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I. A Centralidade do Sujeito:
1
Sobre as diferentes questões que levam ao início da modernidade e que caracterizam o seu desenvolvimento
inicial, ver Tom Sorell (1993).
2
Ver Robert P. Amico (1993).
3
Ver a este propósito, Richard H. Popkin (2000), especialmente caps. I e II.
4
se há apenas uma realidade, deve haver apenas uma verdade correspondendo a esta
realidade. Só posteriormente essa herança será questionada.
O problema do critério consiste na impossibilidade de se determinar um critério de
validade universal para se avaliar teorias e pretensões ao conhecimento, uma vez que os
critérios são sempre eles próprios internos às teorias.
Descartes teria sido o filósofo por excelência que vê na subjetividade a saída para o
problema cético do critério4. Com efeito, Descartes parece formular o modelo mais claro e
mais elaborado de subjetividade neste período. Mas porque se considera que Descartes vê
no recurso ao sujeito a solução do problema? A interpretação tradicional relaciona dois
textos em que se encontra a resposta a essa questão:
O primeiro é o do Discurso do Método, parte II, a passagem sobre as “regras do
método”, destacando-se a primeira regra, ou preceito:
O primeiro preceito era o de jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que
não soubesse ser evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a
precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse
tão clara e tão distintamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma chance de
colocar em dúvida.
Trata-se certamente de uma exigência muito forte, talvez até excessivamente forte.
O que poderia satisfazer essa exigência? A resposta pode ser encontrada no segundo texto,
a formulação do célebre “argumento do cogito” nas duas primeiras das Meditações
Metafísicas5, em que Descartes apresenta uma certeza imune à dúvida. Isso responde à
necessidade de encontrar uma certeza que supere o dilema em que o problema cético do
critério nos mergulha; o cogito é a evidência pretendida e fornece assim o critério, o que
permite satisfazer a exigência da primeira regra do método, citada acima.
Segundo essa interpretação, o projeto cartesiano consiste na investigação conceitual
da possibilidade do conhecimento científico antes (anterioridade lógica) de se empreender a
investigação científica. É nesse sentido que se pode afirmar que o sujeito é definido como
4
Sobre a tentativa cartesiana de solução desse problema, ver Popkin, op.cit., cap.IX.
5
Descartes, op.cit, págs.121-127.
5
sujeito epistêmico. O sujeito cartesiano, enquanto sujeito cognitivo, de acordo com essa
tradição interpretativa tem as seguintes características6:
São esses os principais elementos que definem o assim chamado “sujeito moderno”
e são o principal alvo da crítica ao subjetivismo. Na verdade a noção de sujeito que
encontramos aí é derivada basicamente de uma característica, a substancialidade.
6
Para uma análise semelhante de características definidoras do sujeito, ver Telma de Souza Birchal,
Montaigne e seus duplos: elementos para uma história da subjetividade, dissertação de doutorado em
filosofia, UFMG, 2000, pág.4.
7
Sobre a noção de interioridade ver Charles Taylor, The Sources of the Self, Harvard Univ.Press, 1989,
especialmente a parte II, “Inwardness”.
6
10
Sobre a crítica de Kant a Descartes, ver Landim (1997). Preferi evitar aqui uma discussão sobre a distinção
entre o sujeito cartesiano e o sujeito transcendental kantiano, o que seria tema para outro artigo.
11
Ver a esse respeito J.Habermas (1982), cap.I, “A crise da crítica do conhecimento”.
12
Especificamente no apêndice à “Resposta às Segundas Objeções”, intitulado “Razões que provam a
existência de Deus e a distinção que há entre o espírito e o corpo humano, dispostas de uma forma
geométrica”.
13
Ver S. Gaukroger (1995).
8
14
Michel de Montaigne (1962). Sobre a subjetividade em Montaigne ver Telma de Souza Birchal, op.cit.
9
15
Ver C.B.MacPherson (1979).
16
Ver M.Foucault (1984).
17
Sobre as raízes antigas da subjetividade moderna e a influência de Santo Agostinho, ver Taylor, op.cit.
10
mesmo a afirmar que vivemos em dois mundos, no primeiro somos livres (o moral)
e no segundo somos determinados (o epistêmico).
18
Montaigne, por exemplo, reflete sobre essa questão das novas culturas da América em seus Essais.
12
sobre o discurso, ou talvez mais precisamente, sobre as palavras que compõem esse
discurso.
de perto por terem uma relação mais direta com a linguagem. Os ídolos do mercado são os
mais perniciosos, no dizer de Bacon, e surgem em conseqüência da vida social, da interação
entre os homens. Segundo Bacon (op.cit., seção 43) essa interação se faz por meio da
linguagem e “de uma formação inadequada e inepta das palavras resulta uma fantástica
obstrução da mente”; essas palavras “forçam o entendimento, lançam tudo em confusão e
levam a humanidade a inúmeras controvérsias e falácias”(op.cit., loc.cit.). Há dois tipos de
erros que são conseqüência da má influência das palavras sobre o entendimento: palavras
cuja referência é ilusória e resultam de crenças falsas e fantasiosas, como o destino, o
primeiro motor, etc.; e palavras cuja definição é imprópria e confusa, resultando de um
processo de abstração inadequado, o que provoca controvérsias sobre o seu verdadeiro
significado (op.cit., seção 60). Os ídolos do teatro decorrem de teorias e sistemas
filosóficos e científicos falsos e errôneos, que criam “mundos fictícios”, comparados por
Bacon ao teatro (op.cit., seção 44). Embora a crítica de Bacon a essas teorias seja
essencialmente epistemológica, já que é do ponto de vista metodológico que se revelam
errôneas, no entanto, elas se constituem em discursos e dessa forma suas falhas são em
parte as descritas acima na caracterização dos ídolos do mercado. Bacon apresenta ainda
um argumento adicional sobre o abuso das palavras, que consiste em uma tendência do ser
humano, por força do hábito, de prestar mais atenção às palavras do que aos seus
conteúdos, a seu significado, ou seja, às idéias (notions, na terminologia de Bacon)
associadas às palavras. O abuso consiste então em tomar as palavras, cujo uso leva a
distorções e imprecisões, no lugar do que deveriam significar, as idéias ou noções, essas
sim dotadas de valor cognitivo (op.cit., seções 59-60).
A posição de Bacon consiste na rejeição da tradição devido a seus erros e
contradições, a imprecisão das palavras dada a sua variação e origem no uso comum, que as
torna instrumentos ineficazes para a constituição do conhecimento e o caráter equívoco das
definições que se pretendem sobre a natureza das coisas, mas dependem apenas do
significado impreciso das palavras. Bacon acrescenta ainda, como um tipo de abuso, a
relação entre as palavras e as idéias correspondentes, quando em vez de passar das palavras
às idéias nos fixamos nas palavras, um veículo imperfeito desse conhecimento.
Embora a filosofia de Descartes seja radicalmente diferente da de Bacon, sobretudo
por adotar a razão natural ou inata como critério epistemológico de certeza capaz de superar
17
Sob esse aspecto sua atitude em relação à linguagem não é muito diferente da que
examinamos em Bacon e Descartes. Por outro lado é significativo que em sua obra mais
importante do ponto de vista epistemológico e que teve grande influência no
desenvolvimento do pensamento moderno, o Ensaio sobre o Entendimento Humano
(1689), Locke dedique todo o livro III, intitulado “Sobre as palavras”, ao problema do
significado. Podemos realmente nos perguntar porque Locke julga necessário, após a
discussão com o inatismo cartesiano no livro I, e a apresentação de sua teoria das idéias no
livro II, redigir o livro III dedicado à linguagem, antes do livro IV sobre o conhecimento, se
a linguagem não tem nenhum papel relevante no processo de conhecimento e na
formulação das teorias científicas. A posição de Locke acerca da linguagem, entendida
como palavra, ou seja, signo lingüístico, é na verdade bastante ambivalente. Locke
considera que a linguagem é indispensável para a comunicação, isto é, para veicular nossos
pensamentos a nossos interlocutores e, portanto, é indispensável para a vida em
comunidade, inclusive para a comunidade científica. O filósofo foi um membro ativo da
Royal Society na Inglaterra, participando de suas reuniões e convivendo com os principais
cientistas da época19. Ao mesmo tempo, considera a linguagem sujeita ao “abuso”
exatamente no sentido examinado acima, sendo por este motivo, pouco confiável.
O argumento da imprecisão e da variação do significado é utilizado explicitamente
por Locke:
Embora os nomes “glória” e “gratidão” sejam os mesmos na boca
de todos os homens, em todo um país, contudo a idéia complexa
coletiva, que está no pensamento de cada um, ou que cada um
intenciona por estes nomes, é aparentemente muito diferente em
homens usando a mesma língua.
Locke, Ensaio, III, x, 22.
É este argumento que leva à consideração das palavras como sofrendo um “abuso”,
no mesmo sentido dos filósofos examinados acima:
Este inconveniente do mal uso das palavras os homens sofrem em
suas próprias meditações privadas; mas, muito mais manifestas são
as desordens que ocorrem em conseqüência disso na conversação,
no discurso e na argumentação com outros. Pois a linguagem sendo
19
Restrinjo-me aqui a uma análise do aspecto epistêmico da questão da linguagem em Locke. Uma análise na
mesma linha, ressaltando a importância da comunicação, pode ser feita acerca da filosofia política de Locke,
também de grande importância e influência na época.
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relevante. Embora a solução de Locke seja essencialmente mentalista, uma vez que
subordina as palavras às idéias, considerando o significado como dependente da
representação mental, ainda assim consiste em uma proposta de uma teoria do significado,
ou seja, de uma filosofia da linguagem.
Estamos ainda muito distantes dos desenvolvimentos posteriores na filosofia e na
ciência da linguagem, que se iniciam no séc. XIX, bem como das posições anteriores, do
final da Idade Média, com as filosofias nominalistas e as gramáticas especulativas, mas, por
outro lado, a posição de Locke parece ser a primeira a romper com a visão puramente
negativa de linguagem na tradição epistemológica moderna, apontando o caminho para o
desenvolvimento posterior de um maior interesse filosófico pela linguagem.
Referências Bibliográficas
Amico, Robert P., The Problem of the Criterion, Rowman & Littlefield Publ.Inc,
1993.
Bacon, Francis. Novum Organum. Chicago, Encyclopaedia Britannica, Great Books,
vol.30, 1956.
Birchal, Telma de Souza, Montaigne e seus duplos: elementos para uma história da
subjetividade, dissertação de doutorado em filosofia, UFMG, 2000, p.4.
Descartes, René, Oeuvres Complètes. Ed.C.Adams e P.Tannery. Paris, Vrin, 1963.
Foucault, Michel de, Le Souci de Soi, Histoire de la Sexualité, vol.3, Paris,
Gallimard, 1984.
Gaukroger, Stephen, Descartes: an intellectual biography. Oxford, Clarendon Press,
1995.
Habermas, J. “La Modernité: um projet inachevé”, Critique, Octobre, 1981, n.431.
Heidegger, Martin, Nietzsche, Paris, Gallimard, 1971.
Kretzmann, Norman. “The main theses of Locke’s semantic theory”, em I.C.Tipton
(org.) Locke on Human Understanding, Oxford, Oxford Univ.Press, 1977.
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