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Prefácio à

“Existe mulher honesta? Amor e Desejo em Nelson Rodrigues”


de Lucila Maiorino Darrigo

Christian Ingo Lenz Dunker

O livro que o leitor tem agora em suas mãos está na origem de um debate que
ganhou força e se consolidou nos últimos dez anos. Contemporâneo do trabalho de Maria
Rita Khel 1 , o texto de Lucila Maiorino Darrigo explora a confluência entre psicanálise de
orientação lacaniana, a literatura e feminilidade. Ao final dos anos 90 o tema da
feminilidade estava plenamente caracterizado como uma questão candente em centros
universitários fora do Brasil. Os Gender Studies (estudos de gênero), as teorias feministas e
a sociologia dos gêneros formavam departamentos universitários autônomos, possuíam
seus próprias revistas e congressos e propunham uma nova agenda para a crítica da cultura
e a teoria da sociedade. Esta pujante tradição de pesquisa, especialmente na ambiência
intelectual anglo-saxônica, estava ainda incipiente no Brasil. Este atraso relativo foi
também uma oportunidade para que os estudos brasileiros sobre a feminilidade se
afirmassem não apenas no contexto da crítica e reação ao androcentrismo patriarcal vigente
em certas formas da psicanálise, mas na complexa e ainda incerta contribuição de Lacan.
Podemos dizer que esta conjunção mostrou-se feliz tanto porque revigorou os
“costumes psicanalíticos” quanto porque contribuiu para colocar a psicanálise fora de si
mesma e reatar seus laços com a tradição crítica.
Além disso, é preciso notar que a obra de Nelson Rodrigues se desenvolve no
mesmo período em que a psicanálise encontra sua grande difusão no Brasil. Entre ambas há
algumas afinidades imediatas: o realismo, o recurso ao mito e a tragédia, o laço entre amor
e morte, a cisão entre amor desejo, a crítica da religião e da moral. Insinua-se aqui uma
relação entre as transformações sociais do Brasil dos anos 1960-1970, particularmente

1
Kehl, Maria Rita – A Mínima Diferença, Imago Rio de Janeiro, 1996.
quanto à condição da família e da mulher, e o modo de subjetivação necessário e afeito às
questões éticas e práticas da psicanálise. O livro de Lucila propicia, neste sentido, uma
espécie de encontro imaginário entre Lacan e Nelson Rodrigues, assim como se poderia
conjecturar um encontro entre Freud e Machado de Assis.
A escrita de Lucila Darrigo contém virtudes especialmente relevantes em se
tratando de alguém que tem o trabalho de Lacan como referência: o texto é claro sem ser
insípido, denso sem ser impenetrável, incisivo sem ser dogmático. Sem justificar a
polêmica noção de “escrita feminina” acompanhamos neste livro a prática de um estilo que
não se explicita em um metadiscurso. É um estilo algo “cubista” de narrativa, pois
sobrepõe perspectivas ao longo dos capítulos sem que elas pareçam, ao final,
desarticuladas. Escrita provocativa, ambígua e irônica. Não levanta teses e as demonstra
para agradar o paladar universitário, mas as explicita sob forma de perguntas retóricas,
deixando sempre a dúvida para o leitor: é isso que ela pensa mesmo? Estou diante de uma
autora “honesta”?
É um texto regido pela méthis, a astúcia feminina, com franca utilização da
paratopia, ou seja, uma posição indeterminada do narrador. Não corresponde à auto-ironia
que vemos, por exemplo, em Bráz Cubas, mas com uma espécie de hetero-ironia, talvez
absorvida de Nelson Rodrigues. Seria este texto um texto honesto?
Sua introdução é certamente desonesta ... porém sincera. Desonesta porque declara
que não fará uma interpretação da obra do dramaturgo maldito, sincera porque pratica sim
um tipo de interpretação não hermenêutica do texto literário. Escapa desta maneira, da
usual posição da literatura como serva da psicanálise. Como tal esta que lhe prestaria um
serviço gratuito sem receber nada em troca. Inversamente, Lucila coloca em contigüidade
dois universos de linguagem, passando de um ao outro sem que a verdade de um seja de
antemão pré-fixada pelo outro.
Este estilo e este método estão profundamente concordes com a forma como Nelson
Rodrigues trata o tema do feminino em sua ligação intrínseca com a prática da traição. Ele
desloca a questão da honestidade do plano moral, no qual a traição é condenável por si e em
si, para o plano da relação do sujeito com seu desejo, onde a sinceridade impossível seria o
critério. Honestidade é uma expressão que reúne dentro de si três sentidos: sinceridade,
autenticidade e fidelidade. Ocorre que em Nelson Rodrigues estes três sentidos não se
completam, quando temos um outros dois escapam e o contradizm.Por isso se pode dizer
que em Nelson Rodrigues as mulheres são sim desonestas (moralmente) e honestíssimas
(para com seu desejo). Isso basta para desequilibrar o sentido das afirmações freudianas de
que a mulher sofreria de uma fragilidade em seu superego. Vício moral ou virtude
desejante? Felizmente não se trata de inversão simples nem de naturalização do
masoquismo feminino. Daí as consideração rodrigueanas sobre o que quer uma mulher:
gostam de canalhas, amam duzentos ao mesmo tempo, quanto mais adúlteras mais puras,
gostam de apanhar (não todas, só as normais) e sobretudo não sentem culpa pois não abrem
mão do desejo. Os homens, ao contrário, preferem a culpa à angústia que acompanha o
desejo (também só os normais). Lido em seu valor de face Nelson Rodrigues pode ser
reduzido a um autor misógeno, chauvinista e profundamente preconceituoso. Mas basta
reverter uma vez mais este binário ideológico que opõe masculinidade e feminilidade para
que nele encontremos uma espécie de super-identificação (overidentification). O exagero
da posição não apenas a leva ao seu contrário, mas à desintegração da falsa oposição
complementar inicial.
Nelson Rodrigues começa a escrever com pseudônimos femininos e termina por nos
convidar ao teatro do desagradável. Carrega uma profunda nostalgia da natureza sendo,
desde pequeno, fascinado por velórios (quem nunca desejou morrer com o ser amado, não
amou nem sabe o que é ser amado). Lucila estuda este triângulo formado por desejo, amor
e morte mostrando como ele nos leva a uma espécie de crise fundamental e permanente da
identidade feminina. Menos do que um machista convencional Nelson Rodrigues seria uma
espécie de teórico da desintegração da essência feminina (a mulher sem amor é um macho
mal acabado); um crítico das aporias do desejo (a adúltera é mais pura pois está livre do
desejo que apodrecia dentro dela); um ironista do masculino (o marido que dá garantias
está liquidado) e sobretudo um estudioso hiper-realista do erotismo (o sexo só faz
canalhas, não santos). Ele partilha com a psicanálise a idéia de que não há objeto ou
proporção ideal e permanente que unifique amor e desejo, e seus semblantes são sempre
mais ou menos trágicos ou cômicos. Distingue-se assim a feminilidade da “justiça
histérica”, este impuxo ao igual como forma de reestabilizar o signo amoroso.
A trama do texto de Lucila trabalha com a ambigüidade da idéia de honestidade. Ser
honesto é não mentir ou ser honesto é não representar? Ou ainda, não agir contra o
estabelecido pela lei, pela moral e bons costumes? Mas o que significa ser honesto quando
não se sabe qual é a verdade do desejo? Perdoa-me por me traíres. A traição honesta é
aquela “sem motivo”, ou que corre às expensas destes. Não é ressentimento, vingança ou
desespero, apenas acontecimento. Daí que a adúltera seja efígie da prostituta, não pela
violação moral, mas porque ambas fazem a experiência desta excentricidade entre desejo e
amor. Ambas sinceras em sua desonestidade: a mulher que culpa o homem por sua
insatisfação pode estar enganada, mas ao menos sobre este ponto não está mentindo.
Lucila passa por várias épocas da dramaturgia de Nelson Rodrigues e também por
seus contos. Combina assim uma leitura do período onírico trágico com o realismo cômico
que domina suas crônicas. Vemos, por exemplo, que na personagem Dorotéia, ser desejada
é ao mesmo tempo uma condição absoluta e uma devastação. Lucila mostra assim a
importância decisiva da circulação do desejo entre mulheres e as dificuldades de sua
subjetivação: a Morte, a Outra e a Mãe tornam-se figuras unificadas pela náusea. Figuras da
punição pelo desejo, mas também suportes de identificação para este velamento
compartilhado da feminilidade. A vigília onírica, a figura em sobrevôo quase destacada de
si, dissociativamente, contrasta, no andamento da peça com a concretude surrealista de uma
bota ou de um jarro. A tragédia termina na a explosão irresponsável do desejo e o lugar de
seu enigma: o corpo. A aparição das chagas em Dorotéia, em contiguidade com a recusa da
náusea em das Dores faz perguntar se a feminilidade não é também uma questão de
transmissão? A femilidade é uma construção coletiva (uma narrativa compartilhada como
quer Gidens), ou o “tornar-se mulher”, já apontado por Freud, é uma invenção singular,
construída na falta de recursos do amor e na incomensurabilidade do desejo?
Este tríptico formado pela Mãe, a Outra e a Morta é explorado à exaustão nos
contos rodrigueanos. Aqui a estratégia isolada por Lucila faz ressaltar os paradoxos da
demanda. Diante do noivo que exige provas e segurança de que o amor jamais perecerá a
resposta paradoxal: as mortas não traem. Resposta em ato suicida. Bem sucedido e sincero.
Diante de marido que exige fidelidade absoluta, a castidade. Afinal como não trair o marido
com ele mesmo? Como não trair o homem que um dia se amou e que agora já não é mais?
Diante da crença na honestidade não dialética, a traição involuntária da amargura. Para
aquele que demanda o desejo e estado puro o pior castigo: é ao traí-lo com o vizinho que
ela poderá desejá-lo tal qual ele o pede sem saber o que pede. Para aquele que pede por um
amor covarde e sem riscos só restará expulsar o desejo para o amante.
É assim que a feminilidade aparecerá sempre como uma espécie de divisão
sintomática para o homem. Por exemplo, aquele que pede por possuir sua amada
intransitivamente, ou seja, sob quaisquer condições, recebe de volta sua própria mensagem
invertida. Serei sua, sim, como amante ou como esposa. A escolha, assim como a demanda,
é sua. Note, porém, que se me escolher como esposa terás que aturar meu amante e se me
escolher como amante terás que aturar meu marido. Pedido atendido, sintoma formado.
Isso sem falar na traição feita para sustentar o desejo pela esposa. Aqui basta a ficção para
conter a estrutura de verdade do desejo, ou é preciso ainda da realidade como ficção da
ficção? A bofetada faz do homem, homem? Ou é o grito de desespero da precariedade de
sua condição de pedinte? A mais geral tendência à depreciação do objeto na vida amorosa,
já assinalada por Freud, não incide da mesma maneira para homens e mulheres e Lucila,
através de Nelson Rodrigues, nos faz ver, por que aqui, como em outros lugares, o
masoquismo não faz par com o sadismo.

Assim como Sade, no século XVIII, realizou um inventário das formas possíveis do
gozo Nelson Rodrigues faz um inventário das formas possíveis de disparidade entre o
desejo e o amor no Rio de Janeiro dos anos 1960. A astúcia de Lucila Darrigo a faz
perceber que o narrador rodrigueano é afetado pela feminilidade, mas não se coloca como
seu senhor. É isto o que lhe confere a liberdade aforismática e declaratória. Ele pode dizê-la
escandalosamente, pois não corre o risco de dizê-la toda. É um inventário que não forma
um catálogo. Um dicionário que não aspira à enciclopédia (diferente de Sade). Na mesma
chave o amor pode ser a experiência da certeza inabalável e da dúvida infinita, mas de toda
maneira uma mentira bem contada e necessária. O que a apologia trágica do amor nos faz
ver é a sua impotência diante do reconhecimento do desejo.
O livro de Lucila mostra toda sua força e atualidade ao examinar criticamente as três
soluções que Freud propunha para o destino da feminilidade: a inibição, a identificação viril
e a maternidade. Estas três soluções não incidem da mesma maneira quer se considere a
bissexualidade ou a premissa universal do falo. Na verdade elas se apóiam na falsa
suposição de que a noção de falo quando empregada no contexto da de uma "ordem fálica
organizadora da cultura ?" é a mesma que quando empregada em na carcaterização da
feminilidade pelo “gozo não-todo fálico“. Ou seja, até que ponto a cultura não se faz com o
que dela se exclui falicamente?
Isso leva o texto de Lucila a uma calorosa polêmica ainda em curso. Quando Lacan
fala em feminilidade e mais especificamente em gozo feminino trata-se de uma inscrição
subjetiva (análogo da noção de escolha de neurose) ou de uma posição (análoga à escolha
de objeto) ou ainda de uma montagem discursiva (análoga a uma fantasia)?
Concluindo, ao leitor honesto recomendo este livro tão sincero quanto as questões
que ele deixará para ti. E que a mãe o leia para sua filha ...

São Paulo 8 de agosto de 2007

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