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Skyreach

No topo da torre da catedral, Melissa contemplava a


metrópole em toda a sua extensão. Uma miríade de casas,
estabelecimentos comerciais, praças e templos se estendia
até encontrar os céus no horizonte. O emaranhado de ruas,
largas e curtas, pavimentadas e enlameadas, ligava tudo
como um grande formigueiro: desorganizado de longe, mas
funcional e bem estruturado de perto. Mais ao sul,
aproveitando-se de uma elevação natural, o castelo do rei
se elevava sobre tudo e todos, rivalizando com o próprio
sol, que ainda acordava da noite anterior, tímido atrás das
montanhas.

A catedral encontrava-se no centro de Skyreach. E


Skyreach encontrava-se no centro do mundo.

Os passos anunciaram a aproximação de um dos seus


clérigos. O homem, trajando vestes brancas e simples,
adentrou a grande varanda a céu aberto, parando a poucos
passos da sua mestra.

- Sumo-Sacerdotisa…

- Eu sei, eu sei. - ela respondeu em tom melancólico,


de costas para ele e de frente para a metrópole pulsante. -
Mande tocar os sinos. Todos eles. Setenta e seis badaladas.
- suspirou - Hoje é um dia triste.

O homem fez uma exagerada mesura e se retirou, a


caminho do dever. Melissa, a Sumo-Sacerdotisa de Jhyanna, a
deusa da vida e da morte, observou uma vez mais o cenário.
Viu todo o esplendor da capital e tentou prever, sem
sucesso, o que estava por vir. Tudo estava prestes a mudar.
Ela sentia na vibração de todas as coisas; sentia em cada
batida do seu coração.

Enfim, girou sobre os calcanhares e dirigiu-se para os


seus aposentos. Precisava enviar uma mensagem urgente para
um amigo que há muito não via. Quando adentrou novamente os
pátios internos da grandiosa catedral, os sinos iniciavam
suas primeiras badaladas.

O Grande Espírito da Floresta

A floresta da passagem era densa e cheia de segredos.


Uma ampla estrada a cortava de ponta a ponta, por onde as
caravanas comerciais viajavam entre as terras de Skyreach e
as de Berend Huin, mantendo vivo o comércio sempre amigável
entre anões e humanos.

Uma caravana, composta por oito cavalos, três mulas e


três carroças, havia parado ao leito do Rio Fino, um dos
dois afluentes do Rio Primeiro que cruzavam diretamente a
estrada da floresta. Era uma parada obrigatória, onde os
companheiros de viagem reabasteciam seus suprimentos de
água e alimentavam os animais para enfrentar a segunda
metade da jornada de vinte dias necessária para atravessar
a floresta de um extremo a outro. Enquanto os cavalos
bebericavam a água doce, os comerciantes e seus ajudantes
conversavam descontraídos entre si. Em sua maioria eram
humanos, especialmente os donos das mercadorias, mas haviam
também halflings e meio-orcs, estes últimos exercendo suas
funções de praxe: mercenários contratados para manter a paz
durante o percurso, afugentando os bandidos escondidos nas
estradas. Ali, porém, na beira do Rio Fino, com os cantis
cheios e o espírito renovado, não temiam ladrões. Os
perigos eram as feras selvagens, mas seus ataques eram
raros e fáceis de lidar. A bandidagem evitava a floresta e
seus mistérios: não ousavam praticar o seu ofício na terra
dos elfos.

Após duas horas de descanso, a caravana seguiu caminho


pelo rio, que naquele ponto não media mais do que dez
metros de largura, e era raso, cobrindo apenas as canelas
dos transeuntes. Quatorze pessoas compunham a expedição.
Todas elas passaram pelo mesmo carvalho, mas ninguém notou
o elfo que apoiava o corpo no tronco robusto da árvore.
Estava ali, diante de todos eles, então ao seu lado e, por
fim, às suas costas. Permaneceu imóvel a observar a
caravana passar: braços cruzados e olhos fixos nas
atividades mundanas dos viajantes. Passaram a meros
centímetros do seu rosto, e jamais notaram a sua presença
silenciosa.

Quando por fim sumiram ao contornar uma curva que na


estrada ao oeste, o elfo deu um passo a frente. Vestia-se
com roupas feitas de couro e pelo de animais, incluindo um
longo manto de pele de urso, que contava com um capuz que
cobria-lhe a cabeça e ajudava a esquentar o corpo diante do
vento frio que soprava entre as árvores. Mesmo no mais alto
dos verões nas planícies de Skyreach ou nas terras áridas
de Berend Huin, a temperatura amena dentro da floresta se
mantinha a mesma.

Afastou o capuz para ampliar o campo de visão,


deixando os cabelos prateados caírem sobre os ombros. Uma
elfa surgiu por entre as árvores, logo atrás dele.
- De novo observando essa gente, Laucian?

Era Lauryn, da Floresta Negra. Ele havia sentido a sua


presença há algum tempo, um tanto próxima, mas não havia se
manifestado então. Ao passo que ela se aproximava, a
diferença de tamanho entre eles tornava-se óbvia. A elfa
era um palmo mais baixa do que Laucian, e faltavam-lhe ao
corpo delgado os músculos modestos e bem definidos
presentes no corpo do amigo.

- Pelo que notei, você os observou tanto tempo quanto


eu. - ele respondeu em tom ameno, apesar da voz poderosa.

- Eu observava você.

Laucian se permitiu um raro sorriso. Ela fez o mesmo,


exibindo os dentes em uma expressão feliz e cheia de vida.

- O que deseja, Lauryn?

- O Grande Espírito o convoca.

- Quando o grande espírito convoca um de nós, não


precisa de terceiros para enviar a mensagem.

- Segundo as palavras do próprio - ela continuou, em


tom zombeteiro - você não parece estar ouvindo muito bem
ultimamente.

Laucian franziu o cenho e grunhiu palavras inaudíveis


em auto reprovação. Ao fundo, os ouvidos apurados dos elfos
começaram a distinguir os sons de uma nova caravana se
aproximando.

- Onde posso encontrá-lo?

Lauryn respondeu com silêncio e um olhar profundo,


como se perscrutasse a própria alma de Laucian. Ele, alheio
aos pensamentos da amiga, esperou que ela o respondesse,
parado ao centro da estrada, imóvel de maneira incomum,
como uma estátua em equilíbrio perfeito. Cada segundo que
passava o deixava um pouco mais irritado. Não gostava de
deixar o hierofante esperando.

Após preciosos e frustrantes segundos, Lauryn suspirou


e, balançando a cabeça em reprovação, prosseguiu.

- Ele falou que estaria “tão perto quanto o lançar de


uma pedra”. Creio que saiba o que significa.
Ele sabia. Laucian se recurvou levemente para frente e
abriu as mãos, concentrando-se em uma transformação. Seus
músculos começaram a se distorcer, junto com toda a sua
estrutura óssea. Penas brotaram da sua pele. Aproveitou os
poucos momentos que dispunha na forma élfica para se
despedir:

- Obrigado, Lauryn. Nos falaremos em breve.

Ela observou o amigo transformar-se por completo em


uma águia. Ainda no chão, o animal dirigiu o olhar para ela
uma vez mais, então alçou voo para o oeste, sumindo em
segundos por entre copas das árvores.

Perdida em pensamentos, a elfa esqueceu de infiltrar-


se na mata antes de ser vista. Acordou das suas ponderações
quando ouviu os sons de assombro das pessoas que se
aproximavam do rio, alguns metros adiante. Olhavam para ela
como se vissem um fantasma, apontando dedos na sua direção
e sussurrando entre si.

Lauryn revirou os olhos e adentrou a mata, iniciando a


viagem de volta para casa.

O hierofante dos druidas da Floresta da Passagem era


uma árvore imóvel a ouvir o correr das águas do Rio
Primeiro; era uma rocha a observar a passagem do tempo; era
a terra sob os pés, e os pássaros sobrevoando as árvores.
Quando Laucian o encontrou, notou o mestre imóvel em seu
lugar, como se estivesse lá há séculos, com raízes
profundas no chão. Trajava um manto que imitava a madeira
em textura e em cor, e galhos retorcidos nasciam da sua
pele, alguns com folhas e frutos pequenos. Tinha os braços
unidos diante do corpo, dentro das mangas do manto que
vestia, e os olhos fechados. Laucian sabia que seu mestre
estava ali tanto quanto não estava, e que o avistara muito
tempo antes de ter chegado. Por isso, quando, usando da sua
mágica druídica, ele desfez a sua transformação e voltou à
sua forma élfica, não se assustou ao ouvir a voz amadeirada
do Grande Espírito soar repentina:

- Laucian, meu mais prestimoso discípulo.

- Peço perdão por não ouvir seu chamado antes, Grande


Espírito.

O Grande Espírito da Floresta - um nome criado por


humanos, mas que acabou sendo usado por todos os seres
cientes da sua existência - era o único elfo com traços de
idade avançada que se tinha conhecimento. Sua barba
prateada espalhava-se sobre o peito, misturando seus fios
com os galhos que nasciam do seu corpo. Algumas rugas
adornavam a sua pele, não muitas, mas uma imperfeição
sequer no corpo feérico é o suficiente para alarmar aqueles
da sua espécie. O Grande Espírito era diferente de tudo o
que Laucian conhecia, e ele não conseguia se acostumar à
sua presença, não importasse quantas vezes fosse convocado.
Naquele momento, o mestre olhava para algum ponto fixo na
floresta - na direção do Rio Primeiro, há poucas centenas
de metros dali - mas Laucian sentia como se ele olhasse
diretamente nos seus olhos.

- Algo que queira me contar? - o mestre perguntou,


paciente.

Inquieto, o discípulo fez voz às suas preocupações.

- Minha atenção foge, grande mestre. Não tenho


conseguido realizar as minhas tarefas com a mesma
eficiência de antes. Desde o combate com… - Laucian
titubeou nas palavras - Desde o combate com o dragão negro,
tenho me sentido mais distraído. Minha atenção é fugaz, e
não raro me vejo observando o povo que vive na beira da
floresta. Por vezes, viajo sem razão até a Floresta Negra e
uso o meu tempo observando os elfos que lá vivem. Outras
vezes, atravesso toda a mata e observo os anões a garimpar
e moldar as rochas ao redor da sua cidade. Sinto como se
eles…

As palavras fugiam da sua boca, mas o Grande Espírito


o entendia perfeitamente, então completou o seu discurso
com uma voz mais vagarosa e antiga.

- Como se eles o chamassem? Como se precisassem de


você?

Laucian concordou. Nada podia esconder dos olhos do


hierofante.

- Mas quando os encontro - o discípulo continuou - é a


você que eles buscam, Grande Espírito. Eles clamam o seu
nome, mas eu que atendo o chamado.

- E percebe que eles precisam de ajuda, então assim


você o faz. Você os ajuda, em troca da pura satisfação de
pôr as coisas no seu lugar. De reverter, mesmo que por
pouco tempo, a entropia.

Laucian meneou a cabeça novamente em concordância. O


Grande Espírito continuou.
- O mundo mudou desde a chegada de Nechtorion, meu
jovem aprendiz. Não tenha medo de citar o nome da besta que
você mesmo destruiu.

- Eu e meus companheiros. Não teria derrotado o dragão


negro sem eles.

- De fato. Nem eles conseguiriam derrotar a criatura


sem você.

O Grande Espírito da Floresta inspirar profundamente,


fechando os olhos, então expeliu o ar dos pulmões devagar
antes de prosseguir.

- E agora, seus amigos precisam de você novamente.

- Não compreendo, mestre.

- Outra pessoa o procurará, muito em breve. Peço que


fique aqui, espere e ouça o que ela tem a dizer. Então,
faça o que o seu coração mandar.

Movendo os pés, o Grande Espírito voltou-se para


Laucian. Ver o elfo antigo mover-se era algo não-natural,
como ver um grande olmo criar pernas e andar. O hierofante
fez surgir uma das mãos por entre as longas mangas do seu
manto-árvore. Nela, ele segurava um pequenino frasco de
vidro enegrecido, tampado por uma rolha comum.

- Você tem fé em mim, Laucian? - ele perguntou,


oferecendo o frasco ao discípulo. O elfo aceitou a oferta,
analisando o artefato nas mãos.

- Sempre.

- Uma jornada se aproxima. Não sei onde ela o levará,


mas antevejo uma ave-do-paraíso.

- Uma ave-do-paraíso? Durante todos os meus anos de


vida, só vi a criatura uma vez.

- E a verá novamente, em breve. Quando o fizer,


preciso que caia. A ave guiará os seus olhos para os céus,
mas o seu corpo deve cair em terra, não em pedra.

Laucian já havia recebido ordens incongruentes como


aquelas antes. O Grande Espírito tinha o estranho costume
de falar em enigmas, e o elfo já havia aprendido, com os
anos de convivência, que não adiantava tentar argumentar.
Portanto, simplesmente aquiesceu. O mestre continuou.
- Quando o fizer, encontrará um inusitado e velho
amigo. Dê a ele o frasco, e ele entregará a você algo que
me pertence.

- Entendo, Grande Espírito. Será feito.

- Tenho a impressão de que nos veremos muito em breve,


meu jovem discípulo. Que Aghor guie os seus caminhos até
lá.

- Que Aghor guie a todos nós.

O grande espírito recuou em passos lentos na direção


da floresta, até mesclar-se novamente com as árvores.
Laucian olhou o frasco uma última vez. Desistiu de tentar
entender o que o mestre queria falar e o guardou em um dos
compartimentos da sua roupagem de couro.

E esperou.

Morte

Poucos minutos passaram desde que Laucian havia se


encontrado com o seu mestre. Estava agora sentado ao chão,
com as pernas cruzadas, aguardando, conforme instruído.
Sentiu então uma lufada de vento que carregava consigo as
palavras de uma voz conhecida. Os sons invadiram os seus
tímpanos e ecoaram na sua mente. A voz de Melissa era
inconfundível, mesmo após anos sem ouvi-la.

“O Rei Jonas acaba de falecer. Depois de tanto tempo,


será para chorar a morte de um bom homem que nos
encontraremos”.

Laucian digeria a informação. O Rei Jonas Skyreacher,


morto? Mesmo aos setenta e seis anos, o homem parecia ter
vigor o bastante para comemorar um centenário. Era uma
morte inesperada, que abalaria todo o reino dos homens. O
que mais tocou a sua alma, porém, foi ouvir o tom
melancólico que adornava a voz da amiga.

Aproveitando o canal aberto pela magia de mensagem


conjurada pela sumo-sacerdotisa, Laucian usou a mente para
responder.

“Isto é um convite para o luto? O que eu faria em


Skyreach? O meu tipo não é bem-vindo aí”
E esperou, em silêncio, a resposta da amiga. Os ventos
trouxeram novamente a sua voz, segundos depois.

“Você é Laucian, um dos Matadores do Dragão. Os elfos


são vistos com desconfiança, mas você conquistou o seu
lugar no coração dos homens”.

O druida ponderou. Nada tinha que ver com os humanos


de Skyreach, mas devia admitir que sentia falta das
estranhas amizades que criara, anos atrás, durante a
campanha para exterminar o dragão negro. A cumplicidade do
combate e da agonia que todos viveram durante aqueles dias
sofríveis era um sentimento inabalável e que, com o tempo,
gerava aquela sensação que ele raramente sentia: saudades.

Em seu quarto, ajoelhada sobre almofadas, Melissa


esperava a resposta do amigo, que veio em pouco tempo. A
voz grave de Laucian invadiu a sua mente:

“É uma notícia triste. Estou a caminho, nem que seja


para apoiá-los e beber uma taça de vinho com todos vocês
novamente”.

Por fim, ela abriu os olhos e sorriu. Estava feliz de


poder rever o amigo druida, mas não pôde desfrutar da
felicidade por muito tempo. Levantou-se e andou até uma das
variadas estantes espalhadas pelo seu quarto. Os aposentos
da sumo-sacerdotisa eram amplos, muito maiores do que o
quarto de qualquer outro clérigo da deusa nas alas
habitacionais próximas a catedral, mas não pelo luxo: nele
estavam guardados todas as relíquias e artefatos sagrados,
assim como os tomos, pergaminhos e livros de conhecimentos
secretos, cuja leitura deveria ser controlada por ela em
pessoa.

Encontrou as ferramentas corretas, colocou-as em uma


bolsa de lã, e saiu.

Iria, ela mesma, preparar o corpo do Bom Rei para o seu


velório.

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