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Texto disponibilizado no site do Iepé (www.institutoiepé.org.

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Publicado em: Demarcando Terras Indígenas II – PPTAL, FUNAI e GTZ, Brasília, 2002.

Vigilância e controle territorial entre os Wajãpi:


desafios para superar uma transição na gestão do coletivo

Dominique Tilkin Gallois1

Este texto trata dos desafios que se colocam hoje aos Wajãpi, para a
continuidade de seu engajamento em ações de vigilância de sua terra, uma
área com 604.000 ha., homologada em 1996, no estado do Amapá. Os
aspectos aqui selecionados não esgotam a complexidade dos fatores de
ordem interna e externa a serem considerados para um diagnóstico, que
exigiria um detalhamento das políticas públicas incidentes na terra indígena,
assim como de seus impactos sobre a organização social, política e
territorial dos Wajãpi. O que segue é um relato a respeito dos variados
procedimentos de apoio e fomento à "autonomia" indígena, ora em curso na
TI Wajãpi.

Os Wajãpi têm vivido uma situação privilegiada ao longo das últimas


duas décadas, durante as quais consolidaram um movimento de controle de
seu território, iniciado nos anos 80 e que culminou com a demarcação
física, realizada com intensa participação de todos os grupos locais, entre
1994 e 1996 (2). No final deste período, encontrava-se fortalecida sua
autoconfiança na capacidade de controlar a terra demarcada, de acordo
com sua organização tradicional, dispersos e circulando entre os diversos
assentamentos que cada um dos grupos locais ocupa. Estava claro para
todos os Wajãpi que, "para segurar a demarcação", era indispensável
ocupar mais sistematicamente as faixas de limites, onde muitas famílias, já

1 Docente do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Núcleo de

História Indígena e do Indigenismo / USP e sócia fundadora do Iepé que, em 2002, assumiu a gestão do
Programa Wajãpi , até então desenvolvido sob a gestão do Centro de Trabalho Indigenista / CTI.
2 Ver: D.T.Gallois - "Brazil: the Case of the Waiãpi" - in: Gray, A., Paradella, A. & Newing, H. (eds) From

principle to practice: Indigenous Peoples and biodiversity conservation in Latin America, IWGIA, Forest
People Programme & AIDESEP, Copenshagen, 1998 e "Participação indígena: a experiência da
demarcação Waiãpi" - in: Demarcações de terras indígenas na Amazônia, PPTAL/FUNAI & GTZ, Brasília
(1999).
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em 1996, planejavam implantar novas aldeias. Tinham como expectativa


que essas aldeias seriam atendidas pelos programas de assistência
"diferenciada", que as políticas federais e estaduais de educação e saúde
indígena anunciavam. Contavam com um significativo contingente de
agentes indígenas em formação (professores, monitores de saúde,
motoristas e mecânicos, secretários de aldeia, etc...) e dispunham de
parceiros para assegurar essa capacitação. Ao mesmo tempo, vinham
consolidando novas experiências para a tomada de decisões coletivas
internas e para a representação externa dos interesses das diferentes
aldeias. Um contexto sem dúvida privilegiado, comparativamente a outras
áreas indígenas na Amazônia, em que a parceria entre o CTI e o Conselho
das Aldeias Wajãpi/Apina previa conjugar esforços para ações articuladas
nas áreas de educação escolar, de assistência à saúde, de controle
territorial e ambiental, todas elas conduzidas com procedimentos
predominantemente educativos e participativos. No final da demarcação
física da TI Wajãpi, a parceria entre o CTI e o Apina recebia apoio de várias
instituições interessadas em garantir a consolidação de todo este
movimento e visava sustentar a demarcação e o fortalecimento da
autonomia dos grupos locais wajãpi (3). Entretanto, logo em 1997, iniciou-se
uma intensa campanha de difamação contra o CTI e seus integrantes, que
resultou na interrupção de todos os trabalhos e no cancelamento de um
Projeto de Recuperação Ambiental aprovado pelo MMA/PDA. A celeuma,
denominada pelos Wajãpi "guerra dos papéis", deixou marcas profundas,
especialmente porque retardou ações de controle territorial e ambiental,
que só vêm sendo retomadas agora, passados cinco anos. Nesse intervalo,
a manifestação de interesses contrários ao controle indígena sobre os
recursos da terra demarcada, por parte de políticos da região, recebeu apoio
de missionários evangélicos e de alguns funcionários da FUNAI local. A
campanha promovida por esses agentes, historicamente avessos à atuação
de entidades não-governamentais e de antropólogos, promoveu o
alinhamento das facções wajãpi à campos políticos divergentes no Amapá
(4). É assim que surgiu, em 1998, a "Associação dos Povos Indígenas Wajãpi
do Triangulo do Amapari" (APIWATA), assessorada por funcionários da ADR

3 A Fundação Mata Virgem da Noruega, a Coordenação de Escolas Indígenas do MEC e o Núcleo de


Educação Indígena do Amapá apoiam cursos de formação e supervisão das escolas indígenas; a Secretaria
Estadual de Saúde e o Ministério da Saúde apoiavam ações de assitência e de formação de agentes
indígenas, o PPTAL-FUNAI apóia um programa de vigilância, o MMA-PD/A se comprometia a implantar um
projeto de recuperação de áreas degradadas na bacia do rio Aimã.
4 Ver Schwengber, A M. – A recente saga Waiãpi – in: Aconteceu Povos Indígenas no Brasil 1996/2000,

Instituto Socioambiental, 2001.


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FUNAI e por agentes da New Tribes Mission. A visibilidade dos dirigentes


desta facção era ainda promovida pelos parlamentares que, naquele
momento, se preparavam para dirigir nova campanha contra as ONGs e
especialmente contra o CTI, na CPI da FUNAI, em 1999. Entretanto, a maior
parte das aldeias Wajãpi continuavam representadas no Conselho das
Aldeias Apina, que se mobilizou para conseguir o retorno da equipe de
assessores do CTI e que contou com a solidariedade de múltiplas entidades
indigenistas e ambientalistas para reverter a campanha lançada contra seus
interesses.
É, portanto, neste contexto muito específico que um conflito entre
facções wajãpi foi elevado a um fato da mídia. Na verdade, as relações
entre grupos wajãpi sempre foram marcadas por tensões, antes limitadas a
assuntos resolvidos sem a mediação dos brancos, como transações
matrimoniais, ocupação e uso de percursos de caça e de áreas para roças,
acusações de agressão xamanística, etc... A crise durou até 1999, quando
os desentendimentos internos deixaram de estar na mira de políticos
interessados na situação. Mas é evidente que pode voltar à tona, sempre
que for apropriada como mote para dissenções entre os múltiplos atores da
cena indigenista na Amazônia.

Se, hoje, as tensões entre o Conselho das Aldeias Apina e a APIWATA


entraram em surdina, é porque as famílias e os chefes dos grupos locais
que se representam nestas duas organizações assumiram seus próprios
rumos e buscam agora consolidar – de forma independente e com parcerias
diferenciadas – suas próprias alternativas de futuro. Não há conflito aberto,
na medida em que a estrutura sócio-política, o sistema de ocupação
territorial e as etiquetas de comportamento sempre garantiram respeito
pela autonomia pessoal. Mas ficou evidente, entre todos grupos locais, o
esfacelamento da autoconfiança na tomada de iniciativas coletivas.
Desânimo compensado pela injeção, a partir de 1998, de um volume
crescente de recursos monetários alocados a indivíduos, na forma de
"salários", que passaram a ser considerados indispensáveis para subsidiar
necessidades de consumo adquiridas no trânsito intenso entre as aldeias e
a cidade que o próprio assalariamento promovia. Finda a fase de
implantação desta nova "alternativa econômica", pode-se hoje constatar o
impacto do assalariamento sobre o sistema de ocupação territorial, e de um
conjunto de problemas mais graves do que os derivados das divergências
internas que a mídia local tanto noticiou nos anos 1997 a 1999. Como se
verá adiante, as transformações decorrentes do modo de vida atingem
indiferentemente aldeias partidárias do Apina ou da APIWATA.
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Este é o contexto no qual devem ser avaliados os desafios que se


colocam hoje para a execução de um programa de vigilância (5) que, como
previsto na parceria com o PPTAL-FUNAI, está baseado no princípio da
participação coletiva e na perspectiva da sustentabilidade da ocupação
indígena na terra demarcada. A indispensável contextualização apresentada
acima evidencia que, apesar das intenções de programas como este, para
fortalecer a capacidade de controle territorial, devemos considerar, caso a
caso, como se modificam as iniciativas dos índios, no contexto mais amplo
de suas relações com as diversas instituições que atuam em suas aldeias,
ou seja, considerar que, em termos de gestão territorial, nenhum resultado
poderá ser alcançado se não forem cotejadas e – se possível – superadas
as contradições entre as múltiplas intervenções que incidem sobre a vida
social, política e econômica de uma comunidade indígena. Sem esquecer, é
claro, que "a comunidade" pode não existir, como evidenciam tão
claramente os Wajãpi.

DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA O FUTURO, NA PERCEPÇÃO DOS WAJÃPI

Para introduzir os desafios que se colocam hoje aos Wajãpi para a


manutenção da integridade de sua terra, transcrevo três depoimentos,
registrados nas discussões que a equipe do CTI tem promovido com
representantes de todas as aldeias, para discutir alternativas de futuro,
durante os cursos de formação, oficinas ambientais, estágios, reuniões de
parceria, etc.

Japarupi (Professor da aldeia Manilha, 12.2001)


– "O que vai acontecer ! Agora os jovens já começaram a se organizar
direitinho, temos nossa associação. Se eles começam a sair desse lugar, aí vai criar
muita coisa ruim... Eu acho que no futuro, como eu estou pensando sempre, como eu
ouvi muito meus parentes, filhos dos meus parentes, já começaram; o pai comprou
brinquedo assim para eles, vai acostumando. Quando ele cresce, vai pensando e quer
uma coisa quando passa na TV, uma coisa mais. Aí vai acostumando, porque

5 No último período, a programação de atividades inclui, além das expedições de fiscalização e


reaviventação dos marcos e placas em todos os limites, o apoio logístico às famílias que instalam roças
e/ou aldeias em faixas de limites. Promovemos encontros e debates com moradores do entorno da terra
demarcada, além de cursos de mecânica de motor de popa e cursos de construção de canoas. Por outro
lado, neste último ano, o programa implantou um estágio administrativo para jovens e adultos que
permanecem por períodos de 20 dias na sede do Conselho Apina, em Macapá, onde participam, não
apenas das tarefas burocráticas dos diversos projetos em andamento, mas de todas as reuniões e
atividades de planejamento dos trabalhos de assistência e vigilância realizados na área.
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acostuma ver, desde criança, e então vai comprar aquilo. Aí, outro dia, outro modelo,
vai pensar de novo em comprar. E o futuro não vai segurar mais como nós agora
estamos. Porque os meus alunos, como a gente tá dando aula pra aluno, vão estudar
direitinho, vão falar bem português, conhecer bem escrito, alguns deles vão sair
professor, mecânico, vai ter salário pra eles e eles vão sair comprando o que quiser.
Como nós estamos: nós recebemos ajuda de custo e mesmo assim, a gente compra o
que não é necessário; por isso que eu estou comparando com o futuro, com as
crianças, porque como nós não entendemos nada em português, nós só falamos
pouco, mesmo assim estamos usando coisa do branco. Pior ainda depois, quando
nossos alunos vão saber falar bem em português. Vão fazer uma casa só de forró, vão
comprar aparelho de som. Por isso, eu estou dizendo muitas vezes só para minha
cabeça: porque esquecem a festa, porque só os velhos fazem as festas, porque não
somos nós, os professores que fazemos festas. Daqui a uns cinco anos, vai ser pior
ainda, só de violão; vai puxar energia para dentro a partir da estrada, vai começar a
comprar guitarra, vai acumulando a coisa do branco. Vai piorar; com certeza, vai. Tem
gente que conversa com os filhos, tem jovem que respeita o pai, e aí, será que o pai
vai segurar ele ? "Não, não compra aquilo !- Não, isso aqui eu trabalhei, o dinheiro é
meu, vou gastar meu dinheiro sozinho, você não me manda !". O que o pai vai dizer
para ele ? Vai ficar calmo. Vai acontecer assim. Porque nossa terra é rica. Assim que
eles vão pensar, quando eles não conseguirem (ser) empregado, assim, de ter um
salário. Aí, eles vão pensar: "O que nós vamos fazer ? Então, nós temos ouro, vamos
deixar eles trabalhar (garimpeiros), vamos deixar eles tirar madeira, vamos comprar
aquilo. Comprar carrro sozinho (para usar sozinho)". Se eles pedirem para comprarem
carro, os caciques vão dizer "Não faça aquilo". Não, não vão escutar, vão direto pra
Serra do Navio, por aí. Não adianta. Os caciques vão dizendo... Estou comparando
pelo nosso, nós somos estudantes, português nos falamos pouco, a gente não
conhece bem a lei, a gente não conhece bem a escrita, a gente não tamos dando aula
sozinhos em português. Nossos filhos não, vão conseguir sozinhos escrever com
computadores, vão pra reunião sozinhos, nós não. Nós não, tamos precisando ainda
de ajudantes. Acho que no futuro vai ser assim, não sei se o resto pensa assim. Essa
é a versão do Japarupi sobre o futuro".

Aikyry (professor da aldeia Mariry, atual Presidente do Apina, 12.2001)


– "Vou falar um pouco, como nós Wajãpi que tamos aqui na terra, eu vou
comparando como era o passado, com o presente, com o que vai acontecer no futuro.
Por exemplo, nós Wajãpi antigamente morava, vivia bem dentro da nossa área. Não
tinha poluição como está acontecendo agora, que a gente trouxe da cidade e a gente
está poluindo um pouco a nossa terra indígena wajãpi. Eu acho que isso, no futuro, se
nós Wajãpi não aconselhamos nossos filhos, nós professores não aconselhamos
nossos filhos, nós professores não informamos nossos parentes, aí o lixo vai
acumular e nos vão poluir todas nossas aldeias antigas e nossas aldeias novas. É
importante aprender para passar pra nossos parentes o que nós estamos
aprendendo. Outra coisa também, por exemplo, antigamente, nossos antepassados
usava aquele machado de pedra para derrubar as árvores e cada vez mais tá
mudando, depois que nos foi contato com não-índio, nós precisamos de machado de
ferro para derrubar as árvores e hoje em dia. Eu, por exemplo, estou comprando uma
motoserra para derrubar as roças, então a minha roça, eu faço a roça o tamanho que
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eu quiser. E alguns dos meus parentes estão dependendo dos não-índios, contrata os
motoserristas, operadores de moto-serra para derrubar suas roças e isso tá
acontecendo, é por causa do dinheiro, por causa dos salários, por isso que eu digo
sempre pra mim, sempre eu falo com meus parentes, eu sou contra do meu salário,
eu sou contra do dinheiro, por que as vezes quando a gente não sabe usar prejudica
também a gente, e também, a gente muda as coisas também. Mas quando a gente
sabe usar como é que tem que gastar dinheiro, ai é boa pra pessoa também. Por
exemplo, de plantação, antigamente nós usava aquele, uma vara, que a gente aponta
como terçado para meter mandioca, maniva, dentro. Depois agora, nós estamos
usando enxada para cavar terra, né e nós mesmo plantar, e hoje em dia está
começando os Wajãpi contratar os não-índios, os colonos, o pessoal que mora na
estrada, para plantar suas roças, então está mudando alguma coisa. Eu não vou dizer
que Wajãpi está do mesmo jeito, como eram os antigos. Mas a alimentação que a
gente come, a maioria da gente tem comida que a gente mesmo produz. Mas
algumas Wajãpi que tem assalariados, que moram na estrada, que tem dinheiro,
compram essa alimentação da cidade e traz aqui e um dia isso vai acumulando, se a
gente não aconselha nossos conselhos, e nossos futuros filhos. Então, nós temos que
sempre pensar como é que nós vamos fazer, como é que vão acontecer no futuro,
temos que caminhar o caminho certo para não acontecer um problema sério. Isso
que eu tou falando de dinheiro, que sou contra, porque um dia meus parentes vão
pensar de vender – como o Japarupi disse – vão pensar em vender madeira, ou vão
trazer pessoal de fora para tirar ouro. Se a gente não aprende, só nós mesmo Wajãpi
trabalhar, tendo autonomia, se nós não aprende autonomia, sempre nós vamos
depender de karaikõ , de não índio, de sociedade envolvente. Por isso que eu digo
sempre, Wajãpi está mudando, mas pelo contrário, alguma coisa não está mudando.
Por isso eu não vou dizer que Wajãpi não fala bem português, melhor ainda quando
não fala bem português ainda, mas alguma coisa tem que falar bem português para
poder ajudar o povo, para encarar as autoridades brasileiras, para explicar direitinho,
para responder tudo, para fazer projetos para ajudar o povo. A educação,
antigamente não existia assim, nós não sabíamos ler, escrever, nós Wajãpi
aprendíamos só na cabeça, oralmente. Agora não, tem que ler, escrever, isso estraga
a vista da pessoa, agora oralmente melhor ainda pra gente antigamente, hoje em dia
a gente não está enxergando mais preguiça que tá lá em cima da árvore, só se for
binóculo pra puxar, aí sim enxerga preguiça..."

Kasiripinã (ex-presidente do Apina, documentarista, chefe da nova aldeia de


Okakai, extremo norte da área, 2000)
- Eu sempre penso em morar como antigamente....Temos que cuidar dos rios
para karaiko (não-índios) não sujar. Quero morar onde tem muito peixe no rio. Eu
penso muito nisso. Por isso fico doente e a minha cabeça dói. Se não pensasse muito
ela não doía. É que estou muito preocupado com o futuro de minha terra. Quero
levantar a cabeça dos meus parentes para cuidar da nossa terra. Porque eu estou
preocupado com a floresta. Eu quero que continue a ter tudo o que a gente precisa
para viver. Como antigamente. Com a água limpa, que não faz mal quando a gente
bebe.
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- Por que agora a gente fica só parado numa aldeia velha? Antigamente não
era assim. A gente morava um pouco num lugar e mudava logo para crescer a caça,
os amimais. Para a floresta crescer rápido de novo. Agora estamos derrubando os
açaizais e as bacabas para cobrir nossas casas. Antigamente não era assim. Se
acabava a palha para cobrir nossas casas mudávamos para outro lugar onde tivesse
muita palha.... Se derrubamos tudo o tempo todo, aí a floresta não cresce bem. A
terra vai ficar fraca. Estará morta. Não crescem mais plantas. Porque a floresta
também quer viver. Criar filhos também. Quer viver como a gente. Eu sou como (o
chefe) Waiwai, quero cuidar da floresta, da caça, dos animais. Quero cuidar dos rios.
Sei que existem muitos índios que perderam tudo o que eles tinham.
- Antigamente quando morria alguém, a gente se mudava logo e deixava aldeia
do morto virar cemitério. Agora no Mariry e Aramirã está cheio de cemitério. Isto não é
da cultura dos Wajãpi. Nosso avô ia no mato e ensinava tudo para nós: como se
caçava, usava as plantas, os remédios. Agora nós não ensinamos os remédios para
os nossos filhos. Agora Wajãpi está só acostumado com remédio de karaiko. Um dia,
lá em Belém, um médico me ensinou que remédio de karaiko não é bom. Faz mal
para a gente. Gripe, isso não tem jeito. Não tem remédio. Médico só dá remédio para
ajudar. O que faz a gente não pegar gripe é comer bem. Se nos alimentamos bem,
com muita fruta, muita caça, tomamos muito caldo, ai a gente fica forte e não fica
doente. Eu gosto de falar no rádio com o pessoal para saber como está indo tudo. Nas
aldeias distantes sempre está tudo bem. Com muita comida, muita saúde. Nas
aldeias velhas e centrais sempre falta comida e o pessoal só fala em doença.
Karaikõ não vai cuidar da nossa terra. Quem tem que cuidar da nossa terra
somos nós mesmos. Alguns me escutam, outros não escutam. Por isso eu estou o
tempo todo falando com todo mundo. Para ver se alguém me ajuda. Eu não penso só
em pedir dinheiro. Alguns Wajãpi estão fazendo como antigamente. Vão com suas
famílias para aldeias novas para plantar, caçar e comer bem. Estão ensinando tudo
aos filhos deles. Assim eu estou gostando. Assim eu vou ficar feliz. Mas tem Wajãpi
que só está pensando em pedir dinheiro. Só estão querendo conseguir salário. Tem
gente que só quer criar peixe e galinha. Eles estão querendo que a energia chegue
para poder só assistir televisão. Só estão pensando em viver como karaikõ. O
pensamento deles está fora da cabeça. Eu só quero painel solar para o rádio, soro de
cobra e poder assistir meus filmes e dos meus parentes".

Avaliar as preocupações expressas nesses três depoimentos –


selecionados entre muitos outros – não é uma tarefa fácil, se quisermos
hierarquizar, com pesos locais, as transformações decorrentes da crescente
convivência com pressões diversas do entorno. Não se trata de averiguar,
como vem produzindo, em mais uma área indígena, o alinhamento do modo
de vida tradicional ao padrões sociais, culturais e políticos dominantes em
nossa sociedade, mas de focar as situações em que os narradores
manifestam a perda de confiança nos conhecimentos e nas práticas
tradicionais, sua consciência da desigualdade no acesso aos bens
manufaturados, seus conflitos entre gerações. Trata-se de verificar como
são percebidas as transformações decorrentes da sedentarização e o
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conseqüente empobrecimento da qualidade de vida. Verificar, enfim, quais


soluções suas análises apontam. Os problemas levantados por Japarupi, por
Aikyry e por Kasiripinã tornam se muito mais relevantes quando cotejados
às contradições entre as políticas indigenistas implementadas pelas
agências que atuam naquela terra indígena.

Encurtando o argumento que se pretende desenvolver aqui,


poderíamos considerar uma primeira solução para o planejamento do
futuro, bastante próxima da atual realidade: cada agência atua
independentemente, construindo parcerias também independentes com tal
ou qual grupo local. Esta seria, aparentemente, a alternativa de futuro mais
"tranqüila" tanto para os Wajãpi – estruturados em grupos autônomos –
como para as diversas instituições que atuam entre eles. Bastaria atender à
demanda de cada grupo, apoiando assim a tradicional independência nas
relações entre indivíduos e parceiros não-indígenas e líderes de facções
Wajãpi, que poderiam ver concretizadas suas expectativas ou seus objetos
de desejo. Por exemplo:

• uma antena parabólica e uma tv para W e seu irmão, que, na


verdade, sonham em poder dispor, um dia, de um estádio de futebol
em sua aldeia;
• um salário mensal para X e seus partidários, que querem adquirir
tudo o que os macapaenses de classe média podem comprar nos
supermercados e shoping centers de Macapá;
• para Y, o deslocamento e a manutenção de um professor e de um
auxiliar de enfermagem (não indígenas), mesmo que não se adapte
à rotina de uma aldeia situada a oito dias de caminhada de um
centro urbano;
• um fluxo contínuo de verbas para consertar motores de popa,
combustíveis e ferramentas para Z, que pretende viver no limite da
terra demarcada, mas só irá quando dispor de equipamentos de
transporte e comunicação compensadores...

Trata-se, é claro, de uma ficção. Mas os elementos acima


mencionados não são de todo inusitados, quando se conhece o rol de
demandas apresentadas por chefes de grupos locais wajãpi. No atual
quadro político regional, cada um deles poderia até encontrar suporte ou,
pelo menos, receber promessas para a concretização dessas demandas,
inclusive sustentadas em argumentos em torno da "autonomia indígena",
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utilizadas hoje por todos, sejam agências governamentais, não-


governamentais, partidárias ou não, religiosas ou não.

O problema, que os Wajãpi ainda não conseguiram entender


completamente, é que a concorrência entre diversos "projetos" ou soluções
apresentadas por essas agências para o futuro "comunitário" vêem seus
resultados drasticamente reduzidos, na prática, pelo fato de serem
destinados aos habitantes de uma – e indivisível – terra indígena. É em
torno de soluções globais – e não de apoios aldeia por aldeia, como
preferem os Wajãpi – que as agências entram em discordia. Os usos dos
recursos da terra demarcada estão, como nas demais terras indígenas do
país, tanto na mira de políticas públicas de promoção e garantia da
sustentabilidade ambiental e social, quanto das políticas locais que
promovem um uso imediatista. Uns como outros utilizam como argumentos
a promoção dos interesses indígenas e o apelo ao interesse "comunitário". O
modo como os Wajãpi se apropriam desses discursos contraditórios é
absolutamente tradicional, ou seja, procede na forma de interpretações
particulares que valorizam a independência de cada comunidade local. Por
esta razão, dentro da área, não há competição declarada, mas, ao contrário,
é visível o fortalecimento de trajetórias independentes, julgadas
positivamente na medida em que mantêm um padrão culturalmente
apreciado.

ALTERNATIVAS NA OCUPAÇÃO,
EM ACORDO COM EXPECTATIVAS DE FUTURO DIFERENCIADAS

Para avaliarmos, na conjuntura acima desenhada, os resultados


alcançados pelo Programa de Vigilância desenvolvido na TI Wajãpi nos
últimos dois anos, um indicador interessante seria o de verificar como se
estrutura, hoje, a distribuição das aldeias. Especialmente porque, sempre
deixamos claro, tanto ao PPTAL-FUNAI como aos Wajãpi, que a prioridade
deste programa do CTI seriam ações que contribuíssem efetivamente para
reverter o quadro de sedentarização e dependência nas aldeias "centrais",
ou seja, nas aldeias antigas onde um número crescente de famílias foram
levadas a se concentrar para ficar perto dos postos e das atividades
assistenciais, a cargo de diversas agências. Em função desta prioridade,
não pretendíamos apoiar apenas expedições de vigilância intermitentes ao
longo dos limites, mas procuraríamos investir em trabalhos que
viabilizassem a instalação mais duradoura de assentamentos situados nas
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faixas de limites, especialmente naquelas mais ameaçadas por invasões.


Como se verá a seguir, esta prioridade veio de encontro a iniciativas e
intenções já consolidadas entre alguns grupos locais wajãpi, só não obtendo
resultado junto aos que optaram por viver permanentemente à beira da
estrada.

Os Wajãpi distribuem-se atualmente entre mais de 40 assentamentos, agrupados como indica o mapa
anexo:
• Faixa sudeste (acesso pelo igarapé Riozinho e/ou a última a pé pelo Ytape) Jakareakãgoka, Akaju,
Suinar, Yvyraretã, Kupa´y
• Faixa leste (acesso pela estrada e igarapé Felicio e/ou as duas ultimas a pé pelo Mariry) Porakenupã,
Ari (nova aldeia "central" em construção), Kumakary, Aruwaity
• Faixa extremo norte(para Okakai acesso por avião e/ou 8 dias a pé a partir de Mariry, as outras
acessíveis somente a pé, de 3 a 5 dias de caminhada) Okakai, Najaty, Yjypijõ, Uruvura´yr
• Faixa sul (acesso a pé a partir de Ytape) Koakywa, Pypyiny (praticamente abandonada) Karavovô,
Mukuru
• Faixa oeste (acesso a pé a partir de Mariry, de 3 a 5 dias – ou por barco a partir de Laranjal, no
inverno) Kamuta (nova aldeia "central" em fase inicial de implantação), Wyraury, Kurawary, Ajawary
• Faixa central – complexo Mariry (acessível em voadeira a partir de Jakare) Mariry "velho", Tomepokwar,
Waseity e outros bairros de Mariry
• Faixa central – estrada Pinoty, Okora´yr, Kwapo´ywyr, Myrysity, Kuruaty, 5 minutos, Ytumiti, CTA,
Manilha, Jakare
• Faixa central – igarapé Onça Tajauwyry, Ysururu, Ytuwasu, Ytape (substitui Taitetuwa), Akarary,
Kapuwera

O primeiro aspecto a ser mencionado é que as atividades de vigilância


promovidas nos últimos dois anos vêm sendo desenvolvidas com grande
interesse por cerca de um terço das famílias Wajãpi. A consolidação desta
tendência é um resultado que consideramos extremamente positivo, diante
da complexidade dos fatores contrários à dispersão das aldeias pela área.
Pode-se até falar de um "movimento" que envolve um número significativo
de famílias resolvidas a sair das chamadas "aldeias centrais" (entre elas
Aramirã, Mariry, Taitetuwa) para novos assentamentos, próximos dos limites
instalados progressivamente em Okakai (norte), Aruwaity (nordeste), Ari
(leste), Yvyrareta/Kupa´y (sudeste), Kamuta (oeste), além de núcleos
previstos em torno de roças já abertas nas zonas de limites que cada um
desses grupos percorre e ocupa, historicamente. Desejam viver ali porque
há fartura em caça, pesca e terras agrícolas, que cada grupo conhece e no
qual vem desenvolvendo suas atividades desde muito tempo. Mas esse
movimento não é apenas para "viver como antigamente", pois cada grupo
tem demandas para esses novos centros que devem substituir as aldeias
centrais "velhas": todos argumentam que precisam de infraestrutura de
comunicação e transporte, de apoio para construções de casas
comunitárias, onde serão realizados os trabalhos dos agentes de saúde e
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professores. Soluções interessantes foram encontradas por alguns, como,


por exemplo, a compra de um motor de popa com os salários de três
professores indígenas de Mariry, que pretendem se mudar em 2003 para a
nova aldeia Kamuta. É este plano de ocupação aliado ao uso coletivo do
"dinheiro particular" que a equipe do CTI vem apoiando, em formatos
discutidos detalhadamente com os chefes e representantes de todos os
grupos locais por ocasião dos cursos, reuniões e das atividades do estágio
administrativo realizado na sede do Apina em Macapá.

Mas, no contra fluxo desse movimento, há muitas famílias que


pretendem continuar fixadas na beira da estrada e que, por sua vez, estão
também incrementando este movimento de concentração. Existem
atualmente 10 aldeias – de um total de 40 – assentadas na beira da
estrada, e a concentração cresce no trecho entre CTA e Manilha, com 5
aldeias. Assim, este ano, os moradores da aldeia Ytuwasu estão se
transferindo progressivamente para a estrada, onde fundaram a aldeia
chamada "5 minutos", perto do CTA. Pela sua localização, os moradores
desta aglomeração acabam por não se sentirem muito envolvidos com as
atividades de vigilância, sobretudo porque elas estão agora voltadas para o
apoio aos assentamentos situados nos limites. As famílias que vivem na
estrada continuam aguardando o incremento do apoio que funcionários da
ADR-FUNAI e da Prefeitura de Pedra Branca tinha lhes fornecido ou
prometido quando optaram por se instalar na estrada, há alguns anos. Por
exemplo, o projeto de piscicultura de tilapia e tambaqui, a construção de
uma enfermaria no CTA com apoio da ong alemã Target, etc...

O contraste entre as duas alternativas de futuro acima mencionadas e


a indefinição de um número relevante de famílias pode ser esquematizado
como segue, como se fossem três opções de futuro:

• de um lado, o movimento de muitas famílias que estão efetivamente


interessadas em viver próximo dos limites e em regiões onde há
fartura alimentar, e que estão pedindo apoio para comunicação,
transporte e construção de centros comunitários,
• do outro, os que preferem viver na estrada, "perto dos karaiko", e que
tentam obter apoio dos mais diversos agentes – ADR FUNAI, prefeitura,
políticos locais, missionários evangélicos – para fazer construções e
obter recursos para garantir compra de alimentação, etc...
• há um terceiro grupo (assentamentos situados na entrada da área,
entre Pinoty, Oko ra´yr e Aramirã – além dos que vivem perto da base
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da MNTB no Riozinho) com posição intermediária, que – no caso dos


primeiros – até participam do movimento de ocupação do limite leste /
Ari, mas não pretendem ainda sair da estrada ou da proximidade de
postos (no caso de Jakareakãgoka).

O fato é que TODAS as aldeias "centrais" antigas (algumas com cerca


de 20 anos de ocupação, quando o tempo tradicionalmente estipulado para
garantir qualidade de vida num local era de no máximo 5 anos) e todas as
que foram instaladas na beira da estrada – inclusive a recém fundada
aldeia "5 minutos" – sofrem do esgotamento dos recursos e sérios
problemas de lixo. Além disso, como em torno de Aramirã por exemplo, não
há mais terras boas para roças. Nesses assentamentos, a alternativa tem
sido recorrer aos salários – de agentes indígenas de saúde, de professores,
de serventes que limpam as escolas, de aposentados, de funcionários
indígenas ou prestadores de serviços para a FUNAI – para adquirir
alimentação complementar... Hoje, muitos substituíram a compra de
munição pela compra de enlatados. Cria-se peixe em lagoas para consumo
familiar e inclusive para vendê-lo a quem precisar... Um Wajãpi vendendo
"peixe criado" para outro é uma solução bastante preocupante... Este ano,
algumas famílias chegaram a contratar colonos para derrubar e plantar suas
roças na proximidade da estrada, supostamente para "aprender" como
fazem os brancos para ficar morando sempre no mesmo lugar...

A equipe do CTI, envolvida há muitos anos na formação de agentes


comunitários (6 ) e na assessoria a um programa de vigilância, que pretende
apoiar a sustentabilidade da ocupação indígena na terra demarcada, tem
enfaticamente condenado todas essas alternativas que passam pela
dependência crescente de dinheiro, especialmente quando oriunda de
"salários" apropriados em formato "particular" (para comprar comida para
cada família, para contratar serviços, para derrubar roças familiares,
comprar sem critério nas lojas da cidade, mas, sobretudo, para gastar em
prostíbulos e bares em Macapá...). Temos argumentado especialmente que
essas práticas não são soluções sustentáveis e que elas vêm criando
ilusões quanto ao processo de autonomização, que algumas lideranças têm
assimilado ao "uso particular" de dinheiro e à obtenção de mais e mais
projetos com salários. Discutimos muito com os Wajãpi os impactos

6 Ver: D.T. Gallois – Programa de Educação Waiãpi: reivindicações indígenas versus modelos de escolas –
in: A . Lopes da Silva & M.K. Leal Ferreira "Práticas pedagógicas na escola indígena". Fapesp & Mari, Ed.
Global, 2001.
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negativos dessas soluções, que não resultam em melhoria das condições de


vida, muito pelo contrário... Como muitos deles mesmos afirmam –
especialmente os chefes mais velhos e a diretoria do Apina – os salários
trouxeram muitos problemas, entre eles o aumento vertiginoso de DST, o
perigo da AIDS, o uso crescente de bebidas alcoólicas (agora não limitado à
estada na cidade, mas também consumido nas aldeias), o conflito de
gerações, a competição e a inveja entre famílias. Um dos impactos mais
visíveis é, sem dúvida, a concentração de mais e mais famílias na beira da
estrada, onde – segundo a expressão de Kasiripinã – "se espera o carro
passar e o dinheiro chegar". Outro, mais difícil de perceber para a maior
parte dos técnicos de assistência, que não circulam muito na área, é a
tensão permanente entre os jovens – que sonham em ficar em Macapá e
não querem mais trabalhar ou caminhar "longe" com os adultos – e os
velhos que acabam por assumir todas as tarefas pesadas no cotidiano das
aldeias. Em médio prazo, as conseqüências são previsíveis: quem recebe
salário ou aposentadoria não pode morar longe, pois todo mês, deve ir para
Macapá, receber, comprar, gastar.... Por exemplo, o velho Renato, chefe da
aldeia Pypyiny passa a metade do seu mês viajando ida e volta para Macapá
e a outra metade se recuperando daquela viagem de muitos dias de
caminhada e constrangimentos na cidade... Os aposentados não gostam
muito das estadas em Macapá, mas os jovens que os acompanham acabam
por incentivá-los a voltar, "para se divertir". Tememos que um dia, Renato
desista de viver longe porque ele considera mais importante fazer esses
deslocamentos para receber sua aposentadoria do que viver isolado, sem
muitas pilhas ou munição. Há muitos outros exemplos que poderiam ser
citados.

Esse longo comentário visa explicitar que o resultado de um programa


de apoio à vigilância participativa de uma terra indígena não depende
exclusivamente do esforço de seus técnicos ou do cumprimento de tarefas
agendadas. Há muito tempo, a equipe do Programa Wajãpi do CTI procura
ampliar o debate sobre essas questões com as outras agências que atuam
na área indígena – DISEI, ADR FUNAI, Secretaria de Obras do GEA,
Secretaria de Educação e NEI, etc...7 É agora indispensável avaliarmos
conjuntamente o impacto das políticas de assistência (que tendem a
centralizar suas ações nos postos e aldeias centrais) e do assalariamento

7 Cfr. Seminário "Terra Indígena Waiãpi: alternativas para o desenvolvimento sustentável" – Macapá, 1999.
Reuniões bi-anuais promovidas pelo CTI para discutir o andamento dos trabalhos de parceria com
representantes das aldeias Wajãpi.
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dos índios sobre sua qualidade de vida e seu sistema de ocupação.


Continuamos lamentando que, sob a alegação de que "o índio tem direito"
(ou com o objetivo mais imediatista de agradar os índios), os salários foram
introduzidos por agencias que não conheciam a dinâmica social e política
dos Wajãpi e sem qualquer preocupação com as conseqüências em seu
modo de vida e seu sistema de ocupação. Salários são, agora, reivindicados
pelos indivíduos wajãpi que consideram estar "contratados" porque
"recebem" ou "trabalham para" tal ou qual agência. Mas muitos – como
indicam os depoimentos – estão percebendo o quanto esse assalariamento
tem contribuído para tensões internas, além de gerar novos problemas de
saúde. É nesse sentido que temos insistido em conversar com
representantes dessas agências, especialmente ADR FUNAI, Ministério da
Saúde, NEI, para incentivarmos um esforço conjugado de todos, no sentido
de apoiar alternativas de engajamento dos Wajãpi nessas atividades em
formas mais sustentáveis tanto social quanto ambientalmente.

SUGESTÕES PARA A TRANSIÇÃO E O "RESGATE" DE UM EQUILÍBRIO SÓCIO-AMBIENTAL

Tanto os karaikõ que atuam na área indígena, como os próprios


Wajãpi, percebem hoje a delicada transição em que o grupo se encontra.
Para os índios, significa a dificuldade de escolher entre tantas alternativas
contraditórias, que já não são apenas propostas para o uso do território,
mas práticas em curso. Qualquer que seja o rumo tomado pelos diferentes
grupos locais, todas as soluções escolhidas poderão se consolidar, na
medida em que existem "parceiros" para subsidiá-las.
Por todas essas razões, consideramos que uma das principais
contribuições do Programa de Vigilância Wajãpi / PPTAL-CTI – assim como
das oficinas de diagnóstico ambiental iniciadas mais recentemente com
apoio do FNMA – foi a possibilidade de promover a discussão coletiva
acerca dos usos atuais e futuros dos recursos da terra demarcada. Os
primeiros encontros – em 1999 e 2000 – viabilizaram um debate, muitas
vezes acirrado, entre os grupos locais que queriam obter prioridade, para
suas aldeias, de benfeitorias das mais diversas, incluindo alocação de
professores, auxiliares e outros técnicos não-índios, do acesso aos veículos
para viagens até Macapá, etc... A importante lição desses debates foi que
todos estão conscientes hoje de que a gestão do território depende
fundamentalmente da gestão da assistência. Como resultado desta fase,
pode se mencionar a substituição de alguns discursos correntes no passado
– aliás, de longas listas de pedidos apresentadas com o argumento de que
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"nós não vamos voltar ao tempo dos antigos" – por outras, que evidenciam a
compreensão, por parte dos Wajãpi, da necessidade de "organizar" e
"controlar" as relações entre as aldeias e entre estas e os agentes de
assistência. Tal ênfase no controle social está presente no posicionamento
dos jovens que dirigem o Conselho / Apina, como Japarupi e Aikyry, acima
citados. Priorizar conversas sobre a gestão das atividades de assistência foi
determinante para que os Wajãpi conseguissem voltar – sem brigas, mas
ainda com constrangimentos – à discussão dos impactos das políticas de
assistência e do assalariamento. O que permitiu, nas reuniões mais
recentes, debater a gestão dos recursos da terra demarcada, quando os
representantes das diferentes aldeias puderam comparar a situação em
todas as aldeias, não apenas em termos de acesso aos serviços de
assistência, mas à caça, aos produtos de coleta, à zonas adequadas para
agricultura, assim como discutir o acúmulo de lixo, a perda de qualidade da
água, etc... Na última oficina de diagnóstico ambiental, as discussões
giraram em torno da capacidade de suporte, com detalhamento dos
prejuízos resultantes da degradação ambiental e social gerada pela
sedentarização em torno dos postos. Todo esse caminho de discussões
possibilitou retornar, enfim, ao debate acerca da dependência em relação
aos bens e serviços dos não-índios. Se alguns líderes assumem essa
dependência como fato e como alternativa de futuro – reivindicando
subsídios crescentes para atendê-la – há um número razoável de chefes de
família e de líderes a se posicionar a respeito da necessidade de controlar
tal dependência, mudando não apenas as "aldeias velhas", como também
os "postos velhos". Não é fácil reivindicar a mudança dos postos de
assistência, pois os Wajãpi sempre se colocam a dúvida sobre o interesse
dos não-índios em se locomoverem até suas aldeias, quanto mais transferir
enfermarias e escolas?... Mas esta é certamente uma das soluções
apresentadas pelos Wajãpi que a equipe do CTI pretende apoiar com o
maior empenho.

E é nesse sentido que estamos propondo – nas reuniões realizadas


nas aldeias – uma abordagem nova para discussões em torno de noções
como "fortalecimento cultural", "resgate", "autonomia", "desenvolvimento
sustentável", etc... Essas idéias chegam aos Wajãpi – e a todos os grupos
indígenas minimamente conectados aos discursos em torno do "etno
desenvolvimento" – na forma de um conjunto de propostas concretas, ou
seja de "projetos", que visam consolidar sua visibilidade indígena. Assim, em
nome do "resgate cultural", programas de governo e projetos de ongs se
propõem apoiar a comercialização de artesanato, a edição e venda de livros
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e discos, a realização de shows e exposições, a construção de casas de


cultura, etc... Para os grupos indígenas, estas alternativas são interessantes,
na medida em que trazem recursos que subsidiam suas crescentes
obrigações e trânsito nas cidades assim como suas necessidades de
consumo. Se participar de eventos e de produções desse tipo contribui para
mobilizar as comunidades e as prepara para enunciar, diante de públicos
diversos, seu interesse em preservar patrimônios culturais diferenciados, é
também evidente que a apropriação destas práticas de visibilidade
canalizam os esforços indígenas para o palco dos não-índios, com muito
pouco retorno para a recuperação de sua qualidade de vida, na vivência
cotidiana das aldeias.

Por este motivo, o que nos parece essencial debater junto com os
Wajãpi, como alternativas prioritárias para o chamado "resgate" cultural, são
as condições necessárias à continuidade da transmissão e experiência dos
conhecimentos e das práticas que sustentam seu modo de vida e sua
especificidade cultural. Os ricos saberes sobre a fauna, a flora, e as
dinâmicas ecológicas, os vastos conhecimentos que sustentam as
atividades agrícolas e o processamento de alimentos, etc... assim como os
mais diversos aspectos de sua organização social, formas de intercâmbios,
etc... só poderão ser vivenciados e valorizados pelas próximas gerações se
continuarem sendo praticados e julgados adequados à manutenção da
qualidade de vida. A transmissão e a prática efetiva desses saberes estaria
em risco, quando se sabe que um número crescente de Wajãpi vem se
apropriando, por curiosidade ou comodismo, de técnicas exógenas, seja na
agricultura, na alimentação, na caça, etc...? Muitas vezes, são apreciadas
apenas porque são "dos brancos". Ou seja, ao mesmo tempo em que os
Wajãpi se dispõem a fortalecer sua visibilidade como portadores de uma
cultura diferenciada através da exibição ou venda de produtos "culturais", os
conhecimentos e práticas que embasam esta especificidade deixam de ser
valorizados por um número significativo de jovens e por algumas famílias
que desejam "viver e trabalhar como karaikõ". Por ora, trata-se apenas de
experiências relativamente isoladas e nem todos os Wajãpi descartam o
interesse dos saberes "dos antigos" como substrato essencial na
manutenção de sua qualidade de vida, razão pela qual consideramos
essencial difundir entre eles uma nova definição para a noção de "resgate",
muito diferente da que vem sendo propagada nos programas convencionais.
Como conhecimentos – nas sociedades indígenas como nas nossas – são,
por natureza, dinâmicos e sujeitos à permanente atualização, não se trata
de recuperar algo passível de perda, como sugere a noção convencional. O
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que se pode e deve resgatar, ao contrário, é o controle social sobre as


transformações sociais, políticas e econômicas em curso, visando a
melhoria das condições de vida, sejam elas formas "tradicionais" ou não.
Atendendo ao interesse dos Wajãpi que, como formulava Aikyry, não são
"como pedras, que nunca saem do lugar", nem teriam porque "voltar ao
tempo dos antigos", o que pretendemos oferecer aos Wajãpi – através de
ações nas áreas de educação, saúde e vigilância territorial – é uma
renovada autoconfiança na sua competência em promover, coletivamente,
alternativas que contribuam para seu equilíbrio social e ambiental. Para
isso, eles precisam se afirmar como atores capazes de exercer "um controle
sobre o desenvolvimento do nosso desenvolvimento" (8).

8 Cfr. Peña Veja "Meta-desenvolvimento, auto-organização e incerteza: um caminho em direção ao


pensamento ecológico" - in: E.Castro & F. Pinton "Faces do trópico úmido: conceitos e questões sobre
desenvolvimento e meio ambiente", Ed. Cejup, 1997.

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