua presença: já bastante próximo da câmera, de nós
– quando estamos prestes a perceber o seu rosto – ele passa. Alheio,
se perde fora do quadro e se distancia novamente para além de nossa
capacidade de reconhecimento.
A relação entre distância e presença se faz ainda mais ambígua
em man.road.river, na medida em que, dissociados som e imagem, a
localização da câmera torna-se difícil. Como observa Cezar Migliorin,
enquanto ouvimos o som direto captado pela câmera, a cena do homem
se aproximando ao longe permanece silenciosa, o que provoca uma ex-
periência oscilante: não temos clareza sobre onde está a câmera e onde
nos situamos frente à imagem.
Para produzir suas imagens, Marcellvs parece se situar ali, em uma
zona ambígua, misto de atenção, crença e desprendimento. A contin-
gência da captura destes eventos é fundamental na produção dos vídeos.
Essa espécie de “atenção desatenta” é o que permite o encontro – o
afeto – entre o olho e o mundo: encontro distendido pelo tempo, me-
diado pela câmera, transfigurado pela edição digital (parcimoniosa aqui).
175

Não há, contudo, a ilusão de que basta olhar o mundo para que ele se
revele aos nossos olhos: objetivo e transparente. Nada é puro, natural.
Apesar de seu aparente naturalismo, estas são paisagens eletrônicas,
acontecimentos mediados, mundos que só podem emergir entre: o evento
e sua dissolução em pixels. A paisagem eletrônica, que se produz entre o
artifício e a natureza, é ainda uma paisagem temporal. Nela, a duração
possui uma dimensão estética, mas também política. No caso da obra
de Marcellvs, é a duração que nos permite entrever no mundano, no
banal, no ordinário, sua potência inaudita. E se o acontecimento é raro
– ao contrário do que nos querem fazer crer os telejornais – é porque
ele precisa da duração, em sua multiplicidade de tempos desordenados,
para acontecer.
Em sua estranha banalidade, esses eventos só ganham visibilidade
porque a imagem dura, daí o seu caráter excessivo. Há, em man.road.river,
uma intrigante confluência entre a espera do artista, a precisão na captura
das imagens e a aleatoriedade do que acontece. O evento é justamente
o que transborda o cálculo do artista, a expectativa do espectador. Ele
é tão excessivo quanto raro, sua apreensão é tão fortuita quanto difícil.
O tempo no qual está imerso é, em certo sentido, um tempo suspenso,
tempo extraído do fluxo do tempo. Mas ele é também um segmento
que dura e que, em sua duração, preserva o excessivo do evento, sua
heterogênea singularidade.
O pensamento que deriva dessa imagem, que dura em sua eventu-
alidade, é um pensamento precário, indissociável do acontecimento: se
desenvolve enquanto acontece, enquanto dura. A imagem será cortada,
mas, antes e depois do corte, o pensamento vinha e agora continua,
atravessa.
Há também um transbordamento em Herança, filme de Thiago
Rocha Pitta: um barco está abandonado em alto mar com duas pequenas
árvores plantadas em seu interior. A câmera acompanha sua deriva em
um instável plano-sequência de 11 minutos. Na verdade, o que deriva
176

não é um barco, mas uma obra: alguém esteve ali, plantou as árvores na
embarcação e saiu de cena, deixando apenas os vestígios (as forças e os
desdobramentos) de sua intervenção. A duração da imagem nos permite
testemunhar lentamente este estranho abandono. À medida que o vídeo
se desenvolve, pouco a pouco, a câmera se afasta, e, com isso, vai-se
distanciando também o gesto do artista em embate com a natureza. Até
que, a partir de certo momento, vez ou outra, o barco some, tomado pelo
movimento das ondas, e, brevemente, vemos apenas as árvores plantadas
em alto mar. Como se, por meio do artifício do artista, acabássemos por
reencontrar uma natureza inaudita.
Em alguns aspectos, os filmes de Rocha Pitta – podemos citar
ainda Homenagem a JMW Turner (2002) e Fonte dupla ou Paisagem cozida
(2005) – guardam semelhanças com os videorizomas de Marcellvs L. Em
todos estes trabalhos, a duração é o que permite a experiência do tempo
(e da paisagem) em sua heterogeneidade. Neles, também se percebe o
embate entre filme e natureza, entre o enquadramento e o que o excede.
Percebe-se ainda o caráter contingencial das imagens, em uma economia
que privilegia o momento da captação, em detrimento da pós-produção.
Por fim, diríamos que há em comum entre eles a recusa à explicação, em
imagens que se apresentam em sua “força de aparição”.
Mas se nos videorizomas o embate entre imagem e natureza se
dá por meio de uma espera, ou melhor, de uma atenção desatenta, nos
filmes de Rocha Pitta os eventos são provocados pelo artista. O que
a imagem capta será então o naufrágio do artifício no ambiente natu-
ral, o gesto irônico do artista que intervém para depois, novamente,
ser tomado pela passiva grandiosidade do mar. Apesar de seu caráter
explícito de artifício, essa intervenção física, material, no domínio da
natureza, não resulta em imagens calculadas, mas em descontrole,
transbordamento, excesso.
Bem diferente é a estratégia de Rafael Lain e Ângela Detanico em
Flatland. Nesse vídeo digital, o embate com a natureza também é pre-
177

sente. O trabalho foi realizado em uma viagem da dupla ao delta do Rio


Mekong, no Vietnã, região chamada pelos habitantes como Terra Plana.
Depois de realizarem um travelling pelo rio, ao longo de um dia, os artistas
selecionaram oito frames extraídos de diferentes horários. As colunas de
pixels de cada um desses quadros foram distendidas e reeditadas, o que
torna a experiência de descida calma pelo rio algo aparentemente veloz.
A paisagem horizontal parece ter-se rarefeito, achatada pela velocidade.
O fluxo de linhas que varrem a tela em Flatland torna essa uma
experiência aparentemente oposta àquela dos filmes de Marcellvs L. e de
Rocha Pitta: de um lado, estaria o plano que dura em seu tempo lento,
aberto às nuances, aos detalhes, enfim, à espessura da experiência. De
outro, o fluxo, em que nada acontece, tudo passa: a experiência impos-
sibilitada pela velocidade.
Mas, paradoxalmente, não é bem disso que se trata e a oposição
torna-se logo enganosa. O que nos parece uma experiência de velocidade
é, na verdade, pura desaceleração: travelling imobilizado, tornado sucessão
de quadros fixos – frames tratados no programa de computador. O que
se tem, nesse caso, é a invenção, a simulação de um tempo paradoxal,
tempo distendido, suspenso, entre a mobilidade e a imobilidade.
Em Flatland, o áudio garante certa indicialidade às imagens. Ape-
sar de toda abstração, a trilha sonora preserva densidade à experiência:
sons ambientes, trechos de músicas e falas captadas de uma rádio local.
Indícios, ainda que dispersos e fragmentários, de uma experiência. Essa
indicialidade do áudio se articula a outros recursos de linguagem, como,
por exemplo, a variação da luminosidade das linhas que compõem a
imagem. Elas mostram o sol se pondo nas linhas de varredura. Ora,
nos diriam os artistas, a experiência de percorrer o delta ao longo de
um dia, por mais lenta que seja, acaba por se assemelhar à experiência
da velocidade. Não sem certa monotonia, a paisagem desliza plana,
vai perdendo suas nuances e particularidades, diante de um olhar que
se abstrai. Resta a luminosidade, que transforma a paisagem ao longo
178

do dia e que se traduz, indicialmente no vídeo, por linhas de diferentes


tonalidades.
Imagem-fluxo, dados que deslizam pela tela e que encarnam em-
blematicamente aquilo que, para Deleuze, caracteriza um novo regime
do visível. “A tela não é mais uma porta-janela (por trás da qual...), nem
um quadro-plano (no qual...), mas uma mesa de informação sobre a qual
deslizam as imagens como ‘dados’”. Por meio de suas linhas luminosas,
Flatland aponta para a possibilidade de se reencontrar a paisagem no
universo liso do cálculo.
Trata-se de uma experiência abstrata, mas atravessada de indiciali-
dades, o que nos permitiria, não sem problemas, situar o vídeo de Lain
e Angela no domínio do documentário (para Giselle Beiguelman, um
“documentário líquido”).5 Situado entre mobilidade e imobilidade, entre
duração e velocidade, entre a rarefação da paisagem e a indicialidade das
tonalidades e dos ruídos, Flatland aproxima a experiência conceitual da
experiência sensível, fazendo da lisura da imagem digital, novamente,
quem sabe, um espaço estriado.
Se estes são “ensaios”, não é porque propõem um argumento,
por mais oblíquo que esse argumento possa ser. Quase imperceptível,
o acontecimento atravessa a imagem e, sutilmente transfigurado pelos
artistas, provoca o movimento do pensamento. Precário, instável, qua-
se por se fazer e logo já desfeito, este é um pensamento estético, “um
pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo: produto
idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico
a um pathos, intenção do inintencional”, nos termos de Ranciére.

Pensamento branco
A imagem branca, estourada, torna essa uma paisagem indecisa.
Em primeiro plano, se esboça a figura de um homem que, muito len-
tamente, entra no quadro e ali permanece por um longo tempo. Aos

5 Uma abordagem nesse sentido se encontra em Chantal Pontbriand, “Éclats du documentaire”.


179

poucos, percebemos que ele pesca. Entre uma e outra tentativa, contudo,
apenas os movimentos do corpo, que se repetem. Se em Man.Road.River
a câmera é fixa, precisa, neste outro vídeo de Marcellvs – Man.Canoe.
Ocean (2005) – a precisão não se sustenta, desequilibrada pelo balanço
da embarcação ao longe. Um homem insiste em pescar, mas o que
consegue é pouco, quase nada. Se há uma urgência para o pensamento
ensaístico é a de nos levar para o mar alto, nos retirando, momentane-
amente, o chão de nossas certezas. Mas, em via inversa, é ele que nos
permite criar, inventar novamente os caminhos que nos trazem de volta
à terra (nunca a mesma, sempre outra terra). As imagens são parte dessa
experiência que nos leva do acontecimento à sua rarefação e, de novo,
à possibilidade do acontecimento.
Em O Amante da China do Norte, de Marguerite Duras, o barco dei-
xa o Rio Mekong em direção ao mar. A criança observa um rapaz com
sua câmera fotográfica a tiracolo: “Fotografava as pontes. Pendurava-se
para fora da amurada e fotografava também a proa do navio. Depois
fotografava apenas o mar. Depois mais nada”.
180
181

Comum, ordinário, popular:


figuras da alteridade no documentário
brasileiro contemporâneo
César Guimarães

No final da década de 1970, Raul Garcez dedica um ensaio fo-


tográfico ao Conjunto Habitacional Várzea do Carmo, em São Paulo,
projeto de moradia popular de traçado funcional e moderno, construído
pelo IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários) e
destinado à baixa classe média. De outubro de 1979 a abril de 1980, o
fotógrafo visita semanalmente o conjunto, e a cada vez as imagens trazem
um microcosmo silencioso, no qual nada (ou pouco) se passa: nada de
extraordinário ou típico. Com seu tempo espesso, os espaços habitados
revelam os traços da presença humana que lhes concede uma história
miúda e compartilhada, irrigada por práticas e gestos que se perderiam
no deslizar anônimo nos dias, se não fosse esta outra presença: a do
fotógrafo com sua máquina. Cioso de que não se trata nem de capturar
algo nem de invadir um espaço (ambas operações guerreiras), ora ele
se posta na soleira dos cômodos, ora adentra suavemente um recinto
onde uma mulher descansa, ou a sala na qual uma criança faz o dever
de casa. A serenidade e, mais do que isso, certa suspensão de sentido,
habitam as imagens e lhes conferem aquele “movimento imóvel” que
constitui o cotidiano, no dizer de Maurice Blanchot:

o ordinário de cada dia não o é por contraste com algum


extraordinário; não é o “momento nulo” que esperaria o
“momento maravilhoso” para que este lhe dê um sentido
182

ou o suprima ou o suspenda. O próprio do cotidiano é


designar-nos uma região, ou um nível de fala, em que a
determinação do verdadeiro e do falso, como a oposição
do sim e do não, não se aplica, estando sempre aquém
daquilo que o afirma e não obstante reconstituindo-se sem
cessar para além de tudo aquilo que nega.1

Essas imagens de quase trinta anos atrás, que mostram, com


discrição e reserva, momentos da vida cotidiana de um conjunto ha-
bitacional popular, contrastam surpreendentemente com as imagens
atuais que temos de outros conjuntos habitacionais similares a este
fotografado por Garcez. Para lembrar de uma região marcada pela
pobreza e pela violência, poderíamos mencionar aquele conjunto ha-
bitacional que esteve na origem da favela Cidade de Deus. No filme
homônimo dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o conjunto
aparece em cores que evocam um passado ameno, na década de 1960,
quando os futuros e bárbaros traficantes formavam apenas um grupo
de pequenos delinqüentes, ainda unidos pela camaradagem.
Podemos montar – para fins heurísticos – essas imagens e os distin-
tos tempos e lugares sociais aí inscritos. Tal como surgem representados,
seja pelos jornais (impressos e televisivos), seja pelos filmes de ficção e
documentários, os espaços que hoje abrigam as formas de vida popula-
res têm dado a ver, predominantemente, a violência espetacularizada e as
condições dificílimas nas quais os moradores desenvolvem suas táticas de
sobrevivência, sem falar dos acontecimentos trágicos a que sucumbem
tantas vezes. Muito distante daquele ambiente fotografado por Garcez,
um número significativo de filmes produzidos nas duas últimas décadas
figurou esse outro de classe sob o duplo selo da criminalização e do misera-
bilismo (segundo a denominação de Fernão Pessoa Ramos).2 

1 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2. São Paulo: Escuta, 2007, p. 240-241.


2 O autor destaca, dentre outros, filmes como Notícias de uma guerra particular (1999), de João
183

Os espaços privados, que na distribuição de seus objetos, até então


guardavam experiências e práticas compartilhadas (uma história, uma rela-
ção com o lugar e com o tempo ali vivido), tal como apanhados pelo olhar
contemplativo do fotógrafo, são agora substituídos pela superexposição
do tecido social em frangalhos, como se as marcas do viver em comum só
atestassem o limite da sua dissolução. Todo abrigo da vida cotidiana surge
ameaçado, de um lado, pelo crime e pela violência, e de outro, pela miséria
(tão pronunciada que parece roubar dos sujeitos qualquer relação de afeto
e de temporalidade com o lugar habitado). Ali onde os sujeitos existem e
resistem, os lugares parecem testemunhar somente o dano que recai sobre
suas vidas, causado pelas desigualdades duradouras da vida social. Para
Fernão Ramos, em documentários como Notícias de uma guerra particular,
Ônibus 174 e Falcão: meninos do tráfico, as imagens e falas que traduzem o
universo popular, exibidas sob a forma do choque (inscrito materialmente
na intensidade da tomada), são oferecidas a um público de classe média
que “teme, treme e se apieda com o horror”3  ao qual é exposto.
Sem deixar de reconhecer o predomínio desta face terrível do popu-
lar em tantos filmes recentes, parece-nos, no entanto, que uma abordagem
como esta concebe a representação do outro de classe como um jogo
excessivamente polarizado, no qual o realizador exerce quase sempre uma
força desigual e preponderante sobre o sujeito filmado (ainda que este não
apareça como vítima). Essa desmedida na intervenção do cineasta revela
a disparidade da relação com aquele a quem filma, e acabará por acarretar
a má-consciência que se traduzirá – à maneira de um recalque – sob a
forma do horror. Podemos, entretanto, conceber a representação como
um campo de forças cuja gênese é anterior à circunstância da tomada, e
na qual se inscreve, irreparavelmente, aquele dano infligido à “parcela dos

Moreira Salles e Kátia Lund; O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas
e Marcelo Luna; Ônibus 174 (2002), de José Padilha; O prisioneiro da grade de ferro: auto-retratos
(2003), de Paulo Sacramento; À margem da imagem (2003) e À margem do concreto (2006), ambos
de Evaldo Mocarzel; Falcão: meninos do tráfico (2006), de MV Bill e Celso Athayde.
3 RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008, p. 211.
184

que não tem parcela” (segundo a expressão de Jacques Rancière). Por mais
“inclusiva” que essa representação queira ser, sempre sobrará, fora dessa
conta, a parcela não-incluída. A conta das partes do todo da comunidade
restará sempre mal-feita. É por um outro viés, portanto, que gostaríamos de
abordar a questão da representação do “popular” (que não é senão – como
explicaremos mais adiante – apenas uma das diversas figurações que tomou
o homem ordinário no documentário brasileiro recente).

Reduzido à situação de objeto, o outro de classe pode receber


várias designações, mas todas recobrem uma identidade forjada em um
processo conflituoso, que pode ter lugar tanto em uma arena, feita para o
confronto aberto, quanto em uma negociação mais ou menos desarmada.
Relembremos a cena fundamental que constitui a política. Seja qual for
o termo utilizado para designar o outro de classe (“população de baixa
renda”, “favelado”, “pobre”, “marginalizado”, “excluído”), ele indicará
sempre o pertencimento desse sujeito à “parcela dos sem parcela” – os
que só tem a qualidade de nada terem de próprio (enquanto a oligarquia
detém a riqueza e os aristocratas a virtude), e que um dia recebeu o nome
de demos na Grécia antiga.4  O povo, essa massa de homens sem qualida-
de, sem título algum, que só tem a liberdade como coisa própria, ao ser
reconhecido como portador da mesma liberdade desfrutada pelos que
possuem títulos, passa a ostentar uma “propriedade imprópria”. É por
isso que a existência desses não-contados na “conta malfeita nas partes do
todo” da pólis é motivo de um litígio fundamental, como afirma Rancière:
A massa dos homens sem propriedades identifica-se à comunidade
em nome do dano que não cessam de lhe causar aqueles cuja qualidade
ou propriedade têm por efeito natural relança-la na inexistência daqueles

4 Para Rancière, a política se institui no momento em que a “a ordem natural da dominação é


interrompida pela instituição de uma parcela dos sem parcela”. O desentendimento, p. 26.
185

não tomam “parte em nada”. É em nome do dano que lhes é causado


pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade.
Quem não tem parcela – os pobres da Antigüidade, o terceiro estado
ou o proletariado moderno – não pode mesmo ter outra parcela a não
ser nada ou tudo.5
Trazendo a perspectiva de Rancière para a discussão do que está
em jogo nas imagens documentais, enfatizemos o quanto as questões en-
volvidas na representação do outro de classe não podem se desvencilhar
deste dano irreparável, instituidor da comunidade política. Se para Fernão
Ramos um dos problemas mais incômodos no âmbito do documentá-
rio brasileiro recente é a “má consciência” do realizador (pertencente
à classe dos que têm títulos) ao filmar os que pertencem à classe dos
não-contados, julgamos que tal dificuldade só pode ser enfrentada se a
relação entre quem filma e quem é filmado alcançar, simultaneamente,
um processo de subjetivação e um ato de individuação. Como afirma
Rancière, um processo de subjetivação só pode ocorrer se surge uma
tomada de palavra na qual o sujeito se arranca do lugar dos não-contados,
de todos aqueles que só tem a phoné, e passa a participar do sensível sob
uma outra modalidade: a do logos.6   Resta identificar, contudo, os recursos
expressivos de que o documentário dispõe para dar conta de um processo
que tanto o atravessa quanto o ultrapassa.
No campo dos estudos sobre o documentário brasileiro, Jean-
Claude Bernadet traçou, admiravelmente, o percurso da evolução da
representação do outro de classe, no período que vai de 1960 a 1980.
Nesse arco de vinte anos, o outro filmado deslocou-se da condição de
objeto de um saber exterior à sua experiência, encarregado de ditar-lhe

5 RANCIÈRE. O desentendimento, p. 24.


6 Como indica Rancière, é no Livro I da Política de Aristóteles que se encontra a divisão entre
duas espécies de animais e duas modalidades de participação no sensível: a voz (phoné), com-
partilhada pelos animais, indica a dor e o prazer. Mas o homem é o único animal que detém
a palavra (logos), que permite manifestar o útil e o nocivo e, conseqüentemente, o justo e o
injusto. Cf. RANCIÈRE. p. 17.
186

a sua verdade, para assumir-se como sujeito do discurso, dono de uma


auto-mis en scène que lhe permite dramatizar a singularidade da sua relação
com o mundo, agora irredutível às explicações generalizantes. No entan-
to, essa mudança de foco que põe o acento no ponto de vista singular do
sujeito filmado – cuidadosa em não fazer do discurso do filme o agente
de uma segunda expropriação – não eliminou as tensões constitutivas
da relação entre o cineasta e aqueles a quem ele filma, modulada por
graus diversos de alteridade e sustentada por uma gama de diferenças
(de classe, de gênero, étnicas, culturais). Mencionemos, a esse respeito,
uma obra ficcional que traduz, com rara agudeza, essa disparidade ir-
redutível e constitutiva que atravessa o processo de representação do
outro de classe.
Em 1977, Clarice Lispector publica A hora da estrela, texto cujo
narrador, o escritor Rodrigo S.M., se debate no processo de criação de
uma personagem, Macabéa, uma nordestina semelhante às “milhares
de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de
balcões trabalhando até a estafa”.7  Toda a dificuldade enfrentada pelo
narrador reside no fato de que essa personagem não se presta a uma
descrição realista, pois “vive num limbo impessoal”, ausente de si mes-
ma, invisível para todos que a cercam, subterrânea, destituída de todo
encanto. Com seu “corpo cariado”, ela “nunca tinha tido floração”, era
como capim. Para o narrador – que toma para si o papel de válvula de
escape da vida massacrante da média burguesia – a escrita que se de-
fronta com essa alteridade irredutível é uma possibilidade de sair de si.8 
Sabemos bem o quanto essa narrativa vai muito além da tematização do
confronto de classes, e se sublinhamos esse aspecto é para estabelecer um
contraponto entre o mundo de Macabéa, alagoana, datilógrafa, habitante
do “pardo pedaço de vida imunda” (segundo a expressão do narrador)
e o horror que um outro mundo, similar ao da nordestina, despertará,

7 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 14.


8 LISPECTOR. A hora da estrela, p. 30.
187

três décadas depois, nos cineastas e nos espectadores que se deparam


com o “popular criminalizado” ou sufocado pela miséria (para retomar
os termos empregados por Fernão Ramos).
Sem menosprezar o quanto a violência e a pobreza impregnam
a representação dos homens ordinários no documentário brasileiro
recente, gostaríamos de esboçar um outro traçado teórico e analítico
para nos avizinharmos das inúmeras e diversas “vidas sem qualidade”,
mergulhadas nesse limbo impessoal para o qual são empurradas. E por
isso mesmo, ainda que frágil, a visibilidade que alcançam não é des-
tituída de interesse político e estético. Dito isso, tentemos identificar
outras figuras da alteridade que não se reduzem a esta face exasperada
da violência ou da miséria, sem desconhecer o quanto ela se infiltra nos
modos de vida e na subjetividade dos que são filmados. Para tanto, será
preciso percorrer o “pardo pedaço” da vida cotidiana, à procura de um
outro rosto para as mulheres e os homens ordinários.9 

Segundo Giorgio Agamben, todos os seres vivem no aberto, e é


nele que resplende sua aparência. No entanto, diferentemente dos ani-
mais, o homem se apropria desta abertura e procura capturar a manifes-
tação da sua aparência, dando-lhe um nome, uma face, uma semelhança.
Se para o homem a aparência constitui um problema político e estético
é porque ela torna-se a arena de uma luta pela verdade. Para o filósofo
italiano, o rosto é o “estado da exposição irremediável do homem e, ao
mesmo tempo, sua dissimulação justamente nessa abertura”.10  Destituído
de algo próprio e de substância, o rosto é um fundo amorfo e passivo
do qual emergem os traços de expressão que contrai. Sem esconder um
9 Permitimo-nos resumir aqui a argumentação apresentada no artigo publicado no v.7, n. 13
(jul./dez. 2006) da revista Alceu., escrito em parceria com Cristiane Lima.
10 AGAMBEN, Giorgio. Le visage. In:___. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Payot
& Rivages, 2002, p.106
188

segredo nem ocultar a verdade, e longe de se reduzir a um simulacro, o


rosto está mais próximo da simultaneidade das várias faces que o cons-
tituem – sem que nenhuma seja mais verdadeira do que as outras – do
que da similitude adquirida em condições particulares.
Comumente, quando é encarregado de suportar a identidade no
campo das imagens, o rosto perde a oscilação que o constitui – a simul-
taneidade do aparecer e do dissimular – e ganha a rigidez de um caráter
próprio, fixado pelos predicados que o delimitam. Ao personalizar e
particularizar um sujeito, a imagem corre o risco de expropriá-lo do que
ele tem de especial, que é o oposto exato de uma marca absolutamente
particular. Ao contrário: especial é exatamente o ser que não tem substân-
cia, cuja essência coincide com seu dar-se a ver (seu aparecer), com sua
espécie, enfim. Agamben nota que o termo species – aparência, aspecto,
visão – liga-se a uma raiz da qual derivam outros termos, tais como espelho,
espectro, espécie e espetáculo. Se a espécie de cada coisa é a sua visibilidade,
o ser especial é aquele “que coincide com seu fazer-se visível”, mas de tal
modo que esse seu aparecer em imagem deve ser entendido tal como os
filósofos medievais faziam quando se perguntavam pelo ser e o não-ser
das imagens especulares. Para eles, a imagem, destituída de essência, sem
existir por si mesma, é um acidente que surge em um sujeito, e não algo
que lhe pertence. Desprovida de realidade contínua, ela é engendrada pela
presença e pelo movimento de quem a contempla. Não determinável sob
a categoria de quantidade, ela é uma espécie de coisa. Eis então a dualidade
fundamental que define o termo espécie quando aplicado à imagem: “Ela é
o que se oferece e se comunica pelo olhar, o que faz visível, e ao mesmo
tempo – o que pode – e deve a todo custo – ser fixado em uma substância
e em uma diferença específica para constituir uma identidade”.11 
Se o aparecer da identidade configura-se atualmente como um
problema simultaneamente político e estético é porque está em jogo,

11 AGAMBEN, Giorgio.El ser especial. In:___. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2005, p. 75.
189

tanto do lado dos discursos midiáticos quanto do filme documentário,


uma incessante redução do especial ao pessoal e deste ao substancial. A
espécie é transformada em princípio de identidade e de classificação,
fazendo-se com que as linhas de significação e de subjetivação que
desenham o rosto – para os lembrar os termos de Deleuze e Guattari –
ganhem um traçado por demais marcado e linear.12  Uma manifestação
particular desta operação redutora é hoje compartilhada – não sem
ambigüidade – pela mídia e pelos filmes documentários: talvez, como
nunca antes, os homens ordinários alcançaram tamanha exposição e
visibilidade, a ponto de acreditarmos que adentramos, de vez, na “era
dos homens sem qualidades”. Contudo, é preciso não confundi-los com
a figura do qualquer um, homem comum ou genérico, mediano, mer-
gulhado no cotidiano – anódino ou atroz – ou ainda, sob a figura um
tanto vaga dos representantes das “classes populares”, embora destas
seja sempre pinçado, por seu caráter exemplar, um ou outro rosto tin-
gido de cores particulares, ou então um depoimento, queixa, denúncia
ou protesto. Como bem sublinhou Jean-Louis Comolli, estamos diante
de uma questão que é tanto política quanto estética: “Como passar do
indivíduo à massa? Questão política. Como passar da coletividade ao
sujeito? Questão cinematográfica. Os dois movimentos – para o único,
para o múltiplo – se cruzam e descruzam, oscilação sem fim”.13

A visibilidade que o documentário pode proporcionar ao homem


ordinário deve ser avaliada, portanto, em função da maneira com que
seus recursos expressivos traduzem, no domínio das formas, um proble-

12 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Ano zero: rostidade. In:___Mil platôs. Capitalismo
e esquizofrenia, vol. 3, Ed. 43, 1996, p. 31-62.
13 COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: SEDLMAYER,
Sabrina; GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org). O comum e a experiência da linguagem. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 128.
190

ma político e estético, entrelaçado à nervura dos filmes: o da exposição


do rosto. Essa exposição é hoje transformada em um objeto de disputa
entre os midiacratas (os novos gestores da imagem) e todos aqueles que
lutam para tornar visível a identidade – individual ou coletiva – de
sujeitos marcados por processos sociais e econômicos de exclusão e
de marginalização. Sabemos bem da importância que essa disputa por
visibilidade adquire em um espaço público ampliado pela disseminação
dos discursos midiáticos, mas gostaríamos de voltar nossa atenção para
um outro espaço, menos iluminado e mais discreto: o cotidiano.
As práticas cotidianas – afirma Michel de Certeau – produzem sem
capitalizar, sem dominar o tempo, pois sua economia é a da dádiva.14 É
preciso tão somente acolher essa indiferença da vida cotidiana, que não
guarda segredo algum, que nada pode revelar, pois nada esconde. Ao
percorrer aquelas imagens de Garcez mencionadas no início deste texto
podemos perscrutar e índices de um modo de vida que alude ao universo
“popular” – para utilizar o termo com que os especialistas (engenheiros,
arquitetos, técnicos) designam esse seu outro. Trata-se, certamente, de
um outro de classe, mas ele guarda uma reserva de alteridade que não se
reduz meramente às marcas sociais. Seria preciso incluir aí um regime de
afetos e de crenças, de condutas e de práticas, de universos imaginados,
de falas criadas e esquecidas diariamente, sem registro; enfim, a expressão
de um mundo possível, para retomar os termos de Deleuze em sua leitura
de Michel Tournier. Em vez de falar da representação do outro, é melhor
então falar de algo que a antecede e a condiciona: outrem como estrutura do
campo perceptivo, e não apenas como objeto ou como um outro sujeito.
Para Deleuze, outrem, tomado “a priori como estrutura absoluta” funda
a relatividade dos outrem em diferentes campos perceptivos.15
A aparição de um outro, com traços particulares e individualiza-
dos, emerge, portanto, da estrutura outrem: ele é o desenvolvimento ou a

14 CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, p. 48.


15 DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o Mundo sem Outrem. p. 317.
191

realização do mundo possível correspondente. Esta maneira de conceber


a teoria do conhecimento pode deslocar a maneira usual com que tra-
tamos a representação do outro no domínio das imagens, comumente
aprisionada no dualismo sujeito-objeto. Outrem (como estrutura) não é
nem um objeto particular percebido em um campo perceptivo nem um
sujeito que ocupa esse campo. De todo modo, ressalta Deleuze, “não é
o eu, é outrem como estrutura que torna a percepção possível”.16
No que concerne às imagens de Garcez, ambientadas no conjunto
habitacional Várzea do Carmo, seria pouco recolher os traços indica-
dores de uma classe social e remetê-los a uma época ou a uma situação;
identificar os objetos e seu design, fazer da imagem um atestado do que
desapareceu. Se os inúmeros detalhes contidos nessas imagens – nos
móveis, nos utensílios, na decoração, na disposição dos espaços, nas
roupas – podem, de algum modo, servir a uma datação (tudo aquilo que
pertence ao que Barthes chamou de studium), a forma de vida cotidiana
que ocupa esses espaços, entretanto, “dissolve as estruturas e desfaz as
formas”, como escreve Blanchot.17 
Sem ignorar os problemas implicados nessa representação do
outro de classe, a começar pelas diferenças que se interpõem entre
quem realiza a imagem e quem é nela é figurado, interessa-nos me-
nos a aparição de um “sujeito popular” do que a presença de uma
forma-de-vida, a vida humana, “na qual todos os modos, os atos e os
processos do viver não são nunca simplesmente fatos, mas sempre
e antes de tudo, possibilidades de vida ou potências, como escreve
Giorgio Agamben.18  Sob esse prisma, a denominação “popular” pode
muito bem funcionar como uma identidade concedida de fora, outor-
gada por quem não consegue perceber o que concerne à potência no
mundo do outro, e nele identifica somente o que recai sob a rubrica

16 DELEUZE. Lógica do sentido, p. 318.


17 BLANCHOT, Maurice. A fala cotidiana, p. 241.
18 AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. p.14.
192

do representado, o resultado da operação da representação, o fato,


o condicionado, o estado cristalizado e acabado. Não é assim, por
exemplo, que o termo funciona na denominação “moradia popular”,
quando empregado pelos peritos? Em contraposição a essa identidade
concedida de fora (dada justamente por aqueles que só reconhecem o
horror no mundo do outro de classe), gostaríamos de destacar outras
figuras da alteridade que surgem nos movimentos de subjetivação e
nas práticas cotidianas figuradas nos filmes de Eduardo Coutinho, e
em especial, em Boca de lixo (1992).

Não temos condições sequer de esboçar uma explicação aqui, mas


não podemos deixar de indagar o que aconteceu nesse arco de trinta anos
para que a fala popular – um dia depositária daquele “povo por porvir”
de que nos fala Deleuze – tenha se metamorfoseado nessa figuração
crispada do horror em nossos dias.19  Seria possível, contudo, interrogar
os interstícios dessa mutação que afetou aquela “glória do qualquer um”,
inventada ainda no século XIX pela literatura e que prosseguiu ao longo
do século XX com as artes da imagem técnica (a fotografia e o cinema),
quando ambas passaram “dos grandes acontecimentos e personagens à
vida dos anônimos”, na tentativa de “explicar a superfície pelas camadas
subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios”.20 
A obra de Eduardo Coutinho já recebeu leituras esmeradas (como
a de Consuelo Lins, por exemplo), e o que gostaríamos de destacar aqui
são alguns aspectos suplementares da convivência entre a violência, a

19 Pensamos aqui nas passagens em que Gilles Deleuze, ao falar das diferenças ente o cinema
político clássico e moderno, dedica aos filmes de Resnais, Straub, Glauber Rocha, Pierre Per-
rault e Jean Rouch, dentre outros. Cf. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo.São Paulo: Brasiliense,
1990, p. 257-266. Entre nós, talvez a última aparição dessa figura do “povo que falta” tenha
sido em Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho (1984).
20 RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 49.
193

miséria e os gestos de subjetivação que emergem das práticas cotidianas.


Se a etnografia realizada por Coutinho pode ser reputada de “discreta”
(como o fez Ismail Xavier), é porque seus filmes, pouco a pouco, tor-
nam mais e mais complexa a conexão indicial entre as falas e os espa-
ços sociais habitados pelos sujeitos filmados, endereçando-a também
a espaços imateriais, nos quais imperam as potências e os afetos que
constituem transversalmente a subjetividade. De maneira muito precisa,
Consuelo Lins identificou na obra de Eduardo Coutinho o gradativo
aperfeiçoamento – filme após filme – de um dispositivo variável que se
(auto) impõe coerções procedimentais na realização do filme, como,
por exemplo, concentrar-se num único espaço geográfico e adotar o
plano fixo como principal recurso expressivo, como é o caso de Santo
Forte, por exemplo.21  Trata-se, com certeza, do aprimoramento de um
método, e o que gostaríamos de destacar é que há outra propriedade
suplementar que o cineasta extrai do seu princípio criativo: em sintonia
com o gesto de filmar a fala, os filmes de Coutinho concedem ao rosto
– e apesar dos cortes – uma inquietante potência.
Em Boca de lixo (1992), tudo começa e termina pelo rosto. Para
aproximar-se dos catadores de lixo da região do vazadouro de Itaoca,
município de São Gonçalo, a 40 Km da cidade do Rio de Janeiro, o cine-
asta, munido inicialmente de uma cópia xerox das imagens das pessoas
que trabalham no lixão, pergunta a um pequeno grupo de catadores
quem são os sujeitos ali retratados. Na massa quase indistinta de pessoas
e detritos, misturados ao lixo e à sua decomposição na terra revolvida,
algo deve se destacar: um nome próprio, um traço (mínimo que seja)
com algum sentido, um índice qualquer que faça diferença, que exiba a
individuação onde os rostos desapareceram sob a sujeira e o anonimato.
Possuir um rosto não tem nada de gratuito ou de aleatório: um rosto
não é apenas imposto pelas formações sociais e seus agenciamentos de

21 Sobre o dispositivo em Coutinho, cf. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho.


Televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 100-102.
194

poder. É preciso conquistá-lo: passar do trabalho à casa, desfazer um


rosto e entrar em outro, alcançar o único e no entanto nunca o mesmo
rosto. Rosto de mãe, mulher, trabalhador, menina, criança, homem,
menino, moça...
Um rosto traz sempre os vestígios das passagens e das velocidades
que o percorrem. Em Boca de lixo, se nos momentos iniciais do contato
com o cineasta os moradores do lixão encobrem o rosto, envergonhados
ou temerosos de que sua imagem seja expropriada pela televisão (ao
tomarem o cineasta por um repórter), aos poucos o filme desenvolve
uma série de operações em torno do rosto e dos espaços (o do lixão e
o das moradias), construindo uma proximidade onde reinava a descon-
fiança ou o protesto (ainda que dito em tom brincalhão). Pouco depois
da primeira aparição dos catadores, que disputam os restos despejados
pelo caminhão que acabara de chegar, surge um garoto que interpela o
cineasta frontalmente, e pergunta o quê ele ganha “pra ficar botando esse
negócio” [a câmera] “na cara deles”. Coutinho responde que é para mos-
trar às pessoas como é a vida real deles. Ao que o garoto retruca: “Sabe
pra quem o senhor podia mostrar? Podia mostrar pro Collor”[então
Presidente da República]. Pouco depois, ouvimos uma voz de criança
que grita: “Collor tá matando o pobre de fome”. Vencida essa resistência
inicial à presença da câmera, os catadores passam a afirmar, em meio a
risos e brincadeiras, que o lixão é um lugar de trabalho, e que dali também
se retira comida (quando apanham o lixo proveniente do supermercado
Sendas). A defesa do lixão como lugar de trabalho é um dos pontos de
ancoragem da individuação (contra a representação genérica que reduz os
sujeitos a um bando de miseráveis famintos ou preguiçosos). No espaço
doméstico, depois de rompidos o anonimato de cada um e a desconfiança
contra o cineasta, se admite, ainda com certa reserva, mas sem conflito,
que o lixão também propicia alimentos aproveitáveis.
A co-presença do rosto, da fala, da escuta e da máquina que
registra faz do filme um espaço de partilha no qual os sujeitos ganham
195

tempo e autonomia para desenvolverem uma auto-mis-en-scène que com-


porta fragmentos biográficos, valorações subjetivas, táticas cotidianas
para enfrentar a precariedade dos recursos materiais e a instabilidade da
relação com o lixão, e também – por que não – pequenas aspirações. Às
vezes, os desejos mais descabidos são os que possuem maior grandeza,
porque permitem o equilíbrio no mais improvável, sustentados não com
a força da fantasia (facilmente aproximada do engano ou da falsidade),
mas de um gérmen de fabulação, tal como o faz a filha de Cícera, uma
das muitas mulheres que trabalham no lixão, pernambucana, há 18 anos
no Rio de Janeiro. A certa altura, instada por Coutinho a falar mais,
Cícera afirma: “Eu só quero que um dia (....) a mim não, que não tenho
mais o que ganhar (...) mas eu quero que Deus, o que eu peço a Deus
(...) liberte ela, dê uma chance a ela mais tarde pra seguir o que ela bem
quer”. O diretor logo pergunta à moça o que ela queria ser na vida – um
pouco como perguntamos às crianças – e ela responde, sem titubear:
“Cantora”. “Quer ser cantora?”, Coutinho insiste. “Quero”, ela con-
firma. “O que você gosta de cantar?”, ele indaga. “Música sertaneja”,
ela diz. Nos dois planos que se seguem (o primeiro, aberto, o segundo,
fechado no rosto), a adolescente canta uma canção romântica típica
da difusão massiva das rádios (“Sonho por sonho”), pés descalços na
terra, em frente à casa feita de barro, rosto exibindo seus trejeitos para
a câmera. Ela desenvolve sua auto-mis-en-scène, enfim.
A figura da adolescente que canta está longe de ser reduzida a
mero exemplo da relação entre a cultura popular e as formas simbólicas
midiáticas. O que aparece aí é outra coisa. Trata-se da moça-cantora sem
palco, estrelato ou público; a moça-dentro-da-imagem, movendo-se no
seu próprio imaginário, sem espetáculo ou afetação. Uma anti-estrela
tentando fabular seu desejo disparatado. Pouco antes da seqüência final
do filme ela reaparecerá “arrumada”, rádio de pilha na mão, escutando
a canção preferida, na voz de José Augusto. Os três planos finais da
seqüência que traz a primeira aparição de Cícera e sua filha exibem
196

justamente as duas se arrumando: primeiro, a mãe lavando os pés, no


quintal: depois, a filha se penteando ao espelho, no quarto, e em seguida,
também a mãe. Em sua segunda aparição, mais à frente, a mãe, a filha e o
padrasto (Antônio, um pescador) são apanhados à maneira de um retrato
de família, mas sem a rigidez da pose. Nas mãos a garota traz o rádio
que toca sua canção predileta. O cineasta pergunta de quem é a música.
“Zé Augusto”, ela responde, sorrindo. Coutinho pede, amigavelmente:
“Canta, canta junto!”. A voz, um pouco trêmula, começa a acompanhar
a música que vem do rádio. Enquanto a cena dura, sem cortes, a câmera
se aproxima mais, enquadra a moça em plano médio, desce e focaliza
o rádio, depois sobe e alcança o rosto dela, move-se em seguida para a
esquerda e apanha os rostos da mãe e do padrasto; retorna para a direita
e fixa-se novamente no rosto da moça. Com suavidade, ela tenta assimilar
– tal como se diz de um golpe – a frontalidade com que é apanhada; seus
olhos buscam um pequeno desvio para o lado. Em comparação com
sua primeira performance, agora a moça aparece com a voz levemente
embargada, os olhos mais baixos (prestes a lacrimejar), como se dividida
entre duas imagens: aquela primeira, que lhe foi oferecida para realizar
vicariamente seu desejo de ser cantora, e esta outra, mais incerta, na qual
não se encaixa de todo, na qual ainda procura se situar. Descolando-se
do seu próprio imaginário, os seus olhos procuram o interlocutor, que
se afastou um pouco para nos mostrá-la inteira, endereçando-nos sua
alteridade irremovível. Aqui a fabulação criadora – que nos filmes de
Perrault e Rouch remetem a uma lenda ou a um animal mítico – só pode
se desenvolver no ambiente da vida cotidiana, com seus pequenos enfren-
tamentos, sua cota diária de invenção, às vezes mínima, mas capaz de fazer
frente à dureza do trabalho e a reificação que ele produz.
Enquanto a moça canta, acompanhando a música tocada no rádio,
um corte introduz outro cenário (mas mantendo as vozes da moça e do
cantor em off): os trabalhadores do lixão, alguns com o rosto encober-
to, se vêem nas imagens exibidas no monitor de tv colocado no alto da
197

carroceria de uma Kombi. Agora nós os vemos um a um, e eles também


vêem a si mesmos um a um, singularizados, únicos, e em seus rostos
resplende a simultaneidade dos seus múltiplos modos de aparecer. O
filme alcançou, afinal, a individuação dos sujeitos filmados, mas isso não
vem pacificar o espectador. Se os filmes de Coutinho são exemplares é
porque neles as formas de vida surgem diante das condições mais adver-
sas, quando os sujeitos não dispõem mais de nenhuma reserva utópica
(nem política nem religiosa), mas apenas a “pequena área da vida” (para
retomar o verso de Drummond), e é nela mesma, com suas coerções
e seu espaço diminuto (numa barraca de lona ou plástico, numa casa
de paredes de barro e chão batido), que os sujeitos criam um espaço
diferente, que coexiste com aquele de uma experiência sem ilusões”.22
Aquele espaço fotografado por Garcez (o conjunto habitacional como
abrigo de um modo de vida popular) e o instante que nele aguardava o
futuro, se distanciaram de nós, irreparavelmente. Sabemos bem o que
barrou esse futuro e o sonho modesto que animava aquele presente
que escoou quase sem vestígios: o real, em sua face mais bruta. Desde
então, são outros os espaços que abrigam os corpos e a fala populares,
tal como exibem diversos documentários; espaços como este que surge
no plano-seqüência final de Boca de lixo. Perto dos urubus e de um cavalo
que procura algo para comer, um garoto seleciona e recolhe materiais do
lixão. Na sua camiseta há uma inscrição: “Casa & Vídeo”. A ironia vem
do próprio real filmado: aqueles que vivem sob o signo da precariedade,
exilados do mundo do consumo, catam o que dele restou, e com isso,
paradoxalmente, afirmam sua própria imagem.23

22 DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 62


23 Não é inútil lembrar aqui a etimologia do termo precário, conforme indica o Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa: “lat. precarìus,a,um ‘obtido por meio de prece; concedido por
mercê revogável; tomado como empréstimo; alheio, estranho; passageiro’”.
198
199

A superfície do cotidiano 1

Uma aproximação a Acidente


e Uma encruzilhada aprazível
Cláudia Mesquita

Este ensaio parte de uma suspeita: a de que alguns traços antes


inusuais têm se tornado mais e mais frequentes (ou, talvez, mais marcantes
para mim) na produção de filmes e vídeos documentais brasileiros. São
características que envolvem a escolha e a abordagem dos objetos, e a
composição de imagens e sons na montagem. Como resultado vejo, de
um lado, a resistência à abordagem verbal de temas e assuntos prévios, e
uma espécie de investimento na presença bruta e na superfície imediata
do cotidiano; de outro, certa ênfase na temporalidade da experiência de
pessoas e localidades, mesmo quando tratadas de modo fragmentário pela
enunciação. Equacionados de modo singular por cada filme, tais traços –
sintetizados acima – parecem-me dignos de atenção. Proponho acercar-me
deles através da análise de dois documentários brasileiros recentes. Refiro-
me à versão longa de Acidente (Cao Guimarães e Pablo Lobato, 2006)
e ao média Uma encruzilhada aprazível (Ruy Vasconcelos, 2007), lançado
no contexto do programa DOCTV, no Ceará, em sua terceira edição.

Vida e nada mais


Começo emprestando expressão de Ismail Xavier para dizer que
os dois documentários têm na “prosa ordinária do mundo” (“a vida, a

1 Versão reduzida da comunicação apresentada ao II Simpósio Comunicação e Experiência


Estética (UFMG, outubro de 2007). Em sua versão integral, este ensaio corresponderá a um
capítulo do livro produzido a partir das comunicações do Simpósio, a ser publicado pela editora
Autêntica. Na adaptação do texto, foram de grande valia a leitura, os comentários críticos e
as sugestões de André Brasil, César Guimarães (um dos organizadores do Simpósio) e Cezar
Migliorin. Sou grata ainda a Consuelo Lins e Leandro Saraiva, com quem tive a oportunidade
de compartilhar reflexões sobre o documental brasileiro recente.
200

matéria, as cores, os sons, como presença pura”) seu principal motivo.2


Apesar de significativas diferenças (que trataremos à frente), ambos ele-
gem localidades como demarcação inicial para uma investigação visual e
sonora de ambientes físicos e do cotidiano. Desinvestidos da pretensão
prévia de explicação totalizante, informação convencional ou elaboração
verbal de significações sobre essas localidades (ou sobre a experiência
das pessoas que nelas habitam), estes filmes investem na superfície do
mundo que se dá à vista e aos ouvidos, recortando informações visuais
e sonoras em séries cujos fragmentos – planos muitas vezes estáticos –
não montam didaticamente, para o espectador, uma totalidade orgânica,
uma imagem de conjunto. O que parece importar é sobretudo propor
atenção a ambientes banais, incidentes corriqueiros e aparências imediatas
que às vezes adquirem, pelo olhar da câmera, inesperado valor estético,
lúdico ou afetivo.3
Numa aproximação inicial, eu destacaria, portanto, uma sorte de in-
vestimento no insignificante, ordinário e cotidiano. Ao invés de um senso
de atualidade e urgência em relação a temáticas e problemas prementes
(mais próprio à tradição do cinema documentário), estes filmes propõem
dispor de uma nova forma “os objetos e as imagens que formam nosso
mundo comum já dado”, para emprestar expressão de Jacques Rancière
– que a utiliza para caracterizar uma das duas atitudes artísticas que, em
sua concepção, marcariam a contemporaneidade; atitude caracterizada
pela “modéstia”.4 Menos do que a narrativa de uma história real marcante;
2 Ele a utiliza para caracterizar o “regime estético da arte” proposto por Jacques Rancière, em
oposição ao “regime mimético”. Segundo Xavier, o regime estético diria respeito a uma “operação
típica à arte moderna (....), pela qual se deposita o valor na forma que, descartando o mythos e a
arte figurativa, é capaz de fazer emergir o esplendor puro do ser, a potência expressiva inscrita
nas coisas mesmas, no insignificante”. A meta do artista, neste regime, seria “uma absorção
‘passiva’ da poesia já inscrita no insignificante”. Também seriam próprios ao “regime estético”,
conforme Rancière, a “assunção do qualquer-um” e “passar dos grandes acontecimentos e per-
sonagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época (...) nos detalhes ínfimos
da vida ordinária, (...) reconstituir mundos a partir de seus vestígios”.
3 Consuelo Lins e eu abordamos, de modo introdutório, alguns destes traços no artigo “Aspectos
do documentário brasileiro contemporâneo (1999-2007)” e no livro Filmar o real – sobre o documen-
tário brasileiro contemporâneo. Retomo e desenvolvo aqui algumas das considerações lá introduzidas.
4 A outra atitude, adotada notadamente por filósofos e historiadores da arte, estaria marcada
201

do que a atenção à experiência de um ou alguns poucos indivíduos, ou


do que a abordagem de um problema ou questão temática de relevo,
estes filmes parecem interessados em captar segmentos do curso da vida
sem conflito nem tensão – dotando-os de um interesse estético que só
secundariamente inclui tema, drama ou narrativa.
Em ambos, busca-se a imagem distintiva e valorosa possibilitada pela
observação paciente e pela mediação do dispositivo audiovisual, salvando
do acaso e do fluxo ininterrupto do tempo pequenos acontecimentos es-
téticos. Mais do que o assunto interessam os objetos, e mais do que eles,
poderíamos dizer, interessa o olhar que mira, ou a maneira de mirá-los.
Longe, portanto, das imagens quaisquer produzidas, por exemplo,
por uma câmera esquecida ligada, ou por uma câmera de vigilância, as
imagens desses filmes investem o banal de um deliberado potencial
estético. Para tanto, podem se valer (como veremos bem em Acidente)
de parâmetros de abordagem auto-restritivos que lhes autorizam a se
aproximar do mundo despidos de qualquer pretensão de acesso a verda-
des e sentidos – ao contrário, numa calculada “cegueira” para tudo que
não é imediato, superfície, dado visível e audível, enquadrado segundo
interesses plásticos, pictóricos e de composição. Se traços significativos e
sentidos emergirem, eles serão fruto da observação de incidentes banais,
fragmentários, e não de uma aposta anterior (a conformar a escolha de
temas, assuntos, personagens), atualizada na montagem. No caso de En-
cruzilhada, a escolha das locações abordadas se relaciona com temáticas
precedentes – embora sua abordagem opte por tomadas mais empíricas
e por recusar a fala, o que permite ao filme abrir-se para o aleatório, o
contingente, e preservar certa opacidade e enigma em relação aos temas
que nortearam seu projeto.5

por uma defesa da radicalidade da arte concebida como “potência singular de presença, de
aparição e de inscrição”, que rompe com a experiência ordinária. (Ver Rancière, Malaise dans
l’esthétique). Apoio-me aqui na leitura e sistematização realizadas por César Guimarães no dossiê
do II Simpósio Comunicação e Experiência Estética.
5 Refiro-me ao projeto “Uma encruzilhada aprazível”, bastante preciso em sua proposta de
objetos e abordagem, apresentado por Vasconcelos ao concurso público DOCTV III, no
202

Circunscritos, paramétricos, contemplativos...


O investimento numa espécie de “realismo de presença”6 e a recusa
à totalização parecem marcar parte da produção recente de documentários
no Brasil – embora Acidente e Uma encruzilhada aprazível, contemplativos e
avessos mesmo à elaboração verbal de asserções e significações, talvez se
localizem num extremo, radicalizando essa aposta. Mas certamente eles
partilham com outros filmes uma tendência, há muito disseminada, à
particularização do enfoque: ao invés de estruturarem seus discursos na
forma de diagnósticos, mobilizando dados, personagens e informações
heterogêneos, os documentários recentes tendem a buscar seus temas
no recorte mínimo, abordando experiências e expressões localizadas ou
individuais, roçando singularidades.7 As experiências individuais são,
de um modo geral, tratadas como irredutíveis – entre a singularidade
extrema, excepcional (tal como vemos em Estamira, de Marcos Prado)
e o potencial “exemplar” do personagem (cuja experiência, ainda que
incomum, parece esboçar os limites possíveis da consciência de um
grupo em uma época, tal como vemos em O tempo e o lugar, de Eduardo
Escorel), a abordagem tende a se basear no registro imediato, no diálogo
e no trato respeitoso com as experiências dos indivíduos; e não no olho
que vê mais longe, relacionando, na montagem, estas experiências à

Ceará, em 2006. Sou grata à equipe do DOCTV nacional pelo acesso à cópia do filme, e a Ruy
Vasconcelos por disponibilizar gentilmente o projeto escrito.
6 Refiro-me à noção exposta no capítulo IV (“O realismo revelatório e a crítica à montagem”)
de O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier. Segundo esta concep-
ção, a experiência imediata e a realidade palpável do cotidiano devem ser “núcleo e limite da
verdade humana a ser revelada pelo testemunho do cinema”. Para Kracauer, por exemplo, o
filme “realista” se caracterizaria pela recusa de um princípio organizador que imprimisse “um
sentido definido ao desenvolvimento dos fatos” na montagem. Impossível representar o mundo
como totalidade organizada porque ele é fragmentado, assim como a consciência que temos
dele – melhor investir na “experiência do momento singular e do ‘pequeno fato’”. A “ginástica”
conceitual que efetuo nesta sugestão de analogia é de minha inteira responsabilidade, já que
me valho de conceitos engendrados em outros contextos e propostos, de modo geral, para a
produção ficcional.
7 Tentei uma caracterização geral e panorâmica do “documentário da retomada” no texo “Ou-
tros retratos: ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil”. Consuelo
Lins e eu retomamos a discussão no artigo citado, sobre aspectos do documentário brasileiro
contemporâneo, e no livro Filmar o real.
203

conjuntura ou à estrutura social, com suas potencialidades e problemas


(como era mais frequente no documentário brasileiro dos anos 1960 e
1970, certamente mais próximo da idéia de “realismo crítico”).8
Neste sentido, os filmes que proponho analisar são representativos.
Evitam o discurso totalizante e não se interessam diretamente pela proble-
mática social. Não investem, o que os diferencia da média, na investigação
de experiências individuais e na composição de personagens, embora em
alguns segmentos eles estejam presentes. “Um único mistério pessoas e
objetos”, poderíamos dizer sobre eles, tomando de empréstimo expressão
do cineasta francês Robert Bresson. A presença humana interessa, mas
imersa em cenários cotidianos onde os objetos desempenham papel de
semelhante importância. Tudo que se dá à vista e aos ouvidos, que é apa-
rência imediata e superfície do mundo visível e audível, interessa: pessoas,
objetos, paisagens, sons, fragmentos de falas, ruídos.9
Esta é uma das singularidades desses documentais. Dada a pro-
eminência do “verbal” e do “verbalizável” no documentário brasileiro
recente, estes filmes aqui destacados não deixam de trazer em seu bojo
uma espécie de reação. Penso, por exemplo, na presença marcante – já
notada muitas vezes – da entrevista e do depoimento no documentário
brasileiro recente. No capítulo “A entrevista”, presente na segunda edição
de Cineastas e imagens do povo (2003), Jean-Claude Bernardet constatava
o crescimento da produção independente de documentários no Brasil

8 Concepção oposta àquela de “realismo de presença” (ver cap. III do livro O discurso cinematográfico:
a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier, o ensaio “Do naturalismo ao realismo crítico”). A
pretensão dos filmes realistas, segundo esta visão, seria identificar as forças sociais e históricas
que regem os acontecimentos, os eventos, as experiências; não apenas descrever, mas narrar, pôr
em evidência as determinantes sócio-históricas da experiência imediata. Segundo esta concepção,
“a imagem e o som não se combinam com o objetivo de mostrar algo, mas com o objetivo de
significar algo; o que implica na apresentação do fato, não como um ato de testemunho (...) mas
em nome de uma compreensão de seu significado histórico”.
9 Neste aspecto, poderiam ser associados à definição de “documentário poético” de Bill Nichols.
Neste “tipo” de documentário, segundo o autor, “os atores sociais raramente assumem a forma
vigorosa dos personagens com complexidade psicológica e uma visão definida do mundo. As
pessoas funcionam, mais caracteristicamente, em igualdade de condições com outros objetos,
como a matéria-prima que os cineastas selecionam e organizam em associações e padrões
escolhidos por eles”.
204

desde fins dos anos 1990, mas alertava que tal boom não correspondia
a um “enriquecimento da dramaturgia e das estratégias narrativas”; ao
contrário, evidenciava a repetição de um mesmo procedimento, banali-
zado pelo jornalismo televisivo: “Não se pensa mais em documentário
sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado
é como ligar o piloto automático”.
Um pouco mais tarde, relacionando-se com os escritos de Ber-
nardet, Stella Senra publicava na revista Sinopse o texto “Interrogando
o documentário brasileiro” (2004). Nele, questionava o rebaixamento
da “contundência política” e a “complacência estética” do documen-
tário contemporâneo no Brasil (expressões de Bernardet, que a autora
endossava), usando como contraponto (e exemplo desejável de “novas
maneiras de negociar com o real”) as obras que integraram duas exposi-
ções de artes plásticas. Stella relacionava tal “complacência” à utilização
de uma “metodologia surrada” e de procedimentos recorrentes (como a
prática das entrevistas), sem muita reflexão, por parte dos realizadores,
em relação a qual a melhor “relação” (sempre construída) a se estabe-
lecer com seus assuntos, objetos e personagens reais. E propunha uma
abertura do campo cinematográfico a outras manifestações artísticas
– movimento análogo ao das obras analisadas por ela, que se valiam de
elementos mais próprios a um “terreno habitualmente dominado pelo
documentário”. Como exemplo, portanto, focalizava o trabalho de ar-
tistas que criaram métodos rigorosos de relacionamento com situações
reais complexas – “verdadeiros protocolos de aproximação”, segundo
a ensaísta – capazes de evidenciar que o “acesso” a tais situações não
é “direto nem espontâneo”. Em resumo, Stella Senra elogiava nestas
obras a produção prévia de parâmetros que pautavam o relacionamento
com as situações reais focalizadas – ou, para usar o termo em voga, de
dispositivos adequados, produtivos.10

10 Stella Senra analisa em seu texto trabalhos reunidos em duas exposições de 2003: “A res-
peito de situações reais” (Paço das Artes, São Paulo) e “Movimentos improváveis – o efeito
205

Parece remontar a fins dos anos 1990, portanto, a utilização e a


discussão da noção de dispositivo, aplicada ao cinema documentário brasi-
leiro – tanto na crítica quanto na realização.11 Refiro-me a dispositivo como
lugar da criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor
de situações a serem filmadas – o que nega a ideia de que um filme pode
apreender a essência de uma temática ou representar em sua totalidade
uma realidade preexistente. Teríamos, nos filmes “de dispositivo”, como
escreveu Consuelo Lins, a criação de uma “‘maquinação’, de uma lógica,
de um pensamento, que institui condições, regras, limites para que o filme
aconteça; e de uma ‘maquinaria’ que produz concretamente a obra”.12
Os filmes recentes que vou analisar trazem, de um lado, este
gesto de redução do enfoque (muitas vezes através de demarcações
prévias ou parâmetros auto-restritivos). De outro, e aí aparece seu traço
singular, apresentam o desejo de tematizar o cotidiano ou o lugar sem
palavras, sem falas, numa recusa do “verbalizável” como principal forma
de relacionamento com locais, temáticas, questões e personagens. O
investimento é na superfície do mundo que se dá à vista. De um lado,
por assim dizer, paramétricos; de outro, contemplativos, interessados em inci-
dentes banais e ordinários, imprevistos, que oferecem – para observador
paciente – o curso ordinário do tempo.

cinema na arte contemporânea” (Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro). Sua escolha
é estratégica e envolve obras de cineastas-artistas como Pedro Costa, Chantal Akerman e Efrat
Schvily, responsáveis, segundo sua análise, pela criação de dispositivos muito consistentes.
Evidentemente, Stella não defende o “dispositivo pelo dispositivo”. A simples adoção de um
dispositivo não garante, digamos assim, a produção de um protocolo consistente e o “sucesso”
de um filme (em termos de representação e potencial de revelação da experiência real). Tudo
depende da adequação à temática eleita e do trabalho concreto de filmagem, da relação travada
entre realizadores e sujeitos filmados, que a maquinação anterior não dispensa.
11 Neste sentido, a obra de Eduardo Coutinho é exemplar. Como se sabe, a partir de Santo
forte (1999) Coutinho trabalhou em uma série de filmes com rígidas demarcações espaciais e
procedimentos recorrentes, sobretudo a prática da entrevista (pondo ênfase sobre a expressão
verbal dos sujeitos filmados).
12 “O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo” No texto, Lins aborda o
conceito e a presença do dispositivo no documentário brasileiro, analisando alguns filmes, dentre
os quais Acidente. Ela retoma a análise do filme no texto “Tempo e dispositivo no documentário
de Cao Guimarães”.
206

Acidente
Acidente (2006), de Cao Guimarães e Pablo Lobato, resultou da
proposição de um dispositivo inusual. O filme não parte de um tema,
assunto ou situação preexistentes, mas da criação de um poema composto
com nomes de 20 cidades mineiras – nomes selecionados na internet, sem
qualquer conhecimento prévio, segundo revelam os cineastas, a respeito
das cidades (o que mostra, de saída, uma recusa aos preconceitos, imagens
prévias, assuntos típicos, e um investimento na “cegueira”, na ignorância,
no desconhecimento). As estrofes do poema forneceram o mapa inicial
para a viagem de realização. Na ausência de temática anterior ou questão
norteadora, o dispositivo coloca uma espécie de aleatoriedade desejada
(ou acidente programado, que reduz o excesso de intencionalidade) na
escolha e aproximação das cidades visitadas.
No filme, cada cidade corresponde a uma sequência, a uma peça
independente (separadas por tela preta e letreiros, como capítulos, cada
um nomeado pelo nome da cidade em questão e pelo desenho de uma
forma equivalente a seu mapa); as sequências estão organizadas em séries,
formando três blocos, cada um deles correspondendo a uma estrofe do
poema – estrofe esta que só se revela depois de apresentadas todas as
sequências/cidades que compõem um bloco.
Em cada sequência, diferentes objetos, situações e durações, dis-
tintas formas de abordagem e de composição. Em todos os casos, não
há dados, falas sobre o lugar, informações, comparações entre dinâmicas
sociais, políticas, econômicas ou populacionais. O que parece importar
é propor atenção a pequenos acontecimentos, às vezes dotando-os de
interesse estético – uma rua molhada pela chuva e iluminada por trovões
e faróis de carros; microeventos em um bar/mercearia onde se passa um
dia e quase nada acontece; uma divertida procissão e encenação infantil
da Paixão na Semana Santa... A par das diferenças, a tônica de cada
sequência em Acidente poderia ser descrita como o investimento incon-
dicional na superfície do cotidiano, com o que ele carrega de aleatório
207

e banal, e o desejo de atribuir valor ao que é insignificante, pequeno,


irrelevante e corriqueiro. Ao final de cada bloco, formada a estrofe do
poema, podemos atribuir às sequências já vistas significações sutis antes
improváveis (e finalmente possíveis por sua relação, ainda que indireta
e enviesada, com os versos do poema).
É importante notar que o dispositivo, neste caso, pouco obriga para
além da visita a cada cidade do poema – em cada lugar, os realizadores
estão livres para eleger assuntos, motivos, abordagens, movimentos. Tal-
vez por isso, em função da imensa liberdade produzida pela ausência de
temática norteadora, o filme parece buscar em cada cidade parâmetros
segundo os quais apoiar o olhar. É como se os realizadores partissem
do reconhecimento de sua exterioridade e da arbitrariedade na escolha
de qualquer temática ou objeto para se tratar num filme documental. O
dispositivo funciona então como um sorteio de cartas, e parte-se para as
cidades elencadas no poema inicial pouco sabendo sobre elas. O primeiro
(e vasto) recorte auto-delimitador (a cidade) sofre na abordagem, em cada
lugar, efeito semelhante àquele que veremos em Uma encruzilhada aprazível:
a busca por outras molduras, recortes, prisões ou micro-dispositivos (já
que a pretensão de significar experiências verbalmente ou produzir uma
imagem de conjunto sobre a cidade em questão é de saída colocada em
crise, recusada). Com maior ou menor rigor, caso a caso, a partir de que
parâmetros olhar para o mundo e filmá-lo? Penso que cada segmento poderia
ser pensado a partir desta questão. Antes de colocar-se o problema “o
que é relevante retratar nesta cidade?”, o filme recua e parece se pergun-
tar: “Como olhar para o mundo?”, “De onde enquadrá-lo?”, “Segundo
quais parâmetros?”.
O privilégio claro aos longos planos fixos, a algumas séries de
recortes fotográficos,13 reforça, para mim, essas impressões: primeiro,

13 Interessante notar, além do gosto pelos planos-sequência estáticos, o interesse por superfícies
de vidro, espelhos, mediações óticas presentes nos ambientes e que por si só refratam, criam
efeitos óticos, investem cenas banais e cotidianas de um potencial plástico inusitado, como que
metaforizando as operações do próprio filme, como se nota em alguns trechos de Encruzilhada.
208

a exterioridade em relação às situações filmadas, assumida de saída no


dispositivo e reafirmada na postura da câmera, recuada e estática; por
outro lado, a busca de enquadres, de pontos de visão. Os parâmetros
para a moldura variam caso a caso, e não são tão rigorosamente espaciais
como no caso de Uma encruzilhada aprazível. De um modo geral, parecem
produto do acaso, da sorte, do aleatório. Na cidade de Heliodora choveu; a
noite de chuva provocou a queda de energia que pauta (a falta de luz) toda
a sequência dedicada à cidade, abordada, portanto, segundo um parâmetro
fotográfico, embora envolva um personagem forte, cujo retrato se limita à
contingência de um encontro numa noite escura. Já em Entre folhas investe-
se numa moldura espaço-temporal, numa cena, rigorosamente: o filme
passa o dia num pequeno boteco/mercearia, da manhã até o cair da noite,
recortando micro-ações e detalhes a partir desta moldura que, embora
arbitrária, lhe assegura proteção contra um virtual caos de possibilidades.
Em alguns casos, os pequenos ensaios sugerem relação com o
nome da cidade em questão – como se o nome criasse ele mesmo uma
“cunha” a partir da qual os realizadores pudessem produzir imagens e
sons em cada lugar. É o caso de Espera Feliz, por exemplo, cidade que
gerou um ensaio composto de uma série de primeiros planos fixos em
que a potência da espera se revela no desenlace, através de uma pequena
ação final que transforma a estabilidade e a imobilidade das situações
ordinárias filmadas: uma janela que se fecha; um cano do qual subitamen-
te escorre água; um poste em que subitamente a luz se acende, e assim
por diante. Nesses casos, como disseram os realizadores em entrevista,
o poema funciona como “armadilha para o acaso”, o nome da cidade
pautando a busca por pequenos incidentes estéticos no cotidiano. Em
outros casos, a relação com o nome é mais enigmática ou mesmo inexis-
tente, e a busca por parâmetros se revela aleatória, produto do acaso, da
sorte: a falta de luz em Heliodora, uma rua de paralelepípedos em Palma (o
ensaio sendo composto exclusivamente de uma série de cenas filmadas
em Super 8 colorido, focalizando a rua e os passantes) etc.
209

Nesses ensaios sobre eventos banais e insignificantes, que variam


de cidade para cidade, segundo diferentes parâmetros, Acidente comporta
uma espécie de gradiente que vai do apenas plástico ao significativo:
temos desde segmentos compostos quase exclusivamente de planos
que exploram detalhes plásticos ou pictóricos urdidos pela câmera no
encontro com as localidades (como a série de planos fechados de ruas
de paralelepípedo em Abre Campo; ou as sombras projetadas na rua pe-
los veículos que passam, formando desenhos abstratos em movimento,
na introdução de Entre Folhas); até ensaios que acabam por engendrar
significações sutis sobre a experiência de ali viver (como em Entre Folhas,
cujo segmento, a meu ver, tematiza a estagnação, o tempo que, ali, numa
pequena cidade do interior de Minas, escorre lentamente, aportando
mudanças ínfimas).

Uma encruzilhada aprazível


O documentário de Ruy Vasconcelos também parte da proposição
de uma “prisão” espacial autorrestritiva: um movimentado – mas nada
extraordinário – entroncamento rodoviário no sertão norte do Ceará e
seu entorno. Diferente de Acidente, contudo, trata-se de localidade que
o realizador conhecia de antemão, e cujo projeto tencionava a abor-
dagem de algumas temáticas a ela relacionadas. Aprazível é o nome
do distrito onde se situa a encruzilhada. Lugar de passagem, não de
chegada, como aponta bem o letreiro final: “Tomar como destino um
ponto de passagem. Encruzilhada. Um pequeno destino. Mas qual
não o é?”. Nele, duas experiências, grosso modo, se sobrepõem: a
de moradores que trabalham na roça, sobretudo criando cabras; e a
daqueles cujas ocupações se relacionam hoje com uma feira itinerante
(que movimenta o pequeno núcleo urbano aos sábados), voltada sobre-
tudo ao comércio atacadista de roupas, e com um posto de gasolina,
com seu fluxo intenso de passantes, dirigindo-se ao litoral ou à região
serrana do Ceará.
210

Parte dessas informações eu reproduzo do projeto escrito. Isso


porque, de uma maneira geral, a localidade é abordada, no filme, através
de imagens do ambiente e ruídos: planos longos, muitas vezes estáticos,
que recortam as locações, decompondo-as em fragmentos, em enqua-
dres fotográficos. Se podemos falar em personagem, convencionalmente,
é apenas em relação à perspectiva de Benedito Gomes, “colecionador
de paisagem” (ele possui, como se lê no projeto, o “estranho hábito de
colecionar pedras, lascas, cacos, seixos, gravetos”). O cotidiano miúdo
do morador, velho criador de cabras, é abordado (sobretudo no terceiro
bloco do documentário) em imagens tomadas em seu pedaço de chão,
associadas a falas do senhor Benedito, trabalhadas quase sempre como
narração over, fragmentariamente.
No mais das vezes, o filme explora perspectivas de um posto de
gasolina e cenas no entorno. Cada segmento ou sequência elege um re-
corte espacial: o posto, o cemitério, a feira, a caieira, o terreno onde vive
o velho Benedito. Essa escolha reduz a apreensão do lugar aquilo que
se dá à vista, a uma superfície visível que a câmera capta com paciência,
retratando pequenos acontecimentos sem explícita intenção informativa
ou retórica. Mas, entre fragmentos do espaço físico e micro-cenas, de
viés, aparece um sertão misturado, em que convivem velhas tradições
rurais e o irresistível fluxo das mercadorias (como nas imagens em que
cabras e caminhões dividem a estrada); um sertão que não é mais grotão
isolado, mas extensão do país, precariamente urbanizado, e cada vez mais
parecido com as periferias das grandes cidades.
Nem didatismo informativo na apresentação do local, nem evidência
temática, nem ênfase sobre a experiência individual: o que a mim parece
estar em jogo nesta exploração audiovisual de localidades ordinárias é
a temporalidade; não falo em narrativa, no sentido de acompanhamento
passo a passo de eventos que se desenvolvem no tempo (com exceção,
sobretudo, do trabalho na caieira); mas numa espécie de abordagem do
tempo em si, construindo-se a percepção da permanência e da passagem.
211

Critérios como duração dos planos e repetição de enquadramentos são re-


levantes em sequências que exploram uma série de pontos de vista sobre
espaços ordinários – mais descrevendo locais do que narrando ações, mas
sobretudo repetindo, retornando, sugerindo o tempo que sobra e que
pouca variação produz neste canto de mundo (como escrevi a respeito de
Entre Folhas, segmento de Acidente). Em contraste com os segmentos mais
longos das locações abordadas, há sequências de pontuação ou passagem
compostas de planos em movimento, tomados do interior de caminhões
que atravessam a estrada. Bem mais curtos e sintéticos (às vezes compostos
de um único plano), esses segmentos sugerem o olhar de quem passa, de
quem atravessa a localidade da estrada, sem experimentar o seu tempo.
Já a temporalidade do lugar, dos que vivem e trabalham em Apra-
zível, é geralmente trabalhada em segmentos compostos a partir de um
parâmetro (uma locação), decompostos numa série de planos, às vezes
com enquadramentos recorrentes. A partir, portanto, de um primeiro
parâmetro autorrestritivo (a encruzilhada), a abordagem se pauta por uma
espécie de imersão e de busca, neste espaço restrito, de pontos de vista
a partir dos quais olhar. Estes pontos são quase sempre demarcações
espaciais, cujos limites fornecem molduras para o olhar, perspectivas,
ângulos de visão. Para exemplo, vou descrever o primeiro segmento,
que apresenta o posto de gasolina, com cerca de dois minutos e meio
de duração. Ele é composto de uma série de enquadres fotográficos
que decupam uma tarde qualquer no posto em um número limitado
de pontos de vista e motivos (mais precisamente, três). Há baixo teor
informativo, dramático ou narrativo. Pequenos acontecimentos duram
e se desenvolvem a partir de diferentes angulações, enquadres e escalas.
O que em outro documentário seria ambientação para “algo mais” (a
introdução de um personagem, por exemplo) é “em si mesmo”. Os
gestos banais e cotidianos são o foco do olhar, enquadrados em com-
posições recorrentes, repetidas de modo a denotar, segundo me parece,
estagnação ou mudança muito lenta.
212

Depois de apresentar a primeira sequência de passagem (com


uma série de takes curtos no interior de um caminhão em movimento ),
Uma encruzilhada aprazível retoma o posto de gasolina, uma das locações
mais importantes do filme (por sua presença e pela evidente simbologia
do posto, lugar de passagem por excelência). A sequência é construída
como uma série com variações em torno de três motivos recorrentes: um
conjunto de cadeiras brancas de ferro, de onde se avista o movimento
nas bombas de combustível; urubus que voam em plano geral no céu
(e que, a partir da quarta aparição, atacam uma presa morta no chão da
estrada); e uma escultura pintada de amarelo, figurando um leão de pé,
mostrando os dentes.
A série intercala os três motivos, com variações de enquadramento,
angulação, e pequenas mudanças no “conteúdo” das situações focalizadas.
Vemos o leão progressivamente em quadro mais aberto, tendo a parede de
um bar ao fundo; os urubus passam da espreita e do voo em círculos ao
voo rasante e ao ataque; o homem sentado numa das cadeiras se levanta
e, após uma inversão de eixo e alguns reenquadres, o filme continua exer-
citando, obstinadamente, seu olhar sobre o espaço do posto de gasolina,
tendo como objeto privilegiado o conjunto de cadeiras brancas.
Os eventos apresentados são rotineiros (urubus se alimentam,
um homem se levanta da cadeira, um caminhão encosta para abas-
tecer). Antes de narrar ou descrever (embora envolva também estas
operações), o documentário propõe aqui um modo de ver e sugere,
nas repetições de enquadres e nas pequenas variações sobre o mesmo
tema, o gosto pelo que é cotidiano, abordado através da adoção de
pequenos motivos, trabalhados como séries. A repetição de motivos
sugere estagnação – ou melhor, indica uma lenta temporalidade, apon-
tando as mudanças ínfimas que pontuam o curso do tempo, só notadas
por quem está disposto a se deter e olhar para espaços quaisquer, onde
“nada” acontece.

213

A superfície do cotidiano
Para concluir, retomo algumas sugestões elaboradas a partir das
análises. Tendo como evidência a exterioridade do olhar e uma recusa
(ou desistência prévia) em explicitar informações contextuais e temáticas,
ou elaborações verbais sobre a experiência dos moradores, passantes,
viventes, estes filmes se apoiam em molduras ou limites dados sobretudo
pelas locações espaciais, para a partir delas criar alguma imagem possível.
Esses limites espaciais liberam os realizadores do caos da banalidade
cotidiana e passam a pautar a produção de cada plano, cujos conteúdos
envolvem microacontecimentos e incidentes rotineiros, segundo parâ-
metros plásticos e de composição.
Contrários à objetividade e à relevância temáticas, Acidente e Uma
encruzilhada aprazível apostam no aleatório, no incidente ordinário e banal.
É posta em crise, de saída, toda pretensão de explicação totalizante sobre
a experiência local. As localidades fornecem matéria para ensaios pautados
por uma espécie de poética da insignificância, que poderia ter outras cidades ou
outros lugares como mote. Em cada lugar, a pergunta de fundo não é tanto
“o que seria mais importante filmar aqui e agora?”, mas sim “segundo que
parâmetros apoiar o meu olhar?”. É preciso se impor limites ou molduras
(que variam de lugar para lugar e muitas vezes dependem do acaso e da
sorte, em Acidente) para, a partir daí, exercitar um olhar contemplativo
que investe de potencial estético a superfície do mundo visível. A falta de
luz; uma rua em ladeira; o quadrado de um posto de gasolina; sugestões
pautadas pelo nome da cidade. Eleitos os parâmetros, os filmes se liberam
de um excesso de possibilidades para exercitar modos de olhar.
Nesta aposta ousada, o que se produz de modo mais consistente
– mesmo assim, como significação sutil – sobre a experiência dos viven-
tes refere-se, a meu ver, à temporalidade. A vivência do tempo nessas
localidades é sugerida pela duração e repetição de planos ou enquadres,
numa convergência entre a aposta estética dos dois filmes e um suposto
conteúdo de estagnação – tempo que escorre ou mudança lenta – que
214

marcaria o cotidiano destes lugarejos. Outros conteúdos relacionados a


processos sociais e políticos aparecem de modo fragmentário e indireto.
Consoante com este “não-acúmulo” (temático, narrativo), a estrutura
dos dois documentários é marcada pela fragmentação – as sequências
correspondem a trechos bastante autônomos, independentes uns dos
outros. Acidente, em particular, não realiza uma construção narrativa ou
retórica que crie uma relação de interdependência entre as partes (ape-
sar da moldura do poema). Embora apresente interesse, esse tipo de
composição não deixa de ser sintomática: tal forma fragmentária, não
totalizante, se adequa bem ao recalque do que é “relevante” (do ponto de
vista temático), atual, urgente, que se observa neste filme. Fragmentos de
cidades, fragmentos de temas, fragmentos de eventos, montados numa
estrutura fragmentária. Talvez pudéssemos falar em poética da insignificân-
cia, mas também em estética do fragmento, para caracterizar notadamente o
documentário Acidente.14
Mesmo que as escolhas de “o que filmar” envolvam uma pauta
evidente de representação (como se nota no privilégio ao posto de
gasolina, em Uma encruzilhada aprazível, ou ao bar/mercearia, na cidade
de Entre Folhas, em Acidente), a recusa temática e a quase inexistência
de personagens dificultam a evidência de temas, problemas e processos
sociais. Domina a exterioridade na observação de cenas cotidianas, que
muitas vezes limitam-se ao registro contingente. Quando há um privilégio
especial aos valores plásticos imanentes à imagem – enquadramentos,
texturas, regimes de luz, composição –, mais notável em Acidente, au-
menta o risco de abstração dos componentes sociais e históricos que

14 Fernão Ramos, em Mas afinal...(p. 38-39) fala em um regime de “ética modesta”, para carac-
terizar parte significativa da produção documental recente. Ele refletiria o “fim das ilusões das
grandes ideologias, conforme apregoa o pós-modernismo. O sujeito pós-moderno, não podendo
mais adquirir altura para emitir saber, se restringe a voos modestos, que, em geral, se esgotam
no criticismo dos enunciados de saber”. Neste regime, o sujeito que enuncia “vai diminuindo
o campo de abrangência de seu discurso sobre o mundo até restringi-lo a si mesmo”. Quando
abandona a narração em primeira pessoa, bastante frequente, a “ética modesta” se utilizaria de
“procedimentos de rarefação do discurso para sustentar a enunciação. Vozes múltiplas se sobre-
põem em uma narrativa extremamente fragmentada, centrada em impressões fugazes do mundo”.
215

atravessam o mundo filmado. A ênfase nesses traços parece travar ou


dificultar a representação da experiência social – o risco é que o privilégio
dado à composição se sobreponha àquele interessado na representação
de temáticas e situações reais. E de que o tempo dos documentários não
esteja atravessado pelo tempo cotidiano de viventes, pela experiência dos
lentos processos vividos, mas se resuma à sugestão abstrata de duração
e repetição. Cotidiano sim, mas como superfície e instantâneo. Estes
riscos não marcam os dois filmes igualmente, tampouco impedem que,
em seus melhores momentos, as escolhas estéticas das obras convirjam,
como já dito, com a sugestão potente de uma temporalidade relacionada
à experiência concreta dos moradores.15

15 Como é o caso da sequência no bar em Entre Folhas, já mencionada. Agradeço a César


Guimarães pelos comentários pertinentes e lúcidos incorporados a esta síntese final.
216
217

Cotidianos em performance:
Estamira encontra as mulheres
de Jogo de Cena
Mariana Baltar1

“Her subject was the eye, the drama of watching and


being watched”
Paul Auster, Leviathan

Estamira profere suas teorias cosmogônicas, se declara um trovão,


e enquanto fala e gesticula a narrativa do filme de Marcos Prado (2004)
reitera tal imagem, complementando o poder da personagem com uma
montagem que equipara, em um mesmo nível, a força dos seus gestos
e o som e imagens da tempestade.
Em Jogo de cena, dirigido por Eduardo Coutinho (2007), Sarita pede
para voltar e acrescentar algo a seu depoimento. Ela canta “Se essa rua
fosse minha”. Coutinho pergunta: por que quis refazer sua fala? “Achei
que esse negócio ficou muito barra pesada (...) e aí eu achei que ia ficar
uma coisa muito triste e eu não queria ficar muito triste, entendeu?”,
responde a personagem. Conseguindo o intento ou não (na verdade, ao
contrário, sua cantoria final deixa ainda mais presente a melancolia me-

1 Mariana Baltar é professora da UFF, doutora em Análise da Imagem e do Som pelo Programa
de Pós Graduação em Comunicação/UFF, com passagem pela New York University, onde
desenvolveu parte das pesquisas para a tese “Realidade lacrimosa – diálogos entre o universo
do documentário e a imaginação melodramática”, em que analisou uma parcela da produção de
documentários brasileiros contemporâneos sob o ponto de vista da constituição de seus perso-
nagens no diálogo crítico com a tradição inspirada no universo melodramático. Sua dissertação
de mestrado, também desenvolvida na Universidade Federal Fluminense, dedicou-se a analisar
documentários cujos temas se centravam no imaginário sobre o Nordeste e o nordestino. Em
2007, integrou a equipe de pesquisa de texto e imagem no Projeto Memória Globo, vinculado
à Rede Globo de Televisão, para a organização e editoração do livro Entre tramas, rendas e fuxicos,
sobre a história do figurino na teledramaturgia da emissora. Sua pesquisa mais recente envolve
o universo dos gêneros que compartilham a mesma matriz cultural do excesso, tais como o
melodrama, a pornografia e o horror.
218

lodramática), a narrativa de Coutinho corrobora o jogo da performance


de Sarita, e nesse momento, é ela quem tem o domínio da gerência de
sua própria imagem.
A princípio, um grande fosso separa essas duas personagens, por
classe social, por trajetória de vida, por filme e, pode-se afirmar, inclusive
por sanidade. Por que, então, elas se vão se encontrar aqui, neste ensaio?
O que as une para além de serem personagens, mulheres, de dois docu-
mentários que se estruturam – cada qual a seu jeito – a partir do encontro
e de um pacto de intimidade entre diretor, personagem e espectadores?
Certamente não porque o filme deu voz a seus personagens, um
poder sempre ilusório que o documentário moderno e contemporâneo
parece ainda querer sustentar. Nem apenas pela temática compartilhada
de se inserir no filme uma certa dimensão do cotidiano de personagens
ordinários, as mulheres comuns que se elencam ao extraordinário pela nar-
rativa fílmica (pois há quem diga que Estamira não tem nada de comum).
O ponto de inflexão de ambas são as performances. O gerencia-
mento das próprias imagens que coloca em cena a negociação de duas
instâncias de poder diante da câmera, de sujeitos socialmente localizados
em seus lugares de fala.
Nesse sentido, não apenas Estamira ou Sarita constituem bons
exemplos, mas os filmes das quais elas saíram para o olhar público. Esta-
mira e Jogo de cena nos fazem problematizar, em diferentes graus, a instância
da performance e sua correlação com o universo do documentário.
Um de modo mais óbvio, sendo exatamente o tema do filme,
o dispositivo que lhe dá forma. O outro, de modo mais enviesado,
querendo entender a performance da personagem e de certa maneira
nos fazendo entendê-la como tal, para assim não a aprisionar em um
imaginário marginalizante.
Argumento que refletir sobre o que se passa entre diretor e per-
sonagem (chamado a se constituir como tal pelo dispositivo fílmico) em
termos de performance seja extremamente pertinente, pois problematiza,
219

menos ingenuamente, as negociações nem sempre pacíficas entre uma


instância e outra, bem como as implicações da representação da alteridade.
Permite pensar o encontro como uma gradação de disputas de
lugares de poder e, como coloca Jean-Louis Comolli em Ver e poder:
“Toda a questão está nessa gradação – desse outro que vem à câmera
tanto quanto ela vem a ele”.
O conceito de performance, embora ocasionalmente utilizado no
campo do documentário, ainda é pouco teorizado,2 sobretudo no tocante
às suas implicações para o processo de constituição do personagem. O
vocabulário corrente na revisão teórica do campo dos últimos dez anos
já inclui, sem embaraços, termos como “atores sociais” para designar os
sujeitos que são alvo do interesse do documentário, ou como “narrativa”,
para dar conta dos procedimentos estéticos articulados no âmbito do
discurso fílmico. No entanto, com menos recorrência, utiliza-se o termo
performance, que parece ainda estar atavicamente vinculado à noção de ficção
e de atuação, portanto, aparentemente contrário ao que compõe a expec-
tativa social, historicamente construída, do domínio do documentário.
Aceita-se, com mais frequência, a noção de performatividade,
tomando esta de empréstimo da pragmática a partir da reflexão sobre
os atos de fala, encampada por J. Austin, buscando, com isso, dar conta
de uma certa estrutura de documentário que constrói o mundo a partir
de seu discurso fílmico (assumindo, no plano narrativo, que a realidade
do mundo histórico se instaura a partir do filme). Nesse sentido, são
documentários com menor compromisso explicativo, descritivo, infor-
macional ou argumentativo, sendo mais densamente um discurso que
“sublinha a complexidade de nosso conhecimento do mundo ao enfatizar
suas dimensões subjetivas e afetivas”, como escreve Bill Nichols na sua
Introdução ao documentário.

2 Algumas exceções merecem destaque, sobretudo o trabalho de Thomas Waugh (1990), Acting
to play oneself: notes on performance in documentary, a tese de Vinicius do Valle Navarro (2005), minha
própria tese (Baltar, 2007), bem como de alguns artigos do professor Fernando Salis
220

A problemática na qual quero me centrar aqui, e que me salta a


partir desse forçoso encontro entre Estamira e as mulheres de Jogo de
cena (todas as personagens, inclusive as atrizes profissionais), diz respei-
to à pertinência da noção de performance como um dado constitutivo das
relações entre diretor, filme e personagem em qualquer documentário.
O termo, sugere Erving Goffman em A Representação do eu na vida
cotidiana (1959), parte da percepção da vida social como um palco. A
performance para o sociólogo seria constitutiva das relações intersub-
jetivas, não se vinculando, como a concepção usual leva a crer, a noções
de mentira ou verdade. Para ele, pode ser considerada performance “toda
atividade de um dado participante numa dada ocasião que serve para,
de alguma maneira, influenciar o outro participante”.
O projeto de Goffman é formar um modelo analítico-metodológi-
co que possa dar conta das projeções do eu (self) no interior das relações
intersubjetivas. As projeções que se formulam entre o que “eu penso de
mim” e aquilo que “eu quero que os outros também pensem”, consti-
tuindo, assim, uma visão de si, aquilo que o autor chama de um caráter
moral. O que interessa para o autor são justamente as técnicas e táticas
empregadas pelos participantes para convencer o outro de sua projeção
moral, afirmando, diante do outro, seu direito em assumir determinado
papel social. Segundo o argumento de Goffman, o sujeito vai, portanto,
agir a partir de tal preceito, realizando sua performance para garantir e
salvaguardar seu direito.
Assim, todo um jogo de projeções se articula na interação intersub-
jetiva (ou face a face, como nomeia Goffman), um jogo que é articulado
por uma série de táticas e estratégias para controlar, o máximo possível,
a impressão uns dos outros, para, assim, reafirmar a auto-imagem.
Em outro ensaio, On Facework – an analysis of ritual elements in social
interaction, escrito em 1955, portanto quatro anos antes de A representação
do eu na vida cotidiana, Goffman especifica os significados e os proce-
dimentos rituais do trabalho de “manutenção” (gestão/gerenciamento)
221

dessa face, ou autoimagem, pelos sujeitos na interação intersubjetiva:


“Face é uma imagem do eu delineada em termos de aprovação dos atri-
butos sociais – podendo ser uma imagem que outros possam compar-
tilhar quando, por exemplo, o sujeito mostra-se de uma boa maneira.”3
O autor chama de facework todo um conjunto de mecanismos em-
preendidos pelo sujeito para salvaguardar, perante si mesmo e perante
os outros, sua autoimagem, sua face, em que, entre esses mecanismos,
a pose, ou posar, figura como um dos mais importantes. O facework in-
fluencia sobremaneira o jogo de projeções que atravessa a performance
de cada um em uma dada interação. Como se as performances fossem
pautadas por uma conformidade à face/autoimagem, bem como pela
necessidade de manter tal face – no que acarreta todo um esforço de
agir ou não de acordo com expectativas estabelecidas e projetadas em
relação ao outro. Goffman chama a atenção para o impacto emocional
que está em jogo no facework, pois que, atravessando o jogo de proje-
ções (o que eu espero do outro e o que eu projeto que o outro espere
de mim, digamos assim) está, ao cabo, um grande fluxo de sensações
e intuições.
O facework, ressalta Goffman, aplica-se tanto a interações inter-
pessoais imediatas quanto a interações mediadas por outras esferas,
tais como escritos ou gravações. Porém, é nas situações imediatas que
se vê, de maneira mais bem acabada, o trabalho em ação, pois que o
gerenciamento da face/autoimagem dá-se por um particular sistema
simbólico de informações que inclui elementos como a entonação de
voz, o gestual, as expressões, a pose, entre outros aspectos.
Acredito ser possível afirmar, desdobrando um pouco as reflexões
de Goffman, que há no tipo de interação face-a-face entre personagem
e diretor/equipe do documentário um duplo movimento peculiar ao
facework, pois nela se aplicam as mesmas variáveis analisadas pelo autor
para as interações interpessoais, com o acréscimo de que essa mesma

3 Todas as traduções de textos em língua estrangeira são traduções livres.


222

interação será trazida a público numa esfera de mediação com o especta-


dor através do dispositivo cinematográfico (e da experiência do cinema).
Esse segundo olhar público, aparentemente “despresentificado”,
também influencia no processo de performance de si do personagem (sua
auto-fabulação), ou melhor, no processo de manutenção/gerenciamento
de sua face. Uma performance que deve manter a face para uma dupla
instância: o outro imediato – personificado no diretor/equipe – e um
outro mediatizado – “personificado”, ainda que implicitamente, porém
muito poderosamente, na audiência.
Este jogo está claramente encenado no documentário de Cou-
tinho. Esta é, afinal, sua temática de fundo; para além das histórias de
mulheres que nos tocam de maneira emocionante pelo panorama de
questões ainda pujantes da condição feminina (violência, submissão,
maternidade, esperança, encontros e desencontros). O jogo proposto
pelo diretor é o jogo que permite problematizar a performance, toda
ela: a empreendida pelo sujeito comum – quando é pedido a ele para
recontar seu cotidiano diante desse duplo olhar encarnado (o diretor e
o dispositivo estão visivelmente presentes e, estrategicamente, vemos
as mulheres subindo as escadas e adentrando o palco) – assim como a
empreendida pelas atrizes profissionais, conhecidas do espectador. Ao
público, o jogo proposto é o da incerteza, uma incerteza que nos faz,
então, questionar sobre diversos aspectos da performance, da auto-
fabulação e dos limites da representação da emoção.4
Do jogo de projeções e de estratégias de gestão (management) das
impressões (o facework, tal como analisado pelo autor no ensaio de 1955)
decorre um processo, socialmente compartilhado, de consolidação dos
papéis sociais, o que, por sua vez, acaba por moldar a maneira com que

4 Em diversos artigos, bem como na tese “Realidade lacrimosa – diálogos entre o universo
do documentário e a imaginação melodramática” (Baltar, 2007), desenvolvi uma reflexão que
correlacionava o documentário, inclusive e sobretudo o de Eduardo Coutinho, com um certo
tipo de apropriação reflexiva e crítica da imaginação melodramática. Não retomarei esse diálogo
mais extensamente aqui, mas reitero a pertinência de tal argumentação ao se tratar de Jogo de cena.
223

determinado papel deve ser representado; ou performado, como diz


Goffman. Quando pede para voltar ao palco e acrescentar algo em sua
entrevista, em Jogo de cena, Sarita certamente está exercitando seu facework.
É preciso reiterar que não se trata de pensar a performance como
verdadeira ou falsa. Goffman argumenta a partir das noções de valor de
sinceridade ou de cinismo para cada performance (e para determinado
performer). Um valor que varia de acordo com a crença do sujeito em sua
própria atuação e no jogo de forças colocado em ação no gerenciamento
das autoimagens. Performance condensa, a um só tempo, a dimensão da
atuação (constitutiva do jogo de projeções nas relações “face a face”) e
uma afirmação da “realidade” dessa atuação.
Acaba-se, assim, dissociando a performance de uma oposição
entre verdadeiro e falso, colocando em evidência um jogo de avaliações
e correlações de projeções de uma autoimagem (face), a um só tempo,
de caráter moral e social.
A dimensão da performance no campo da não-ficção desloca
a abordagem do tipo de relação entre os atores sociais e a narrativa
documentária de uma tradicional oposição entre verdade e mentira,
entre realidade e atuação.5 Ela faz incorporar, no encontro instaurado
pela experiência documental, a noção de que há uma ordem de atuação
presente em qualquer interação social.

5 Em outro trabalho, Goffman (1974) analisa especificamente a dimensão da performance que


se pretende assumida como tal – ou seja, a atuação propriamente dita. Para o autor, a diferença
se dá por uma ordem ritual que emprega uma moldura (frame) distinta e que acaba por conformar
a resposta à interação. A moldura funcionaria como uma “dica” para que os participantes da
interação diferenciem entre a performance como atuação teatral (Goffman a nomeia theatrical
frame) e a performance como dado das relações intersubjetivas. Com tal reflexão como base, James
Naremore (1988) empreende uma abordagem específica das implicações estéticas e ideológicas
da atuação/performance no cinema ficcional. É interessante notar como, no início do livro,
Naremore vai apresentar seus argumentos estabelecendo níveis de diferenciação de performances
no filme de Charles Chaplin, Auto Kid’s Race (1914), justamente entre a performance no dia-a-dia,
que ele chama de “acidental”, e a performance do ator. As considerações de Naremore sugerem
que o cômico, nesse filme, é estabelecido justamente através do reconhecimento, por parte do
espectador, da diferença dessas duas performances; portanto de um protocolo de leitura distinto:
“This suggests that people in a film can be regarded in at least three different senses: as actors
playing theatrical personages, as public figures playing theatrical versions of themselves, and as
documentary evidence.” (p. 15) Se pensarmos o termo performance num sentido amplo, afirma
o autor, ele cobrirá os três aspectos.
224

Acredito que, ao cabo, o estatuto e o dilema do personagem do


documentário – sujeito socialmente localizado, em interação com outro
sujeito socialmente localizado (atravessados pelas relações de poder que
isto implica) – está no constitutivo processo de formulação e negociação
de uma narrativa de si que fica expressa por intermédio de uma perfor-
mance que lhe é solicitada pela experiência do encontro proporcionada
pelo documentário; esteja tal encontro explícito ou não no interior do
discurso fílmico.
Jogo de cena trata de explicitar essa dimensão recolocando para nós,
espectadores, as agruras dessa questão. Ele nos faz duvidar da noção de
performance como atuação/falsidade e acreditar, diria mesmo abraçar, a
noção de performance tal como teorizada aqui a partir de Goffman. E
assim o faz quando estrutura seu dispositivo apresentando, ao longo da
narrativa, entrevistas de mulheres com o diretor no palco de um teatro
vazio. Entre as entrevistadas estão atrizes, algumas delas famosas por sua
exposição na mídia, que representam para a câmera, a pedido do diretor,
os depoimentos de mulheres comuns colhidos previamente. Costurando
lado a lado todas as falas, o filme coloca em cena seu instigante jogo
em que as performances de atrizes e mulheres “reais” problematizam a
vida feminina e os regimes de legitimação das falas e fabulações de si.
Num dado momento do filme, Fernanda Torres repete incessante-
mente “que loucura, Coutinho, que loucura!”, surpresa por não conseguir
completar sua atuação. O que a paralisa: a emoção do depoimento? Seu
lastro no real? Ou a “falha” na gestão da autoimagem da atriz que ali,
naquele momento, não completou sua performance?
Todo esse debate que toca em questões de fabulação do discurso
e estatuto de realidade, embora explicitado em Jogo de cena, não é novo
na obra de Coutinho. Em todos os seus filmes, a problemática da cons-
tituição da performance do personagem, do processo de autofabulação
frente à experiência de encontro proposta pelo documentário, interpela
a narrativa. Muitos pesquisadores e teóricos se dedicaram a analisar tais
225

questões definindo a obra do diretor a partir de uma filosofia de encon-


tro.6 O conceito de performance, contudo, não consta nessas reflexões.
Embora não oblitere as considerações desses autores (cf. Lins,
2004, e Xavier, 2003b), argumento que a dimensão da performance é
não apenas presente, mas central na obra de Coutinho. É ela que pode
dar conta dos processos pelos quais os personagens se apresentam ao
diretor, em um intenso diálogo com a imaginação melodramática, por
exemplo, mas, também, dá conta do processo pelo qual o próprio diretor
se fabula como um personagem de seus filmes, constituindo-se como o
grande elemento de continuidade da narrativa, baseando em tal fato a
autoridade (testemunhal) sobre a qual se estruturam seus filmes.
Mais ainda, é a ideia de performance, colocada como ferramenta
teórica, que torna produtivo pensar nos mecanismos de fabulação do
personagem, e mais especialmente no contexto contemporâneo atraves-
sado pela cultura midiática do espetáculo.
Em Jogo de cena, a atriz Marília Pêra (atuando a partir do depoimento
de Sarita) tece comentários sobre o verdadeiro estatuto da representação
da emoção, distinguindo entre a lágrima vertida livremente, da ordem
da falsidade, e a lágrima contida, da ordem da sinceridade. Esta fala, na
verdade, condensa um dos eixos de questionamento do filme como um
todo – problematizando assim o excesso espetacular e melodramático
das representações da emoção na cultura midiática. A atuação da atriz
é contida em relação à performance de Sarita. É no mínimo irônico
que o filme termine com um cruzamento das duas colocando em cena
as estratégias do repertório melodramático: a música que emociona e
simboliza, exacerbada e obviamente, a um só tempo pai e a filha. A
imagem é de Sarita; o som ecoa as vozes das duas personagens, a atriz
célebre e a mulher “comum”. Na sequência final, apresentam-se as
performances de ambas.

6 A dimensão da fala a que me refiro está desenvolvida em Lins (2004), e a da filosofia do


encontro, em Xavier (2003).
226

As performances das mulheres de Jogo de cena dão conta de um


cotidiano, ou melhor, da narração de um cotidiano que constrói, ali,
naquele palco (célebre lugar justamente do não-cotidiano, do extraor-
dinário) um mosaico da condição feminina.
Como, então, seria possível para Estamira entrar no palco de Jogo
de cena? Sua performance, exacerbada, excessiva na auto-fabulação (e
que é reiterada pelo excesso das estratégias narrativas do próprio filme),
parece extraordinária em si. Associar o que se passa com a protagonista
do documentário de Marcos Prado como performance do cotidiano, da
mulher ordinária, pareceria, a primeira vista, uma heresia com a persona-
gem. Contudo, o projeto do filme é justamente esse. Retirar Estamira do
estigma da loucura, trazendo suas performances para um certo sentido
de cotidiano, explicando-as a partir do trauma social. Sendo assim, o que
poderia parecer explosão de loucura acaba sendo quase uma expressão
de poder de superação.
Somos levados a encarar Estamira – sua intimidade, seu dia-a-dia
– a partir de suas performances, claramente direcionadas à câmera e a
quem está com ela, embora o diretor não esteja explicitamente visível
(como no caso dos filmes de Coutinho).
É possível perceber no filme todo um movimento de aproximação
com a personagem que acaba por compor um discurso de entendimento
e admiração a despeito dos elementos grotescos, de loucura e de per-
turbação que transbordam das falas de Estamira.
Já argumentei em outras análises que um diálogo com a imagi-
nação melodramática – sobretudo colocando estrategicamente em uso
as três categorias estéticas centrais a este universo – convida o espec-
tador a estabelecer uma espécie de aproximação com a personagem
marginalizada, subvertendo, em decorrência de um efeito afetivo de
intimidade, o estigma. Quero reiterar aqui, contudo, que este diálogo
incide sobre a performance de Estamira, convidando-nos a ultrapassar
o tradicional efeito de piedade, em favor de uma associação entre poder
227

e eloquência, consolidando o engajamento com a personagem que a autoriza


como narradora.
Se a piedade não deve ser a força motriz de Estamira, é necessário,
contudo, articular um sentimento de compaixão mobilizado, especialmente
na segunda metade do documentário, por pequenas “circularidades” inter-
nas à narrativa, que consolidam uma relação causal entre os diversos trau-
mas sociais sofridos pela personagem e as explosões de sua performance,
como que oferecendo uma explicação à sua declarada perturbação mental.
Nesse sentido, é importante notar como o filme investe em mostrar
Estamira como “poder”, igualando seus rompantes, simbolicamente, às
forças da natureza, para, depois, explicar a raiz de suas falas com base
na rememoração dos diversos traumas e violências sofridos pela perso-
nagem, mostrando-a, muito particularmente, no papel de mãe e de filha.
A performance de Estamira transparece sua perturbação: ela grita,
fala palavrões, arrota, aparece nua, tira as calças numa briga com seu neto
e professa seu ódio por Deus. O dispositivo do filme retrabalha essas
performances de maneira a legitimá-la como narradora e personagem
passível de engajamento afetivo. Assim, o documentário corrobora a
missão que Estamira se imputa – a de revelar a verdade –, sem a confinar
no papel estigmatizado da loucura.
Dessa maneira, são colocadas em cena nesse documentário as
tensões que dizem respeito à lógica de privatização da vida pública, às
encenações da memória e da intimidade, mas, sobretudo, que dizem
respeito à autoridade do sujeito em encarnar o público e o social, em
si. Questões concentradas na performance de Estamira para a câmera
e no pacto que se estabelece entre elas.
O dilema do filme de Marcos Prado é, portanto, incutir um sen-
timento de aproximação a despeito do incômodo, e a arma para tanto
será um diálogo muito palpável com a imaginação melodramática no
nível das performances da personagem. Fazer com que nos engajemos
com ela. Os mecanismos de circularidade interna na narrativa (dados
228

pelas estratégias de obviedade e antecipação) e os usos dos constantes


símbolos de aproximação física para com a personagem, além dos que
circunscrevem uma esfera de definição para ela associada à força de sua
performance, são constantemente articulados para gestar tal efeito de
proximidade e, correlatamente, engajamento.
É notável que Marcos Prado não apareça nem uma única vez ao
longo do filme, mas sua presença como instância mediadora, como um
olhar para o qual a performance de Estamira é dirigida, se faz visível
constantemente através de uma coreografia de troca de olhares entre o
plano ponto-de-vista do diretor e a personagem. O que é reforçado pelos
vários momentos em que Estamira dirige-se diretamente à câmera, ao
diretor e correlatamente aos espectadores. Além disso, Estamira toma
o poder da condução da narrativa, sendo a “protagonista” e narradora
deste filme.
A primeira sequência, imagem em preto e branco, extremamente
granulada, mostra-nos planos de detalhes de garrafas ao chão, um ca-
chorro que descansa, e, então, lentamente, imagens de partes do corpo
de Estamira, o tronco, os olhos, as mãos. Uma música que trabalha
mais intensamente em cima dos instrumentos de cordas e de sons de
palavras incompreensíveis (um tema musical que vai percorrer o filme
e que se vincula diretamente aos tons da performance de Estamira)
pontua constantemente os cinco minutos da sequência desta abertura.
Nela, vemos Estamira a esperar o ônibus, os planos se abrem e vamos
acompanhando o trajeto da personagem até o Gramacho, que fica a 1
km, como indica uma placa enquadrada pela câmera.
Uma constante alternância entre o plano geral e o plano médio
marca a sequência em que a personagem vai se aproximando do aterro
para mais um dia de trabalho. Aos poucos, vemos Estamira se despir e
vestir roupas de trabalho. Nesse momento, a música sobe o tom e ela,
agora vestida para trabalhar, levanta a cabeça e encara a câmera. Um
primeiro plano de seu rosto mostra um leve balançar de cabeça, gesto
229

que, finalizando a sequência, tem um sentido, ao mesmo tempo, de


apresentação, aquiescência e de desafio.
Faz-se, então, um fade para a imagem do céu muito azul e a voz
off de Estamira, que diz: “A minha missão, além de eu ser a Estamira,
é revelar, é, a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar
a mentira e tacar na cara ou então ensinar a mostrar o que eles não
sabem.”
A sequência seguinte é um desnudamento quase literal da per-
sonagem, que em meio ao lixão vai se banhando enquanto a voz off
segue declamando sua missão, usando, em mais de uma vez a palavra
vocês: “Vocês é comum, eu não sou comum (...) vou explicar pra vocês
tudinho agora, pro mundo inteiro. Eles cegaram o cérebro, o gravador
sanguino de vocês e o meu eles não conseguiram...” Dessa maneira, a
personagem se apresenta em sua missão, em sua performance, em seu
poder de narração, não de maneira acidental, apresentando também o
próprio filme; mas expondo a consciência de que toda essa apresentação
(de si e do filme) é dirigida a um alguém externo/público circunscrito
na presença constante do “vocês”. “Vocês” somos nós, espectadores,
que a partir daí entramos no universo da personagem através do filme.
Esse é um dos primeiros momentos em que percebemos a instân-
cia da negociação entre performances transparentes no filme, a despeito
da não-presença física do diretor ou da equipe. Percebe-se a negociação
pela interação destemida de Estamira com o aparato fílmico, o qual se
dirige claramente à câmera e a uma instância por trás dela, instância que,
ao mesmo tempo, é o diretor e os espectadores.
A voz de Estamira conduz a montagem por um certo momento,
pequeno, mas importante. Sua voz off, depois de proferir sua missão de
revelar a verdade, diz: “Ó lá, os morro, a serra, as montanhas. Paisagem e
Estamira.” As imagens são exatamente a ilustração de sua fala – primeiro
um plano geral do pôr do sol avermelhado que transforma em silueta a
serra; depois, Estamira em meio à paisagem do lixão. Nesse momento,
230

assim, Estamira é o poder, é a voz da autoridade do filme, a legítima


narração em voz off que tem, seguindo os preceitos estabelecidos pelo
documentário clássico, o estatuto de voz da autoridade. Essa pequena
inserção autoriza a fala da personagem e vai reverberar ao longo do
filme, declarando, desde já, que, não obstante a aparente perturbação
dos delírios cosmogônicos, Estamira é a autoridade no filme. Ela se
autoriza, sua missão é “revelar a verdade a vocês”, disse a personagem
cenas antes, e então o discurso fílmico corrobora.
A maneira como a câmera invade a geografia do corpo e da vida
de Estamira, com quadros que quase penetram na pele de tão próximos,
reitera, a um só tempo, a sensação de proximidade e a presença do diretor
e do aparato fílmico como instâncias mediadoras do olhar público sobre
a personagem. O que se afirma com tal necessidade de contato direto,
visceral, é um pacto de intimidade que é proposto ao longo do filme e
que reforça o efeito de proximidade e engajamento. Tal pacto mostra, de
um lado, a instância da negociação, e, assim, a colaboração de Estamira,
sua aceitação em relação à presença do aparato fílmico diante de sua
performance; de outro, incute-nos uma relação com a personagem, que
afasta sensações de estranhamento.
Outra grande estratégia que revela e valoriza a performance de
Estamira é a constante economia de simbolizações, que opera uma
relação sinonímica entre o poder e a personagem. Estamira no filme é
dotada de força e de autoridade que corroboram a força explosiva de
sua fala. Assim é que, ao longo dos primeiros 45 minutos de filme, ela
é constantemente igualada à imagem do raio e sua fala é associada ao
som da tempestade, sobretudo montando, coreograficamente, o gestual
de Estamira e os ruídos do trovão e vento.
Tais imagens e, sobretudo, tais sons marcam um efeito simbolica-
mente exacerbado de presentificação da força explosiva da personalidade
de Estamira. Lugar onde reside ao mesmo tempo sua perturbação mental
e seu apelo enquanto personagem; o que, tal como as tempestades, faz
231

presente o fascínio e a apreensão, sumarizando assim o que parece ser


a própria visão do filme sobre Estamira.
É interessante notar que é justamente a partir do momento em
Estamira se iguala à tempestade que o filme passa a recontar um pouco
mais linearmente a história de sua vida, incorporando depoimentos
dos seus filhos, a rememorar os traumas pelos quais ela passou. Essas
passagens, entrecortadas pelo discurso da personagem, são organizadas
seguindo o preceito do que Bill Nichols (1991) chama de continuidade
retórica, estabelecendo, assim, discursos de explicação para as perturba-
ções da personagem.
A partir desse momento, o filme abandona um pouco o uso da rede
simbólica que vincula Estamira à tempestade em prol de um discurso
mais explicativo, sedimentando, com isso, a ideia de que aqueles rom-
pantes de força têm uma razão de ser. A despeito disso, as performances
da personagem seguem pontuando o filme, revestidas, mais ainda pela
narrativa de explicação, por uma aura de força explosiva. Tal associação
será retomada na sequência final, em que se vê Estamira a enfrentar as
ondas do mar. Estas performances de Estamira são seu cotidiano, e é
por serem assim que ela não é mero estigma, mas transita entre o lugar
da loucura e o lugar do poder.

Considerações finais para se desdobrarem no futuro


É porque se trata de uma noção de performance constitutiva
das relações intersubjetivas que se pode tratá-las como da ordem do
cotidiano, do mais absolutamente ordinário, ainda que pareça elencada
ao extraordinário pelo discurso fílmico. O encontro entre Estamira e as
mulheres de Jogo de cena nos conduz a pensar sobre isso. E, mais ainda,
a desdobrar a reflexão (apenas lançada por hora) para questionar os
trânsitos entre o comum e o espetacular.
Afinal, se o conceito de performance é pertinente para o campo
do documentário de maneira geral, ele é ainda mais fecundo para colo-
232

car em questão os problemas levantados pelo documentário contem-


porâneo. Não apenas porque este se funde na dimensão performativa,
mas porque ele parece lidar mais amplamente com as implicações de
cenário de hipertrofia da vida privada e do adensamento da sociedade
do espetáculo, que condensou a disseminação de uma cultura midiática.
Os personagens do documentário contemporâneo acabam por colocar
em cena um outro tipo de performance, que se soma à performance do
papel social: eles performam a intimidade e a imagem de si. Fabulam-se
como personagens em seus cotidianos. Assim o faz Estamira, assim o
faz cada uma das entrevistadas em Jogo de cena.
O encontro proposto pelo documentário – a “convocação” ao
sujeito se constituir como personagem de uma narrativa – compele
os atores sociais a realizarem performances de si, de sua interioridade, de
seu “eu”, recontando, para isso, histórias de sua vida privada, donde se
depreendem seus múltiplos papéis sociais.
O que me parece ser, cada vez mais, um dado do contemporâneo
é que tal performance acaba atravessada por um saber disseminado no
senso comum a partir da intensificação da cultura midiática.
Tal performance é tornada explícita e problematizada em um con-
junto cada vez maior de filmes brasileiros, o que nos possibilita antever a
constituição e as implicações de um saber midiático, o qual parece ser co-
locado em ação justamente através das autofabulações dos personagens.
Ao cabo, este parece ser o elemento constitutivo do personagem do
documentário contemporâneo. Sendo transpassados pelo saber midiático
– que se consolida a partir da uma certa pedagogia das representações
dos sujeitos nas narrativas construídas pelos códigos de representação
midiáticos – os personagens acabam se fabulando a partir desses có-
digos. Aos discursos fílmicos, cabe o lugar de enfrentar os desafios de
lidar com tal contexto, aceitando-o, e com isso reiterando sua lógica
espetacular, ou problematizando-o (mesmo que para tanto empreendam,
intertextualmente, estratégias fundantes deste mesmo saber midiático).
233

É inegável que o universo do documentário contemporâneo esteja


amplamente afetado por um cenário já densamente analisado em diversos
autores, como Richard Sennett (1988 e 1998), Zygmunt Bauman (2004
e 1999), Anthony Giddens (1993 e 1991) e Frederic Jameson (2004 e
1995), entre outros. Uma paisagem que parece reestruturar o estatuto do
personagem nas narrativas, fazendo com que a exposição de sua vida e
história privadas seja, cada vez mais, o fio condutor das histórias contadas.
As performances são sempre, e cada vez mais, pautadas por um jogo
de olhar, ser olhado e saber se portar diante disso. Tal saber (que propo-
nho, inicialmente, chamar de midiático), compartilhado e disseminado no
senso comum, seria acarretado pela cristalização do imaginário midiático.
Tal consciência do sujeito histórico em se performar como perso-
nagem para uma narrativa midiática atravessa tanto o Big Brother e outros
Reality Shows, quanto os depoimentos ao final da novela Páginas da Vida
(de autoria de Manoel Carlos, exibida no horário das 8, na TV Globo,
entre 2006 e o início de 2007), passando pela atuação no Twitter e ou-
tras redes sociais em que o estilo de cada um é constantemente gerido
narrativamente (através das suas performances de si).
“O lugar do espectador é – ele também – uma construção histórica,
relativa, dependente de forças econômicas e dos desafios ideológicos tan-
to quanto das performances tecnológicas. No momento atual, o cinema
não é mais o laboratório onde se inventa o novo espectador. Essa tarefa é
das televisões”, escreve Comolli em Ver e poder. Ao cabo, o que Comolli
está apontando é como somos atravessados por uma subjetividade que
se molda a partir da língua do espetáculo, uma língua amplamente falada
na cultura midiática. O personagem dos documentários contemporâne-
os, invariavelmente espectadores versados nessa língua, conformam sua
performance, ou a negociam, a partir deste lugar, inventado e reinven-
tado no interior da lógica espetacular. É com ela que o documentário
contemporâneo parece lidar. É a partir dela que se reinventa também,
como crítica possível, como encontro político possível.
234

O jogo proposto pelas mulheres de Jogo de cena, bem como pela


performance de seu diretor, assim como pelo encontro com Estamira
em seu documentário, nos dá a ver tais questões. Que ordem de perfor-
mances são essas? Quais seus limites e de que forma as apreendemos?
235

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1962.


ADORNO, Theodor. “O ensaio como forma”, in: Adorno, T. Notas
de Literatura I. São Paulo: Editora 34 e Duas Cidades, 2003.
Adorno, Theodor. Nota de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.
AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins: notes sur la politique. Paris: Payot
et Rivages, 2002.
Anderson, Perry. The Origins of Postmodernitiy. NY: Verso, 2002.
ARDENNE, Paul. Un Art contextuel: création artistique en milieu urbain,
en situation, d’intervention, de participation. Paris: Flammarion, 2002.
Avellar, José Carlos. “Eu sou trezentos”. Cinemais, nº 36, outubro/
dezembro, 2003.
Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
2004. (Primeira Edição: 1929). 11ª Edição.
BALTAR, Mariana. “Pacto de Intimidade – ou possibilidades de diálogo
entre o documentário de Eduardo Coutinho e a imaginação me-
lodramática”. Artigo apresentado no XIV Encontro da Compós
– GT Fotografia, Cinema e Vídeo, Niterói, RJ, 2005.
Baltar, Mariana. “Realidade lacrimosa: diálogos entre o universo do
documentário e a imaginação melodramática.” Orientador: João
Luiz Vieira. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Curso de Pós-Graduação em Comunicação, 2007.
Barthes, Roland. “The Reality Effect”, in: The Rustle of Language. NY:
Hill and Wang, 1986.
BARTHES, Roland. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
236

Bauman, Zygmunt. Amor Líquido: sobre fragilidade dos laços humanos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Bauman, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999.
BEIGUELMAN, Giselle. “Assim é se não lhe parece”. Endereço ele-
trônico: http://www.videobrasil.org.br/ffdossier/ffdossier001/
ensaio.pdf (acesso em 29 de novembro de 2005)
BENJAMIN, Walter. “A imagem de Proust”, in: Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENTES, Ivana. “Arthur Omar: o êxtase da imagem”, in: Antropologia
da face gloriosa. São Paulo: Cosac e Naify, 1997.
BENTES, Ivana. “Redes colaborativas e precariado produtivo”. Cami-
nhos para uma Comunicação Democrática, in: Le Monde Diplomatique e
Instituto Paulo Freire. São Paulo, 2007.
BENTES. Ivana. Favelas Globais (pesquisa em andamento). 2009.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Bernardet, Jean Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte
húngaro, in: Maria Dora Mourão e Amir Labaki (orgs.). O Cinema
do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
Bernardet, Jean Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo, Cia
das Letras, 2003.
BERNARDET, Jean-Claude. “Jogo de cena”, 14/01/2008. Disponível no
“Blog do Jean-Claude”, em: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/
BERNARDET, Jean-Claude. “Novos rumos do documentário brasi-
leiro?”. Catálogo do forumdoc.bh.2003 – VII Festival do Filme
Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Belo Horizonte:
Filmes de Quintal, 2003, p. 24-27.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. São Paulo:
Escuta, 2001.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’água, 1984.
237

BOLTANSKI, Luc ; CHIAPELLO, Ève. Le Nouvel esprit du capitalisme.


Paris: Gallimard, 1999.
BRAGANÇA, Felipe. “Mestres dos mestres”. Revista eletrônica Con-
tracampo, 2004. Disponível em: http://www.contracampo.com.
br/58/jeanrouch.htm
BRASIL, André. “Ensaios de uma imagem só”, in: Devires, Belo Hori-
zonte, v.3, n.1, jan-dez., 2006.
BRASIL, André. “A tela em branco: da origem do ensaio ao ensaio como
origem”. Trabalho de apresentação ao GT Fotografia, Cinema e
Vídeo, XVIII Encontro Anual da Compós, Puc-BH, Belo Hori-
zonte, MG, 2009.
BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Editora Ilu-
minuras, 2004.
Brooks, Peter. The Melodramatic Imagination Balzac, Henry James, Melo-
drama and the Mode of Excess. Yale University Press, 1995. (edição
original: 1976).
BRUNO, Fernanda. “Jogo de cena”, 2007. Disponível no blog “Dispositi-
vos de visibilidade e subjetividade contemporânea”, em: http://dis-
positivodevisibilidade.blogspot.com/2007/11/jogo-de-cena.html
CANCLINI, Néstor García. “Prefácio” a Culturas Híbridas. Barcelona:
Paidós, 2001.
Canetti, E. Massa e poder. Tradução de Sergio Rellaroli. Companhia
das Letras, São Paulo, 1995.
CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. “Surrealismo”, in: História do cinema mundial
(org. Fernando Mascarello). Campinas: ed. Papirus, 2006.
CASSIN, Bárbara. Voir Helène em toute femme. Paris: Institut Sanofi-
Synthélabo, 2000.
CASTRO, Edgardo. El vocabulário de Michel Foucault. Buenos Aires: Uni-
versidad Nacional de Quilmes, 2004.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televi-
são, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
238

COMOLLI, Jean-Louis. Voir et Pouvoir – L’innocence perdue: cinema, télévision,


fiction, documentaire. Paris: Éditions Verdier, 2004.
COMOLLI, Jean-Louis.“Os homens ordinários. A ficção documentá-
ria”, in: C. Guimarães, G. Otte e S. Sedlmayer (org), O comum e a
experiência da linguagem. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
DANEY, Serge. Cine, Arte del Presente. Buenos Aires: Santiago Arcos
Editor, 2004.
DA-RIN, Silvio. “Verdade e imaginação”, in: Espelho partido – tradição e
transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue, 2004.
Debord, Guy . A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988
DELEUZE, Gilles e Claire Parnet. “Da superioridade da literatura
anglo-americana”, in: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Crítica e clínica. São Paulo: ed.
34, 1997.
DELEUZE, Gilles. “Lettre à Serge Daney: optimisme, pessimisme et
voyage”, in: Deleuze, G. Pourparlers (1972-1990). Paris: Les Édi-
tions de Minuit, 2003.
DELEUZE, Gilles. “Postulados da linguística”, in: Mil platôs – volume
II. São Paulo: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, Gilles. “Sobre o capitalismo e o desejo”. In: A ilha deserta
e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Ilumi-
nuras, 2005.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa, Vega, 1996.
DELEUZE, Gilles.“As potências do falso”, in: A imagem-tempo. SP:
Editora Brasiliense, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Les Éditions
de Minuit, critique, 1980.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro:
Editora 34, 1992.
239

DETIÈNNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1993.
DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
DURAS, Marguerite. O amante da China do Norte. São Paulo: Nova Fron-
teira, 1992.
EDUARDO, Cléber. “Pan-Cinema Permanente: tudo é efeito”. Revista
Cinética, abril de 2008. Disponível em: http://www.revistacinetica.
com.br/pancinema.htm
EDUARDO, Cléber. “Subjetividade mediada: entre a classe social e a
família universal”. Revista Cinética, março de 2007. Disponível
em: http://www.revistacinetica.com.br/santiagocleber.htm
FELDMAN, Ilana. “Santiago sob suspeita”, in: Trópico. agosto-setembro
de 2007. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/
textos/2907,1.shl
FELDMAN, Ilana.“Moscou: do inacabamento ao filme que não acabou”,
in: revista Cinética, 2009. Disponível em: http://www.revistacine-
tica.com.br/moscouilana
FELDMAN, Ilana.“O apelo realista”, in: Revista FAMECOS, dossiê
“Menções de Destaque – Compós 2008”, Porto Alegre, nº 36,
2008. Disponível em: http://revcom2.portcom.intercom.org.br/
index.php/famecos/article/viewFile/5472/4970
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – vol.1: A vontade de saber.
Rio de Janeiro: Graal, 1997.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FRANÇA, Andréa. “Viagens nas fronteiras do Brasil e do cinema”. De-
vires: Cinema e Humanidades, v. 4, nº2. Belo Horizonte: ed. UFMG,
2007.
Frisby, David. Fragments of Modernity: Theories of Modernity in the Work
of Simmel, Kracauer, and Benjamin. Cambridge: MIT Press, 1988.
240

Giddens, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização re-


flexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo:
Unesp, 1997.
Giddens, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1993.
Giddens, Anthony. Modernity and Self Identity: Self and Society in the Late
Modern Age. Stanford: Stanford University Press, 1991.
GIL, Fernando. Representar. In Enciclopédia Enaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2000.
Goffman, Erving. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Expe-
rience. Cambridge/Massachusetts, Harvard University Press, 1974.
Goffman, Erving. Interaction Ritual: Essays on Face-to-face Behavior. NY:
Doubleday/Anchor, 1967.
Goffman, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. Doubleday,
1959.
GUIMARÃES, César. Dossiê do II Simpósio Comunicação e Expe-
riência Estética (mimeo).
GUIMARÃES, César. Imagens da memória. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 1997.
GUTIÉRREZ ALEA, Tomás. Dialética do espectador. São Paulo: Summus,
1984.
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na
era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record,
2001.
http://www.intercom.org.br/papers/congresso2003/pdf/2003_
NP07_machado.pdf (acesso em 29 novembro de 2005)
http://www.videobrasil.org.br/ffdossier/ffdossier002/Wagner%20
Morales.pdf (acesso em 29 de novembro 2005)
ISHAGHPOUR, Youssef. “O real, cara e coroa”, in: Abbas Kiarostami
(São Paulo: Cosac & Naify, 2004).
241

Jameson, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.


Jameson, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
Jourdheuil,J. “Préambule” in Manuscrits de Hamlet-Machine –
Transcriptions-traductions, de Heiner Müller. Les Éditions de
Minuit, Paris, 2003
Kahana, Jonathan R. “Intelligence work: documentary in the Ameri-
can political imagination.” Tese. New Jersey: The State University
of New Jersey, 2001.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos de feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro:
Record, 2006.
Lins, C. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão Cinema e Vídeo.
Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2004.
LINS, Consuelo & MESQUITA, Cláudia. Aspectos do documentário contem-
porâneo brasileiro (1999-2007). Campinas: Papirus, 2008.
LINS, Consuelo & MESQUITA, Cláudia. Filmar o real - sobre o documentário
brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LINS, Consuelo. “O filme-dispositivo no documentário brasileiro
contemporâneo”, in: Sobre Fazer Documentários. São Paulo: Itaú
Cultural, 2007.
LINS, Consuelo. “Tempo e dispositivo no documentário de Cao Gui-
marães”, in: Devires – Cinema e Humanidades. Belo Horizonte:
UFMG, V.4, nº 2, jul/dez 2007.
LINS, Consuelo. Eduardo Coutinho – televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2004.
LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. “Crer, não crer, crer apesar
de tudo - a questão da crença nas imagens na recente produção
documental brasileira”. Trabalho apresentado ao XVII Encontro
242

Anual da Compós – GT Fotografia, Cinema e Vídeo. UNIP, São


Paulo, SP, 2008.
LOPES, Silvina Rodrigues. “Do ensaio como pensamento experimental”,
in: Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval: 2003.
LUZ, Rogerio. Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria,
2002.
MACHADO, Arlindo. “As linhas de força do vídeo brasileiro”, in: Três
décadas do vídeo brasileiro (org. Arlindo Machado). São Paulo: Itaú
Cultural, 2003.
MACHADO, Arlindo. “O filme-ensaio”. Endereço eletrônico:
MÉNIL, Alain. “Entre utopie et héresie: quelque remarques à propos de
la notion d’essai”, in: S. Liandrat-Guignes et M. Gagnebin (org)
L’essai e le cinéma. Paris: Champ Vallon, 2004.
MESQUITA, Cláudia e SARAIVA, Leandro (orgs). Catálogo da Retros-
pectiva Diretores Brasileiros – Eduardo Coutinho (Cinema do Encontro).
São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003.
MESQUITA, Cláudia. “Histórias de luta”, in: Retrato do Brasil nº 6 (Os
limites do cinema brasileiro). São Paulo: Revista Reportagem, edição 75
[ano 5], janeiro-fevereiro de 2006.
MESQUITA, Cláudia. “Outros retratos – Ensaiando um panorama do
documentário independente no Brasil”. In: Sobre Fazer Documen-
tários. São Paulo: Itaú Cultural, 2007.
MÉSZáROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
Migliorin, C. “O dispositivo como estratégia narrativa” in Cinegra-
ma – Revista Acadêmica de Cinema n. 3, 1º semestre de 2005. Rio
de Janeiro.
MIGLIORIN, Cezar. “Jogo de cena de Eduardo Coutinho (2)”. Dispo-
nível em: http://a8000.blogspot.com/2007/10/jogo-de-cena-de-
eduardo-coutinho-2.html
MIGLIORIN, Cezar. “Man.road.river e Da janela do meu quarto: experiência
estética e medição maquínica”, in: revista Contracampo. Endereço
243

eletrônico: http://www.contracampo.com.br/67/manroadriver-
janela.htm (acesso em 29 nov. 2005)
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2003.
Mota, R. A épica eletrônica de Glauber Rocha – Um estudo sobre cinema e
TV, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2001.
Naremore, James. Acting in the Cinema. Berkeley/Los Angeles/Lon-
don: University of California Press, 1988.
Navarro, Vinicius. Ordinary Acts: Performance in Non Fiction Film –
1960-1967. Tese de doutorado. NY: New York University, 2005.
NEGRI, Antonio. Fabrique de porcelaine: pour une nouvelle grammaire du
politique. Paris: Stock, 2006.
Nichols, Bill. Blurred Boundaries. Questions of Meaning in Contemporary
Culture. Indianapolis: Indiana University Press, 1994.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
NICHOLS, Bill. La representación de la realidad. Barcelona: Paidós, 1997.
Nichols, Bill. Representing Reality. Bloomington, Indianapolis: Indiana
University Press, 1991.
NOVAES, Adauto (Org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Senac, 2005.
OMAR, Arthur. “O anti-documentário provisoriamente”. Cinemais, n.
8., p. 179-203, 1990.
PONTBRIAND, Chantal. “Éclats du documentaire”, in: Mouvement.
Endereço eletrônico: http://www.mouvement.net/html/fiche.
php?doc_to_load=9708 (acesso em 29 de novembro 2005)
PRADO Jr., Plinio Walder. “Confessions (III) – Structure du Double”.
Texto de apresentação do curso de mesmo nome, no âmbito da Fa-
culdade de Filosofia da Universidade Paris 8, ocorrido em 2008/2009.
QUINTANA, Àngel. Fábulas de lo visible. Barcelona: Acantilado, 2003.
Ramos, Fernão (org). Teoria contemporânea do cinema: documentário e nar-
ratividade ficcional – volume II. São Paulo: Senac São Paulo, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo um documentário? São
Paulo: Senac, 2008.
244

RANCIÈRE, Jacques. “Política da Arte”, transcrição da apresentação


de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A.: práticas esté-
ticas, sociais e políticas em debate”. (São Paulo, SESC Belenzi-
nho, 17 a 19 de abril de 2005).
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível - estética e política. São Paulo:
Editora 34, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. La Mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée,
1995.
RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004
RANCIÈRE, Jaques. Le spectateur emancipe. Paris: La Fabrique Éditions.
2008
Renov, Michael. The Subject of Documentary. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2004. Collection Visible Evidence – volume 16.
RODRIGUES, Silvina. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval: 2003.
ROSA, Guimarães. “O espelho”, in: Primeiras histórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
ROYOUX, Jean-Christophe, “The Time of Re-departure: after cinema,
the cinema of the subject”, in: Art and the Moving Image – a Criti-
cal Reader (org. Tanya Leighton). Londres: Tate Publishing, 2008.
SADOUL, Georges. El cine de Dziga Vertov. México: Ediciones Era, 1973.
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo,
2008.
Saraiva, Leandro. “Big Brother Brasil e Edifício Master: espetáculo
e anti-espetáculo. Sinopse Revista de Cinema, número 11, ano VIII,
setembro, 2006.
Sarlo, B. Tiempo Passado: Cultura de La Memoria y Giro Subjetivo. Uma
discusion. Siglo XXI Editores, Argentina, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
São Paulo: Unesp, 2005.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade.
São Paulo: Cia das Letras, 2002.
245

Sennett, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade.


São Paulo: Cia das Letras, 1988. (edição original: 1974/1976).
SENRA, Stella. “Como animais que morrem”. In: Devires, Belo Hori-
zonte, v.4, n.1, p.104-121, jan.-jun. 2007.
SENRA, Stella. “Interrogando o documentário brasileiro”, in: Sinopse –
Revista de Cinema, nº 10, ano IV, dez. 2004.
SEVERINO, Antonio Marcos Vieira. “Pequenas notas sobre o ensaio”.
In: revista História Unisinos, vol. 08, n.10, julh./dez., p. 97-106, 2004.
SIBILIA, Paula. O show do eu – a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008.
SIQUEIRA, Marília Rocha de. “O ensaio e as travessias no cinema
documentário”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais,
junho de 2006.
Smith, Murray. Engaging Characters: Fiction, Emotion and the Cinema. Ox-
ford: Carendon Press, 1995.
STAROBINSKI. Jean. “Peut-on définir l’Essai?”, in: Jacques Bonnet
(org). Jean Starobinski. Collection Cahiers pour un Temps. Paris:
Centre Pompidou, 1985.
Vieira, João Luiz. “Cinema e performance”, in: Ismail Xavier (org.)
O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Waugh, Thomas. “Acting to play oneself: notes on performance in
documentary”, in: Carole Zucker (org). Making Visible the Invis-
ible: an Anthology of Original Essays on Film Acting. Metuchen, N.J,
Scarecrow Press, 1990.
Winston, Brian. Claiming the real: The Griersonian Documentary and its
Legitimations. London: BFI Publishing, 1995.
Xavier, Ismail. “Anotações em torno de Eduardo Coutinho e seu
diálogo com a tradição moderna”. Cinemais n. 36, out-dez. 2003.
Rio de Janeiro.
246

Xavier, Ismail. “Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu


diálogo com a tradição moderna”, in: Cinemais , nº 36, outubro/
dezembro, 2003.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª
edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
ZACCAGNINI, Carla. “Wagner Morales”. Endereço eletrônico:

Filmografia

DETANICO, Ângela e LAIN, Rafael. 2003. Flatland. Brasil, vídeo,


cor, som, 7’.
L, Marcellvs. 2004. Man.road.river. Brasil, mini DV, cor, som, 9’27’’.
L, Marcellvs. 2005. Man.canoe.ocean. Brasil, mini DV, cor, som, 12’21’’.
MORALES, Wagner. 2003. Filme de guerra. Brasil, vídeo, cor, som.
MORALES, Wagner. 2003. Filme de horror. Brasil, vídeo, cor, som,
5’30’’.
MORALES, Wagner. 2003. Ficção científica. Brasil, vídeo, cor, som,
6’25’’.
MORALES, Wagner. 2003. Cassino, filme de estrada. Brasil, vídeo, cor,
som, 14’.
ROCHA PITTA, Tiago. 2007. Herança. Brasil, cor, 16mm digitalizado,
11’.
ROCHA PITTA, Tiago. 2005. Fonte dupla ou Paisagem cozida. Brasil, cor,
16mm digitalizado, 14’.
ROCHA PITTA, Tiago. 2002. Homenagem a JMW Turner. Brasil, cor,
16mm digitalizado, 17’.
247

Sobre os autores

André Brasil - Pesquisador, ensaísta e curador. Com doutorado pela


UFRJ, André Brasil é professor do Departamento de Comunicação
da UFMG. Organizou o livro “Cultura em fluxo” (com Geane
Alzamora e Carlos Falci) e o dossiê “Estéticas da Biopolítica” (com
Cézar Migliorin, Ilana Feldman e Leonardo Mecchi), publicado
pela Revista Cinética. Participou da curadoria e do juri de festivais
e editais públicos, tendo sido responsável pela MostraVídeo do Itaú
Cultural, ao longo de 2006. Atualmente, desenvolve o projeto “En-
saio sobre o inacabado”, que prevê a produção de filme, site e livro.

Andréa França é pesquisadora do CNPq. Professora da graduação e do


Programa de Pós-graduação no Departamento de Comunicação
Social da PUC/RJ. Autora de Cinema em Azul, Branco e Vermelho
– a trilogia de Kieslowski (Sette Letras, 1996), de Terras e fronteiras no
Cinema político contemporâneo (Faperj, 2003),  e organizadora, junto
com Denilson Lopes (UFRJ), da coletânea Cinema, globalização e
interculturalidade (ed. Argos, no prelo).

César Guimarães é doutor em Literatura Comparada pela UFMG,


com pós-doutorado em Cinema e e Filosofia pela Universidade
Paris VIII. Pesquisador do CNPq e professor do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da UFMG. Autor de Imagens
da memória: entre o visível e o legível (Ed. da UFMG) e co-autor de
O comum e a experiência da linguagem, e Comunicação e Experiência
estética (ambos pela editora da UFMG). É editor da revista Devires:
Cinema e Humanidades.
248

Cezar Migliorin é professor, pesquisador e realizador. Nos últimos


anos teve seus trabalhos em vídeo apresentados em mostras na
Tate Modern (Londres), Centre George Pompidou (Paris) e Museu
Patio Herreriano (Espanha). Possui diversos artigos publicados em
livros e revistas e é colaborador da Revista Cinética. Membro do
Conselho Executivo da SOCINE. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense
e do departamento de Cinema e Vídeo. Doutor em Comunicação
e Cinema (Eco-UFRJ / Sorbonne Nouvelle, Paris III).

Cláudia Mesquita é professora no Curso de Graduação em Cinema da


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora
de cinema, com mestrado e doutorado pela Escola de Comuni-
cações e Artes da USP. Atua como pesquisadora e realizadora de
documentários, tendo integrado as equipes de Saudade do Futuro
(César & Marie-Clemence Paes, 2000), Peões (Eduardo Coutinho,
2004), Em Trânsito (Henri Gervaiseau, 2005), e co-dirigido, com
Junia Torres, Nos olhos de Mariquinha (2008). Tem ministrado com
regularidade cursos e oficinas de cinema, assim como publicado
artigos em livros e revistas especializadas. Em 2008, publicou,
em co-autoria com Consuelo Lins, o livro Filmar o Real – sobre o
documentário brasileiro contemporâneo (Jorge Zahar Editor).

Ilana Feldman é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ci-


ências da Comunicação da Universidade de São Paulo e mestre em
Comunicação e Imagem pela Universidade Federal Fluminense,
universidade pela qual se graduou em Cinema. É colaboradora
das revistas eletrônicas Cinética e Trópico, tendo realizado alguns
filmes como roteirista e diretora.
249

Ivana Bentes é professora do Programa de Pós-Graduação em Co-


municação da UFRJ, pesquisadora do campo de Comunicação
com ênfase em estética, comunicação, audiovisual, imaginário
social, pensamento contemporâneo e cultura digital. Atualmente
se dedica a dois campos de pesquisa: Estéticas da Comunicação,
Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo (CNPq) e
Periferias Globais: produção de imagens no capitalismo periférico.
É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ,
conselheira do Programa Cultura Viva do MinC e participa da
Rede Universidade Nômade. É curadora na área de arte, mídia,
audiovisual.

Ismail Xavier é professor de Cinema na Escola de Comunicações e Artes


da USP; foi Professor Visitante da New York University (1995), da
University of Iowa (1998), da Université Paris III-Sorbonne Nouvel-
le (1999), da University of Leeds (2007) e da University of Chicago
(2008); publicou, entre outros livros, O Discurso Cinematográfico:
a opacidade e a transparência (Paz e Terra, 1977, 3ª. Edição 2005),
Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome (CosacNaify 2007, 2ª.
edição), Griffith: o nascimento de um cinema (Brasiliense, 1984), Alego-
rias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal
(Brasiliense, 1993), O cinema brasileiro moderno (Paz e Terra, 2001),
O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues
(Cosac Naify, 2003), Ismail Xavier – encontros, Adilson Mendes - org.
(Azougue, 2009).

José Carlos Avellar Crítico de cinema, autor, entre outros, dos livros O
Cinema Dilacerado, editora Alhambra, Rio de Janeiro, 1986; Deus
e o Diabo na Terra do Sol, editora Rocco, Rio de Janeiro, 1995; A
Ponte Clandestina, editora 34 e Edusp, São Paulo, 1996; Glauber
Rocha, editorial Cátedra, Madrid, 2002 e O chão da palavra, editora
250

Rocco, Rio de Janeiro, 2007. Uma seleção de textos encontra-se


em www.escrevercinema.com.br

Mariana Baltar é professora da UFF, doutora em Análise da Imagem


e do Som pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação/
UFF, com passagem pela New York University onde desenvolveu
parte das pesquisas para a tese “Realidade Lacrimosa – diálogos
entre o universo do documentário e a imaginação melodramática”.
Em 2007, integrou a equipe de pesquisa de texto e imagem do
Projeto Memória Globo, vinculado à Rede Globo de Televisão,
para a organização e editoração do livro Entre tramas, rendas e
fuxicos, sobre a história do figurino na teledramaturgia da emis-
sora. Sua pesquisa mais recente envolve o universo dos gêneros
que compartilham a mesma matriz cultural do excesso, tais como
o melodrama, a pornografia e o horror.

Miguel Pereira Professor e Coordenador do Programa de Pós-Gra-


duação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor em Cinema
pela USP. Diretor do Departamento de Comunicação Social da
PUC-Rio de 1978 a 1986 e de 1999 a 2003. Professor de disciplinas
da área de cinema desde 1975, na PUC-Rio. Crítico de cinema do
jornal O Globo de 1966 a 1983. Co-organizador do livro “Comu-
nicação, Representação e Práticas Sociais” (2004), co-autor do livro
“O Desafio do Cinema”. Autor de inúmeros artigos nas revistas
Alceu, Cinemais, Semear e Contracampo, entre outras.  

Stella Senra é Doutora em Ciências da Informação pela Universidade


de Paris II. Foi professora da PUC-SP e é pesquisadora  nas áreas
de Cinema, Vídeo e Fotografia. Autora de “O último jornalista -
Imagens de cinema, Editora Estação Liberdade, 2000, tem ainda
251

algumas dezenas de artigos publicados em livros, revistas acadêmicas


e catálogos. Dentre seus ensaios mais recentes está o pós-facio de
“Marcados”, Cláudia Andujar, Cosac-Naify, edições em português
e inglês, São  Paulo, 2009.
Agradecimentos
Cezar Migliorin

Gostaria de agradecer aos meus alunos e colegas do Departamento


de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunica-
ção da Universidade Federal Fluminense pelos ricos debates que temos
mantido em torno do documentário. Da mesma maneira, agradeço
pelos encontros acadêmicos e afetivos ocorridos nos últimos anos em
Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará e na Vila das Artes, no
Festival de Cinema Etnográfico do Rio de Janeiro, no Cine Esquema
Novo de Porto Alegre e no Festival de Curtas de Goiás. Agradeço ainda
ao pessoal da Teia, de Belo Horizonte, aos colegas da revista Cinética pela
acolhida e estímulo e aos colegas da Sociedade Brasileira de Estudos
de Cinema e Audiovisual (Socine); sem nossos encontros, decisivos em
minha formação como pesquisador, este livro não teria sido possível.
Individualmente, gostaria de agradecer a algumas pessoas de
importância maior na elaboração deste projeto: Beatriz Furtado, Tadeu
Capistrano, Tunico Amâncio, Ivana Bentes, Arthur Omar, Paula Sibília,
César Guimarães, André Brasil, Ilana Feldman, Joel Pizzini, Alexandre
Veras, Max Eluard, Patrícia Guimarães, Philippe Dubois, Ernest Dias,
Cao Guimarães, Éder Santos, Ivo Lopes, Leandro Saraiva, Eduardo
Coutinho, Jean-Claude Bernardet.
Muitíssimo obrigado a todos os autores – José Carlos Avellar,
Mariana Baltar, André Brasil, Ilana Feldman, Andréa França, César Gui-
marães, Cláudia Mesquita, Miguel Pereira, Stella Senra e Ismail Xavier
–, simplesmente brilhantes!
Dedico este livro a minha mulher, Flavia Oliveira.
Fotos

Página 8 - Acidente ( Pablo Lobato e Cao Guimarães, 2006) e


Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006)

Página 26 - Entreatos (João Salles, 2004) e


Vocação do poder (Eduardo Escorel e José Joffily, 2005)

Página 44 - Morrinho (Fabio Gavião e Markão Oliveira, 2009)

Página 64 - Edifício Master (Coutinho, 2003)

Página 80 - Preto e branco (Carlos Nader, 2004) e


Do outro lado do rio (Lucas Bambozzi, 2004)

Página 96 - Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2003)

Página 122 - Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007) e


Mutum (Sandra Kogut, 2007)

Página 148 - Santiago (João Moreira Salles, 2007)

Página 168 - Man.Road.River (Marcellvs L., 2004)

Página 180 - Boca de lixo (Eduardo Coutinho, 1992)

Página 200 - Uma encruzilhada aprazível ( Ruy Vasconcelos, 2007) e


Acidente ( Pablo Lobato e Cao Guimarães, 2006)

Página 218 - Estamira (Marcos Prado, 2004) e


Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007)
256

Você também pode gostar