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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO-


UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
ESCOLA DE LETRAS
CURSO DE LETRAS- LICENCIATURA

NARRATIVAS DISTÓPICAS NA VERBO VISUALIDADE DE


ORWELL A BLACK MIRROR

AMANDA MIGUEL DE LIMA

Rio de Janeiro- Rj
2023
AMANDA MIGUEL DE LIMA
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NARRATIVAS DISTÓPICAS NA VERBO VISUALIDADE DE


ORWELL A BLACK MIRROR

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado no curso de Licenciatura em
Letras da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro- UNIRIO, como
requisito parcial para obtenção do título
de licenciando em letras.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luciana Vilhena

Rio de Janeiro- RJ
2023
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NARRATIVAS DISTÓPICAS NA VERBO VISUALIDADE DE


ORWELL A BLACK MIRROR
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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por ter me proporcionado a oportunidade de concluir uma graduação


que sempre foi a que almejava, principalmente dentro de uma universidade pública, que
representa muito mais para mim, que sou cria de uma favela e vejo a realidade de muitos ao
meu redor e hoje, pode ser mudada através da educação pública de qualidade.

Meu sincero agradecimento à professora Luciana que aceitou me orientar e desde o


começo dessa jornada me fez querer mais ser professora, pois é um espelho de dedicação,
sororidade e empatia com os alunos e respeito com a profissão.

Agradeço a minha mãe que, depois de viúva, me criou sozinha e sempre me


incentivou a correr atrás dos meus objetivos, que me animou quando estava precisando e que
me ouviu, sempre que eu precisava reclamar. Esse agradecimento se estende a toda minha
família, sempre me incentivaram com questionamentos e perguntas que só acrescentaram na
minha formação.

Agradeço também ao meu namorado Rafael, por todas as palavras que aqueceram o
coração e incentivaram a alma a continuar, muito obrigada.

Não poderia deixar de agradecer também a todos os meus amigos que incentivaram de
todas as formas nesse processo a ser menos solitário.
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“Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que você
se move. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, embaixo”.

(ORWELL, George, 1949, pág. 12)


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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 10

2. VIGILÂNCIA CONSTANTE: TERROR OU PROTEÇÃO? 13


2.2 INTERNET E O ENDEUSAMENTO DAS FIGURAS POLÍTICAS 17
TOTALITÁRIAS
3.COMPOTAMENTO E VIGILÂNCIA: O QUE SE ESPERAR DO INDIVÍDUO 19
VIGIADO?
4. MULTISSEMIOSE E O LIMITE DA CONSCIÊNCIA E A REALIDADE
APRESENTADA 25

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS 29
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 31
7. ANEXOS: EPISÓDIOS 32
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1. INTRODUÇÃO

Não me lembro ao certo quando começou meu interesse por distopias, mas
lembro da sensação de ler pela primeira vez 1984, livro de George Orwell que trata
desse tema, lembro do quanto essa obra foi um divisor de águas para “abrir os
olhos” para temas antes, ainda, turvos para uma jovem.
A ideia que Orwell plantou em minha cabeça nunca deixou de germinar, fato
que me fez pensar em escrever, ou fazer algo com toda aquela informação e está
sendo tema desta investigação.
1984 é escrito por George Orwell em 1949, sendo uma narrativa distópica que
trata de uma sociedade controlada por um regime totalitário, localizada em um bloco
continental chamado Oceania. Esse regime é detentor de todos os recursos usados
pelos moradores e vigia de perto todos os habitantes.
A trama apresenta o personagem principal, um morador, que, como todos os
outros, trabalha para o Socing, nome dado ao regime político que comanda a
Oceania. Ao sermos apresentados a Wilson Smith, percebemos que ele é avesso ao
regime atual, pois, em suas lembranças, antes de terem o poder em mãos, a
sociedade vivia em melhores condições que as do momento.
O controle sobre os habitantes é intenso. Há a polícia das ideias, responsável
por fiscalizar possíveis atitudes que acarretem qualquer descontrole do regime para
com os indivíduos a serem controlados. Existe também a Novafala, uma língua
criada e constantemente revisada para evitar qualquer comunicação que desviasse
da função de somente transmitir informações de maneira impessoal. O fato de haver
uma língua ‘artificial’ forjada para o controle da população é digno de espanto e nos
faz, como concluintes do Curso de Letras, refletir sobre o poder da linguagem na
engrenagem das sociedades.
Há também as teletelas, uma das ferramentas responsáveis pela vigilância de
todos. São dispositivos que costumam estar em vários lugares, inclusive dentro da
casa dos indivíduos. Elas funcionam como câmeras de vigilância, mas também
como veículo que transmite as mensagens do Grande Irmão, essa entidade quase
fantasmagórica, detentora de todo poder, mas que ninguém, de fato, já viu. Como
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podemos perceber, estamos diante de um vigilante inumano e, muitas vezes, fora do


alcance da percepção dos sentidos humanos.
O Grande Irmão seria, então, o representante máximo do poder do regime
político totalitário que rege a Oceania, ele está “presente em todos os lugares”, há
cartazes espalhados pelas ruas e mensagens que deixam claro aos habitantes que
estão sempre sendo vigiados por ele.
A partir de George Orwell, percebemos que algumas outras narrativas foram
posteriormente atravessando esta mesma temática, passando por aspectos da
vigilância constante, por comportamentos humanos em ambientes controlados,
trazendo críticas sociais a esse comportamento, já que, os cidadãos, quando
vigiados, passam a não ser mais naturais, e é criada uma persona social (COOPER
2007). Quando retratado no cinema, por ser uma área que já trabalha com atores,
cria-se uma metalinguagem, uma vez que se trata de atores contratados para atuar,
atuando em cenas, dentro do filme, em que estão sendo pagos para atuar.
Nesse breve estudo, gostaria de apresentar algumas obras que perpassam
pelo mesmo tema, mas dando ênfase a três delas, a saber: 1984, Matrix e Black
Mirror. Utilizando o método de comparação, pretendo traçar um paralelo dessas
obras mais recentes com 1984, discutir e apresentar os temas que atravessam as
distopias que o seguem, e como elas foram apresentadas ao longo dos anos,
mostrando suas atualizações para os tempos atuais, atestando que a temática da
distopia e do controle segue sendo uma matriz de interesse de artistas, roteiristas,
cineastas e escritores.
Não pretendo esgotar as discussões e temas aqui propostos, pois os objetos
dos estudos aqui elencados são apresentados para lançar luz às conversas já
existentes sobre os temas, e, claro, satisfazer uma vontade pessoal de uma nerd em
perceber como essa temática se manifesta em obras literárias e audiovisuais.
Os assuntos aqui tratados atrelados aos exemplos surgiram da curiosidade de
entender o porquê de esse tema tão recorrente ainda fazer parte de maneira
constante de narrativas atuais, atuando no imaginário e despertando discussões
filosóficas, políticas e sociais, muitas vezes em paralelo com situações vividas
atualmente, como recentemente vivenciamos os ataques às instituições
democráticas no Brasil, o que nos faz lembrar de narrativas como estas, que antes
pareciam tão distantes e fictícias e hoje já refletem a realidade.
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Junto a autores que tratam dos temas recorrentes nessas obras, pretendo
então analisar as referidas obras, que conversam com temas como: vigilância
constante, comportamento humano nos ambientes controlados e vigiados, regimes
totalitários, etc. Sendo assim, o recorte empreendido para esta investigação engloba
o filme Matrix (1999) com a temática da dissonância cognitiva e de realidades
paralelas e o episódio “Queda livre” da série britânica Black Mirror (2016).
Para trazer mais uma série de narrativas cuja temática é uma sociedade
distópica que usa o controle para ‘ajustar a conduta’ dos cidadãos, temos a série
Snowpiercer (2020), que elucida o poder centralizador a partir de atores políticos,
que também, em certa medida, vem influenciado por Orwell e seu Grande Irmão.
Com esse panorama de narrativas ligadas ao tema, procuraremos verificar
como os escritores, diretores e roteiristas das obras selecionadas para esta
investigação vão lendo a nossa realidade e montando, através da arte, obras que
nos trazem reflexões, que nos fazem despertar para o fato de que estamos nos
direcionando para a construção de realidades muito próximas às retratadas pela
ficção.
Uma das ferramentas em comum que essas obras mostram como uma
possível marca na mudança social é o uso da tecnologia de forma exagerada e
inconsciente, revelando como a tecnologia mudou as regras do jogo. Essa mudança
reverberou em todos os âmbitos da nossa vida, sejam eles dos mais triviais, como
não ir mais às agências bancárias para resolver burocracias que hoje podem ser
resolvidas através de um click, como também em âmbitos macros, que mudam a
vida em escala global, como a criação de criptomoedas, que hoje já podem ser
cambiadas e usadas até na bolsa de valores.
Essas resoluções que envolvem a tecnologia parecem, a priori, muito
benéficas, mas, como tudo tem seus ônus, a digitalização máxima trabalha, em sua
maioria, de maneira inversamente proporcional à privacidade, seja com pessoas
públicas ou anônimos, e até mesmo a extensa lista de quebras de sigilo de contas e
vazamento de dados pessoais através da web, a quantidade absurda de golpes
criados para os navegantes, golpes esses que nem os mais experientes navegantes
escapam.
Em suma, a tecnologia mudou tudo, “virou a banca” e hoje estamos no
movimento constante de adaptação, haja vista que a cada dia novas tecnologias e
formas de uso estão chegando. E os que resistem encontram cada vez mais
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dificuldades de viver na famosa geração Z, isto é, a geração em que as redes


sociais são parte importante e presente na vida, não só de forma social, mas para
questões ‘secundárias’ que estão ligadas aos afetos e às emoções, como a
necessidade de aprovação constante de terceiros, além de questões ligadas à vida
profissional, já que a rede movimenta milhões por ano em marketing e vendas.
E essas alegorias conversam com a realidade mencionada acima mostrando
as dinâmicas de poder nas sociedades, sejam em escala governamental, seja por
meio dos que influenciam na web. O autor de 1984 e também a série inglesa Black
Mirror apontam espelhamentos que se relacionam ao nosso cenário de vida atual,
em sua maioria em um tom de denúncia antecipatória.

2. Vigilância Constante: terror ou proteção?


Vivemos em tempos de redes sociais, GPS, Google e constante vigilância a
partir de monitoramentos, em sua maioria virtual, e nem sempre explícitos, como
quando usamos nossos smartphones e assim que conectados à rede, temos nossa
localização acompanhada e por meio dela “vigiada”.

Muitas vezes o propósito de utilização da vigilância na vida cotidiana não


aparece com tanta clareza, podendo parecer, em uma primeira impressão, como
uma forma de proteção. Deleuze (1990) já fala dos meios de confinamento utilizados
na sociedade de controle, como as escolas, empresas, famílias. E as mídias sociais
hoje fazem esse papel, sendo um meio de controlar e padronizar os mais diferentes
aspectos da vida humana, de estética e beleza a como deve ser sua casa, carro,
através do que conhecemos a partir de categorias, como os digital influencers,
figuras que ditam o life style a ser seguido e imitado, e quando uso a palavra
seguido, é quase de maneira literal, pois o termo usado para quem acompanha de
perto esses influenciadores é o termo “seguidor”, aquele que está pronto a vigiar
todas as pequenas parcelas da vida. Parcelas essas que têm sua veracidade
questionada, pois os aparatos digitais utilizados para sustentar esse alto padrão
muitas vezes são inverossímeis. Cria-se, então, mais uma persona social para o
marketing e venda desse estilo de vida.

Mas antes de mídias sociais e influenciadores digitais, começamos com um


exemplo mais palpável. Uma câmera de monitoramento de ruas e prédios, com a
exposição de imagens, espera-se inibir, de alguma forma, o comportamento
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considerado à margem do esperado na sociedade. Uma das funções destas


câmeras de monitoramento é a que se espera com o sentimento de medo gerado
pela vigilância, pelos agentes criminosos, levando a repressão de possíveis crimes,
ao mesmo tempo que o sentimento de segurança (e poder) também é gerado aos
vigilantes, haja vista que, quando sabemos que estamos sendo monitorados, se
espera que o comportamento seja moldado para que se adeque ao que a sociedade
considera apropriado.

Esse paradoxo gerado pelo processo de vigilância não é uma discussão


atual. Já em 1984, George Orwell criou uma sociedade distópica em que todos são
constantemente vigiados, por “teletelas”, espécies de câmeras instaladas pelo
governo a fim de controlar os integrantes dessa sociedade. Ele diz:

“Fosse como fosse, uma coisa era certa: tinha meios de conectar-se a seu
aparelho sempre que quisesse. Você era obrigado a viver e vivia, em
decorrência do hábito transformado em instinto."

(ORWELL, George, 1949.)

O personagem principal nos relata como é viver constantemente vigiado, e


traz ainda reflexões acerca do modo como se vive, “pelo instinto”, que, em uma
primeira leitura, poderia ser interpretado como viver de maneira mais intuitiva.
Porém, percebemos, aqui, a palavra escolhida a partir de um léxico contextualizado
num habitat animal, nos levando a crer que o instinto se transforma não mais em
viver livremente para seguir seus próprios pensamentos e a sua maneira, mas em
seguir à risca o que o sistema de poder quer. O instinto aqui se traduz por
sobrevivência, sempre à espreita de que algo está prestes a acontecer caso algo
saia do combinado:

“Compusera a própria fisionomia de modo a ostentar a expressão de


tranquilo otimismo que convinha ter no rosto sempre que se encarasse a
teletela.”

(ORWELL, George, 1949.).

Nessas narrativas distópicas, a vigilância constante é usada como ferramenta


para manutenção do poder, assim criando uma ambientação de terror, ao passo que
quando as teletelas estão vigiando Winston, sua revolta vai de encontro à tecnologia
empregada. Curiosamente ele escolhe escrever em um caderno uma metáfora bem
analógica utilizada como ferramenta de liberdade e rebelião contrastando com os
diversos tipos de tecnologia usadas para aprisionar seus habitantes. Com o caderno
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em mãos, Winston começa a relatar seus pensamentos secretos que destoam dessa
sociedade e quem a governa, nos levando, com ele, a refletir acerca das nossas
próprias convicções e métodos de poder.

CENA 1- (Winston escreve em seu caderno. Cena do filme 1984 lançado também
no ano de 1984).

Se por um lado as utopias nos brindam com uma esperança quase cega em
um futuro libertário e cheio de novas ideias, as distopias vêm como as
consequências dessa cegueira e com o quanto a acentuação das tendências
visionárias podem ter o efeito oposto ao proposto, como o aprisionamento e a falta
de liberdade.

É o que acompanhamos na narrativa de Orwell, quando seu personagem


principal se vê aprisionado em um sistema de poder totalitário, e ainda, trabalhando
para que todo esse poder pudesse se concentrar na figura do grande irmão. Winston
trabalha na manipulação das informações de imprensa e noticiário, modificando as
informações quando necessário para atender às necessidades do governo na
manutenção do pensamento da sociedade.

O poder e a vigilância constante estão intimamente ligados, e, mais uma vez,


a distopia faz uma denúncia frente à iminente perda de liberdade. As ferramentas
utilizadas para a imposição desse poder foram mudando ao longo do tempo. Antes,
as câmeras e o monitoramento físico, como em quartéis e “torres” de vigilância eram
eficazes para monitorar e controlar os indivíduos; hoje, outras ferramentas de
vigilância são utilizadas, não mais se relacionando ao ir e vir, mas a onde se clica, o
que se pesquisa, em qual site se compra.

Foucault (1998) fala sobre a opacidade e a transparência entre o poder e o


indivíduo vigiado, sendo o poder um objeto quase inalcançável pelo indivíduo,
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tornando-o ainda mais opaco. Pouco se sabia sobre o que ou quem estava vigiando,
mas o vigiado era exposto e observado do topo do panóptico.

Essa relação tornou-se menos binária. Hoje o poder não é tão vertical e
centralizado, pois, com o uso das redes, teríamos a chance de mudar essa
opacidade nas relações de poder e conhecer quem nos “vigia”. Através da web, a
sensação de nitidez ao ter a liberdade de expressão e o acesso a dados nos daria a
ilusão do pertencimento do todo.

Contudo, essa sensação dissipou-se quando a natureza do poder foi


modificada. O poder, que outrora era centralizado, hoje pulverizou-se por toda rede
e a sensação de, finalmente, conhecer quem nos vigiava ficou ainda mais opaca,
pois não há uma figura central que possamos reconhecer como vigilante; ao
contrário todos tornaram-se possíveis vigilantes. Com a internet, vizinhos, parentes
ou desconhecidos tornaram-se termômetros da sociedade, controlando e vigiando
comportamentos e atitudes de todos, o que revela uma relação ambígua de vigilante
e vigiado, somos “grandes irmãos” e “winstons” de nós mesmos.

Embora o sentimento paradoxal de segurança e perda de liberdade causado


pela vigilância constante não tenha mudado para alguns, para outros, com a
transformação e glamourização da vigia, este passou a ser um desejo, e não mais
uma "necessidade", de ser constantemente monitorado.

A criação do reality show Big Brother deu novos rumos à vigilância constante,
construindo contornos de espetáculo. O próprio nome, quando traduzido para o
português brasileiro, seria um “show da realidade”. O programa teve sua primeira
edição em 1999 na Holanda e contou com a participação de pessoas anônimas que
se inscreveram para serem privadas em uma casa glamurosa e serem vigiadas por
câmeras a todo tempo. O nome e o programa são inspirados no livro de Orwell, Big
Brother é uma referência direta ao “grande irmão''.

No período de mais ou menos três meses, os participantes são vigiados e


testados, com provas que simulam a vida cotidiana e também são levados a testar
suas habilidades sociais. Aqui, o “Grande Irmão” são todos os telespectadores que
detêm o poder de tirar dos holofotes os indivíduos que estão em busca de fama
através do atravessamento dessa experiência de privação de liberdade, com jogos
que levam seus psicológicos ao limite, trazem ao público uma versão glamourosa de
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situações do cotidiano, para que possamos avaliar suas decisões e comparar com
as nossas, que estamos assistindo quase onipresentemente, pois o programa sofre
edições, e a cada semana é decidido quem sai e quem fica no programa.

A mudança da sociedade, a princípio com medo da vigilância e depois à


procura da exposição, se dá de modo gradativo. Guy Debord ao observar os
comportamentos sociais cita o conceito de ‘sociedade do espetáculo’ (1991), em que
os espetáculos audiovisuais capturam a sociedade de forma que a realidade se
torna mais difícil de diferenciar daquela a que se está assistindo, muitas vezes
sendo incorporada à realidade ou mesmo confundida com ela, Debord diz:

“Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social


efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que
inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba
materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si
mesma a ordem espetacular pela adesão positiva.” (1967)

Nota-se que o espetáculo e a realidade se confundem e se fundem e essa


relação pode ser observada nas redes sociais, onde constantemente estamos
expostos a imagens e vídeos, quase sempre com algum tipo de edição (irrealidade),
com a finalidade de passar a sensação de naturalidade (realidade) a ser copiada e
vivida por todos os espectadores.

Nas redes sociais, além de estarmos no papel passivo de receptor da


mensagem passada, passamos a interagir comentando, tornando-nos também
agentes e interlocutores, responsáveis não somente pela recepção da mensagem,
como também pelo papel de co-produtores. Logo, ao reproduzir ou representar uma
imagem de si ou da parte da vida que quer compartilhar, o autor vai pensar em como
será a reação imediata e participaremos ativamente do espetáculo, atores e plateia.
Debord (1991) diz: “O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é
simultaneamente o resultado e o complemento ao mundo real, um adereço
decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real”.

2.2. A Internet e o endeusamento das figuras políticas totalitárias.

“O Grande Irmão está observando você” (Orwell): essa frase é um marco na


narrativa de 1984, a todo momento, seja nas propagandas eleitorais espalhadas nas
ruas e televisionadas, seja na atitude suspeita e delatora da população, “O Grande
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Irmão” deixava claro que estava à espreita, observando e julgando cada passo e
pensamento seu.

A figura totalitária e militarizada como representante da nova ordem imposta


no pós-guerra no continente criado na narrativa de Orwell foi representada de muitas
maneiras em outras obras, por exemplo, uma distopia que já foi exibida em algumas
versões, a atual está em andamento na plataforma de streaming Netflix.

A série estadunidense se passa em um cenário glacial, após um acidente


tecnológico acontecer com a intenção de zerar as consequências que o
aquecimento global trouxera à Terra. Dessa forma, ela se vê em uma locomotiva
autossuficiente criada por um bilionário excêntrico que, a princípio, se destinava às
camadas mais nobres do país, a quem pudesse pagar pelo ingresso, mas que, na
partida, foi invadida por trabalhadores e pessoas de classe mais pobre.

Com isso, o sistema de castas teve de ser implantado de forma radical: os


mais ricos viviam como queriam nas primeiras classes, quase sem restrição de
recursos, quando as camadas mais pobres do trem eram alimentadas com rações e
restos de comida das outras classes, enquanto trabalham arduamente sem nenhum
tipo de salário. Podemos notar que, quando uma tragédia de âmbito natural, político
ou social acontece, há uma tendência de as formas de poder totalitárias vigorarem
com a justificativa, bastante comum, de “restituir a ordem após o caos”.

Esse movimento, que é sempre bastante segregador, está também presente


na narrativa de Orwell. Dividir para conquistar é um conceito usado na guerra que
muito se utiliza nas narrativas reais e irreais do convívio social em que estamos
imersos. Essa estrutura de castas dentro da locomotiva dura por um tempo, até que
cansado de viver trabalhando, um fundista, nome dado aos “moradores” do fundo do
trem, quebra com essa cadeia e planeja ascender socialmente, a princípio com
ideais de ajudar a todos os seus fiéis seguidores a ascender também, mas com
momentos de vislumbre de uma vida melhor para si.

A locomotiva leva o nome do excêntrico milionário que a custeou, e , para


além de bancar essa empreitada, também a conduz, é um engenheiro, e todos o
respeitavam, pela sua coragem e seu caráter intocados. Uma das funcionárias se
ocupava da ordem do trem e foi surpreendida por essa mudança repentina. Depois
de um assassinato acontecer no trem que, teoricamente não tem armas nem
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violência, Layton, o fundista que outrora foi um investigador, chega para descobrir
quem foi o culpado, descobrindo, entretanto, coisas para além do esperado.

A figura mitológica, quase divina de Wilford, o engenheiro, condutor e


financiador da locomotiva em sua menção, mas não em sua aparição, levava aos
passageiros ordem e medo, ao vislumbrar a menção de tal nome, mesmo depois de
anos nunca o terem visto novamente. Essa não aparição não passou despercebida
por Layton, que logo percebeu que Wilford não estava mais na locomotiva há anos,
e agora ela era comandada por sua engenheira Mellanie, a sombra da figura de
autoridade de Wilford.

Essa sombra de autoridade, sem ao menos ser preciso que a figura aparece
em “carne e osso”, é também um dos mecanismos utilizados por Orwell em 1984,
quando, por meio das ordens dadas por teletelas e cartazes nas ruas, a figura nunca
vista pessoalmente do Grande Irmão emanava em suas palavras o poder de
subjugar e controlar toda a população da obra.

Hoje, figuras “mitológicas” usam a internet como pano de fundo para


camuflagem, ao mesmo tempo que se engajam cada vez mais através da mesma.
Parece um paradoxo, mas elas se complementam. A internet tornou homogênea a
relação entre privado e público. Derrida já previu isso, ao afirmar que “o correio
eletrônico está hoje, mais ainda que o fax, em vias de transformar todo o espaço
público e privado da humanidade e, portanto, o limite entre o público e privado, o
segredo (privado ou público), e o público ou o fenomenal” (2001, p. 30). A internet
hoje é o veículo que dilui a barreira entre público e privado, na vida política, ou seja,
nas figuras de autoridade endeusadas, usa-se esse recurso para autenticar suas
falas e discursos que poderiam ser levados a sério e mal vistas dentro de um
contexto público de imprensa. Hoje em dia, uma conta pessoal (privada) de
candidatos, por exemplo, já são utilizadas como veículo oficial para denúncias e
retratações, ao passo que também usa-se para transmitir, atrás das telas, suas
considerações pessoais sobre assuntos públicos. Com isso, a figura mitológica que
faz das telas seu eclipse e fluidifica seu perfil autoritário a todos os que acessam sua
conta.
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3. Comportamento e vigilância: o que se espera do indivíduo vigiado?

O primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror, intitulado “Queda


Livre” mostra como o mau uso da tecnologia pode influenciar negativamente nossas
relações interpessoais. Lacie, a personagem principal do episódio, mostra como
uma sociedade que se propõe ao controle e à vigilância acaba por ser idealizada e
padronizada e é duramente cerceada quando não atinge determinados padrões
esperados.
Em um futuro, supostamente distante, Lacie usa uma rede social em que
todos são avaliados por todos, e essas avaliações são usadas não só como status
social, mas também para usufruir de bens específicos e ter vantagens em compras,
emprego em detrimentos de outras pessoas que recebem notas baixas dentro dessa
rede.

CENA 2 - (Lacie treina expressões faciais no espelho. Cena retirada do


episódio Queda Livre, da série Black Mirror, 2016).

Não é mera coincidência a descrição dessa sociedade distópica à análise


quase premonitória de Deleuze ao perceber que os mecanismos de controle da
sociedade moderna sofreram uma “modulação universal, que servem como um
regulador do tecido social” (DELEUZE, Gilles, 1990). Hoje a exclusividade ao acesso
seria a marca do poder, já que acessar um determinado lugar ou ter uma informação
privilegiada coloca o indivíduo em uma posição de poder.
Dentro desse aspecto de exclusividade, Lacie é uma cidadã modelo, que
compactua com o sistema em que está inserida. Essa rede social, em que
aparentemente todos os indivíduos estão inseridos e que rege diversos aspectos de
suas vidas, funciona com um sistema meritocrático, por notas dadas pelos
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participantes da rede. As notas que você recebe podem mudar sua vida dentro da
sociedade, afetando diversas áreas, como cargo, emprego, relacionamentos, família.
Se antes o indivíduo vigiado, por diversos tipos de controle, comportava-se de
forma a se passar despercebido, como lemos nas primeiras páginas de 1984, para
que quem os vigiava não interferisse, ainda mais, de maneira opressora em sua
vida, aqui não podemos perceber essa figura vigilante, como as teletelas lembrando
a todo tempo que estão sendo vigiados. Ao contrário, temos a sociedade distópica
fazendo esse papel, sendo o termômetro do comportamento e contínua manutenção
do mesmo, pelo uso da rede e das notas dadas.
No decorrer do episódio, o telespectador e Lacie são transportados para um
mundo em tons pastéis e iluminação criada na fotografia do episódio. Para dar o tom
de um mundo perfeito, a personagem principal também se veste em tons pastéis,
caracterizada com um penteado milimetricamente feito para ornar com o ambiente,
fotografa e posta a experiência gastronômica da ida a um café com um comentário
agradável (mesmo sabendo que a experiência não lhe agradava). Em troca desse
sacrifício, recebe elogios e notas altas por seu post.
Um exemplo de como esse aplicativo pode influenciar diretamente a vida dos
personagens acontece logo no início do episódio, quando Lacie chega ao trabalho,
percebe um clima estranho, e um colega chega oferecendo smoothies como um
agrado aos colegas de trabalho, Chester, é quem oferece. Quando Lacie aceita uma
dessas cortesias, o movimento a seguir é dar uma nota alta em retribuição ao gesto.
Mas logo é advertida por outro colega, que Chester não deve ser bem avaliado
nesses dias, pois havia rompido um relacionamento com Gordon, e todos estavam
do lado de Gordon, dando uma pista a ela de como deve agir naquela situação, para
que não fosse mal interpretada e ganhasse notas baixas se tomasse partido do lado
“errado”. Algumas cenas depois, Lacie encontra o Chester no hall da empresa,
impedido de entrar, pois sua avaliação está muito baixa.

CENA 3 - (Chester leva smooth para todos na empresa enquanto vê sua nota
descer. Cena do episódio Queda Livre na série Black Mirror).
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Deleuze já nos aponta uma sociedade correlata à narrada no episódio de


Black Mirror, quando cita Félix Guattari no Post-scriptum sobre as sociedades de
controle. No excerto abaixo, Guattari imagina como será o futuro da humanidade e o
episódio analisado é uma ilustração de como isso funcionaria.
Não há necessidade de ficção científica para se conceber um
mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um
elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa
empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade
onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro,
graças a um cartão eletrônico (individual) que abriria as barreiras;
mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e
tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta
a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação
universal.

(DELEUZE, 1990, apud COSTA, Rogério da, 2004, p.161)

O conflito de Lacie começa quando ela precisa de um novo apartamento para


alugar e, quando vai visitar os imóveis, a corretora dá um preço maior do que pode
pagar. Observando o choque da personagem, a corretora diz que se ela obtiver uma
nota de 4.5 na rede, que a nota máxima é 5, ela teria um desconto de 20% no
aluguel do imóvel. Lacie tem um novo objetivo então: a partir daí ela pensa em
estratégias que a levem a conseguir a nota para, enfim, chegar ao seu objetivo de
alugar o imóvel que elevaria sua nota e seu status social.
A estratégia traçada por ela para se tornar uma influenciadora Premium e
alcançar a nota é conseguir que pessoas com as pontuações mais altas avaliem sua
conta positivamente, alcançando o engajamento necessário para que sua nota suba
mais rapidamente. Lacie tenta desesperadamente agradar todos a sua volta que
possuem notas altas, chegando a seu comportamento beirar o cômico. Mas tudo
muda quando ela se lembra de Mr. Rags, um boneco construído por ela e uma
amiga de infância chamada Naomi, que hoje é uma pessoa com alta pontuação,
além de ter muita influência.
Sua estratégia de postar a foto de Mr. Rags atinge seu objetivo, Naomi vê a
foto e avalia Lacie positivamente. Apelando para a nostalgia que as unia, Lacie é
convidada para ser madrinha de casamento de Naomi, o evento acontecerá em
poucos dias, e parece o cenário ideal para alcançar as notas de que precisa, haja
vista que muitos influenciadores estarão presentes no evento.
Na noite que antecede o casamento, Lacie começa a viver situações que não
estavam nos planos da protagonista. Chegando ao aeroporto, Lacie descobre que
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seu voo fora cancelado, impedindo-a de chegar ao jantar de ensaio e gerando um


descontrole da personagem, fazendo-a ter um comportamento fora do esperado
para aquela esfera social e, consequentemente, a desaprovação dos demais que
estavam na cena. Sua nota foi, então, diminuída. Tal como no episódio “Queda
Livre”, em que Lacie se vê obrigada a reprimir suas emoções e vestir uma máscara
social no intuito de obter boas avaliações, Winston se preocupa com suas reações
que não podem ser controladas mesmo em seu estado de sono, ele tem medo de
ser traído por seu subconsciente e acabar por ser delatado por ele.
O pior inimigo de uma pessoa, refletiu, era seu sistema nervoso. A
qualquer momento a tensão que se acumulava em seu interior corria
o risco de traduzir-se num sintoma observável. Lembrou-se de um
sujeito com o qual cruzara na rua semanas antes: um homem de
aspecto bastante normal, membro do Partido, com cerca de trinta
cinco, quarenta anos, um pouco alto e magro, levando uma pasta na
mão. Estavam a alguns metros de distância um do outro quando,
sem mais nem menos, o lado esquerdo do rosto do desconhecido
sofrera uma espécie de espasmo e ficara todo contorcido. A coisa de
repetira no momento que os dois se cruzavam: era apenas uma
contração muscular, um estremecimento, rápido como o clique de um
obturador fotográfico, mas obviamente acontecia com frequência.
Winston recordava ter pensado na ocasião: esse pobre-coitado está
perdido. E o assustador era o fato de que a coisa podia ser
inconsciente. O perigo mais letal de todos era falar dormindo. Até
onde Winston podia ver, contra isso não havia como precaver-se.

(ORWELL, 1984, p. 82)

Ambos os personagens sabiam que quando se desvia dos comportamentos


esperados pela sociedade que os cerca, há consequências; no caso do romance de
Orwell, o personagem cita a Polícia das Ideias, em que há a vigilância constante aos
indivíduos de maneira que até os pensamentos perpassa de alguma forma pelo
controle exercido sobre eles. Nem mesmo os ambientes privados, como suas casas,
são seguros a ponto de se opor ao sistema de poder, as teletelas seguem
exercendo também essa função de espiãs e olhos em todos os lugares.
Anterior a Deleuze, Foucault mostra como a sociedade da época era por ele
apresentada como sociedade disciplinar, em que o controle sobre as pessoas é
exterior ao indivíduo e não depende da permissão do mesmo para que esse controle
seja exercido, o que parece mais com a sociedade distópica que Orwell traduz em
seu livro. Em relação ao episódio de Black Mirror, Deleuze lança mão do que chama
de sociedade do controle, em que o indivíduo se insere no mecanismo de controle,
no caso dela, a rede em que se propõe participar, buscando a aprovação alheia.
Esses mecanismos também têm esferas interiores, em que seus participantes
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também fazem a manutenção do poder ao mesmo tempo em que usam e são


controlados por ele.
“São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades
disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o
novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul
Virilio também analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controle ao ar
livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um
sistema fechado.”

(DELEUZE, 1990, p. 220)

Os poderes que rondam ambas são de dimensões diferentes, muito embora


causem efeitos parecidos nos personagens. Enquanto que em 1984 o poder vem de
atores externos, que estão trabalhando em prol do Partido, no episódio “Queda
livre”, Lacie concede o poder de ser vigiada ao mesmo tempo que almeja a
aprovação dessa massa vigilante ao permitir ser inserida na rede social. O poder
sobre o corpo dos indivíduos não está apenas nas esferas materiais, quando se
proíbe o direito de ir e vir, mas também na esfera psicológica, quando se padroniza
um comportamento para que o sistema funcione de maneira a não perturbar a
ordem, inibindo reações e opiniões que seriam emitidas de forma natural, sejam pela
Polícia das Ideias em 1984 ou pelos indivíduos que exercem essa função na rede
social em Black Mirror.
Conforme o episódio avança, Lacie sofre o efeito do inesperado na pele,
situações adversas a que ela esperava acontecem em sequência, e ela acaba
reagindo de forma natural, instintiva, e aquém do que se esperava e que era
planejado e executado com maestria por ela. As consequências dos desvios do
padrão chegam em forma de notas baixíssimas que acarretam uma série de
desventuras como não conseguir alugar o carro que queria para chegar ao
casamento da amiga. Assim, ela acaba alugando um outro que mais tarde ficaria
sem bateria. O suprimento das emoções ficou cada vez mais difícil de ser exercido.
Vendo a pontuação baixa de Lacie, Naomi, seu principal caminho para alcançar o
sucesso, liga para ela e pede para que ela não vá mais ao evento, preocupada com
sua possível baixa em sua nota por ter alguém com a atual pontuação de Lacie.
Cansada das tentativas em vão de suprimir suas emoções, Lacie decide ir por conta
própria ao casamento de Naomi e lá faz um discurso que acaba por levá-la à prisão.
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2

CENA 4 - (Lacie é presa e quebra os protocolos sociais. Cena retirada da série


Black Mirror, no episódio Queda Livre, 2016).

Apesar de estar presa fisicamente, Lacie encontra libertação do sistema em


que esteve por tanto tempo aprisionada, e vê na privação de liberdade física a
possibilidade da liberdade mental/emocional e, por que não, a moral em que vivia. É
importante lembrar que o personagem de 1984 também é levado preso pela Polícia
das Ideias, ao crer estar conspirando contra o partido e confiar nas pessoas erradas
e acaba sendo descoberto e torturado.
Contudo, sua prisão culminou não na libertação mental de Winston, como
Lacie, mas no seu aprisionamento psicológico. Ele só foi liberado quando,
finalmente, aderiu à ideia de amar ao “grande irmão” e a defender o Partido de todas
as ameaças que, alguém com ele foi um dia, poderia ser ao governo. “Mas estava
tudo bem, estava tudo certo, a batalha chegara ao fim. Ele conquistara a vitória
sobre si mesmo. Winston amava o Grande Irmão.” (ORWELL, George, 1984, p.
346).

4. A MULTISSEMIOSE, O LIMITE DA CONSCIÊNCIA E A REALIDADE


APRESENTADA
A sétima arte, como também é conhecido o cinema, carrega em si mesma a
multissemiose, os diversos tipos de linguagem intrínsecas à sua criação
curiosamente começaram sem o uso das palavras em si. Com o cinema mudo, que
de mudo não tinha nada, as expressões faciais e gestos quase teatrais mostraram
ao mundo um novo jeito de contar histórias.
Essas histórias foram ficando cada vez mais sofisticadas na forma de serem
contadas, com cada vez mais recursos ligados ao roteiro, como a parte de literatura,
mas também a música, com a trilha sonora, a moda, nos figurinos que dão vida aos
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personagens, as artes plásticas, com o arranjo dos cenários e paletas de cores nos
tons certeiros conferindo o clima semiótico adequado ao ambiente.
Os textos multissemióticos apresentam, assim, muitos elementos como
imagens, ícones e desenhos em sua constituição, ou seja, são constituídos de várias
linguagens (modos e semioses). Em geral, esses textos informam através de
recursos visuais, além do texto verbal. Desse modo, os textos multissemióticos
podem apreender a linguagem verbal, visual, digital, sonora, entre outras.
Todos esses elementos já citados são tipos de linguagens relacionadas à
multissemiose, pois são as criadoras da linguagem multissemiótica. Tais elementos
nos entregam histórias com cada vez mais sensações imersivas e exige de nós
acessos a conhecimentos prévios, diversos e específicos, a fim de apreciar sua
criação na íntegra.
Junto ao frenesi e todas essas sensações eclodindo ao assistir a uma obra
cinematográfica, vemos também novos meios tomando espaço e democratizando o
acesso à cultura e ao cinema, com os streamings, plataformas online que permitem
assistir a filmes e séries sem sair de casa. Juntamente com os streamings, o formato
seriado ganhou mais visibilidade e um maior portfólio. O que antes só poderia ser
acessado nas telonas, hoje pode ser visto na palma da mão, com um smartphone.
Não por acaso a tecnologia é novamente citada como grande agente de
transformação social, capaz de mudar para melhor, ou não, o modus operandi de
uma sociedade inteira. Com o acesso à internet, acessamos também uma
linguagem não linear, experienciando a multissemiose dentro de múltiplas
plataformas (multimodalidade), textos, hipertextos, música, combinados ou
separados trazem novas linhas de conexão.

Todos esses multiprocessos se materializam através do acesso à tecnologia e


isso traz novas conexões cerebrais que permitem moldar, modificar e alterar ideias e
pensamentos que a linguagem linear, por sua própria natureza estruturalista e
binária, não permitiria.

Para ilustrar essas conexões e ainda conversar com o tema proposto nesta
monografia, trarei a obra de 1999, Matrix, que é anterior à Série Black Mirror,
analisada na seção anterior. Ela juntou-se a tantas outras obras de ficção científica
com foco em tecnologia. Filmes como: O vingador do futuro (1990), Exterminador do
futuro (1991),Os doze macacos (1995), O show de Truman (1998) são alguns
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exemplos dos audiovisuais que preenchiam as telonas. Não é coincidência que


todas essas obras foram lançadas com datas aproximadas. Há uma mística que
envolve o final de um século, e consequentemente o início de outro, junto às notícias
tecnológicas que também faziam parte do cotidiano, criaram a ambientação ideal
para criação desse tipo de narrativa.

Matrix (1999) é uma obra cinematográfica das diretoras Lana Wachowski e


Lilly Wachowski que estreou já na virada do século, o que ajudou na ambientação
externa às gravações. Neo, antes chamado senhor Anderson, vive pacatamente sua
vida, trabalhando em um escritório e, nas horas vagas, como hacker. Ainda que
ocupado por seus afazeres oficiais e extraoficiais, Neo sempre vivia atormentado
pelo vazio existencial e a sensação de não pertencimento, essa sensação que era
vivenciada mais nitidamente em seus sonhos.

O encontro de sua vida com Morpheus, provoca em Neo uma catarse ao


escolher tomar a pílula vermelha, que o liberta da mentira que o sistema contou para
manter seu estado de transe mental permanente. Morpheus mostra a Neo que tudo
o que ele pensava ser real não passava de um programa de computador articulado
para simular a realidade.

CENA 5 - Neo escolhe entre a pílula azul e a vermelha no filme Matrix, 1999. (Fonte:
https://jovemnerd.com.br)

Morpheus acredita que Neo é o “Escolhido”, ele seria o responsável por,


enfim, terminar com a guerra entre a humanidade e as máquinas, restaurando uma
possível vida em solo terrestre sem a mediação de um programa de computador.
Zion é o refúgio encontrado pela raça humana sobrevivente que conseguiu se
difundir do poder aprisionador das máquinas.

Contudo, no segundo filme da trilogia, Neo tem o segundo encontro que muda
novamente sua nova vida, ele encontra com o criador da Matrix, o "Arquiteto", que
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conta a ele que Zion e ele mesmo são programas criados para que a manutenção do
poder sobre os seres humanos continuasse cadenciada e controlada.

CENA 6 - Neo e o Arquiteto no filme Matrix Reloaded (2003) (foto retirada do site Pinterest)

Apesar de Neo saber que o Arquiteto dizia a verdade a respeito da Matrix e


dele próprio, acontece o que hoje a psicanálise chama de dissonância cognitiva 1 Neo
escolhe crer que ele é um humano e que vai conseguir salvar a raça humana junto
com Zion.

A manobra usada por Neo para convergir seu objetivo à nova realidade
apresentada, a dissonância cognitiva, se assemelha muito ao que Winston em 1984
denomina “duplipensar”. O duplipensar é a capacidade de abrigar, simultaneamente,
duas ideias contraditórias e crer em ambas.

O intelectual, ou seja o defensor do partido, sabe em que direção suas


memórias precisam ser alteradas (condicionamento, seleção/alteração das ideias)
em consequência, sabe que está manipulando a realidade, mas, graças ao exercício
do duplipensar, também se convence de que a realidade não está sendo violada.

1
Primeiramente descrita por Leon Festinger em 1957, a dissonância cognitiva é um conceito extremamente
importante para entender como as pessoas conseguem mudar de opinião e comportamento — muitas vezes
em pouco tempo, referindo-se a um mal-estar provocado por um conflito entre o que uma pessoa pensa, o que
sente e o que faz. É o caso, por exemplo, da pessoa que se vê como honesta, mas se pega mentindo para não
ter que dar maiores explicações.
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O indivíduo acredita nessa nova ideia, percebe a dissonância cognitiva, que


pode durar milésimos e consegue passar adiante.

“Defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra,


sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer a lógica
para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se um moralista,
acreditar que a democracia era impossível e que O Partido era o guardião da
democracia; esquecer tudo que fosse preciso esquecer, depois reinstalar o
esquecido na memória no momento que em que ele se mostrasse
necessário, depois esquecer tudo de novo sem o menor problema”.
(ORWELL, 18984, pág. 48).

A dissonância cognitiva é uma teoria da psicanálise que investiga como


“resolvemos” possíveis embates em nossos pensamentos, crenças e assim criamos
novas formas de eliminar a causa da dissonância entre as duas ideias opostas e
conviver com as novas, ou repaginar as antigas para que caibam nesse novo arranjo
mental.

“Portanto, para tentar funcionar corretamente, é necessário resolver


a dissonância, tratar de eliminá-la ou evitar as situações e
informações que possam aumentá-la: há que intentar reduzir a
dissonância por meio da autojustificação, da invenção de novas
razões ou justificações para apoiar nossa decisão ou ato”.
(Atahualpa Fernandez Marly Fernandez SOBRE A DISSONÂNCIA
COGNITIVA, O AUTOENGANO E A IGNORÂNCIA AUTOIMPOSTA
publicado 2014)
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Recentemente, acompanhamos nos noticiários grupos opositores ao governo


atual acampados por semanas na frente dos quartéis e monumentos com alguma
conexão com o militarismo. Essas manifestações, a princípio pacíficas mas cheias
de simbolismos referentes a um período obscuro, violento e de ditadura do país,
abre para um leque de discussões de como se chegou até esse ponto.

E a intervenção online do governo anterior foi crucial para o momento atual,


as fakes news espalhadas desde a primeira campanha, uma avalanche de
informações adulteradas para alimentar o imaginário dos apoiadores e resultar
nessa dissonância cognitiva, quando se questiona a forma e o resultado das
eleições brasileiras, ao mesmo tempo que no mesmo período da eleição passada,
quando o cenário favorecia o candidato apoiado, não se cogitou essa possibilidade.
Já com o cenário contrário ao de quatro anos atrás, o jogo mental foi criar novas
narrativas de fraude e espalhá-las.

“De fato, dos que não pensam como nós dizemos que não estão no
mundo real, quando o que queremos dizer é que não habitam nosso
modelo do mundo, que não compartem nossa visão de como são as
coisas. Dito de outro modo, como estamos cegamente convencidos
de que não há mais que uma maneira correta de ver a realidade - a
saber, a nossa – e totalmente persuadidos de saber o que passa
pela cabeça dos outros (até o ponto de fazer inecessária toda
comprovação ulterior), alçamos a mirada desdenhosa por encima
dos demais sem ver a superfície sobre a qual caminhamos.
(Atahualpa Fernandez Marly Fernandez SOBRE A DISSONÂNCIA
COGNITIVA, O AUTOENGANO E A IGNORÂNCIA AUTOIMPOSTA,
2014)

Neo e Winston partilham de uma realidade paralela que os aprisiona em suas


próprias ideias, o primeiro com a remota possibilidade de salvar os demais das
garras de Matrix, a retomada de consciência o faz perceber que, estando inserido
em uma realidade alternativa e ele próprio sendo parte dessa realidade, o faz
controlador e co-produtor dessa esfera irrealista, ele mesmo se nega a fazer parte e
consegue por exemplo parar uma bala no ar somente tomando a ciência que aquela
bala não seria real. Uma encenação da filosofia de René Descarte “Penso, logo
existo”, em sua mente, o projétil não era real, logo, sua materialização também
poderia ser diluída, descartada, desfeita, a anulação da existência física do tiro
disparado a ele era feita através de sua mente e materializada por ele. Neo
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conseguiu fazer acordos com as máquinas e, sacrificando-se a Zion pôde, enfim, ter
uma libertação verdadeira.

CENA 7 - Neo pára os projéteis do Filme Matrix Reloaded (2003) (Fonte:


https://medium.com/@romacostaoficial).

Já Winston não obteve sua tão desejada liberdade cognitiva e rebelião ao


Partido e ao Grande Irmão, mas libertou-se da prisão de enxergar com clareza o que
todos já estavam condicionados a não ver. De acordo com Saramago (1995, p. 204)
“A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.”
Winston juntou-se aos demais, amou o grande irmão.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, pudemos analisar como estão relacionadas à linguagem


multissemiótica e as narrativas distópicas, na medida em que nos oferecem
possibilidades de construirmos maneiras diferentes de narrar, de impactar o leitor/
espectador, oferecendo-lhe alternativas de mundos que, fora da multissemiose, seria
mais difícil materializar. Assim, pudemos perceber como as ‘ferramentas’ de
construção das obras não realistas funciona como alegoria para compreender a
nossa realidade.

Partindo da obra 1984 como ponto de partida, notamos a construção de um


modelo distópico complexo de sociedade, mas com camadas internas de reflexão
que anunciavam um futuro encharcado de tecnologia, como uma espécie de
presságio dos tempos atuais. Se percebermos atentamente, constrói-se uma
alegoria em que soa um alerta social em que a tecnologia passa a atravessar todos
os âmbitos da vida, nem sempre de maneira positiva.

No decorrer do desenvolvimento da pesquisa, foi ficando claro como a


linguagem costura ficção e ‘vida real’, uma perpassando pela outra. Assim, a
temática da vigilância constante vista nas três obras explorou aspectos do
comportamento do ‘vigiado’, que só apareciam quando o indivíduo era posto nessa
condição. Dessa forma, pudemos perceber que não foram raras as vezes em que
esses sujeitos tendiam a mudar seu comportamento para se adequar ao olhar do
vigilante.

A temática da vigilância constante pulverizou-se para outros modais. No


episódio “Queda Livre”, da série britânica Black Mirror, a personagem principal,
Lacie é vigiada constantemente, mas por um mecanismo que hoje utilizamos
diariamente, que é a rede social. Claro que, como um recorte distópico da realidade,
a rede social usada no episódio estabelece muito mais que status para Lacie,
regendo muitas áreas de sua vida e subsistência. Ainda que, num primeiro
momento, a vigilância e o controle ali sejam vistos como exagero, percebemos um
fio de conexão com o que experimentamos na realidade atual.

Percebemos também que, nas obras analisadas, a política e poderes


totalitários estão fazendo uso dessas ferramentas tecnológicas como cerceadores e
controladores sociais, utilizando a opacidade que as telas trazem às figuras que as
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usam para se pronunciar, para levar recados e espalhar, ora subliminarmente ora
explicitamente, notícias distorcidas, alteradas ou falsas, que auxiliam na manutenção
do poder, por sua ampla divulgação e a pouca verificação dos fatos. Com isso, as
figuras de poder conseguem levar suas ideias para mais pessoas, e nem sempre
“mostrando a cara”.

Em Matrix, por exemplo, o uso da tecnologia como plano de fundo para


narrativas que denunciam as mazelas humanas foi levado a outro patamar. Nesse
caso, lançou-se mão da tecnologia para falar da própria tecnologia, isto é, a
metalinguagem foi usada para denunciar o quanto somos dependentes dessa
mesma tecnologia de que hoje somos reféns.

Além do uso da tecnologia, Matrix também foi analisado para pensar em


como a manutenção do poder materializa-se de muitos modos. Mesmo sabendo ser
um programa, o personagem Neo persiste na ideia de salvar a humanidade que
resta em Matrix e, assim, o duplipensar e a dissonância cognitiva foram conceitos
usados para auxiliar na busca do entendimento desse mecanismo semântico de
defesa, criado por nosso cérebro na tentativa de ficarmos satisfeitos com nossas
escolhas, mesmo que elas vão de encontro a convicções e crenças por nós
adotadas.

Nesta pesquisa, para além das maravilhosas obras revisitadas, pude


perceber o quanto nossa expansão de conhecimento através das muitas novas
leituras, e também das conexões com outros pensamentos e pessoas, pode
enriquecer minha percepção e trazer uma nova leitura das obras.

Sendo assim, como uma futura professora, não pude deixar de pensar como
essas novas abordagens a respeito das obras ficcionais despertaria a curiosidade
dos estudantes, de forma individual e coletiva, abrindo possibilidades de serem
realizadas palestras, trabalhos audiovisuais, de modo que esses sujeitos-aprendizes
pudessem associar a narrativa que recebem como alegoria das suas próprias vidas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENTIVOGLIO, Julio. O futuro das utopias e das distopias em tempos presentistas.


Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 46, p. 390-404, set./dez. 2020.. Acesso em: 9 jan.
2023.

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espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda, 1992. 238 p.

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DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia Rego. Rio de
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FERNANDEZ, Atahualpa ; FERNANDEZ, Marly. Sobre a dissonância cognitiva, o


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Editora Vozes Ltda, 1975. p 262 .

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SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
3
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Episódios:

Queda livre. Dir. Joe Wright. House of Tomorrow, 2016. Netflix. Web. Acesso em:
Agosto 2022

Matrix. Dir. Lana Wachowski e Lilly Wachowski. Village Roadshow Pictures, Silver
Pictures e Warner Bros. Pictures, 1999. HBO max. Web. Acesso em: Dezembro
2022/ Janeiro 2023.

Matrix Reloaded. Dir. Lana Wachowski e Lilly Wachowski. Village Roadshow


Pictures, Silver Pictures e Warner Bros. Pictures, 2003. HBO max. Web. Acesso em:
Dezembro 2022/ Janeiro 2023.

Matrix Revolution. Dir. Lana Wachowski e Lilly Wachowski. Village Roadshow


Pictures, Silver Pictures e Warner Bros. Pictures, 2003. HBO max. Web. Acesso em:
Dezembro 2022/ Janeiro 2023.

Expresso do Amanhã. Dir. James Hawes e Scott Derrickson. Netflix, 2020. Acesso
em: Janeiro 2023.

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