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Resumo
No Brasil contemporâneo um dos maiores problemas, e cuja situação mais se agrava ao longo
dos últimos anos, diz respeito à segurança pública. A violência e criminalidade vêm obtendo
um crescimento substancial a partir da década de 1980, como atesta a “Análise dos
Indicadores Sociais” (IBGE, 2004). A pesquisa revela que de um patamar de 11,7 homicídios
por 100.000 habitantes em 1980, a taxa alcança 27 homicídios por 100.000 habitantes no ano
2000, índices que ficam abaixo apenas de Colômbia e Rússia, com a taxa de mortalidade por
homicídio crescendo aproximadamente 130% no país nesse período.
Várias são as tentativas de explicação do fenômeno. Lima et al. (2000) ressaltam que um dos
motivos seria o crescimento da pobreza e desigualdade no país, o que suscitaria políticas
públicas de distribuição de renda e inclusão social, visando uma melhoria das relações sociais
através da incorporação dos cidadãos menos favorecidos na sociedade. Políticas de
investimento na área de transporte urbano, saúde pública, saneamento, educação, entre outros
complementariam o fortalecimento da cidadania da camada mais pobre da população. Outra
explicação para o recrudescimento da violência e criminalidade no Brasil seria o aumento do
número de desempregados que alimentam taxas de desemprego próximas de 20%
(POCHMANN et al., 2004), e que políticas de expansão do mercado de trabalho a partir do
desenvolvimento econômico deveriam ser aplicadas. Soares (2000) ressalta que a expansão do
tráfico de drogas e armas no país foi fator fundamental para o cenário hoje existente. Zaluar
(1998) destaca que essas atividades atraem jovens das camadas populares, seduzidos pelas
oportunidades de prestígio e visibilidade social proporcionadas pelo tráfico, que configura
novas formas de poder naquele universo social. No entanto, as disputas de poder entre as
diversas facções criminosas existentes voltadas para o mercado urbano de drogas, além dos
confrontos com as autoridades constituídas resultam no aumento da taxa de mortalidade dessa
faixa populacional. De acordo com o IBGE (2004), os homens jovens, de 15 a 24 anos, são os
mais afetados: em 2000, 95,6 a cada 100 mil homens dessa faixa de idade morreram vítimas
de homicídio, sendo 71,7 em cada 100 mil (ou seja, 75%) mortos com armas de fogo. Em
relação a 1991, a taxa de homicídios cresceu 46% entre jovens (era de 65,5 a cada 100 mil) e
aumentou 95% a taxa desse tipo de crime violento realizado com armas de fogo (era de 36,8
por 100 mil, ou 56,2% do total). No contexto dessa dramática situação é que se encontra o
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Essa conjuntura suscita estudos sobre as organizações policiais, ainda mais temidas do que
conhecidas segundo Paixão (1995), para além de abordagens de cunho sociológico e do
direito, já tradicionais no país (LIMA et. al, 2000). Uma forma de apreender como as
organizações policiais se articulam no conjunto do sistema de justiça criminal brasileiro e na
sociedade em geral para a produção do serviço de segurança pública seria uma análise sob a
perspectiva da teoria institucional.
Uma das premissas da Teoria Institucional ressalta que as organizações que conseguem
adequar os mitos institucionais às suas estruturas e atividades têm legitimidade de outros
atores institucionais, facilitando o acesso a recursos e melhorando as perspectivas de sua
sobrevivência naquele ambiente (MEYER e ROWAN, 1977). Os distintos processos
institucionais têm sido analisados sobre aspectos diversos (DiMAGGIO e POWELL, 1983),
sempre tomando as instituições como entidades que reduzem a incerteza no contexto da
interação social e a legitimidade do sistema de valores e normas que constituem a instituição
para a sociedade (SELZNICK, 1971). Hall (1984) refere-se a organizações institucionalizadas
como aquelas cujos formatos e comportamentos moldam-se de acordo com os valores e
crenças prevalentes e que se tornaram institucionalizados naquele ambiente.
Diversos estudos nessa vertente avaliam organizações de tipos diversos como escolas
(COELHO, 1979), hospitais (SCOTT, 1995), bancos (MACHADO-DA-SILVA e
FERNANDES, 1998), penitenciárias (VIEIRA, 1999), organizações culturais (VIEIRA e
CARVALHO, 2003), entre outras. No entanto, apesar dessa perspectiva ser particularmente
visível em organizações públicas que tem maior desenvolvimento no processo institucional,
Crank e Langworthy (1992) destacam que apesar das organizações policiais serem
tipicamente agências do setor público, esforços para sua análise sob a perspectiva institucional
ainda são escassos. Coelho (1979) atribui essa falta de atitude reflexiva em geral ao peso da
socialização do aparato teórico metodológico normativo utilizado para explicar os fenômenos
organizacionais, ainda que a partir de meados da década de 1990 verifica-se um esforço em se
consolidar a utilização da Teoria Institucional nos estudos organizacionais brasileiros
(VIEIRA e CARVALHO, 2003).
Bayley e Shearing (2001) reforçam que as organizações policiais, como agências públicas
voltadas para a manutenção da ordem e aplicação da lei, atuam em um ambiente de mudanças
o que exige um posicionamento na busca de recursos escassos, competindo com outras
agências públicas e do setor privado na busca de oportunidades e defesa das ameaças, sendo
necessário o desenvolvimento de mecanismos institucionais para incremento de sua
legitimidade (CRANK, 1994), o que sugere a transformação dessas organizações.
suporte a teoria weberiana instrumental em que as organizações são avaliadas pelo modo em
que alcançam seus objetivos de maneira eficaz. No caso do policiamento a meta geral é o
controle da criminalidade, em que um aparato organizacional está implementado para
alcançar os objetivos do policiamento, como sistemas de resposta rápida via rádio-
patrulhamento respondendo às demandas do cidadão através do telefone, policiais espalhados
geograficamente, investigações criminais e patrulhas forenses. A eficácia da polícia é
mensurada pelo número de prisões, crimes desvendados e pelas pesquisas de vitimização. No
entanto, a descoberta de estruturas pouco eficazes na produção do serviço de polícia sugere a
adoção de novos modelos. Isto porque o modelo racional técnico impele a organização a
padrões produtivos que por si só não atendem as expectativas da sociedade e
conseqüentemente, se desenvolvem novos meios de mensuração de seus resultados visando “a
redução do crime, da desordem e do medo do crime, e de outras ameaças à qualidade de vida”
(p.204).
O artigo busca contribuir com subsídios para uma análise institucional que possibilite maior
entendimento da segurança pública e a possibilidade de mudança em sua dinâmica
institucional a partir da ação das organizações policiais. O trabalho descreve inicialmente
alguns dos principais processos de legitimação das organizações policiais, elencando-se
alguns mitos do modelo tradicional de policiamento ainda vigente. Na seqüência, realiza-se
uma síntese de aspectos institucionais na Polícia Civil e Polícia Militar em relação aos
processos e mecanismos de institucionalização dessas organizações no Brasil. Por fim, as
tendências contemporâneas no ambiente institucional para a segurança pública são delineados,
seguidos de seção conclusiva do artigo.
Meyer e Rowan (1977) ressaltam que organizações institucionalizadas são definidas a partir
do entendimento geral da realidade a partir de mitos, que tem uma qualidade intrínseca quanto
a sua verdade e correção, sendo mais importante essa faceta que a organização em si ou um
indivíduo em particular. Embebidas nesse ambiente institucional as organizações policiais
moldam-se à imagem daquilo que uma polícia deve ser para garantir sua legitimidade e
ganhar aceitação em seu ambiente. Para o processo de construção desses mitos são
necessários indivíduos e organizações com grande poder no delineamento dessa dinâmica,
cujos processos, segundo DiMAGGIO e Powell (1983) necessitam legitimação oficial,
elaboração de redes relacionais e reatividade organizacional e institucional.
organização policial enquanto sua estrutura, políticas e práticas deve adequar-se a estes
valores institucionais, mais do que ao simples resultado de suas atividades.
Para Crank e Langworthy (1992) alguns exemplos de aspectos que revelam a influência do
ambiente institucional na estrutura e atividades das organizações policiais podem ser
verificados em questões como a aparência da polícia, unidades especializadas, além de
práticas policiais que revelam alguns mitos institucionalizados nas polícias.
Em termos de aparência, espera-se que para serem reconhecidos pela comunidade como
policiais, os membros de uma organização policial devem adequar-se as expectativas sobre a
imagem apropriada da polícia. Entre essas expectativas estão os títulos, patentes, uniformes,
insígnias, nome da instituição e todo o cerimonial que revela para a sociedade que um policial
realmente é um membro da polícia. A falha em atender a estas expectativas institucionais
pode resultar em queda da legitimidade da organização policial, caso seus membros não se
mostrem como policiais.
As unidades especializadas existentes nas estruturas das organizações policiais servem para
suprir as expectativas institucionais sobre problemas com que elas podem lidar em termos de
atividades específicas, além de mostrar-se funcionalmente complexa e justificar as
solicitações quanto a valores orçamentários (CRANK e LANGWORTHY, 1992). No entanto,
raramente esse processo está ligado ao aumento de efetividades das organizações policiais,
sendo que estas estruturas geralmente têm sido desenvolvidas em resposta àquilo que um
departamento de polícia deve parecer frente aos seus legitimadores naquele ambiente
institucional. Assim, tornou-se comum nas organizações policiais a existência de unidades
especializadas em homicídios, roubo de cargas, crimes contra o patrimônio, entre outros
(ZAVERUCHA, 2003). Entendidas como essenciais no combate ao crime, e mantidas pela
influência dos principais atores do ambiente, essas unidades não são consistentes com o
entendimento do que uma organização policial deve realizar contemporaneamente (BAYLEY
e SKOLNICK, 2001). Isto porque, destaca Walker (1992), as atividades comuns da polícia
não são relativas a solução de crimes específicos, mas sim em termos de envolvimento com a
comunidade, prevenção do crime e manutenção da ordem.
Uma das fontes de mitos institucionais advém de atores com poder de utilizar sua
legitimidade de modo oficial valendo-se de aspectos coercitivo para impor sua autoridade,
como o aparato do sistema judiciário que cria mandatos legais, regras elaboradas pelas
organizações, ou entidades profissionais que podem exigir licenças e pré-requisitos para o
exercício de determinadas atividades. Powell e DiMaggio (1991) reforçam que atores
significativos nesse ambiente institucional podem impulsionar a legitimidade de certa
organização quando esta ainda não possui um processo estruturado de legitimação ou passa
por dificuldades. Vários aspectos da atividade policial enquadram-se nesse processo de
isomorfismo coercitivo, criando mitos que derivam desse processo (CRANK e
LANGWORTH, 1992), pois as organizações policiais são forçadas a adotar práticas
oficialmente aceitas de modo a preservar sua legitimidade (SOARES, 2000).
das negociações entre a polícia e os sindicatos de policiais, que estruturam o mito de que o
policial é e pode ser altamente discricionário, pois as normas fixadas entre organização
policial e sindicato o protegem. Na realidade, Bittner (2003) destaca que esse mito pode ser
desconstruído frente aos registros de abuso de força pelos indivíduos das organizações
policiais, além das ações dos chefes de polícia com sua ingerência sobre os casos a serem
solucionados. As associações de policiais militares no Brasil atuam ainda timidamente quanto
a estas questões devido a impedimentos legais, mas estão se fortalecendo para buscar
interlocução qualificada institucionalmente.
Para Meyer e Rowan (1977) outra fonte para a construção do mito institucional envolve o
papel do líder da organização policial na construção e modelagem do mito. Para ganhar apoio
da população, o chefe de polícia geralmente adota uma imagem de combate ao crime,
moldando toda a organização para essa atividade, e com isso justificam os orçamentos para
aumentar a capacidade da organização policial em combater o crime. O exemplo do
Comissário Bratton na cidade de Nova Iorque nos Estados Unidos (BRATTON e KNOBLER,
1998), e a difusão do seu padrão de atuação nos departamentos de polícia em diversos lugares
do mundo confirma a validade dessa construção (BAYLEY e SHEARING, 2001).
Quando das crises de legitimidade da organização policial são escolhidos atores relevantes
para que cerimônias possam legitimar o conflito e solucioná-los de modo que as forças
envolvidas se acomodem novamente e novos mitos possam se estabelecer. Conflitos
intradepartamentais são comuns nas organizações, assim como conflitos entre as
organizações. De modo geral, no modelo institucional quando da perda de legitimidade, o
próprio processo de degradação moral é marcado por rituais e com a mudança do dirigente da
organização policial. Quando desse fenômeno, qualquer incidente pode provocar a troca do
comando, seja o uso excessivo da força por parte de um dos membros da corporação,
descoberta de corrupção pela imprensa, a insatisfação por parte do prefeito ou governador
com a criminalidade, por exemplo. A troca dos dirigentes é um ato pensado para restaurar a
legitimidade sob o novo comando (WILSON, 1989).
Crank e Langworthy (1992) ressaltam que regras técnicas inicialmente utilizadas para
melhoria da efetividade da ação policial também passam a ser institucionalizadas, como o
sistema de resposta rápido a chamadas ou patrulhas motorizadas. A disseminação dessas
técnicas nos Estados Unidos a partir dos anos 1920 deu-se mais em virtude da
institucionalização dessas técnicas como forma de profissionalização das organizações
policiais do que de avaliações consistentes da efetividade das mesmas. Ainda que largamente
utilizadas atualmente, estas premissas passaram por críticas a partir do início dos anos de
1980 em função do aumento da violência e da criminalidade nos Estados Unidos, enquanto
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algumas pesquisas destacadas por Bayley e Skolnick (2001, p.18-20) revelaram que “algumas
estratégias da ação da polícia tradicional não se sustentavam, revelando-se como mitos”.
A ênfase no serviço de patrulha motorizada aleatória é outro mito pois esse tipo de
policiamento não reduz o crime nem melhora a possibilidade de prender suspeitos. As
probabilidades de alcançar o suspeito depois de acionada a patrulha ou atuá-lo em flagrante
são pequenas. Além disso, ressalta Walker (1992), esse tipo de patrulha, pelos hábitos de seus
policiais, tende a se concentrar em determinadas áreas de melhor visibilidade para o veículo
ou comodidade do patrulheiro, o que não minimiza a possibilidade de delitos. Regoli e Hewitt
(1996) mostram que o aumento ou decréscimo de patrulhamento nas áreas não tem impacto
mensurável no nível de criminalidade. Crimes como homicídio, estupro, furto em domicílio,
roubo e assalto à mão armada raramente são enfrentados pelo policial em patrulha. No
entanto, isto não significa que a policia não deva estar presente em todas as áreas da cidade e
atender aos chamados.
Outra estratégia refere-se ao número de policiais por viatura, mas não há relação de eficiência
entre o patrulhamento com dois policiais por carro ou com um único policial. Geralmente,
evoca-se justificativas como a possibilidade de que um possa auxiliar o outro, ou mesmo de
vigília entre ambos contra corrupção ou escapadelas do serviço. Wilson (1989) ressalta que os
administradores preferem um policial por viatura pelo seu custo e efetividade, pois realizam
mais atividades e melhor descrevem os acontecimentos, enquanto os policiais preferem
trabalhar em dupla como salvaguarda, principalmente em locais perigosos.
O patrulhamento intensivo também foi uma prática institucionalizada, mas somente reduz o
crime durante algum tempo, em grande parte porque o desloca para outras áreas, reforçam
Bayley e Skolnick (2001). Operações de ocupação de áreas perigosas revelam que durante
certo tempo a criminalidade diminui naquele local, mas recrudesce em outro. Situações como
o patrulhamento do Rio de Janeiro durante o evento da ECO-92 revelou este fenômeno. Outro
exemplo pode ser tomado pela análise da polícia de Londres. Em seqüência aos
acontecimentos de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, a polícia londrina transferiu
vários dos policiais que faziam seu trabalho nos arredores da cidade para proteção do centro,
onde se localizavam potenciais alvos de ataques terroristas. A partir desse deslocamento o
crime no centro diminuiu, mas, por outro lado, o crime cresceu nos subúrbios (WEISBURD,
2003).
crimes violentos esta situação não colabora para prender o criminoso, apesar de auxiliar nas
investigações e manutenção da cena do crime para o trabalho dos peritos. Alpert e Dunham
(2001) afirmam que esta estratégia foi fruto da implantação dos telefones de acesso a polícia
(número 190, no caso brasileiro), o que proporcionou uma cultura quanto à rápida resposta,
patrulhas aleatórias e investigação reativa, valorizando-se o tempo de resposta e número de
prisões. No entanto, a polícia consegue realizar detenções em apenas 3% das chamadas
envolvendo sérios crimes nos Estados Unidos.
O reforço do aparato investigativo como meio de melhorar a solução dos crimes não encontra
respaldo na realidade. Os crimes não são solucionados apenas pelas investigações criminais
realizadas pelos departamentos de polícia, mas sim, na maioria das vezes, pela prisão do
criminoso em flagrante delito ou porque alguém o identifica especificamente. Por exemplo, na
maioria dos homicídios, as vitimas se conhecem previamente. No entanto, os dados para
crimes violentos de 2000 nos Estados Unidos revelam que apenas 63% dos crimes cometidos
foram esclarecidos atestam Fox e Zawitt (2003).
Cerqueira e Lobão (2003) reforçam que a responsabilidade do policial acaba quando ele
responde à reclamação do cidadão sobre um incidente único. Assim, a rápida resposta tornou-
se um dos rituais mais importantes da polícia, pois a demora no atendimento pode levar o
departamento de polícia a críticas diversas por parte de atores importantes como a imprensa, o
prefeito ou a câmara de vereadores. Assim, solidifica-se o cerimonial de resposta rápida com
os departamentos de polícia, ainda que a patrulha preventiva não seja efetiva, ampliando a
capacidade de resposta aos chamados dos cidadãos, e usando processos tecnológicos
avançados como geoprocessamento e posicionamento por satélite para diminuir o tempo de
resposta aos chamados.
Bayley e Skolnick (2001) apontam que estes mitos constituem-se em pilares da estratégia de
polícia tradicional, mas apesar de institucionalizados, não reduzem o crime nem tranqüilizam
a população, havendo necessidade de maior proximidade das organizações policiais com o
cidadão para a efetividade do combate ao crime. Além disso, deve-se considerar a história da
polícia na região, a população envolvida e a relação dessa população com o crime e com a
polícia.
Essa divisão sugere uma série de problemas na atuação das organizações policiais advindas da
secção do ciclo completo de polícia, que parte do planejamento, segue pela prevenção e vai da
investigação à prisão dos suspeitos. Lemgruber et al. (2003) descreve que no modelo bipartido
de ação policial, fica impossibilitada um planejamento global das tarefas de segurança
pública, e com isso há uma duplicação de esforços, atividades e recursos entre as duas
instituições, como banco de dados, sistemas de comunicação, análise e planejamento dentre
outros. Além disso, ambas continuamente disputam espaço e concorrem entre si pela exibição
de resultados. Suas distintas culturas organizacionais contribuem para uma relação de
concorrência, eivadas de desconfiança, e em vários sentidos por franca hostilidade.
A Polícia Civil, a partir da mudança constitucional de 1967, passa a ter uma ação
exclusivamente voltada para a polícia judiciária e investigativa, ainda que continue agindo em
algumas ações de segurança ostensiva, o que aumenta o fosso entre as duas polícias, além de
obter resultados ineficientes, comprovada pelas freqüentes ocorrências de violência
institucional e pelo aumento da criminalidade em geral. Por exemplo, como não há
procedimentos regulares da investigação e da proteção da cena do crime, na maioria das vezes
o policial militar é acusado pelo policial civil de violar a cena do crime ao invés de protege-la.
Outra fonte de conflito é quanto a descrição do flagrante delito pelo policial militar no
Boletim de Ocorrência, documento formal a ser preenchido pelo policial militar após a
constatação de algum delito, que pode ou não gerar um procedimento judicial através do
Inquérito Policial, de acordo com a decisão do delegado da Polícia Civil responsável pelo
mesmo (ZAVERUCHA, 2003).
Lemgruber et al. (2003) descreve que as denúncias mais freqüentes que entram nos órgãos
competentes quanto a atuação das organizações policiais referem-se a violência policial,
abuso de poder e corrupção. A violência policial diz respeito ao excessivo uso da força,
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inclusive letal, nas intervenções policiais, assim como o uso da tortura para a obtenção de
confissões ou manutenção do controle de presos sob guarda da polícia. Não surpreende diante
desse quadro a imagem da polícia perante o cidadão, refletidos no resultado de pesquisa de
opinião, realizada no país em 2002, em que 59% das pessoas consultadas diz ter mais medo
do que confiança na polícia (DATAFOLHA, 2002). Para reverter tal processo, as polícias
estão adotando mudanças em suas práticas e buscando um reordenamento institucional de
modo a reforçar sua legitimidade junto à sociedade.
Toma-se, por exemplo, no caso brasileiro a existência de estruturas especializadas. Não são
poucos os casos em que atores influentes do cenário institucional fizeram gestão junto aos
dirigentes das organizações policiais para a criação de unidades específicas, como delegacias
anti-seqüestro quando esse tipo de crime atingiu as altas camadas da sociedade nos anos 1980
no Rio de Janeiro e São Paulo (SOARES, 2000), ou ainda o financiamento por empresários do
transporte rodoviário de cargas na montagem e equipagem de delegacias especializadas em
roubo de cargas em locais assolados por essa modalidade de crime, como visto na cidade de
Uberlândia, Minas Gerais, no final da década de 1990. Zaverucha (2003) ressalta ainda a
criação de delegacias especializadas para alocação de delegados quando de promoção para
outros níveis na carreira. Silva Filho (2000) ressalta que o papel da Polícia Civil é o de
investigação, porém, as unidades especiais de ação tática ostensiva daquela organização
competem com as da Polícia Militar quando de algum evento “especial”, com a freqüente
ocorrência de desentendimentos entre membros das duas corporações. Outro exemplo é a
compra de helicópteros para as polícias que também tem sido alvo de disputas entre as duas
organizações policiais. Este é um tipo de equipamento pouco apropriado para atividades de
investigação. No entanto, em alguns estados as duas polícias competem pelo patrulhamento
aéreo, não obstante a relação entre seu custo e os objetivos esperados.
Outro mito importante que carrega o peso da legitimidade oficial é o regime do servidor
público, que regula o sistema de gestão de pessoal. Estabelecido por regras escritas e bem
definidas, o regime estatutário descreve pormenorizadamente os critérios de seleção,
promoção e manutenção de servidores públicos, delineando a carreira policial em seus
estatutos. Como regras gerais, a entrada na polícia se dá através de concurso público de
provas e títulos, e após o estágio probatório o policial garante estabilidade no emprego
(ZAVERUCHA, 2003). Raramente discutida no âmbito das organizações policiais, tal
institucionalização não prevê a contratação de civis em seus quadros profissionais, com outro
tipo de preparação para os desafios da gestão contemporânea, sendo que algumas
organizações policiais vêm buscando preparar parte de seus componentes para atividades
administrativas distintas da missão policial. Assim, não é incomum você encontrar com
tenentes exercendo a função de secretária, ou sargentos realizando o atendimento de
chamados telefônicos para o número de emergência. Na polícia civil predomina a contratação
de bacharéis de Direito através de concurso público, sendo que vários deles exercerão
atividades administrativas.
Maguire (1997) revela que uma das mudanças em grandes organizações policiais dos Estados
Unidos na década de 1990 foi a tendência à contratação de significativo número de civis para
desenvolver atividades técnicas especializadas e devolver os policias que faziam serviços
administrativos para as ruas.
No Brasil, o elevado número de civis mortos em confronto com a polícia revela o baixo
controle social da sociedade sobre a instituição, e a inexistência de mecanismos eficientes de
controle da polícia e de punição dos desvios dos policiais reforçando a idéia do policial como
justiceiro (SOARES, 2000). Lima et al. (2000) revela que a utilização da identificação policial
também é uma grande fonte de poder, servindo para legitimar o policial civil ou militar
quando de suas atividades, mesmo que fora de seu horário de trabalho, o que dá margem a
abusos por parte dos indivíduos. Entretanto, recentes mecanismos de controle como as
ouvidorias de polícia começam a ter seu resultado mensurado e ganham maior legitimidade
interno e externo (LEMGRUBER et al. 2003)
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Alguns dos diversos mecanismos que podem ser identificados para manutenção da
legitimidade das organizações policiais no país, como a aparência da polícia, unidades
especializadas e práticas que revelam mitos institucionalizados nas polícias brasileiras podem
ser identificados. Alguns desses processos explicam em parte a baixa efetividade das
organizações policiais (SOARES, 2000), e que em boa medida refletem os índices de
violência e criminalidade vigentes no país. O quadro abaixo busca sintetizar alguns desses
mecanismos:
A mudança nas organizações policiais tem sua vertente mais visível na tentativa de
aproximação da instituição com a população, com a adoção de novos modelos de
policiamento, notadamente o policiamento comunitário. Para Mastrofski (2002) essa
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Em relação aos resultados, cabe lembrar que Meyer e Rowan (1977) reforçam que o modelo
institucional baseia-se não nos resultados e sim na crença estabelecida do que deve ser e o que
deve prover tal organização, principalmente pela dificuldade de mensuração destes resultados.
Estas organizações “institucionalizam estruturas e processos que passam a ser aceitos como
corretos, verdadeiros ou adequados para aquele tipo de organização – mesmo que não tenham
sido avaliados no sentido técnico” (MASTROFSKI, 2002, p.204). Assim, o institucionalismo
não exclui os aspectos técnicos como controle do crime e manutenção da ordem, mas adota
premissas mais amplas, como os resultados específicos para determinados departamentos
policiais, ou a ênfase em programas especiais voltados para minorias e alguns tipos de crimes.
Maguire et al. (2003) reforçam que as mudanças em curso levaram as organizações policiais a
maior descentralização das decisões, realização de parcerias, implantação de métodos de
solução de problemas e diminuição dos quadros administrativos. As pesquisas sobre essas
reformas indicam um avanço, ainda que menor que o esperado, nas organizações policiais
norte-americanas (MAGUIRE,1997; WEISBURD et al., 2003), mas parecem em processo de
institucionalização pelas respostas dos atores fundamentais a essas modificações, além do
isomorfismo mimético que tais mudanças sugerem pela sua adoção em organizações policiais
em outros países (BAYLEY e SHEARING, 2001), como os movimentos para modificação
das organizações policiais brasileiras (LEMGRUBER et al., 2003; SOARES, 2002).
5 Considerações Finais
A polícia mostra-se uma instituição estável, não por produzir resultados claros, bem definidos
e mensuráveis, ressaltam Crank e Langworthy (1992), mas porque está embebida em um
ambiente institucional em que a existência de organizações policiais tornou-se inquestionável
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por parte da sociedade, pois são organizações institucionalizadas. Isto porque responde de
forma ampla às crenças estabelecidas acerca de seu papel como organização policial. Neste
caso, a tradicional forma de policiamento respondia aos anseios enquanto consideradas as
formas correntes de funcionamento das organizações policiais. Alpert e Dunhan (2001)
ressaltam que a crise desse modelo foi intensificada com a percepção de um maior índice de
criminalidade, escândalos sobre corrupção e brutalidade da polícia, e o descuido das
organizações policiais com a comunidade, principalmente com grupos minoritários.
Crank (1994) relata que foi elaborado nesse momento o mito do policial como um agente de
manutenção da moralidade na comunidade através do policiamento comunitário, o que para os
conservadores propiciava a manutenção da ordem de forma agressiva, enquanto para os
progressistas a melhoria da capacidade de resposta policial adviria da revitalização das
comunidades ao serem atacados problemas adjacentes ao crime como os problemas sociais.
No contexto brasileiro, Cerqueira e Lobão (2003) ressaltam que as velhas bases institucionais
das organizações policiais do país revelam problemas cada vez mais prementes para solução.
O primeiro deles e fonte permanente de conflito é o ciclo policial repartido entre a Polícia
Civil e Polícia Militar. As polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, devem
exercer, ressalvada a competência da União, a apuração das infrações penais, investigando os
crimes para identificar as bases legais para a acusação de um suspeito, exceto dos militares;
além das funções de polícia judiciária, que auxilia o Ministério Público no processo de
construção da culpa legal. As polícias militares são responsáveis pela polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública. Atuando uniformizada, é responsável pelo policiamento nas
ruas, agindo em situações de conflito e de assistência emergencial. O conflito entre as polícias
varia de acordo com a época, mas continuam comuns no cenário brasileiro.
Para Lima (1995) essa situação advém dentre outras causas, pela concepção do sistema de
justiça criminal no Brasil que acirra o conflito entre as instituições do sistema, contribuindo
para sua morosidade e pouca fluidez, além de ações marcadas pelo corporativismo e violação
dos direitos humanos. A realidade institucional do país e os índices de violência e
criminalidade revelam a exaustão do modelo policial tradicional utilizado no país, ainda
pouco discutido, apesar das pontuais experiências de policiamento comunitário, revelam
Cerqueira e Lobão (2003). Além disso, historicamente a organização do sistema de justiça
criminal no Brasil foi estruturada para a manutenção da ordem pública e controle social das
massas pelas oligarquias vigentes (SCHWARTZ, 1979; HOLLOWAY, 1997; SOARES,
2000). Desta forma, conclui Lima et al. (2000), o cidadão fica a mercê de um sistema de
justiça criminal cartorial, caracterizado por um formalismo ultrapassado, em que as
influências pessoais e a posição no estrato social passam a ser mais importantes. A estas
características soma-se o exacerbado corporativismo, a visão militarizada, o abismo entre
polícia e comunidade, a falta de planejamento e controle gerencial, e policiais sem a devida
valorização social e econômica.
De modo geral o processo de mudança nas organizações policiais brasileiras continua voltado
para o aprimoramento técnico, com experiências ainda recentes em termos de policiamento
preventivo e com participação comunitária (LEMGRUBER et al., 2003). No entanto, novas
dimensões quanto ao desenho institucional e o reforço da legitimidade das organizações
policiais brasileiras podem ser impulsionadas por uma reforma gerencial que invista na
qualificação tanto dos policiais quanto da burocracia policial através de novos padrões de
procedimentos e estrutura interna das organizações policiais. A criação de secretarias de
estado voltadas para a Defesa Social e que possam concentrar os investimentos e coordenar os
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esforços de diversas áreas voltadas para a produção de segurança pública também pode alterar
o tradicional núcleo de poder alicerçado nas relações entre o comandante da polícia militar e
secretário de segurança pública com o governador (ZAVERUCHA, 2003).
Referências
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BAYLEY, David H. SKOLNICK, Jerome H. Nova polícia. São Paulo: Edusp, 2001.
BAYLEY, David H., SHEARING Clifford D. The New Structure of Policing. Washington,
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