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A hemorragia digestiva alta é uma emergência clínica relativamente freqüente, com gravidade que varia
de episódios discretos até sangramentos que ameaçam a vida. Estima-se que, por ano, nos Estados
Unidos da América do Norte, sejam internados aproximadamente 100 doentes com sangramento
digestivo alto, para cada 100.000 habitantes (1,2). Na maioria das vezes exterioriza-se como
hematêmese (vômito de sangue "vivo" ou ‘borra de café’) e/ou melena (fezes enegrecidas e
extremamente fétidas, decorrentes da ação das enzimas digestivas sobre a hemoglobina,
transformando-a em hematina). Não raro, o sangramento digestivo alto expressa-se através da
enterorragia (sangramento "vivo" pelo ânus, isolado ou misturado com as fezes), e isto pode decorrer
de trânsito intestinal acelerado, em casos de hemorragias volumosas ou, mais raramente, de fístulas
gastrocólicas. Em pequena porcentagem de casos o paciente não apresenta exteriorização da
hemorragia e as manifestações hemodinâmicas de perda volêmica nos induzirá à suspeita diagnóstica.
Dados recentes têm mostrado que apesar dos progressos obtidos no diagnóstico etiológico das
hemorragias digestivas, da melhor compreensão dos mecanismos patogenéticos dos sangramentos e do
avanço das terapêuticas de suporte, especialmente nos campos da Endoscopia Digestiva, Terapia
Intensiva, Anestesia e Cirurgia, a taxa de mortalidade desta entidade tem permanecido ao redor de
10%, com uma variação entre 2 e 17% (2,4-7). Os pacientes que estão internados por outra doença e
apresentam hemorragia digestiva como complicação, a taxa de mortalidade ainda é maior, sendo de até
70% dependendo da doença subjacente (5). As razões para a manutenção do atual índice de
mortalidade se deve especialmente à maior exposição da população a inúmeros fatores de risco, quando
comparada a algumas décadas passadas (10).
As causas de sangramento digestivo alto variam de acordo com a natureza do hospital, com a região
geográfica e a população de pacientes atendida. De uma forma geral, a doença ulcerosa péptica é
responsável por 40 a 50% dos casos de sangramento; as erosões gastroduodenais por 20 a 30% e as
varizes esofágicas por 10 a 20%. As outras causas (síndrome de Mallory-Weiss, esofagite, duodenite,
neoplasia gástrica, gastropatia congestiva, hemobilia, fístula aorto-entérica, lesão de Dieulafoy, ectasia
vascular antral e outras) são responsáveis pelo percentual restante (4-6). Estudo realizado em nosso
serviço mostrou que 29,25% dos casos tiveram sangramento decorrente da doença ulcerosa péptica,
25,45% por lesões agudas da mucosa gastroduodenal e 21,26% por varizes esofágicas, outras
etiologias foram responsáveis por 24,04% (13).
Tendo em vista a importância da doença ulcerosa péptica no conjunto das doenças não varicosas que
levam a hemorragia digestiva alta e o fato de que a conduta frente as demais causas ser semelhante,
abordaremos aqui a sua conduta.
A associação com drogas antiinflamatórias não hormonais (AINHS) é de aproximadamente 55% dos
casos de úlceras sangrantes, é dose dependente e ocorre geralmente no primeiro mês de uso do
medicamento, sendo a grande curvatura do estômago o local mais freqüente. Além dos AINHS, a
associação de úlceras gástricas e duodenais com Helicobacter pylori está bem estabelecida.
Aproximadamente 90 a 100% dos pacientes com úlcera duodenal, e 70 a 90% dos pacientes com úlcera
gástrica apresentam Helicobacter pylori no estômago. Está comprovado que o paciente com infecção
por Helicobacter pylori não tratado e com antecedente de úlcera péptica hemorrágica tem maior risco
de ressangramento do que o paciente tratado e com erradicação da bactéria.
O sangramento pela doença ulcerosa péptica cessa espontaneamente em 70 a 90% dos casos. Nos 20%
de pacientes que continuam a sangrar e que ressangram durante a hospitalização, a mortalidade pode
chegar ao redor de 35%. Qualquer que seja a etiologia da hemorragia digestiva, ela se deve a uma
erosão da mucosa e laceração excêntrica na parede de um vaso calibroso. A erosão quase sempre está
associada à hiperacidez ou a um distúrbio na citoproteção gástrica. Swain et al. demonstraram
histologicamente que a artéria que atravessa a base da úlcera não é um vaso terminal, e seu trajeto
abaixo da úlcera é muito variado (3).
Abordagem Inicial e Medidas Terapêuticas Gerais
Devemos inicialmente excluir uma possível fonte extradigestiva, bem como questionar a possibilidade
de uma falsa hemorragia digestiva, como ocorre na evacuação de fezes pretas por ingestão de ferro,
bismuto, carvão ou espinafre. Outra condição que pode ser confundida com hematêmese é o vômito de
secreção de estase.
Confirmada a sua ocorrência, a avaliação clínica inicial e aferição do grau de sangramento são
fundamentais na condução do tratamento da hemorragia digestiva. Quanto mais rápido o diagnóstico e
o adequado tratamento, menor a mortalidade. Pela imprevisibilidade da evolução do quadro
hemorrágico, todo paciente com hemorragia digestiva e instabilidade hemodinâmica deve ser
considerado como tendo uma doença de risco alto e hospitalizado em regime de urgência.
Quadro I.
Avaliação Hemodinâmica
A perda súbita e maciça de sangue tem como conseqüências a má perfusão e a baixa oxigenação
tecidual, o que carreia alto risco de isquemia, agravada muitas vezes pelas doenças anteriores do
paciente. A avaliação hemodinâmica (quadro I.) se faz através da medida da pressão arterial, com o
paciente em pé e deitado, freqüência cardíaca, diurese horária e hematócrito seriado (lembrar que em
sangramentos agudos a concentração de hemoglobina e hematócrito podem permanecer inalterados por
até duas horas). O volume intravascular é calculado multiplicando-se o peso do paciente por 70 ml, por
exemplo, um paciente com 70 Kg tem aproximadamente 4.900 ml de sangue.
O doente que se apresenta em choque (palidez cutâneo-mucosa, sudorese fria, pressão arterial sistólica
menor que 80 mmHg, freqüência cardíaca maior que 120 bpm) teve uma perda volêmica maior que
30% e a conduta imediata deve incluir a punção de uma veia calibrosa, infusão de solução cristalóide
(soro fisiológico ou Ringer lactato) e colocação em posição de Trendelenburg, na tentativa de manter
boa perfusão cerebral. Nestes casos, deve-se administrar fluidos até que seja atingida pressão sistólica
de 100 mmHg. Se a hipotensão persistir após 2 litros de solução salina, a transfusão sangüínea deve
ser imediatamente considerada. A restauração da pressão sangüínea não necessariamente implica na
correção do choque, podendo persistir a má perfusão tecidual. Sinais de vasoconstricção periférica
devem ser pesquisados.
Quando o sangramento for grave ou o paciente for portador de outras patologias de risco (insuficiência
renal crônica, insuficiência coronariana, etc.) devemos já de início repor sangue através de concentrado
de hemácias. Na ausência de sangramento ativo, cada 300 ml de concentrado de hemácias (uma
unidade) deverá elevar cerca de 3% o hematócrito, e caso isto não ocorra possivelmente o
sangramento permanece. O objetivo é manter o paciente clinicamente estável e o hematócrito entre 25
e 30%, tendo em mente que nem sempre este valor traduzirá a perda sangüínea real, ao menos nas
primeiras 24 horas (devido à hemoconcentração associada).
Instabilidade hemodinâmica
Hemorragia que iniciou durante a hospitalização
Necessi/e de transfusão continuada
Pacientes com mais de 60 anos
Hematêmese com sangue "vivo"
Pacientes com doenças associadas
Enterorragia
Casos de ressangramento durante a hospitalização
É o método de escolha para a avaliação do sangramento do trato digestivo superior. Permite determinar
a presença ou a ausência de sangramento ativo ou recente. A endoscopia está indicada em todos os
casos de hemorragia digestiva e deve ser realizada o mais rápido possível nos pacientes com sinais de
sangramento ativo e naqueles que não podem tolerar grande perda sangüínea, como por exemplo, os
com insuficiência coronariana. A realização da endoscopia nas primeiras horas também pode evitar
sobrecarga de volume associado com excesso de transfusão sangüínea.
Os benefícios da endoscopia digestiva alta superam em muito os riscos associados com este
procedimento, como depressão respiratória, broncoaspiração e arritmia cardíaca.
O aspecto da base da úlcera permite identificar subgrupos de pacientes com maior risco de
ressangramento. Estes achados baseiam-se na classificação de Forrest (quadro 2). Estudos prospectivos
prévios mostraram que nos pacientes tratados apenas clinicamente, a possibilidade de úlceras com
sangramento Forrest Ia/Ib apresentarem persistência ou recidiva do sangramento foi de 75 a 85%.
Naqueles pacientes Forrest IIa/IIb, risco de ressangramento entre 38 e 50% e nos casos Forrest IIc/III,
entre 0 e 10% (2,5).
Recentemente, o Doppler endoscópico tem sido utilizado para prever a ocorrência de ressangramento.
Nos casos em que o Doppler é negativo (sem evidências de fluxo sangüíneo na base da úlcera
sangrante) a taxa de ressangramento é muito baixa (10,11).
Quadro 2.
Classificação de Forrest
SANGRAMENTO TIPO DESCRIÇÃO
Forrest IA Em jato
I - Ativo
Forrest IB Em "babação"
Terapêutica Farmacológica
Sabemos que estes agentes são eficazes em aumentar a cicatrização de lesões pépticas
gastroduodenais após o sangramento. Assim, uma vez controlado o sangramento agudo, os doentes
devem receber um destes medicamentos ou uma combinação, por via oral, por uma período mínimo de
4 a 8 semanas e controle ambulatorial neste período.
Terapêutica Endoscópica
A endoscopia oferece vários métodos para a realização de hemostasia e constitui atualmente a primeira
escolha para o tratamento de úlcera sangrante (4-7,10). Dividem-se em métodos térmicos e não
térmicos. Dentre os térmicos temos a Eletrocoagulação Monopolar ou Bipolar, a Fotocoagulação com
laser, Argon Plasma Coagulação, Microondas e o Heater Probe. Os métodos não térmicos são o
tratamento por injeção, a aplicação de grampos hemostáticos (hemoclips), o uso de colas, etc.
O método de injeção endoscópica deve ser considerado atualmente como a terapêutica inicial de
escolha, salvaguardando a experiência de cada Serviço de Endoscopia no domínio das técnicas
hemostáticas. A introdução de um cateter injetor através do canal de biópsia permite injetar
substâncias vasoconstritoras e/ou esclerosantes ao redor e no próprio local de sangramento. Esta
técnica constitui um método de baixo custo, fácil execução e com taxa pequena de complicação.
Os agentes mais empregados são a adrenalina e os esclerosantes, tais como álcool absoluto,
polidocanol e oleato de etanolamina. A adrenalina age através da vasoconstrição e do edema que se
forma ao redor do vaso sangrante. A lesão tecidual é pequena e geralmente não há trombose vascular.
Os esclerosantes causam desidratação e contração dos tecidos vizinhos, bem como inflamação do vaso
sangrante, levando à formação de trombos.
Após a primeira sessão hemostática, o paciente deve permanecer sob observação clínica e se possível o
exame endoscópico deverá ser repetido dentro de 24-72 horas, ocasião na qual será definida a eficácia
da hemostasia prévia ou a necessidade de nova sessão hemostática. É durante este período em que na
maioria dos casos, a persistência ou recidiva da hemorragia ocorre. Admite-se que exista hemostasia
definitiva desde que não se verifique nova hemorragia nos 7-10 dias após a terapêutica endoscópica.
Em análise de 27 estudos prospectivos de pacientes com sangramento ativo ou com vaso visível, houve
persistência ou recorrência do sangramento em cerca de 20% dos pacientes após terapêutica
hemostática inicial com os vários métodos existentes. Nos casos de ressangramento, uma segunda
tentativa de tratamento endoscópico conseguiu hemostasia permanente em cerca de 50% (5).
Tratamento Cirúrgico
De forma genérica e observando as particularidades de cada caso, a cirurgia de urgência deve ser
considerada quando: a) hemorragia grave que não responde às medidas rápidas de ressuscitação
volêmica; b) sangramento persistente com perda de metade ou mais da volemia; c) falha da segunda
hemostasia endoscópica; d) nova hemorragia, após controle inicial desta com medidas clínicas e
endoscópicas; e) necessidades superiores a quatro unidades de sangue nas primeiras 24 horas para
manter equilibrados os sinais vitais ou para estabilizar os indicadores laboratoriais dentro dos limites
adequados; f) perfuração ou obstrução associada.
Referências
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