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AD CUMMULUS

Estudos sobre Religião - Biblioblog

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sábado, 5 de outubro de 2013

ANOTAÇÕES AD CUMMULUS 005: O "Agnostos Theos" de


Epimenides e o Deus Desconhecido de Paulo

Então Paulo levantou-se na reunião do


Areópago e disse: “Atenienses! Vejo que em
todos os aspectos vocês são muito religiosos, 
pois, andando pela cidade, observei
cuidadosamente seus objetos de culto e
encontrei até um altar com esta inscrição: AO
DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês
adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes
anuncio.“O Deus que fez o mundo e tudo o que
nele há é o Senhor dos céus e da terra, e não
habita em santuários feitos por mãos
Pregação de Paulo em Atenas, de Anton Dietrich, 1877, afresco
no Christian-Weise-Gymnasium, Zittau, Saxonia, Alemanha humanas.  Ele não é servido por mãos de
via wikipedia commons. homens, como se necessitasse de algo,
porque ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego
e as demais coisas.  De um só fez ele todos os povos, para que povoassem toda a terra, tendo
determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em que deveriam
habitar. Deus fez isso para que os homens o buscassem e talvez, tateando, pudessem encontrá-lo,
embora não esteja longe de cada um de nós. (Atos 17:22:27)

Os Atos dos Apóstolos registra a narrativa de como o Apóstolo Paulo, estando em Atenas, e
aguardando a chegada de Silas e Timóteo, se indignou com os vários idólos espalhados pela
cidade. Aqui no Adcummulus, nosso amigo Flávio, já fez um análise interessantíssima sobre a
passagem, que o leitor não deve perder. 

O Areopago, situado na Colina de Marte, era o lugar em que se reuniam, desde tempos muito
antigos, os Arcontes de Atenas,  o conselho de magistrados da cidade. Desde as reformas de
Solón, no início do sec VI AC, o Areopago foi gradualmente esvaziado de seus poderes políticos,
ainda que, mesmo no período romano, retivesse significativa autoridade para os assuntos internos,
além de exercer funções cerimoniais, detendo assim considerável prestigio [1].

Significativamente,  naquele mesmo local, cinco séculos antes, o Areópago havia julgado Socrátes.
Como observa o Professor C. Kavin Rowe, da Universidade Duke (EUA), Socrates havia sido julgado
e condenado a morte "por rejeitar os deuses reconhecidos pelo Estado, e trazer outras, novas,
deidades", nas palavras de Xenofonte e Platão  [1].   Conforme Atos 17:19, Paulo foi "trazido",
"levado" ao Areópago, (com o verbo grego conotando um elemento de coerção), para explicar suas
novas idéias (já que Jesus e Ressureição  foram entendidos pelos atenienses como novos deuses),
com a narrativa lucana aludindo  ao bem conhecido julgamento de Socrates [1]. Em suma, Paulo foi
"levado para averiguação", ou "intimado para prestar esclarecimentos",  e deveria se explicar
convincentemente.

Paulo, porém, foi extremamente hábil e político, dadas as circunstâncias. A menção ao Deus
Desconhecido, naquele cenário, não deve ter passado desapercebida daqueles leram e ouviram a
narrativa. Séculos antes de Paulo, por volta do ano 595 AC, o filósofo cretense Epimenides teria
estado em Atenas, na mesma Colina de Marte em que se reunia o Areopago.  Diógenes Laércio
(início do século III DC), escreve:

 Assim, quando os atenienses foram atacados pela peste, e as Pitonisas ordenaram-lhes


purificar a cidade, enviaram um navio comandado por Nicias, filho de Nicerato, para Creta
para pedir a ajuda de Epimenides. E ele veio na 46ª Olimpíada [593-595 AC] e purificou a
cidade, e fez cessar a peste da seguinte maneira. Ele tomou ovelhas, algumas pretas e
outras brancas, e os trouxe ao Areópago, e as soltou ali, deixando ir para onde quisessem,
instruindo que os animais fossem seguidos, para que fosse para marcado o local onde
cada ovelha havia descansado, e oferecido um sacrifício à divindade local. E assim, diz-se,
a praga cessou. Daí, até hoje altares podem ser encontrados em diferentes partes do
Atica sem nome inscrito sobre elas, que são memoriais desse livramento [2]

Muitas das construções, jardins e lugares públicos de Atenas estavam associadas a uma ou outra
divindade. Assim, dedicar um sacríficio a divindade local, implicava em dedica-lo aquele deus ou
deusa. No entanto, como essa lenda diz que em vários locais da Àtica, foram dedicados altares
sem nome, isso implica que se desconhecia a divindade associada aos locais em que pelo menos
algumas das ovelhas descansaram. Foi a forma que se encontrou para se justificar a existência de
altares dedicados ao "Deus Desconhecido" (Agnostos Theos).

Pieter Willen van der Horst, Professor (aposentado) da Universidade Utrecht (Holanda), é autor de
um dos mais relevantes estudos sobre "O Deus Desconhecido", chamado "The Altar of the
Unknown God in Athens (Acts 17:23) and Cults of Unknown Gods in Graeco Roman World" [3],
onde procura responder três questões:

1) Existia um altar ao deus desconhecido em Atenas e/ou outros lugares?


2) Se existia, qual o significado  desta e outras inscrições similares?
3)Qual é a função do altar/inscrição na narrativa lucana

Prof. Van der Horst cita duas passagens do livro "Descrições da Grécia" (160-176 DC), escrito pelo
geográfo  Pausânias, que se referem a altares ao(s) deus(es) desconhecido(s), em Atenas e
Olimpia:

Os atenienses também têm outro porto, em Muniquia,  em que se localiza um  templo de
Artemis de Muniquia, e ainda outro na Faliro, como já afirmei, e perto dele um santuário de
Deméter. Aqui também existe um templo de Atena Sciras, e um dedicado a Zeus a alguma
distância, e os altares dos deuses chamados desconhecidos, e de heróis

 Do relato do grande altar  que eu mencionei um pouco antes, chamado de altar de Zeus


Olímpico. Mas é um altar dos deuses desconhecidos, e depois desta um altar de Zeus
Purificador, um dedicado a Vitória e outro de Zeus - desta vez cognomidado . Há também
os altares de todos os deuses, e de Hera sobrenome olímpico, isso também está sendo
feito de cinzas.[4]
Van der Host nota a diferença entre a existência de um altar ao "deus desconhecido" (como em
Atos), ou de "deuses desconhecidos".  A existência de um altar aos "deuses desconhecidos" em
Atenas é indicada também por Lúcio Flávio Filostrato (170-247 DC), que no início do século III, em
sua biografia de Apolonio de Tiana, coloca na boca daquele mestre o seguinte ensino:

E a mera aversão a qualquer um dos deuses, como Hipólito  entretêm em relação a


Afrodite, eu não considero como uma forma de sobriedade, pois é muito maior prova de
sabedoria e sobriedade louvar a todos os deuses, como é feito especialmente em Atenas,
onde altares foram erigidos em honra ate mesmo dos deuses desconhecidos. [5].

Além de Pausânias e Filostrato, Professor Van der Host inclui entre as referências literárias o
apologista cristão Tertuliano de Cartago, contêmporaneo desses autores pagãos. Em sua violenta
crítica ao herege Marcião de Sinope:

Convença-me que  possa ter havido  um deus desconhecido. Sem dúvida,  sei que
existem  altares  que foram oferecidos  a deuses desconhecidos, que, no entanto, é a
idolatria de Atenas. E a deuses incertos, que, também, é apenas superstição romana. [6].

Tertuliano, afirma aqui que não só os atenienses e gregos em geral, tinham o hábito de construirem
altares aos "deuses desconhecidos", os romanos também faziam isso. Isso é relevante em nossa
discussão, pois o Professor Van der Host observa que a evidência arqueológica, em lingua
grega,  para os altares ao(s) "deus(es) desconhecido(s)" é  limitada,  sendo  o mais relevante
candidato uma inscrição de Pergamo, na Asia Menor, mas que é fragmentária e cuja menção aos
"deuses desconhecidos" é disputada entre os estudiosos [7]. No entanto, podemos acrescentar, a
evidência em lingua latina, é superior.  

O altar ao lado foi encontrado, em 1820, na Colina Palatina,


em Roma,  O altar traz a seguinte inscrição:

SEI·DEO·SEI·DEIVAE·SAC
G·SEXTIVS·C·F·CALVINVSPR
DE·SENATI·SENTENTIA
RESTITVIT

 Ao santo deus, ou deusa


 Caio Sexto Calvino, filho de Caio, Pretor
 Por ordem do Senado
Restituiu [8]

O Caio Sexto Calvino mencionado no altar (reconstruido


por volta do ano 92 AC), seria filho do Pretor  Caio Sexto
Calvino, que foi Consul da República Romana em 124 AC.
Altar ao deus (ou deusa) desconhecido, início  O altar romano é relevante também porque é seguramente
do século I AC, Colina Palatina, Roma, via datado do século anterior a Paulo, e toda a evidência
Wikipedia
literaria apresentada acima é  encontrada em autores que
viveram de 100 a 150 anos após o Apóstolo Paulo, alguns
dos quais podem ter tido contato com os evangelhos e novo testamento (como Lúcio Flávio
Filostrato). Se Tertuliano estiver correto, os altares gregos eram semelhantes aos romanos, ou seja,
dedicados de forma genérica a "deuses desconhecidos". 
Por último, alguns autores cristãos do final do século IV em diante, observam que a inscrição no
altar em Atenas, continha alguns elementos adicionais aos mencionados por Paulo. Professor Van
der Host, cita, por exemplo, o testemunho de Jerônimo.

Não é estranho que ele [Paulo]  tenha utilizado  versos dos poetas pagãos quando  fosse
oportuno, haja visto que em seu discurso aos Atenienses ele chegou a mudar alguns
elementos da inscrição do altar. Pois ele diz [citação de Atos 17:23]. No entanto, a
inscrição não era, como Paulo afirma "Ao deus desconhecido" mas  sim "aos deuses
da Asia, Europa e Africa, aos deuses estrangeiros e desconhecidos". Uma vez que Paulo
não necessitava de vários deuses, mas apenas um Deus desconhecido, ele usou o
singular" [9].

  Van der Horst observa que  um quase contemporâneo de Jerônimo, Eutálio, o diácono
(também  conhecido como Eutálio de Alexandria), cita a inscrição de forma identica a Jerônimo,
diferindo apenas na segunda parte, que seria "ao deus estrangeiro e desconhecido"[10]. A versão de
Jerônimo é atípica   pois não só os autores cristãos, mas também vários autores pagãos, que
viveram antes dele, nos séculos II e III,  referem-se ao um altar em Atenas  ao(s) deuse(s)
desconhecido(s)  , sem mais a acrescentar. No entanto, é improvável que Jerônimo tivesse
expandido uma inscrição apenas para contradizer o Apóstolo Paulo! Van der Host oferece então
uma solução de compromisso: o altar possivelmente tinha inscrições dos dois lados,  uma mais
antiga "aos deus(es) desconhecido(s) e estrangeiro(s)", conhecida dos autores do século I e II, e
outra, posterior, possivelmente fruto de uma re-dedicação do altar "aos deuses da  Ásia, Europa, e
Africa"  , de forma a tornar o altar ainda mais claro, atendendo a todos os deuses  possíveis e
imagináveis  [10]. Seja como for, reforça a percepção de que o altar era dedicado aos deuses
desconhecidos, e não a um deus desconhecido.
Professor Van der Host, observa que essa dedicação genérica, a deuses desconhecidos, era
motivada pelo temor de que alguma divindade negligenciada, ficasse magoada pelo desprezo, e
buscasse vingança, e cita o Bispo João Crisóstomo, no século IV:

Ou seja, os atenienses, como em muitas ocasiões haviam recebido também deuses


estrangeiros como, por exemplo, o templo de Minerva, Pan, e outros de diferentes países,
temendo que pudesse existir algum outro deus que ainda não lhes fosse conhecido, mas
adorado em outro lugar, por mais segurança, em verdade, ergueram um altar para aquele
Deus também, e como deus não era conhecido, puseram uma inscrição, "a um Deus
Desconhecido". [ 11 ].

Desta forma, fica claro que os altares refletem o reconhecimento por parte de gregos e romanos
das suas limitações quanto ao conhecimento das coisas divinas. Temendo ofender os poderes
celestiais, buscavam garantir que todos fossem honrados, garantindo, em outro altar específico, a
menção pelo nome porém daqueles a qual, imediatamente, se buscava o favor. Ou seja,
independente se tais altares eram dedicados ao "deus desconhecido", ou aos "deuses
desconhecidos", seu caráter genêrico e "politico" é claro. Consideradas as devidas proporções, é
semelhante, no contexto cristão, ao dia, ou ao alteres ou igrejas dedicados hoje "a todos os
santos". Pregadores da nova fé como Paulo, viram porém naquele altar, a oportunidade de falar
sobre o Deus que os sábios gregos e romanos não haviam esquecido sem sequer ter conhecido.
Além disso, ao associar o Deus Desconhecido ao Deus de Israel, apontando para um altar erigido
desde tempo muito antigos,  construído pelos próprios atenienses  séculos antes, dizendo "o que
vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio", Paulo refuta de forma brilhante a grave
acusação de trazer novos deuses ou deuses estranhos, pois "(...) ligando  a identidade do deus
desconhecido com a criação é a forma mais radical possível de desacreditar a acusação de pregar
novas divindades (...)" nas palavras do Professor Rowe [12].
 Referências Bibliográficas
[1] C. Kavin Rowe (2009), World Upside Down : Reading Acts in the Graeco-Roman Age, Oxford
University Press, fls. 30-32
[2] Diógenes Laercio, Vida dos Filósofos Eminentes, Livro I, 110, Epimenides
[3] Pieter Willem van der Horst (1998). Hellenism, Judaism, Christianity: essays on their interaction.
The Altar of the 'Unknown God' in Athens (Acts 17:23) and the Cults of 'Unknown Gods' in the
Graeco-Roman World. Peeters Publishers. pp. 187–220.
[4] Pausânias, Descrição da Grécia, Livro I.1.4 e Livro V.14.8, acessado em 29.09.2013 (em inglês,
tradução própria para o português). citado por Van Der Horst [2] fl. 191
[5] Filostrato, Vida de Apolonio de Tiana, Livro VI.3, (em inglês, tradução própria para o português).
citado por Van Der Horst [2], fl. 193
[6] Tertuliano de Cartago, Contra Marcião, Livro I. 9 (em inglês, tradução própria para o português). 
citado por [2] fl. 200-201
[7] Pieter Willem van der Horst (1998). Hellenism, Judaism, Christianity: essays on their interaction.
The Altar of the 'Unknown God' in Athens (Acts 17:23) and the Cults of 'Unknown Gods' in the
Graeco-Roman World. Peeters Publishers. fl. 194-195
[8] Corpus Inscriptorum Latinarum (CIL)VI. 110 = VI. 30.694 = I, 801., Roma, Colina Palatina, 92 AC, 
http://db.edcs.eu/epigr/bilder.php?bild=$CIL_06_00110.jpg;$CIL_01_00801.jpg
[9] Jerônimo, Comentário a Epistola de Tito, I,12
[10] Pieter Willem van der Horst (1998). Hellenism, Judaism, Christianity: essays on their interaction.
The Altar of the 'Unknown God' in Athens (Acts 17:23) and the Cults of 'Unknown Gods' in the
Graeco-Roman World. Peeters Publishers. fl. 203
[11] João Crisóstomo, Homilía 38 de Atos dos Apóstolos,
 [12] C. Kavin Rowe (2009), World Upside Down : Reading Acts in the Graeco-Roman Age, Oxford
University Press, fl. 34

Nehemias às sábado, outubro 05, 2013

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3 comentários:

António Jesus Batalha terça-feira, 24 de dezembro de 2013 15:17:00 BRST


Cheguei ao seu blog e fiquei entusiasmado, pois foi feito com muita graça, e com muito entusiasmo.
Gostei do que vi e li, e achei um blog fantástico, onde se aprende muito.
Sou António Batalha, do blog Peregrino E Servo, se me der a honra de o visitar ficarei grato.
PS. Se desejar faça parte dos meus amigos virtuais,decerto que irei retribuir, seguindo e divulgando
seu blog.
Desejo-lhe muita saúde muita paz e grande felicidade, e também um Feliz-Natal.
Responder

Nehemias quarta-feira, 25 de dezembro de 2013 18:38:00 BRST


Antonio,
Muito obrigado, já fui a seu blog, e achei muito interessante. Fico muito feliz que tenha gostado de
nosso trabalho.
Feliz Natal, Próspero ano novo.
Nehemias

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