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Os Atos dos Apóstolos registra a narrativa de como o Apóstolo Paulo, estando em Atenas, e
aguardando a chegada de Silas e Timóteo, se indignou com os vários idólos espalhados pela
cidade. Aqui no Adcummulus, nosso amigo Flávio, já fez um análise interessantíssima sobre a
passagem, que o leitor não deve perder.
O Areopago, situado na Colina de Marte, era o lugar em que se reuniam, desde tempos muito
antigos, os Arcontes de Atenas, o conselho de magistrados da cidade. Desde as reformas de
Solón, no início do sec VI AC, o Areopago foi gradualmente esvaziado de seus poderes políticos,
ainda que, mesmo no período romano, retivesse significativa autoridade para os assuntos internos,
além de exercer funções cerimoniais, detendo assim considerável prestigio [1].
Significativamente, naquele mesmo local, cinco séculos antes, o Areópago havia julgado Socrátes.
Como observa o Professor C. Kavin Rowe, da Universidade Duke (EUA), Socrates havia sido julgado
e condenado a morte "por rejeitar os deuses reconhecidos pelo Estado, e trazer outras, novas,
deidades", nas palavras de Xenofonte e Platão [1]. Conforme Atos 17:19, Paulo foi "trazido",
"levado" ao Areópago, (com o verbo grego conotando um elemento de coerção), para explicar suas
novas idéias (já que Jesus e Ressureição foram entendidos pelos atenienses como novos deuses),
com a narrativa lucana aludindo ao bem conhecido julgamento de Socrates [1]. Em suma, Paulo foi
"levado para averiguação", ou "intimado para prestar esclarecimentos", e deveria se explicar
convincentemente.
Paulo, porém, foi extremamente hábil e político, dadas as circunstâncias. A menção ao Deus
Desconhecido, naquele cenário, não deve ter passado desapercebida daqueles leram e ouviram a
narrativa. Séculos antes de Paulo, por volta do ano 595 AC, o filósofo cretense Epimenides teria
estado em Atenas, na mesma Colina de Marte em que se reunia o Areopago. Diógenes Laércio
(início do século III DC), escreve:
Muitas das construções, jardins e lugares públicos de Atenas estavam associadas a uma ou outra
divindade. Assim, dedicar um sacríficio a divindade local, implicava em dedica-lo aquele deus ou
deusa. No entanto, como essa lenda diz que em vários locais da Àtica, foram dedicados altares
sem nome, isso implica que se desconhecia a divindade associada aos locais em que pelo menos
algumas das ovelhas descansaram. Foi a forma que se encontrou para se justificar a existência de
altares dedicados ao "Deus Desconhecido" (Agnostos Theos).
Pieter Willen van der Horst, Professor (aposentado) da Universidade Utrecht (Holanda), é autor de
um dos mais relevantes estudos sobre "O Deus Desconhecido", chamado "The Altar of the
Unknown God in Athens (Acts 17:23) and Cults of Unknown Gods in Graeco Roman World" [3],
onde procura responder três questões:
Prof. Van der Horst cita duas passagens do livro "Descrições da Grécia" (160-176 DC), escrito pelo
geográfo Pausânias, que se referem a altares ao(s) deus(es) desconhecido(s), em Atenas e
Olimpia:
Os atenienses também têm outro porto, em Muniquia, em que se localiza um templo de
Artemis de Muniquia, e ainda outro na Faliro, como já afirmei, e perto dele um santuário de
Deméter. Aqui também existe um templo de Atena Sciras, e um dedicado a Zeus a alguma
distância, e os altares dos deuses chamados desconhecidos, e de heróis
Além de Pausânias e Filostrato, Professor Van der Host inclui entre as referências literárias o
apologista cristão Tertuliano de Cartago, contêmporaneo desses autores pagãos. Em sua violenta
crítica ao herege Marcião de Sinope:
Convença-me que possa ter havido um deus desconhecido. Sem dúvida, sei que
existem altares que foram oferecidos a deuses desconhecidos, que, no entanto, é a
idolatria de Atenas. E a deuses incertos, que, também, é apenas superstição romana. [6].
Tertuliano, afirma aqui que não só os atenienses e gregos em geral, tinham o hábito de construirem
altares aos "deuses desconhecidos", os romanos também faziam isso. Isso é relevante em nossa
discussão, pois o Professor Van der Host observa que a evidência arqueológica, em lingua
grega, para os altares ao(s) "deus(es) desconhecido(s)" é limitada, sendo o mais relevante
candidato uma inscrição de Pergamo, na Asia Menor, mas que é fragmentária e cuja menção aos
"deuses desconhecidos" é disputada entre os estudiosos [7]. No entanto, podemos acrescentar, a
evidência em lingua latina, é superior.
SEI·DEO·SEI·DEIVAE·SAC
G·SEXTIVS·C·F·CALVINVSPR
DE·SENATI·SENTENTIA
RESTITVIT
Não é estranho que ele [Paulo] tenha utilizado versos dos poetas pagãos quando fosse
oportuno, haja visto que em seu discurso aos Atenienses ele chegou a mudar alguns
elementos da inscrição do altar. Pois ele diz [citação de Atos 17:23]. No entanto, a
inscrição não era, como Paulo afirma "Ao deus desconhecido" mas sim "aos deuses
da Asia, Europa e Africa, aos deuses estrangeiros e desconhecidos". Uma vez que Paulo
não necessitava de vários deuses, mas apenas um Deus desconhecido, ele usou o
singular" [9].
Van der Horst observa que um quase contemporâneo de Jerônimo, Eutálio, o diácono
(também conhecido como Eutálio de Alexandria), cita a inscrição de forma identica a Jerônimo,
diferindo apenas na segunda parte, que seria "ao deus estrangeiro e desconhecido"[10]. A versão de
Jerônimo é atípica pois não só os autores cristãos, mas também vários autores pagãos, que
viveram antes dele, nos séculos II e III, referem-se ao um altar em Atenas ao(s) deuse(s)
desconhecido(s) , sem mais a acrescentar. No entanto, é improvável que Jerônimo tivesse
expandido uma inscrição apenas para contradizer o Apóstolo Paulo! Van der Host oferece então
uma solução de compromisso: o altar possivelmente tinha inscrições dos dois lados, uma mais
antiga "aos deus(es) desconhecido(s) e estrangeiro(s)", conhecida dos autores do século I e II, e
outra, posterior, possivelmente fruto de uma re-dedicação do altar "aos deuses da Ásia, Europa, e
Africa" , de forma a tornar o altar ainda mais claro, atendendo a todos os deuses possíveis e
imagináveis [10]. Seja como for, reforça a percepção de que o altar era dedicado aos deuses
desconhecidos, e não a um deus desconhecido.
Professor Van der Host, observa que essa dedicação genérica, a deuses desconhecidos, era
motivada pelo temor de que alguma divindade negligenciada, ficasse magoada pelo desprezo, e
buscasse vingança, e cita o Bispo João Crisóstomo, no século IV:
Desta forma, fica claro que os altares refletem o reconhecimento por parte de gregos e romanos
das suas limitações quanto ao conhecimento das coisas divinas. Temendo ofender os poderes
celestiais, buscavam garantir que todos fossem honrados, garantindo, em outro altar específico, a
menção pelo nome porém daqueles a qual, imediatamente, se buscava o favor. Ou seja,
independente se tais altares eram dedicados ao "deus desconhecido", ou aos "deuses
desconhecidos", seu caráter genêrico e "politico" é claro. Consideradas as devidas proporções, é
semelhante, no contexto cristão, ao dia, ou ao alteres ou igrejas dedicados hoje "a todos os
santos". Pregadores da nova fé como Paulo, viram porém naquele altar, a oportunidade de falar
sobre o Deus que os sábios gregos e romanos não haviam esquecido sem sequer ter conhecido.
Além disso, ao associar o Deus Desconhecido ao Deus de Israel, apontando para um altar erigido
desde tempo muito antigos, construído pelos próprios atenienses séculos antes, dizendo "o que
vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio", Paulo refuta de forma brilhante a grave
acusação de trazer novos deuses ou deuses estranhos, pois "(...) ligando a identidade do deus
desconhecido com a criação é a forma mais radical possível de desacreditar a acusação de pregar
novas divindades (...)" nas palavras do Professor Rowe [12].
Referências Bibliográficas
[1] C. Kavin Rowe (2009), World Upside Down : Reading Acts in the Graeco-Roman Age, Oxford
University Press, fls. 30-32
[2] Diógenes Laercio, Vida dos Filósofos Eminentes, Livro I, 110, Epimenides
[3] Pieter Willem van der Horst (1998). Hellenism, Judaism, Christianity: essays on their interaction.
The Altar of the 'Unknown God' in Athens (Acts 17:23) and the Cults of 'Unknown Gods' in the
Graeco-Roman World. Peeters Publishers. pp. 187–220.
[4] Pausânias, Descrição da Grécia, Livro I.1.4 e Livro V.14.8, acessado em 29.09.2013 (em inglês,
tradução própria para o português). citado por Van Der Horst [2] fl. 191
[5] Filostrato, Vida de Apolonio de Tiana, Livro VI.3, (em inglês, tradução própria para o português).
citado por Van Der Horst [2], fl. 193
[6] Tertuliano de Cartago, Contra Marcião, Livro I. 9 (em inglês, tradução própria para o português).
citado por [2] fl. 200-201
[7] Pieter Willem van der Horst (1998). Hellenism, Judaism, Christianity: essays on their interaction.
The Altar of the 'Unknown God' in Athens (Acts 17:23) and the Cults of 'Unknown Gods' in the
Graeco-Roman World. Peeters Publishers. fl. 194-195
[8] Corpus Inscriptorum Latinarum (CIL)VI. 110 = VI. 30.694 = I, 801., Roma, Colina Palatina, 92 AC,
http://db.edcs.eu/epigr/bilder.php?bild=$CIL_06_00110.jpg;$CIL_01_00801.jpg
[9] Jerônimo, Comentário a Epistola de Tito, I,12
[10] Pieter Willem van der Horst (1998). Hellenism, Judaism, Christianity: essays on their interaction.
The Altar of the 'Unknown God' in Athens (Acts 17:23) and the Cults of 'Unknown Gods' in the
Graeco-Roman World. Peeters Publishers. fl. 203
[11] João Crisóstomo, Homilía 38 de Atos dos Apóstolos,
[12] C. Kavin Rowe (2009), World Upside Down : Reading Acts in the Graeco-Roman Age, Oxford
University Press, fl. 34
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