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Este livro traz importantes avanços nos debates que têm congregado vários gru-
pos de pesquisa dedicados à discussão e aos avanços teórico e metodológico das ideias
gestadas por Bakhtin e seu Círculo. Desta vez, tais ideias – e debates! – inspiram a
área de Aquisição da Linguagem e iluminam a busca não só pelo entendimento dos
processos sócio-históricos, dialógicos, como também os recortes epistemológicos e
metodológicos que envolvem os fenômenos que regem a aquisição/aprendizagem da
língua(gem). É, de fato, como afirmam as autoras do capítulo “Aquisição da linguagem
e estudos bakhtinianos do discurso” (Alessandra Del Ré, Luciane de Paula e Marina
Mendonça), uma obra inédita, pois proporciona ao leitor um desfile harmônico de
vários ângulos das possibilidades de inspiração da teoria bakhtiniana. As autoras
frisam que não pretendem “aplicar uma teoria”, mas apropriadamente “vislumbrar
[...] possíveis compreensões dialógicas acerca do fenômeno ocorrido no processo de
aquisição da fala das crianças”.
O leitor tem, assim, neste volume, contato com relevantes perspectivas argu-
mentativas, que trazem o melhor dos debates suscitados pela reflexão das ideias de
Bakhtin e do Círculo. Em cada capítulo do livro, apresenta-se uma nova faceta, um
novo desafio trazido pelo fenômeno a ser tratado, uma nova contribuição teórica e
metodológica é gerada pelo desafio do dado, e o leitor é brindado com estimulantes
discussões sobre aspectos da teoria. Muito embora o corpo teórico bakhtiniano seja
abordado de modo bastante integrado e os temas sejam os mesmos em algumas das
análises dos fenômenos eleitos, não esperem redundâncias e repetições desnecessárias
no tratamento dos conceitos: as organizadoras/autoras conseguiram arregimentar
trabalhos, escrituras e olhares singulares que compusessem uma harmonia entre os
capítulos, um todo coeso, sem fugir ao embate e a posturas por vezes conflituosas.
Os temas bakhtinianos estão lá, tratados de maneira viva, contextualizada.
Aprendemos que, dentro da relativa estabilidade do estilo escolar (que nasce dentro
dos gêneros discursivos), mostram-se marcas do sujeito. Aprofundamos nosso enten-
dimento sobre o presumido e o percebido ou realizado por palavras, sobre a intrin-
8 A linguagem da criança
Damo-nos conta, ao longo do que nos mostram os capítulos do livro, que a marca
do singular é o ato único do sujeito que enuncia; assim como, nas contrapalavras do
outro, fica difícil desvincular a singularidade da alteridade e a constituição dialógica
da subjetividade. Repetindo as palavras de Geraldi,3
brasileiras, normalmente usado para denotar não só o cachorro, mas um grupo maior
de animais de quatro patas, traz marcas de vozes, de situações, de diálogos dos quais
a criança e seus interlocutores participam. Vozes, situações e diálogos esses que nem
sempre são audíveis e visíveis nos enunciados do sujeito-criança.
Vemos que os conceitos de excedente de visão, exotopia (ou seja, distância) e
acabamento explicam a necessidade fundante do outro, o qual é responsável pela criação
da “minha” individualidade; que, em consequência, a visão de “sujeito” é aquela do
sujeito inacabado, por vir, não consciente aprioristicamente e que, por sua inserção na
cadeia dialógica, é necessariamente “responsável”, isto é, quem exerce inexoravelmente
a “responsividade”; que o signo, ideológico por excelência, é que decorre das relações
individuais – e não o contrário.
Uma das relevantes reflexões que a obra nos dá a ver é que a pouco convin-
cente dicotomia aquisição/aprendizagem (aquela sendo um processo inconsciente
e esta dependente de ensinamento, seja formal, seja natural) é convenientemente
desfeita no contexto do estudo do bilinguismo sob a ótica bakhtiniana. Dando
um curso diferente à distinção aquisição/aprendizagem, cunhada nos anos 60
do século passado para distinguir fatores fortemente fincados em postulados
mentais, de cognição, biológicos e, por vezes, behavioristas, os trabalhos aqui
presentes optam pela coexistência – se não pela neutralização – entre os termos.
Com efeito, a língua estrangeira impõe reorganizações para o sujeito, o que pode
levar a deslocamentos identitários e à desestabilização do que pareceria fixo; a
constituição do sujeito, que se dá na e pela linguagem, faz com que tomem corpo
outras visões de mundo a partir de uma segunda língua e do vínculo forte entre
língua e cultura nesse processo.
A rica exposição e o estimulante debate trazido à baila pelas reflexões teóricas
suscitadas pela obra mostram-se no desfilar de personagens atuantes, cujo recorte
linguageiro trazido pela eleição metodológica, compatível com a filiação teórica, ofe-
rece vivacidade e sabor aos episódios dialógicos instanciados. Testemunhamos as ricas
interações dialógicas de que participam, além dos adultos, respectivos interlocutores, o
menino brasileiro de 5 anos aprendendo espanhol em uma escola bilíngue, que baila
entre deslocamentos identitários das duas línguas; a menina de 2 anos, imersa em
duas línguas (português brasileiro e francês) simultaneamente, que traz, junto com
a mãe, a brasilidade inconfessa roubada de diálogos anteriores; a menina brasileira
de 2 anos que insiste em marcar o plural de maneira inesperada, produzindo formas
na contramão dos resultados de outra pesquisa gramatical, que mostra que a criança
naquela idade já distinguiria/processaria tais formas como agramaticais; duas meninas
de 2 anos (uma delas a mesma dos plurais malcomportados), inseridas numa comu-
nidade de fala em português brasileiro, participantes de jogos de nomear e de narrar
com seus interlocutores.
10 A linguagem da criança
fases dos jogos da própria criança, para posterior mapeamento sintático. Aliás, diga-se
de passagem, a busca de marcas de interação na constituição gramatical das línguas
tem se revelado na tradição das gramáticas funcionalistas e, mais recentemente, em
versões de gramáticas cognitivas, gramáticas de uso e modelos de fonologias de uso.
Talvez essa possa ser uma nova perspectiva que se abre para os estudos bakhtinianos
e modelos gramaticais.
A segunda observação refere-se à grande referência linguística feita por Bakhtin
e o Círculo a que chamam de entonação. Principal materialização da dialogia, da res-
ponsividade/responsabilidade, da orientação valorativa ou apreciativa da “palavra” dos
sujeitos, o termo tem sido tratado, nos estudos bakhtinianos, de maneira naturalizada,
sem qualificações, apesar do volume relativamente extenso dos estudos da prosódia
(da qual a entonação é parte) hoje. As instanciações sobre a “entonação”, presentes na
grande maioria dos estudos bakhtinianos, apontam, na verdade, para uma gama de
fenômenos que vão desde as qualidades e modulações de voz, passando pela própria
entonação, além de fenômenos rítmicos, até os potenciais significativos e estruturais de
altura, volume e duração. O tratamento mais qualificado dos fenômenos prosódicos,
tão centrais na reflexão bakhtiniana, enriqueceria ainda mais as abordagens atuais de
tão profícua teoria.
Ester Scarpa
Notas
1
2010.
2
2010, p. 142.
3
2010, p. 83.
4
1983.
Bibliografia
BRUNER, J. Child’s Talk: Learning to use language. New York: WW Norton & Co Incorporated, 1983.
GERALDI, J. W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.