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As Leis da Memória: entre a História, o Direito e o Esquecimento


Mariana de Moraes Silveira

Resumo
Este trabalho consiste em uma análise de alguns pontos de contato entre a história e o
direito. Ele se inicia com uma breve discussão teórica a respeito das tensas relações
entre história, memória e esquecimento, seguida de algumas considerações sobre o
atual estado da historiografia dita “pós-moderna”. Busca-se, a partir da crítica a essa
“história em migalhas”, para usar a expressão de Dosse, esboçar um papel social que a
história ainda possa desempenhar, mesmo em tempos de descrença em qualquer
projeto minimamente amplo. Utilizamos, para isso, as perspectivas de Koselleck e
Ricoeur. Finalmente, será feita uma análise crítica das políticas públicas brasileiras a
respeito dos arquivos (ou da ausência delas), informada por essa discussão teórica e
com ênfase na lei 8159, de 1990. Apesar de ser descrita, em sua ementa, como uma
“política nacional de arquivos”, acreditamos que tal “política” inexiste no Brasil. Nossa
hipótese é a de que, mais que um inocente descuido, trata-se de um mecanismo eficaz
para manter velados certos fatos, limitar as possibilidades de conhecimento do passado
e, assim, resguardar determinados interesses.

Jorge Luis Borges tece em Funes el memorioso1 uma narrativa que pode ser lida
como alegoria do trabalho do historiador. Trata-se da história de Ireneo, um indivíduo
que se esquecia de quase tudo, mas que, depois de receber uma pancada acidental na
cabeça, passa a registrar cada detalhe, minuciosamente, como se sua memória fosse
agora um espelho perfeito do real. Esse excesso de lembranças o torna incapaz de
articular sequer uma história, priva-o de qualquer capacidade de abstração e o condena
a viver o caráter irrepetível de cada instante, sem jamais apreender seu sentido. Em
certo ponto, afirma, descrente: “Minha memória, senhor, é como um depósito de lixo”.

1
BORGES, Jorge Luis. Funes el memorioso, Artificios. In: Obras completas. 1923-1974. Buenos Aires:
Emecé Editores, 1974.
2

Nietzsche já apresentara uma formulação filosófica para o mesmo problema, ao


considerar a experiência humana desprovida do esquecimento como algo
profundamente maléfico:
Toda ação exige esquecimento, assim como toda vida orgânica exige não
somente a luz, mas também a escuridão. Um homem que quisesse sentir as
coisas de maneira absoluta e exclusivamente histórica seria semelhante àquele
que fosse obrigado a se privar do sono, ou a um animal que só pudesse viver
ruminando continuamente os mesmos alimentos. É portanto possível viver, e
mesmo viver feliz, quase sem qualquer lembrança, como o demonstra qualquer
animal; mas é absolutamente impossível viver sem esquecimento. Ou melhor,
para me explicar ainda mais simplesmente a respeito do meu problema: há um
grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, para além do qual os seres
vivos se verão abalados e finalmente destruídos, quer se trate de um indivíduo,
de um povo ou de uma cultura.2

As fortes investidas de Nietzsche contra o historicismo, realizadas nesta Segunda


consideração intempestiva (também intitulada, significativamente, Da utilidade e da
desvantagem da história para a vida) são, para além de toda a polêmica que
levantaram e de todo o desconforto que, ainda hoje, suscitam nos historiadores, um
alerta fundamental. A tensão constante entre a memória e o esquecimento permeia
inevitavelmente a história, seja como campo do conhecimento, seja como campo da
vida social. Como ressalta Antonio Mitre, por vezes se faz necessário “aprender a
esquecer para recordar o sentido”3. Ou, para nos apropriarmos mais uma vez da
literatura, “para projetar um livro” – e a história é também um livro, também uma
narrativa, como discutiremos adiante – “[...] a primeira coisa é saber o que excluir”4, já
disse Italo Calvino.
Essa problemática permanece profundamente atual, em tempos de um certo
retorno ao historicismo, com uma historiografia marcada, em sua maior parte, por aquilo
que François Dosse chamou, em uma expressão instigante, de “história em migalhas” 5.
Tal produção se dá no contexto da dita, própria ou impropriamente, pós-modernidade. A
2
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. In: Escritos sobre História. Rio de Janeiro:
Puc Rio; São Paulo: Loyola, 2005. pp. 73-74. Grifos do autor.
3
MITRE, Antonio. História: memória e esquecimento. In: O dilema do centauro. Ensaios de teoria da
história e pensamento latino-americano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 27.
4
CALVINO, Italo. Todas as cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.269.
5
Ver: DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio;
Campinas, Unicamp, 1992.; e Idem. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate do
sentido. São Paulo: Unesp, 2001.
3

desconfiança na Razão e no projeto moderno levou à dissolução do sentido histórico.


Planos para o futuro são artigos raros em nossos dias, ao menos em seu sentido
amplo, de um projeto social. “Os historiadores perderam a ambição de uma história
global e pensam em termos de descontinuidades e estruturas, de ruptura e
fragmentação, em pleno processo de globalização”6, afirma José Carlos Reis. Segundo
esse autor, vivemos “uma ‘revolução conservadora’, sem sujeito e sem discurso”7, de
forma que a sociedade não consegue articular em linguagem as mudanças por que
passa. Tudo, inclusive o sentido, se dissolve em uma espécie de “lago presenteísta”.
Concomitante a essa hipertrofia do presente, observa-se um interesse cada vez
maior do público não-especializado pelo passado. Filmes de época, versões
romanceadas de episódios históricos, revistas ilustradas de história, comemorações de
efemérides, museus têm proliferado em todo o mundo. Trata-se de um aparente
paradoxo, face à crise epistemológica que vivem as ciências sociais em geral, e a
história em particular, após os golpes que sofreram de homens como Nietzsche, Freud,
Foucault, Derrida, Deleuze, e dos acontecimentos (o Maio de 68, a queda do muro de
Berlim), que as fizeram questionar a própria possibilidade de sua existência. Uma
análise mais atenta, porém, permite perceber que nada é mais compatível com o
projeto conservador da “história em migalhas” que essa expansão irrefreada e irrefletida
de simulacros do passado sobre o mundo social, em um movimento que já foi
chamado, com muita propriedade, de “auto-arqueologização”8 das sociedades
ocidentais. Clio9 se vê, assim, despida daquela que talvez seja sua mais nobre função:
a de articular de modo inteligível – e, por isso mesmo, inevitavelmente simbólico – o
vivido das sociedades humanas, de modo a fazê-las vislumbrar um horizonte mais
amplo e mais belo. Torna-se apenas mais um objeto de consumo, e pouco mais que
isso.
6
REIS, José Carlos. História & Teoria. Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de
Janeiro: FGV, 2006. p. 54.
7
Idem, p. 56.
8
MAIER, Charles, apud SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São
Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 11.
9
Refiro-me à musa grega da história, invocação freqüente entre os historiadores e título do primeiro livro
da História de Heródoto, considerado por muitos o “pai” dessa disciplina.
4

Ainda que falar em um papel unívoco e previamente determinado para a história


seja algo perigoso, que foi utilizado invariavelmente para fins antidemocráticos ao longo
do tempo, contentar-se com essa “mercantilização” é reduzir a história a uma
inaceitável irrelevância. Uma saída possível pode ser entrevista ao se aliarem as obras
do alemão Reinhart Koselleck e do francês Paul Ricoeur. Segundo Koselleck, o
trabalho do historiador se organizaria a partir de duas categorias meta-históricas:
espaço de experiência e horizonte de expectativa. O historiador, no presente, olharia
para o espaço de experiência, onde se encontra o passado, o vivido, o “substrato” de
sua profissão, buscando, a partir do próprio momento em que vive, articular um
horizonte de expectativa, um projeto de futuro10. Como se dá a passagem de uma
categoria para a outra? Por meio da narrativa, dirá Ricoeur: “o tempo torna-se tempo
humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e [...] a narrativa atinge
seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal” 11. Toda
narrativa histórica traz por trás de si um projeto político, por mais que se tente o negar.
Tecer narrativas sobre o passado – e confrontá-las umas com as outras, colocá-las em
disputa – pode ser, pois, uma forma eficaz de atuar sobre o mundo, desde que se
busque vencer a enorme distância entre a academia e a sociedade, tão bem
simbolizada na clássica imagem da “torre de marfim”. Uma história crítica deve, ao
escolher os elementos de sua narrativa, servir como uma espécie de guia, ainda que
inevitavelmente provisório, para o conhecimento do passado – o que nos remete
novamente à tensão entre lembrar e esquecer.
Essa questão se torna especialmente delicada no âmbito da política estatal a
respeito das instituições de memória, sobretudo dos arquivos, de que trataremos de
maneira mais detida. A formulação de critérios de escolha do que guardar e o do que
eliminar é, ai, longe de uma arbitrariedade, precipuamente um ato de poder. Por meio
desse “esquecimento institucionalizado”, absolvem-se e se condenam atores e
personagens históricos, criam-se e se impossibilitam determinadas representações do
mundo social, lê-se ou se torna inatingível o passado. Por outro lado, uma política

10
Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Espacio de experiencia” y “horizonte de expectativa”: dos categorias
históricas. In: Futuro passado. Para uma semantica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidos, 1993.
pp. 333-357.
11
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v.1. p. 85.
5

pública séria a esse respeito é indispensável, visto que a sua ausência poderia dar
ensejo a violações graves de direitos e garantias fundamentais, como a intimidade, a
ameaças à ordem pública e à segurança nacional, interpor obstáculos ao exercício da
democracia, em última análise. Ademais, há a questão fundamental da necessidade de
preservação, na luta hercúlea contra a ação destrutiva do tempo, verdadeiro e
incessante pesadelo dos historiadores. Um arquivo que tudo guarde, cujos limites
coincidam, ponto a ponto, como a memória de Funes, com a vida social, contudo, é
tanto inconveniente quanto inútil. Portanto, também aqui é necessário que se
desenvolvam mecanismos tanto de lembrar quanto de esquecer.
A Constituição Brasileira de 1988 contempla o assunto em dois momentos. No
primeiro, dentro do rol de garantias fundamentais de seu artigo 5º, postula-se a
legitimidade de qualquer cidadão, com isenção de custas judiciais, para propor ação
popular visando a anular ato que lese o patrimônio histórico e cultural. Os artigos 215 e
216 de nossa Carta Maior definem o que se entende por patrimônio cultural brasileiro e
determinam que ele seja preservado. Destaca-se o §2º do artigo 216, em que se
expressa a responsabilidade da administração pública sobre a gestão e o acesso a
documentos. Essa tarefa, entretanto, vem sendo exercida de maneira um tanto
“irresponsável” por nossos administradores. Há uma séria deficiência normativa a
respeito, como se pode depreender da Lei 8159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe
sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, objeto de uma leitura crítica a
seguir.
Primeiramente, a estrutura institucional dos arquivos brasileiros deve ser
problematizada. A vinculação do Arquivo Nacional ao Ministério da Justiça e, mais
recentemente, à Casa Civil expressa uma visão muito limitada acerca desse lugar de
memória (para utilizar a terminologia de Pierre Nora12), posto que enfatiza o papel
jurídico individual dos arquivos públicos, em detrimento de seu valor histórico e coletivo.
Confirmação clara disso se encontra na definição desse órgão dada pelo Decreto 11,
de 18 de janeiro de 1991, que, embora revogado, muito ajuda a compreender como o
Estado brasileiro lida com os arquivos:

12
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris : Gallimard, c1984.
6

Art. 24. Ao Arquivo Nacional, órgão central do Sistema Nacional de Arquivos,


compete executar a gestão, o recolhimento, a guarda, a preservação e a
restauração do acervo arquivístico da Administração Pública Federal, bem
como dos documentos privados de interesse público, garantindo acesso público
às informações neles contidas, com o objetivo de apoiar o governo nas suas
decisões político-administrativas, o cidadão na defesa de seus direitos,
divulgando o conteúdo de natureza técnica, científica e cultural, e incentivando
a pesquisa relacionada com os fundamentos e as perspectivas do
desenvolvimento nacional, além de acompanhar e implementar a política
arquivística do Governo Federal, visando racionalização e diminuição de custos
públicos.13

A defesa do governo e a diminuição dos gastos públicos são contempladas, mas, sobre
a história, nem uma palavra sequer. Isso nos leva a questionar se as definições que
“acentuavam o aspecto legal dos arquivos” são mesmo “antigas”, e se foi mesmo
superada a visão dos documentos como algo útil “apenas para estabelecer ou
reivindicar direitos”, como afirma Marilena Leite Paes14. Mesmo na Lei 8159 (esta ainda
em pleno vigor), a história só fará sua primeira aparição, tímida, no art. 8º, em que se
define o que são documentos correntes, intermediários e permanentes: “§3º:
Consideram-se permanentes os conjuntos de documentos de valor histórico, probatório
e informativo que devem ser definitivamente preservados”. No restante do texto, apenas
mais uma referência: “Art. 12. Os arquivos privados podem ser identificados pelo Poder
Público como de interesse público e social, desde que sejam considerados como
conjuntos de fontes relevantes para a história e desenvolvimento científico nacional”.
Um outro aspecto a se questionar é a multiplicidade de órgãos estatais
existentes para lidar com os arquivos. Além do próprio Arquivo Nacional, há o Conselho
Nacional de Arquivos (Conarq), o Sistema Nacional de Arquivos (Sinar) e o
recentemente criado Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo da Administração
Pública Federal (Siga). Se, por um lado, a desconcentração das funções do governo
permite que ele seja melhor exercido, por outro, pode levar à sua ineficácia, à
burocratização e a conflitos de competências. Esta hipótese se torna especialmente
plausível quando as definições e os limites de cada órgão não são muito claros, o que

13
Grifos nossos.
14
PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1997. p. 19
7

ocorre no caso brasileiro15. O fato de todos esses órgãos se subordinarem ao Arquivo


nacional atenua inegavelmente esse risco, mas não o elimina por completo.
Atos normativos mais recentes têm apontado para uma benéfica mudança de
postura em relação ao caráter histórico dos arquivos. O Regimento Interno do Arquivo
Nacional, reconhecido por uma portaria da Casa Civil em 2002, estabelece como
objetivos da instituição atuar por meio
da gestão, do recolhimento, do tratamento técnico, da preservação e da
divulgação do patrimônio documental do País, garantindo pleno acesso à
informação, visando apoiar as decisões governamentais de caráter político-
administrativo, o cidadão na defesa de seus direitos e de incentivar a produção
de conhecimento científico e cultural.16

Embora ainda seja forte a valorização do teor administrativo dos documentos, a simples
substituição do termo “acervo arquivístico”, que constava do já mencionado art. 24 do
Decreto 11, por “patrimônio documental” denota uma maior valorização da história e da
preservação de seus registros materiais. Movimento semelhante, e ainda mais
animador, pode ser observado na recente Resolução 27 do Conarq, de 16 de junho de
2008, que clama pela regulamentação de um dos dispositivos da Lei 8159:
Art. 1º O Poder Público, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, deverá, por meio de lei específica de arquivos, definir os critérios de
organização sistêmica da gestão arquivística de documentos públicos e dos
serviços arquivísticos governamentais, bem como a criação e a vinculação do
Arquivo Público e os mecanismos de difusão e acesso aos registros públicos,
em conformidade com o art. 21, da Lei Federal de Arquivos nº 8.159, de 1991.17

Como se pode ver, a preocupação com o acesso, com o público, com a função social
dos arquivos está cada vez mais explícita. O problema é que isso seja feito por meio de
espécies normativas de menor hierarquia e, conseqüentemente, menor abrangência e
mais fraco poder cogente.
Talvez possamos daí derivar nossa derradeira e mais séria crítica à Lei 8159,
vista como metonímia da política governamental brasileira sobre os arquivos. Suas
disposições são por demais genéricas, limitando-se a definir conceitos já firmados na
15
Ver, a título exemplificativo, as definições dadas pelo Conarq e pelo Siga, disponíveis em
http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=4 e
http://www.siga.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=3, respectivamente.
16
Disponível em http://www.portalan.arquivonacional.gov.br/Media/RegimentoInterno.pdf. Grifos nossos.
17
Disponível em http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from%5Finfo%5
Findex=21&infoid=245&sid=46. Grifos nossos.
8

arquivística, como as “três idades dos arquivos” (corrente, intermediário e permanente),


a reafirmar direitos constitucionalmente garantidos e a enumerar quais os arquivos a ela
submetidos. Trata-se, portanto, muito mais de uma “diretriz geral” que de uma “política
nacional de arquivos públicos e privados”, como descrita em sua ementa. Esta função
ficou delegada aos diplomas regulamentadores – que, em sua maioria, conservam a
generalidade e tampouco apontam para uma política em sentido forte e produtivo. Além
disso, quase duas décadas após a promulgação da lei, essa regulamentação ainda é
uma tarefa incompleta, como atesta a já mencionada resolução do Conarq. Isso traz
problemas para a aplicação prática da proteção ao patrimônio documental, situação de
descaso em que se perdem, a cada dia e sem critérios racionais, inúmeros
documentos, inúmeras fontes para futuros e atuais historiadores. Exemplo claro disso
pode ser visto no caráter oscilante das tabelas de temporalidade, instrumento
imprescindível ao ato de “esquecer com responsabilidade”, para as quais a lei não
define critérios muito precisos, salvo no caso de documentos sigilosos.
Em uma apropriação livre da proposta feita por Ulpiano Meneses no campo da
museologia, a da passagem de um teatro da memória a um laboratório da história18,
pode-se dizer que a ruptura a ser feita no campo da arquivologia é ainda mais radical,
pois os arquivos são vistos correntemente como algo menos que um teatro da memória,
como um mero repositório de meios de prova que eventualmente se fará necessário
invocar para efeitos jurídicos, como uma mera gaveta no escritório de um advogado ou
de um contador. São múltiplas e amplamente frutíferas as possibilidades de emergência
de questionamentos a partir dos itens desses acervos textuais, cuja publicação
acompanhada de discussão crítica, e, mais, convidando à sua feitura (e “refeitura”)
pode constituir um instrumento ímpar na formação de verdadeiros laboratórios da
história. Outra consideração sobre museus pode ser ampliada para os arquivos, o
chamado a uma atitude ativa frente às instituições de memória empreendido por Mário
Chagas: “É preciso que nos apropriemos deles”. Assim, poderemos ver os arquivos
como “campos de tensão”, “tensão entre a mudança e a permanência, entre a

18
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In:
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana Gonçalves (orgs.). Museus: Dos gabinetes de
curiosidades ao museu moderno. Belo Horizonte: Argumentum, 2005.
9

mobilidade e a imobilidade, entre a diferença e a identidade, entre o passado e o futuro,


entre a memória e o esquecimento, entre o poder e a resistência”19.
Uma política séria a respeito dos arquivos é fundamental para que a coletividade
(a nação brasileira, neste caso, embora talvez seja necessário, hoje, questionar a
propriedade desse termo) articule de maneira “saudável” essa tensão entre lembrar e
esquecer. Nem a lembrança absoluta, que, como a Funes, nos levaria à beira da
loucura – ou, neste caso, a nos afogar em montanhas de papel –, nem o esquecimento
completo, que nos anularia como sujeitos, nos tornaria um povo sem passado, sem
história, sem alma. Posto de maneira mais simples por Chagas, “o esquecimento total é
estéril, a memória total é estéril”20. Ou, como afirma Beatriz Sarlo, retomando Susan
Sontag: “é mais importante entender do que lembrar, embora para entender também
seja preciso lembrar”21. Como procuramos demonstrar, há muito a se fazer no plano
legislativo para evitar que caiamos, se não em um “esquecimento total”, ao menos em
um esquecimento de coisas importantes demais para serem esquecidas –
esquecimento este que, com grande freqüência, não é um ato inocente, não é um efeito
acidental do descaso da administração pública, mas, ao contrário, milita em seu favor,
auxilia a silenciar tensões, faz reescrever a história de acordo com certos interesses e
impossibilita a defesa de outros, soterrando-os sob a força irresistível do tempo.

19
CHAGAS, Mário. Museus: antropofagia da memória e do patrimônio. In: Revista do patrimônio histórico
e artístico nacional. nº 31/2005. p. 24.
20
Idem., p. 24.
21
SARLO, op. cit., p. 22.

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