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dependência familiar
Introdução
O objetivo desta comunicação é apresentar algumas reflexões a respeito do
alcoolismo entre mulheres e sua interface com os mecanismos discursivos de
estigmatização que levantam potenciais barreiras na admissão da dependência alcoólica
e na procura de ajuda.
A pesquisa, de cunho etnográfico, foi realizada em um grupo de Alcoólicos
Anônimos (A.A) de Londrina. Foram observadas as reuniões desta organização a fim de
identificar como funciona o seu programa terapêutico de combate ao alcoolismo, que
têm como pressuposto central ajudar o alcoólico que “deseja parar de beber a manter a
sobriedade”, segundo sua literatura (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 1976). Para
viabilizar essa pesquisa, complementarmente, analisei um material informativo cedido
pelos A.A voltados exclusivamente às mulheres, o qual traz à tona diversos relatos e
trajetórias de vida de mulheres que sofriam ou sofrem com alcoolismo e o preconceito
moral diante à situação2.
Na visão do senso comum, os freqüentadores das reuniões dos A.A são vistos
como “desvalidos, bêbados irresponsáveis e mendigos maltrapilhos” (Motta, 2004,
p.19) e não como doentes. No caso das mulheres, este estigma se torna ainda maior,
dada a legitimidade social da relação entre o uso de álcool por homens nos espaços
públicos, que resulta, inclusive, em maiores dificuldades para mulheres assumirem a
dependência e procurar ajuda, como foi observado na pesquisa. O mencionado
pressuposto, analisado através da categoria gênero, é o alicerce da relevância deste
trabalho.
A intensificação de uma "ética do beber" em ambientes públicos, espaços por
excelência de consumo alcoólico por homens, indica a percepção de uma maior
"transgressão" deste ato em relação ao consumo do álcool por parte das mulheres.
1
Mestrando em Ciências Sociais (UEL). End. Eletrônico: dubrunello@hotmail.com
2
Os depoimentos aqui apresentados, tanto do material informativo voltado para as mulheres quanto das
mulheres do grupo, apresentam nomes fictícios.
Durante a pesquisa foi constatado que muitas mulheres para fugirem dos olhos
estigmatizados do público preferiam beber dentro do ambiente privado, de suas
residências, mostrando-se como uma estratégia que as “livram” do preconceito social
“face- a- face”, ou seja, de olhares de desconfiança e de desqualificação moral por
estarem consumindo bebidas alcoólicas rotineiramente em ambientes públicos.
Contudo, como o alcoolismo é uma “doença crônica e progressiva” segundo a literatura
de A.A (1976), essas mulheres encontram dificuldades em “mascarar” o alcoolismo por
muito tempo, sendo este, um fator agravante para o “não controle” da doença.
Para abordar e analisar o estigma, inter-relacionado com o alcoolismo e as
questões de gênero, tem-se como ponto de partida as contribuições de Foucault (1988)
sobre o “biopoder” e a domesticação dos corpos. A partir desse autor, busco perceber
como os discursos são construídos socialmente indicando uma normatividade
esteriotipada dos papéis definidos em relação ao que é cristalizado como atributos
masculinos e femininos. No contexto desta pesquisa, observa-se que os supostos
atributos masculinos (como o beber em espaços públicos) quando “incorporados” pelas
mulheres que bebem cotidianamente nestes espaços, desencadeariam um processo
conflitivo e/ou duplamente transgressor, na medida em que: 1) o alcoolismo é visto
somente como uma doença moral pelo senso comum e 2) as mulheres estariam
“supostamente” descumprindo seu “papel natural” de cuidadora do lar e provedora da
vida. Ou seja, são produzidos discursos que as dificultariam em assumir a dependência e
a procurar ajuda frente ao processo de estigmatização.
Desde a infância ocorre um vínculo imediato que conjuga, de maneira complexa,
o desejo e o poder; necessidade, enfim, de um controle e/ou um conhecimento para
arbitrar e regular essas novas relações entre a vigilância obrigatória dos pais e do corpo
tão frágil das crianças, por exemplo. Como nos aponta Lauretis (1991) a criança na
língua inglesa é expresso pelo pronome it, designando algo “não sexuado” em que se
deve passar por uma espécie de “treinamento” no intuito de se transformar em she ou he
sendo, ainda relacionadas, a uma extensa carga prática/simbólica de “modos adequados
de se comportar”.
O questionamento da sexualidade; “anomalias” e/ou “desvios”, foram um dos
procedimentos de constituição desse tipo de dispositivo. O indivíduo “anormal”,
considerado por tantas instituições, discursos e saberes, “deriva ao mesmo tempo da
exceção jurídico-natural do mostro das multidões, dos incorrigíveis, detidos pelos
aparelhos de adestramento, e do universal secreto das sexualidades infantis”. (Foucault,
1997, p.65-66), o que nos dão uma falsa noção de desvios.
Tomando como premissas as argumentações supracitadas procuro apresentar
uma breve análise, a partir das narrativas colhidas nos A.A e no material informativo, o
peso da materialidade discursiva repressora para as mulheres que bebem nos ambientes
públicos e, adicionalmente, as possíveis estratégias de algumas mulheres que optam
pelo beber privado no intuito de não gerar um sentimento de “transgressão”, mas que, e
ao mesmo tempo, desencadeia um processo “mais conflitivo” no trato da dependência
alcoólica.
“Eu não bebia em bares. A maior parte das minhas bebedeiras aconteceu em
minha casa. O trabalho do meu marido obrigava-o a viajar com freqüência, e
a cada vez que ele viajava, eu esperava uma meia hora para ir até o armazém,
comprar o meu estoque de bebidas, voltar para casa e beber sem parar, até me
apagar” (Cláudia, A.A para mulheres, 1991, p.36)
“Eu quero dizer aqui pra todo mundo que eu tenho muito orgulho do meu
marido. Só eu sei o quanto nós sofremos com o alcoolismo, mas agora os
momentos difíceis passaram. Eu quero agradecer a todos pois aqui em A.A
encontramos pessoas maravilhosas que entendem quanto é difícil a situação.
Estou muito feliz por ele estar sóbrio há 4 meses e esse será meu maior
presente de Natal. Desejo a vocês mais um dia sem álcool e para quem não
bebe muita serenidade”. (Lúcia).
Analisando a fala supracitada, pode-se perceber que a alegria maior de Lúcia foi
obtida diante da situação de abstinência de seu marido, uma vez que, o sofrimento dela,
estava diretamente atrelado ao sofrimento dele. Logo, o controle do alcoolismo por
parte de seu marido, foi sua conquista também e isso, de certa forma, proporcionou um
reajuste na condição de “desarmonia familiar” provocada pelo alcoolismo.
É possível assim constatar que, o alcoolismo, designa uma série de categorias
dentro do aspecto da doença moral atribuída ao sofrimento familiar, o que acarreta na
provável “desestruturação familiar”. Para tanto, Campos (2008) afirmou o seguinte:
Portanto, para o alcoólico que está inserido dentro de uma configuração familiar,
é improvável que as pessoas do seu convívio permaneçam ilesas às implicações que o
alcoolismo lhes causam. Este processo, que ocorre paralelamente entre o alcoólico e seu
co-dependente, culmina no “estilhaçamento das relações sociais familiares” no qual, o
“bebedor”, traz para o convívio familiar, um conjunto de fatores ligados ao beber que
são incompatíveis com as atividades cotidianas de sua rede, por exemplo. O sofrimento
instalado na forma de “crise familiar” é densamente sentido pelo alcoólico em seu
processo progressivo da doença e transbordado para seu ambiente doméstico. Referente
a tal suposição, Nunes (2009) assegura que:
O espaço doméstico passa a ter em comum as dores (físicas e emocionais), a
angústia, o medo, a raiva, o ressentimento e os dissabores. Do odor (mau
cheiro) do álcool ao nervosismo dos que se encontram em casa, no lar e não
sabem em que condições chegará o familiar alcoólatra; às promessas não
cumpridas, os sonhos desfeitos, as noites insones, a ausência total, tudo é
sofrimento, é decepção, é a verdadeira “dor da alma” (NUNES, 2009, p.4)
Referências:
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de Literatura de Alcoólicos Anônimos no Brasil, 1976.
__________. A.A para mulheres. JUNAAB. Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Graal, 1988.
______. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Tradução Andréa
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NUNES, Rui Ferreira. Co-dependência: Amor ou Maldição? 2009. Disponível em:
<www.ruiferreiranunes.com/tag/co-dependencia>. Acesso 2/12/2009.