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O Corpo Da Mulher Como Campo de Batalha Matei Visniec
O Corpo Da Mulher Como Campo de Batalha Matei Visniec
Cena 1:
Kate entra. Dorra se mantém imóvel em uma cadeira. Ela olha
para o vazio.
Dorra: ...
Kate: Ou você pode ir sozinha, se quiser.
Dorra: ...
Kate: Faça como tiver vontade.
Dorra:...
Kate: Eu vou abrir uma janela
Sente o cheiro da primavera?
Cena 2:
Kate entra no quarto de Dorra.
Kate: Ficha de observação número um. O sujeito sofre de uma
neurose traumática. Traumatic Neurosis. Traumatische
Neurose. Nevrose Traumatica. A causa dessa neurose
traumática é o estupro que o sujeito sofreu há
aproximadamente duas semanas. Aparentemente, não houve
lesão neurológica. Estado do sujeito: confusão mental,
prostração, paralisia traumática. O sujeito não responde aos
estímulos do mundo exterior. Como se obstina em não
responder às minhas perguntas, deduzo que compreenda tudo
o que eu lhe digo.
Cena 3:
Dorra: ...
Cena 4:
Dorra: Eu te
odeio. Eu te odeio.
odeio. Eu
Eu te
te odeio.
odeio. Eu
Eu te
te odeio.
odeio. Eu
Eu te
te odeio.
odeio. Eu
Eu te
te
odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te
odeio. Eu te odeio...
Não acredito que o tempo cure tudo. O tempo só cura as
feridas curáveis e pronto. O tempo só faz o que ele pode fazer
e pronto. Nada mais do que isso.
Não, eu não posso te contar o meu sofrimento.
Não, eu não acredito que podemos contar tudo.
Eu não acredito que se possa entender tudo.
Eu não acredito que tem um sentido em tudo que contamos.
Eu não acredito que tem um sentido no que eu estou dizendo.
Cena 5:
Kate: Ficha de observação número dois.
O sujeito sofre de uma alteração do eu.
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Cena 6:
Kate (para o público): O novo guerreiro dos Balcãs estupra a
mulher do seu inimigo étnico pra lhe dar assim um golpe de
misericórdia. O corpo da mulher é o campo de batalha. Em
nenhum outro lugar o ódio se manifesta de uma maneira tão
violenta quanto nesse “novo” campo de batalha. O novo
guerreiro não se expõe às balas, às granadas, morteiros, aos
tanques. Ele só se expõe aos gritos das mulheres. O novo
campo de batalha do novo guerreiro: o corpo da mulher do
antigo vizinho, o corpo da mulher do velho amigo de escola, o
corpo da mulher do seu próximo (semelhante) que ele deve ter
chamado de “irmão” durante quase meio século.
A força que obriga as etnias a confraternizar: bombas-relógio.
Esta é a verdadeira catástrofe dos Balcãs. Uma eterna
frustração nacional. A desforra freudiana dos povos que nunca
tiveram um país. O corpo da mulher como campo de batalha:
onde os combatentes se jogam pro golpe final.
Nos dias de hoje, nas guerras étnicas, o estupro é uma forma
de (blitzkrieg?)
inimigo de uma“guerra-relâmpago”.
maneira mais eficazNada podeo desestabilizar
do que estupro da suao
mulher.
Para um homem o corpo da mulher encarna a resistência.
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Cerca
declaramdeque
metade das que
os homens mulheres que pudemos
as estupraram entrevistar
moram na mesma
vila ou em vilas vizinhas.
Quase um quarto das mulheres entrevistadas é capaz de dar o
nome ou os nomes dos seus agressores.
Parece que muitas mulheres casadas com homens de outras
etnias foram estupradas por agressores da mesma etnia delas
como forma de punição pelo casamento misto.
Para o novo guerreiro, o estupro da mulher do seu inimigo tem
o gosto de uma vitória completa.
O novo guerreiro estupra para quebrar a resistência. Ele sabe
que está dando um golpe fatal.
Antes do confronto cara a cara, o guerreiro interétnico busca
destruir as fontes de vitalidade do seu inimigo. E ele conhece
essas fontes.
trabalho, muitasPorque ele foi vizinho
vezes frequentou do dele,
a casa inimigo, amigo
conhece de
todos
os seus familiares e todos os seus hábitos.
Resumindo, sendo irmão do seu inimigo, o guerreiro sabe que
as mulheres que o rodeiam são ao mesmo tempo a sua fonte
de vitalidade e o seu ponto fraco.
Os combatentes não estupram por prazer ou frustração sexual.
Cena 7:
Kate entra. Dorra se mantém imóvel na sua cadeira.
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: ...
Kate: Sou eu, Kate.
Dorra: ...
Kate: A gente acendeu a lareira do salão.
Dorra: ...
Cena 8:
Dorra (para o público):
À noite, depois de beber com os amigos, o homem dos Bálcãs
fica subitamente melancólico. A sua alma está ferida. Grandes
questões metafísicas começam a torturar-lo, assombra-lo. Você
não sabe nada de história, meu bem. Não, ela não sabe nada
mesmo. Ela não consegue entender que o seu homem seja
tomado por uma melancolia ancestral. Que de repente começa
a se perguntar sobre o sentido da existência. De onde viemos?
Pra onde vamos? Porra, o mundo não faz sentido.
Depois de esvaziar várias garrafas de cerveja com seus
amigos, o homem dos Bálcãs fica desesperado pela fragilidade
do sentido da linguagem. Ele mija e chora. Mija lágrimas de
angústia da dor moral, da impotência da raça humana diante
do grande mistério cósmico.
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transcendental,
mulher porque cósmica... Eleédeita
esse peito tão aquente,
cabeça tão
no peito da sua
macio, tão
acolhedor lhe faz lembrar da sua mãe... Ah... A sua mãe, o
único ser no mundo que sempre o compreendeu, sempre o
amou, sempre confiou nele... Ele procura nos braços da sua
mulher, que o atormenta, o ninho seguro que ele tinha nos
braços da sua mãe. E ele sangra na sua alma porque nunca
mais viu sua mãe desde o casamento da irmã, porque a mãe
envelheceu, porque ela mora longe, porque ela já morreu há
dois anos, porque ela morreu há dez anos, porque ela morreu
há dois anos, porque ela o abandonou quando ele tinha só
cinco anos de idade...
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Cena 9:
Dorra, Kate.
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: ...
Kate: Eu queria muito falar com você, Dorra.
Dorra:...
Kate: Eu acho que a gente podia se aproximar um pouco
mais...
Dorra: ...
Kate: Amanhã será o dia mais longo e anoite mais curta do
ano...
Dorra: ...
Kate: É o solstício de verão.
Dorra: ...
Kate: Vai ter uma festa...
Dorra: ...
Kate: Todo mundo vai pra beira do lago.
Dorra: ...
Kate: Se você quiser podemos dar uma volta no lago.
Dorra: ...
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Kate: É, eu moro em Boston, mas não vou voltar tão cedo pra
Boston.
Dorra: Cinco. Foram cinco. Cinco! Cinco? Eles eram cinco.
Cinco homens em cima de mim.
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Bósnia. Assim
equipes de que me adisseram
especialistas que eu
abrir as valas deviame
comuns ajudar as
veio na
hora a imagem do meu avô desenterrando as suas pedras. Na
minha família somos todos escavadores natos. Mas eu
precisava desenterrar cadáveres.
Cena 11:
Dorra, Kate.
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: Você mentiu pra mim.
Kate: Eu nunca menti pra você, Dorra.
Dorra: Você não precisa de mim.
Kate: Claro que preciso.
Dorra: Você não precisa de mim.
Kate: Eu preciso de você, Dorra.
Dorra: O que é que você quer saber?
Kate: Eu não sei.
Dorra: O que mais você quer entender?
Kate: Sei...
Dorra: Porque eu descobri que Deus existe, Kate.
Kate: Sei.
Dorra: E eu odeio ele. Odeio. Eu odeio tanto que eu não posso
morrer. (para Deus) Antes eu não acreditava que o Senhor
existia. Mas depois, eu pensei, não faz sentido tanta
atrocidade a não ser que o Senhor se alimente dela. Mesmo
sem ter fé, eu te odeio. Eu te odeio.
Não, Senhor, você não pode nos defender daquele que é mau.
Não, Senhor, você não pode nos dar o pão nosso de cada dias.
Não, Senhor, você não pode nos perdoar. Nós não pedimos o
seu perdão, porque nós que não podemos te perdoar.
Não, Senhor, nós não aceitamos a tua vontade, porque a tua
que também não existe mais, porque a tua casa, Senhor, agora
é a casa dos mortos.
Não, Senhor, os malvados (perversos) jamais serão punidos.
Kate: O quê?
Dorra: Você sabe que eu sei como eu vou morrer. Mas ainda
não decidi quando eu vou morrer. Então, e porque eu gosto de
você, eu vou contar só pra você, quando eu vou morrer. Um dia
antes...
Cena 12:
Ficha de observação número ....
O sujeito saiu bruscamente do seu estado de prostração. Isso
não quer dizer que tenha melhorado. Ele acerta as suas contas
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O sujeito alterna
a mergulhar a agressividade
em si. com momentos
Essas instabilidades são antesem
de que
tudo,volta
um
bom sinal, sinal de que ele é capaz de desenvolver uma nova
relação com o mundo exterior. Ainda é muito cedo para lhe
fazer perguntas sobre as circunstâncias que provocaram o
trauma. Nesse estágio, a sua memória só pode ser testada por
meio de exercícios de paciência.
Cena 14:
Kate: bom dia.
Dorra: ...
Kate: Tudo bem, Dorra?
Dorra: ...
Kate: Olha, aqui embaixo na sala tem uma televisão, você pode
assistir se quiser.
Dorra:
Kate: Eu trouxe fotos de Boston. Você quer ver?
Dorra:
Kate: Posso te mostrar quando você quiser.
Dorra: ...
Kate: Quer que eu te mostre agora?
Dorra: ...
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Kate: Sim...
Dorra: Você ouviu o que eu falei?
Kate: Sim...
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Cena 14:
Kate: Pra abrir uma vala comum, existem técnicas. Então eu fiz
um treinamento para escavação de valas comuns. Não dá pra
escavar uma vala comum de qualquer jeito. A escavação de
uma vala comum é, antes de tudo, um ato jurídico. O
escavador está na mesma posição daquele que descobre um
assassinato. Ele deve isolar o corpo da vítima (ou melhor, das
vítimas) e ao mesmo tempo não tocar em nada. Se o
escavador não está corretamente preparado pra esse trabalho,
ele corre o risco de não saber ler com exatidão as provas que
estão bem na sua frente.
O escavador de vala comum descobre ao mesmo tempo o
corpo da vítima e, muitas vezes, o corpo do delito do crime, por
exemplo, as balas, se a vítima foi morta por balas. Mas todos
os objetos próximos da vítima dentro da cova tem um valor
jurídico porque podem servir para a reconstituição do crime e
do contexto no qual o crime foi cometido. Portanto, a
responsabilidade do escavador é enorme. Ele não deve em
hipótese alguma separar o corpo dos objetos pessoais que
podem ajudar na identificação da vítima. O escavador deve
fazer um inventário de absolutamente tudo – 247 cartuchos, um
dínamo de bicicleta.... - , nos mínimos detalhes, sem estragar o
material encontrado.
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de psicóloga
tornei com as equipes
uma escavadora de escavadores
também. de covas.
Eu, Kate Mcnoil, E me
graduada
pela Universidade de Harvard, especialista em neurose
obsessiva e em tratamento psicanalítico, autora de uma tese
de doutorado de 770 páginas sobre Freud e seus conceitos de
narcisismo primário, casada e mãe de duas filhas, eu, Kate
McNoil, deveria ter vergonha, porque já fazem seis meses que
não vejo minha família e não tenho nem tempo de pensar nela
porque na minha vida agora tem uma outra urgência: escavar,
escavar, escavar as valas comuns da Bósnia em nome dos
Estados Unidos, dos Aliados, da civilização ocidental, da ONU,
da justiça, da verdade, da memória e do futuro. Isso tudo é um
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peso enorme nos ombros, Kate McNoil, mas você não vai mais
conseguir recuperar a tua paz se não entender o porquê.
Cena 15:
Dorra: Eu quero abortar! Eu quero me livrar disso.
Kate: Tá bom Dorra.
Dorra: Agora...
Kate: Sim Dorra.
Dorra: Já.
Kate: Como você quiser... (Pausa.) Mas tem que esperar um
pouco.
Dorra: Eu não quero esperar. Eu tô suja. Eu tô suja com esse
feto dentro de mim...
Kate: Sim.
Dorra: Kate, eu não quero que ele comece a mexer.
Kate: Ele não vai mexer.
Dorra: Ele já tá mexendo! Eu tô sentindo. Eu sinto ele
crescendo. Eu não quero... Eu preciso me livrar disso.
Kate: Vamos fazer isso daqui a um mês...
(Pausa)
Kate: ...meu avô nos contava a história de sua chegada aos
Estados Unidos, sempre, duas ou três vezes por ano, quando
toda a família se reunia, no Natal, Ano-Novo, na Páscoa...
Me diga vovô, como o sr. Chegou na América? // Tomamos um
grande navio // Grande assim? // Não, maior ainda.// Do
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Cena 16
Dorra: Essa criança não tem pai.
Kate: Claro que tem.
Dorra: Essa criança não tem nome.
Kate: Tem sim. Ela vai ter o teu nome.
Dorra: Ela não vai ser minha nunca. Eu não quis essa criança.
Ninguém quis. Essa criança não tem mãe nem pai. Ela não
existe, Kate!
Kate: Existe sim. Ela está crescendo dentro de você. Você é a
mãe.
Dorra: E o pai? Quem é o pai? Se ela me perguntar quem é o
pai dela, o que eu respondo? O pai é quem?
Kate: A guerra. O pai dela é a guerra.
Dorra: Eu nunca vou poder dizer isso. Como vou dizer isso pra
uma criança? Como dizer pro seu filho, sabe meu amor, o teu
pai é a guerra. Ela não vai entender.
Kate; Um dia ele vai entender.
(Pausa.)
Dorra: Kate!
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Kate: Sim?
Dorra: Ele mexeu!
Kate: Tem certeza?
Dorra: Ele esta mexendo.
Kate: Eu vou ficar aqui com você.
Dorra: Ele come demais! Tá sempre com fome! Esse
animalzinho tem fome o tempo todo. Ele fica me roendo, me
devorando por dentro. Eu estou escutando ele me
mastigando...
Tempo
(Dorra acorda bruscamente.)
Dorra: Eu vi ele!
Kate: Como você viu ele?
Dorra: Na escuridão!
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Kate: Quando?
Dorra: Agora mesmo. Ele estava curvado sobre mim.
Kate: Como ele era?
Dorra: Ele não tinha rosto.
Kate: Não tinha rosto?
Dorra: Não, só uma...
Kate: Uma...
Dorra: Uma boca... Ele era só uma boca escancarada...
Cena 17:
Dorra sozinha, na escuridão.
Dorra: Eu estou aqui... Quem é você? Sou eu. Quem? Eu. Eu
não estou te vendo. Está sim. O que você quer? Vai embora!
Eu estou com fome. E daí? Você tem que me alimentar . Você
já comeu toda a minha carne. O que você quer comer ainda?
Você tem que me alimentar. Eu te dei todo o meu sangue. O
que mais você quer comer ? Eu tô com fome. Você é a minha
mãe.
queriaVocê tem mãe.
ser tua que me
Eualimentar. Eu não
nunca serei tua sou
mãe.tua mãe.não
Você Eu tem
não
mãe. Tenho sim, a minha mãe é você. Você tem que me
alimentar. Eu não tenho mais nada. Não tem mais nada pra
comer dentro de mim. Eu estou vazia. Até minha alma está
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Cena 18:
Dorra: Você não existe. Claro que existo. E é você que vai me
pôr no mundo. Não, eu não vou te pôr no mundo. Vai sim, você
tem obrigação de me pôr no mundo. Não, não tenho a
obrigação de pôr você no mundo. Você não tem escolha. Você
é minha mãe. E uma mãe tem que parir os seus filhos. Você
não tem o direito de nascer. Você é filho da guerra. Você não
tem nem pai nem mãe. Você é fruto do horror. Olha, se você
não me parir, eu vou gritar.
(O grito horrível da mulher estuprada. Dorra se assusta com o
próprio grito. Kate entra.)
Kate: Eu estou aqui.
Dorra: Eu não quero parir ele.
Kate: Dorra...
Dorra: Eu não quero parir... Ele tá me pedindo pra nascer, mas
eu não quero.
Kate: Dorra, se você não quer essa criança, dá ela pra mim.
Dorra: Tá bom, eu te dou.
Kate: Tá bom, eu quero ela.
Dorra: Mas pega logo.
Kate: Eu não posso pegar ela agora. Mas se você parir, eu fico
com ela na hora.
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Dorra: Não, pega agora. Se você quer ele, pega logo de uma
vez.
Cena 19:
Kate: Se você estiver numa floresta perto de Srebrenica e
encontrar numa clareira, espalhados por dez metros quadrados
sobre a relva, os seguintes objetos:
247 cartuchos.
Um dínamo de bicicleta.
Uma chupeta.
Um capacete das Nações Unidas com as letras NU quase
apagadas.
Pedaços de uma maca.
Três maços de cigarro.
Onze latas de cerveja croata vazias.
Um despertador quebrado.
Um tubo de pasta de dente amassado.
3,5 metros de arame farpado.
Uma coronha de fuzil.
Um saco plástico cheio de batatas estragadas.
Uma camiseta com o nome ELVIS escrito.
Um cinto militar de couro, todo manchado, sem os ganchos pra
pendurar as granadas de mão.
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Kate: É.
Dorra: Você começou a se sentir envergonhada de todo
procedimento de escavação, de tudo aquilo.
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Kate: Isso.
Dorra: E aí você pediu pra ser transferida pra um outro lugar.
Por exemplo...
Kate: Sim.
Dorra: Por exemplo, aqui, pra aplicar um novo método, o
método na psicoterapia das mulheres estupradas na Bósnia.
Kate: ( se recompondo) O meu pai... meu pai trabalhava para
um serviço de urgência do maior banco de órgãos dos Estados
Unidos. Tinha dias em que ele chegva só prá tomar o café da
manhã com a gente – Então, meu pai, o que você transportou
essa noite? Transportei um doador.. Um doador era algum
infeliz esmagado na estrada ou em qualquer outro lugar, e um
de seus órgãos seria rapidamente enxertado em algum outro
infeliz que não tinha baço, pulmão, fígado, rins, pâncreas...
coração..Olho... pele...sangue...medula...
Cena 20:
Dorra sozinha, na escuridão.
Dorra: Eu estou aqui. O que que você quer? Eu te alimentei. O
que você quer mais? Não sei. Eu não quero mais escutar você.
Eu te dei comida. Agora cala a boca. Eu não posso. Eu estou
com medo. Cala a boca. Me deixa em paz. Eu preciso
descansar. Eu estou com medo. Eu quero dormir. Eu não
quero mais te escutar. Eu queria que você me fizesse um
pouco
posso. de
Eu carinho.
já te dei Eu não posso
comida, agora techega.
fazer Estou
carinho.
comNão. Nãoe
medo
quero que você me faça carinho. Não posso. Eu não sei fazer
carinho. E eu também estou com medo...
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Cena 21:
Dorra sozinha. Kate entra.
Dorra: Por que você quer essa criança, Kate?
Kate: Porque sim.
Dorra: Você não pode mais ter filhos?
Kate: Claro que posso.
Dorra: então é porque você ama crianças?
Cena 22: (Ela fala para Dorra, mas ela não se dirige
diretamente
desconexo daà ação.)
Dorra; estamos num momento dessincronizado,
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Cena 23:
Dorra (Ela fala para Kate, mas não se dirige diretamente a ela;
estamos num momento dessincronizado da ação.): Como te
explicar, Kate, que eu odeio o meu país? Que eu não tenho
mais país? Que eu não quero mais voltar pra lá. Que eu não
acredito mais em Deus. Que tudo que eu quero é ficar longe
daquele lugar maldito, terrível... Eu não quero ver a minha
casa... Porque eu não tenho mais casa. Eu não quero mais
saber se a minha gente ainda está viva. Mesmo quando a
guerra acabar, aquele lugar continuará sendo maldito por muito
tempo. Ele ficará assombrado pelo ódio, pelos gritos das
vítimas e pela vergonha. As pessoas dali passarão anos e anos
quebrando a cabeça pra entender como tudo isso foi possível.
Eles não vão parar nunca mais de se perguntar as mesmas
coisas: Quem começou? Quem foi o mais cruel. Como eles
puderam, juntos ou separados, descer tão baixo...
(Pausa.)
Cena 24:
Kate (Uma carta na mão.):
Senhor Comandante.
Envio-lhe, como requerido, o relatório sobre a minha atividade
nesses últimos 14 meses na Bósnia.
Reitero rapidamente que fui membro da missão de avaliação
das necessidades médicas na Croácia e na Bósnia, que em
seguida fiz parte de uma das equipes encarregadas de
identificar as covas na região de Krajna e de Srebrenica, e que
a meu pedido, fui transferida mais tarde para um centro médico
da OTAN na Alemanha.
Confirmo que a partir do dia 09 de abril eu gostaria de voltar ao
meu trabalho na clínica de psicologia de Boston,
Massachusetts.
Agradeço a vossa compreensão.
Kate McNoil.
Cena 25:
Cara Kate,
Eu não sei muito bem o que vou fazer agora. Deixei pedidos de
Um dia, depois que você foi embora, saí pra dar uma volta no
lago.
Eu estava passeando e olhando a água e as árvores... Quando
de repente vi um aviso fixado numa árvore. Me aproximei e li o
seguinte texto:
“INFORMAMOS QUE ESTA ÁRVORE ESTÁ MORTA. ELA
SERÁ CORTADA. NO SEU LUGAR SERÁ PLANTADA
IMEDIATAMENTE, PARA A SUA ALEGRIA E FELICIDADE,
UMA NOVA ÁRVORE.”
Assinado: Serviço de Parques e Jardins.
Eu li esse texto uma, duas, três, várias vezes.
E foi aí então que eu decidi ficar com o meu filho.
Obrigada.
Um beijo.
Dorra.