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Introdução
Duas frases chamaram a minha atenção: "Nada do que é humano pode ser
estranho para nós" e "Uma nova Gramática para a missão". Se eu digo Nada do que é
humano pode ser estranho para nós, assumo o humano como critério básico da minha
vida e com ele relativizo o resto. O que importa, antes de tudo, é ser humano. O resto
é roupa, inclusive o fato de ser cristão. Jesus veio para nos ajudar a sermos plenamente
humanos. Pois foi assim que Deus nos criou.
Se eu busco uma nova gramática para a missão, estou dizendo que existem fatos
novos na ação missionária que já não consigo ler nem entender com a antiga
gramática, na qual cresci, fui formado e me tornei missionário, deixei a Europa e vim
para a América Latina. Preciso de uma nova gramática.
1.
Fatos novos de hoje
que pedem uma nova gramática
Geralmente, a gramática que se usa não é consciente nas pessoas. Quando
aparecem fatos novos que não combinam mais com o modo comum de encarar a
Missão, aí ficamos meio perdidos e aparece a necessidade de uma nova gramática. Vou
enumerar alguns destes fatos ou atitudes que estão acontecendo hoje:
1. Jesus deu esta ordem: "Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Nova para toda a
humanidade. Quem acreditar e for batizado será salvo. Quem não acreditar será
condenado" (Mc 16,15-16). Posso dizer para meu vizinho: "Se você não acreditar,
vai ser condenado?" Hoje, todo mundo dirá: "Pode não!" Então, como é que fica a
palavra de Jesus? Antigamente, a prática missionária seguia à risca estas palavras
de Jesus.
3. Qual a motivação que me leva a ser missionário? Evitar que as pessoas sejam
condenadas? Atraí-las para dentro da igreja? Competir com as outras religiões?
Falar de Deus e de Jesus? Irradiar ou impor? Anunciar ou amedrontar? Com que
direito eu, ser humano, me apresento aos outros com um anúncio universal em
nome de Deus? De onde vem a pretensão universal dos cristãos?
4. Na América Latina o anúncio da Boa Nova foi mais uma invasão que desconsiderou
a cultura e a religião dos povos. De um diálogo entre missionários espanhóis e
caciques do México: -"Vocês devem aceitar o nosso Deus!" -"Só podemos fazê-lo
com licença dos nossos antepassados. Mas vocês os mataram!" -"Se vocês não
aceitarem nosso Deus, não poderão ir para o céu!"
5. Nos século XIX e XX, milhares de missionários saíram da Europa para Ásia, África e
América Latina. E fica a pergunta de Charles de Foucauld: foi anúncio da Boa Nova,
difusão da civilização cristã ocidental, expansão da política colonizadora ou para
impedir o avanço do protestantismo?
6. As duas guerras mundiais do século XX, provocadas pelas nações cristãs, causaram
a morte de mais de sessenta milhões de pessoas. O século de maior expansão
missionária foi também o século de maior violência e mortandade da história. Fica
a pergunta: Qual a credibilidade da ação missionária das nações cristãs?
8. A ciência oferece uma visão nova do Universo que afeta o olhar sobre nossa tarefa
missionária: o céu lá em cima, o mundo cá em baixo, salvação eterna, entrada no
Reino, inferno e condenação eterna, etc. Como entender a ação missionária à luz
do resultado das ciências?
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8. Muçulmanos divulgam a sua religião, atraem pessoas para a sua fé. Nós cristãos
fizemos e fazemos o mesmo para anunciar a Boa Nova de Jesus. Qual a diferença
entre o nosso anúncio e o anúncio deles? Foram séculos de muitos conflitos e
guerras, em nome de Deus, até hoje!
11. O Papa, ao convocar as religiões para rezar pela paz em Assis, coloca-se em pé de
igualdade com elas. Aí desaparece a pretensão de a religião cristã ser a melhor. É
um sinal dos tempos: as religiões e as culturas se unem em defesa do humano e
em defesa da vida.
12. Irmã Genoveva viveu nos Tapirapé até os 95 anos de idade. Ela conviveu, não
ensinou quase nada. Apenas foi amiga, e a vida dos Tapirapé mudou por completo.
A simples presença dela fez nascer algo novo, inesperado. Vida nova!
No título vocês colocaram quatro palavras que, de certo modo, apontam o rumo
por onde se deve buscar a nova gramática: misericórdia, discipulado, profecia, reino.
Estes questionamento modificam o olhar com que olhamos para a Bíblia e nos
fazem descobrir dentro dela coisas que antes não enxergávamos. Por isso, é com estes
questionamentos na cabeça e no coração, que vamos buscar uma luz na Bíblia em duas
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direções: na prática missionária dos profetas na época do cativeiro da Babilônia e na
prática missionária de Jesus.
2.
A Luz que nos vem da prática dos profetas
na época do cativeiro da Babilônia
O Templo destinado a ser a morada de Deus (1Rs 9,3), foi incendiado (2Rs 25,9).
O Culto instituído como sinal perpétuo, estava interrompido (Lam 2,6-7).
Os Sacerdotes massacrados (Jer 52,24-27),levados para o cativeiro (Sl 79,1-3; Lm 4,16).
A Monarquia sempre teria Davi no trono (2Sam 7,16), já não existia mais (2Rs 25,7).
Jerusalém residência divina (Sl 132,13-14), foi destruída (Lam 1,6; 2,1-10).
A Terra prometida a Abraão (Gn 13,15), é dos inimigos (2Rs 25,12; Jr 39,10; 52,16).
O Povo chamado ser povo eleito de Deus, está desterrado e massacrado.
Agora eles são apenas um grupo étnico perdido no meio de outros grupos étnicos
num império multicultural e multirreligioso de poderosas divindades estrangeiras. Eles
não passam de uma minoria escravizada, sem nenhum privilégio, sem nenhuma
preferência, procurando sobreviver no meio das tensões, sem horizonte, sem
gramática para poder ler a situação.
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É como hoje. Somos uma religião no meio das outras, perdemos os privilégios. E
tínhamos privilégios? Perdemos nossas pretensões. Qual a saída? Encontrar a saída
hoje não é fácil, pois nem todos pensam do mesmo jeito. Há muitas tensões e
movimentos em muitas direções?
3. Um outro grupo mais ligado aos profetas, não propõe a volta ao passado, nem
uma nova leitura da antiga gramática. Eles querem saber qual o apelo de Deus para
eles naquela situação desastrosa do cativeiro; O que Deus quer de nós? Eles eram um
movimento mais escondido que continuou vivo nas camadas mais simples da
convivência e renasceu com forço na época do Novo Testamento. É esta tendência dos
profetas que vamos ver de perto.
“Eu sou o homem que conheceu a dor de perto, sob o chicote da sua ira. Ele
(Deus) me conduziu e me fez andar nas trevas e não na luz. Ele volve e revolve
contra mim a sua mão, o dia todo. Consumiu minha carne e minha pele, e
quebrou os meus ossos. Ao meu redor, armou um cerco de veneno e amargura,
me fez morar nas trevas como os defuntos, enterrados há muito tempo. Cercou-
me qual muro sem saída, e acorrentado, me prendeu. Clamar ou gritar de nada
vale, ele está surdo à minha súplica. ... Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade
acabou. Eu digo: "Acabaram-se minhas forças e minha esperança em Javé" (Lam
3,1-8.17-18).
dsh,,, amor fiel. É a palavra central da Aliança. Indica tudo aquilo que Javé fez e
continua fazendo pelo povo.
Na sequência da lamentação, a partir deste momento, Deus já não é mais ELE que
de longe ameaça e castiga. Deixou de ser um poder anônimo distante, e volta a ser Tu,
com o nome Javé, o nome de sempre: presença libertadora no meio do povo. A
lembrança do Nome do bem-amado abriu a janela por onde vai entrar a luz. Este
nome, estas quatro letras, hwhy, aparecem mais de 6000 vezes só no Antigo
Testamento. É o nome que os primeiros cristão vão dar a Jesus: o nome acima de todo
nome! Este nome é como pavio de vela que sustenta e ilumina a história.
A certeza do nascer do sol não depende dos poderes deste mundo, nem da nossa
observância da lei, mas está impressa na lógica da criação. É promessa gratuita que não
falha, expressão da fidelidade de Deus. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não
consegue impedir o nascimento do sol. Nossa infidelidade pode ter sido grande, mas
ela não impede o nascimento do sol!
Jeremias abriu um largo horizonte e ajudou o povo a ler a natureza com um novo
olhar. Era nos fenômenos da criação que ele via um sinal da presença de Deus e da sua
fidelidade para com o povo: na sequencia inalterada dos dias e das noites; no sol que
se levantava todos os dias sobre a cidade destruída; na lua minguante e crescente; na
alternância das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno; nas chuvas, nas
plantas e sementes, etc. Tudo isto era para Jeremias um sinal da certeza de que Deus
continuava fiel ao seu povo e de que Ele não havia rompido sua aliança, como alguns
andavam dizendo (cf. Is 49,14). A natureza tornou-se sinal transparente da presença
gratuita de Deus no meio do seu povo. Sinal muito concreto que não deixava dúvidas.
Sinal muito humano e universal. Deus continuava sendo Javé, presença amorosa no
meio do povo
2. A experiência do amor.
É como se Deus dissesse ao povo: “Depois de tudo que você fez, você já não
mereceria ser amada. Mas meu amor por você não depende do que você fez por mim
ou contra mim. Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso,
apesar de tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você,
mesmo você me matando, eu amo você para sempre!" Amor eterno! Foram os
profetas que souberam redescobrir esta dimensão infinita do amor gratuito de Deus
(cf. Is 41,8-14; 49,15;Jr 31,31-37; Os 2,16) e souberam expressá-la com novas imagens
e símbolos.
Ora, foi exatamente neste espaço reduzido e tão enfraquecido da pequena família,
da “casa” ou do “corpo”, que eles reencontraram a presença de Deus. O Deus que,
antes, estava ligado ao Templo, ao sacerdócio, ao culto oficial, à Monarquia, agora está
perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e, humanamente falando, sem futuro,
mas Casa, e não Templo. Por isso, como que naturalmente, usaram as imagens da sua
própria vida familiar e não as da religião tradicional para expressar a nova experiência
de Deus e da vida. Deste modo, eles, por assim dizer, humanizaram a imagem de Deus e
sacralizaram a vida como o espaço do reencontro com Deus. “Realmente, tu és um
Deus que se esconde, Deus de Israel, Deus salvador!” (Is 45,15) Ele se esconde e se
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abriga onde antes ninguém o procurava: em casa, no relacionamento diário familiar, no
meio do povo exilado e excluído! Como outrora no Êxodo, Deus “desceu” novamente
do alto para estar junto do povo oprimido e exilado:
Na raiz da caminhada dos profetas, não está a ameaça de castigo, mas sim a forte
experiência do Amor de Deus. O que mais chama a atenção nas imagens por eles
usadas nos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías para expressar o novo relacionamento
com Deus é a dimensão pessoal e familiar. Deus é experimentado como Pai. Dirigindo-
se a Deus, eles diziam: “Tu, Javé, és nosso Pai. Nós somos a argila e tu és o nosso
oleiro, todos nós somos obras das tuas mãos” (Is 64,7; 63,16). Apresentam Deus como
Mãe. Dirigindo-se ao povo, o próprio Deus usa imagens maternas para expressar o seu
amor pelo povo. Ele diz: “Vós, a quem carreguei desde o seio materno, a quem levei
desde o berço” (Is 46,3; cf. 49,15-16; 66,12-13). Deus é apresentado como o Marido do
povo: “Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu edificador.
Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em
ti!” (Is 62,5; cf. 54,4-5). Deus é o Go´êl , o Redentor, o Irmão mais velho ou parente
próximo, que resgata o povo: “Não temas, vermezinho de Jacó, e tu, bichinho de Israel.
Eu mesmo te ajudarei, oráculo de Javé; o teu Redentor é o Santo de Israel!”(Is 41,14;
43,1).
Jesus confirmou este amor sem limites, quando perdoou o soldado que o matava
(Lc 23,34) e quando contou a parábola do filho pródigo que pediu a herança ao pai (Lc
15,11-32). Herança só começa a funcionar na morte do pai. A rapaz queria a morte do
pai, e o pai o acolheu, sem sequer mencionar o desatino do filho.
Eles não tinham mais templo, nem rei, nem terra, nem sacrifícios. Perderam tudo!
A única coisa que sobrou era a memória do que Deus tinha feito no passado. Com olhar
da experiência do amor de Deus, eles começam a lembrar o passado, não para
aumentar a saudade, nem para refazer o passado, mas para tirar lição e descobrir novo
horizonte.
"Todo ser humano é erva e toda a sua beleza é como a flor do campo: a
erva seca, a flor murcha, quando sobre elas sopra o vento de Javé; a erva
seca, a flor murcha, mas a palavra do nosso Deus se realiza sempre" (Is
40,7-8).
No primeiro cântico (Is 42,1-9) Deus apresenta a todos o seu Servo e diz qual a
missão que ele vai realizar. No segundo (Is 49,1-6) o próprio servo conta como foi difícil
descobrir e aceitar esta sua missão de servo de Deus. No terceiro (Is 50,4-9) o servo
relata como ele assume e executa a sua missão, apesar das perseguições. No quarto (Is
52,13 a 53,12) as pessoas, convertidas pelo testemunho do servo, contam como este
testemunho do servo sofredor provocou neles a conversão. Eles reconhecem que foi
graças ao sofrimento do Servo que elas foram salvas. No fim, o breve resumo dos
quatro cânticos (Is 61,1-2) é o texto que Jesus escolheu para apresentar-se com a sua
missão diante da comunidade na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18).
Jesus viveu e realizou a missão do Servo de Deus anunciado pelo profeta Isaías.
Quando ele foi batizado por João Batista no rio Jordão, o céu se abriu, o Espírito Santo
desceu em forma de pomba e a voz do Pai dizia a Jesus: "Tu és o meu Filho amado. Em
ti coloquei o meu agrado" (Mc 1,11). O pai do céu usou as palavras com que, cinco
séculos antes, o profeta Isaías tinha anunciado ao povo o futuro Messias Servo:
"Apresento a vocês o meu Servo que tem todo o meu agrado" (Is 42,1). Assim, na hora
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do batismo, o Pai confirmou Jesus como o messias servo, anunciado por Isaías (Is 42,1).
Na mesma hora, Jesus assumiu sua missão. Ele foi para o deserto, onde ficou durante
quarenta dias, preparando-se para a missão de messias servo, humilde e sofredor e
(Mc 1,12-13).
Desta nova gramática, isto é, desta nova compreensão da sua missão como povo
de Deus nasce, espontaneamente, um novo tipo de relacionamento com as pessoas,
uma nova prática missionária menos pretensiosa e mais humilde, não como "mãe e
mestra" que manda e ensina, mas como "discípula e aprendiz" que convive e aprende
da situação das pessoas o que partilhar e ensinar. Esta nova prática missionária
transparece nos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías. Ela tem uma dimensão
profundamente humana e uma atualidade impressionante para nós.
Eis um exemplo desta atitude de diálogo: “Por que dizes tu, Jacó, e por que
afirmas tu, Israel: “O meu caminho está oculto a Javé; o meu direito passa
despercebido a Deus?” Então não sabes? Por acaso não ouviste isto? Javé é um Deus
eterno, criador das regiões mais remotas da terra. Ele não se cansa nem se fatiga, a
sua inteligência é insondável” (Is 40,27-28)
O desânimo dos exilados era muito grande. Eles eram como o profeta Elias
deitado debaixo da árvore querendo morrer (1Rs 19,4). Até para cantar tinham
perdido o gosto (Sl 137,1-6). Este desânimo tinha duas causas: uma externa, a
destruição de Jerusalém, o exílio, a perda de todos os apoios; a outra interna, a falta de
visão e de fé. Deus parecia ter perdido o controle da situação. Nabucodonosor parecia
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ser o dono da história. Os discípulos de Isaías atacam as duas causas: desfazem o peso
da opressão e enchem o vazio do coração.
Para desfazer o peso da opressão eles usam o bom senso e fazem uma análise
crítica da realidade. Desmascaram o poder que os oprime e a ideologia dominante que
os engana. Tudo é analisado e criticado com ironia e precisão, e confrontado com a
nova visão que a fé em Deus lhes comunica: os príncipes e os juízes (Is 40,23); os
adivinhos e os sábios (Is 44,25); os governantes (Is 41,25); as nações do mundo (Is
40,15.17.22); a orgulhosa Babilônia (Is 47,1-15); os ídolos (Is 41,24.29; 40,18-20; 41,6-
7.21-29); seus adoradores (Is 44,20). A análise crítica da realidade concentra-se,
sobretudo na denúncia detalhada e irônica do culto aos ídolos que falsificavam a vida
humana (Is 44,18-20).
Para encher o vazio do coração eles ajudam o povo a perceber que Deus continua
no controle dos fatos. A história não escapou de suas mãos. Os acontecimentos duros
da história que tanto pesavam, é Javé que, através deles, realiza o seu plano (Is 55,8-
11). O próprio exílio é visto como instrumento de educação do povo por parte de Javé
(Is 54,7-8). Babilônia, a opressora, é vista como o meio, usado por Deus, para corrigir o
povo (Is 42,24; 47,6). Nas reuniões semanais eles refrescam a memória (Is 43,26; 46,9),
contam as histórias de Noé, de Abraão e Sara (cf. Is 51,1-2), da Criação, lembram o
êxodo (Is 43,16-17), apontam os fatos da política e perguntam: “Quem é que faz tudo
isto?" (Is 41,2). A resposta é sempre esta: "É Javé, o Deus do povo, o nosso Deus!".
Por este seu jeito diferente de conviver e de tratar com o povo, os discípulos não
só falam sobre Deus, mas também o revelam; comunicam algo daquilo que eles
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mesmos vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura, de misericórdia e de
diálogo. Eles mesmos são uma Boa Nova de Deus! Deus de novo se faz presente no
meio do povo e começa a reinar novamente. Não é mais o reino da monarquia. Agora
é o próprio Deus, Javé, que voltou a ser o rei do seu povo. É sobretudo Isaías 40 a 66
que acentua a noção do Reino de Deus (cf. Is 43,15; 41,21).
Não se trata de uma doutrina a ser ensinada, nem de uma moral a ser observada.
Anunciar a Boa Nova do Reino de Deus é irradiar aquilo que eles mesmos estão
vivendo; é apontar a presença do Reino que já existia na vida do povo e na natureza e
que vai sendo revelada e explicitada pelo anúncio dos discípulos de Isaías; é apontar
fatos concretos, pequenos ou grandes, onde a vitória do Reinado de Deus já está
acontecendo, e apresentá-los de tal maneira que apareça esta dimensão escondida da
presença vitoriosa do Reino de Deus. "Como são belos, sobre os montes, os pés do
mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do
que diz a Sião: "O teu Deus reina" (Is 52,7)
* O reino já não é a monarquia de Davi, mas o Reino do próprio Deus (Is 52,7; 43,15).
* O povo de Deus já não é uma raça, agora também os estrangeiros fazem parte (Is 56,3.6-7).
* O templo já não será só para os judeus, será casa de oração para todos os povos (Is 56,7).
* O sacerdócio não é só de Levi pois estrangeiros receberão o mesmo sacerdócio (Is 66,20-21).
* O messias, (ungido) não é só o rei davídico, também Ciro, o Rei dos persas (Is 45,1; 44,28).
* A eleição já não é um privilégio, mas serviço a ser prestado a toda a humanidade (Is 42,1-4).
* A lei de Deus não é só de Israel, mas de todos os povos que nela encontram luz (Is 2,1-5).
* Jerusalém não é capital de Judá, mas o centro de peregrinação de todos os povos (Is 60,1-7).
* As promessas que eram somente para Davi agora são para todo o povo (Is 55,3-5)
* A missão do povo não é ser um grupo separado, mas ser “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6)
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3.
A Luz que nos vem
da prática missionária de Jesus
A prática missionária de Jesus tem sua raiz na prática missionária dos profetas do
cativeiro da Babilônia. O livro bíblico mais usado e mais evocado por Jesus é o livro do
profeta Isaías, sobretudo os capítulos 40 a 66.
Vou começar elencando, sem muita ordem, palavras e gestos de Jesus, nos quais
transparecem sinais da nova gramática que o animava na sua missão e que era o
motivo das suas divergências e conflitos com a religião estabelecida da época: fariseus,
doutores da lei, sacerdotes, saduceus.
Veremos como Jesus, nos seus gestos e palavras, entrou em conflito com este
sistema das normas religiosas da época. Muitas vezes, ele foi criticado, mas não voltou
atrás. De certo modo, aqui está o motivo da sua condenação à morte. Mesmo criticado
pelas autoridades, o povo gostava de ouvir Jesus e dizia: "Um ensinamento novo, dado
com autoridade, diferente dos escribas" (Mc 1,22.27).
A mulher insiste. Ela não obedece à gramática de Jesus, nem a entende, pois é de
outra raça e de outra religião. Ela se orienta pela necessidade da vida: a doença da
filha. Jesus invoca a gramática para não atendê-la: "Não é bom dar o pão dos filhos
para os cachorrinhos!" Mas a mulher usa o argumento de Jesus contra Jesus:
"Também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa!"
Diante desta resposta da mulher, Jesus admira a fé: "É grande a tua fé!" Mas ele
deixa a resposta definitiva por conta da mulher: "Seja feita como você quer!" É
como se dissesse: "Se a tua fé produzir a cura da tua filha, eu mudo de opinião!" A
menina ficou curada e Jesus mudou de opinião e aceita que a sua missão seja não
só para as ovelhas perdidas de Israel, mas para todos. A partir da escuta do
problema e da fé da mãe pagã, .Jesus superou a antiga gramática e encontrou uma
nova gramática para a sua missão.
Foi a insistência da mulher que levou Jesus a abrir os olhos e a descobrir que ele
devia ser messias, não só para os judeus, mas para todos os seres humanos!
Mudou a gramática a respeito da missão do Messias.
No contexto atual do Evangelho, escrito em torno dos anos 70, este fato da
Cananeia adquire um sentido ainda mais amplo. É como se ela, a mulher,
afirmando que até os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos
filhos, estivesse dizendo a Jesus: "Aqueles doze cestos que sobraram da
multiplicação dos pães são as migalhas que me pertencem!"
3. A observância do sábado: (Lc 13,10-17). Ser fiel ao Espírito e não à letra da lei.
A mulher, curvada durante 18 anos, é curada em dia de sábado. O coordenador
reclama: "Dia de sábado não pode!" Jesus critica a falsa interpretação da lei:
"Jumento vocês soltam em dia de sábado para beber, e eu não posso soltar esta
filha de Abraão?!" Em outra ocasião, na sinagoga de Cafarnaum (Mc 3,1-6), Jesus
explicita a contradição desumana entre as duas gramáticas a respeito do sábado e
provoca os fariseus e doutores: "Em dia de sábado pode fazer o bem ou o mal,
salvar ou matar?" (Mc 3,4). Eles não aceitaram a nova gramática de Jesus e
decidiram matá-lo.
Por estas duas portas do trabalho e da família Jesus não consegue contato. A
conversa só muda quando a mulher se situa dentro dela e diz: "Vejo que o senhor
é um profeta!" E é ela que puxa a conversa para o assunto da religião. Jesus aceita
a mudança que a mulher introduziu na conversa. Por duas vezes, ele obedece ao
rumo que a mulher impõe e corre até o risco de não conseguir o seu objetivo. No
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fim, provocado pelas observações da mulher, ele revela a ela o seu maior segredo:
"O Messias sou eu!".
Conversa difícil. A conversa virou conversão! Algo mudou em Jesus por causa da
conversa. Ele perdeu a fome: "Tenho uma outra comida! Meu alimento é fazer a
vontade do Pai!" Ele descobriu um novo horizonte para a sua ação missionária:
"Apesar de faltar ainda quatro meses para colheita, os campos já estão prontos
para a colheita!" Através da escuta e do diálogo com uma mulher de outra raça e
de outra religião, Jesus descobriu uma nova proposta para a sua ação missionária.
Jesus assume ser o servo anunciado por Isaías. É a nova gramática a respeito da
vinda do Messias e da função: Messias humilde e servidor, e não um messias
glorioso e poderoso. Aqui está a fonte dos conflitos de Jesus com os doutores e
fariseus e a causa da sua condenação à morte. A raiz de tudo isto vem da nova
experiência de Deus que já vinha desde os profetas da época do cativeiro na
Babilônia e que foi confirmada definitivamente por Jesus.
Deste modo, ele liberta o povo da tirania da lei, da tirania dos intérpretes da lei,
da tirania dos que, em nome do seu saber maior, impunham fardos pesados ao povo
dito ignorante (Mt 23,4). Até hoje ressoa o convite: “Venham a mim vocês todos que
estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso! Carreguem a
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minha carga (a minha proposta) e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de
coração, e vocês encontrarão descanso para as suas vidas” (Mt 11,28-29).
O povo dos pobres logo percebeu a novidade, acolheu Jesus e disse: “Um novo
ensinamento com autoridade!” (Mc 1,27), diferente dos escribas e dos fariseus (Mc
1,22). E indo atrás de Jesus, (Mt 14,13-14), esquecia tudo: casa, comida, filhos, a ponto
de parar no deserto (Mc 6,35-36), junto com Jesus, sem comida, quase desfalecendo
(Mc 8,1-3). Para o povo faminto e pobre, Jesus deve ter sido uma simpatia ambulante.
Revelação do rosto de Deus, do Deus amigo!
A opção de Jesus é muito clara. Também o convite é claro: não é possível ser
amigo de Jesus e continuar a apoiar um sistema que marginaliza tanta gente. Alguns
dos mais ricos o entenderam e responderam afirmativamente: Nicodemos (Jo 3, 1-2),
que defendeu Jesus no tribunal (Jo 7, 50-52), foi vaiado e correu o risco de ser expulso
(Jo 19,39); José de Arimatéia, que teve a coragem de pedir o corpo de Jesus para
enterrá-lo (Mt 27, 57-60), correndo o risco de ser acusado de ser contra os romanos e
contra os chefes judeus; Zaqueu que deu a metade de seus bens aos pobres e devolveu
quatro vezes o que tinha roubado (Lc 19, 1-10).
Estes sete pontos tão bem escolhidos por Marcos mostram o rumo e o
objetivo da prática missionária de Jesus. É assim que ele realiza o objetivo: “Eu
vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância!” (Jo 10,10).