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NADA DO QUE É HUMANO PODE SER ESTRANHO PARA NÓS


Misericórdia - Discipulado - Profecia - Reino
Uma nova gramática para a Missão
19 a 23 de Janeiro de 2015
Aparecida do Norte

"Vamos sair também nós do recinto sagrado


para ir ao encontro de Jesus, carregando a humilhação dele.
Pois nós não temos aqui a nossa pátria definitiva,
mas buscamos a pátria futura.
(Hb 13,12-13)

frei Carlos Mesters, carmellita


Introdução

1. Fatos novos de hoje que pedem uma nova gramática

2. A Luz que vem da prática dos profetas do cativeiro da Babilônia


1. Cativeiro: a quebra da gramática antiga
2. O caminho dos profetas em busca de nova gramática
* O ponto de partida: a dupla escuridão
1. a escuridão da desintegração da antiga gramática
2. a luz escura da fé que dizia: Deus é e continua sendo YHWH,
* A luz nova que surge de três fontes
1. A nova leitura da natureza.
2. A experiência do amor.
3. A Palavra de Deus, revelada na natureza
* A descoberta da nova gramática: existimos para servir
3. Os profetas começam a usar a nova gramática
* Acolher o povo com muita ternura: Misericórdia
* Reunir o povo e ensinar dialogando: Discipulado
* Fazer nascer consciência crítica: Profecia
* Ser uma presença viva da Boa Nova de Deus: Reino

3. A Luz que nos vem da prática missionária de Jesus


1. Palavras e gestos de Jesus que revelam uma nova gramática da missão
2. Três resumos da prática missionária de Jesus nos três sinóticos
3. Cinco sínteses a respeito da prática missionária de Jesus
1. A lista dos excluídos acolhidos por Jesus na sua prática missionária
2. As categorias de pessoas acolhidas por Jesus
3. Jesus denuncia as divisões que eram legitimadas em nome de Deus
4. Os sete critérios de Marcos para saber se nossa prática missionária é boa
5. As características da nova comunidade que se forma ao redor de Jesus
4. Alguns flashes do novo modo de ensinar
5. A nova leitura da Bíblia
6. A raiz de tudo: a nova imagem de Deus como Pai
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Introdução

Duas frases chamaram a minha atenção: "Nada do que é humano pode ser
estranho para nós" e "Uma nova Gramática para a missão". Se eu digo Nada do que é
humano pode ser estranho para nós, assumo o humano como critério básico da minha
vida e com ele relativizo o resto. O que importa, antes de tudo, é ser humano. O resto
é roupa, inclusive o fato de ser cristão. Jesus veio para nos ajudar a sermos plenamente
humanos. Pois foi assim que Deus nos criou.

Se eu busco uma nova gramática para a missão, estou dizendo que existem fatos
novos na ação missionária que já não consigo ler nem entender com a antiga
gramática, na qual cresci, fui formado e me tornei missionário, deixei a Europa e vim
para a América Latina. Preciso de uma nova gramática.

1.
Fatos novos de hoje
que pedem uma nova gramática
Geralmente, a gramática que se usa não é consciente nas pessoas. Quando
aparecem fatos novos que não combinam mais com o modo comum de encarar a
Missão, aí ficamos meio perdidos e aparece a necessidade de uma nova gramática. Vou
enumerar alguns destes fatos ou atitudes que estão acontecendo hoje:

1. Jesus deu esta ordem: "Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Nova para toda a
humanidade. Quem acreditar e for batizado será salvo. Quem não acreditar será
condenado" (Mc 16,15-16). Posso dizer para meu vizinho: "Se você não acreditar,
vai ser condenado?" Hoje, todo mundo dirá: "Pode não!" Então, como é que fica a
palavra de Jesus? Antigamente, a prática missionária seguia à risca estas palavras
de Jesus.

2. Em 1552, os neófitos do Japão perguntavam a Francisco Xavier: “Onde estão os


nossos pais e parentes falecidos?” Francisco respondeu: "Foram condenados!" Os
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japoneses não quiseram mais saber da "Boa Nova". Na Ásia o avanço missionário
não teve o resultado desejado. O bom senso e a resistência da cultura e da religião
dos povos asiáticos foram mais fortes.

3. Qual a motivação que me leva a ser missionário? Evitar que as pessoas sejam
condenadas? Atraí-las para dentro da igreja? Competir com as outras religiões?
Falar de Deus e de Jesus? Irradiar ou impor? Anunciar ou amedrontar? Com que
direito eu, ser humano, me apresento aos outros com um anúncio universal em
nome de Deus? De onde vem a pretensão universal dos cristãos?

4. Na América Latina o anúncio da Boa Nova foi mais uma invasão que desconsiderou
a cultura e a religião dos povos. De um diálogo entre missionários espanhóis e
caciques do México: -"Vocês devem aceitar o nosso Deus!" -"Só podemos fazê-lo
com licença dos nossos antepassados. Mas vocês os mataram!" -"Se vocês não
aceitarem nosso Deus, não poderão ir para o céu!"

5. Nos século XIX e XX, milhares de missionários saíram da Europa para Ásia, África e
América Latina. E fica a pergunta de Charles de Foucauld: foi anúncio da Boa Nova,
difusão da civilização cristã ocidental, expansão da política colonizadora ou para
impedir o avanço do protestantismo?

6. As duas guerras mundiais do século XX, provocadas pelas nações cristãs, causaram
a morte de mais de sessenta milhões de pessoas. O século de maior expansão
missionária foi também o século de maior violência e mortandade da história. Fica
a pergunta: Qual a credibilidade da ação missionária das nações cristãs?

7. Os meios de comunicação nos colocam em contato direto com as religiões e


culturas do mundo inteiro. Isto relativiza nossas certezas. Onde está a verdade?
Existe algum privilégio para nós cristãos? Desaparece nosso privilégio,
desaparecem nossas pretensões.

8. A ciência oferece uma visão nova do Universo que afeta o olhar sobre nossa tarefa
missionária: o céu lá em cima, o mundo cá em baixo, salvação eterna, entrada no
Reino, inferno e condenação eterna, etc. Como entender a ação missionária à luz
do resultado das ciências?
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8. Muçulmanos divulgam a sua religião, atraem pessoas para a sua fé. Nós cristãos
fizemos e fazemos o mesmo para anunciar a Boa Nova de Jesus. Qual a diferença
entre o nosso anúncio e o anúncio deles? Foram séculos de muitos conflitos e
guerras, em nome de Deus, até hoje!

9. Karl Rahner falava a um grupo interreligioso sobre o "cristão anônimo". Um rabino


o escutou e disse: "Agora me convenci: você é um judeu anônimo". As outras
religiões podem ter a mesma pretensão de julgar-se universais com os mesmos
direitos? Que direitos?

11. O Papa, ao convocar as religiões para rezar pela paz em Assis, coloca-se em pé de
igualdade com elas. Aí desaparece a pretensão de a religião cristã ser a melhor. É
um sinal dos tempos: as religiões e as culturas se unem em defesa do humano e
em defesa da vida.

12. Irmã Genoveva viveu nos Tapirapé até os 95 anos de idade. Ela conviveu, não
ensinou quase nada. Apenas foi amiga, e a vida dos Tapirapé mudou por completo.
A simples presença dela fez nascer algo novo, inesperado. Vida nova!

Todos estes questionamentos mostram que algo de fundamental está mudando. O


chapéu já não serve mais. A forma da cabeça mudou. Alguns insistem e dizem: "O
chapéu é bom. A cabeça é que não é como Deus quer!" E insistem em manter a
gramática antiga. Eles nos vencem com seus argumentos, mas já não convencem. Algo
os diz: "A gramática antiga não serve mais!"

No título vocês colocaram quatro palavras que, de certo modo, apontam o rumo
por onde se deve buscar a nova gramática: misericórdia, discipulado, profecia, reino.

Misericórdia é ter o coração na miséria dos outros.


Discipulado é assumir que não sabemos tudo e que devemos aprender dos outros.
Profecia é ter a coragem de animar os pequenos e denunciar o erro.
Reino é permitir que Deus tome conta de tudo e que sejamos a revelação do seu rosto.

Estes questionamento modificam o olhar com que olhamos para a Bíblia e nos
fazem descobrir dentro dela coisas que antes não enxergávamos. Por isso, é com estes
questionamentos na cabeça e no coração, que vamos buscar uma luz na Bíblia em duas
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direções: na prática missionária dos profetas na época do cativeiro da Babilônia e na
prática missionária de Jesus.

2.
A Luz que nos vem da prática dos profetas
na época do cativeiro da Babilônia

1. Cativeiro: a quebra da gramática antiga

No mês de agosto de 587 aC., Nabucodonosor deu ordem ao general Nabuzardã


para destruir Jerusalém, a Cidade Santa (2Rs 25,8-12; Jer 52,12-16). Tudo aquilo que,
até àquele dia, tinha sido sinal visível da presença de Deus, foi destruído.

O Templo destinado a ser a morada de Deus (1Rs 9,3), foi incendiado (2Rs 25,9).
O Culto instituído como sinal perpétuo, estava interrompido (Lam 2,6-7).
Os Sacerdotes massacrados (Jer 52,24-27),levados para o cativeiro (Sl 79,1-3; Lm 4,16).
A Monarquia sempre teria Davi no trono (2Sam 7,16), já não existia mais (2Rs 25,7).
Jerusalém residência divina (Sl 132,13-14), foi destruída (Lam 1,6; 2,1-10).
A Terra prometida a Abraão (Gn 13,15), é dos inimigos (2Rs 25,12; Jr 39,10; 52,16).
O Povo chamado ser povo eleito de Deus, está desterrado e massacrado.

Perderam o quadro de referências. Tudo mudou! A imagem do Deus vitorioso e


guerreiro da época da monarquia quebrou em mil pedaços. A ideologia da conquista e
do anúncio agressivo, da época da monarquia, entrou em colapso. Eles agora se
encontram numa situação totalmente diferente: sem território próprio, sem poder
político, sem organização independente, sem rei, sem templo, sem notícia para
anunciar. A gramática em vigor durante os 400 anos da monarquia deixou de existir.

Agora eles são apenas um grupo étnico perdido no meio de outros grupos étnicos
num império multicultural e multirreligioso de poderosas divindades estrangeiras. Eles
não passam de uma minoria escravizada, sem nenhum privilégio, sem nenhuma
preferência, procurando sobreviver no meio das tensões, sem horizonte, sem
gramática para poder ler a situação.
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É como hoje. Somos uma religião no meio das outras, perdemos os privilégios. E
tínhamos privilégios? Perdemos nossas pretensões. Qual a saída? Encontrar a saída
hoje não é fácil, pois nem todos pensam do mesmo jeito. Há muitas tensões e
movimentos em muitas direções?

Qual a saída que eles encontraram lá no cativeiro da Babilônia? Também lá no


cativeiro havia muitas divisões, muitos grupos e tendências.

1. Alguns, como o grupo de Zorobabel, alguns ficaram com a gramática antiga.


Tentaram reeditar o passado. Zorobabel era de descendência real. Junto com ele
estavam Josué, que era sumo sacerdote, e o profeta Ageu. Sacerdote, rei e profeta!.
Voltaram para Jerusalém e quiseram reconstruir o templo (Zac 3,1-9; Esdras 1,1-11;
2,1-2; Ne 7,6-7). Não tiveram futuro.

2. No século seguinte, em torno do ano 450, Esdras e Neemias mantiveram a


gramática antiga, mas não ao pé da letra. Eles já tinham boas posições na terra do
exílio e não lhes convinha voltar todos para Jerusalém. Queriam uma Jerusalém
reedificada como símbolo da unidade do Povo de Deus espalhado pelo mundo.
Insistiam na observância da lei e em viver separado dos outros povos. Chegaram a
expulsar as mulheres estrangeiras para reforçar a consciência de povo eleito (Esd 9,1 a
10,17). Esta tendência teve a hegemonia e conseguiu impor-se.

3. Um outro grupo mais ligado aos profetas, não propõe a volta ao passado, nem
uma nova leitura da antiga gramática. Eles querem saber qual o apelo de Deus para
eles naquela situação desastrosa do cativeiro; O que Deus quer de nós? Eles eram um
movimento mais escondido que continuou vivo nas camadas mais simples da
convivência e renasceu com forço na época do Novo Testamento. É esta tendência dos
profetas que vamos ver de perto.

2. O caminho dos profetas

O ponto de partida: a dupla escuridão do não saber

Na raiz da busca dos profetas está uma dupla experiência de escuridão: de um


lado, a escuridão da desintegração da antiga gramática e, do outro lado, a luz escura da
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fé que dizia: Apesar de todas as aparências em contrário, Deus continua sendo Javé,
presença fiel no meio de nós.

1. a escuridão da desintegração da antiga gramática

A terceira Lamentação retrata bem o sofrimento e o desespero do povo:

“Eu sou o homem que conheceu a dor de perto, sob o chicote da sua ira. Ele
(Deus) me conduziu e me fez andar nas trevas e não na luz. Ele volve e revolve
contra mim a sua mão, o dia todo. Consumiu minha carne e minha pele, e
quebrou os meus ossos. Ao meu redor, armou um cerco de veneno e amargura,
me fez morar nas trevas como os defuntos, enterrados há muito tempo. Cercou-
me qual muro sem saída, e acorrentado, me prendeu. Clamar ou gritar de nada
vale, ele está surdo à minha súplica. ... Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade
acabou. Eu digo: "Acabaram-se minhas forças e minha esperança em Javé" (Lam
3,1-8.17-18).

Deus aparece como o grande culpado de tudo. A imagem de Deus que


transparece nas entrelinhas deste lamento é a de um carrasco que só quer castigar e
vingar. Foi esta falsa imagem de Deus que desencaminhou muita gente. Quem observar
a vida e a natureza com esta imagem de Deus nos olhos, nunca irá redescobrir a
presença amorosa de Deus na vida. Muitos se acomodaram e seguiram a religião do
império, mais atraente, menos incômoda, com muita religiosidade e procissões.

2. a luz escura da fé: Deus é e continua sendo YHWH,

Logo em seguida, o mesmo lamento continua dizendo:

"(Javé), lembra-te de minha miséria e sofrimento, o fel que me envenena. Guardo


triste essa lembrança e me sinto abatido. Mas existe alguma coisa que eu lembro
e me dá esperança: o amor de Javé não acaba jamais e sua compaixão não tem
fim. Pelo contrário, renovam-se a cada manhã: "Como é grande a tua
fidelidade!" Digo a mim mesmo: "Javé é minha herança", por isso nele espero.
Javé é bom para os que nele esperam e o procuram. É bom esperar em silêncio a
salvação de Javé" (Lam 3,19-26).
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Aqui, nestes versículos 17 a 19, a Lamentação entra numa curva que aponta para
o novo horizonte, despertado pela nome Javé. No mais fundo da memória existe algo
que faz ter esperança. A palavra chave é recordar, lembrar. Re-cordar significa fazer
passar os fatos de novo pelo coração. O autor do lamento não foge do confronto com o
seu passado. A dor, causada pela destruição de Jerusalém e pela desintegração violenta
do povo, tem algo a lhe dizer, em nome de Javé. Sem medo, ele começa a recordar, a
mexer na ferida, pois lá no mais fundo da memória do coração, existe algo "que me faz
ter esperança!" Por isso ele aguenta, sem desfalecer.

É na memória que está a fonte da nossa identidade. A Bíblia nasceu da teimosia


daquele povo em não perder a memória, a identidade, a consciência da sua missão,
apesar das muitas tentativas tanto dos reis como dos falsos profetas em manipular a
história.

O nome Javé é o fundamento desta teimosia. Algo começa a renascer, a


borbulhar no pântano da dor. A luz vem de dentro, não de fora. Vem como fruto de
uma busca persistente naquela escuridão dentro e fora. A teimosia da fé faz ficar
diante de Deus, até que apareça a resposta. É bom esperar em silêncio a salvação de
Javé. Ele diz: "Existe alguma coisa que eu lembro e me dá esperança: o amor de Javé
não acaba jamais e sua compaixão não tem fim". Aqui aparece a palavra hesed,

dsh,,, amor fiel. É a palavra central da Aliança. Indica tudo aquilo que Javé fez e
continua fazendo pelo povo.

Na sequência da lamentação, a partir deste momento, Deus já não é mais ELE que
de longe ameaça e castiga. Deixou de ser um poder anônimo distante, e volta a ser Tu,
com o nome Javé, o nome de sempre: presença libertadora no meio do povo. A
lembrança do Nome do bem-amado abriu a janela por onde vai entrar a luz. Este

nome, estas quatro letras, hwhy, aparecem mais de 6000 vezes só no Antigo
Testamento. É o nome que os primeiros cristão vão dar a Jesus: o nome acima de todo
nome! Este nome é como pavio de vela que sustenta e ilumina a história.

A luz nova que surge de três fontes


1. A nova leitura da natureza.
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Naquele desespero do cativeiro, o profeta Jeremias encontrou motivos de
esperança. É como se dissesse: "Vocês dizem que Deus já não cuida de nós; e que
deixamos de ser povo de Deus! Eu digo que Deus não nos abandonou. E sabem por
quê? É que o sol vai nascer amanhã!" Cada manhã, através da sequencia dos dias e das
noites, Deus nos fala ao coração e nos diz:

“Como é certo que eu criei o dia e a noite e estabeleci as leis do céu e da


terra, também é certo que não rejeitarei a descendência de Javé e de meu
servo Davi.” (Jr 33,25-26; cf Jer 31,35-36). “Se vocês puderem romper a
minha aliança com o dia e com a noite, de modo que já não haverá mais
dia nem noite no tempo certo, também será rompida a minha aliança com
o meu servo Davi” (Jr33,20-21).

A certeza do nascer do sol não depende dos poderes deste mundo, nem da nossa
observância da lei, mas está impressa na lógica da criação. É promessa gratuita que não
falha, expressão da fidelidade de Deus. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não
consegue impedir o nascimento do sol. Nossa infidelidade pode ter sido grande, mas
ela não impede o nascimento do sol!

Jeremias abriu um largo horizonte e ajudou o povo a ler a natureza com um novo
olhar. Era nos fenômenos da criação que ele via um sinal da presença de Deus e da sua
fidelidade para com o povo: na sequencia inalterada dos dias e das noites; no sol que
se levantava todos os dias sobre a cidade destruída; na lua minguante e crescente; na
alternância das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno; nas chuvas, nas
plantas e sementes, etc. Tudo isto era para Jeremias um sinal da certeza de que Deus
continuava fiel ao seu povo e de que Ele não havia rompido sua aliança, como alguns
andavam dizendo (cf. Is 49,14). A natureza tornou-se sinal transparente da presença
gratuita de Deus no meio do seu povo. Sinal muito concreto que não deixava dúvidas.
Sinal muito humano e universal. Deus continuava sendo Javé, presença amorosa no
meio do povo

2. A experiência do amor.

A presença de Deus na natureza é pura gratuidade, expressão do bem-querer do


Criador, expressão do amor gratuito e eterno de Deus.
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"De longe Deus me apareceu: eu amei você com amor eterno; por isso
conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). E esta outra de Isaías: "Pode a
mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de ter amor pelo filho de
suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não me esquecerei de você"
(Is 49,15). E mais esta: “Num ímpeto de ira, por um momento eu escondi de
você o meu rosto; mas agora, com amor eterno, volto a me compadecer de
você, diz Javé, seu redentor” (Is 54,8).

É como se Deus dissesse ao povo: “Depois de tudo que você fez, você já não
mereceria ser amada. Mas meu amor por você não depende do que você fez por mim
ou contra mim. Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso,
apesar de tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você,
mesmo você me matando, eu amo você para sempre!" Amor eterno! Foram os
profetas que souberam redescobrir esta dimensão infinita do amor gratuito de Deus
(cf. Is 41,8-14; 49,15;Jr 31,31-37; Os 2,16) e souberam expressá-la com novas imagens
e símbolos.

Como tantos exilados e migrantes de hoje, os exilados viviam desenraizados e


perdidos na imensidão do império da Babilônia (587 a 535 aC). O único espaço de uma
certa autonomia e liberdade que ainda sobrava para eles no cativeiro era o espaço
familiar: o pai, a mãe, o marido, a esposa, os filhos, o mundo pequeno da família, a
“casa”. Todo o resto que antes fazia parte da vida já não existia: a organização mais
ampla do clã, a vida no povoado, a posse da terra, o templo, as peregrinações, o culto, o
sacrifício, o sacerdócio. Nada disse sobrou. Hoje dizemos: “Só sobrou o corpo!"

Ora, foi exatamente neste espaço reduzido e tão enfraquecido da pequena família,
da “casa” ou do “corpo”, que eles reencontraram a presença de Deus. O Deus que,
antes, estava ligado ao Templo, ao sacerdócio, ao culto oficial, à Monarquia, agora está
perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e, humanamente falando, sem futuro,
mas Casa, e não Templo. Por isso, como que naturalmente, usaram as imagens da sua
própria vida familiar e não as da religião tradicional para expressar a nova experiência
de Deus e da vida. Deste modo, eles, por assim dizer, humanizaram a imagem de Deus e
sacralizaram a vida como o espaço do reencontro com Deus. “Realmente, tu és um
Deus que se esconde, Deus de Israel, Deus salvador!” (Is 45,15) Ele se esconde e se
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abriga onde antes ninguém o procurava: em casa, no relacionamento diário familiar, no
meio do povo exilado e excluído! Como outrora no Êxodo, Deus “desceu” novamente
do alto para estar junto do povo oprimido e exilado:

Na raiz da caminhada dos profetas, não está a ameaça de castigo, mas sim a forte
experiência do Amor de Deus. O que mais chama a atenção nas imagens por eles
usadas nos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías para expressar o novo relacionamento
com Deus é a dimensão pessoal e familiar. Deus é experimentado como Pai. Dirigindo-
se a Deus, eles diziam: “Tu, Javé, és nosso Pai. Nós somos a argila e tu és o nosso
oleiro, todos nós somos obras das tuas mãos” (Is 64,7; 63,16). Apresentam Deus como
Mãe. Dirigindo-se ao povo, o próprio Deus usa imagens maternas para expressar o seu
amor pelo povo. Ele diz: “Vós, a quem carreguei desde o seio materno, a quem levei
desde o berço” (Is 46,3; cf. 49,15-16; 66,12-13). Deus é apresentado como o Marido do
povo: “Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu edificador.
Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em
ti!” (Is 62,5; cf. 54,4-5). Deus é o Go´êl , o Redentor, o Irmão mais velho ou parente
próximo, que resgata o povo: “Não temas, vermezinho de Jacó, e tu, bichinho de Israel.
Eu mesmo te ajudarei, oráculo de Javé; o teu Redentor é o Santo de Israel!”(Is 41,14;
43,1).

Jesus confirmou este amor sem limites, quando perdoou o soldado que o matava
(Lc 23,34) e quando contou a parábola do filho pródigo que pediu a herança ao pai (Lc
15,11-32). Herança só começa a funcionar na morte do pai. A rapaz queria a morte do
pai, e o pai o acolheu, sem sequer mencionar o desatino do filho.

3. A redescoberta da Palavra de Deus na vida

Eles não tinham mais templo, nem rei, nem terra, nem sacrifícios. Perderam tudo!
A única coisa que sobrou era a memória do que Deus tinha feito no passado. Com olhar
da experiência do amor de Deus, eles começam a lembrar o passado, não para
aumentar a saudade, nem para refazer o passado, mas para tirar lição e descobrir novo
horizonte.

Meditando a presença de Deus na natureza e na história, eles descobrem a força


da Palavra que os conduz. Deus criou o mundo usando a Palavra, pronunciando os
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nomes das criaturas: "Ele diz e a coisa acontece, ele ordena e ela se afirma" (Sl 33,9).
Antes da ação criadora havia o caos, feito de trevas, águas e deserto (Gn 1,2), imagens
de morte que simbolizavam o cativeiro (cf. Lam 3,6.54). Mas Deus enfrentou o caos
com a sua palavra criadora, venceu as trevas, as águas, o deserto. Criou o cosmos, a
harmonia, que serve à vida. Os capítulos 40 a 66 de Isaías são os capítulos de toda a
Bíblia que mais falam, direta ou indiretamente, da ação criadora de Deus (Is
40,8.12.22. 26.28; 41,20; 42,5.9; 43,7.15.19; 44,2.24; etc.)

Assim, ao lado dos Dez Mandamentos da Lei da Aliança, entregue ao povo no


Monte Sinai, eles descobrem que existe a Lei da Criação. Como fez para o povo, assim
Deus fez para as criaturas: “fixou-lhes uma lei que jamais passará” (Sl 148,6). A Lei da
Aliança tinha no seu centro as Dez Palavras da Aliança (os Dez Mandamentos) (Ex 20,1-
17; Dt 5,6-22). A narrativa da Criação também tem Dez Palavras divinas no seu centro,
pois o autor deste texto repetiu exatamente dez vezes a mesma expressão “e Deus
disse” (Gn 1,3.6.9.11.14.20 .22.24.26.28). São as Dez Palavras da Criação, em seis dias!

Descobriram a força e a grandeza da Palavra de Deus. Isaias dizia:

"Todo ser humano é erva e toda a sua beleza é como a flor do campo: a
erva seca, a flor murcha, quando sobre elas sopra o vento de Javé; a erva
seca, a flor murcha, mas a palavra do nosso Deus se realiza sempre" (Is
40,7-8).

A harmonia do universo é fruto da obediência das criaturas às Dez Palavras com


que Deus enfrentou o caos. As criaturas todas sempre observam a Lei da Criação. Por
isso existe a harmonia na natureza. No Pai-Nosso Jesus pede: “Seja feita a vossa
vontade assim na terra como no céu”. Jesus quer que cheguemos a observar a Lei da
Aliança com a mesma perfeição com que o sol e as estrelas lá no céu observam a Lei da
Criação. Assim podemos criar entre nós a mesma harmonia. Na contemplação da
harmonia do universo o povo descobre como ser fiel à aliança. Ação libertadora e ação
criadora se identificam. Eles unificaram memória, história e criação. Não existe a
distinção entre natural e sobrenatural. Não há dois níveis. Um nível só: a presença
universal de Deus YHWH, Javé, na vida, na natureza, na história.

A descoberta da nova gramática: ser servidor


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A nova experiência de Deus, da sua presença na natureza, da sua palavra criadora
e do seu amor eterno levou a uma clareza maior a respeito da missão como povo
eleito: não mais como povo eleito e privilegiado, acima dos outros povos, mas sim
como povo servo, no meio dos outros povos, irradiando esta Boa Nova de Deus no
meio deles. Os quatro cânticos do Servo de Javé, espalhados pelos capítulos 40 a 66 do
livro de Isaías, falam desta missão (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). S ão uma
espécie de cartilha para ajudar o povo do cativeiro a descobrir e assumir sua missão
como servo. São a chave, a nova gramática para entender o sentido do vida e o rumo
da missão como povo de Deus.

O Servo de Javé de que falam os quatro cânticos não é um indivíduo, mas é o


próprio povo sofredor chamado a ser servo de Deus. Os capítulos 40 a 66 são como a
moldura ao redor de um quadro. O quadro (o texto dos quatro cânticos) não diz quem
é o Servo, mas a moldura (o contexto de Isaías 40 a 66) informa claramente que o
Servo é o povo. Basta verificar os textos: Is 41,8-9; 42,18-20; 43,10; 44,1-2; 44,21; 45,4;
48,20; 54,17. Todos eles, de uma ou de outra maneira, falam do Servo como sendo o
próprio povo exilado.

No primeiro cântico (Is 42,1-9) Deus apresenta a todos o seu Servo e diz qual a
missão que ele vai realizar. No segundo (Is 49,1-6) o próprio servo conta como foi difícil
descobrir e aceitar esta sua missão de servo de Deus. No terceiro (Is 50,4-9) o servo
relata como ele assume e executa a sua missão, apesar das perseguições. No quarto (Is
52,13 a 53,12) as pessoas, convertidas pelo testemunho do servo, contam como este
testemunho do servo sofredor provocou neles a conversão. Eles reconhecem que foi
graças ao sofrimento do Servo que elas foram salvas. No fim, o breve resumo dos
quatro cânticos (Is 61,1-2) é o texto que Jesus escolheu para apresentar-se com a sua
missão diante da comunidade na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18).

Jesus viveu e realizou a missão do Servo de Deus anunciado pelo profeta Isaías.
Quando ele foi batizado por João Batista no rio Jordão, o céu se abriu, o Espírito Santo
desceu em forma de pomba e a voz do Pai dizia a Jesus: "Tu és o meu Filho amado. Em
ti coloquei o meu agrado" (Mc 1,11). O pai do céu usou as palavras com que, cinco
séculos antes, o profeta Isaías tinha anunciado ao povo o futuro Messias Servo:
"Apresento a vocês o meu Servo que tem todo o meu agrado" (Is 42,1). Assim, na hora
14
do batismo, o Pai confirmou Jesus como o messias servo, anunciado por Isaías (Is 42,1).
Na mesma hora, Jesus assumiu sua missão. Ele foi para o deserto, onde ficou durante
quarenta dias, preparando-se para a missão de messias servo, humilde e sofredor e
(Mc 1,12-13).

3. Os profetas usam a nova gramática

Desta nova gramática, isto é, desta nova compreensão da sua missão como povo
de Deus nasce, espontaneamente, um novo tipo de relacionamento com as pessoas,
uma nova prática missionária menos pretensiosa e mais humilde, não como "mãe e
mestra" que manda e ensina, mas como "discípula e aprendiz" que convive e aprende
da situação das pessoas o que partilhar e ensinar. Esta nova prática missionária
transparece nos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías. Ela tem uma dimensão
profundamente humana e uma atualidade impressionante para nós.

* Acolher o povo com muita ternura: Misericórdia

Para quem vive machucado, na solidão do cativeiro, não bastam as advertências e


as ameaças, para que ele levante a cabeça, tenha esperança e comece a enxergar a
situação com otimismo renovado. É necessário, antes de tudo, cuidar das feridas do
coração, acolhendo-o com muita ternura e bondade. As primeiras palavras: “Consolai!
Consolai o meu povo!” (Is 40,1) ressoam pelas páginas do livro inteiro, do começo ao
fim.

Os discípulos de Isaías procuram ser esta presença acolhedora cheia de


misericórdia junto aos seus irmãos lá no cativeiro. Eles têm uma conversa atenciosa,
cheia de ternura e consolo, de encorajamento e acolhimento. “Não gritam nem
apagam a vela que ainda solta um pouco de fumaça” (Is 42,2-3). Machucados, não
machucam. Oprimidos pela situação em que se encontram, não oprimem, mas tratam
e acolhem o povo com muito respeito. Não reproduzem o sistema. Usam uma
linguagem simples, concreta e direta, numa atitude de ternura e de misericórdia nunca
vistas antes, que funciona como bálsamo, e dispõe as pessoas para olhar a realidade
com mais objetividade. São muitos os textos que revelam esta atitude de bondade

acolhedora: Is 54,7-8; Is 41,9-10; Is 41,13-14; Is 40,1-2ª; 43,1-5; 44,2; 46,3-4;


15
49,13-16; etc.

* Reunir o povo e ensinar dialogando: Discipulado

É neste mesmo período do cativeiro que se começa a insistir, de novo, na


observância do antigo preceito do sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; Gn 2,2-3). É para
que o povo tenha ao menos um dia por semana para se encontrar, partilhar sua fé,
louvar a Deus e animar-se mutuamente. Por ex., os discípulos se reúnem de noite, fora
de casa, e perguntam: “Levantem os olhos para o céu e observem: Quem criou tudo
isso? É Aquele que organiza e põe em marcha o exército das estrelas, chamando cada
uma pelo nome. Tão grande é o seu poder e tão firme a sua força, que nenhuma delas
deixa de se apresentar. Jacó, por que você anda falando, e você, Israel, por que anda
dizendo: “Javé desconhece o meu caminho e o meu Deus ignora a minha causa?” (Is
40,26-27)

Os discípulos e as discípulas tem uma atitude de escuta e de diálogo. Eles reúnem


o povo, conversam, fazem perguntas, questionam, criticam, levam o povo a refletir
sobre os fatos (cf Is 40,12-14.21.25-27; etc). Ensinam dialogando em pé de igualdade
com o povo. Este jeito de ensinar é próprio de quem se considera discípulo e não dono
da verdade (Is 50,4-5). Um discípulo não absolutiza o seu próprio pensamento, nem
impõe suas ideias, mas ensina escutando e aprendendo dos outros.

Eis um exemplo desta atitude de diálogo: “Por que dizes tu, Jacó, e por que
afirmas tu, Israel: “O meu caminho está oculto a Javé; o meu direito passa
despercebido a Deus?” Então não sabes? Por acaso não ouviste isto? Javé é um Deus
eterno, criador das regiões mais remotas da terra. Ele não se cansa nem se fatiga, a
sua inteligência é insondável” (Is 40,27-28)

* Fazer nascer consciência crítica: Profecia

O desânimo dos exilados era muito grande. Eles eram como o profeta Elias
deitado debaixo da árvore querendo morrer (1Rs 19,4). Até para cantar tinham
perdido o gosto (Sl 137,1-6). Este desânimo tinha duas causas: uma externa, a
destruição de Jerusalém, o exílio, a perda de todos os apoios; a outra interna, a falta de
visão e de fé. Deus parecia ter perdido o controle da situação. Nabucodonosor parecia
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ser o dono da história. Os discípulos de Isaías atacam as duas causas: desfazem o peso
da opressão e enchem o vazio do coração.

Para desfazer o peso da opressão eles usam o bom senso e fazem uma análise
crítica da realidade. Desmascaram o poder que os oprime e a ideologia dominante que
os engana. Tudo é analisado e criticado com ironia e precisão, e confrontado com a
nova visão que a fé em Deus lhes comunica: os príncipes e os juízes (Is 40,23); os
adivinhos e os sábios (Is 44,25); os governantes (Is 41,25); as nações do mundo (Is
40,15.17.22); a orgulhosa Babilônia (Is 47,1-15); os ídolos (Is 41,24.29; 40,18-20; 41,6-
7.21-29); seus adoradores (Is 44,20). A análise crítica da realidade concentra-se,
sobretudo na denúncia detalhada e irônica do culto aos ídolos que falsificavam a vida
humana (Is 44,18-20).

Para encher o vazio do coração eles ajudam o povo a perceber que Deus continua
no controle dos fatos. A história não escapou de suas mãos. Os acontecimentos duros
da história que tanto pesavam, é Javé que, através deles, realiza o seu plano (Is 55,8-
11). O próprio exílio é visto como instrumento de educação do povo por parte de Javé
(Is 54,7-8). Babilônia, a opressora, é vista como o meio, usado por Deus, para corrigir o
povo (Is 42,24; 47,6). Nas reuniões semanais eles refrescam a memória (Is 43,26; 46,9),
contam as histórias de Noé, de Abraão e Sara (cf. Is 51,1-2), da Criação, lembram o
êxodo (Is 43,16-17), apontam os fatos da política e perguntam: “Quem é que faz tudo
isto?" (Is 41,2). A resposta é sempre esta: "É Javé, o Deus do povo, o nosso Deus!".

Deste modo, enchendo o vazio do coração (causa interna) e enfraquecendo o


peso da opressão (causa externa), eles deslocam o peso da balança. O povo se
reequilibra na vida. Agora já não é a perseguição que enfraquece a fé, mas sim a fé
renovada e esclarecida que enfraquece o poder dos poderosos. A face de Deus
reaparece na vida. O povo, animado por esta Boa Notícia, desperta (Is 51,9.17; 52,1),
se põe de pé (Is 60,1), começa a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1; 61,10; 63,7) e a resistir
(Is 48,20).

* Ser uma presença viva da Boa Nova de Deus: Reino

Por este seu jeito diferente de conviver e de tratar com o povo, os discípulos não
só falam sobre Deus, mas também o revelam; comunicam algo daquilo que eles
17
mesmos vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura, de misericórdia e de
diálogo. Eles mesmos são uma Boa Nova de Deus! Deus de novo se faz presente no
meio do povo e começa a reinar novamente. Não é mais o reino da monarquia. Agora
é o próprio Deus, Javé, que voltou a ser o rei do seu povo. É sobretudo Isaías 40 a 66
que acentua a noção do Reino de Deus (cf. Is 43,15; 41,21).

O povo se dá conta de que o Deus dos discípulos é diferente do deus da Babilônia,


diferente também da imagem de Deus que eles ainda carregavam na memória, desde
os tempos da monarquia, do reino de Davi, de antes da destruição do Templo. Assim,
aos poucos, os olhos se abrem. O povo começa a perceber algo do novo que estava
acontecendo. “Não estão vendo?” (Is 43,19) Foi necessária muita paciência da parte
dos discípulos, para que aquele povo exilado se reanimasse a crer novamente em si
mesmo e em Deus e se levantasse (Is 49,4.14). É a boa notícia da paz:

"Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a


paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação, que diz a Sião: "Seu
Deus reina". Ouça! Seus guardas levantam a voz, juntos cantam de
alegria, pois estão vendo frente a frente a Javé que volta para Sião.
Rompam juntas em cantos de alegria, ruínas de Jerusalém, porque Javé
se compadece do seu povo e redime Jerusalém" (Is 52,7-9).

Não se trata de uma doutrina a ser ensinada, nem de uma moral a ser observada.
Anunciar a Boa Nova do Reino de Deus é irradiar aquilo que eles mesmos estão
vivendo; é apontar a presença do Reino que já existia na vida do povo e na natureza e
que vai sendo revelada e explicitada pelo anúncio dos discípulos de Isaías; é apontar
fatos concretos, pequenos ou grandes, onde a vitória do Reinado de Deus já está
acontecendo, e apresentá-los de tal maneira que apareça esta dimensão escondida da
presença vitoriosa do Reino de Deus. "Como são belos, sobre os montes, os pés do
mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do
que diz a Sião: "O teu Deus reina" (Is 52,7)

A nova experiência de Deus lá no cativeiro ajudou-os a perceber os erros e


enganos, dentro dos quais a imagem de Deus tinha sido aprisionada pela ideologia dos
reis. Ela foi fonte de luz para reler, repensar e atualizar, um por um, os valores do
passado, libertá-los dos erros e das limitações e adaptá-los à nova situação. Eles
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mantêm as mesmas palavras, mas dão a elas um novo sentido e as colocam na nova
perspectiva:

* O reino já não é a monarquia de Davi, mas o Reino do próprio Deus (Is 52,7; 43,15).

* O povo de Deus já não é uma raça, agora também os estrangeiros fazem parte (Is 56,3.6-7).

* O templo já não será só para os judeus, será casa de oração para todos os povos (Is 56,7).

* O culto é universal, pois os estrangeiros dele participam (Is 56,6-7).

* O sacerdócio não é só de Levi pois estrangeiros receberão o mesmo sacerdócio (Is 66,20-21).

* O messias, (ungido) não é só o rei davídico, também Ciro, o Rei dos persas (Is 45,1; 44,28).

* A eleição já não é um privilégio, mas serviço a ser prestado a toda a humanidade (Is 42,1-4).

* A lei de Deus não é só de Israel, mas de todos os povos que nela encontram luz (Is 2,1-5).

* Jerusalém não é capital de Judá, mas o centro de peregrinação de todos os povos (Is 60,1-7).

* As promessas que eram somente para Davi agora são para todo o povo (Is 55,3-5)

* A missão do povo não é ser um grupo separado, mas ser “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6)
19
3.
A Luz que nos vem
da prática missionária de Jesus

A prática missionária de Jesus tem sua raiz na prática missionária dos profetas do
cativeiro da Babilônia. O livro bíblico mais usado e mais evocado por Jesus é o livro do
profeta Isaías, sobretudo os capítulos 40 a 66.

Vou começar elencando, sem muita ordem, palavras e gestos de Jesus, nos quais
transparecem sinais da nova gramática que o animava na sua missão e que era o
motivo das suas divergências e conflitos com a religião estabelecida da época: fariseus,
doutores da lei, sacerdotes, saduceus.

1. Palavras e gestos de Jesus que revelam uma nova gramática


da missão

Quando dizemos "gramática" nos referimos àquele conjunto de normas e


costumes, que orientava o povo judeu na prática da sua religião: visão do messias,
observância do sábado, os mandamentos da lei de Deus, as obras de piedade como
jejum, esmola e oração, as leis da pureza, o relacionamento de gênero, casamento, a
convivência com pessoas de outra raça e religião, etc.

Veremos como Jesus, nos seus gestos e palavras, entrou em conflito com este
sistema das normas religiosas da época. Muitas vezes, ele foi criticado, mas não voltou
atrás. De certo modo, aqui está o motivo da sua condenação à morte. Mesmo criticado
pelas autoridades, o povo gostava de ouvir Jesus e dizia: "Um ensinamento novo, dado
com autoridade, diferente dos escribas" (Mc 1,22.27).

1. A Cananeia: (Mt 15,21-28) A Missão do Messias


Jesus não quer atendê-la, pois a leitura, que ele tem da sua missão, não o permite:
"Só fui enviado para as ovelhas perdidas de Israel!". Os discípulos pedem para
20
mandar a mulher embora. Mas Jesus não atende aos discípulos, nem manda a
mulher embora. Está em dúvida!

A mulher insiste. Ela não obedece à gramática de Jesus, nem a entende, pois é de
outra raça e de outra religião. Ela se orienta pela necessidade da vida: a doença da
filha. Jesus invoca a gramática para não atendê-la: "Não é bom dar o pão dos filhos
para os cachorrinhos!" Mas a mulher usa o argumento de Jesus contra Jesus:
"Também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa!"

Diante desta resposta da mulher, Jesus admira a fé: "É grande a tua fé!" Mas ele
deixa a resposta definitiva por conta da mulher: "Seja feita como você quer!" É
como se dissesse: "Se a tua fé produzir a cura da tua filha, eu mudo de opinião!" A
menina ficou curada e Jesus mudou de opinião e aceita que a sua missão seja não
só para as ovelhas perdidas de Israel, mas para todos. A partir da escuta do
problema e da fé da mãe pagã, .Jesus superou a antiga gramática e encontrou uma
nova gramática para a sua missão.

Foi a insistência da mulher que levou Jesus a abrir os olhos e a descobrir que ele
devia ser messias, não só para os judeus, mas para todos os seres humanos!
Mudou a gramática a respeito da missão do Messias.

No contexto atual do Evangelho, escrito em torno dos anos 70, este fato da
Cananeia adquire um sentido ainda mais amplo. É como se ela, a mulher,
afirmando que até os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos
filhos, estivesse dizendo a Jesus: "Aqueles doze cestos que sobraram da
multiplicação dos pães são as migalhas que me pertencem!"

2. A mulher que ungiu Jesus: (Mc 14,3-9) Imagem do Messias crucificado


Naquele tempo, um crucificado, depois de morto, não podia ser ungido nem teria
enterro. Ficava pendurado na cruz até apodrecer ou os animais comerem o
cadáver. Pedro não aceitava o messias sofredor crucificado: "Sofrer não!" Jesus
corrigiu Pedro: "Vai embora, Satanás!" Poucos dias antes da morte de Jesus, em
Betânia, na casa de Simão o leproso, uma mulher anônima ungiu Jesus com um
perfume muito caro. Duzentos denários! Ela aceitava Jesus como messias
crucificado. Sabendo que ele não poderia ser ungido depois de morto na cruz,
21
ungiu antes! Jesus defendeu a mulher contra as críticas dos discípulos: "Ela fez
uma coisa boa em vista do meu enterro". A mulher aparece como discípula
modelo, melhor que Pedro!

3. A observância do sábado: (Lc 13,10-17). Ser fiel ao Espírito e não à letra da lei.
A mulher, curvada durante 18 anos, é curada em dia de sábado. O coordenador
reclama: "Dia de sábado não pode!" Jesus critica a falsa interpretação da lei:
"Jumento vocês soltam em dia de sábado para beber, e eu não posso soltar esta
filha de Abraão?!" Em outra ocasião, na sinagoga de Cafarnaum (Mc 3,1-6), Jesus
explicita a contradição desumana entre as duas gramáticas a respeito do sábado e
provoca os fariseus e doutores: "Em dia de sábado pode fazer o bem ou o mal,
salvar ou matar?" (Mc 3,4). Eles não aceitaram a nova gramática de Jesus e
decidiram matá-lo.

4. O oficial romano: (Lucas 7,1-10). A atuação da força da fé


O oficial pagão acreditou na força da Palavra de Jesus: "Vai! E ele vai! Vem! E ele
vem!". Jesus reage dizendo que não encontrou tamanha fé nem sequer entre os
judeus (Lc 7,9). Jesus reconhece que a fé existe também em pessoas que são de
outra religião, e uma fé até maior do que a fé dos judeus ou "católicos
praticantes". Qual a diferença entre a fé dos judeus e dos outros? Existe?

5. A Samaritana: (Jo 4,7-42)


Jesus está com fome. Senta perto do poço de Jacó. Vem uma mulher de outra
religião, Jesus transgride as normas e tenta um diálogo com ela através do mundo
trabalho (água) e da família (marido). De um lado, está Jesus, que tenta conversar
com a mulher, mas não consegue contato. De outro lado, está a mulher, que
resiste, não cede e responde à altura: "Por acaso, você é maior que nosso pai
Jacó?". "Não tenho marido!"

Por estas duas portas do trabalho e da família Jesus não consegue contato. A
conversa só muda quando a mulher se situa dentro dela e diz: "Vejo que o senhor
é um profeta!" E é ela que puxa a conversa para o assunto da religião. Jesus aceita
a mudança que a mulher introduziu na conversa. Por duas vezes, ele obedece ao
rumo que a mulher impõe e corre até o risco de não conseguir o seu objetivo. No
22
fim, provocado pelas observações da mulher, ele revela a ela o seu maior segredo:
"O Messias sou eu!".

Conversa difícil. A conversa virou conversão! Algo mudou em Jesus por causa da
conversa. Ele perdeu a fome: "Tenho uma outra comida! Meu alimento é fazer a
vontade do Pai!" Ele descobriu um novo horizonte para a sua ação missionária:
"Apesar de faltar ainda quatro meses para colheita, os campos já estão prontos
para a colheita!" Através da escuta e do diálogo com uma mulher de outra raça e
de outra religião, Jesus descobriu uma nova proposta para a sua ação missionária.

A samaritana conseguiu transmitir sua experiência aos outros samaritanos e Jesus


foi convidado a ficar dois dias com eles. Jesus alargou a gramática da sua ação
missionária através do diálogo atencioso e "obediente" com a samaritana, mulher
de outra raça e de outra religião A nova gramática foi nascendo da conversa que
virou conversão!

6. O paralítico: (Mc 2,1-12) Perdão dos pecados


O paralitico, carregado por quatro pessoas e descido por eles através do telhado,
está na frente de Jesus. Diante da fé tão grande daquelas cinco pessoas, Jesus diz:
"Teus pecados estão perdoados". É a fé do homem e dos seus quatro
companheiros que perdoou os pecados. Jesus declara que ele já está perdoado.
Jesus é criticado em nome da gramática antiga: "Só Deus pode perdoar pecados!"
Jesus alarga a gramática: "O Filho do homem também pode perdoar!"

7. A lei da pureza: (Mc 1,40-45; 5,25-34; 10,13-16; Lc 5,12-16): o acesso a Deus


O leproso diz: "Se queres podes me curar" A gramática o proibia tocar em Jesus,
pois Jesus ficaria impuro por causa do toque (Lc 5,12-16). Por isso o homem pede
para Jesus o fazer sem tocar, por controle remoto. Jesus fica com raiva diante da
má interpretação da lei de Deus que transparece nestas palavras do leproso. Jesus
transgride a gramática e toca no leproso dizendo: "Fique curado!" Manda
conversar com o sacerdote para obter a licença de poder voltar à convivência
normal. O homem não foi falar com os sacerdotes. Por isso, Jesus é visto como
impuro, pois tocou num leproso. Por isso, já não pode entrar na cidade. Mesmo
sabendo que Jesus está impuro, povo não liga pela lei da impureza e vai até Jesus.
Criou a confusão! O mesmo vale para as crianças que são afastadas pelos
23
discípulos. Jesus os critica e diz: "Deixem vir a mi as crianças!" O mesmo vale para
cura da mulher do fluxo de sangue. Ela já nem acreditava no "catecismo" da época,
pois dizia: "Basta eu tocar na roupa dele pra eu ficar purificada!" Jesus lhe diz: "Foi
a tua fé que te curou!" Esta questão da pureza é o ponto central das divergências
entre Jesus e o sistema religioso da época. As leis da pureza tratam do acesso a
Deus. Pela iniciativa de Jesus, este acesso já não pode ser mais controlado pelo
clero. Este foi o ponto de que o povo mais gostou: "Ensinamento novo dado com
autoridade. Ele até manda nos espíritos impuros, e eles lhe obedecem!" (Mc 1,27).
Foi uma libertação!!

8. A moça do perfume: (Lc 7,36-50).


Diz Simão que convidou Jesus para jantar em casa: "Se ele fosse profeta, saberia
que tipo de mulher é essa que está tocando nele!" Jesus defende a prostituta
contra o fariseu. Ele critica o critério da gramática de Simão que condena o mulher
por causa do pecado da prostituição. Jesus invoca o outro critério mais universal
da prática do amor: "Os pecados lhe são perdoados, porque ela muito amou".

9. O amor ao próximo: (Lc 10,25-37) e a interpretação da Lei


Para se justificar, o doutro perguntou: "Quem é o meu próximo?" Para ele, a lei
manda amar o próximo!" Isto é, só o próximo; os outros, não! A lei permitia
explorar o estrangeiro, mas não o próximo. Ou seja, o estrangeiro não seria
"próximo" (cf. Deut 15,3). Na parábola do Bom Samaritano, Jesus alarga o conceito
de próximo. Próximo é todo aquele do qual você se aproxima! Jesus alargou
também o limite do amor. A lei dizia: "Amar o próximo como a si mesmo!" (Lev
19,18). Jesus diz que devemos amar como ele nos amou (Jo 13,34). E ele nos amou
doando a própria vida: "Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão".
Jesus alargou os limites de todas as leis: superando a letra e buscando o Espírito
(Mt 5,21-48).

10. A convivência diária na comunidade com os discípulos


Jesus convive com todo tipo de pessoas de todas as classes, mas de todas pede
conversão. No grupos dos discípulos havia zelotes e publicanos. Em termos de
hoje, seria gente do sistema e gente revolucionária. Havia pescadores e
agricultores. Havia homens e mulheres (Lc 8,1-3). Havia discípulos de João Batista.
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Jesus convivia com pecadores e sentava com eles à mesma mesa: Zaqueu, de
Jericó, e Levi de Cafarnaum. Convivendo assim, Jesus quebrou as normas da
gramática em vigor e foi muito criticado por isso.

11. A mulher adúltera: (João 8,1-11).


Jesus defende a mulher adúltera contra os fariseus e contra os doutores que
queriam usar o caso para acusar Jesus.

12. O centurião romano: (Mc 15,37-39).


O centurião ao pé da cruz diz: "Realmente este homem é o filho de Deus!" (Mc
15,39). Marcos começa o evangelho dizendo "Início da Boa Nova de Jesus Cristo, o
filho de Deus" (Mc 1,1). A plenitude desta mensagem só é descoberta e assumida
na hora da morte por um pagão. Os pagãos podem ter mais fé do que os judeus ou
"os católicos praticantes".

2. Três resumos da prática missionária de Jesus

O resumo da ação missionária de Jesus em Marcos (Mc 1,14-15)


Diz o Evangelho de Marcos: Depois que João foi preso, veio Jesus para a
Galileia proclamando o Evangelho de Deus: Cumpriu-se o tempo e o Reino
de Deus está próximo. Arrependei-vos e credes no Evangelho (Mc 1,14-
15).
* "Depois que João foi preso", supõe a leitura dos sinais dos tempos
* "Proclama o Evangelho de Deus". A Boa Nova não é uma doutrina, nem um cate-
cismo, nem um elenco de leis e de dogmas, mas é Deus, ele mesmo. Deus é a
Boa Notícia para a vida humana.
* O resumo de quatro pontos:
1. "Cumpriu-se o tempo": estar atento ao tempo, aos sinais dos tempos
2. "O Reino já está próximo": revelar a presença do reino na vida e nos fatos
3. "Arrependei-vos": mudar de visão. A antiga gramática já não basta
4. "Crede no Evangelho": a porta de entrada é crer em Jesus que o anuncia.

O resumo da ação missionária de Jesus em Lucas (Lc 4,17-19)


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Diz o Evangelho de Lucas: Jesus encontrou a passagem onde está escrito:
"O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a
unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para
proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista;
para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor."
(Lc 4,17-19)

Jesus assume ser o servo anunciado por Isaías. É a nova gramática a respeito da
vinda do Messias e da função: Messias humilde e servidor, e não um messias
glorioso e poderoso. Aqui está a fonte dos conflitos de Jesus com os doutores e
fariseus e a causa da sua condenação à morte. A raiz de tudo isto vem da nova
experiência de Deus que já vinha desde os profetas da época do cativeiro na
Babilônia e que foi confirmada definitivamente por Jesus.

O resumo da ação missionária de Jesus em Mateus (Mt 5,3-10)


Diz o Evangelho de Mateus:
Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos
Céus.

As oito bem aventuranças são o portão de entrada do novo Pentateuco que o


Evangelho de Mateus nos apresenta. É um grande portão com oito portas de
entrada para o Reino. Não há outras entradas! Quem quiser entrar terá que se
identificar com uma destas oito categorias.

Para a primeira e a última categoria (pobres em espírito e perseguidos por


causa da justiça) se diz: “deles é o Reino!” O Reino já entre eles. Já é deles.
26
Entre estas duas categorias, há três duplas, às quais é feita uma promessa no
futuro:
2 e 3: Mansos e Aflitos: dizem respeito ao relacionamento com os bens
materiais: terra e consolo. Para os mansos que herdarão a terra veja
o salmo 37,7.10.11.22.29.34. Para os aflitos veja Ezequiel 9,4.
4 e 5: Fome e sede de justiça e Misericordiosos: dizem respeito ao
relacionamento com as pessoas na comunidade: justiça e
solidariedade. Misericordioso é aquele e aquela que tem o seu
coração na miséria dos outros.
6 e 7: Coração limpo e Promotores da paz: dizem respeito ao
relacionamento com Deus: ver a Deus e ser chamado filho de Deus.

Esta síntese de Mateus quer reconstruir a vida na sua totalidade: no


relacionamento com os bens materiais, com as pessoas entre si e com Deus.
No tempo de Mateus, isto é, em torno dos anos 80 depois de Cristo, este
projeto estava sendo assumido pelos pobres e estes, por causa disso, estavam
sendo perseguidos, pois era uma gramática diferente que bagunçava a
gramática do sistema estabelecido da época.

3. Cinco sínteses a respeito da prática missionária de Jesus

1ª síntese: A lista dos excluídos acolhidos por Jesus


Fiel ao seu programa e à sua vocação, Jesus convive, a maior parte do tempo,
com aqueles que não tinham lugar dentro do sistema social existente. Eis uma
llista:
1. povo humilde: entende o reino melhor que os sábios e entendidos (Mt 11,25-
26);
2. famintos: são acolhidos como rebanho sem pastor (Mc 6, 34; Mt 9, 36; 15,32);
Jesus dá- lhes de comer (Jo 6, 5-11) e provoca neles a partilha (Jo 6,9);
3. pobres: o Reino de Deus é deles (Mt 5,3; Lc 6,20) e não é dos ricos (Lc 6,24);
4. leprosos: são acolhidos e limpos (Mt 8, 2-3; 11,5; Lc 17,12) e os sacerdotes são
obrigados a dar-lhes prova de sua purificação (Lc 17, 14; Mc 1,44; Mt 8, 2-4);
5. doentes: são curados em dia de sábado (Mt 8, 17; Mc 3, 1-5; Lc 14, 1-6; 13, 10-
13);
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6. cegos: recebem a visão (Mc 8, 22-26; Mc 10, 46-52; Jo 9, 6-7); os fariseus são
declarados cegos (Mt 23, 16);
7. coxos: sua cura é sinal de que Jesus pode perdoar pecados sem ser blasfemo
(Mc 2, 1-12; Mt 11,15);
8. possessos: a expulsão dos demônios é sinal do Reino de Deus (Lc 11, 14-20);
9. prostitutas: são preferidas aos fariseus (Mt 21, 31 –32; Lc 7, 37-50);
10. publicanos: tem precedência sobre os escribas (Lc 18, 9-14; 19, 1-10);
11. samaritanos: são apresentados como modelo aos judeus (Lc 10, 33; 17, 16);
12. mulheres: fazem parte do grupo que acompanha Jesus (Lc 8, 1-3; 23, 49-55);
13. estrangeiros: são acolhidos (Lc 7, 2-10); a Cananéia até consegue mudar os
planos de Jesus (Mc 7, 24-30; Mt 15,22);
14. crianças: são acolhidas por Jesus e apresentadas como modelo para os adultos
(Mt 18, 1-4; 19,13-15; Lc 9,47-48);
15. adúltera: é acolhida e defendida contra a lei e contra a tradição (Jo 8, 2-11);
16. anciã: é defendida dentro da sinagoga contra o coordenador da sinagoga (Lc 13,
10-17);
17. mendigos: recebem a vida eterna enquanto o rico vai para o inferno (Lc 16, 19-
31);
18. ladrão: é condenado pelo sistema e é recebido por Jesus no Reino (Lc 23, 40-
43);
19. pescadores: são chamados para ser discípulos de Jesus (Mc 1, 16-20), enquanto
não há nenhum doutor nem escriba no grupo dos doze;
20. zelotes(as): alguns deles estão no grupo de Jesus (Mt 10,4; Mc 3,18) junto com
Levi, o publicano (Mc 2,14).

2ª síntese: As categorias de pessoas acolhidas por Jesus


Estas atitudes bem concretas de Jesus representam um perigo muito grande
para a gramática dos judeus, pois Jesus escolhe os “imorais” (prostitutas e
pecadores), os “marginalizados” (leprosos e doentes), os “herejes” (sama-
ritanos e pagãos), os “colaboradores” (publicanos e soldados), os “fracos” e
os “pobres” (que não tem poder nem saber). Os que não tem “lugar”
recebem um “lugar”! E os que tem um “lugar” na convivência social não
recebem um “lugar” na convivência com Jesus!
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3ª síntese: Jesus denuncia as divisões legitimadas pela lei
Trata-se de divisões que eram legitimadas e promovidas em nome de Deus,
através de uma interpretação errada da Bíblia, mas que, na realidade,
contradiziam a vontade do Pai. Por exemplo:
1. a divisão entre o próximo e o não-próximo. Já não depende mais da raça nem
de observâncias exteriores, mas depende da disposição de cada um se
aproximar do outro, quem quer que ele seja (Lc 10,29-37);
2. a divisão entre pagão e judeu. Jesus entra na casa do centurião (Lc 7,6), e
atende ao pedido da Cananéia (Mt 15, 28);
3. a divisão entre obras santas e profanas. A oração (Mt 6,5-8), o jejum (Mt
6,16-18) e a esmola (Mt 6, 1-4) são redimensionadas.
4. a divisão entre puro e impuro. Jesus questionou toda a legislação da pureza
legal (Mt 23,23; Mc 7,13-23) e chegou quase a ridicularizá-la (Mt 23,24).
5. a divisão entre tempo sagrado e profano. Colocou o Sábado a serviço do
homem (Mt 12,1-12; Mc 2,27; Jo 7,23-24).
6. a divisão entre lugar sagrado e profano. Disse que Deus pode ser adorado em
qualquer lugar, contanto que seja em espírito e verdade (Jo 4,21-24; Mc 11,15-
17; 13,2; Jo 2,19) e não só no templo.
7. a divisão entre pobres e exploradores. Denuncia os exploradores que se dizem
benfeitores do povo (Lc 20,46–47; 22,25) e derruba as mesas dos cambistas
que são chamados ladrões (Mc 11,15-17; Mt 21,12-17).

Agindo assim, Jesus sacode e relativiza as pilastras do sistema religioso da


época: a observância do sábado, o templo, as obras santas como jejum, oração e
esmola, a lei da pureza legal (Mt 23,25-28), a prática da justiça feita pelos fariseus (Mt
5,20), a própria lei de Moisés (Mt 5,17.21.27.31.33.38). Jesus denuncia a tentativa de
chegar a Deus através do próprio esforço e do próprio mérito. Ele que somos “Somos
servos inúteis!” (Lc 17,10).

Deste modo, ele liberta o povo da tirania da lei, da tirania dos intérpretes da lei,
da tirania dos que, em nome do seu saber maior, impunham fardos pesados ao povo
dito ignorante (Mt 23,4). Até hoje ressoa o convite: “Venham a mim vocês todos que
estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso! Carreguem a
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minha carga (a minha proposta) e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de
coração, e vocês encontrarão descanso para as suas vidas” (Mt 11,28-29).

O povo dos pobres logo percebeu a novidade, acolheu Jesus e disse: “Um novo
ensinamento com autoridade!” (Mc 1,27), diferente dos escribas e dos fariseus (Mc
1,22). E indo atrás de Jesus, (Mt 14,13-14), esquecia tudo: casa, comida, filhos, a ponto
de parar no deserto (Mc 6,35-36), junto com Jesus, sem comida, quase desfalecendo
(Mc 8,1-3). Para o povo faminto e pobre, Jesus deve ter sido uma simpatia ambulante.
Revelação do rosto de Deus, do Deus amigo!

A opção de Jesus é muito clara. Também o convite é claro: não é possível ser
amigo de Jesus e continuar a apoiar um sistema que marginaliza tanta gente. Alguns
dos mais ricos o entenderam e responderam afirmativamente: Nicodemos (Jo 3, 1-2),
que defendeu Jesus no tribunal (Jo 7, 50-52), foi vaiado e correu o risco de ser expulso
(Jo 19,39); José de Arimatéia, que teve a coragem de pedir o corpo de Jesus para
enterrá-lo (Mt 27, 57-60), correndo o risco de ser acusado de ser contra os romanos e
contra os chefes judeus; Zaqueu que deu a metade de seus bens aos pobres e devolveu
quatro vezes o que tinha roubado (Lc 19, 1-10).

4ª síntese: Os 7 critérios de Marcos para prática missionária é boa


Marcos enumera sete pontos para as comunidades dos anos 70 poderem
verificar se sua ação missionária era conforme a proposta de Jesus. Servem também
para nós verificarmos a nossa prática missionárias
1. Criar comunidade (Mc 1,16-20)
O primeiro objetivo da missão: congregar as pessoas em torno de Jesus. Criar
comunidade.
2. Despertar consciência crítica. (Mc 1,21-22)
Faz parte da missão criar consciência crítica frente à religião que esconde o
rosto de Deus.
3. Combater o poder do mal. . (Mc 1,23-28)
Faz parte da missão combater o poder do mal que estraga a vida e aliena as
pessoa.
4. Restaurar a vida para o serviço. (Mc 1,29-34)
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Faz parte da missão cuidar dos doentes para que possam voltar a prestar
serviço aos outros.
5. Permanecer unido ao Pai pela oração. (Mc 1,35)
Faz parte da missão permanecer unido à fonte da Boa Nova que é o Pai,
através da oração.
6. Manter a consciência da missão. (Mc 1,36-39)
Faz parte da missão não se fechar no resultado obtido, e manter viva
consciência da missão.
7. Reintegrar os marginalizados. (Mc 1,40-45)
Faz parte da missão acolher os marginalizados e reintegrá-los na convivência
humana.

Estes sete pontos tão bem escolhidos por Marcos mostram o rumo e o
objetivo da prática missionária de Jesus. É assim que ele realiza o objetivo: “Eu
vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância!” (Jo 10,10).

5ª síntese: As características da comunidade ao redor de Jesus


1. Todos irmãos. Jesus dizia: "Um só é o mestre de vocês, e todos vocês são irmãos"
(Mt 23,8-10). A base da comunidade não é o poder, mas sim a igualdade de todos
como irmãos. A fraternidade.
2. Partilha dos bens. Havia uma caixa comum, partilhada com os pobres (Jo 13,29). O
missionário deve confiar no povo que o acolhe e na partilha que recebe do povo (Lc
10,7). Jesus elogia a viúva que sabe doar até do necessário(Mc 12,41-44). A partilha
deve atingir a alma e o coração (At 1,14; 4,32).
3. Vencer as brigas por meio da fraternidade. Não era fácil viver em comunidade.
Havia muitas divisões, até dentro da comunidade ao redor de Jesus. Mateus era
um publicano que colaborava com os romanos (Mt,9,9; Mc 2,14). Simão era do
movimento dos zelotes que combatiam os romanos (Mc 3,18).
4 Vencer as barreiras de gênero, de religião, de raça e de classe. Jesus não se fecha
dentro da sua própria raça e religião, mas sabe reconhecer as coisas boas que
existem nas pessoas de outra raça e religião. Ele acolhe lições da parte deles: da
Cananéia (Mt 15,27-28), da Samaritana (Jo 4,31-38) e até dos Romanos (Mt 8,5-
13).
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5. Amigos e não empregados. A comunhão deve chegar ao ponto de não haver mais
segredo. Jesus dizia: “Já não os chamo de empregados, mas sim de amigos. Pois
tudo que ouvi do meu Pai contei para vocês” (Jo 15,15).
6. Poder é serviço. "Os reis das nações as dominam e os que as tiranizam são
chamados benfeitores. Entre vocês não seja assim" (Lc 22,25-26). “Quem quiser ser
o primeiro seja o último!” (Mc 10,44). Jesus deu o exemplo (Jo 13,15). "Não veio
para ser servido, mas para servir e doar sua vida" (Mt 20,28).
7. Perdoar e reconciliar. O poder de perdoar foi dado a Pedro (Mt 16,19), aos
apóstolos (Jo 20,23) e às comunidades (Mt 18,18). O perdão de Deus passa pela
comunidade, que deve ser um lugar de perdão e de reconciliação, e não de
condenação mútua.
8. Igualdade homem e mulher. Homens e mulheres “seguem” Jesus, desde a Galiléia
(Mc 15,41; Lc 23,49; 8,1-3). Jesus revela seus segredos tanto a homens como a
mulheres. À Samaritana revelou que é o Messias (Jo 4,26). À Madalena deu a
ordenação de anunciar a Boa Nova aos apóstolos (Mc 16,9-10; Jo 20,17).
9. Oração em comum. Eles iam juntos em romaria ao Templo (Jo 2,13; 7,14; 10,22-23),
rezavam antes das refeições (Mc 6,41; Lc 24,30), frequentavam as sinagogas (Lc 4,
16). E em grupos menores Jesus se retirava com eles para rezar (Lc 9,28; Mt 26,36-
37).
10. Alegria. Jesus diz aos discípulos: "Felizes são vocês!", porque seus nomes estão
escritos no céu (Lc 10,20), seus olhos veem a realização da promessa (Lc 10,23-24),
o Reino é de vocês! (Lc 6,20). É alegria que convive com dor e perseguição (Mt
5,11); ninguém consegue roubá-la (Jo 16,20-22).

5. A nova leitura da Bíblia


1. Os Dez Mandamentos relidos
2. Perdão: setenta vezes sete
3. Pai Nosso: o salmo de Jesus

6. Flashes do novo modo de ensinar

7. A raiz de tudo: a nova experiência de Deus como Pai

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