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GOVERNADOR VALADARES
2017
Resumo: o presente artigo procura fazer uma reflexão filosófica a respeito da filosofia
historicista. Nesse sentido, questiona se a história seria a principal ciência dentro das
ciências humanas, e ainda, se todos os conhecimentos seriam provisórios e mutáveis ou
se deveríamos afirmar a existência de certas verdade imutáveis ou inquestionáveis.
Introdução
Por ter certo conhecimento prévio a respeito de tal perspectiva, fui motivado a
realizar esse trabalho quando observei a presença do historicismo em alguns textos da
pós-graduação em saúde mental que estamos realizando: onde afirma-se que o ser
humano é um "ser histórico", que a ciência histórica seria "o método básico de estudo
da humanidade" - e outras afirmações semelhantes, como demonstrarei.
A história da filosofia está repleta de exemplos que corroboram com essa última
visão: como se pode ver claramente no clássico History of Philosophy, de Paul J. Gleen.
Seja como for, a princípio basta ressaltar que a tendência de se negar ou reduzir
o poder da cognição humana, independente das formas singulares como se manifesta e
se justifica em seus diversos modos, não é nenhuma novidade e muito menos um
privilégio exclusivo ao nosso tempo: trata-se de um fenômeno praticamente universal.
Ao se analisar a dinâmica das culturas, observa-se que o ceticismo costuma surgir
especialmente quando o número das filosofias e das diferenças e oposições entre elas se
multiplica: como no período pré-socrático, por conta das diversas doutrinas
heterogêneas e aparentemente inconciliáveis entre si; e nos próprios dias atuais, com
tantas religiões e ideologias diferentes. De fato, como a contradição é naturalmente
insuportável para a mente humana, o recuo no ceticismo ou no relativismo absoluto
pode se apresentar como uma saída fácil: ao invés do doloroso trabalho de pensar e
solucionar as contradições entre as diferentes filosofias, mais confortável é
simplesmente não fazer nada - e ao invés de tentar compreender, apenas decretar que
não é possível compreender - e ao invés de investigar se uma teoria é verdadeira ou
falsa, apenas dar de ombros e decretar que "cada um tem sua verdade": fim de papo.
E mais ainda, em um texto intitulado Saúde mental nas diferentes fases da vida
se vê claramente o relativismo vinculado a essa concepção historicista:
“Seria neste espaço de embates, oposições, debates e relativizações
que se fundamentaria o local da cultura, para parafrasear o autor em
questão. Estaria, portanto, no reconhecimento da radicalidade histórica
– entre outras coisas – como elemento constitutivo do humano que
poderíamos antever a queda da oposição simplista que ainda se insiste
dizer que há entre sujeito e objeto.” (PELLICCIOLI, 2017 – p5.).
"Foi este o grande feito de David Hume. Ele próprio considerou a sua
filosofia como a continuação do cepticismo acadêmico. E, de facto,
reaparecem nele os traços fundamentais deste cepticismo – a
facticidade simplesmente empírica da nossa organização sensível e do
pensamento com ela conexo; como consequência, a eliminação de
toda a relação de cópia entre o espírito apreensor e o mundo objectivo,
por conseguinte, transferência do conhecimento do mundo para a
simples consonância interna das percepções entre si e com os
conceitos. Mas é graças à sua análise que estas proposições obtêm o
desenvolvimento mais fecundo: das regularidades do acontecer
surgem habituações a determinadas conexões e, na força associativa a
estas inerente, reside o fundamento exclusivo dos conceitos de
substância e causalidade." (DILTHEY, 1919 – p39).
Com efeito, não é difícil visualizar a semelhança essencial entre dizer que "todo
conhecimento é provisório" - como vimos no início de nossa análise - e afirmar que
"toda fixação é apenas provisória". Não obstante, é óbvio que com isso não estou
dizendo que o autor do texto leu Wilhelm Dilthey e nem que compartilha
conscientemente dos mesmos pressupostos epistemológicos: por enquanto apenas
procurei sondar as origens históricas de uma concepção que coloca justamente a ciência
histórica como a ciência suprema no entendimento da humanidade.
DISCUSSÃO
Respondo:
1º - Como diz Santo Tomás de Aquino, toda ciência depende do primeiro princípio
indemonstrável e autoevidente segundo o qual "afirmações contraditórias não podem ser
simultaneamente verdadeiras". Assim, se Galileu afirma que a terra gira em torno do sol
e a Igreja afirma que o sol gira em torno da terra, é impossível que ambas as teses
estejam certas, uma vez que são mutuamente contraditórias. Nesse sentido, o princípio
lógico da não-contradição que condiciona a dinâmica cognitiva das nossas afirmações
deriva da própria realidade submetida ao princípio de identidade segundo o qual as
coisas são de uma determinada forma e não de outra. O intelecto humano funciona de
modo que toda afirmação deve necessariamente implicar na negação da afirmação
contrária pois esta é a lógica natural da própria realidade externa na qual uma coisa não
pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
11º – Em referência à citação que define o homem como "ser histórico", deve-se
compreender que a definição de qualquer coisa se faz pela composição do gênero
próximo e da diferença específica. Ora, o termo “ser” descreve algo comum a tudo
aquilo que existe: portanto simplesmente não pode constituir o gênero próximo de
nenhum ente – sendo justamente o gênero universal, por assim dizer. Por outro lado, a
historicidade, ou seja, o fato de estar sujeito ao movimento, à mudança, ao tempo, etc,
também não pode ser a diferença específica do homem: pois de certa forma todos os
seres da natureza são históricos, isto é, constituídos na dimensão do tempo.
Consequentemente, é evidente que a expressão “ser histórico” não pode definir o ser
humano. Na verdade, o homem se inclui no gênero próximo dos animais e sua diferença
específica é a racionalidade. Com efeito, não definimos o homem como um “ser
histórico”, e sim como animal racional.
12º – Em referência à citação que coloca o estudo da história como o "método básico de
entendimento da humanidade", é preciso entender o seguinte: para que uma ciência seja
colocada nessa posição o mínimo necessário é que seu objeto material seja o próprio ser
humano. Ora, o objeto material da ciência histórica não é o ser humano, e sim os fatos
do passado de forma geral, como já afirmamos. Logo, é evidente que ela não pode ser o
método básico de estudo da humanidade.
13º – As ciências cujo objeto material é o mesmo só podem se diferenciar entre si pelo
objeto formal, isto é, o aspecto ou a parte do objeto que se contempla: assim a medicina
estuda o funcionamento do corpo humano em geral, mas o cardiologista se especializa
no sistema cardíaco enquanto o neurologista tem por objeto formal o sistema nervoso; e
semelhantemente, a ciência física se divide em diversas especialidades – mecânica,
termodinâmica, etc, – conforme a própria realidade física se divide em vários aspectos.
Com efeito, entre as ciências que compartilham o mesmo objeto material a mais perfeita
será aquela cujo objeto formal for o mais perfeito: seja porque abrange todas ou a
maioria das partes que compõe o objeto, seja porque se especializa em uma parte que
predomina sobre as outras - como as leis da matemática predominam sobre as leis da
física, e a mente humana predomina sobre o corpo. Dessa forma, a psicologia e a
medicina, por exemplo, tem em comum o objeto material que é o ser humano; mas
enquanto a medicina considera o homem principalmente a partir do corpo – ou
especificamente em relação às potências vegetativas e todas as demais que a ela
necessariamente se vinculam (como as potências sensitivas e locomotoras) –, o objeto
formal da psicologia é a potência intelectual. Nesse sentido, além de evidentemente ser
nossa atividade mais elevada, a inteligência é o que especifica o homem enquanto
homem: pois a corporeidade, a vida, a sensibilidade, etc, são perfeições que nós
compartilhamos com os outros animais; sendo que o homem se define justamente como
animal racional na medida em que os outros são irracionais. Portanto, como seu objeto
formal não é um aspecto qualquer, mas sim o aspecto essencial do ser humano, a
psicologia parece ser a ciência mais perfeita entre as ciências humanas, e não a ciência
histórica ou qualquer outra.
14º - O objeto formal da ciência histórica são os fatos do passado na medida em que se
referem ao homem. Mais especificamente, trata-se de compreender os nexos causais
entre esses fatos enquanto são influenciados ou relacionados ao curso das ações
humanas: como no caso da revolução francesa na idade moderna e da peste negra na
idade média, por exemplo. Seja como for, como o passado enquanto tal não pode ser o
objeto direto da contemplação empírica – na qual se fundamenta todas as ciências –, a
ciência histórica só atinge o seu objeto de forma indireta: primariamente através do
testemunho das pessoas que podem comprovar os fatos do passado e secundariamente
através de outras evidências como documentos, obras de arte, monumentos
arquitetônicos e coisas desse tipo. Ora, na psicologia e na medicina o ser humano é
objeto direto da contemplação empírica. Logo, não parece nada verossímil que a ciência
histórica seja o método básico das ciências humanas e muito menos a mais perfeita entre
elas: uma vez que seu objeto material nem mesmo se restringe ao ser humano e pelo
fato de seu objeto formal não ser o homem enquanto homem.
15º - Na verdade, o primeiro aspecto que apreendemos do ser humano é a sua biologia.
Sendo assim, se for preciso falar em um "método básico" entre as ciências humanas esse
deve ser o biológico, e não o histórico.
14º - Por fim, a ideia de Wilhelm Dilthey segundo a qual só existe antagonismo entre as
diversas religiões e que as mesmas nunca chegaram a "uma decisão em nenhum ponto
importante" é simplesmente um erro histórico absurdo que pode ser demonstrado de
várias formas. Em primeiro lugar, ao se observar as diversas religiões ou filosofias da
humanidade o que se vê é uma espécie de concordância universal a respeito de certos
princípios teológicos e morais. Por exemplo, ao se comparar a filosofia de Assim, O
exemplo mais evidente diz respeito ao ponto de vista moral: pois praticamente todas as
religiões - como o cristianismo, o judaísmo, o hinduísmo, etc - reconhecem como
verdadeiros aqueles princípios básicos de moralidade natural, como "não roubar", "não
matar", "amar o próximo", etc. Além disso, apesar das várias divergências teológicas,
do ponto de vista filosófico também é possível observar concordâncias significativas
entre as religiões: tanto que na idade média os grandes mestres das principais religiões
monoteístas - Santo Tomás de Aquino, no catolicismo, Maimônides, no judaísmo, e
Avicena, no islã - reconheceram os princípios da teologia natural de Aristóteles. Dessa
forma, embora realmente haja diferenças essenciais em suas doutrinas, praticamente
todas as religiões monoteístas concordam em relação ao e Deus como uno, onipotente,
sábio, etc. Portanto, é óbvio que não existe apenas antagonismo entre as diferentes
concepções de mundo.
Considerações Finais
Os argumentos apresentados são suficientes para demonstrar que a ciência
histórica não pode ser o método básico no estudo do ser humano e que nem todos os
conhecimentos podem ser considerados provisórios.
Por último, me antecipo à seguinte objeção: o que tudo isso tem haver com a
questão da saúde mental? Qual a relevância desse trabalho contra o historicismo no
contexto da presente pós-graduação?
Pois bem. A saúde mental é uma realidade complexa que não se define apenas
pela ausência de doenças, mas sim principalmente pelo desenvolvimento das virtudes
intelectuais e morais específicas ao ser humano, entre elas a própria virtude da ciência.
Com efeito, a virtude da ciência se constitui pela aplicação do intelecto ao
conhecimento de determinadas realidades: como o biólogo estuda a vida, o matemático
estuda as grandezas numéricas, o advogado estuda as leis humanas, e assim por diante.
Ora, o historicismo, como se demonstrou, é uma ideologia que ameaça a integridade do
próprio ato intelectual na medida em que nega – de forma implícita ou explícita – a
nossa capacidade atingir um conhecimento inquestionável, por assim dizer.
Consequentemente, a relevância do meu trabalho consiste em fornecer argumentos que
desconstroem a perspectiva historicista e ao mesmo tempo fundamentam os princípios
epistemológicos necessários ao progresso da ciência, contribuindo inclusive para a
higienização mental do próprio ambiente acadêmico.
Perdoe-me o excesso de franqueza, mas a meu ver, acadêmicos que definem o
homem como “ser histórico” simplesmente não sabem o que fazem. E de forma geral,
todo o relativismo cético embutido nessa doutrina, do tipo "não há conhecimentos
inquestionáveis" e “cada um tem sua verdade”, pode até ser algo muito bonito do ponto
de vista retórico, mas é um completo despropósito do ponto de vista filosófico que
demonstra uma apreciação bastante inadequada da natureza da ciência. Como sabiam os
escolásticos
A dignidade do saber se determina pelo seu nível de certeza; e a certeza enquanto tal
pressupõe justamente a perfeição da visão pela qual as coisas são conhecidas de forma
imediata ou mediante alguma espécie de demonstração. Assim, toda afirmação que
comporta o elemento da certeza implica necessariamente na impossibilidade do
contrário; enquanto, por outro lado, as afirmações incertas comportam a possibilidade
do contrário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GLEEN, Paul J. - History of Philosophy - 9.ed - Nova York: B. Heder Book co, 1944 -
381p.
15º - Com relação à doutrina do sensualismo, de várias formas se pode demonstrar que
"o processo do conhecimento" não se reduz à "experiência sensível externa". Trata-se de
uma questão complexa onde o que está em jogo é a diferença entre a potência sensível e
a potência intelectual que necessitaria de um trabalho à parte para ser respondida. Sendo
assim, por uma questão de economia tentarei responder esse problema da forma mais
sucinta possível. ... O objeto próprio da sensibilidade é a espécie sensível: a cor, no caso
da visão, o som, no caso da audição, etc
O procedimento científico
A todo instante em que discursamos sobre o que quer que seja, a inteligência manifesta
o seu poder de abstração. O próprio conceito de "experiência sensível" não é uma
experiência sensível, mas o produto resultante da operação intelectual que abstrai o
universal do particular. Pelo cont, se a cognição humana se esgotasse na simples
experiência sensível nós nem sequer seríamos capazes
Se todo o nosso conhecimento fosse apenas sensível não haveria nenhuma diferença
qualitativa entre a cognição humana e a cognição dos outros animais, mas apenas
quantitativa. Além disso, como muitos animais possuem a sensibilidade mais apurada
do que a nossa, seria de se esperar a superioridade cognitiva desses mesmos em relação
ao homem. Ora, é evidente que há : pois a cognição humana é muita mais profunda do
que a cognição dos animais. Com efeito, os animais conhecem as coisas sem
compreender o que elas são
Com efeito, a sensibilidade se refere às espécies sensíveis, como a cor, o sabor, o cheiro,
etc. A forma mais eficiente consiste em analisar a operação própria do intelecto: a
abstração. Com efeito, pela abstração o homem é capaz de separar cognitivamente
aquilo que a sensibilidade apreende como estando
Com efeito, a experiência sensível me diz que uma coisa está quente ou fria, mas não é
através do tato que nós compreendemos a
O caminho mais simples pelo qual essa ideia pode ser refutada parte da comparação
entre os homens e os outros animais no que se refere ao ato cognitivo. Com efeito,
muitos animais possuem potências sensitivas externas superiores em relação ao ser
humano: de forma que conseguem ver, ouvir, cheirar, etc, com muito mais acuidade.
Ora, se o processo do conhecimento se reduzisse a essas potências sensitivas, como a
visão e a audição, consequentemente esses animais deveriam ser cognitivamente
superiores ao homem. Mas a verdade é justamente o contrário: todos eles são incapazes
de realizar atos cognitivos elevados como a intuição, o juízo, o raciocínio, a abstração,
etc. Portanto, uma vez que o homem é inferior no aspecto da sensibilidade, mas superior
na cognição de forma geral, infere-se que o seu processo de conhecimento não pode ser
reduzido às potências sensíveis e nem apenas aos objetos que lhes são correspondentes.
15 - Uma coisa é sentir o calor, outra coisa é entender a causa do calor. Uma coisa é ver
as cores, ouvirs os sonhos e sentir os sabores; outra coisa completamente diferente é
compreender os próprios conceitos de "cor", "som", "cheiro".
15 - Na verdade, uma coisa é ver e outra coisa é entender. Os animais também são
capazes de ver o homem, os outros animais, os seres
15º - Uma coisa é sentir, e outra coisa é entender. Os animais podem ver os objetos e as
cores, ouvir os sons, sentir os odores, etc. Mas não conseguem compreender o próprio
conceito de "cor", "som", "odor", etc.